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SABER ANCESTRAL

SABER ANCESTRAL

Mesmo com legislação voltada a migrantes, o medo do desconhecido continua a ser uma barreira tanto cultural quanto social

NATHÁLIA SIRNES

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Aprimeira barreira eles venceram. Deixaram para trás os países de origem, em busca de uma vida melhor e um futuro mais promissor, e encontraram abrigo em uma nação onde, em tese, a lei de migração assegura o direito ao respeito mútuo e às manifestações culturais. O problema é que dependendo do país onde nasceram, ao chegar ao Brasil os migrantes sofrem uma das mais cruéis formas de preconceito: a xenofobia. O mais doloroso é que com o tempo, muitos dos 1,8 milhão estrangeiros, que aqui vivem, passam a aceitar a discriminação como natural, o que pode reforçar os dados do serviço de registros de reclamações do Ministério dos Direitos Humanos, o Disque 100.

No mais recente levantamento do Ministério, foi revelada uma queda de 26,97% no número de denúncias de xenofobia no serviço de denúncias e proteção contra violações de direitos humanos. No entanto, esses dados podem não revelar a realidade, pois em muitos casos as vítimas se acostumaram a sofrer preconceito e não registram queixas.

Por ser um país miscigenado historicamente, o Brasil de acordo com a Lei de Migração (lei 13.445, de 24 de maio de 2017) facilita o processo de acolhimento dos migrantes na sociedade. A lei os ajuda na batalha diária de enfrentamento à discriminação, xenofobia e segregação social.

O preconceito não se refere apenas ao fato de a pessoa vir de outro continente. Há uma segregação entre os próprios migrantes, na qual o país de origem determina a posição na “escala de necessidade”. O professor de instrumentos africanos Alpha Kabinet Camara, 30 anos, que veio da Guinée Conacri, está no Brasil há um ano e nove meses, e morou em São Paulo um ano e cinco meses, antes de vir para a capital. Ele revelou que já foi demitido por ser africano e não ter a documentação, e nem ajuda necessária do patrão. Ao pedir auxílio na construtora, onde trabalhava como pedreiro, para a abertura de uma conta corrente, a resposta foi: não pode para você. Só pode para latino-americano. “Ele não fez para mim, mas ele fez para o haitiano. Eu vi”, contou.

Se o preconceito muda de acordo com a nação de origem do migrante, os fatores que os levam a deixar a terra natal também são vários. A geógrafa Nayara Belle, 32 anos, explica que existem várias teorias para explicar estes fluxos migratórios, mas questões políticas e econômicas estão entre as principais. “As pessoas migrariam visando melhores salários, oportunidades, qualidade de vida. Seria uma conjunção de fatores de repulsão no país de origem com fatores de atração no país de destino”, esclarece.

Essa questão se aplica à costureira Fonkeu Cèline, 44 anos, vinda de Camarões em busca de melhores condições em relação às que tinha no país natal. Inicialmente, a costureira iria para a Alemanha, onde pretendia juntar dinheiro para ajudar a família. Cèline está há um ano e meio no Brasil e ainda não encontrou trabalho. Por aqui a vida tem sido ainda mais dura e ela passou a depender do repasse de dinheiro dos irmãos que deixou para trás. Justamente aqueles a quem ela queria ajudar, ao sair de Camarões. A costureira diz que a família ainda acredita que ela vá se estabilizar em terras brasileiras. “Não é justo”, protesta. A língua pode ser uma barreira para Cèline, que não fala português. Historicamente, os negros trazidos da África para o Brasil aprenderam português por meio dos berros do capataz. Esse foi o primeiro desafio cultural do negro brasileiro.

A xenofobia não poupa nem os vizinhos do Brasil. A contadora paraguaia Blanca Azucena, 50 anos, passou por isso. A família a trouxe para o Brasil quando ela tinha apenas 7 anos. Até hoje ela se lembra da exclusão que sentia na escola e nas relações sociais. Com o tempo, ela e o irmão sentiram que precisavam se destacar nos estudos para chamar a atenção. Aos poucos a família passou a ser menos discriminada também pelo sotaque espanhol. Somente dez anos depois ela disse que a situação m u d o u , também graças ao domínio do novo idioma. “As pessoas não me viam mais como estrangeira. Eu não tinha mais sotaque, sabia escrever e falar muito bem o português”, conta.

