02OGaribaldi - Revista

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02OGaribaldi R EVISTA 1

# MAR15: AVANÇANDO::

SÊLO ⌖ O GOLPE


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Quem acredita que o primeiro é que marca? Também o segundo pode ser delicioso. Estamos aqui novamente, mas não só aqui. Estamos em toda parte. A poesia & as querências do mundo. Tudo em confluência. Um mês como esse, uma revista como essa. O que dizer? A vida é um não caber. Por isso aqui também não cabe. A 02OGaribaldi chega para ser o não-lugar do lugar; o não-estar. Com licença, não somos a passagem, somos o outro caminho. 3

Gratidão, OGaribaldi.

Juiz de Fora, março de 2015.


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MANIFESTO

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Banheiro da Faculdade de Letras da UFJF


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SUMÁRIO

ENTREVISTA O POEMA II.MARÍLIA QUARUP NO MUNDO OUTRO POEMA A COISA ESTRANHA MEU MULADO INZONEIRO A CORRESPONDENTE DE SAÍDA QUEM ESTÁ EQUIPE

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ENTREVISTA com Anderson Pires da Silva O BANDO DA POESIA DE JUIZ DE FORA

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©Edson Rodriguez (Pluraw) – ECO Performances Poéticas | 2014

O professor de literatura brasileira da Universidade Federal de Juiz de Fora, Anderson Pires da Silva, fala para a 02OGaribaldi sobre a cena contemporânea de


poesia de Juiz de Fora e sua produção, mostrando como o evento ECO – Performances Poéticas dialoga com essa cena. Até agora o ECO – Performances Poéticas, evento que você ajudou a instituir na cidade, já teve mais de dez organizadores. De todas as gerações que já passaram pelo evento você é o único que está desde a fundação do grupo, em 2008. Como você lida e dialoga com os outros poetas e, principalmente, como posiciona a sua produção dentro dessa cena?

Resposta. Eu sempre gostei de andar em bando, embora seja um cara bem na minha também. Sei lá, acho que isso vem da minha adolescência, da cultura alternativa, comecei a fazer fanzine, que é um tipo de ação entre amigos, com uns 17 anos. Além disso, tudo o que eu gostava em literatura nesse período - a vanguarda dos anos 20, o movimento beat, o concretismo – era uma ação estética coletiva. Quando estava cursando a Faculdade de Letras da UFJF, entre 1992-97, publicava muito em fanzines, como o Algures e Alhures, editado pelo André Monteiro. E depois, já fora da UFJF, criei o fanzine Urhg!, com o Guiliano Kid e Marquito. A publicação durou de fevereio a novembro de 2000, lançado todas às 5ª à noite no bar Incosciente coletivo. Nesse momento, era importante abrir espaços onde não existiam, e não se faz isso sozinho. Ainda mais no meu caso, sendo de fora. Mas o final do Urgh! foi melancólico, na real, fanzines não foram feitos para

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durar, são como a adolescência, chega uma hora que todo mundo fica vaidoso demais, querendo um reconhecimento à parte. Foi o que rolou no Urgh!

Depois disso, fiquei com um pé atrás desse negócio de fanzine. Então, fiz o que todo escritor solitário faz, escrevi um romance, chamado Os sexistas, mas achei uma bosta. Logo, voltei a escrever poemas e estudar a sério a poesia moderna.

Vida que segue: fui para o Rio fazer o doutorado na Puc, como todos os meus parceiros de arte e manhã – Érika Kelmer, Elza de Sá, André Monteiro e Camila do Valle. Não sei se foi por saudosismo ou elas tinham algum plano secreto, mas um 10

dia em 2005, a Érika me envia um e-mail pedindo uma seleção de poemas, pois junto com a Elza, montava um projeto de livro-coletânea para concorrer à Lei Murilo Mendes. Foram selecionadas, a obra foi publicada em 2006 – Livro de sete faces: poetas em diálogo -, editada em parceria da Funalfa com a Nankin.

No dia do lançamento do livro no Rio, estou na rodoviária e recebo a ligação da jornalista do Tribuna de Minas, que me pergunta: “Qual a sensação de fazer parte de uma nova geração de poesia em Juiz de Fora?”. E eu não sabia o que responder, porque toda a minha ideia de “nova geração” envolvia a negação da geração


anterior, e não era o caso, pois o Edimilson de Almeida Pereira tinha ajudado na realização do projeto, aliás, o prefácio é dele.

