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AS PESSOAS POR TRÁS DO LIXO

PARA RÉGIS Francisco, o problema não está na profissão, mas no preconceito

Na pintura, varrição, capina ou coleta, 3.396 garis cuidam diariamente das quadras do Distrito Federal

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Com os mesmos percursos de segunda a sábado e jornadas de 7 horas e 20 minutos, os garis reclamam da falta de respeito e humilhação que sofrem. Ainda assim, muitos deles gostam do que fazem, lembram da importância da atividade para a sociedade e de como enfrentam o cotidiano. “É a hora do dia que eu posso ficar tranquila e esvaziar a cabeça”, conta Claudiane Azevedo, 34 anos. “Por maior que seja o trabalho, eu fico mais descansado do que estressado”, completa Jeová Gonçalves, 62. Ambos trabalham na varrição no período noturno, das 21h30 às 4h50, e fazem parte dos 3.396 garis que atuam no Distrito Federal.

O trabalho no Serviço de Limpeza Urbana (SLU) é recente para Jeová. Até os 60 anos, atuava como mestre de obras. Tornou-se gari por, segundo ele, a atividade ser mais calma. “Aqui eu posso vir, trabalhar e me sustentar”, diz Jeová. O trabalho braçal não é considerado problema. Calado e às vezes com um cigarro nas mãos, conta que faz o trecho do Setor Comercial Sul sempre no mesmo tempo.

A rotina é companheira inseparável para eles. Todos os dias são deixados no mesmo local por um ônibus da empresa, já com a rota pela qual serão responsáveis na cabeça. Separados em duplas, em geral fazem pelo menos quatro quadras e, ao final da jornada, aguardam o mesmo ônibus para retornar à empresa, onde marcam o ponto, deixam o material e o uniforme, e então podem voltar para casa.

O salário mensal chega a pouco mais de R$ 1.300, somados o fixo de R$ 1.124 e 20% de insalubridade. O valor recebido pelos que varrem, capinam e pintam as vias do Distrito Federal é um pouco inferior ao dos coletores, aqueles que recolhem os rejeitos e jogam na caçamba dos caminhões, que têm 40% de adicional de insalubridade. Já os motoristas ganham R$ 1.822,62 mais 20% de insalubridade. Todos têm vale alimentação de R$ 700.

Apesar de considerar o salário bom, Claudiane complementa a renda como diarista para garantir uma vida um pouco melhor para ela e as duas filhas. “Eu gosto mesmo é de estar trabalhando, não importa como”. Para ela, a atividade é sinônimo de ter uma vida digna. “Quando venho trabalhar, venho sabendo o que fazer e que é isso que me sustenta”. Animada, entre uma vassourada e outra no percurso entre a 706 e a 710 Norte, aproveita para cantar e dançar. Assim, diz, a noite passa mais rápido. Dupla de Claudiane, Maria Leísa, 51, concorda. “O bom de trabalhar em dupla é que uma pode falar com a outra e fazer a noite passar muito mais rápido. Dá para fazer nosso trabalho de maneira eficiente e ainda assim ter momentos legais uma com a outra”, afirma. de gari. A necessidade o escolheu, quando a filha nasceu e tinha apenas 23 anos. Em busca de sustento para a menina, desistiu de estudar, mas não esconde o orgulho dela com as notas na escola. “Chorei em uma reunião de pais, quando me falaram que minha filha era muito inteligente e a elogiaram”, conta Jonathas. Hoje, pensa em voltar à sala de aula e, no futuro, ter um pequeno comércio. Para Régis Francisco das Mercedes, 41, o problema não está na rotina, mas no preconceito. “Eu trabalhava como coletor em São Sebastião, fui pedir água e as pessoas entregaram copos e mandaram a gente ficar com eles”, comenta ele, que se sentiu des

ENTRE OS problemas enfrentados diariamente está o descarte inadequado de objetos cortantes

