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NÃO É A PRIMEIRA VEZ
ANA JÚLIA sofreu mais de uma vez assédio sexual no transporte público
Casos de molestamento, assédio sexual e violência doméstica assustam mulheres do Distrito Federal e geram debates
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ANDRÉIA BASTOS
Uma piadinha na rua ou um xingamento. O toque indesejado de um desconhecido. Uma ejaculação no ombro. O abuso sexual e o estupro. São muitas as formas de violência contra a mulher. O assédio sexual é crime caracterizado pelo molestamento e constrangimento da vítima. Ainda assim, a legislação deixa brechas. Usuária do metrô diariamente, a estudante Ana Júlia Sanfelice, 21 anos, passou por uma dessas situações recentemente. Um homem se posicionou atrás dela e começou a acariciá-la. “Ele estava literalmente me encoxando. Eu gritei porque esperava alguma reação do pessoal.”
O caso dela é mais comum do que registram as estatísticas. Em agosto, um homem que utilizava o transporte público em São Paulo foi preso em flagrante após ejacular em uma mulher dentro do ônibus. Mas, em seguida, acabou liberado. A justiça entendeu que "não houve constrangimento ou violência". A repercussão nacional que se seguiu motivou a aprovação de dois projetos de lei no Senado sobre o assunto. Ambos criminalizam o assédio sexual. “Quando ocorre o molestamento, sem violência ou grave ameaça, não tem tipo penal. Meu projeto responde a isso. Agressões de natureza sexual sem violência – como a do ônibus – passam a ser punidas com prisão”, explica a senadora Marta Suplicy, do PMDB de São Paulo, autora de uma das propostas já aprovada pelo Senado e encaminhada à Câmara. Para a senadora, é importante acabar com o vácuo legislativo existente entre os crimes graves, como o estupro, e os mais leves, como o atentado ao pudor.
Caso seja também aprovado pelos deputados e sancionado pela Presidência da República, pode levar para a cadeia os criminosos, com penas que variam de três a seis anos de prisão para quem “constranger, molestar ou importunar alguém mediante prática de ato libidinoso realizado sem violência ou grave ameaça, independentemente de contato físico”.
Na mesma linha, um outro projeto, de autoria do senador Humberto Costa, do PT de Pernambuco, altera o
PROJETOS DE LEI CONTRA O ASSÉDIO SEXUAL
PLS 740/2015, de autoria do senador Humberto Costa (PT-PE): altera o Código Penal (Decreto-Lei 2848/1940) e passa a considerar o ato de constrangimento ofensivo ao pudor em transportes públicos com pena de reclusão de dois a quatro anos e multa para os contraventores. PLS 312/2017, proposto pela senadora Marta Suplicy (PMDB-SP): sugere que o Código Penal seja alterado para prever o crime de molestamento sexual com pena de reclusão, de três a seis anos, a quem constranger ou molestar alguém, mediante violência ou grave ameaça, à prática de ato libidinoso diverso do estupro.
Código Penal e inclui o crime de Constrangimento Ofensivo ao Pudor, com pena de dois a quatro anos para quem “constranger, molestar ou importunar alguém de modo ofensivo ao pudor, ainda que sem contato físico, atentando-lhe contra a dignidade sexual”.
No Distrito Federal, o número de denúncias de abuso sexual em estações e trens do metrô cresceu 200%. De janeiro a agosto de 2016, foram registradas cinco denúncias, contra 15 no mesmo período de 2017. Os dados disponibilizados pelo Metrô- -DF foram contabilizados por meio de denúncias de usuários pela Ouvidoria, pelo WhatsApp e pela comunicação direta a algum agente de segurança presente no local. Segundo a gerente do Centro Especializado em Atendimento à Mulher, Graciele Félix, o problema está em todo lugar e todas as mulheres podem ser vítimas. “A gente entende que a violência está inserida na cultura, na televisão, na “Ele estava literalmente me encoxando. Eu gritei porque esperava alguma reação do pessoal” Ana Júlia Sanfelice, estudante
A GERENTE do CEAM, Graciele, enfatiza o combate a violência
O TRANSPORTE público é palco de vários episódios de assédio sexual diariamente
rua, em qualquer lugar. Você sai de casa e está vulnerável a isso”.
