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n A viagem no infinito é perder-se no Terminal B e correr como quem ainda não descobriu quem é. A viagem é uma viagem; boa, passageira, transgressora. A língua é o que toca. Enquanto você dança, a gente comemora. A Garibaldinha comemorou seu primeiro aniversário ao som de muitos poemas, de muitas mulheres, de muitos Brasis. O fim é sempre uma possibilidade. A vida é uma briga. Somos livres como o vento. Começamos sempre, ão somos Orpheu, nem ensinamos partido na escola. A poesia é a nossa artilharia, o Brasil vive um Golpe, o Golpe de 2016. Não reconhecemos governo golpista, nem poeta golpista. Editando como quem domina o tempo entre o cano quente de uma arma em uma das mãos e a derrota na outra. Não venha dizer que você sabe o que fazer a partir: de: agora.
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Fora Golpe! Viva OGaribaldi! Juiz de Fora Temer, dezembro de 2016
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MANIFESTO
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SUMÁRIO
CARTA DO VELHO EDITOR AO COLEGA NO SÉC. XXI 09 JARDINS 10 O FILME ENTRE A ESCRITURA E A MEMÓRIA 11 A CORRESPONDENTE 14 O POETA VAI AO AÇOUGUE 15 UM POEMA DE 16 A PESQUISA EM ESTUDOS LITERÁRIOS E A LEGITIMIDADE DO PODER 17 DOIS POEMAS DE 25 DE SAÍDA 26 QUEM ESTÁ 29 QUEM SÃO 31
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CARTA DO VELHO EDITOR AO COLEGA NO SÉC. XXI ANA ELISA RIBEIRO
prepara-te, caro, é muita poeta pra esconder sob o tapete; melhor ouvi-las, numa boa, que o tapete delas voa.
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JARDINS LUCAS VIRIATO
I a embromação das bromélias cintila. senti-la é coisa de inseto. exceto quando estamos juntos, no junco... fujo, urge algo em mim, um unguento! sim, por fim o estorvo, o retorno às bromélias, a eterna embromação das bromélias que cintila.
II o delírio dos lírios: lançar folhas como lanças verdes que vertem laterais, perfilam o tempoespaço fincando o compasso da ferida de onde se levanta seu propósito (uma leucócita flor branca
III não fosse o querer tudo ao mesmo tempo das abelhas que voam de flor em flor talvez não houvesse a primavera
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O FILME ENTRE A ESCRITURA E A MEMÓRIA OTÁVIO CAMPOS LÊ “MARIA CÉLIA”, DE FERNANDA VIVACQUA
Eu precisava de um plano para o início de um filme. O primeiro plano de um filme, principalmente, é um dos momentos mais importantes. É a primeira vez que o espectador vai ter contato com aquele microuniverso audiovisual. Como explorar ao máximo essa descoberta? O primeiro plano de O último Tango em Paris por muito tempo foi o meu preferido: Marlon Brando cobre os ouvidos em meio aos ruídos insuportáveis de um trem que passa acima. Para esse filme de agora eu buscava alguma coisa mais ou menos assim: forte, ruidosa e frágil. Quando li pela primeira vez o poema sem título, dedicado à Babalu, de Fernanda Vivacqua (publicado na OGaribaldi #05), me dei conta de que seria aquela imagem que eu deveria usar: a mulher suspensa sobre a ponte, a mulher que grita. Marlon Brando também grita no início do filme, mas ele está embaixo do tráfego, que corre ponte acima dele. A mulher do poema, talvez a mulher do filme, está em cima da ponte Rio-Niterói, presa no engarrafamento: é ela o trem que explode.