“As pessoas pensam que os garis têm doenças e por isso ficam com medo de entrar em contato” Régis Francisco

Se Jeová e Claudiane afirmam gostar do que fazem, o mesmo não acontece com Jonathas Carvalho, 33. “Eu trabalho nesse trecho há dez anos, e todo dia é a mesma coisa, e eu já não aguento mais”, reclama ele, que durante todo esse período se dedica à mesma função entre as quadras 702 e 706 Norte. Não escolheu a função respeitado. “As pessoas pensam que os garis têm doenças e, por isso, ficam com medo de ter contato”, avalia. Companheiros de trabalho de Regis, Miquiel Nunes, 52, e Jailson dos Santos, 45, contam sobre algumas dificuldades que os garis enfrentam, especialmente na época de pintura, são as fortes dores nas costas por ter

que realizar o trabalho todo abaixado e sem proteção para os olhos. “Se a cal cair em nossos olhos, a gente pode ficar cego na hora”, diz Miquiel. “Eles não entregam proteção para a gente nos dias de pintura e capina”, completa Jailson. A questão maior está no descarte incorreto dos rejeitos, o que pode causar ferimentos e contaminação dos garis. Além disso, há necessidade constante dos equipamentos adequados, os chamados EPI. O médico Dalcy Albuquerque observa que os riscos são diários, daí a necessidade de receberem por insalubridade. “Eles estão sujeitos a todo tipo de ferimentos e doenças. O trabalho que os garis realizam faz com que eles estejam em contato com qualquer tipo de vírus e bactérias”, explica. As transmissões podem ocorrer por ar, líquidos, perfuração e até ingestão. Daí a necessidade de check-ups anuais. “As aulas e treinamentos que os garis recebem para a segurança deles são muito importantes, nesses treinos é reforçado várias vezes que eles usem todo equipamento de proteção individual”, afirma. Os fiscais e supervisores são responsáveis por verificar se os equipamentos de proteção individual estão sendo usados corretamente. Gari há dez anos, Edvar Jesus, 58, é fiscal há cinco. O trabalho dele consiste em acompanhar toda a equipe, enquanto os supervisores atuam em área maior e, de carro, conferem o serviço de vários grupos ao mesmo tempo. Edvar observa que para a equipe de pintura quase sempre são escolhidos os mais novos, porém, com experiência. “Eles vão ter que aguentar fazer o trecho inteiro curvados para pintar os meio fios”. O trecho inteiro ao qual ele se refere é a W3, Sul ou Norte, que tem o branco da borda da calçada renovado por uma equipe de 12 a 20 pessoas. A organização dos funcionários nesta área é mista, com homens e mulheres. Já na área de coleta, há predominância masculina, pois as empresas consideram que o trabalho exige mais resistência física. Atualmente, duas terceirizadas são responsáveis pela limpeza urbana do DF: Valor Ambiental e Sustentare Meio Ambiente. O Serviço de Limpeza Urbana vistoria e checa os equipamentos e materiais

DOENÇAS E TRANSMISSORES NO LIXO

Baratas, moscas, mosquitos e ratos são animais que diariamente ameaçam o trabalho dos garis. As doenças carregadas por esse animais, por conta do lixo, pode causar uma vasta gama de doenças, tais como:

Leptospirose: O lixo em conjunto com as águas das enchentes podem causar a Leptospirose, doença provocada pela bactéria leptospira. Originária da urina dos ratos, a enfermidade pode inclusive matar, se não houver tratamento rápido;

Febre ama rela: O lixo pode contribuir para o aparecimento de Febre Tifoide. A complicação pode matar se não houver tratamento ágil. O sintoma mais comuns é febre, como o próprio nome diz, de forma intensa, o que a difere de outras complicações onde a febre também se manifesta;

Tracoma : Conjuntivite que pode provocar a formação de cicatrizes na conjuntiva e na córnea, podendo levar à cegueira. A transmissão pode ocorrer pelo contato dos olhos com as mãos, toalhas ou roupas;

Tétano: Doença extremamente agressiva, pode, inclusive, matar uma pessoa em pouco tempo. O lixo pode ser um precursor no surgimento desta complicação, visto que a doença na maioria das vezes é transmitida por ferimentos em objetos cortantes.

