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AS MUITAS HISTÓRIAS NA RODOVIÁRIA

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SABER ANCESTRAL

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Mais de 50 anos após a criação, Brasília ainda recebe diariamente migrantes em busca de sonhos; entre as muitas vindas, sobram idas de quem deixou de ver a Capital como sinônimo de esperança

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GABRIEL CORNÉLIO

Todos os dias é um vai-e-vem, a vida se repete na estação, tem gente que chega pra ficar, tem gente que vai pra nunca mais”. A canção Encontros e Despedidas, de Milton Nascimento, retrata uma realidade que é vivenciada na Rodoviária Interestadual de Brasília, onde mais de mil pessoas enfrentam, diariamente, as idas e vindas da vida. De mais de cem localidades diferentes, jacys, josés, marias e rosanas, entre tantos outros, trazem e levam histórias distintas, repletas e vazias de expectativa e esperança. O técnico em enferm a g e m desempregado Jacy S i q u e i r a , 45 anos, ruma para Pernambuco, após ter perdido o emprego. O aposentado José Araújo da Silva, 65, vai visitar a família na Paraíba, enquanto Maria Creusa Vieira dos Santos, 45, do Ceará, retorna à cidade que a acolheu por 16 anos para visitar a irmã. Já a professora Rosana Farias de Queiroz, 23, desembarca na Capital Federal em busca de um emprego melhor e da possibilidade de continuar os estudos.

Conhecida como “Capital da Esperança”, Brasília sempre contou com um grande número de migrantes, inicialmente vindos para a construção da cidade e, posteriormente, para integrarem os demais setores de uma localidade em pleno desenvolvimento. Segundo a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios do Distrito Federal (PDAD-DF) de 2015, mais de 51% dos habitantes do Distrito Federal são migrantes, e apenas 0,5% vieram de outro país. Ou seja, mais de metade da população do DF vem de outras unidades da federação. Nos discursos de quem chega na principal estação de Brasília, é comum ouvir que a beleza da capital provoca em quem vem de fora a sensação de esperança por uma realidade melhor.

Para o professor de geografia da Universidade de Brasília (UnB) Fernando Luiz Araújo Sobrinho, as migrações internas no Brasil estão muito ligadas à procura por melhores condições de empregabilidade. “No Brasil é bem evidente a diferença de desenvolvimento das regiões Sul, Sudeste e, mais recentemente, Centro-Oeste. Há um forte movimento migratório das regiões Norte e Nordeste para estas regiões na busca por melhores oportunidades de trabalho”, afirma o professor. É comum ouvir de quem chega que a beleza da Capital provoca a sensação de esperança por uma realidade melhor

O TERMINAL INTERESTADUAL

Inaugurada em 2010, a Rodoviária Interestadual de Brasília recebe linhas de ônibus procedentes e com destino a cidades de todas as regiões do Brasil. Com custo de mais de R$ 55 milhões, possui mais de 20 mil metros de área e conta com 32 boxes para os veículos de transporte coletivo, além de dez estabelecimentos comerciais e quatro quiosques. Atualmente, 39 empresas operam no local e oferecem mais de cem destinos em todas as regiões do país. Em concessão pública, o consórcio “Novo Terminal” ganhou o direito de administração por 30 anos. A estimativa é de que, diariamente, cerca de mil pessoas circulem na Rodoviária. Segundo a assessoria de comunicação da Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT), em todo o Brasil 188 empresas oferecem este tipo de transporte interestadual em 9.610 veículos. Não há registros da quantidade de terminais rodoviários que operam legalmente no país.

TRINTA E nove empresas operam na rodoviária e oferecem mais de cem destinos

Com o aumento das migrações, há, simultaneamente, uma diminuição das oportunidades de emprego para quem chega à Capital.

Apesar das dificuldades enfrentadas durante a migração, muitos ainda optam por tentar uma vida melhor em outra cidade. Este é o caso de Jacy, que, pela quinta vez, busca uma nova oportunidade de melhoria de vida. Depois de passar por Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Brasília, o mineiro ruma para Caruaru, em Pernambuco, para tentar uma nova vida. “Depois de me aventurar pelo Sul, Sudeste e agora no Centro-Oeste, vi no Nordeste uma chance de recomeço”, comenta.