O lançamento do Livro de sete faces em Juiz de Fora foi muito foda. Aconteceu no Mezcla, nós subimos ao palco para ler nossos poemas, a Fantástica Banda Invisível tocou. Acho que foi isso que instigou o Marcos Marinhos. Mas poucas semanas depois, fomos convidados a participar de uma mesa redonda na Casa de Cultura, e aí foi um desastre. Na real, nós podíamos ser uma “nova geração”, com a mesma cumplicidade da “geração anterior”, mas no nosso caso havia muita emoção afetiva envolvida. No ano seguinte, já estávamos cada um no seu canto. 11

No início de 2007, recebo um e-mail do André Monteiro me pedindo alguns poemas novos, porque havia um camarada, chamado André Capilé, que gostava dos meus textos e tal, havia ganhado um financiamento da Funalfa para publicar um jornal de poesia – o Parabelo. Logo depois, o próprio Capilé me enviou um e-mail quilométrico, dizendo que havia lido minha dissertação de mestrado, que tinha morado em Angra do Reis (minha cidade natal), e no final ainda enviava em anexo seus poemas. Depois da experiência do Urgh!, lógico que não respondi. Porém, no final do ano, fui convidado para fechar o Café Filosófico no Mezcla, bolei uma apresentação de leitura de poemas, mas faltava uma voz, então entrei em contato


com o Capilé, porque, no final das contas, ele iria publicar meus poemas e convidálo seria um gesto de gratidão. Mas é claro que estava desconfiado, por isso marquei um encontro na minha casa, para conhecê-lo, se rolasse qualquer antipatia não falaria nada. Para minha alegria, nós nos demos bem logo de cara. Fizemos a apresentação no Café Filosófico – eu, a Juliana Magaldi e o Capilé -, os participantes gostaram, o Marcos Marinho, proprietário do Mezcla, ficou todo animado e nos perguntou se não poderíamos montar um sarau naquela linha, para preencher uma das 5ª feiras vazias do Mezcla.

O importante no diálogo com outros poetas, que produzem e/ou disputam no 12

mesmo espaço-tempo que você, é a ampliação dos seus próprios horizontes. Se não há essa ampliação, não há diálogo.

O Eco começou a nascer desse encontro, na varanda do meu apartamento no Mundo Novo. O primeiro ano foi visceral, porque não havia nada na cidade, os escritores e poetas se lamentavam pelos bares sem o apoio da Lei Murilo Mendes (suspensa nesse ano), e a existência de um evento mensal de leitura de poesia foi algo promissor no horizonte. O plano da primeira equipe do Eco – Carla Machado, Pedro Paiva, Capilé, eu e Juliana – era criar um espaço de criação, e daí em diante


as coisas aconteceriam pela própria vontade dos participantes. Foi o que aconteceu.

Agora há duas coisas que permanecem no Eco desde o início: a forma de apresentação e eu. E por que ainda permaneço, quando há uma renovação constante do núcleo organizador? Ao contrário dos outros organizadores, eu exerço muitas funções na realização do evento: apresentador, produtor executivo, motorista. Mas o fator principal que ainda me mantém (e ainda me aceitam) é que eu gosto de andar em bando.

⌖ O ECO – Performances Poéticas cria uma cena ou participa da cena atual de poesia na cidade de Juiz de Fora?

Resposta: Acredito que o Eco possibilitou a existência de um novo cenário, ou pelos menos de outro modus operandi de fazer poesia na cidade, antes tudo ficava resumido a ter um apoio da Lei Murilo Mendes e ao lançamento no Espaço Mascarenhas ou no MAMM. Não digo que inventamos a roda, longe disso, mas a existência de um sarau regular, com um público constante, foi uma saída para os autores divulgarem sua produção e um estímulo para novos autores. O primeiro

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cara a sacar esse potencial foi o Tiago Rattes, que havia publicado A lápide do amor em 2007 e não tinha nenhum espaço para divulgá-lo. Depois apareceu o pessoal que fazia o Caderno encontrare – o Luiz Fernando Priamo, a Amanda Messias e o Zé Abreu – e as beatgirls que faziam o blog Geléia geral – a Laura Assis, a Larissa Andriolli e a Pamela Oliveira. Por fim, você e os meninos que fazem a revista Um conto, o Otávio Campos e o Danilo Lovisi. E nada se perdeu na efemeridade da voz, tem uma produção bibliográfica contando essa história.

Além disso, há outra coisa importante, alguns críticos tem resistência em aceitar, o Eco possibilita a formação de um público leitor de poesia na cidade. Se não 14

houvesse interesse do público, a gente nem estaria aqui conversando. Porém há um pensamento difundido, aceito com naturalidade, de que a poesia carece de leitor. Se eu estivesse vivendo em 1897, não contestaria, mas vivendo nos anos 2000 vejo muita inexatidão quando se discute o “leitor de poesia”.