Os garis também estão sujeitos aos riscos de doenças como HIV e hepatite, por conta do lixo perfurocortante descartado indevidamente.

utilizados pelas empresas terceirizadas. “Os garis passam por treinamento com uma equipe de segurança para poder realizar o trabalho da maneira mais adequada possível”, garante o coordenador da limpeza urbana, David Peixoto. Peixoto observa que um dos maiores problemas está no vidro descartado. “O vidro aqui no DF não é considerado reciclável, por causa do custo muito elevado para levar para São Paulo para fazer a reciclagem”, comenta. Doutora em desenvolvimento sustentável e professora da Universidade de Brasília, Valéria Gentil afirma que a viabilidade econômica do lixo é um

JEOVÁ TRABALHA há dois anos como gari; até os 60 anos, era mestre de obras

dos desafios, tanto no sentido do lucro que pode ser gerado, quanto nos gastos. “O lixo interfere na economia diretamente, o mundo movimenta 600 bilhões de dólares com a reciclagem de metais ferrosos”, afirma. Outras formas de se produzir um ambiente economicamente mais sustentável e de maneira socialmente melhor para os garis, na avaliação da professora, seria a aplicação de tecnologias de baixo custo. Para ela, uma das formas para tornar o trabalho mais humanizado

DOUTORA EM desenvolvimento sustentável, Valéria Gentil diz que viabilidade econômica do lixo é um dos desafios

poderia estar no incentivo da produção de vassouras de garrafa pet, bolsas de alumínio e outras peças que poderiam ser usadas na coleta. Valéria comenta que é comum a sociedade culpar os garis pelo descarte inadequado de resíduos. “Já ouvi diversas vezes pessoas falando que não têm por que fazer a coleta seletiva, já que os garis vão pegar tudo e misturar no mesmo container”, diz. A professora considera que esse pensamento faz com que se perpetue o descarte inadequado sob o argumento de se estar fazendo o certo. “Penso que várias das pessoas que afirmam fazer o descarte correto, falam da boca para fora, para ficar com boa imagem social”, reclama. Uma pesquisa feita em 2009 em Belo Horizonte sobre a qualidade de vida dos garis apontou o “desgaste físico e sofrimento psíquico, advindos de condições de trabalho bastante adversas durante muitos anos.” A conclusão da dissertação da pesquisadora Eliana Fátima Belo, que concluiu o mestrado em administração na Faculdades Integradas de Pedro Leopoldo, é a ausência de desafios psicológicos suficientes para o trabalho ser considerado como de boa qualidade de vida, apesar de cotidianamente apresentar metas a serem cumpridas. Eliana observa no estudo que existe “um grande vácuo nas pesquisas acadêmicas sobre os garis”.

COMO ARMAZENAR VIDRO QUEBRADO

Um dos maiores riscos para a segurança dos garis são os pedaços de vidros descartados indevidamente. O corte pode levar a doenças, provocar o afastamento e até mesmo a aposentadoria por invalidez, dependendo da gravidade dos ferimentos. O que é aconselhado pelo SLU é que todo o vidro, por segurança dos garis, deve ser quebrado o máximo possível e colocado em um recipiente plástico, como uma garrafa PET. Em seguida, deve ser vedado com uma fita para selar completamente o recipiente para que não tenha como o vidro sair. Depois de finalmente ter lacrado completamente o vidro em um objeto seguro, deixe escrito na parte de fora, alertando que é vidro, para que os garis possam saber e não ter qualquer chance de ferimento.

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