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Muitas mulheres atravessam o livro de estreia de Fernanda Vivacqua, Maria Célia, a ser lançado pelas Edições Macondo. Não é surpresa que mais uma voz feminina surja nesse cenário já marcado por nomes como Anelise Freitas, Laura Assis e Prisca Agustoni, muito menos que este trabalho, apesar do caráter de estreia, traga a consistência de um projeto poético que parece ter sido construído com muito cuidado. Fernanda Vivacqua já frequenta os saraus da cidade há algum tempo e possui aquela rara capacidade de hipnose com a voz que é tão importante para os poetas cantores que sobrevivem os séculos. Já era a hora de conhecermos, portanto, as partituras. Uma entre as várias, a personagem que dá título ao livro pode ser o retrato da avó como a memória soube carregar, ou um reflexo dessa mesma avó que ainda vive, estático, no espelho. Os círculos que se traçam em torno da imagem a ser trabalhada chegam no poema pelas repetições do nome, da avó, do nome avó, que pouco importa se é a minha, a sua ou a da poeta, mas deve retornar entre um verso e outro para que viva: “ainda assim / eu preciso falar sobre minha / avó / que carregava no nome / a inflexão do ar poluído”. O que importa mesmo, no poema ou neste livro, é como o nome fica marcado na memória e no espelho: neste último, de batom, que tendo a acreditar que é vermelho: “quando preciso falar sobre a / minha avó e seu nome / escrevo no espelho de batom / para não me esquecer / Maria Célia”. A memória, sobretudo a do corpo, é o que liga os poemas desse livro. Entre o que aconteceu e o que fica escrito existe o filme. Em Maria Célia Fernanda Vivacqua tende a escrever a memória como quem manipula um filme fotográfico. Regula-se o tempo de exposição da película, mas o desenho é feito de outros elementos que não apenas a luz: a grafia é cravada pelo cheiro das frutas, pelos pés que sangram debaixo da mesa, pela panela de pressão que cozinha a história e o feijão. A fotografia que tira da mãe, de longe, respeitando as regras, aparece como um dos
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momentos mais altos da peça: “e a fotografia era: cores vibrantes filme de doze fotos / ‘garota, não gasta filme à toa’ / e foi assim que eu aprendi o cheiro das fotografias”. Para que a fotografia aconteça deve-se expor o negativo à luz e depois o mesmo negativo deve ser mantido no escuro para que, com a química, aconteça a revelação. O ato de revelar carrega consigo a existência do segredo, o que deve ser revelado. As mulheres em Maria Célia, estendidas em madeirites ou pisando com cuidado em tesouras abertas, carregam juntas esse segredo, triste como um samba ritmado, que procuram aos poucos dar voz ou sinal nesse livro de estreia. Antes da revelação, os negativos ficam guardados por quanto tempo quanto queira o fotógrafo, ou quem mais tarde os pegue para exposição. Talvez por isso os poemas em Maria Célia busquem tanto aquele outro tempo, tempo de quintal, tempo de barranco: o tempo que expõe às fotografias. Presa no quadro a imagem parece reter toda a violência do indomável. Não é a memória, é uma fotografia. Isto, antes de tudo, é um livro, não é a memória. Maria Célia é um acerto porque não se propõe a ser um álbum de memórias, mas se impõe como uma coleção de presenças. Cabe à estética pensar melhor a recepção e a nós leitores encontrar o livro não como uma seleta de retratos da autora. A memória é o que vem depois do poema e este é apenas o primeiro plano do filme.
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A CORRESPONDENTE ANELISE FREITAS TRADUZ ALFONSINA BRIÓN
Yolanda y Nicolás. Profes de Música y Educación Física. Yolanda se acomoda a cada ratito la alianza. Se casaron la semana pasada. Viven en Bella Vista. Tiene lindo patio, dicen. Se ven felices. Llueve mucho. Me dejan cerca de casa.
14 Yolanda e Nicolas Professores de Música e educação Física. Yolanda arruma a aliança a cada minuto. Se casaram na semana passada. Vivem em Bela Vista Têm lindo quintal, dizem. Parecem felizes. Chove muito. Me deixam perto de casa.
O POETA VAI AO AÇOUGUE DANIEL PAIVA VASCONCELOS
o poeta tem muitos livros publicados o poeta faz parte da academia o poeta é reconhecido mundialmente o poeta já ganhou vários prêmios o poeta atravessa a rua o poeta entra no açougue lotado o poeta espera na fila o poeta faz seu pedido o poeta pega o dinheiro o poeta recebe o troco o poeta leva a carne
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UM POEMA DE DAVID VASCONCELOS
Lá fora o roldão desordenado dormia cedo, ainda era cedo para os gandaieiros rugirem com suas bocas saturadas de frases abstratas De nos absorver a alma e até o vácuo; de nos abocanhar e escarrar (nem ao menos no prato); de nos estorvar com as convicções de tuas teses de nos seguir até em casa; de nos arrancar a pele morta como um camiranga. Cedo demais! Será que não existi nada para nos acudir? Além de nosso pileque e Jazz sem locuções? Sempre é cedo demais! São poetas invisíveis, os porta-vozes de um novo mundo? Oh! Galhofá-los assim é pecado; por fim, somos todos parte do que vem depois.