Vindo de Belo Horizonte para Brasília em uma viagem de ônibus que durou 12 horas, Jacy carregava consigo uma mala e uma mochila com os pertences e o necessário para buscar um emprego no mais novo destino. Depois de ficar três anos em Brasília, ele se preparava para 36 horas dentro de um ônibus até chegar à cidade do interior pernambucano. No terminal desde às 8h, precisaria esperar por dez horas, até a partida, para evitar gastar alguns trocados a mais.

Belo Horizonte foi onde Jacy conseguiu se manter por mais tempo. Vindo do interior do estado, do município de Três Corações, terra natal do “Rei Pelé”, mudou-se para encontrar melhores condições de trabalho. A realidade não foi a esperada. Morava em uma casa alugada, não ganhava o suficiente para se manter e tampouco ajudar a família, que morava no interior, com as despesas. Nos três anos seguintes, migrou por quatro estados em busca de melhores empregos e qualidade de vida. Mas não conseguiu. “Nunca consegui me fixar muito bem em nenhum desses lugares porque acabava não ficando por muito tempo no emprego. Em Brasília, o custo de vida é muito alto”, lamenta.

Enquanto uns migram em busca de melhores condições de vida, outros vão visitar familiares deixados ou mesmo para conhecer novos parentes. O aposentado José Araújo da Silva, 65, que hoje vive da agricultura no pequeno município de Goianésia, no interior de Goiás, se preparava para a segunda opção. “A gente tenta ir

“Depois de me aventurar pelo Sul, Sudeste e agora no Centro-Oeste, vi no

Nordeste uma chance de recomeço”

Jacy Siqueira, 45 anos, técnico em enfermagem desempregado

todo ano, passar uma semaninha com a família, matar a saudade. Esta é a minha primeira vez, sempre minha esposa vai sozinha. Para a gente que é mais velho, é importante”, afirma ele, enquanto aguarda o transporte para Campina Grande, na Paraíba.

Ainda que haja empolgação em rever parentes, é perceptível o desânimo frente ao desgaste das muitas horas de viagem. O casal carrega diversas malas, com roupas, documentos, utensílios domésticos levados na intenção de doar para a família, que vive em situação mais precária, além

LIMITE DE bagagem não é problema para quem viaja longos percursos

JUIZADO DE MENORES

Segundo a representante da Vara da Infância do TJDFT que fica na Rodoviária, Carla Viviane Ribeiro Marques, as ocorrências mais comuns estão relacionadas à fuga de crianças dos respectivos lares delas. Por não contarem com um ambiente familiar acolhedor, muitas optam pela fuga e acabam em terminais rodoviários. Existem casos de crianças de Brasília que buscam refúgio em outros estados e também de meninas e meninos que chegam a Brasília desacompanhadas. Em um caso específico, um garoto de 15 anos, que reclamou sofrer abusos dos pais, fugiu de casa e veio parar no terminal de Brasília. Desamparado, o garoto procurou

ajuda no juizado de menores e foi acionada a Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA) que conseguiu entrar em contato com os pais. O caso foi levado à Justiça. A família teve a guarda suspensa por encontrarem evidências de maus tratos. O adolescente voltou para o estado dele, mas foi encaminhada para uma casa de abrigo. “Crianças só são permitidas viajarem desacompanhadas mediante apresentação de autorização expedida pela DCA e documento com foto, mas como existem terminais que operam de forma ilegal, ainda existem muitas ocorrências desse tipo de caso”, afirma Carla.

da marmita com a comida para passar a longa viagem, de 48 horas. O casal ainda precisa fazer uma “baldeação” em João Pessoa, antes de chegar a Campina Grande, após um percurso de mais de dois mil quilômetros de distância.

