Uma publicação do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas
OUT 2020
ANO
12
VI
Editorial
Ă gua, saĂşde e as cidades
Desde a Antiguidade, registra-se a formação de centros urbanos. As primeiras cidades surgiram na região da Mesopotâmia, em torno do Rio Eufrates, em 3.500 a.C aproximadamente. Historicamente, as cidades sempre foram pontos de encontro, troca e convivência. Durante o Capitalismo, no entanto, sobretudo em sua fase industrial, esse processo de formação e crescimento urbano atinge o seu auge. Como efeito colateral, pouco a pouco temos observado o apagamento dos elementos naturais nas cidades: rios, córregos, topografia, vegetação. As cidades se tornaram cinzas, desagradáveis, de baixa qualidade ambiental. Hoje, essa forma de urbanização cobra um preço claro: insegurança hídrica para o abastecimento de populações, problemas crônicos de drenagem que causam mortes e destruições ano a ano, doenças e mais doenças oriundas de um saneamento que não chega a todos. As cidades se tornaram armadilhas urbanas. No bojo dessas reflexões, a Revista Velhas traz nesta edição um olhar especial sobre as cidades e sobre a saúde das pessoas: como os municípios mineiros atingidos pelas inundações de janeiro tentam se recuperar antes do próximo período chuvoso? Vivemos de fato um contexto de insegurança hídrica? De que maneira as Estações de Tratamento de Esgotos podem ser mais eficientes e contribuir para a qualidade dos nossos rios? Em paralelo, em tempos em que a ciência e a saúde mais do que nunca se apresentam como a nossa luz no fim do túnel, relembramos a relação histórica entre um grupo de médicos e o Rio das Velhas que fez nascer um icônico projeto de mobilização e revitalização no território. Da mesma forma, recontamos uma importante descoberta e contribuição da medicina brasileira para o mundo, que ocorreu justamente na Bacia do Velhas: a Doença de Chagas. A arte aqui também se faz presente nas obras de Isabela Prado e Thereza Portes. De quebra, uma rota turística de cicloviagem que tem o Rio das Velhas como fio condutor. Boa leitura!
Expediente Revista Velhas Publicação Semestral do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas Nº12 – Outubro / 2020 CBH Rio das Velhas Diretoria Presidente: Poliana Valgas Vice-presidente: Renato Júnio Constâncio Secretário: Marcus Vinícius Polignano Secretária-Adjunta: Ênio Resende de Souza Diretoria Ampliada Sociedade Civil Instituto Guaicuy – Marcus Vinícius Polignano Assoc. de Desenvolvimento de Artes e Ofícios (ADAO) - Procópio de Castro Usuários de Água CEMIG – Renato Júnio Constâncio COPASA – Nelson Guimarães Poder Público Estadual EMATER – Ênio Resende de Souza Agência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte (ARMBH) – Aline Fernandes Parreira Poder Público Municipal Prefeitura Municipal de Jequitibá – Poliana Valgas Prefeitura Municipal de Belo Horizonte – Humberto Marques Agência Peixe Vivo Diretora-Geral: Célia Fróes Gerente de Integração: Rúbia Mansur Gerente de Projetos: Thiago Campos Gerente de Administração e Finanças: Berenice Coutinho Esta revista é um produto do Programa de Comunicação do CBH Rio das Velhas. Produzido pela Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Sumário
06 Com a Palavra Participação social em tempos de isolamento p. 08
A Medicina e o Rio das Velhas p. 12
Direção: Paulo Vilela, Pedro Vilela e Rodrigo de Angelis Coordenação de Jornalismo: Luiz Ribeiro Edição: Luiz Ribeiro e Rodrigo de Angelis Redação e Reportagem: Luiza Baggio, Michelle Parron, Ohana Padilha e Ennio Rodrigues. Revisão: Isis Pinto Fotografia: Acervo Casa de Oswaldo Cruz - Fiocruz, Bianca Aun, Fernando Furtado, Fernando Piancastelli, Instituto Undió, Juvenal Caldeira, Leo Boi, Lucas Nishimoto, Luiz Maia, Marcelo Andrê, Miguel Aun, Ohana Padilha, Projeto Entre Rios e Ruas, Robson de Oliveira, Shutterstock, Vinícius Daidone Ilustrações: Clermont Cintra e Binho Barreto Projeto Gráfico: Márcio Barbalho Finalização: Rafael Bergo e Sérgio Freitas Impressão: ARW Gráfica e Editora Tiragem: 3.000 unidades. Direitos reservados. Permitido o uso das informações desde que citada a fonte.
Chagas, a descoberta que marcou a medicina brasileira p. 16
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O debate sobre os rios urbanos de BH a partir do afeto
Córrego do Leitão como inspiração A artista plástica Thereza Portes, idealizadora do projeto “Nessa Rua Tem um Rio”, resgata o cuidado com vias públicas e estreita laços com a população
p. 38
Na garupa do rio
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p. 40
Como estão as cidades mineiras atingidas pelas enchentes
O desafio da segurança hídrica
46 Onça: um rio para chamar de meu
p. 26
52 Próximo passo: tratamento terciário do esgoto p. 30
Histórias de ribeirinhos e do Rio das Velhas se transformam em podcasts
Com a palavra
Uma reflexão sobre as cidades Anualmente, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas) desenvolve uma campanha institucional de comunicação e mobilização social com o objetivo de visibilizar um tema de relevância para o contexto de proteção do rio, e que seja abraçado pela comunidade da bacia hidrográfica de forma geral.
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Para 2020, o Comitê definiu – num momento em que ainda não vivíamos a pandemia do novo coronavírus – que o tema da campanha seria ‘A Cidade e as Águas’. Motivou o Comitê, fundamentalmente, o que aconteceu no último período chuvoso em vários municípios da Bacia do Rio das Velhas, e em particular em Belo Horizonte. Diante de um volume de chuvas muito intenso, as cidades – com vários de seus cursos d’água canalizados – viraram palco de destruição e mortes. Longe de ser uma surpresa, o que se viu é resultado de políticas urbanas que progressivamente sufocaram os rios da cidade, evidenciando a fragilidade da gestão das águas nesses territórios. Entendemos que as cidades precisam, urgentemente, ter uma melhor gestão das suas águas. Mais do que nunca, vivemos num mundo em que gradativamente a mudança climática tem se feito presente e onde eventos extremos serão cada vez mais comuns, seja com volumes de chuvas muito acima do esperado, seja com a escassez hídrica, como temos visto nos últimos cinco anos. É importante destacar que essa discussão não vale só para a capital, mas para todas as cidades. Percebemos que, de maneira geral, os Planos Diretores Municipais praticamente não abordam a questão das águas urbanas,
não fazem interface com os Planos Diretores de Recursos Hídricos das Bacias Hidrográficas. É preciso refazer esse modelo. As cidades têm que se ver como integrantes de um geosistema, de uma bacia hidrográfica, e os mananciais que fazem parte dela devem ser preservados. A manutenção da qualidade das águas nos territórios deve necessariamente ser encarada como política pública urbana. De uma forma geral, as cidades querem água limpa, mas utilizam os cursos d’água como emissários de esgotos e efluentes industriais e depositam os resíduos sólidos nas margens dos córregos. Portanto, a gestão das águas nas cidades passa pela construção de políticas públicas de saneamento a fim de garantir a vitalidade dos córregos e a saúde das pessoas. Outra questão fundamental é que os mananciais que abastecem as cidades, em grande parte, não estão situados dentro dos limites do próprio município, mas sim de outros. Ou seja, é necessária uma visão compartilhada do território de bacia hidrográfica na qual todos devem ter compromissos e deveres. Esperamos que, através da nossa campanha, possamos sensibilizar todos os municípios da Bacia do Rio das Velhas e que essa agenda ambiental efetivamente entre na discussão das políticas públicas e no debate das eleições municipais de 2020.
Marcus Vinícius Polignano Secretário do CBH Rio das Velhas
Saiba mais sobre a campanha ‘A Cidade e as Águas’ em: cbhvelhas.org.br/acidadeeasaguas/
Renovação no CBH Rio das Velhas Sinto-me tão honrada por ter sido fiel depositária de tanto carinho e expectativa por parte dos conselheiros e demais pessoas que anseiam por renovação no CBH Rio das Velhas. Assumo a presidência não com o anseio de realizar grandes feitos, mas com as características que me fizeram ser a mulher que sou hoje: simplicidade, empatia e responsabilidade. Sinto a obrigação de fazer o que sempre fiz, que é trabalhar em prol da revitalização do Rio das Velhas. Tudo isso sem deixar para trás, é claro, tanta história de luta, militância, persistência e resiliência de pessoas que tanto anseiam em ver o rio vivo, em toda sua extensão.
Esse é o DNA do Velhas. A mobilização social, portanto, deverá ser mantida como uma máxima. Para tal, há de se garantir a continuidade da participação ativa dos diferentes segmentos do Plenário, o fortalecimento das Câmaras Técnicas e dos Grupos de Trabalho, a participação efetiva dos Subcomitês e o prosseguimento da parceria com a Agência Peixe Vivo, enquanto entidade de apoio.
Para esse novo biênio, período 2020/2022, focaremos na intenção de duas linhas de trabalho gerais: um olhar focado nos municípios, buscando uma maior e efetiva participação nos programas/atividades do Comitê; e a gestão hídrica da bacia, incluindo em especial as pautas do saneamento e o trabalho intenso de desenvolvimento e despertar de novas lideranças na bacia. A nova gestão do CBH Rio das Velhas terá um olhar ainda mais inclusivo, compartilhado e democrático. Nessa perspectiva, todos os membros da nova Diretoria terão papéis importantes, o que mostra a maturidade do Comitê em trabalhar de forma descentralizada, assim como prega a Política de Gestão dos Recursos Hídricos. Espero que, nesse mar de diversidade de pensamentos, possamos trabalhar pelo objetivo central e convergente: que tenhamos um rio cada vez mais vivo. Poliana Valgas Presidente do CBH Rio das Velhas
Bianca Aun
Conquistar determinados espaços políticos em nossa sociedade de forma transparente e idônea é um trabalho árduo e requer muito desprendimento, comprometimento e crença – sim, crença naquilo que se está fazendo. Sendo mulher e negra, o desafio parece mais árduo e às vezes as pautas propositivas vão ficando à margem e, em determinados momentos, é preciso lutar, não para conquistar direitos, mas para que estes sejam respeitados à luz da Constituição. Somos todos iguais.
Falar do CBH Rio das Velhas é falar de pessoas que veem no rio sua razão de viver e, em alguns casos, sobreviver. A bacia apresenta diversos cenários e desafios no âmbito da gestão de Recursos Hídricos. Existem desafios tácitos, expressos na necessidade explícita de melhoria da qualidade e quantidade das águas. Mas há, também, desafios mais sutis que não deverão passar desapercebidos, como a busca permanente da manutenção de uma Diretoria compromissada com as características históricas formadoras do Velhas: a gestão descentralizada, a garantia de participação social e dos segmentos de Plenária e o seu protagonismo de atuação.
Assista ao depoimento da nova Presidente do CBH Rio das Velhas na 109ª Plenária do Comitê em: bit.ly/poliana-valgas-presidente
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Mobilização
Participação aqui é na prática, porém à distância
Ilustração Clermont Cintra
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Texto: Michelle Parron
Bianca Aun
Foram o grafite e o Hip Hop que despertaram Henrique Alves de Oliveira para transformar a sua realidade.
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Eles continuam ativos de suas casas, mesmo quando um vírus fez o mundo parar Henrique Alves de Oliveira olha para o seu bairro com o mesmo entusiasmo com que vê um muro branco prestes a receber o colorido de um novo grafite. Morador do bairro Campo Alegre, em Belo Horizonte, o jovem grafiteiro aprendeu com o movimento Hip Hop que o conhecimento é uma ferramenta potente para despertar consciência e ter a liberdade para transformar a realidade, qualquer que seja ela. Antes de a pandemia chegar, Henrique movimentava a comunidade atuando no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Para ele, a arte é uma aliada. “Quando temos a arte em mãos como ferramenta de transformação, conseguimos levar a nossa mensagem, conseguimos trazer para fora o que tem no nosso interior. A arte é aquilo que expressa e leva vida para a vida das pessoas. A política também é importante para isso”, conta. Por falar em envolvimento político, o jovem entendeu que desconhecer os seus direitos e deveres básicos como cidadão é perder a capacidade de fazer as próprias escolhas. “Quando somos alienados, a gente se torna um capataz do político e esquecemos que temos direitos básicos, que muitas vezes são negados pra gente”, diz Henrique.