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A PESQUISA EM ESTUDOS LITERÁRIOS 1 E A LEGITIMIDADE DO PODER ANA PAULA EL-JAICK
17 Sim, como Fabrícia entoou Caetano, eu também canto: “Me deixa gozar”. “Me larga, não enche.” Me deixa ensaiar: este ensaio para pensar um discurso fora do poder. Ensaiar uma pesquisa (e um ensino) fora de exigências tecnocratas. Me deixa ensaiar um discurso que deixe em suspenso o poder do próprio discurso – os poderes do discurso. “Qual é o seu super poder?”, meu sobrinho me pergunta. José me fez lembrar das camisetas que saltam nas propagandas em pop-ups quando abro o facebook: “Eu sou uma professora. Qual é o seu super poder?”. José, eu sou uma professora. Roland Barthes, eu sou uma professora. De Letras. O meu super poder é, então, usar o discurso, Barthes? Você já disse sobre a linguagem, sobre a língua, em sua Aula inaugural no Collège de France: 1 Texto apresentado na abertura da VI Jornada Literária da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) - 2016.
“Esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda a eternidade humana, é: a linguagem – ou, para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua.” Eu sou uma professora, Maurizio Gnerre. De Letras. Você já disse, em seu livro Linguagem e poder, que há três ilusões linguísticas comuns no que se refere à linguagem, à língua: uma ilusão é supor que a língua é um sistema imutável, estável; uma segunda ilusão é supor que a fala é o lugar de deformação da língua; e uma terceira ilusão é supor que a língua é destituída de ideologia. Então, um ensaio que quer ter seu discurso destituído de poder é um ensaio já condenado ao fracasso? A “Escola sem partido” é um projeto já condenado ao fracasso? Porque “não pode haver liberdade senão fora da linguagem”? Mas lá fora falta o ar, Barthes. Lá fora o signo não respira, Wittgenstein. Então, me deixa ensaiar este ensaio para, bartheanamente, “trapacear com a língua, trapacear a língua”. Barthes chama sua trapaça de literatura – a prática de escrever (dois pontos): texto. “Dois pontos” porque ele chama, indiferentemente, sua trapaça de “literatura, escritura ou texto”. E a disciplina literária é aquela que, para Barthes, deve ser salva do cataclismo: se alguma barbárie dizimar todas as disciplinas curriculares, que se salve a literatura, “pois todas as ciências estão presentes no monumento literário”. Então, Barthes, me deixa gozar: que eu (re)conheça, sem remorso, sem recalque, o gozo de ter a minha disposição duas instâncias de linguagem, me deixa falar isto ou aquilo segundo minhas perversões, não segundo a Lei (BARTHES, Aula, p.24). Me deixa cantar, me deixa ensaiar alguma resposta à pergunta: então, um ensaio que quer ter seu discurso destituído de poder é um ensaio já condenado ao fracasso? Ensaio de resposta que ensaio na frente do espelho: não para a trapaça da literatura, porque a literatura é um saber que não fetichiza. Quer dizer, Barthes chama de “trapaça”; eu prefiro drible – o drible da literatura. Da escritura. Barthes escreve: “'Mudar a língua', expressão mallarmeana, é concomitante com 'Mudar o mundo', expressão marxiana” (BARTHES, Aula, p.23). Então,
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me deixa ensaiar: este ensaio para pensar uma prática de escrita anárquica – um jogo de linguagem, Barthes. Um jogo de linguagem wittgensteiniano; como ele, imaginar a multiplicidade de jogos de linguagem: relatar um acontecimento – conjeturar sobre o acontecimento – inventar uma história; ler. Me deixa ensaiar um jogo de linguagem estrondoso, Saussure: “Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, diríamos que é o ponto de vista que cria o objeto” (SAUSSURE, Curso de linguística geral, p.15). Então, me