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A Resistência da Mulher Indigí nena no Brasil

A resistência da mulher Indígena no Brasil

Na língua Karajá “hawyy”, “jonso” no idioma Karitiána e “itão” no Kuikúru. Todos os termos supracitados, escritos em diferentes idiomas indígenas, possuem o mesmo significado: mulher. É de conhecimento geral que tais indivíduos foram subjugados e negligenciados durante séculos na história mundial, tendo, dessa forma, de lutar para conquistar seu espaço na vida social, econômica e política. Assim, foram formados movimentos cujos propósitos giravam em torno da emancipação feminina, visando a um mundo mais igualitário. No entanto, o feminismo vem sofrendo uma fase de estagnação, visto que sua estrutura atual representa, em sua maioria, apenas um ponto de vista que não reflete as experiências de diferentes mulheres, tais como as indígenas. A principal problemática desse movimento é que, desde sua origem, ele visou a suprir apenas as necessidades da população feminina branca, ou seja, não levava em conta que, além das estruturas patriarcais, existem outras ferramentas de opressão, tais quais raça ou etnia, classe social etc. Isso pode ser visto na fala da poeta e escritora boliviana - de etnia Aymara - Julieta Paredes Carvajal:

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"O feminismo é fundamentalmente eurocêntrico. (...) Quer dizer, somos feministas, mas feministas comunitárias porque a nossa luta não teve início na Revolução Francesa. Lutamos contra um patriarcado colonizador desde quando os espanhóis e portugueses invadiram o nosso território. Não estamos fazendo competição com as feministas, estamos colocando nossa proposta como mulheres indígenas que lutam contra o machismo dentro do universo indígena, mas também desde as invasões territoriais.”

Dessa forma, é perceptível que minorias étnicas são, muitas vezes, excluídas de tais movimentos, tendo de enfrentar ainda mais desafios em suas lutas por reconhecimento. No Brasil, essa situação é observada quanto às mulheres indígenas, as quais além de terem de enfrentar a misoginia, têm seu contexto agravado pelo racismo estrutural, moldado desde a colonização. Assim, a figura feminina autóctone é subjugada à posição de objeto a ser conquistado pelo homem branco, o que a torna ainda mais suscetível a abusos tanto domésticos quanto sexuais. Desse modo, crimes como o homicídio da jovem kaingang Daiane Griá Sales, noticiado pelo jornal Sul 21, em agosto de 2021, a qual foi encontrada nua com o corpo dilacerado, descaram a realidade lamentável das jovens nativo-brasileiras. A nota da Articulação

A resistência da mulher Indígena no Brasil

Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) denuncia essa barbárie:

“Temos visto dia após dia o assassinato de indígenas. Mas, parece que não é suficiente matar. O requinte de crueldade é o que dilacera nossa alma, assim como literalmente dilaceraram o jovem corpo de Daiane, de apenas 14 anos. Esquartejam corpos jovens, de mulheres, de povos. Entendemos que os conjuntos de violência cometida a nós, mulheres indígenas, desde a invasão do Brasil é uma fria tentativa de nos exterminar, com crimes hediondos que sangram nossa alma. A desumanidade exposta em corpos femininos indígenas precisa parar!”.

Mesmo diante de tal violação aos direitos da mulher indígena, a violência em suas comunidades permanece invisível, visto que há uma ausência gritante de políticas públicas que assegurem-lhe uma vivência digna. Consoante, pode ser ressaltado que tal brutalidade permanece impregnada no imaginário popular, perpetuando a hostilidade e a discriminação para com o grupo supracitado.