A pandemia tem trazido dificuldades para que Henrique continue a atuar nas ações do bairro no CRAS, mas ele tem feito mudanças de hábito e no próprio quintal da casa. É na separação de lixo orgânico e reciclável que ele vai modificando a relação que tem com o meio ambiente, na prática. “Respeitar o nosso planeta é primordial. Se a gente não respeita a natureza, a gente não está respeitando a nossa casa. Eu acho que a transformação social também se faz assim. É na prática, no pegar e fazer mesmo, da maneira que a gente pode.” Tentar entender e exigir os seus direitos é um exercício que Dona Glorinha faz há mais de 30 anos pelo meio ambiente, desde que veio do interior para morar na capital mineira. Com as amigas, como ela costuma falar, a moradora atua na Associação Comunitária e Habitacional dos Moradores do Bairro da Lagoa e Adjacentes e faz questão de estar presente na elaboração dos orçamentos públicos, como é feito no Orçamento Participativo (OP), mecanismo governamental que permite à população opinar sobre o orçamento público. “Tudo que nós temos aqui no bairro é de luta e de força, de trabalho comunitário, um movimento mesmo de quem acredita. Participo do Orçamento Participativo desde que começou, em 1996, e continuo até hoje. Se a gente não tem uma luta comunitária, nada no bairro vai para frente”, conta Glorinha, que diz que só vai parar de trabalhar depois de morrer. Enquanto isso ela não se cansa de atuar pela comunidade, pelo controle social, pela saúde e pelo meio ambiente. “Nós, seres humanos, temos que ter essa força. Eu falo isso para as minhas amigas. Infelizmente, muitas coisas acontecem para atrapalhar a nossa a luta, mas eu tenho perserverança. O ser humano precisa ter perseverança e acreditar.”
Ohana Padilha
Para Hideraldo Buch, coordenador do Fórum Nacional de CBHs, reuniões virtuais limitam a participação social.
Põe perseverança nisso. Se as associações, os Comitês e as outras formas de organização social já tinham os desafios de se organizarem enquanto grupo, terem fôlego para dar continuidade às discussões e tomadas de decisão, com a pandemia do coronavírus mais um elemento desafiador passou a fazer parte desse trabalho. O distanciamento social obrigou a reconfiguração de espaços e ferramentas. As rodas de conversa, as listas de presença assinadas à mão, as conversas antes da reunião e os assuntos que não tinham fim por conta da cabeça borbulhando de ideias ao final de cada discussão, deram lugar a uma configuração à distância, baseada em cada-um-no-seuquadrado, ou melhor, na sua tela de computador e telefone celular. Alguns grupos com atuação mais presencial, como é o caso do Núcleo Capão, movimento que surgiu em 2012 a partir do projeto Escolas na Bacia do Projeto Manuelzão, teve parte do trabalho prejudicado por conta do isolamento social. “O último multirão que fizemos foi um de plantio em fevereiro [de 2020]. Foram 25 mudas plantadas no Parque do Capão, mas agora estamos com dificuldades para acompanhar o desenvolvimento do plantio com a pandemia”. Essas palavras são da Roseli Correia da Silva, professora e coordenadora do Núcleo Capão, formado por 15 integrantes e que faz um papel importante a favor da melhoria da qualidade do córrego do Capão e pela região de Venda Nova. “Nosso trabalho é todo voluntário. Temos parceria com o Projeto Manuelzão e somos conselheiros no Subcomitê do Onça. Pensamos que era importante participar desses movimentos para entender um pouco mais das políticas públicas e como elas podem nos favorecer”, explica. Com a pandemia, os encontros no Núcleo passaram a acontecer uma vez por mês pela internet. Além de debater assuntos que envolvem o grupo, também são feitos repasses de informação das atividades realizadas pelo Subcomitê Ribeirão Onça, vinculado ao Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas), no qual participam desde 2017 e representam a sociedade civil. “Vemos o Subcomitê como um ambiente importante não só para informação sobre o que está acontecendo com relação às águas e aos territórios, mas também como espaço de formação para entender mais sobre a lei da cobrança da água, a elaboração do Plano Plurianual, o acesso aos editais e como tornar a gestão das águas mais eficiente.”
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Roseli conta que o trabalho no Subcomitê continua a acontecer mesmo durante a pandemia e que o CBH Rio das Velhas, inclusive, ajudou a resolver problemas na região. “Temos feito reuniões no Subcomitê de forma remota. Mesmo que mais lento, o trabalho continua. Por exemplo, tivemos deposição de entulho de forma irregular nas margens do córrego do Capão e na área do parque e uma das esferas acionadas para resolver o problema foi o Comitê que, mesmo à distância, alertou o poder público sobre a necessidade de manter a área do parque limpa”.
Sociedade como um todo pode acompanhar as reuniões do CBH Rio das Velhas ao vivo no YouTube.
As atividades não só do CBH Rio das Velhas, como nas outras formas de organização que atuam na gestão das águas, tiveram que se readequar aos novos tempos. Plenárias, câmaras técnicas, reuniões de fóruns e Comitês ou outros encontros com aglomeração de pessoas estão impedidos de acontecer desde março, no formato presencial. No início de maio, o colegiado do Fórum Mineiro de Comitês de Bacias Hidrográficas (FMCBH), em reunião virtual, reagiu ao momento. A preocupação era a limitação da participação social nos encontros que passaram a ser feitos pela internet. “Fazer reunião virtual impede a
Bianca Aun
participação social e, claro, grande parte dos Comitês não tem estruturas para operar essas reuniões. Tem Comitê que não tem sala e internet”, conta Hideraldo Buch, coordenador do Fórum Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas (FNCBH). Na época, o Fórum encaminhou esse e outros pontos, em documento, aos Comitês de bacias e ao Conselho Estadual de Recursos Hídricos de Minas Gerais (CERH-MG). Uma das medidas do Conselho foi adiar, por 90 dias, a eleição para renovar as diretorias dos Comitês, prevista para acontecer até o dia 30 de junho. O Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM), para colaborar com a continuidade das ações dos Comitês, criou um documento com procedimentos e orientações para a realização de reuniões via videoconferência. Nele o IGAM trouxe estratégias de convocação, organização, condução, votação e outras ferramentas, com proposta de assegurar a participação das pessoas nas reuniões. As reuniões plenárias e de câmaras técnicas do CBH Rio das Velhas foram retomadas somente ao final de julho. “Em março suspendemos as reuniões presenciais na esperança de que o pior passasse logo. Ocorre que isto não se deu e tínhamos demandas urgentes que necessitavam de deliberações do Comitê. Neste período de isolamento social, nossa atenção principal tem sido com a saúde. Mas é fundamental, também, seguirmos com nossas atividades, conforme a possibilidade, para nos mantermos mobilizados e ativos”, explica Marcus Vinícius Polignano, secretário do CBH Rio das Velhas. A Semana do Rio das Velhas, um encontro anual que reúne todos os Subcomitês, aconteceu no final de junho e início de julho com novo formato. Três webinários com os temas Água, saúde e saneamento em tempos de Covid-19; Mobilização e educação ambiental; Comunicação e participação social, foram acompanhados por mais de 1.400 pessoas. Outra experiência que aconteceu no Comitê foi a primeira audiência pública on-line para Elaboração do Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB) de Jequitibá, realizada pela prefeitura do município e pelo Comitê, amparados pela Agência Peixe Vivo. Para os participantes, a experiência do encontro foi positiva e permitiu validar o documento ainda dentro do prazo do contrato para sua execução. “Penso que as reuniões e os eventos nunca mais serão os mesmos depois da pandemia. No ambiente on-line há vantagens como a disponibilização do conteúdo para quem não pôde assistir no dia e a garantia da interação entre o público e os palestrantes, através do chat, durante o encontro. Ainda penso que este tipo de evento on-line não substituirá os presenciais, pois o acesso à internet no campo ainda é restrito. Mas já imagino uma estratégia de mobilização para um futuro próximo, com a realização de audiências públicas virtuais e a disponibilização de telecentros, escolas ou demais espaços de acesso à internet para que as pessoas compareçam, quando pudermos aglomerar novamente”, conta Élio Domingos, um dos mobilizadores do CBH Rio das Velhas que acompanha o Subcomitê Ribeirão Jequitibá. Garantir a participação social em uma das principais reuniões do Comitê era um dos objetivos do então presidente Polignano. Para que isso fosse possível, a 108ª Plenária foi transmitida pelo Youtube à toda sociedade. O encontro é um momento de decisão sobre questões importantes relacionadas à gestão dos recursos hídricos da bacia do Velhas.
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Para Élio Domingos, mobilizador social do CBH Rio das Velhas, algumas das mudanças vieram para ficar.
Apesar das dificuldades, sejam elas por limitações técnicas ou por hábitos culturais, Procópio de Castro, que faz parte da Diretoria Ampliada do CBH Rio das Velhas, acredita que o momento, embora desafiador para participação social, pode ser encarado como uma oportunidade. “Os Comitês e os Subcomitês devem estar firmes no propósito de que a água não parou no rio. O planeta continua girando. Nós precisamos manter os procedimentos de segurança, adotar as novas tecnologias disponíveis e continuar com o debate. É hora de estudar o que temos feito, o que já foi concretizado, os sonhos que ficaram parados no caminho por falta de recurso. A Covid-19 tem mostrado que é necessário repensar os nossos caminhos, repensar os nossos valores. Essa é a hora de botar em prática”, diz.
Histรณria
Miguel Aun
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A Medicina e o Rio das Velhas Como um projeto criado por médicos passou a cuidar das águas para melhorar a saúde na bacia Texto: Luiza Baggio A saúde humana está diretamente ligada à qualidade do ambiente em que vivemos. O ar poluído, por exemplo, causa problemas respiratórios e, se as nascentes dos rios estiverem contaminadas, o risco de doenças aumenta assustadoramente. Essa relação entre os cuidados com a natureza e saúde foi o que motivou um grupo de médicos de Belo Horizonte a criarem o Projeto Manuelzão, que tem o objetivo de cuidar das águas para melhorar a saúde da população na bacia do Rio das Velhas. O projeto monitora a qualidade da água da bacia e conscientiza a população sobre a importância de cuidar das águas, mostrando que saúde não é apenas uma questão médica, mas também ambiental. O Manuelzão é um programa de extensão da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que concilia o trabalho científico com a mobilização social de empresas, governos e sociedade civil. O nome é uma homenagem ao vaqueiro Manuel Nardi, imortalizado como Manuelzão na obra de João Guimarães Rosa. Ao longo da vida, o vaqueiro conviveu com a vida sofrida do sertanejo e assistiu também a agonia lenta dos peixes e do próprio Rio das Velhas.
História Em 1997, na cidade de Belo Horizonte, o professor da Faculdade de Medicina da UFMG, Apolo Heringer Lisboa, idealizador do projeto, convidou os professores Antônio Leite Radicchi (falecido em 2017) e Marcus Vinícius Polignano para colocarem o Manuelzão em prática sob o mote da volta dos peixes ao Rio das Velhas. A partir da experiência do Internato Rural – prática que leva alunos para cidades do interior, onde aprendem a relação entre medicina e sociedade, por meio da participação direta no SUS (Sistema único de Saúde) e nos movimentos sociais – eles perceberam que de nada adiantava falar de saúde coletiva sem prestar atenção no meio em que as pessoas viviam. Essa foi a semente do Manuelzão, que conjuga mobilização social, ativismo ambiental, cuidados com a saúde e fortalecimento da história local. O eixo principal é a revitalização do Rio das Velhas, que banha a capital mineira e deságua no Rio São Francisco, e a volta dos peixes ao curso d’água. Desde então, o Manuelzão vem ganhando força e a participação de alunos de outros cursos como comunicação social e biologia.
Marcelo Andrê
13 Bacia do Rio das Velhas foi escolhida como foco de atuação pelo Projeto Manuelzão, como forma de superar a percepção municipalista das questões ambientais.
Miguel Aun
Miguel Aun
O atual coordenador do Projeto Manuelzão e também secretário do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas), Marcus Vinícius Polignano, esclarece como foi escolhido o foco de atuação do projeto. “A bacia hidrográfica permite uma análise sistêmica e integrada dos problemas e das necessidades de intervenções. A bacia permite integrar natureza e história, ambiente e relações sociais, delimitando uma área e possibilitando que um complexo sistema social seja referenciado na biodiversidade dos corpos d’água da bacia”. Polignano acrescenta que a opção por trabalhar com uma bacia hidrográfica veio do fato de que ela representa uma unidade de diagnóstico, de planejamento, de organização, de ação e de avaliação de resultados. “O modelo de sociedade contemporânea gerou a degradação das águas das bacias hidrográficas e a agonia dos nossos rios. É fundamental atuar na mudança do modelo produtivo e da mentalidade cultural para que possamos revitalizar os cursos d’água”, esclareceu. Nascido com um caráter interdisciplinar e interinstitucional, as propostas do Projeto Manuelzão se definem com um objetivo comum que é a preservação da vida com toda sua biodiversidade, representada simbolicamente pela volta dos peixes ao Rio das Velhas. Trata-se de um projeto da UFMG que busca a transdisciplinaridade como forma de entendimento da realidade e de resposta para a sociedade da complexidade socioambiental que o mundo atual vive.