deixa criar, Saussure. Me deixa gozar. Me deixa ensaiar uma pesquisa fora das exigências tecnocratas, pois hoje começa a VI Jornada Literária da UFJF. Hoje vim aqui substituir aquela que, antes de ser uma colega de trabalho, é uma grande amiga: Silvina [Carrizo]. Uma amiga que admiro muito – por sua força militante, por seu pensamento acadêmico, por seu compromisso intelectual. Logo, só posso ser grata por ela me deixar ser sua amiga. Se vim substituir a Silvina nesta mesa de abertura da VI Jornada Literária da UFJF, achei por bem escrever para ela. Escrevei: “Tudo bom?”. Escrevi (mais ou menos assim): estava pensando no que eu ia dizer (aqui, hoje, na) abertura da Jornada Literária, e então pensei em escrever para você, Silvina, para perguntar o que você tinha pensado sobre a sua fala, o que você, Silvina, acha importante eu dizer lá (aqui). Interrogação. Reticências, na verdade; mas, agora (dois pontos): interrogação. Enfim, eu havia encontrado rapidamente o Alexandre [Faria] nos corredores da UF[JF] e ele tinha me adiantado como seria a ordem da mesa, a ordem do discurso, e combinamos de nos falar na véspera, mas, então, eu tive uma inquietação, Silvina, então me veio uma “preocupação” (entre aspas), uma “preocupação” de “apagar” (também entre aspas) alguma coisa que você, Silvina, alguma coisa que você falaria se estivesse aqui. Perguntei a ela; eu queria ouvi-la – você, Silvina. Terminei a mensagem com “Um beijo”. Silvina me envia um áudio (em que ela diz mais ou menos assim): “Eu, na verdade, tinha pensado em
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fazer uma fala mais.. uma biografia intelectual, sabe? Porque eu queria falar como tinha se dado o processo eu ter chegado a ser feliz com o Lula. E depois eu ia falar da modernização que operou o governo Lula e o primeiro governo Dilma, no âmbito da educação e da pós. Sobretudo na pós. […] Então, eu queria mostrar os níveis diferentes de modernização não para pensar no negativo de hoje; senão [para pensar n]o positivo recentemente conquistado desses últimos dez anos que vem à tona. Então, é um pouco por aí que eu ia falar. Não ia fazer um texto literário, mas, sim, ia fazer essa biografia intelectual, um pouco contando, a partir da minha própria vida, como vi as coisas acontecerem. […] Mas bom, um pouquinho por aí […] Eu penso na minha humilde condição que você poderia ver os impactos nos Programas de Pós-Graduação da nossa área juntamente com a política de destruição das Ciências Humanas que vem acontecendo no mundo e que a MP estimula, e aí vai com a lei da mordaça. […] Por exemplo, ver essa questão das formações discursivas a partir de Foucault pode ajudar na compreensão do mundo distópico, conservador que está se instalando não apenas no Brasil, mas no mundo.” Silvina me manda um “Beijinho.” Respondo que eu queria ouvir essa biografia intelectual dela. Digo à Silvina que vai ser difícil substituí-la (escrevo: “Que encrenca fui me meter!”) e que vou tentar fazer um texto mais “alegre” do que “triste”. Porque “É melhor ser alegre que ser triste / Alegria é a melhor coisa que existe”. Então, me deixa gozar. Me deixa ensaiar: este ensaio para pensar um discurso fora da legitimidade do poder da Academia – (paradoxalmente) dentro da Academia. Como nos lembra Foucault, “por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; e visto que – isto a história não cessa de nos ensinar – o