Xenofobia é seletiva

A xenofobia está diretamente ligada ao país ou continente de origem daquele que escolheu o Brasil para viver. Enquanto africanos e latinos sofrem com a discriminação, os euro- “É muito difícil pagar a casa, as contas. Não é justo. Minha vida é realmente difícil aqui” Fonkeu Celine A COSTUREIRA Cèline e os filhos que vieram para o Brasil

peus, asiáticos e norte-americanos já pisam em terras brasileiras sob olhar de admiração e respeito. São tratados como superiores. Um exemplo é o fotógrafo português Miguel Correa, 49 anos, que chegou em agosto para se casar com uma brasileira e em apenas dois meses tem grupo de amigos, roteiro de lazer e acesso ao que a capital tem de melhor a oferecer. “Tenho me dado super bem. Não tenho nada de ruim a dizer. Todas as pessoas me têm tratado bem”, conta.

A Ásia pode ser considerada por muitos um continente modelo, pois ao ver uma pessoa de olhos puxados, logo associa-se à inteligência, mas vai além disso. O acupunturista chinês Wang Jian Bo, 48 anos, veio para o Brasil há 20 anos visitar o irmão, que já morava aqui e viu uma oportunidade para se estabelecer. A mulher de Wang, a empresária Zhao Meixia, 46 anos, veio com o marido e disse que foram muito bem recebidos pelos brasileiros. “Sou sempre elogiada por ser diferente. Quando apresento a culinária chinesa sempre tenho resposta uma positiva”, conta.

O Brasil visto de dentro pode não parecer um lugar convidativo para investimentos, mas a família do norte-americano Clay Robert Earl não pensava assim. O fazendeiro de 57 anos veio com a família para o Brasil em 1973 para trabalhar com fazenda no Oeste baiano. Como ninguém falava português, os funcionários da fazenda dos pais o ensinaram o idioma. Clay conta que foi muito bem recebido pelos brasileiros e se encantou com a cultura baiana. “Todo mundo curioso, queria aprender a falar inglês. Fazer amizade com a gente”, lembra.

O estereótipo a ser rompido

A televisão fez as noções de pré- -conceitos se tornarem ainda mais presentes no dia a dia e ampliam a visão negativa que os nativos têm a respeito das pessoas vindas de determinados países. Do mesmo modo que a imagem do Brasil é vendida no exterior como o país do futebol, as imagens que chegam a respeito da África para todo o mundo só mostram pobreza e miséria. O estilista Massala Pacomé, 39 anos, passa por isso, diariamente, no Brasil. Ele veio do Gabão por incentivo do pai, que mandou o filho para cá, com o sonho “Sobre essa coisa com os outros estrangeiros, não é fácil, principalmente por ser negro” Masalla Pacome DE TODOS os continentes, a África é o que mais sobre com xenofobia

dele se tornar jogador de futebol. Não deu certo e a saída foi a moda. O rapaz tornou-se estilista.

Apesar de falar três idiomas e ter ampla bagagem cultural, Massala diz que passa por situações constrangedoras, diante do pré-julgamento. “Eu acho estranho às vezes, porque as pessoas falam assim: ‘na África [vocês] sofrem muito. Vocês não comem’”, conta. “Não. A gente come, cara”, desabafa. O africano que está no Brasil há 15 anos, lembra que trabalhar no mundo da moda foi mais um desafio, que ele ainda enfrenta. ”Para entrar no mundo da moda, abrir uma loja, uma coisa assim, tem preconceito. Até do vizinho que tem loja do lado”, relatou, ao lembrar que os demais comerciantes sempre o encaram com um olhar de preconceito e desconfiança.

Para a geógrafa Nayara, a mesma mídia que dissemina a imagem estereotipada de nações menos desenvolvidas tem a obrigação de transpor estes pré-conceitos. “Para combater a xenofobia a mídia tem um papel muito importante para desmistificar a migração e o refúgio e transpor essa barreira do estranhamento da diversidade cultural e religiosa”, diz.