Tarcísio Pinheiro esclarece que com as discussões sobre saúde, meio ambiente e cidadania, o projeto coloca a questão do homem no centro do debate ambiental. “Ao adotar o peixe como bioindicador da qualidade das águas do espaço territorial natural que é a bacia hidrográfica, o projeto define sua visão de que as condições da bacia refletem as ações do homem no espaço e estas afetam a saúde dos peixes. Por outro lado, lutamos pela construção de políticas públicas que considerem o ambiente como fator importante para a saúde e qualidade de vida da população, como, por exemplo, a melhoria do saneamento básico”.
Eixo principal do Manuelzão é a revitalização e a volta dos peixes ao Rio das Velhas.
Lucas Nishimoto
Rio das Velhas em Santo Hipólito no ano de 2010
Marcelo Andrê
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O professor da Faculdade de Medicina da UFMG, Tarcísio Márcio Magalhães Pinheiro, integra o Manuelzão desde 2000. “Junto com o saber acadêmico trabalhamos no Manuelzão com o saber popular. Medicina não envolve apenas doença, mas saúde também, e o Projeto Manuelzão tem um olhar ampliado atuando sobre o bem estar físico, mental, social e agora o espiritual”, disse.
Vaqueiro Manuel Nardi, que inspirou o personagem de Guimarães Rosa, deu nome ao Projeto.
Metas 2010 e 2014 No ano de 2003, o Projeto Manuelzão propôs o compromisso de revitalizar a Bacia do Rio das Velhas até o ano de 2010. Em 2005, a proposta passa a fazer parte da carteira de projetos do governo de estado de Minas Gerais, surgindo assim a Meta 2010 e, posteriormente, a Meta 2014: navegar, pescar e nadar no Rio das Velhas na Região Metropolitana de Belo Horizonte. O objetivo era despoluir a região mais degradada da bacia, que vai da foz do Rio Itabirito até o encontro com o Ribeirão Jequitibá. A Meta, respaldada pelo Plano Diretor do CBH Rio das Velhas, aprovado em 2004, definiu estratégias, ações de saneamento e a recuperação ambiental, visando alcançar a melhoria das águas e a volta dos peixes ao rio. Com as Metas 2010 e 2014 os resultados foram significativos, principalmente na região do Baixo e do Médio Rio das Velhas. Essas áreas, beneficiadas pelas intervenções na Região Metropolitana de Belo Horizonte, apresentaram melhorias significativas na qualidade das suas águas. Infelizmente, os avanços não foram suficientes para que o objetivo de nadar nas águas do Rio das Velhas na Grande BH fosse concretizado, em função do alto índice de coliformes fecais na região. Apesar desse ponto negativo do balanço, foram positivos os avanços na política de saneamento básico na bacia, o que tem possibilitado a volta dos peixes ao rio e a diminuição na ocorrência de mortandades.
O futuro O Rio das Velhas está tentando refazer a sua história. Assim como o Projeto Manuelzão, o Comitê de Bacia Hidrográfica também luta pela revitalização do território, desde 1998, ano de sua criação. Construímos a Meta 2010-2014, e, mais recentemente, o Programa ‘Revitaliza Rio das Velhas’. “Já conseguimos vitórias importantes, como o tratamento de 70% dos esgotos de Belo Horizonte e a construção de Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs). Os peixes voltaram para mais perto de BH, mas a qualidade das águas ainda é ruim e não permite nadar”, afirmou Marcus Vinícius Polignano. Já para o professor Tarcísio Márcio Magalhães Pinheiro, os Comitês de Bacia trazem importantes conquistas no cenário de revitalização. “Os CBHs trouxeram importantes avanços na crise ambiental e temos conseguido progresso na revitalização das bacias, principalmente no Rio das Velhas. Vivemos a pandemia do Coronavírus que tem nos mostrado que precisamos rever as nossas ações. O momento atual não é simples, mas abre possibilidade para refletir sobre nossas crenças e pensar em alternativas para quando tudo voltar ao normal”.
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Saúde
Chagas, a descoberta que marcou a medicina brasileira Texto: Michelle Parron / Fotos e ilustrações: Acervo Casa de Oswaldo Cruz - Fiocruz
Você poderia imaginar que a construção de uma linha de trem na Bacia do Rio das Velhas pudesse nos levar a uma importante contribuição da medicina brasileira para o mundo? 16 A descoberta da Doença de Chagas, que aconteceu há 110 anos na pequena cidade de Lassance, no Norte de Minas, se transformou em um marco ao revelar a visão integrada do doutor Carlos Chagas. Anos depois, precisamente entre 2000 e 2011, a enfermidade chegou a tirar a vida de 58.928 brasileiros, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Para entender melhor a história, contamos com os estudos, a memória e a capacidade do médico, idealizador e fundador do Projeto Manuelzão, Apolo Heringer Lisboa, de nos transportar ao início do século XX. “Oswaldo Cruz entregou a Carlos Chagas a missão de combater o surto de malária que impedia a construção do ramal ferroviário entre Corinto e Pirapora. Era 1907, no local de São Gonçalo das Tabocas, atual Lassance, chegou e instalou o laboratório/consultório num vagão ferroviário, se juntando a operários e engenheiros. Seu grande auxiliar era o velho microscópio”, conta Apolo.
Chagas não sabia que, anos depois, no compromisso de combater a doença transmitida pela fêmea do mosquito Anopheles (mosquito prego) no estado em que nasceu, uma descoberta o tornaria mundialmente conhecido. No combate à malária, Chagas “ouviu relatos de um inseto que picava o rosto das pessoas dormindo e coçava muito, provocava inchaço perto dos olhos, notado de manhã. Foi ver essas pessoas cedinho, colheu material do local das picadas e ao microscópio viu que o tal chupão ou barbeiro defecava e urinava perto do inchaço do rosto. Viu ao microscópio que aí estavam os micróbios e que o coçar poderia fazê-los penetrar no orifício da picada indo ao sangue. Examinando o intestino do barbeiro descobriu um Trypanosoma e enviou alguns insetos infectados ao Instituto de Manguinhos/RJ, para estudar o ciclo em mamíferos de laboratório. E confirmou a descoberta no sangue dos animais desta espécie, que denominou Trypanosoma cruzi, homenageando Oswaldo Cruz”, conta o fundador do projeto Manuelzão. A data da descoberta foi 14 de abril de 1909. Em 2019, durante a 72ª Assembleia Mundial de Saúde, foi instituído o 14 de abril como Dia Mundial da Doença de Chagas.
Carlos Chagas era um médico mineiro, nascido em Oliveira (MG). Perdeu o pai aos cinco anos e aos sete foi enviado pela mãe para estudar em um seminário em São Paulo. Já no Rio de Janeiro, como médico diplomado, foi trabalhar com o também médico Oswaldo Cruz nas campanhas contra a varíola, malária e febre amarela.
Foi no intestino do barbeiro Triatoma infestans que Carlos Chagas descobriu o Trypanosoma cruzi causador da doença.
A doença no mundo e no Brasil Crônica e endêmica em 21 países das Américas, a doença afeta, aproximadamente, 6 milhões de pessoas, com incidência anual de 30 mil casos novos nesses países, provocando uma média de 14 mil mortes por ano e 8 mil recém-nascidos infectados durante a gestação. Os dados são do Boletim Epidemiológico da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, publicado em novembro de 2019. Segundo o documento, cerca de 70 milhões de pessoas vivem em áreas de exposição nas Américas e correm o risco de contrair a doença. No Brasil, foram notificados 4.685 indivíduos suspeitos com Doença de Chagas em fase aguda (DCA) só em 2018. Destes, 380 foram confirmados. Os casos foram registrados em residentes de 66 municípios do território brasileiro, sendo que 76,3% residiam no estado do Pará. A maioria dos casos ocorreu em indivíduos do sexo masculino e a média de idade é de 32,9 anos, conforme apontam os dados do Ministério da Saúde apresentados no boletim. Atualmente em Lassance, cidade cortada pelo Rio das Velhas e onde a doença foi descoberta, a prefeitura mantêm um trabalho de prevenção para combater o aumento da Chagas. Agentes de endemias percorrem localidades todos os anos. Quando são encontrados barbeiros é feita a borrifação da residência e dos anexos, como galinheiro e chiqueiro. Também são feitas ações educativas com alunos e moradores para esclarecer sobre a causa da doença, os sintomas e formas de prevenção. Na cidade, segundo a prefeitura, os portadores da doença estão acima dos 40 anos de idade. Lassance também ganhou o Memorial Carlos Chagas, um espaço que foi reinaugurado em 2019 onde é possível ter acesso às informações sobre o médico, às ferramentas que ele utilizava e aos documentos da época.
Estação da Estrada de Ferro Central do Brasil em Lassance - 1908
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Um mal que se prolifera na pobreza A vulnerabilidade social aumenta o risco de contrair a doença, fato que coloca a pobreza como uma proliferadora da Doença de Chagas entre a população. “O nosso barbeiro é um inseto que vive nas gretas da parede das casas de sopapo, ou taipa, não rebocadas, nem pintadas, entre o barro e os varais da estrutura”, explica Apolo. O médico conta que a falta de luz elétrica e as condições de moradia facilitaram a transmissão da doença pelo inseto. “Nas casas de alvenaria dos proprietários das terras, mais bem construídas e conservadas, a doença era mais rara. Antes dos desmatamentos os barbeiros se alimentavam de gambás, macacos, tatus etc. Mas se adaptaram às moradias humanas ali construídas e aos galinheiros; a doença tem a ver com a ecologia, a pobreza e a falta de escolaridade”, explica Apolo. Ainda que o controle do barbeiro Triatoma infestans seja um passo para o combate da doença, ele não é o único transmissor. A Doença de Chagas pode ser transmitida pela transfusão de sangue, de mãe para filho e pelo consumo de alimentos contaminados pelas fezes do barbeiro.
Casos descritos como portadores da Doença de Chagas. Para Carlos Chagas, o bócio endêmico era um sinal clínico da Tripanossomíase Americana.
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O barbeiro vive nas gretas das paredes das casas de sopapo, ou taipa, não rebocadas, entre o barro e os varais da estrutura.
Oswaldo Cruz deu a Carlos Chagas a missão de combater o surto de malária que impedia a construção do ramal ferroviário entre Corinto e Pirapora.
A ciência e a visão integrada da saúde A ciência, por meio de estudos e descobertas, salva muitas vidas e pode erradicar doenças pelo mundo. Essa mesma ciência também pode ser vista na vida e obra de Carlos Chagas. “A Saúde Pública brasileira, hoje representada pelo SUS, e a Saúde Coletiva Ecossistêmica, ainda fora da concepção assistencialista do SUS, têm muito a ver com a visão integrada de Carlos Chagas. A ciência descobre coisas camufladas por aparências enganosas. Descobre que saúde está ligada a questões diversas, como política, guerras, economia, religião, meio ambiente, desmatamento, falta de saneamento, pobreza, tipos de moradias, poluição. Hoje o Brasil sofre com a terrível pandemia do COVID-19, com milhares de mortos em meio a campanhas desvalorizando os cientistas, cortando verbas de pesquisas, das universidades, do ensino fundamental e do SUS”, conclui Apolo Heringer.
Tratamento paliativo Texto: Michelle Parron
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Cidades mineiras atingidas pelas enchentes de janeiro e fevereiro tentam se recuperar antes do próximo período chuvoso
Se pararmos para pensar no caminho percorrido pela chuva, o normal seria a água cair, infiltrar no solo ou correr para os córregos e rios e, enfim, desaguar no mar. Acontece que o ciclo natural da chuva já não é mais assim nas áreas urbanas brasileiras. O que se vê a cada novo período chuvoso são fortes tempestades que despejam grande quantidade de água que alaga ruas, põe casas abaixo, carrega pontes e tudo mais o que encontra pela frente. A urbanização transformou os rios em extensas calhas e inundou as cidades com tapetes de concreto e asfalto, impedindo a água de infiltrar no solo. Segundo a Defesa Civil de Minas Gerais, as chuvas causaram 55 mortes, 3.311 feridos e deixaram 91.720 pessoas desalojadas e desabrigadas no estado. A situação crítica fez 212 municípios mineiros decretarem situação de emergência e os prejuízos econômicos públicos e privados foram de quase R$ 600 milhões. Esses números são as consequências da ocupação desastrosa do solo que não respeita o curso natural dos rios.