Também foi no transporte público que a estudante Caroline Rodrigues, 21, foi constrangida. “Eu estava prestes a descer e o cara se posicionou atrás de mim. Na hora em que o motorista freiou, ele encaixou o corpo dele no meu, e eu gritei’’, lembra. Ela não denunciou. Assim como Ana Júlia, Caroline acredita que seria um desgaste a mais que acabaria em impunidade.
A gerente do Ceam comenta que a impunidade quase sempre tem como origem o medo. “Medo de enfrentar o homem que violou o meu direito, medo de enfrentar a polícia e a justiça, medo de tudo, do que vão falar, de todo o julgamento da família e do trabalho”, destaca. Somado ao medo, a sensação de solidão é apontada como uma constante. “Elas se colocam em um patamar de violência e de isolamento, justamente por causa do medo, então elas se sentem sozinhas, fragéis. Enfrentar tudo, inclusive o próprio agressor, não é um trabalho fácil”.
Em maio deste ano, o Metrô-DF, a Polícia Civil e a Secretaria Adjunta de Política para as Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos (Sedestmidh) lançaram a campanha “Assédio é Crime”. “A violência física e psicológica são muito frequentes e, quando as mulheres se dão conta já sofreram assédio”
Graciele Félix, gerente do CEAM
A LEGISLAÇÃO PARA MULHERES
Lei Maria da Penha (Lei nº11.340/2006): criou mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, além de prever a criminalização dos atos cometidos com a intenção de causar danos às mulheres. Com a lei aconteceu a adaptação dos processos jurídicos aos casos de violência doméstica, permitindo maior agilidade no julgamento. A pena varia de acordo com cada caso.
Lei do Fem inicídio (Lei 13.104/2015): transforma em crime hediondo o assassinato de mulheres por questão de gênero. A pena é de no mínimo 12 anos e, no máximo, 30 anos de prisão. A norma abrange desde o abuso emocional até o abuso físico ou sexual e ainda prevê o aumento da pena em um terço se o crime for cometido contra uma mulher grávida ou nos três meses posteriores ao parto. O mesmo vale para feminicídio cometido contra menores de 14 anos, mulheres acima de 60 anos ou pessoa com deficiência, e também se o assassinato for cometido na presença de descendente ou ascendente da vítima.
O objetivo alertar os usuários sobre atitudes ofensivas contra mulheres e incentivar as vítimas a denunciarem. Os abusos vão desde encostar e passar a mão intencionalmente até praticar qualquer movimento corpóreo considerado obsceno. O Metrô- -DF informou que os funcionários são orientados a atender as vítimas e a sugerir que elas façam a ocorrência em delegacias, pois tais atitudes estão enquadradas na Lei de Contravenções Penais.
No Brasil, a lei tipifica cinco tipos de violência: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. Segundo a coordenadora de Políticas Públicas para as Mulheres da Sedestmidh, a psicóloga Miriam Mendonça, essa tipificação permitiu que se ampliasse muito a percepção do que é violência contra a mulher no cotidiano e se desnaturalizasse o problema. “Sem uma legislação que dê consequências a esses atos, acaba que as pessoas naturalizam e podem achar que isso faz parte da vida e das relações”, conclui.
O problema é considerado histórico e está intrínseco na sociedade. Miriam observa que, desde quando foram estabelecidos os papéis sociais, a mulher é constante vítima do constrangimento. As sociedades têm como base a ideologia patriarcal em que as mulheres, por muitos anos, foram consideradas inferiores aos homens e subordinadas à dominação deles. Segundo a psicóloga, o problema surge desta relação estabelecida, na qual para muitos faz parte da cultura tratar a mulher de forma inferior, menosprezando-as e maltratando-as, se considerarem “necessário”. “Entendemos que as causas da violência estão ligadas a uma cultura patriarcal e machista, ela tem muito a ver com valores e crenças sociais que legitimam uma desigualdade entre homens e mulheres”, explica.