Quando digo para alguns amigos que “o Eco tem formado leitores de poesia”, eles riem e dizem: “Anderson, as pessoas vão ao Eco para ouvir poemas”. Não aceito esse argumento, mas compreendo porque pensam assim, por isso digo que o Eco tem formado um público para a poesia, que compra os nossos livros. Se o livro


será lido ou abandonado em algum canto, não tem como saber, mas o livro já cumpriu o percurso básico para leitura, saiu da casa do autor para a casa do leitor.

⌖ Eu tinha certeza que naquele minidoc sobre o ECO – Performances Poéticas, feito pela Inhamis, você falava que o objetivo do evento era “tirar a poesia do gabinete”. Ao assistir o filme novamente percebi que essa fala não existe. Não ali, mas provavelmente isso foi pauta de alguma conversa entre nós. O evento mudou do extinto Espaço Mezcla – um bar que tinha teatro; frequentado por artistas, alunos e professores universitários; e, consequentemente, capaz de reunir certo número de gente graúda de Juiz de Fora – para o Museu de Arte Murilo Mendes (MAMM) – um lugar que reúne o espólio do poeta e concentra arte moderna; também elitizado. Falo sobre isso porque muitos outros não falam e não acho que esse assunto seja tabu. Principalmente para os integrantes do ECO – Performances Poéticas. Como não perder os instintos diante disso? O ECO – Performances Poéticas cumpre um papel dentro da poesia contemporânea (ou esse papel não precisa ser cumprido)?

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Resposta: Na verdade, essa frase está no mini-doc, na cena do mergulhão, e quando disse aquilo me referia à parte do Microfone Aberto como provocação a própria estrutura do evento, divido em duas partes, a primeira com convidados e a segunda aberta à participação do público. Ora isso criava uma divisão, uma ilusão entre “profissionais” e “amadores”, por isso, quando alguém se destacava no Microfone aberto, independente de ter um livro publicado ou não, a gente convidava para o palco principal. Quebrava essa coisa meio de seita, cheio de formalidades e convenções, essa coisa de gabinete.

As pessoas tomaram essa frase como um emblema contra a institucionalização da 16

poesia, seja lá o que isso seja. Quando o Mezcla fechou todo mundo se lamentou, porque não só perdíamos um espaço cultural, mas também porque ficávamos sem lugar para a prática do exercício de ser cool. Eu fui o principal articulador para o Eco ir para o MAMM. No início (estamos lá há dois anos), o público mais fiel me considerou um traidor, afinal não era eu que falava “tirar a poesia do gabinete” e agora vai para o Museu.

Eu vejo o MAMM como espaço público, quando o Eco foi para lá houve, evidente, um processo de institucionalização por osmose, nós não temos os mesmos horários que tínhamos no Mezcla. A estrutura do Museu tem nos servido para trazer poetas


de fora da cidade, alguns destacados prêmios Jabuti como o Paulo Henriques Britto, gente nova e promissora como a Alice Sant’Anna e a Marília Garcia, enfim. Dessa forma, estamos atuando no panorama da poesia contemporânea, dialogando com alguns de seus principais autores, sem recalque provicianista, não estamos nos lamentando porque a cidade não tem todos os recursos de outros centros.

⌖ Você se acha em débito (não sei bem se a palavra é essa) com alguém ou algum movimento ou seu trabalho foi construído de maneira independente? Resposta: Acho que, de certa forma, respondi essa pergunta no início. Me sinto em débito, ou melhor, sou grato ao André Capilé e ao Pedro Paiva, com a amizade deles ampliei bastante meus horizontes e também pude compartilhar minhas ideias. Eu tenho o meu estilo, e tudo que apreendo dos poetas que gosto de ler é para aprimorar esse estilo. Porém, realizo o meu trabalho em um ambiente de participação coletiva, gosto de trocar ideias e para isso é preciso conviver com pessoas que as tenha. Encontro isso hoje no núcleo relizador do Eco – você, a Laura e Otávio -, como havia encontrado antes no Tiago e no Priamo. Todas essas presenças estão impressas nos poemas de Trovadores elétricos, por isso o plural do título. Há um pensamento relativamente coeso entre nós e planos de ação comum,

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se estivéssemos nos anos de 1970, diríamos que somos parte de um movimento, mas sabe como é, estamos nos anos 2000 e tudo é possível, principalmente o impossível.