Luiz Maia
Drenagem urbana
O atual modelo de desenvolvimento impõe à natureza adaptar-se à urbanização. O que deveria ser o contrário. Seja nas grandes obras que atendem a sociedade em nome do desenvolvimento econômico, seja na construção das casas, o comum é ver tratores derrubando o verde, abrindo buracos na terra e impermeabilizando o solo que servia como uma esponja para absorver a água. “Se seguirmos achando que desenvolvimento é desenvolvimento econômico a qualquer custo, o preço nós já estamos pagando. São as enchentes, os tornados, furacões, as desertificações de áreas, a poluição e todos os impactos da mudança climática e a degradação dos ambientes que a atividade humana tem gerado. Modelos de desenvolvimento que sejam, de fato, de desenvolvimento humano e social, que busquem conciliar com as diversas formas de vida, serão fundamentais se quisermos que haja condições de vida nesse planeta para as próximas gerações”, afirma o arquiteto e urbanista Roberto Andrés, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Repensar a infraestrutura das grandes cidades é o caminho proposto pelo também arquiteto Gustavo Penna. Reconhecido internacionalmente por dezenas de projetos de referência na arquitetura, ele propõe uma nova interpretação para o traçado de ruas e quarteirões em contraposição aos traçados da linearidade atual: no lugar de ruas retinhas, o ideal seria acompanhar os relevo e a topografia naturais do lugar. “O desenho idealizado de ruas ortogonais de fazer com que esse plano encaixe na real topografia não é mais viável. A topografia é a base que preexiste, que está lá: desenho natural. Você não pode subjugar a força da natureza porque vai pagar um preço alto”, diz.
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Despreparadas, cidades sucumbiram às enchentes do último período chuvoso, com rastros de destruição e mortes. Em destaque, o Ribeirão Arrudas, em Belo Horizonte.
Leo Boi
Quarta cidade com maior número de habitantes em áreas de risco de deslizamentos, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Belo Horizonte viu a força da água não fazer distinção de região ou classe social. Seja nos bairros nobres, ao amontoar carros de luxo e invadir restaurantes no meio do jantar, seja na periferia, onde o estrago não poupou casas e vidas.
Para o arquiteto e urbanista Roberto Andrés, o modo de ocupar a cidade de BH “foi um desastre”, principalmente na forma como os córregos e os rios foram tratados.
Foram 221 pontos afetados pelas fortes chuvas. Em vistorias realizadas pela cidade, a prefeitura incluiu mais 63 obras no planejamento de recuperação. No total são computadas 284 intervenções necessárias para que Belo Horizonte se recupere até o próximo período chuvoso. Desse número, 273 obras foram concluídas. Entre os serviços realizados estão o restabelecimento de pavimentação e recuperação de vias, contenções, recuperação de praças e canteiros, desobstrução de redes de drenagem, limpeza urbana, implantação de sarjeta, desobstrução e limpeza de bocas de lobo e de bacias. O custo desse trabalho abocanhou cerca de R$ 150 milhões, a maior parte do recurso saiu do orçamento do município. Escolhida para ser a capital de Minas Gerais por estar em uma área rica em cursos d’água como os Ribeirões Arrudas e Onça, com boa qualidade do ar e menos fria que Ouro Preto, Belo Horizonte misturava áreas montanhosas e planícies. Entretanto, o modo de ocupar a cidade “foi um desastre”, segundo o urbanista Roberto Andrés, principalmente na forma como os córregos e os rios foram tratados. “O desmatamento das cabeceiras fez com que faltasse água na cidade já nos primeiros anos. Os cursos d’água foram retificados e depois cobertos. O não tratamento do esgoto fez com que esse esgoto fosse jogado diretamente nos cursos d’água, poluindo rios e córregos”, conta.
Bianca Aun
O fato é que a cidade foi ficando cada vez mais cinza e concretada. “Quanto mais a cidade é canalizada, quanto mais o solo urbano é impermeabilizado, mais os problemas se agravam. Até hoje, infelizmente, a prefeitura de Belo Horizonte continua fazendo muitas obras que estão em um paradigma que não funciona mais”, conclui o urbanista.
Faerando Furtado
Para o também arquiteto Gustavo Penna, subjugar a força da natureza é preço caro que as cidades pagam.
O impacto provocado pelo desenvolvimento em Belo Horizonte não para por aí. Entre janeiro e fevereiro deste ano, o excesso de água que correu pelo Rio das Velhas chegou às cidades do interior como Raposos, na região metropolitana, cortada pelo Velhas. O município foi um dos mais atingidos pelas cheias do início do ano com mais de 3 mil pessoas desabrigadas. A prefeitura identificou 30 pontos afetados que estão em obras e tiveram o custo total de R$ 2 milhões. Cerca da metade das obras foi concluída seis meses após os temporais. Como em Belo Horizonte, em Raposos a maior parte do dinheiro gasto também veio do orçamento municipal. “De janeiro para cá nós fizemos uma força tarefa para a limpeza da cidade. Revitalizamos a rua Erval Silva, uma que é sempre afetada. Recuperamos todos os guarda-corpos das quatro pontes e uma passarela. Fizemos umas 15 contenções, porque além da inundação, nós temos o problema da topografia bem acidentada. Ainda estamos trabalhando na contenção dessas encostas que fazem divisa com as ruas. Estamos fazendo uma nova ponte porque a antiga, além de ter sofrido muito com as últimas chuvas, é estreita e está em um nível muito baixo, em torno de quatro metros e meio de distância do Rio das Velhas. A nova vai ter sete metros. A vantagem disso é que, quando tiver uma chuva igual a que teve, as pessoas tendem a não ficar ilhadas”, explica o secretário de obras de Raposos, Liliano Rezende, sobre algumas das intervenções realizadas na cidade. O secretário acredita que a situação é muito complexa para assegurar que não haverá novas inundações quando as chuvas chegarem. Mesmo com as obras executadas pela prefeitura, para ele uma das medidas importantes para conter novas cheias é o desassoreamento do Rio das Velhas e do Ribeirão do Prata, que cortam a cidade.
Com uma topografia que favorece enchentes e alagamentos, Jequitibá, cortada pelo Rio das Velhas, na região central de Minas, também foi alvo das chuvas que deixaram cerca de 60 famílias desabrigadas e desalojadas. Foram nove regiões que tiveram pontes, estradas, bueiros, muros, entre outros pontos afetados, segundo o levantamento da prefeitura, que conseguiu um repasse de cerca de R$ 300 mil do estado para a realização das obras. A situação do dique construído para impedir que a água do Rio das Velhas invada a cidade é o que mais preocupa o prefeito Humberto Reis. “O dique é a nossa defesa com relação ao Rio das Velhas nas enchentes. Quando o nível do rio supera os seis metros, a comporta do dique é fechada para evitar que a água entre na cidade, consequentemente nós não conseguimos escoar a água acumulada no município para fora e isso é um grande complicador que causa os alagamentos dentro da área urbana. O que nos preocupa agora são os problemas visualizados na estrutura do dique na última cheia. Devido ao tempo de exposição à pressão de água do Velhas, nosso maior receio é da estrutura estar saturada”, explica o prefeito.
Para verificar a estabilidade da estrutura do dique, o município contratou uma empresa especializada para avaliar o grau de comprometimento e está elaborando um projeto para levantar os custos da obra. “O município não tem condições de ampliar o dique ou fazer um novo com recurso próprio. Nós dependemos muito de recurso estadual ou federal. De toda maneira, vamos buscar, ou com recurso próprio ou federal, fazer uma estabilização de umas partes mais críticas do dique levantadas no estudo”, diz Reis. Outra ação estudada pelo município é o desassoreamento de uma lagoa de contenção que recebe a água da parte central da cidade. Uma forma de aumentar a capacidade de receber as águas das chuvas. Para colaborar com os municípios, a Defesa Civil desenvolve um trabalho de orientação e capacitação técnica das defesas civis municipais com foco nas ações preventivas. Também orienta as cidades a realizarem algumas ações para evitar mais desastres nos próximos períodos chuvosos. As obras para prevenção e recuperação dos estragos e a adoção das medidas preventivas orientadas pela Defesa Civil são indispensáveis para preparar os municípios para as chuvas de verão. Mas é preciso ir além do tratamento paliativo.
Ilustração: Clermont Cintra
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Santa Luzia
Estragos das chuvas em Minas Gerais 55 mortos 3.211 feridos/enfermos 12.189 desabrigados 79.531 desalojados 30.795 unidades habitacionais, instalações públicas prestadoras de serviço, de ensino e de uso comunitário e obras de infraestrutura pública afetadas R$ 129.782.526,03 de prejuízos econômicos públicos 212 municípios decretaram situação de emergência Os dados são referentes aos meses de janeiro e fevereiro de 2020 (fonte - S2ID: Sistema de Informações sobre Desastres
Leo Boi
Robson Oliveira Leo Boi
Raposos
Fortes chuvas em 2020 comprometeram 221 pontos só em Belo Horizonte, como a Praça Marília de Dirceu.
Orientações da Defesa Civil para que os municípios estejam mais preparados para enfrentar o período chuvoso: Elaboração do Mapeamento de Áreas de Risco: aponta as áreas mais vulneráveis de serem afetadas por desastres servindo de base para todo trabalho preventivo Elaboração do Plano de Contingência: documento que traz as respostas do município em caso de desastre ao apontar possíveis cenários e ações que devem ser realizadas em cada cenário, os mecanismos e parâmetros dos sistemas de monitoramento, os alerta e alarme, a catalogação dos recursos logísticos disponíveis, as instalações a serem utilizadas como abrigo temporário, entre outros pontos; Realização de capacitações e treinamentos comunitários: com objetivo de levar informações para os moradores de áreas de risco das ações de autoproteção a serem adotadas pelas pessoas em caso de desastre; Realização de exercícios simulados: para testar as ações programadas no Plano de Contingência.
Mesmo com todo conhecimento que o ser humano adquiriu com a ciência, uma coisa é certa: ele não pode dominar a força dos rios submersos em ruas e avenidas, tampouco pode deter a força de uma enxurrada. “A ciência humana imaginava conseguir dominar totalmente a natureza. Demonstra-se hoje impotente. Nós temos visto que a própria pandemia deixou a ciência apavorada. Até hoje continuamos pandemicamente frágeis e perplexos. Temos é que criar cidades ecologicamente amigáveis, biodiversas, biointeligentes, bioeficientes e belas”, diz Gustavo Penna. Transformar as cidades em áreas mais permeáveis pode ser uma das saídas. Isso significa repensar o espaço público, construindo e preservando áreas verdes para absorção da água. Parques alagáveis, praças-piscina e telhados com jardim são algumas das alternativas adotadas por cidades na China, na Europa e nos Estados Unidos. Outra possibilidade é o uso de asfaltos porosos que absorvem a água da chuva e podem ajudar a reduzir enchentes, como o asfalto desenvolvido pela USP (Universidade de São Paulo) no projeto Pavimento Permeável Reservatório. “Os pavimentos funcionam como se fossem areia da praia e permitem que as águas cheguem aos rios e córregos com a metade da velocidade”, explica o professor e coordenador da pesquisa, José Rodolfo Scarati Martins. A mudança também precisa acontecer nas nossas próprias casas. O que pode ser feito agora e ainda na fase da construção de um imóvel para ajudar a absorver a água da chuva? Respeitar o relevo do terreno e evitar a terraplanagem, manter o máximo de áreas verdes como jardins, gramados e arbustos, criar um sistema de coleta de água das chuvas são algumas das escolhas que podem ser feitas para assegurar que a água, ao cair, não corra por cima do asfalto e alague novamente as ruas da cidade.
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Segurança hídrica
De acordo com a ONU, até 2025, pelo menos dois terços da população mundial viverá em áreas com estresse hídrico.
O desafio da água A segurança hídrica é o grande desafio das bacias hidrográficas para assegurar água em quantidade e qualidade em um planeta cada vez mais sob pressão Texto: Luiza Baggio
Quando falamos em urbanismo e desenvolvimento de grandes cidades, como as capitais e as metrópoles brasileiras, a segurança hídrica é um dos assuntos que sempre vem à tona. O termo ganhou ênfase depois de alguns estados brasileiros sofrerem longos períodos de seca. Durante esse tempo, a população ficou desassistida e foi necessário racionar o uso da água. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), segurança hídrica significa “assegurar o acesso sustentável à água de qualidade, em quantidade adequada à manutenção dos meios de vida, do bem-estar humano e do desenvolvimento socioeconômico; garantir proteção contra a poluição hídrica e desastres relacionados à água; preservar os ecossistemas em um clima de paz e estabilidade política”.
A falta de segurança hídrica é um dos maiores riscos para a prosperidade global. De acordo com dados da ONU, o consumo de água dobra a cada 20 anos e, até 2025, pelo menos dois terços da população mundial viverá em áreas com estresse hídrico. Portanto, a segurança hídrica desempenha um papel fundamental em diferentes áreas de nossa vida diária.
Bianca Aun
Ter segurança hídrica implica na capacidade de fornecer água de qualidade e quantidade para atender às necessidades agrícolas, industriais, energéticas e domésticas. É importante pensar além dos canos, das estações de tratamento e outras infraestruturas que permitem que a água chegue às cidades; esforços devem ser direcionados para preservar a integridade dos sistemas ambientais que são as fontes naturais de água.