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discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar.” (FOUCAULT, A ordem do discurso, p.10). Meu desejo era que Silvina estivesse aqui, agora, se apoderasse do discurso e contasse sua biografia intelectual, porque... Eu percebo tudo depois, sabe, Silvina? Sabe depois? Porque, antes do depois, eu naturalizo – eu percebo as coisas como se tudo fosse muito necessário, como se tudo fosse muito natural. Por exemplo: me graduei em uma Universidade Pública. Antes do depois, eu achava natural paredes descascadas, achava preciso o abandono, achava inato o desrespeito. Fiz minha graduação em Letras na UFF [Universidade Federal Fluminense] e achava normal que os prédios do campus do Gragoatá, onde fica a Faculdade de Letras da UFF, começassem pela letra B. Eu simplesmente não me perguntava pelo A. Eu tinha aula nos prédios B e C, onde funciona a Faculdade de Letras da UFF. E eu achava que era assim, normal, quem sabe houvesse alguma superstição que eu desconhecia sobre prédios que fossem A. Todos os dias eu pegava o ônibus 47 e ia para o Gragoatá, fazer Letras na UFF, achando normal, natural, que o corpo docente fosse composto por muitos (mas muitos) professores substitutos. Antes do depois, Silvina, eu naturalizo. O cúmulo da naturalidade. Como se fosse algo inato ao curso. Tanto assim que foi estranho voltar ao campus do Gragoatá e dar de cara com um prédio A ao lado esquerdo do prédio B. Foi estranho voltar à UFF e ver que a grade do curso de Letras havia mudado muito – a de Linguística mudou demais, porque houve concursos e entraram vários professores, principalmente das áreas de Análise do Discurso e de Semiótica francesa, áreas que, quando fui aluna de lá, achava natural não estudar. Isso tudo eu vi quando voltei à UFF, no início de 2012, para fazer um pós-doc. No final de 2012 recebi um telefonema da UFJF: me perguntavam se eu ainda tinha interesse em (v)ir para Juiz de Fora, pois eu havia feito um concurso que ainda estava válido. Eu tinha ficado em segundo lugar em um concurso
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que abrira apenas uma vaga. Contudo, com a expansão das Universidades Públicas, pintou uma segunda vaga – e cá estou eu. Entrei na UFJF na virada de 2012 para 2013. Comecei dando aula no novo curso de Bacharelado Interdisciplinar em Ciências Humanas. Naquela época – há três anos –, no final do período, muitos alunos vieram conversar comigo, preocupados: um ia para Nova Zelândia e queria saber como fazer para fecharmos o semestre; outro ia para Portugal e estava preocupado com a data da última prova; outra foi para a Espanha, e veio me perguntar se podia entregar o trabalho final por e-mail. Naquela época (há longínquos três anos), para muitos alunos não houve fronteiras para estudar. Eram alunos do curso de Artes; eram alunos do curso de Letras. Pensava em tudo isso em um táxi, indo para Copacabana encontrar uns amigos, quando o taxista comentou algo sobre estar trabalhando naquele feriado. Ele disse que estava trabalhando naquele feriado por um bom motivo: pagar a viagem que tinha acabado de fazer no fim do ano. Perguntei para onde ele tinha ido. O taxista me olha pelo retrovisor: “Você não sabe para onde eu fui...” – pausa dramática. “Fui para Paris, nêga.” O taxista me diz que tinha ido à França porque sua filha, aluna de Engenharia da UFRJ, estava estudando em Paris, em uma das melhores Universidades de sua área. O taxista me diz: “Eu nunca teria condições de mandar minha filha estudar lá. Ela estuda numa das melhores Faculdades do mundo. Em Paris. E eu e a mãe dela fomos passar o fim de ano lá. Com ela. Em Paris.” O taxista e eu nos despedimos muito felizes. Com a alegria que prometi à Silvina tentar falar aqui hoje: um texto mais feliz do que triste. Muita alegria falar na abertura da VI Jornada Literária, hoje, aqui – bartheanamente, mais uma alegria do que uma honra, porque “a honra pode ser imerecida, [mas] a alegria nunca o é” (BARTHES, Aula, p.8). Então, me deixa gozar. Me deixa ensaiar: este ensaio para pensar qual seria a biografia intelectual da Silvina. Fiz quarenta anos este ano e tenho visto uma alegria se confirmar: a história é cíclica. Então, “apesar de