Mais pontes e menos muros

Um dos principais desafios dos migrantes, ao chegarem a outro país, é manter a própria cultura, ao mesmo tempo que são obrigados a conviver e assimilar a cultura local. A iniciativa do coletivo Bambuo tem essa finalidade. O projeto Mais Pontes, Menos Muros, visa a aproximação por meio da culinária, onde no ato da compra de uma comida típica, existe uma aproximação do país daquele prato. A empresária social Marina Miranda, 27 anos, que coor-

dena os projetos do coletivo, diz que é um projeto de trocas, e não de caridade. “São trocas horizontais entre brasileiros e imigrantes. A gente não está aqui só para estender a mão. Está aqui para aprender muito com essas pessoas”, explica.

Em seminário realizado na Universidade de Brasília (UnB), na primeira quinzena de outubro, o professor de psicologia Bem Kuo, Ph.D da Universidade de Windsor, Canadá, explicou que existem duas perspectivas de cultura. A etic, na qual há um universalismo cultural, onde a própria cultura será a única válida. A emic, na qual há um relativismo cultural, onde a diversidade cultural é respeitada e apreciada. Nesta última, existe uma divisão de dimensões da diversidade, em que existem nove fatores a serem analisados antes de um pré-julgamento. São eles: idade, necessidades especiais, religião, etnicidade, status social, orientação sexual, ascendência, origem e gênero.

O professor contou que ao passar dois meses na Nova Zelândia entendeu a importância do não julgamento. Existe uma cultura do povo maori chamada whakapapa, que se baseia no estudo dos fatores acima mencionados, como forma de compreender o outro e evitar choques culturais. Em uma batalha, a descoberta de que oponente pode ser um primo distante muda o contexto, mostrando uma ligação entre eles que nem os próprios sabiam que existia. Uma questão histórica

Em uma das mais importantes obras sobre o perfil da população, “O Povo Brasileiro”, o antropólogo Darcy Ribeiro explica as lutas enfrentadas pelos negros vindos da África, ao tentarem se adaptar à nova cultura. Uma das alternativas encontradas para isso foi a criação de quilombos, por negros que já sabiam viver na natureza brasileira. Os quilombos deram abrigo aos negros fugidos e preservou a cultura africana, pois seria impossível reconstituir o modo que viviam na África.

O antropólogo fez estudos também sobre batalhas enfrentadas pelo negro, na qual mostra que até hoje a luta mais árdua do africano e descendentes é desfazer o pensamento de que eles são aproveitados apenas para o trabalho braçal. Por terem terras negadas pelos brancos no meio rural, o negro veio para a cidade e criou os “bairros negros”, que com o passar dos anos se transformaram nas favelas, como são conhecidos atualmente. Nesse ambiente, foi criada uma cultura com tudo que o africano guardava no peito devido aos anos de repressão. O resultado é um dos traços mais fortes da cultura brasileira, que são a músicas, os ritmos, os sabores e a religiosidade. “No momento que eu cheguei aqui, graças a Deus e bons amigos, eu consegui organizar minhas coisas pouco a pouco”

Alpha Kabinet Camara MASSALA E Alpha representando o Gabão em uma feira de imigrantes

A MUDANÇA TEM QUE ACONTECER

Na maioria dos casos, os migrantes são pessoas que precisam de socorro e fazem de tudo para deixar as condições em que viviam. Ainda que corram risco de morrer, durante esse processo. De acordo com estudo realizado pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), nos primeiros cinco meses de 2016 mais de três mil migrantes e refugiados morreram ou desapareceram enquanto tentavam cruzar fronteiras. Em 2015, o número de vítimas nas rotas migratórias chegou a 5,4 mil pessoas. O Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) configura essa a mais grave crise migratória desde a Segunda Guerra Mundial. O estudo revelou também que na década de 1970, 80% dos imigrantes destinavam-se a países fora da própria região do globo, e que hoje essa proporção foi invertida, e 64% migram entre países latino-americanos. Como observou o escritor nigeriano Wole Soyinka, aqueles que se calam diante dessa situação dramática também são responsáveis pelas vidas perdidas em meio à crise humanitária.

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