Os fatores que ameaçam uma desejada situação de equilíbrio são o aumento populacional, principalmente nas áreas urbanas, e o crescimento econômico, que geram ampliação da demanda de água, bem como as mudanças climáticas e os seus efeitos nos eventos hidrológicos extremos. Esses fatores de desequilíbrio de balanço hídrico, associados à ausência de planejamento e ações institucionais coordenadas e de investimentos em infraestrutura hídrica e saneamento, desencadeiam cenários de insegurança hídrica e, no limite, a instalação de crises, tais como as que afetaram o Brasil nos últimos sete anos. Para José Tundisi o grande desafio da segurança hídrica é a gestão das águas por bacias hidrográficas. “Os usos da água na área urbana devem ser estritamente controlados. A utilização da água na produção dos alimentos deve ter tecnologias mais avançadas. Se a gestão for bem executada em nível de bacias hidrográficas, pode-se assegurar um controle mais efetivo às reservas de águas e maior eficiência no uso”.
Belo Horizonte (MG)
Insegurança hídrica na Grande BH
No período de estiagem de 2019, o rio – no ponto de captação da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) no Sistema Bela Fama, em Nova Lima – atingiu a vazão de 8 m³/s, a pior da história. O menor valor encontrado anteriormente foi em 2017, com a vazão de 9,2 m³/s e, em 2014, com 9,6 m³/s.
Leo Boi
Em Minas Gerais, centenas de municípios estão em situação inadequada em relação à segurança hídrica, incluindo a Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Em 2019, o Rio das Velhas, responsável por 70% do abastecimento de água de Belo Horizonte e por metade da Região Metropolitana, enfrentou uma das piores crises hídricas dos últimos tempos.
Bianca Aun
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Segundo especialistas, utilização da água na produção dos alimentos deve ter tecnologias mais avançadas.
fernando Piancastelli
O professor da Universidade de São Paulo (USP), José Galizia Tundisi, um dos maiores especialistas brasileiros em gerenciamento de recursos hídricos, explica as ameaças relacionadas à segurança hídrica. “Os riscos principais são as mudanças globais e a falta de água; contaminação e poluição que impedem abastecimento efetivo; incapacidade de ministrar água suficiente de boa qualidade para a população humana e para manter o funcionamento dos ecossistemas”, esclarece o professor que ajudou a solucionar crises hídricas em mais de 40 países – como Japão e Espanha – e acompanhou de perto a escassez de água no estado de São Paulo em 2014.
“O Rio das Velhas está sendo sacrificado desde que o Paraopeba, onde a Copasa fazia captação, foi devastado pelo rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, no ano de 2019. Essa situação traz uma insegurança hídrica muito grande. Além de BH, Nova Lima, Raposos, Sabará, Santa Luzia e Sete Lagoas têm uma dependência crítica do Rio das Velhas”, frisou o secretário do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas), Marcus Vinícius Polignano. As barragens de rejeito de mineração representam uma grande ameaça à segurança hídrica no Rio das Velhas. Pelo menos três estruturas com alto risco de rompimento têm como rota dos rejeitos a captação de água mais importante da RMBH, no Alto Rio das Velhas: o complexo de Forquilha (Ouro Preto), Vargem Grande (Itabirito) e B3/B4 (Macacos, Nova Lima). Vale ressaltar que o eventual rompimento de alguma barragem na região do Alto Rio das Velhas poderia levar a Grande BH a um colapso hídrico e comprometeria a qualidade da água de toda a bacia.
Em Macacos, muro em construção pela Vale é a última barreira para proteger moradores e o Rio das Velhas de um eventual rompimento de barragem.
O secretário do CBH Rio das Velhas também destaca que a ocupação desordenada com expansões imobiliárias e a falta de políticas públicas para a revitalização dos cursos d’água causam preocupação. “O número crescente de empreendimentos em curso e outros programados dentro da área do Sinclinal Moeda também podem afetar o futuro da segurança hídrica da RMBH”. O Sinclinal Moeda é um sistema montanhoso com grandes reservas de água subterrânea que começa ao sul de Belo Horizonte, na divisa com Nova Lima, e segue até Congonhas. No entanto, nem só de suas belezas naturais vive a região onde encontram-se condomínios de luxo, mineradoras, uma fábrica de refrigerantes e o projeto urbanístico CSul, que engloba 27 milhões de m² entre Nova Lima e Itabirito e que pretende atrair cerca de 145 mil moradores nos próximos 45 anos.
Ainda conforme o secretário do Comitê, além do problema de quantidade de água, o Velhas também sofre com problemas de qualidade, já que parte do esgoto da RMBH chega ao rio. Por segundo, o Rio das Velhas recebe cerca de 700 litros de esgoto não tratado apenas na RMBH. Reduzir esse volume e, consequentemente, a degradação da bacia é uma das reivindicações do CBH Rio das Velhas. “Ficamos preocupados com o futuro, não só do Rio das Velhas, como de todas as bacias hidrográficas pela falta de políticas públicas para a revitalização e preservação das bacias. Ao contrário disso, o que vemos são processos de licenciamento cada vez mais abundantes e acelerados, destruição de matas ciliares e áreas de proteção de recarga. Precisamos de uma gestão mais eficiente e de políticas públicas preocupadas com indicadores ambientais, como a qualidade e quantidade de água. Por isso, o nosso foco é mobilizar a sociedade, as entidades da sociedade civil e o Estado para garantirmos a condição hídrica e de vida do rio em Belo Horizonte, bem como nas demais 50 cidades que recebem suas águas”, acrescentou o secretário do CBH Rio das Velhas.
Ilustração: Clermont Cintra
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Saneamento
Prรณximo passo: tratamento terciรกrio do esgoto Texto: Luiza Baggio
Para melhorar a qualidade da água do Rio das Velhas é necessário implantar o tratamento terciário nas ETEs para retirar excesso de nutrientes e evitar a eutrofização Falar em tratamento de esgoto parece óbvio, mas o percentual de esgotos tratados vem crescendo no Brasil a passos lentos e o serviço ainda não chega a quase metade da população. Um importante passo para avançarmos na melhoria da qualidade dos rios é dar um fim ao acúmulo de esgoto em decomposição em função de altos índices de nutrientes como fósforo e nitrogênio. O processo pode ser feito por meio do tratamento terciário do esgoto que retira impurezas da água que, após tratada, volta para a Bacia. No entanto, esse tipo de tratamento ainda não é feito nas ETEs (Estações de Tratamento de Esgoto) da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), onde o Rio das Velhas recebe a sua maior carga poluidora. “A ausência de tratamento terciário faz com que com altas concentrações de nitrogênio e fósforo ainda sejam encontradas nos efluentes das ETEs, o que promove a eutrofização em regiões da bacia do Rio das Velhas mais distantes da RMBH, inclusive com recorrentes florações anuais de cianobactérias”, explicou o pesquisador do Projeto Manuelzão (UFMG), Carlos Bernardo Mascarenhas Alves, coordenador de campo do Projeto de Biomonitoramento financiado pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas).
Juvenal Caldeira
Aumento de nutrientes na água pode causar a eutrofização, que faz proliferar as plantas aquáticas e algas. Rio das Velhas em Nossa Senhora da Glória, distrito de Santo Hipólito, em Outubro de 2014.
Afinal, o que é o tratamento terciário? Os níveis do tratamento de esgotos são tradicionalmente caracterizados como preliminar, primário, secundário e terciário. O professor do departamento de Engenharia Ambiental da UFMG, Marcos Von Sperling, uma grande referência em estudos de saneamento no Brasil, explica cada uma das etapas do tratamento de esgoto. “O tratamento preliminar objetiva a remoção de sólidos grosseiros dos esgotos por meio de etapas bastante simplificadas. O tratamento primário remove sólidos em suspensão e uma porcentagem da carga orgânica. O secundário retira a matéria orgânica dissolvida e a em suspensão que não foi removida”. Sperling esclarece que a denominação de tratamento terciário é relativamente difusa, pois não caracteriza com precisão o objetivo do tratamento e os meios que serão empregados para tal. “Podemos entendê-lo como uma etapa de tratamento avançado, que pode ser utilizada com distintas finalidades. Neste tipo de tratamento podem ser empregados métodos biológicos ou físico-químicos para fazer a desinfecção da água e retirar o excesso de nutrientes, como nitrogênio e fósforo, organismos patogênicos e poluentes que não foram completamente removidos nas etapas anteriores”, esclareceu. Tratamento terciário no Rio das Velhas Em 2017, ao firmar o acordo do Programa ‘Revitaliza Rio das Velhas’ com o CBH Rio das Velhas, o então Diretor de Operações Metropolitanas da Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais), Rômulo Perilli, anunciou que o tratamento terciário nas ETEs dos Ribeirões Arrudas e Onça, em Belo Horizonte, estava na pauta de ações da companhia e que estudos para sua implantação estavam sendo realizados. No entanto, questionada novamente três anos depois, a Copasa informou por meio de nota que “para a implantação de um tratamento terciário na RMBH ainda há a necessidade de uma maior abrangência do tratamento de esgoto de Minas Gerais, o que requer uma avaliação mais profunda, não sendo neste momento objeto de estudo”. Marcos Von Sperling esclarece que a implementação do tratamento terciário aumenta os custos de implantação e operação de uma ETE, mas também traz benefícios. “É uma questão de relação custo-benefício. O tratamento terciário não deve ser utilizado indiscriminadamente, mas sim quando houver a real necessidade da remoção avançada de alguns dos poluentes a exemplo do fósforo e nitrogênio, quer em função dos requisitos de qualidade da água a ser mantida no corpo d´água receptor quer em uma eventual perspectiva de uso do efluente tratado (uso agrícola, urbano ou industrial).”
Eutrofização e mortandade de peixes As Estações de Tratamento de Esgoto devem monitorar a quantidade de matéria orgânica presente no efluente tratado antes de destiná-lo aos rios. Isso porque uma grande quantidade de matéria orgânica nos corpos d’água pode causar um processo chamado de eutrofização, causado pelo aumento de nutrientes. Esse processo gera o aumento das plantas aquáticas e das algas, chamadas de fitoplâncton por serem invisíveis a olho nu. “Na eutrofização há o crescimento desordenado desses microrganismos, o que pode diminuir a concentração de oxigênio nos rios quando respiram ou quando morrem, causando a morte de peixes. O aumento das algas e plantas no corpo hídrico irá reduzir penetração da luz do sol e a fotossíntese das algas durante o dia. Com isso, pode diminuir a quantidade de oxigênio disponível na água, dificultando a sobrevivência de peixes e outros seres vivos aquáticos”, esclareceu o pesquisador Carlos Bernardo Mascarenhas Alves. Entre 1999 e 2000, foi realizado o primeiro biomonitoramento na Bacia do Rio das Velhas e pôde-se observar os efeitos nocivos da poluição e da completa falta de tratamento de esgotos domésticos e industriais da RMBH sobre a fauna de peixes. “Os peixes serviram de bioindicadores da qualidade de água da bacia.
Em estudos subsequentes, entre 2006 e 2007, após a implantação da ETE Arrudas, e entre 2010 e 2011, da ETE Onça, foi possível verificar uma relativa melhoria da qualidade do ambiente, através do registro de maior número de espécies de peixes nos pontos mais afetados pela má qualidade de água a jusante da RMBH. Além das espécies resistentes, que já ocorriam, espécies sensíveis à poluição, bioindicadores de melhor qualidade, foram registradas, como por exemplo o matrinchã e espécies migradoras como curimatás e dourado. Os resultados obtidos através da útima etapa desenvolvida (2015-2016) permitiram detectar efeitos positivos na distribuição das espécies, se comparada aos resultados do primeiro estudo, porém com uma estabilização em níveis ainda abaixo do esperado para um rio saudável”, disse o coordenador do Projeto de Biomonitoramento, Carlos Bernardo Mascarenhas. Apesar da melhora, a eutrofização causa reflexos negativos a jusante da RMBH. “Mesmo havendo melhora, a RMBH ainda influencia negativamente a distribuição das espécies de peixe. Acreditamos que devem ser estimulados esforços para aumentar o volume de esgoto tratado, além de incorporar o tratamento terciário nas ETEs Arrudas e Onça. Só assim conseguiremos melhorar a qualidade da água do Rio das Velhas e reduzir o processo de eutrofização e mortandade de peixes”, finalizou Mascarenhas.
Marcelo Andrê
Fernando Piancastelli
Fernando Piancastelli
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Eutrofização pode diminuir a concentração de oxigênio nos rios, causando a mortandade de peixes. À esquerda: Lagoa da Pampulha (BH). À direita: mortandade de peixes recorrente anualmente no Rio das Velhas.
Você sabia? De acordo com o Plano Diretor de Recursos Hídricos (PDRH) da Bacia do Rio das Velhas, o tratamento terciário deveria ter sido implantado no ano de 2018 nas ETEs Arrudas e Onça. O PDRH também prevê que, até 2022, um total de 60% do esgoto da RMBH deverá contar com tratamento terciário e, até 2026, esse número deverá alcançar um total de 80%.
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Despejo de nutrientes via efluentes das ETEs
N2 P
P
N2
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Eutrofização: Aumento de plantas aquáticas e algas.
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Redução da quantidade de oxigênio disponível na água, dificultando a sobrevivência de peixes e outros seres vivos aquáticos
O
Ilustração: Clermont Cintra
2
4
Mortandade de peixes.