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você / amanhã há de ser / outro dia”. Se hoje, vinte e nove de novembro de 2016, for mesmo confirmada a votação para se instituir um novo regime fiscal, se hoje forem acrescidos nove artigos à Constituição Federal, nove artigos que vigorarão por “vinte exercícios financeiros”; se hoje tivermos um art. 105 subscrevendo que “aplicações mínimas em ações e serviços públicos de saúde e em manutenção e desenvolvimento do ensino equivalerão, no exercício de 2017, às aplicações mínimas calculadas […] [e] nos exercícios posteriores, aos valores calculados para as aplicações mínimas do exercício imediatamente anterior” (Proposta de Emenda à Constituição nº 55 de 2016, grifos nossos); enfim, se hoje for mesmo confirmada a votação para se instituir um novo regime fiscal, vou continuar clamando: Me deixa gozar. Me larga, não enche. Me deixa ensaiar: este ensaio cíclico. Alegre e triste, posto que dedicado aos meus alunos que não vão me procurar antes de embarcar para Nova Zelândia, Portugal, Espanha. Este ensaio dedicado aos alunos que, ciclicamente, terão uma graduação como a minha, e que vão naturalizar fronteiras para estudar. Ensaio aqui este meu discurso com o desejo de que vocês pratiquem o discurso do desejo de vocês. Ensaio hoje com a alegria de saber que esta Jornada apenas começa – e, então, os papéis serão trocados, e estarei no lugar da escuta: vocês praticarão seus discursos. Desejo que, nestes próximos dias, pratiquemos alegremente esse paradoxo foucaultiano: ter acesso a qualquer tipo de discurso, ainda que “todo sistema de educação [seja] uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo” (FOUCAULT, A ordem do discurso, p.44). Quero poder escutar vocês quando vocês se apropriarem do discurso. Quero ouvi-los: que seus discursos me lembrem da potência do acontecimento que todo discurso é. E que continuemos jogos de linguagem ensaiando pesquisas fora de exigências tecnocratas – jogos arriscados, indecifráveis. Jogos que
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jogamos pelo que desconhecemos – porque estamos sempre no risco, porque não sabemos do seu final. Um jogo de linguagem para além da ordem do verdadeiro e do falso, sem uma vontade de saber positivista; antes, um jogo de linguagem cuja lógica é a “lógica do desejo” (FOUCAULT, A ordem do discurso, p.77-78). Não quero ignorar (nem por ingenuidade, muito menos por má-fé) a força da linguagem; não quero praticá-la “como um instrumento dócil e transparente” (PERRONEMOISÉS, Posfácio à Aula de Barthes, p.62), mas quero ensaiar um ensaio, um discurso poderoso de desejo. Me deixa ensaiar: este ensaio como um desejo – de que, em qualquer ciclo histórico, o momento histórico seja sempre do maior gozo (BARTHES, Aula, p.40). Me deixa ensaiar: este ensaio para pensar uma prática de escrita anárquica – um jogo de linguagem wittgensteiniano; como ele, imaginar a multiplicidade de jogos de linguagem: resolver enigmas – traduzir de uma língua para outra – cantar uma cantiga de roda. Me deixa ensaiar: bartheanamente, ensaio (dois pontos seguidos de mais dois pontos): se meu discurso, como todo discurso, ao nascer, me mata, então, declaro minha própria morte – com um P.S.: com o desejo (feliz) de que vocês gozem muito nesta VI Jornada Literária da UFJF. Obrigada.
(Neste texto há diálogos com Caetano Veloso, Roland Barthes, Maurizio Gnerre, Ludwig Wittgenstein, Ferdinand de Saussure, Silvina Carrizo, Alexandre Faria, Michel Foucault, Vinícius de Moraes, Chico Buarque, Leyla Perrone-Moisés.)