⌖ NOTAS DO EDITORIAL 1) O jornal PARABELO não foi financiado pela Funalfa, sendo publicado uma única vez com tiragem de 1250 exemplares. A publicação foi impressa na gráfica do DCE/UFJF e pago com investimento de André Capilé, que junto com a designer Tainá Novellino, montou todo o projeto gráfico do jornal. 18

2) Paulo Henriques Britto nunca ganhou o Prêmio Jabuti com poesia, mas com prosa, na categoria Contos e Crônicas (2o. lugar), com o livro Paraísos artificiais, em 2005; Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira, pela obra Macau, em 2004; o Prêmio Alceu Amoroso Lima, pela obra Macau, no mesmo ano; o Prêmio Alphonsus de Guimaraens na categoria Poesia, pela obra Trovar claro, em 1997 e o Prêmio Paulo Rónai na categoria Tradução de Autores Estrangeiros para o Português da obra A mecânica das águas, de E. L. Doctorow, em 1995.

⌖ Entrevista concedida a Anelise de Freitas em fevereiro de 2015 para a Casa Empiria.


O POEMA MUTAMORPHATRIZ RICARDO POZZO Íntima equestre escravagista, de perfil dadaísta, ao seu dispor para o que for lógica, desafeto & corrosão 19

abstrata figura mutamorphatriz, fronteira do abismo, espécie rara & beleza, plágio da Realeza, sem salvo conduto & eu, agrimensor do absoluto


II.MARÍLIA por Bruna Werneck A carimbagem começa. De sua mesa, Marília tenta se concentrar na leitura de Clarice que faz entre um cliente e outro. Os documentos não param de chegar, mas as marteladas – pois era isso, era quase isso – contra os papéis do lado oposto da sala são ininterruptas. O café ao lado do livro começa a esfriar e a leitura se perde por entre os socos certeiros na parte inferior direita de cada folha do novo contrato. O relógio cuco na prateleira recheada de livros (que nunca serão lidos) está para bater dezoito horas. Cada segundo uma martelada, cada martelada um chacoalhar de ideias. Tic-tac, clock-clock, cuco-cuco. A chaleira chia ao longe no fogão de quatro bocas. Com os pés entre os chinelos, Marília já pode respirar: é casa, é quase isso. A máquina de escrever repousa por entre a poeira da escrivaninha à espera da moça. São muitas cartas pra responder, são muitas, muitíssimas. O processo começa: a água quente dissolve o sachê de alecrim enquanto Marília se posiciona dentro da cadeira velha de metal. É preciso escrever, é preciso aproveitar o alecrim, é preciso não se lembrar das marteladas. As marteladas, os socos, os livros que nunca serão lidos. Após uma noite de dedos ágeis, Marília acorda pela manhã-madrugada, pouco antes das 5 horas, e se encaminha para a caixa de correio de rua mais

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próxima. Pela larga avenida, Marília caminha com pisadas leves. Entretanto, ao se aproximar da caixa na esquina da Mourão com a Renê, Marília ouve umas pisadas de leve atrás dela. Tenta, ao se jogar contra a parede no passeio, se livrar do possível seguidor. Em vão, esquiva-se, e o máximo que consegue é o braço direito ralado na parede de chapisco. Novamente a chaleira chia ao longe no fogão de quatro bocas. O chá de alecrim está pronto, Marília está a postos, mas a única que não se encontra na posição esperada é ela, querida máquina, que sutilmente possui um “R” agarrado entre a fita vermelha e preta. Não sai, não vai sair. As marteladas começam novamente e Marília entorna o chá fervendo em cima do colo. As marteladas, os 21

socos, os carimbos que marcam os livros que nunca serão lidos. As cartas vão se acumulando no decorrer dos dias. Marília se lembra de Clarice: “o melhor ainda não foi escrito; o melhor está nas entrelinhas”. É preciso esmagar os carimbos martelados. É preciso, então, terminar o chá de alecrim e amassar mais uma folha desperdiçada com os RRRRRRRR borrados, meio vermelho, meio preto. Os vinis não ajudam, o chá esfria na caneca, as marteladas continuam. Os carimbos também. A carimbagem recomeça. De sua mesa, Marília tenta se concentrar na leitura de Clarice que faz entre um cliente e outro. Os documentos não param de chegar, mas Marília ignora todas as possibilidades de Clarice para aquele dia e sai


mais cedo. O cansaço não a deixa pensar, as marteladas não a deixam escrever, os carimbos, o relógio cuco, os livros. Pois era isso, era quase isso. Com a máquina do R agarrado nas mãos, Marília tenta equilibrar a bengala de um lado e a sacola do outro. Não há tempo, não há fitas suficientes. Ao atravessar a rua, Marília ouve calmamente o ponteiro bater dezoito horas daquela tarde no relógio de rua. Cada segundo uma martelada, cada martelada uma carta a menos. Ao abrir a porta da loja de manutenção, Marília percorre os dedos pela folha amassada agarrada na máquina: “Querida Marília, por que demora tanto a se responder?”. Assim que a porta se abre, deixo Marília lá dentro sabendo que fiz o melhor pra ela. 22