Olhares
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O debate sobre os rios urbanos de BH a partir do afeto Texto: Ennio Rodrigues Fotos: Bianca Aun e divulgação projeto Entre Rios e Ruas
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Saiba mais sobre o projeto em: instagram.com/entrerioseruas
O ritmo da modernidade tem nos levado a nos acostumar ao barulho dos carros e ao burburinho das ruas. O costume, a pressa, ou a velocidade do dia a dia faz com que a cidade desapareça e que nossa única relação com ela seja o deslocamento de um ponto a outro. Habitamos a cidade, mas ao mesmo tempo a desconhecemos. No começo deste ano, Belo Horizonte registrou níveis intensos de precipitações, que trouxeram alagamentos e tragédias. Os rios canalizados reivindicaram seus espaços e se fizeram sentir como elementos que não podem ser ignorados. Muitos belo-horizontinos se surpreenderam com a reivindicação das águas. Ao retornar para a capital mineira em 2006, a artista visual e professora do departamento de Artes Plásticas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Isabela Prado, também experimentou um estranhamento, mas de outra ordem. Incômodos que permitiram a criação do projeto “Entre rios e ruas”, em desenvolvimento desde então. No trabalho, Prado dá protagonismo aos rios que se fazem visíveis no meio do planejamento da cidade que se empenha em escondê-los, em apagá-los. Como desdobramento, Isabela Prado iniciou em 2018 o projeto “Sobre o Rio”, contemplado pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura daquele ano. A iniciativa buscou inserir placas de sinalização dos córregos canalizados da cidade, inspiradas nas placas de ruas e avenidas, começando pelo centro de Belo Horizonte.
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Obra da artista plástica Isabela Prado busca sensibilizar o indivíduo sobre a relação da cidade com os córregos.
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Entrevista
Córrego do Leitão como inspiração A artista plástica Thereza Portes, idealizadora do projeto “Nessa Rua Tem um Rio”, resgata o cuidado com vias públicas e estreita laços com a população Entrevista: Luiza Baggio
Projeto Nessa Rua Tem Um Rio
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Em canal aberto até meados dos anos de 1970, Córrego do Leitão dividia a rua Padre Belchior, no Centro de BH.
Muitos dos que transitam, trabalham ou moram no centro de Belo Horizonte desconhecem a existência de uma pequena casa na rua Padre Belchior, entre a avenida Augusto de Lima e a rua Curitiba. É a casa onde nasceu a artista plástica e professora da Escola Guignard, Thereza Portes, e que hoje serve como palco das atividades do Instituto Undió, ONG que há mais de 30 anos oferece oficinas de artes para crianças e adolescentes moradores de bairros da periferia e centro de BH. É a partir do imóvel que Thereza Portes – inspirada por sua mãe Júlia – resgata o cuidado e o interesse pela rua, estreitando laços com comerciantes, moradores e pedestres por meio de performances singulares. Muitos também não sabem que na rua Padre Belchior passa o córrego do Leitão, coberto na década de 1970 e hoje fonte de inspiração para intervenções artísticas do projeto “Nessa Rua Tem um Rio”, criado em 2006, pelo Instituto Undió. Uma das intervenções é um café comunitário promovido na calçada em frente à casa, oferecido gratuitamente para todos que passam pela rua. A iniciativa é resultado das lembranças da infância da artista plástica que herdou de sua mãe Júlia, educadora e artista plástica, o afeto pelo córrego do Leitão.
Quando contávamos aos nossos alunos que debaixo da casa do Undió passava o córrego do Leitão eles ficavam impressionados e queriam saber mais. “Como tinha rio se a gente não está vendo?” perguntavam. Aí contávamos que a casa do Instituto existe desde que o Córrego Leitão, que passa debaixo da Padre Belchior, era descoberto. O rio nasce no Santa Lúcia, desce a avenida Prudente de Morais, a rua São Paulo e deságua no rio Arrudas. A rua Padre Belchior foi considerada por um jornal a rua mais feia da capital mineira. É uma rua pequena com um comércio intenso com bazar, cinema pornô, paneleiro antigo, carroceiros filhos de carroceiros, que abasteciam o Mercado Central. Tem tráfico de drogas, pessoas transitando, famílias morando. A referência do jornal me incomodou muito. Assim, resolvemos retomar as antigas histórias da localidade por meio do projeto “Nessa Rua Tem Um Rio” – referência ao rio canalizado. Gosto de ressaltar que o projeto é interdisciplinar e convidamos artistas contemporâneos adeptos das intervenções urbanas a propor ações na rua Padre Belchior.
Como iniciou a sua relação com o córrego do Leitão?
Todos os trabalhos produzidos pelo projeto têm como referência o rio?
Nasci em uma das casas da rua Padre Belchior, construída nos anos 30 pelo meu avô. Minha mãe também passou sua infância nesta casa. Ali cresci vendo a mesa sempre posta, com a minha avó disposta a coar um cafezinho cada vez que aparecia visita. E eram muitas.
A temática do rio norteia o evento, mas os artistas são livres para abordarem outros temas. O projeto ocorre independentemente de qualquer coisa: bastam a rua, a vida e as pessoas. Não há formato fechado. É a vida na rua. A ideia consiste em convidar nossos alunos a conviver com propostas dos artistas.
Eu cresci com o canal do rio aberto. Quando eu tinha 10 anos começaram as obras de fechamento do canal do córrego do Leitão. Vivi intensamente a obra que era muito invasiva e me lembro até hoje do barulho que incomodava o meu sono e minha rotina. Assisti ao sepultamento do rio. Foi uma obra gigantesca e foi muito forte para a gente. Apagou a nossa memória do rio.
Nosso desejo é aproximar as pessoas nos centros urbanos, para compartilhar e escutar histórias. Como se fosse uma extensão da minha proposta de vida. Meu avô Geraldo era médico, trabalhava com saúde pública e sempre recebia em casa pessoas doentes ou em busca de informação. Para cada um que chegasse, minha avó tinha o costume de coar o café na hora. Essa era a forma como expressava seu agrado.
Lembro que quando era criança o córrego do Leitão dividia a rua Padre Belchior ao meio. Para passar para o outro lado tinha que ir até a Augusto de Lima para pegar uma pontezinha. O córrego dividia a turma de amigos, os do lado de cá e os do outro lado do rio. Quando o centro começou a se tornar um lugar muito agitado, nos mudamos para a região do [bairro] São Bento, onde por coincidência está a nascente do córrego do Leitão. O bairro era uma espécie de “fazenda” aos meus olhos e nós brincávamos com uma certa frequência na nascente do Leitão. Eu nadava na nascente do córrego, no São Bento. O projeto ‘Nessa Rua Tem um Rio’ é realizado desde 2006 na rua Padre Belchior, resgatando a memória do córrego do Leitão. Conte um pouco mais sobre a história e o objetivo do projeto. Minha mãe tinha o desejo de trabalhar com arte além do ateliê e, em 2002, fundamos o Instituto Undió, ofertando oficinas de arte para pessoas de baixa renda. Começamos a resgatar as memórias da nossa infância ao ocupar novamente o casarão da Padre Belchior, agora com as atividades do Instituto Undió, uma ONG voltada ao ensino de arte para crianças de baixa renda ou em situação de risco de diversas regiões de BH.
Nessa Rua Tem Um Rio é também o nome do livro que sua mãe Júlia Portes pretende lançar? Minha mãe escreveu várias histórias da sua infância e das enchentes. Para ela, as enchentes eram um momento de alegria. Todo mundo contava sobre os peixinhos que vinham do rio e tentavam sobreviver. Todas as lembranças da infância da minha mãe foram vividas na casa da rua Padre Belchior e têm relação com o rio. Pretendemos lançar um livro do projeto contando as histórias da minha mãe na abertura de cada capítulo. Saiba mais em institutoundio.org/nessa-rua-tem-um-rio
Ohana Padilha
Quais as memórias da sua infância relacionadas ao córrego do Leitão?
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Turismo
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Na garupa do rio Roteiro de bike une paisagens, tradição mineira e histórias da Estrada Real na companhia do Rio das Velhas Texto: Michelle Parron Fotos: Robson de Oliveira
Ribeirão da Prata, afluente do Velhas, em Raposos (MG)
Do caos do asfalto à poesia sonora das belas cachoeiras. Se descobrir a história dessas Minas Gerais é encontrar com a gente mesmo, imagine fazer isso contemplando paisagens naturais, percorrendo novos caminhos, passando por lugares bucólicos que parecem estar congelados pelo tempo e redescobrindo endereços já tão conhecidos. Sob duas rodas, com olhar atento, muita disposição e fôlego de conhecimento, um roteiro bem mineiro foi desenhado na companhia do Rio das Velhas. É ele quem vai conduzir toda a jornada pelo caminho das pedras preciosas. Um convite para olhar e preservar a vegetação, os animais e toda a biodiversidade da bacia hidrográfica. Assim nasceu o Pedalando na Estrada Real. Uma cicloviagem pela Estrada Real, no Alto Rio das Velhas, que surgiu da mente inquieta do turismólogo e guia turístico Helder Primo, após pedalar pelo Caminho de Santiago, na Espanha, e por Santa Catarina, no Vale Europeu. Primo sentiu na pele – e com muito suor – a melhor e mais sustentável maneira de fazer turismo: unir conhecimento e cultura em cima de uma bicicleta. Uma forma de preservar e valorizar o meio ambiente.
“Pedalar já é uma ação de preservação da natureza. Fazer um passeio de bike para conhecer o que restou da mata ciliar do Rio das Velhas e mostrar para o turista como é importante preservar a ‘nossa casa’”, conta o turismólogo Helder Primo.
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Ponto de partida é o Parque Municipal Américo Renné Giannetti, às margens do Ribeirão Arrudas, afluente do Velhas.
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Encontro do Rio das Velhas com Ribeirão Arrudas
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Encontro do Ribeirão Sabará e Rio das Velhas
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NOVA LIMA ETA Bela Fama
A viagem começa cedo… Partindo de Belo Horizonte, o primeiro encontro é no Parque Municipal Américo Renné Giannetti, o pulmão verde bem no centro da cidade. Dali, os aventureiros da cicloviagem partem com destino a Sabará, margeando o Ribeirão Arrudas, afluente do Rio das Velhas.
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Cachoeira do Samsa
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RIO ACIMA Estação Ferroviária
Cachoeira do Índio e do Viana
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Pelo antigo leito da Ferrovia de Sabarabuçu, que fica à direita do Velhas, a trilha segue até chegar ao primeiro destino do roteiro, o charmoso centro histórico da cidade. Entre casarões, igrejas e capelas setecentistas, o turista é convidado a caminhar pela cidade e se refrescar nos chafarizes. São vários espalhados pela cidade. E reza a lenda que ao beber água de um deles, o Chafariz do Kaquende, o visitante vai sempre voltar.
HONÓRIO BICALHO
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Rio das Velh as
Floresta Estadual do Uaimií
GLAURA SÃO BARTOLOMEU
Estação Ecológica do Tripuí
OURO PRETO
“Todo o passeio é acompanhado por um bikerguia, que é um guia de turismo credenciado pelo Ministério do Turismo. Esse profissional é qualificado para contar toda a história de Minas Gerais, desde o século XVIII”, explica Primo. Percurso margeia belos e históricos trechos no Rio das Velhas, como o antigo leito da Ferrovia de Sabarabuçu.
Parque Municipal das Andorinhas Nascente do Rio das Velhas.
Para terminar a cicloviagem na companhia do Rio das Velhas, a ilustre Ouro Preto encerra o roteiro. Alongamento para ir bem no pedal e uma alimentação bem feita vai dar a energia necessária para o caminho que traz uma subida generosa. Mas que também presenteia o turista, na sequência, a descer ladeira abaixo, pela Rodovia dos Inconfidentes, até o centro histórico da cidade. Chegando na antiga capital de Minas Gerais, é hora de se aprofundar nos mais de 300 anos de um passado de histórias do Brasil. Um passeio a pé pelas ladeiras íngremes, casarões coloniais, arquitetura barroca e religiosidade, a beleza e importância da cidade mostra porque é considerada pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) como Patrimônio Cultural da Humanidade.
Água fresca na garrafa, arquitetura do ciclo do ouro contemplada, hora de subir na “magrela” que a próxima parada fica só em Rio Acima, a 40 km dali. O percurso continua sendo pela Sabarabuçu, passando por Raposos e Honório Bicalho.
Encerrar a cicloviagem por Ouro Preto se torna ainda mais especial a medida em que a memória de todos os caminhos percorridos até alí vem à tona. A medida em que se lembra o quão rica é toda biodiversade que se apresentou ao longo das desafiantes e emociantes trilhas percorridas de bicicleta. A medida em que as ruínas e prédios antigos são parte da história do nosso povo, assim como as matas, algumas não tão preservadas, que pedem para que a gente olhe com mais carinho para o meio ambiente.