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DOIS POEMAS DE ANA LUIZA GONÇALVES
há que se pensar em estratégias para atravessar esses dias frios andar sempre com as mãos dentro dos bolsos, proteger os ouvidos com alguma voz doce, observar a neblina mudando de lugar, carregar poemas de Portugal na cabeça, esperar que você passe por esse caminho, que me pergunte quem é Manuel António Pina? tremer o coração na mão, deixar que certas palavras escorreguem pela boca espanto, batimento, língua, permanência
AMOR DE CARNAVAL as cores nos cantos dos olhos fazem sombra pra mim me escondem do calor de carnaval ah, meu primeiro carnaval... toda vez que encontro Joyce, eu fico feliz sorrio quieta ninguém pode perceber acontece alguma coisa dentro de mim é como ler Gustavo Vinagre quando estou na empresa
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DE SAÍDA ANDRÉ MONTEIRO
DOCUMENTO 13
quando miguel nascer, estarei mais vivo que nunca. me despreparei a vida inteira para isso. a melhor coisa do inverno aqui no asilo é quando há sol. e quando deixam a gente poder tomar banho de sol. a gente fica com vontade de andar de novo por aí e aceitar convites pra voltar a brilhar, como se a morte já tivesse passado. falar nisso, ontem recebi um convite pra participar, como ouvinte, da trigésima bienal de crepúsculos e auroras intergalácticas. aceitei. tenho a esperança de encontrar, mais uma vez, a juventude do tempo e me deixar corromper por ela. não sei quando passarão pra me buscar. enquanto isso, para fazer o efeito do tempo passar, parafraseio palavras. esqueci de tomar meus remédios hoje. fui pseudoanarquista quando era estudante. hoje não posso deixar de pensar no futuro. e já que não posso, preciso aprender a entrega-lo à graça e ao mistério de seu próprio futurar. escrevo porque preciso desabafar. esse é o motivo principal. todos os outros são secundários. gosto dos romancistas que usam da tradicional forma-romance (personagens, ações, enredo, o mínimo de verossimilhança, o mínimo de unidade mítica), não como fim, mas como uma boa maneira de entreter o leitor, enquanto ele pensa em
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outra coisa. outra coisa é sempre o que interessa. conversei sobre isso com o doutor. ele vem ao meu leito todos os dias e sempre me diz: não deu pra trazer a revolução, conforme o combinado. pelo menos, deu pra pegar umas cervejas de garrafa no bar da esquina. digo a ele que não me interesso pelo dia do rock. mas pelo rock de todos os dias. aqui dentro, os enfermeiros nos obrigam a compor um poema por dia. por isso, há um intenso mercado negro de palavras. eu mesmo já comprei e vendi algumas. as frases de efeito, nem sempre, encontram boas saídas. então jesus entrou no templo e expulsou todos os vendedores e compradores que lá estavam. virou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombas. e disse-lhes: está escrito: minha casa será chamada casa de oração. vós, porém, fazeis dela um covil de ladrões! meu desabafo não é nada pessoal e é totalmente pessoal. a verdade é que poucos escrevem em nome de muitos. às vezes tenho a sensação de que, apesar de termos lido muito fortemente heráclito, montaigne, nietzsche, oswald..., continuamos uns bons escravinhos pela simples e miserável e açucarada e carrancuda e culpada tentação de continuar reclamando da vida. o homenzinho que nos tornamos é o único animal fascista na face da terra? nem todo poema nonsense é um poema de crítica social. foda-se. maria veio me visitar. ela me prometeu o nosso amor: ao meio dia nascerá miguel. leonino sob sol a pino. eu não preciso de mais tempo pra mim. eu preciso dar um tempo de mim. melhor ser poeta que ser vítima, diz o meu colega de quarto. dizer "foda-se" ainda não é dizer foda-se. é preciso pegar carona na vida, quando ela lhe der uma enorme volta olímpica de alegria, a ponto de você esquecer tudo aquilo que te diminui, a ponto de se entregar ao que você ama sem nenhuma sombra de não, a ponto de não se importar em dizer mais que nada pra tudo que te deixa no vácuo. dizer foda-se com força dizendo, sem dizer, foda-se à própria vontade de dizer foda-se. un coup d’état jamais abolirá o ocaso dos ditadores. seja como for, quando miguel nascer, estarei mais vivo que nunca. me despreparei a vida inteira para isso.