©Ricardo Pozzo


QUARUP com Claudio Luiz da Silva

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© Acervo pessoal O livreiro Claudio Luiz da Silva é uma pessoa ímpar. Sempre com um sorriso no rosto e um livro entre as mãos. Conhece seus amigos (nem ousamos chamá-los de clientes) como os milhares de livros que se espalham pela casa com pouco mais de cinco cômodos, no bairro São Mateus. Desde 1993 é dono da Quarup, uma livraria antiquária em Juiz de Fora. Durante a semana ele disponibiliza seus livros também na Faculdade de Letras da UFJF e nos finais de semana abre a livraria para os mais variados encontros entre os artistas da cidade. Em seu ritual entre os livros, nosso demiurgo busca trazer alguns mortos à vida.


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GARIBALDIS & SACIS ©Ricardo Pozzo


NO MUNDO com Danilo Lovisi

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OUTRO POEMA SEM TÍTULO CLARA DE GÓES Não sabes que te esqueço a cada dia um pouquinho. Troquei a fechadura da casa e do peito. Tranquei tudo lá dentro. A casa emudeceu. Os fantasmas se foram em silêncio e sem alarde. Arrefeceram-me o desespero e o cansaço dos primeiros dias (ou teriam sido noites?) Lancei-me à canção desesperada nos braços de Neruda. A cordilheira mudou-se para minha cama. Neves eternas me fizeram branca. Assim vou me perdendo a cada dia como um velho elefante esquecido de morrer.

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A COISA ESTRANHA RODA RODRIGO ROCHA Cavaco lasso não distorce ou crime feito na lâmpada um toque ocluso de dedos livres oferenda furos. Rezas capela vão bailarinas tigre (as velas rótulo guardam dispensas) menor tal blues em tom agreste afina. - calçada o lodo manos sacam unhas Aos surdos abrem as palmadas broncas estrondo ao pelo estirado tenro bate retumba do pagode o centro. Sem distorção cavaco é luto peso esfria feito qualquer qual descaso (não queimaduras de palhoças secas ou simulacros de farmácias quintas)

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MEU MULADO INZONEIRO com Patrícia Lino

Pediram-me um ensaio.

Há três possíveis contextos que circundam o pedido de um ensaio: 1. escrever um ensaio sobre o que quiseres; 2. escrever um ensaio sobre um tema específico – como, por exemplo, quantos centímetros mediam as pontas dos cabelos de Napoleão quando invadiu a Prússia ou, como neste caso, 3. escrever um ensaio sobre um tema que nada tem de específico.

Reformulo: pediram-me um ensaio e disseram-me exatamente assim: 3.1. escrever um ensaio sobre literatura e/ou cultura brasileiras.

Não há como contar as possibilidades dos contextos que circundam o início de um ensaio. O início de um ensaio deve ser como o fim de um ensaio: infinito. Caso não comece nem termine infinito, o ensaio nunca existiu. Começar e terminar

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infinitamente significa “uma alteração considerável da nossa percepção geral das coisas”. O mesmo que dizer que, caso a nossa percepção das coisas não mude, o ensaio também nunca existiu. Para que a nossa percepção das coisas mude, há que ter percepção da nossa percepção das coisas até ao momento do ensaio.

Eu nunca fui ao Brasil. Nunca fui ao país de João Cabral de Melo Neto e, no entanto, li tudo o que ele escreveu. Nunca me sentei na Lapa para comer um biscoito Globo e, no entanto, recebi de presente a embalagem dos biscoitos Globo; porque nenhuma viagem Brasil/Portugal conservará biscoito algum – nem mesmo os biscoitos Globo. Também acredito não fazer ideia de quantas cores tem o Ver-oPeso e, no entanto, fiz um amigo que nada no rio Guamá.

Eu não conheço o Brasil e, no entanto, conheço o Brasil. E o início do ensaio é este: eu, num primeiro momento, ter pensado que podia escrever sobre alguns aspetos da poesia de Murilo Mendes, recuperar, durante alguns minutos, QorpoSanto ou até mesmo enquadrar Angélica Freitas no contexto da poesia brasileira e, num segundo momento, ter percebido que, depois de muitos possíveis contextos que circundaram vários pedidos de ensaio, o contexto era este: eu nunca pisei nem nunca estive perto de pisar chão brasileiro. Nem nada que se pareça. E isto soará o

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mais trágico possível até que eu lhes conte a parte mais trágica da história; que é não haver parte trágica nenhuma. Enquanto não deito a cabeça no colo do Drummond em Copacabana, porque todo o turista tem direito a fazê-lo, nem como Sururu em Alagoas, há para mim todos os livros que ainda não li. E os que nunca lerei.