Chegando em Rio Acima, o fim do primeiro dia pede pés para o alto e descanso. Na cabeça, os pensamentos vão dando lugar às memórias e experiências vivenciadas durante toda pedalada. É só o começo!
É um turismo consciente, margeado e inspirado pelo Rio das Velhas, que conta para nós mesmos, por meio de uma diversidade de paisagens e cenários, a nossa história. E que a história de um rio é parte de tudo isso.
Rio Acima
O outro dia começa com um café da manhã reforçado e alongamento. A missão agora é São Bartolomeu, distrito de Ouro Preto. Pelo trajeto, que passa pela Floresta Estadual Uaimii, asfalto, trilhas, estradas de terra e quedas de cachoeiras mostram que a trilha do dia é bem diversa e exige disposição do turista. Em compensação, lugarzinhos inimagináveis vão se desvelando diante dos olhos do trilheiro.
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Trecho entre Rio Acima e Itabirito. Serra do Gandarela ao fundo
São Bartolomeu é uma preciosidade do século XVIII, que mantém uma das igrejas mais antigas e imponentes do estado. Os famosos doces caseiros que o distrito produz é um convite à parte para saborear o lugar que é repleto de belas cachoeiras. Para quem aprecia tomar um bom banho de rio, a dica é aproveitar para relaxar nas águas límpidas do Velhas. A última parte da viagem só continua no próximo dia.
Igreja de São Francisco, Ouro Preto
Ponte de ferro sobre o Rio das Velhas (Raposos)
Ciclistas fazem um descanso na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Raposos, considerada uma das três igrejas mais antigas de Minas.
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Programa Minas Recebe A cicloviagem pelo Rio das Velhas integra o Programa Minas Recebe, iniciativa da Secretaria de Estado de Cultura e Turismo (Secult). O programa oferece às empresas habilitadas diversas ações de apoio à comercialização de destinos nos mercados nacionais e internacionais. Entre os benefícios oferecidos, está a qualificação e capacitação dos agentes operadores, participação de reuniões técnicas para fortalecimento do setor, viagens de reconhecimento de produtos e destinos e a participação em feiras e eventos profissionais. Para saber mais detalhes sobre a ciclociagem (suspensa no momento em função da pandemia da COVID-19) visite o site www.primotur.com.br.
Um rio para chamar de meu
Michelle Parron
Unidades Territoriais
Texto: Ohana Padilha
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Lançamento de esgotos e ocupação irregular das margens são dois dos principais problemas que o Ribeirão Onça enfrenta.
Falar sobre o Ribeirão Onça é narrar a história de mais de um milhão de pessoas que vivem e convivem com ele. É lembrar das crianças que brincam nas poças de chuvas, dos avós que águam suas pequenas hortas e ouvir histórias sobre os antigos que lavavam suas roupas no rio que passava, logo ali, grande e forte. “Eu não me vejo como ribeirinha [mesmo morando no entorno do Vilarinho] porque o rio é invisível e tampado. Quando eu era pequena, o Vilarinho não era todo coberto e a única memória que eu tenho é das enchentes. Minha mãe, certa vez, me contou que quando era criança lavou roupa numa mina que vai para o Vilarinho e ela lembra que, quando tinha enchente, as pessoas sofriam com aquilo”, conta Sabrina Celeste, moradora do entorno do curso d’água. O relato demonstra que viver em uma cidade com os rios escondidos e as nascentes soterradas nos desconecta da natureza. Isso porque a paisagem urbana tatuada por asfalto e grandes prédios não nos deixa ver as sutilezas da folha que cai e nem da água que escorre. Com o rio escondido, tampado e, como dito pela moradora, invisível, não permite que nos vejamos como ribeirinhos. Ninguém sabe ao certo porque o Ribeirão tem o nome de Onça. Uns dizem que foi por causa de um ‘senhor bravo que nem uma onça’ que vivia às margens do rio. Outros dizem que foi por causa das onças pintadas que habitavam os arredores. Há até quem diga que foi por causa da antiga unidade de medida, que pesava o ouro extraído no ribeirão. O fato é que as onças pintadas já não habitam mais a região e nem se encontra mais ouro no ribeirão. Hoje, as construções e ocupações colocaram o curso d´água em uma nova paisagem. “As belezas do Onça começam nas nascentes em Contagem, e no Parque Fernão Dias, um espaço bem interessante para o turismo e que vem sendo recuperado. Tem a Avenida Sarandi, que em suas laterais possuem áreas verdes, e a Praça do Sol, que é um parque aberto e linear”, conta Eric Machado, fiscal ambiental da prefeitura de Contagem, historiador e coordenador do Subcomitê Ribeirão Onça, vinculado ao Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas). É em Contagem que surgem as primeiras nascentes que formam o Ribeirão Onça, as quais vão formando os córregos Sarandi e o Bom Jesus. Navegando para o município de Belo Horizonte outros córregos se juntam, formando o Ribeirão Pampulha, onde as águas são represadas no lago artificial da Pampulha.
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A Lagoa da Pampulha O Conjunto Arquitetônico da Pampulha foi construído na década de 1940, pelo então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek. O local foi declarado pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) como Patrimônio da Humanidade e é um verdadeiro ponto de encontro para moradores e visitantes da cidade. À época de sua construção, a Lagoa da Pampulha tinha o objetivo de amenizar as enchentes na região, aumentar o abastecimento de água, além de ser um lugar para recreação, natação e canoagem. A estética do lugar conta com a talentosa arquitetura de Oscar Niemeyer, com o paisagismo de Burle Marx e pintura de Cândido Portinari. “Descendo para a Pampulha que é um patrimônio cultural da humanidade e com todo o seu complexo com a parte verde, o curso d’água vai passando para a sua parte mais baixa, chegando na ETE [Estação de Tratamento de Esgoto] Ribeirão Onça, no Quilombo Mangueiras, no bairro Ribeiro de Abreu, até as cachoeiras”, completou Eric.
Bianca Aun
Depois da Lagoa da Pampulha, o curso d’água continua a receber muitos outros afluentes e vai seguindo seu caminho. Próximo à estação do metrô Primeiro de Maio, na Avenida Cristiano Machado, o curso d’água se encontra com o córrego Primeiro de Maio e, nas redondezas da estação do São Gabriel, com o córrego Cachoeirinha, quando então passa a se chamar Ribeirão Onça. Cartão postal da cidade, Lagoa da Pampulha integra a Bacia do Ribeirão Onça.
Ilustração: Clermont Cintra
Ohana Padilha
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Até este ponto o curso d´água está quase todo tampado, mas a partir daí segue em canal aberto margeando a Via 240, recebendo os córregos Nossa Senhora da Piedade, Saramenha e outros. Ao longo da rodovia MG-020, após a cachoeira do Novo Aarão Reis, preservado em seu leito natural, recebe os córregos Isidoro e seus afluentes: Baleares, Vilarinho, Nado, Serra Verde, Bacuraus, Embira, Tamboril, Terra Vermelha e Floresta. Seguindo seu rumo, vai então ao encontro do Rio das Velhas no município de Santa Luzia.
Parte do Conjunto Arquitetônico da Pampulha, Casa do Baile conta com tombamento em esfera federal, estadual e municipal.
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LEGENDA Lagoa da Pampulha Rios e Córregos UTE Ribeirão Onça Belo Horizonte Contagem
A construção do Parque Ciliar do Onça é uma demanda da comunidade local e da sociedade civil organizada – como o Conselho Comunitário Unidos pelo Ribeiro de Abreu (Comupra) e o movimento ‘Deixem o Onça Beber Água Limpa’ – à prefeitura de Belo Horizonte. O parque estava previsto para ser realizado ao longo de 2016, mas até hoje os moradores aguardam a viabilização da demanda. Enquanto isso, a comunidade vem fazendo a sua parte: organizando debates, oficinas, mutirões e outros eventos sociais para planejar, construir e ocupar o espaço destinado ao parque.
Demanda antiga da comunidade, Parque Ciliar do Onça até hoje não saiu do papel.
De acordo com Carla Wstane, novos estudos da macrodrenagem da Bacia do Ribeirão Onça apontam que a mancha de inundação das áreas que seriam do parque se ampliou, o que obrigará a prefeitura de Belo Horizonte a investir mais na realocação das populações.
Michelle Parron
Falar sobre o Ribeirão Onça também é destacar sua beleza em forma de nascentes. Existem inúmeras minas d’água nas cidades, as quais não enxergamos por conta de toda a dinâmica urbana há anos em vigor. “A área urbana possui lindas nascentes com minas de diferentes formas, de perspectivas pontuais e difusas e de grandes brejos. São áreas lindas que podem ser trabalhadas para um turismo produtivo e interessante para crianças e adolescentes que não conhecem a área ambiental”, explica Eric Machado. Devido à importância das nascentes urbanas, nos últimos anos o CBH Rio das Velhas investiu recursos para a catalogação e valorização dos olhos d’água encontrados no meio urbano. Até hoje, somente na Bacia do Ribeirão Onça já foram investidos mais de R$ 2 milhões em projetos voltados para as nascentes urbanas.
49 Ohana Padilha
Parque Ciliar do Onça
Uma coletânea de problemas Segundo o Plano Diretor de Recursos Hídricos (PDRH) do CBH Rio das Velhas, os principais agentes de degradação das águas superficiais do Ribeirão Onça são o lançamento de esgotos domésticos e os efluentes industriais. No que se refere aos efluentes, o Ribeirão Onça possui seis ETEs em operação, com índice de tratamento de 73% - superior à média da Bacia do Rio das Velhas como um todo. Entretanto, o grande adensamento populacional, aliado às inúmeras indústrias, geram uma alta carga poluidora. Segundo Eric Machado, o desafio mais óbvio do território do Onça e que está bem diante da nossa realidade é a questão do esgotamento sanitário. “Por ser uma área extremamente urbana, o lançamento e tratamento desse esgoto têm sido um problema histórico e com grandes dificuldades de resolução. Um choque eterno entre Copasa [Companhia de Saneamento de Minas Gerais], estado e a comunidade”.
Passarela atravessa o Onça no bairro Ribeiro de Abreu, região Nordeste da capital.
Bianca Aun
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Ele destaca ainda que Belo Horizonte e Contagem já possuem Planos Municipais de Saneamento Básico, mas que a implementação deste instrumento é que é o grande gargalo. “A realização do tratamento está muito ligada à gestão dos municípios e também à Copasa, e falar disso é tocar numa ferida. O que é apresentado [pela Copasa] como rede implementada para o esgoto recolhido e tratado é o que eu acho que é o maior choque existente hoje na questão do saneamento na Bacia do Ribeirão Onça. Essa diferença brutal entre o que é falado, o que tem de rede instalada, para aquilo que é recolhido e tratado é que tem que diminuir”.
A Bacia Hidrográfica do Ribeirão Onça compreende quatro estações de amostragem de qualidade das águas operadas pelo Instituto Mineiro das Águas (IGAM) localizadas no Rio das Velhas, Ribeirão Isidoro e Ribeirão Onça (uma antes e outra após a ETE Onça). As águas das estações são enquadradas como de Classe 3, a segunda pior numa classificação entre cinco diferentes níveis. A ocupação irregular do território começou a partir de 1960 com a implantação do parque industrial em Contagem, que contribuiu ativamente para a degradação dos córregos afluentes. O parque industrial, com suas inúmeras empresas de setores automobilístico, alimentício e têxtil, é uma grande fonte de desenvolvimento econômico para os municípios de Belo Horizonte e Contagem, mas não deixa de impactar a região. Para Eric Machado, a ocupação desordenada no território não deve ser atribuída somente à população de baixa renda. “Falo também de ocupações regulares de todo o tipo e também da classe média alta, que ocupa as APPs [Áreas de Preservação Permanente] dos córregos e das nascentes, dificultando toda a questão de permeabilidade e qualidade ambiental e da água”, ressaltou. Aliado à ocupação desordenada do território, à canalização dos cursos d’água e à impermeabilização do solo, há sempre o risco de transbordamento dos córregos na regional de Venda Nova durante a época das chuvas, que conta com 20 pontos de inundação. A Avenida Vilarinho, que abriga o córrego de mesmo nome, ganha espaço nas manchetes dos jornais no período chuvoso, já que é uma das principais áreas de inundação histórica da cidade. “Fico preocupada com as enchentes e vejo que é um problema ambiental e da organização urbana da cidade. A menina que faleceu na Avenida 12 de Outubro [em decorrência das inundações, ao final de 2018] era da minha comunidade, e quando vejo vidas se perdendo e prejuízos na natureza me causa uma indignação”, destacou Celeste, moradora no entorno do Vilarinho.
Nem muita gente conhece, mas o Onça conta com uma bela cachoeira, no bairro Novo Aarão Reis, a aproximadamente 10km da Praça Sete, em BH.