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QUEM ESTÁ ANA ELISA RIBEIRO é mineira de Belo Horizonte, nascida em 1975. Poeta, cronista e contista, há mais de vinte anos. Seus livros mais recentes são "Anzol de pescar infernos" (poesia, SP, Patuá, 2013, semifinalista do prêmio Portugal Telecom), "Meus segredos com Capitu" (crônica, Natal, Jovens Escribas, 2013, semifinalista do prêmio Portugal Telecom), "Xadrez" (poesia, BH, Scriptum, 2015), "Beijo, boa sorte" (contos, Natal, Jovens Escribas, 2015) e "Por um triz" (poesia juvenil, BH, RHJ, 2016). É professora do CEFET-MG. ANA PAULA EL-JAICK é professora Adjunta da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Filosofia da Linguagem. Atualmente, atua como pesquisadora no Grupo de Pesquisa TRAÇO, cujos membros buscam afrouxar as fronteiras entre os estudos de Linguagem, Literatura e Filosofia. Seu atual projeto de pesquisa investiga o conceito de linguagem como forma de vida tal como formulado nos escritos do Wittgenstein maduro. ANA LUIZA GONÇALVES acredita na potência do corpo e da arte; trabalha o poema como linguagem de resistência e enfrentamento da mulher. É formada em Jornalismo e atuou na área durante alguns anos, em Belo Horizonte. Até que cansou da cidade grande e foi morar em Ouro Preto, onde cursa Letras, na UFOP. De vez em quando aparecem textos no //fizpoema.blogspot.com.br e //daregra3.com.br. ANDRÉ MONTEIRO é escritor e professor da UFJF. Autor dos livros A ruptura do escorpião – Torquato neto e o mito de marginalidade (Cone Sul), Ossos do ócio (Cone Sul), Cheguei atrasado no campeonato de suicídio (Aquela Editora), Uma prosa de Sócrates (Macondo Edições), Liubliblablá: mastigações de um camelo (Bartlebee), Universidágua: pedagogia de sonhar líquido (Bartlebee), escritos em parceria com Luiz Fernando Medeiros, e Inacreditáveis: assovios antropopaicos (Oficina Raquel), em parceria com Roberto Corrêa dos Santos. ANDRÉS ALBERTO nasceu em Bahía Blanca (Argentina), em 1986. Desde 2006 publica quadrinhos em seu blog e também é colaborador
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em várias publicações independentes. Em 2011 editou seu primeiro livro La dura vida (Galería Editorial). Desde 2013 publica na revista “Lento”, do Uruguai. Em 2015 integrou a antologia Informe: historieta argentina del siglo XXI (Emr). ANELISE FREITAS é poeta e tradutora. Publicou poemas no Brasil, Argentina e Portugal. DAVID VASCONCELOS diz que escrita veio até ele de uma forma bastante peculiar. Na época que cursava o ensino fundamental, tinha o inquietante hábito de anotar todo tipo de dialogar que ouvia à sua volta. Fossem eles brigas, românticos ou qualquer outro que você poderia imaginar. Mas, nunca tinha a oportunidade de assistir o epílogo dos papeados, então começou a escrever uma conclusão para cada um deles e este hábito - de estar sempre anotando e escrevendo qualquer coisa - continua até hoje. Acredita que a escrita apenas faz parte das pessoas, como andar de bicicleta ou nadar. Simplesmente, escrevemos. DANIEL PAIVA VASCONCELOS é mestrando em Letras - Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (FALE/UFJF). LUCAS VIRIATO é formado em Letras pela PUC-Rio (com mestrado pela mesma instituição), com habilitação em Produção Textual, e com habilitação complementar em Formação de Docentes pela Universidade Cândido Mendes. Atualmente, leciona junto com Domingos Guimaraens no curso de Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo da CCE PUC-Rio, instituição onde também cursa o doutorado. Desde 2006, edita o jornal literário impresso e virtual "Plástico Bolha". É autor de livros de poesia e contos. Traduziu o livro "O estranho mundo de Jack" (2016), de Tim Burton, para a editora Cobogó. Participou de diversos eventos de poesia nacionais e internacionais. Tem atuação regular como curador e produtor. OTÁVIO CAMPOS é poeta e editor, cursa mestrado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Publicou dois livros de poemas Distância (Aquela Editora, 2013), a plaquete Amanhã tomo um vôo a Budapeste (Edições Macondo, 2014), Outros tipos de disparo (Edições Macondo, 2016) e Os peixes são tristes nas fotografias (Bartlebee, 2016). Desde 2011 edita a revista Um Conto.
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QUEM SÃO
PROJETO EDITORIAL Editora Matinta ILUSTRAÇÕES Andrés Alberto EDIÇÃO Anelise Freitas REVISÃO Otávio Campos CONSELHO ANDERSON PIRES DA SILVA ANDRÉ CAPILÉ FERNANDA VIVACQUA LAURA ASSIS OTÁVIO CAMPOS
OGaribaldi – Revista de Poesia nasceu em fevereiro de 2015. Produzida pela Matinta Editora e distribuída pela Casa Empiria. Ajude-nos a continuar publicando conteúdo sobre poesia. Consulte o site www.ogaribaldirevista.wordpress.com, acesse as primeiras seis edições e envie seus textos. E-mail: casaempiria@gmail.com
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