Descobri o Brasil aos quinze anos. Não descobri o Brasil aos cinco ou seis. Esse era o Brasil das telenovelas que se veem no sofá. Descobri o Brasil com idade suficiente para apaixonar-me. Então aí namorei vários moços e várias moças: Paulo, Ana C., Glauber, Manuel, Mário, Cecília, Nelson, Elis, Plínio, etc.. No mesmo sofá. Logo depois escolhi uma profissão que me permitisse ficar olhando para tod@s el@s e para outros como el@s. Num sofá.

Hoje tenho várias relações sérias. Casei-me várias vezes. Espero casar-me outras tantas. Continuo sem ir ao Brasil.

Ponhamos, então, tudo isto assim: há estimativamente 202768562 habitantes no Brasil, o que implica 202768562 Brasis, porque, no interior da cabeça, nenhum d@s

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202768562 habitantes verá o Brasil do mesmo modo. Se eu subtrair 202768562 a 7289165037 – quer dizer, mais ou menos, todos nós no mundo –, fico com 7086396475. Por outras palavras, mais 7086396475 visões diferentes do Brasil? O que é quase tão desleixado como ler a “Canção do Exílio” e dizer: “aqui está um poema bastante representativo do Brasil”. (Entre não exigir consideravelmente de um poema e cair no erro de acreditar que um poeta é bom porque é mais mito que poeta, a solução revela-se simples: não leias.

Mais do que isso, lê e lê muito, tudo o que possas, o mau, o bom, sem nunca esquecer tudo o que leste. “la?/ ah!/ … sabiá/ …papá/ …maná/ … sofá/ … sinhá// cá?/ bah!”1).

Continuando: é possível ler e escrever sobre o Brasil que nunca se viu, tendo-se visto o Brasil sobre o qual outros leram e escreveram. Por exemplo: nunca vi uma capivara, mas Manoel de Barros ensinou-me a palavra “capivara” – o que é, aqui entre nós, completamente diferente. Depois de ter aprendido sobre capivaras e, em verdade, de tudo um pouco sobre o Pantanal, continuo sem tê-los visitado. No entanto, de palavras se faz um poema e o poema fica entre mim e a capivara. À 1

José Paulo Paes, “Canção do Exílio Facilitada”, Meia Palavra, 1973.

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imagem da capivara ou à definição da capivara, posso encontrá-las em poucos segundos no Google, estão à distância de um click: “A capivara (nome científico: Hydrochoerus hydrochaeris), também chamada de carpincho, capincho, beque, trombudo, caixa, cachapu, porco-capivara, cunum e cubu, é uma espécie de mamífero roedor da família Caviidae e subfamília Hydrochoerinae”. Sei que a imagem bem como a definição crescerão assim que vir uma capivara. Mas nem o Google nem a capivara ela mesma me poderão dar aquilo que o poema me deu. E isto acontecerá com capivaras e o resto. Quero dizer: com tudo o que, ao contrário da capivara, tive o privilégio e ver e tocar até hoje. E o que o poema me deu foi o modo ver ou tocar. Às vezes, enciclopédico. Outras vezes, primigênio (ou a ideia de 32

que se é estupidamente primigênio). Tem dias em que patético (pois não há como andar em busca de Dlendlena, de um volpinveste, da Via Táctea sem parecer zureta). E, ao mesmo tempo, a incerteza de ser enciclopédica, primigênia ou patética; sabendo que o poema permanece intocável, imaginando que o poema é a única coisa intocável no mundo, reconhecendo que o mundo é efetivamente grande, engolindo a custo o café que entretanto arrefeceu, rindo só por quem rira bien qui rira le dernier.


Nunca entrei numa Escola de Samba. O meu pai não me levou a ver o Maracanã quando eu tinha seis anos. Nunca meditei perto do Tietê (sequer molhei lá os pezinhos). Nunca entrei numa favela, nem num terreiro, nem num boteco. Não bebi cerveja às 3 da tarde em Santa Teresa, não sei como é Santa Teresa, nem como corre o rio Iguaçu. Não tenho nacionalidade, nem visto, nem razão suficientemente prática para ter um visto. Talvez se lhes disser que quero saber como cheira o Rio de Janeiro, que hei de escrever muitos poemas sobre a Bahia, talvez se eu pedir alguém em casamento, talvez alguém me peça em casamento; talvez faça uma petição, cometa uma ilegalidade, cante efusivamente Noel num aeroporto, pontapeie a pedra no meio caminho, talvez me zangue de vez e nade da California 33

até à costa do Sauípe, talvez não faça coisa nenhuma. Talvez eu só espere, meu mulato inzoneiro.