Como consequência desta forma de pensar, muitas mulheres sofrem com a violência, não somente nas ruas, mas em casa também. A realidade é que elas morrem, são agredidas e humilhadas por pessoas com as quais vivem, fazem parte do cotidiano e deveriam ser provedores de segurança e conforto emocional. O Mapa da Violência 2015 apontou que pais e parceiros são os principais agressores,
O CASO DIEGO NOVAIS
Em agosto de 2017, o ajudante de serviços gerais Diego Ferreira de Novais, de 27 anos, foi preso por assediar uma passageira, após tirar o pênis da calça e ejacular na jovem. Apesar de ter cinco casos de estupro anteriormente registrados, segundo informações da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, foi liberado por decisão do juiz Souza Neto, que alegou que o crime não configuraria estupro, apenas importunação ofensiva ao pudor, o que não estava previsto na legislação. Na avaliação dele, “não houve constrangimento”, nem violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um banco do ônibus quando foi surpreendida. O caso ganhou grande repercussão nas redes sociais e movimentos sobre o que de fato representa constrangimento ou não. A partir daí, dois projetos de lei foram aprovados pelo Senado.
com 17,1% e 36,9% das ocorrências, respectivamente.
A cobradora Edilene*, 34, vivenciou esse drama todos os dias enquanto esteve com o ex-companheiro. Desde o princípio do relacionamento, sofria com maus-tratos e agressões. “Eu ficava apreensiva, tinha dias que eu não queria voltar para casa, pensava em ficar lá pelo serviço mesmo. Eu queria paz e sossego”, conta. A cobradora não está
O CEAM oferece orientações jurídica e psicológica
sozinha. Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP), somente no primeiro semestre deste ano já foram registradas 7.100 ocorrências de violência doméstica no DF. O índice é 5% superior ao verificado no mesmo período do ano passado.
A agressão física e a psicológica são as práticas mais usados, segundo o mesmo Mapa da Violência, correspondendo por 48,7% e 23%, respectivamente. Edilene* sofreu as duas. Evitava sair de casa para não ter confusão. Almoço na casa de familiares e celebração de datas comemorativas precisavam ser ignorados. Segundo ela, a agressividade era tamanha que o medo do que o ciúmes poderia provocar alterou completamente a rotina. “Quando eu me arrumava, ele me perguntava para quem eu estava me arrumando, se era para os ‘machos’. Isso não é vida, é uma prisão’’, desabafa. Hoje, sob medida protetiva, ela conta que aguarda a decisão da justiça após denúncia baseada na Lei Maria da Penha. “Vou ter
OS TIPOS DE VIOLÊNCIA
Física: Qualquer agressão que se dê sobre o corpo da mulher. Ocorre por meio de empurrões, beliscões, queimaduras, mordidas, chutes, socos ou, ainda, pelo uso de armas brancas, como facas e estiletes, ou armas de fogo.
Moral: Este tipo de violência se dá no abalo da auto-estima da mulher, por meio de palavras ofensivas, desqualificação, difamação, proibições de estudar, trabalhar, se expressar, manter uma vida social ativa com familiares e amigas (os), etc.
Psicológica: Conhecida como agressão emocional, tão ou mais grave quanto a física, consiste em realizar ameaças, humilhar, rejeitar e discriminar com o intuito de causar prejuízos ao outro.
Sexual:Qualquer ato onde a vítima é obrigada, por meio de força, coerção ou ameaça, a praticar atos sexuais degradantes ou que não deseja. Este tipo de violência também pode ser causado pelo próprio marido ou companheiro da vítima.
Patrim onial: Qualquer ato que tem por objetivo dificultar o acesso da vítima à autonomia feminina, utilizando como meio a retenção, perda, dano ou destruição de bem e valores da mulher vitimizada.
uma segunda audiência por injúria racial. Ele tentou me enforcar, teve tudo, sabe?”.
O caminho para ela foi, inicialmente, buscar ajuda no Centro Especializado de Atendimento à Mulher (Ceam), na estação 102 Sul do metrô. O local oferece informação e orientação psicológica e jurídica às vítimas de violência. Segundo a gerente da entidade, Graciele Félix, os dados mostrados pelo Mapa da Violência encontram espaço também aqui no Distrito Federal. “As violências física e psicológica são muito frequentes e quando as mulheres conseguem entender o que está acontecendo, se dão conta que já sofreram violência sexual, patrimonial ou moral.”