Perspectiva

Para o psicólogo Alberto Rodrigues Câmara de Carvalho, os deslocamentos são consequência das perspectivas do migrantes em suas atuais condições e naquelas que podem ser encontradas e conquistadas em seu local de destino. A mudança, segundo o pesquisador aponta na dissertação de psicologia na UnB, é algo que representa uma possível melhoria nas condições de vida do migrante.

Durante 16 anos, esse foi o sonho de Maria Creusa Vieira dos Santos, 45, doméstica e cuidadora de idosos, que em 2001 veio do Piauí para o DF, em uma viagem que “durou três longos dias em um ônibus desconfortável”, como relata. Ao deixar três filhos sob os cuidados da mãe, resolveu tentar a “sorte grande,” encorajada por uma irmã que já havia vindo para cá. Achou mais fácil encontrar empregos e melhores salários. Vinda do município de Beneditinos (PI), com menos de 10 mil habitantes, ficou encantada com a cidade grande, as grandes construções e a beleza de monumentos como a Catedral e o Congresso Nacional.

No início foi difícil, ficou 35 dias desempregada, dormindo em um colchão no chão na casa da irmã e do cunhado. Quando conseguiu as primeiras oportunidades como faxineira, as coisas começaram a melhorar. Todo dinheiro que entrava, separava uma parcela para enviar para a mãe e os filhos, que ficaram no Piauí. Durante oito meses, essa foi a rotina de Creusa, como gosta de ser chamada. A partir daí, conseguiu pagar um aluguel, em Ceilândia, e pode ter as próprias coisas.

Para ela, ter o próprio espaço foi muito bom, mas a saudade de casa e, principalmente, dos filhos apertava cada vez mais. Nos dias de folga, passou a frequentar uma casa de forró onde conheceu um parceiro e acabou engravidando novamente. Como não trabalhava com carteira assinada, a gravidez se tornou um problema para se manter no emprego de faxineira e acabou demitida. Abandonada pelo pai da criança, viu as dificuldades dobradas. Quando a menina completou 6 meses, Creusa voltou a procurar emprego. Sem ter com quem deixar a filha e ainda sobrevivendo com a ajuda da irmã, conseguiu uma casa para trabalhar e morar.

A patroa tinha sofrido um AVC e não poderia ficar sozinha, uma vez que o marido dela trabalhava durante todo o dia. Com um quarto só para ela e a filha, comemorou: “Não encontrei um trabalho, encontrei uma família”. Passou a ter direito a carteira assinada, férias e 13º salário. “Todos os anos eu viajava de volta para o Piauí

“Não encontrei um trabalho, encontrei uma família” Maria Creusa Vieira dos Santos, 45, doméstica e cuidadora de idosos

LONGAS ESPERAS fazem parte da rotina de quem passa pelo terminal rodoviário

para ver os meus filhos e meus pais”, completa. Ficou por lá 13 anos, até que o patrão dela morreu e, anos depois, a mulher também. “Cuidei dela até o dia em que ela faleceu”, conta Creusa. Depois disso, resolveu fazer o caminho de volta ao Nordeste. Atualmente, mora no Piauí, mas ainda vem a Brasília visitar a irmã e o cunhado que seguem vivendo aqui.

Resiliência

A cearense Rosana Farias de Queiroz, 23, veio para Brasília logo que se formou na faculdade de Pedagogia, justamente em busca de melhores oportunidades de emprego. “No Ceará, professor ganha muito pouco, e quero aprofundar os meus estudos, fazer uma pós-graduação”, comenta Rosana. Chegou aqui bem jovem e com muitas esperanças, que, inicialmente, acabaram frustradas, pois passou os primeiros quatro meses desempregada e morando na casa da tia. Foi então que conseguiu um emprego numa escola de educação infantil, em Ceilândia, para trabalhar como bibliotecária.

Psicólogo explica que mudança quase sempre é vista por migrante como possibilidade de melhoria nas condições de vida

Já está para completar o segundo ano empregada, com carteira assinada e tirou as primeiras férias em julho. Aproveitou a oportunidade para voltar ao Ceará para visitar a família. Desde então, avalia ela, a situação de vida melhorou bastante. “Já consegui até alugar um local para morar”, comenta.

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