Conceição do Ibitipoca – Brasil | 2013 | ©Isabela D’Ávila


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ŠRicardo Pozzo


A CORRESPONDENTE Prisca Agustoni traduz Fabiano Alborghetti Fragmento de Gli amanti di Valdaro

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Nota: Em fevereiro de 2007 foram achados dois esqueletos, provavelmente de um homem e de uma mulher, abraçados desde faz 6.000 anos, em Valdaro, numa região industrial perto de Mantova (Itália), durante algumas escavações. De acordo com os arqueólogos, se trataria de um casal de jovens, mortos durante o período neolítico. Os dois corpos foram sepultados um frente ao outro, cara a cara; os ossos dos braços e das pernas se sobrepõem num abraço. A postura fez com que esse casal ganhasse o nome de os amantes de Valdaro. Em outubro do mesmo ano na província turca de Diyarbakir, foram trazidos à luz os apaixonados mais antigos do mundo: os esqueletos de um homem de uns 30 anos e de uma mulher de 20 anos, abraçados há mais de 8 mil anos. Este achado supera o recorde temporal estabelecido pelos amantes de Valdaro. Mas não fez história.


UNO Li han trovati un po’ per caso dove meno te lo aspetti nello scavo per un porto, dentro un’area industriale

coi tralicci in lontananza, i container del cantiere e l’odore che dal fiume sparge un dolce un po’ marcito a mischiare con la terra, con le grida 36

di sorpresa mentre fermano le ruspe e s’inizia (lentamente) a scavare d’attenzione:

indossate dalla terra quelle ossa e la postura. E quel gesto d’improvviso riempie il niente.

Poi è il silenzio che s’impone, non volendo disturbare…


UM Encontraram-nos algo por acaso onde menos esperas na escavação para um porto, numa área industrial

com as grades ao longe, o container da obra e o cheiro que do rio exala um doce meio apodrecido misturando-se com a terra, com os gritos 37

de repente enquanto param as escavadoras e inicia-se (lentamente) a cavar com atenção:

vestidos de terra aqueles ossos e a postura. E aquele gesto súbito preenche o nada.

Logo se impõe o silêncio, não desejando incomodar...


SEI Ora è cosa da giornali e rimbalza la notizia mentre al luogo arriva fama mentre arrivano altri esperti

e ognuno intervistato dice almeno un suo qualcosa. Poi appare un certo dubbio che opacizza la leggenda. Viene detto alla tivĂš: 38

non è certo siano coppia non in modo consueto. E se fossero due maschi ipotizza un professore

e in paese fan scongiuri giĂ vedendo la vergogna che il nome del paese sia un richiamo

per finocchi.


SEIS Agora é coisa dos jornais e quica a notícia enquanto a fama chega ao lugar enquanto chegam outros experts

e cada entrevistado diz pelo menos algo seu. Logo surge certa dúvida que embaça a lenda. É dito na TV: 39

nada certo que seja um casal não da forma habitual. E se fossem dois homens especula um professor

e no povoado esconjuram já enxergando a vergonha que o nome do lugar vire um chamado

para veados.


DE SAÍDA INVIVIDOS ROBERTO CORRÊA DOS SANTOS Vinha o homem pela calçada esquerda da rua. Os outros são vocábulos. Deu um pulo ao pensar isso. Os outros são sombras de ideias. Miragens delírios visões. Os outros. Como fantasmas sopráveis. Saúde em arte haverá. Disse vinte e uma vezes. Haverá.

Alguém o viu-falando só. E dobrou à direita. 40

Frases repletas de seiva e pele. Disse. Ah. Estou bem no peito das fantasmagorias. Em desapego. Disse.

Na esquizoletria não cabem anestésicos. Bem menos hipnóticos. A coisa é clara. Para mexer nesses domínios não se deve comparar. Que se resista à consoladora atitude. E que se constatem as virtudes da culpa. Sentiu de súbito sua crueldade livre. Sua agudeza gélida. Ah. Sua adaga preciosa. O medo. Pensou dirigindo-se para o fora com os passos velozes do alucinatório.


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ŠRicardo Pozzo


QUEM ESTÁ PRISCA AGUSTONI nasceu em Lugano (Suíça italiana) em 1975, e viveu vários anos em Genebra. Mora no Brasil, em Juiz de Fora, desde 2002. Transita entre vários idiomas, traduzindo textos literários e produzindo seus próprios textos em italiano, português e francês. Publicou livros na Suíça, em Portugal, na Itália e no Brasil. Sua mais recente publicação é Poesia scelta (2000-2012), editada em Bolonha (Itália) pela Editora Ladolfi.