A violência moral é caracterizada por conduta que inclua calúnia, difamação ou injúria, tais como xingamentos e atribuição de fatos falsos. A diarista Elis*, 29, passava por um misto de violência moral e psicológica com o companheiro quando resolveu se separar. Diariamente, segundo ela, eram usados termos depreciativos e de desprezo, sem contar as ameaças físicas constantes. Hoje, vive em constante estado de alerta. “Ele não vai chegar perto de mim, eu estou evitando até de sair na rua e a boa notícia é que lá no apartamento tem câmera”, afirma.
Edilene*, Elis* e tantas outras mulheres fazem parte desta realidade que se repete todos os dias no Distrito Federal. Segundo dados divulgados pelo Ministério Público, anualmente são cerca de 13 mil denúncias. Diversos centros especializados em ajuda estão espalhados pela Capital Federal. Um deles é a Associação de Mulheres de Sobradinho II, que há mais de 17 anos atua junto a mulheres em situação de vulnerabilidade.
A fundadora da organização, Geralda Gonçalves, 61, foi vítima de violência e, em uma roda de conversa com mulheres, ao contar a história para amigas, descobriu que não era a única a enfrentar tal problema. “O homem nunca admite o que faz, eu me sentia muito culpada, suja, uma série de coisas. Eu tinha uma vida boa, várias roupas e mais de 58 pares de sapatos,
ONDE BUSCAR AJUDA?
Centro Especializado em Atendim ento às Mulheres (Ceam ) Endereço: Estação do Metrô 102/103, SHCS - Brasília, DF, 70309- 000 e Telefone: 3323-6184
Casa da Mulher Bras ileira Endereço: SEN Setor de Grandes Áreas Norte 601 - Brasília, DF, 70297- 400 e Telefone: 3324-6508
Delega cia de Atendim ento Especial à Mulher (Deam ) Endereço: Entrequadra 204/205 - Asa Sul, Brasília - DF, 70234-400 e Telefone: (61) 3207-6172
Disque 180 O Ligue 180 foi criado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPMPR), em 2005, para servir de canal direto de orientação sobre direitos e serviços públicos para a população feminina em todo o país (a ligação é gratuita).
Ass ociaçãodas Mulheresde SobradinhoII Endereço: Quadra Ar 19 Conjunto 3 - Sobradinho II, Brasília - DF, 73041- 603 e Telefone: (61) 99247-7493
Centros de Referência Especializados de Ass istência Social (Creas e Cras ):
Taguatinga Endereço: A.E. Nº. 09 -Setor “D” Sul - Taguatinga Sul, DF, 72015-603 Telefone: (61) 3352-9635 Samambaia Endereço: Quadra Casa 01 Norte, Q. 408 Conjunto 4, 1 - Samambaia Sul, DF, 72318-301 e Telefone: (61) 3358-1426
Ceilândia Endereço: QNM 16 A.E. Módulo A.-, Ceilândia Norte, DF, 72210-161 Telefone: (61) 3581-6005 Guará Endereço: Área Especial, Guará II, Brasília - DF, 71050-15 e Telefone: (61) 3568-4059 Plano Piloto Endereço: SGAS II St. de Grandes Áreas Sul 615 Lote 104 - Brasília, DF, 70200-740 e Telefone: (61) 3306- 1411
“O homem nunca admite o que faz. Eu me sentia muito culpada, suja, uma série de coisas” Geralda Gonçalves, fundadora da Associação de Mulheres de Sobradinho II
mas ele batia em mim e nos meus filhos, tive que criar coragem para me livrar disso”, lembra Geralda.
A assistente social da entidade, Mariana Marçal, diz que muitas mulheres não conseguem reconhecer que são vítimas de violência. O processo é lento e necessita conscientização. “Muitas pensam que ser maltratada psicologicamente não é violência, não veem xingamentos e maus-tratos como violência, acham comum. Só na hora que bate e machuca é que na cabeça delas se configura como violência”, comenta.
Toda a violência a qual são submetidas pode deixar sequelas tanto na saúde física quanto na mental. A psicóloga Miriam Mendonça lembra que várias pesquisas mostram que, em geral, elas apresentam tendência maior à depressão, transtornos de ansiedade, insônia, distúrbios alimentares, uso maior de medicação psicotrópica, entre outros. “A violência abala muito a autoestima da mulher, então a gente tem um trabalho muito importante no sentido de uma reconstrução da identidade”, conclui. (*O nome das vítimas de violência foram preservados a pedido delas.)