“Perto de muita água tudo é mais feliz” A célebre frase do escritor mineiro Guimarães Rosa reflete sobre como a água é essencial para nossa vida, para nossa existência e até para a nossa felicidade. Nesse sentido, é válido ressaltar que em meio desse mais de um milhão de pessoas que vivem do e no Ribeirão Onça, e que dependem dele de alguma forma para viver, existem muitas pessoas lutando e sonhando para recuperar a água de qualidade do curso d’água. É o caso do Subcomitê do Ribeirão Onça, vinculado ao CBH Rio das Velhas, que conta com diversos atores sociais que têm um objetivo comum: ver o Ribeirão Onça cheio de vida. Assim, de forma coletiva e participativa, o Subcomitê discute maneiras de compatibilizar o equilíbrio ecológico com o desenvolvimento econômico e socioambiental do território. Para Eric Machado, coordenador-geral do Subcomitê Ribeirão Onça, a mobilização é fundamental para a aventura que é recuperar o curso d’água. “Sem a comunidade, sem o mobilizador e sem os conselheiros com seus conhecimentos de território e de demandas, não conseguimos caminhar. Aquele que realmente conhece o território nos ajuda a transformar os sonhos e vontades em realidade”. Revitalizar, transformar e recriar o Ribeirão Onça com certeza não é e não será uma tarefa fácil, mas há muitas pessoas que chamam esse rio de seu.
Ohana Padilha
Ohana Padilha
Eric Machado coordena o Subcomitê Ribeirão Onça há três anos.
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Personagens
Narradores da natureza Histórias de ribeirinhos e do Rio das Velhas se transformam em podcasts Texto: Michelle Parron
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Histórias como a de Majô Zeferino integram o Narrar é Resistir, projeto online de narrativas de ribeirinhos.
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“Era bonito aquele vulcãozinho soltando água em qualquer beiradinha de muro”. É assim que a Maria José Zeferino Vieira, a Majô, olha para uma nascente. Moradora próxima às margens do córrego Nossa Senhora da Piedade, no bairro Guarani, em Belo Horizonte, ela traz um olhar terno de uma mulher que dedicou a vida a ensinar, que passou 30 anos atuando como educadora a despertar o olhar das crianças para ver o quanto esse mundo à nossa volta nos ensina, para a natureza em cada cantinho e porque os rios, as árvores, os animais, as nascentes e a terra em que pisamos são partes de nós. Uma pessoa que, com alguns professores da Escola Municipal Hélio Pellegrino, foi além dos muros da escola, percorreu as ruas do próprio bairro e mostrou para as crianças que o quintal da casa delas também é uma sala de aula. Majô apoiou a ida dos alunos até para a Argentina, mas foi com ela e outros professores que eles descobriram que, pertinho de casa, um córrego poluído precisava de cuidado e atenção. A desconfiança de que os problemas de saúde das crianças estavam ligados à poluição do córrego fez Majô mover os alunos nessa missão de recuperar e preservar o córrego. No final dos anos 1990 ela ajudou a formar um grupo de 50 crianças que era chamado de “Amigos do Córrego”. Esse trabalho promovia atividades como visitas aos cursos d’água, ações de preservação e identificação de nascentes. Os vulcãozinhos das nascentes são parte da vida da Majô, assim como o córrego que ela estava tentando salvar com a ajuda dos alunos. Majô lembra com saudosismo dos tempos em que brincava e nadava na água, que já foi limpa. De quando ela tinha que atravessar o rio para ver os amigos e estudar na escola que ficava do outro lado da margem. Longe das salas de aula, hoje ela continua a lutar pela preservação do meio ambiente como mobilizadora social do Ribeirão Onça, Subcomitê que atua no território da capital mineira e que faz parte do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas. Ela também luta pela preservação ambiental com a sua história, que é uma forma de valorizar o passado, resistir no presente e olhar com determinação para o futuro que ela deseja para o seu córrego, para o seu bairro, para o Ribeirão Onça e para o Rio das Velhas.
Continue a ouvir a história da Majô em “Nossa Sehora da Piedade”: spoti.fi/3iXAfOe
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Esse meio ambiente que encontra na educação seu lugar de respiro e esperança também é parte da vida da Cláudia Andrade de Barros. Ela conta que sua relação com a natureza começou quando ainda era criança e via a preocupação da sua mãe e de seu pai com os recursos naturais. Mas foi na adolescência que Cláudia percebeu que cuidar do meio ambiente era uma necessidade. “Aos 15 anos, quando o professor de biologia levou a minha turma para a beira da Lagoa da Pampulha e explicou que lá estava sendo iniciado um processo de assoreamento devido ao despejo de esgoto, percebi o quanto devíamos cuidar uns dos outros e da nossa mãe terra”. Desde então, a educadora não parou mais. Hoje ela está na linha de frente de proteção da Matinha, uma área permeável de mata nativa a montante do córrego Vilarinho, estratégica na redução dos impactos da chuva. Estratégica porque o córrego Vilarinho, que corta a região de Venda Nova, em Belo Horizonte, na Bacia do Ribeirão Onça, está quase todo canalizado. Volta e meia a região é atingida por fortes inundações e a Matinha ajuda a absorver parte da água. Também funciona como um corredor ecológico, proporcionando a reprodução de pássaros, exercendo o papel de área de preservação da fauna e da flora na região. Além de atuar na proteção da Matinha, Cláudia montou uma biblioteca para estimular o conhecimento e a preservação ambiental. “É na biblioteca que eu mostro para os frequentadores a relação e interação do meio ambiente com o nosso bem-estar. Muitos destroem ou tratam mal a natureza por não se colocarem no lugar dela. Quando eu falo que a flora e a fauna são seres vivos que sentem, adoecem e morrem, assim como o ser humano, vejo o brilho no olhar do público como que se estivessem despertando para a relevância que eles têm no meio em que vivem. A mudança de pequenos atos no seu dia a dia faz muita diferença para o meio ambiente”, conta.
Continue a ouvir a história da Cláudia em Venda Nova: spoti.fi/302eSnA
Córrego Vilarinho, Venda Nova (Belo Horizonte)
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Educadora Cláudia Andrade está na linha de frente da proteção da Matinha, área permeável a montante do córrego Vilarinho.
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Espaço Ambiental Matinha
Bianca Aun
O projeto nos leva a trilhar os caminhos, cenários e pessoas que moram no território da bacia do rio das Velhas, através da fala e da vivência de ribeirinhos que se transformam em exemplos nos lugares onde moram, promovendo e estimulando a mudança. Para além de contar histórias, Narrar é Resistir se tornou uma ferramenta de mobilização e educação ambiental do coletivo Orla. Um trabalho que sempre foi feito presencialmente na comunidade, batendo na porta das casas das pessoas, produzindo eventos, agora ultrapassa as fronteiras da região de Venda Nova através das histórias gravadas. “A narrativa é essa forma milenar de resistência que faz com que as histórias se mantenham, que a cultura se mantenha. Tem o poder de resgatar essas memórias individuais, coletivas e de afirmar o pertencimento”, explica Clarice Flores, estudante de arquitetura, moradora da microbacia do Córrego do Capão e uma das idealizadoras do projeto. Clarice também é ribeirinha e percorre um caminho de envolvimento com as causas ambientais. Narrar é Resistir é o resultado da ressignificação da sua própria história com as águas. De como ela passou a olhar de outra forma para o córrego do Capão, curso d’água que fez parte da sua infância, mas que foi negado por Clarice até que ela entendesse a importância daquela água que corria perto dela. “Desde criança eu atravessava a pontinha de madeira que passava pelo córrego do Capão, um afluente do córrego Vilarinho. A presença do córrego em leito aberto muito perto da minha casa me incomodava muito. A degradação muito aparente, mau cheiro, o aparecimento de animais em casa, tudo isso me fez viver um processo longo de negação daquele lugar. Eu não me senti pertencente ao meu bairro muito por causa do rio que fedia e me dava vergonha. Foi só quando mais velha, aos 20 anos, que fui entrar na faculdade e comecei a estudar os rios urbanos. Foi aí que eu entendi a situação toda da relação dos rios em Belo Horizonte”.
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Moradora da microbacia do Córrego do Capão, Clarice Flores é uma das idealizadoras do projeto.
As histórias da Majô e da Cláudia são parte das narrativas daqueles que querem e lutam por uma cidade melhor. Uma cidade que respeita e preserva os seus rios. Elas são personagens do Narrar é Resistir, projeto online de narrativas de ribeirinhos criado pelo coletivo Orla, que reúne o Núcleo do Capão, o Espaço Cultural da Orla e a Associação Habitacional do Bairro Lagoa. Juntos eles atuam nas causas sociais e ambientais da região de Venda Nova, em Belo Horizonte. Narrar é Resistir usa a narrativa como ferramenta de luta ambiental. Suas histórias, contadas por diferentes pessoas, valorizaram a relação com espaço ocupado nas cidades e com rios sufocados por baixo do asfalto ou que lutam por sobrevivência a céu aberto. Para Cláudia é uma forma de perpetuação da história de uma comunidade. “Ao compartilhar a minha história eu mostro ao outro que ele também pode mudar a história onde ele vive. Todos temos potencial para fazer a diferença, lutando pela melhoria de vida dos seres vivos. Narrar é uma forma de resistência.”
Bianca Aun
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Bianca Aun
Córrego do Capão nasce no bairro Céu Azul e percorre os bairros Lagoa, Piratininga e Lagoinha, desaguando no Córrego Vilarinho, que foi transformado em avenida sanitária na década de 1970.
Vinícius Daidone
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Projeto impactou também Letícia Deidone, de São Paulo, que se descobriu moradora da Bacia do Alto Tietê.
O olhar desperto da Clarice, que passou a entender que vivemos em meio aos rios, mesmo em uma cidade intensamente urbanizada e asfaltada como Belo Horizonte, se cruzou com quem ainda não havia visto sua própria cidade com a lente das águas. Durante a fase de criação do Narrar é Resistir, o coletivo Orla contou com a ajuda de profissionais dos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, pessoas de outras bacias, de outras realidades. Isso aconteceu por meio de um edital promovido pelo Instituto Procomum e Silo – Arte e latitude rural, que buscavam projetos com soluções para os impactos causados pela pandemia. Narrar é Resistir foi uma das 16 propostas vencedoras das 235 concorrentes inscritas do mundo todo. Como prêmio, o Orla recebeu a ajuda da equipe técnica de voluntários do Laboratório de Emergência Covid–19 Reconfigurando o Futuro para criação do site do projeto e apoio na produção dos podcasts. Foi nesse momento que os ribeirinhos do Orla entraram em contato com outras pessoas que trouxeram suas ideias e foram impactadas pela proposta do projeto. Uma das provocações feita pela própria Clarice aos voluntários foi o pedido para que eles se apresentassem no site, enquanto equipe, dizendo de qual bacia eles faziam parte. Um delas é a Letícia Deidone que descobriu, na provocação da Clarice, que era moradora da Bacia do Alto Tietê, em São Paulo. E nesse mergulho pelas águas do entorno, Letícia também descobriu que vive ao lado do Córrego Sumaré, hoje “invisível” para dar lugar à avenida Sumaré, que passa seu asfalto por cima dele. “Eu nunca tinha parado para pensar sobre isso. Estudei gestão pública, mas os estudos sobre as bacias hidrográficas nunca fizeram parte do meu repertório. Fui pesquisar e descobri que boa parte do território da cidade de São Paulo está na Bacia do Alto Tietê. Eu sempre imaginei que a Avenida Sumaré, que passa perto da minha casa, fosse uma área de rio, mas nunca tinha buscado pensar mais a fundo. Foi então que descobri que realmente era uma área que passava um rio e que antes era praticamente um bosque. Acho que eu nunca tinha olhado para as águas como referência. Foi bem interessante mudar esse olhar do nome do bairro para o nome da bacia”, conta. Assim como a Bacia do Alto Tietê, que está na maior cidade do país, enfrenta suas dificuldades, esconde as suas riquezas e é o lar de muitos ribeirinhos, a Bacia do Rio das Velhas também está repleta de diversidade. Saindo do Alto, passando pelo Médio e chegando no Baixo Velhas, são muitos cenários, paisagens e histórias de lutas e resistências. Em Belo Horizonte, por exemplo, que é de onde o projeto Narrar é Resistir se inicia, as pessoas se relacionam com a água de uma forma diferente das que estão no Baixo Velhas, que tem cidades menores e mais gente vivendo na zona rural. “A gente começou pelo lugar de onde a gente saiu. Começamos pela zona norte de Belo Horizonte com narrativas de ribeirinhos urbanos. Estamos passando pelo Ribeirão Onça, depois vamos para o Arrudas e seguiremos pelo caminho que as narrativas vão nos levar”, conta Clarice. Que o Narrar é Resistir nos leve a navegar por muitos desses rios, a bordo das memórias dos narradores da natureza.
Notícia do jornal Estado de São Paulo de 25 de janeiro de 1945
Saiba mais sobre o projeto em “Porque Narrar”: spoti.fi/2RRYwct
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A Revista Velhas semestralmente homenageia um artista gråfico em suas contracapas. Nesta edição: Binho Barreto e um Rio das Velhas de todo mundo.