ROBERTO CORRÊA DOS SANTOS é doutor em Semiologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós- doutor pelo Núcleo de Estudos da Subjetividade Contemporânea Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é professor adjunto de Estética e de Teoria da Arte, no Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

DANILO LOVISI nasceu em Juiz de Fora (MG), em 1991. Atualmente vive na França onde termina sua graduação em Letras & Artes pela Université ParisDiderot - Paris 7. Coedita a revista literária Um Conto desde meados de 2011. "Tenho dificuldade em perceber que existo" é o título do seu primeiro conjunto de poemas publicado pela Edições Macondo no final de 2014. Tem sido atravessado por novas formas de expressão poética, sobretudo em vídeo e fotografia.

RODRIGO ROCHA é aluno do curso de Filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora e do Conservatório Estadual de Música Haidèe França Americano. Atualmente trabalha na conclusão de seu primeiro livro de poemas.

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BRUNA WERNECK tem 21 anos e é natural de Leopoldina (MG). Atualmente cursa a Faculdade de Letras na Universidade Federal de Juiz de Fora. Professora de Inglês, diz que proseia e verseja de forma amadora. Às vezes, negocia. Outras, notifica. Uma mistura letárgica de muitas personalidades letais.

CLARA DE GÓES é psicanalista e professora de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nascida em Natal (RN) escreve poesia desde 1986, tendo estreado em 1989, quando lançou o livro As aranhas. Desde então lançou diversos livros de poesia, teóricas e teatrais. O poema dessa edição faz parte de sua última publicação, O livro de Antonia, lançado pela editora Organigrama Livros. 43

PATRÍCIA LINO nasceu no Porto, em 1990 e é Professora assistente na University of California, Santa Barbara, estudante de Doutoramento no Department of Spanish and Portuguese da mesma instituição e poeta. É licenciada em Clássicas e Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes — Literaturas de Expressão Portuguesa, com uma tese intitulada 'e então é verdade: então a vida não passa disto. Manoel de Barros e o Círculo dos três movimentos com destino ao HomemÁrvore' (2013) pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tem ensaios, poemas e artigos publicados em Portugal, no Brasil e em Espanha.

RICARDO POZZO é poeta, tradutor, fotógrafo, músico. Nasceu em Buenos Aires, mas radicou-se no Brasil; vive em Curitiba (PR). O poema publicado nessa edição integra seu primeiro livro, Alvéolos de Petit Pavê, publicado em 2015 pela Editora


Patuá. É um dos organizadores do Vox Urbe, projeto literário do WNK Bar e editor assistente do Jornal RelevO. CLAUDIO LUIZ DA SILVA é proprietário da Quarup - Livraria Antiquária e grande impulsionador dos projetos literários da cidade.

ISABELA D’ÁVILA nasceu em 1975 na cidade do Rio de Janeiro. Atualmente vive em Juiz de Fora e é fotógrafa parceira da Casa Empiria.

ANDERSON PIRES DA SILVA é professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Juiz de Fora e um dos produtores do ECO – Performances Poéticas. Publicou seu primeiro livro, Trovadores Elétricos, pela Aquela Editora em 2013. O poema dessa edição é parte da plaquette Selvagem, a ser publicada pela Edições Macondo.

FABIANO ALBORGHETTI nasceu em 1970 na Itália e vive na Suíça italiana. É poeta, crítico literário, editor da revista italiana de poesia ATELIER na sua faceta online (www.atelierpoesia.it) e promotor cultural. Publicou inúmeras coletâneas e poemas, a mais recente sendo L’opposta riva (dieci anni dopo), publicada pela editora La Vita Felice de Milão em 2013. Tem inúmeros poemas e coletâneas traduzidas em várias línguas, em particular em inglês e francês. No Brasil Alborghetti já foi publicado em 2010, sempre em tradução de Prisca Agustoni, na revista de literatura CELUZLOSE n. 5, de São Paulo.

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QUEM SÃO PRODUÇÃO EDITORIAL Casa Empiria CURADORIA Anelise Freitas REVISÃO Otávio Campos CONSELHO CONSULTIVO Anderson Pires da Silva (UFJF / Brasil) André Capilé (PUC Rio / Brasil) Danilo Lovisi (Université Paris Diderot - Paris 7 / França) Laura Assis (PUC Rio / Brasil) Otávio Campos (UFJF / Brasil) Pedro Craveiro (Faculdade de Letras da Universidade do Porto / Portugal) O SÊLO ⌖ Macondo.

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O GARIBALDI é uma parceria entre a Casa Empiria e as Edições

Casa

Empiria

Editorial facebook.com/casaempiria casaempiria.wordpress.com edicoesmacondo.wordpress.com


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