Tal perspectiva pode ser contemplada na obra de Gilberto Freyre “Casa Grande e Senzala”, que explicita o processo de colonização brasileira na qual se encontra a origem das agressões praticadas às índias. Com a chegada dos portugueses, a escassez de mulheres brancas, juntamente ao misticismo sexual envolvendo as indígenas, levou ao seu abuso e condicionamento de sua figura como submissa e erotizada. Além disso, eram vistas pelos colonizadores como inferiores à mulher branca, os quais as contemplavam apenas como objeto sexual. Sob essa ótica, o trecho seguinte, pertencente ao livro, explicita esse agravo:

“A escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternização entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos. Sem deixarem de ser relações - as dos brancos com as mulheres de cor - de "superiores" com "inferiores" e, no maior número de casos, de senhores desabusados e sádicos com escravas passivas, ado-çaram-se, entretanto, com a necessidade experimentada por muitos colonos de constituírem família dentro dessas circunstâncias e sobre essa base” (pág. 46).

Diante desse histórico de violação contínua, é deplorável apontar a situação, não só de violência doméstica e sexual, mas também de discriminação, racismo e exclusão dentro e fora das aldeias a qual são expostas essas mulhe-

A resistência da mulher Indígena no Brasil

res. De acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), uma a cada três indígenas já foram estupradas, o que, em adição ao difícil acesso ao sistema de justiça, corrobora para o contexto de vulnerabilidade social no qual elas se encontram. Dessa forma, casos como o de Daiane são frequentes na realidade nativo-brasileira: segundo um grupo que trabalhou por muitos anos na região, porém pediu para não ser identificado, crianças e jovens indígenas que vivem na região convivem com casos de estupro, raptos, encarceramentos e outras situações de violência com crianças, adolescentes e jovens sem a proteção necessária perante essa conjuntura. Outrossim, conforme o explicitado pelos dados agregados pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, entre 2007 e 2017 foram registradas mais de 8000 notificações de casos de violência contra mulheres indígenas, sendo que em dois terços delas o agressor era uma pessoa não próxima da vítima. Não obstante essa gritante exemplificação de injustiça, esse problema ainda pode ser considerado invisível, visto que as nativas além de terem difícil acesso ao sistema de justiça, não estão presentes, em sua maioria, nos espaços públicos e cargos de poder. Além dos motivos que dificultam a denúncia de toda mulher que sofre violência, como medo, vergonha e falta de acolhimento, as indígenas ainda tendem a enfrentar a desinformação sobre seus direitos, grandes distâncias de centros políticos, sem contar com as barreiras do idioma, um dos principais obstáculos que as afetam. Em 2017, a

Comissão Interamericana de Direitos

Humanos informou que a falta de intérpretes e tradutores que as auxiliem no atendimento jurídico é um dos principais óbices enfrentados por essa parcela populacional. Analogamente, nos últimos anos, a ONU mulheres ressaltou a importância da participação das indígenas na esfera política, auxiliando e fortalecendo sua atuação no cenário nacional, por intermédio de projetos 22

Manoela L. Guahyba Maria A. Orlandini

como o "Voz das Mulheres Indígenas", o qual reuniu tais indivíduos e incentivou a tomada de decisões tanto dentro quanto fora de suas comunidades, garantindo um maior espaço na política. Por conseguinte, é notável a resistência da mulher indígena, em meio a tantos agravos não só à sua etnia, mas também a seu corpo e, principalmente, sua identidade. Essa presença foi marcante em 2019, no Acampamento de Terra Livre (ATL), quando mais de 500 nativas de diversas regiões do país marcharam ao lado dos homens na Esplanada dos Ministérios. No ATL, foi criada a 1° Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, realizada em agosto do mesmo ano. As mulheres indígenas estão lutando de diversas formas pela demarcação de seus territórios, contra a violência estrutural e, fundamentalmente, pela manutenção dos valores e direitos de seus povos. Dessa forma, é notável que sua resistência continua desempenhando um papel de suma importância através dos diversos movimentos existentes, tais como o projeto da ONU Mulheres, Voz das Mulheres Indígenas, juntamente à participação de personalidades indígenas relevantes à resistência. Portanto, pode-se concluir que esses atos de protagonismo são essenciais para o país tupiniquim, mantendo viva a cultura nativa.

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