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10 de Junho - Sextafeira (sala de tia Vivian)

13:14- Acordei me sentindo muito mal essa manhã. Não era nada realmente físico, por isso nem contei a minha mãe. Ela já estava preocupada demais por ser o primeiro dia em que ia sair com tio Oscar pra procurar emprego. Então preferi ficar quieta pelo bem da dona Valkíria. O que eu estou sentindo agora é meio difícil de se explicar. Parece uma mistura de tristeza com desânimo e piora ainda mais quando eu penso no Sul. É incrível como tudo hoje me faz lembrar o Brasil. Uma foto num porta-retrato na sala de tia Vivian, uma música tocada no rádio do quarto da Ana (‘Mais que nada’ do Sérgio Mendes com o Black Eyed Peas, pra ser mais precisa), o bolo de cenoura com cobertura de Nutella que a Alice está preparando pra entupir o Dani e evitar que ele faça mais besteiras- atitude muito válida, por sinal, já que é isso ou continuar assistindo ao guri raspar a cabeça da Lola pra tentar fazer um corte estilo moicano na pobre da gata. E detalhe, com o aparelho barbeador do Vini!


Mas nem mesmo as travessuras do Dani conseguiram me distrair. Eu estava me sentindo tão deprimida essa manhã e com uma vontade tão grande de gritar, que simplesmente sentei no closet do quarto de hóspedes e comecei a chorar feito criança. Mas muito mesmo, durante horas talvez e ainda por cima em pleno escuro. A Ana ouviu os soluços vindos do armário (graças a Deus ela ainda não viu o novo visual punk da Lola) e se sentou ao meu lado no closet pra tentar descobrir o que eu tinha. Acabei desabafando um pouco com minha prima sobre a sensação horrorosa que estou sentindo, e ela disse que eu devo estar sofrendo de homesick (saudade de casa), o que é algo bem normal e acontece com a maioria dos brasileiros que se muda pra cá, inclusive aconteceu com ela e o Vini, mas que os dois já tinham superado isso. Depois minha prima pegou uma blusa da Alice que tinha caído do cabide, limpou meu rosto e me abraçou dizendo que no final tudo ia ficar bem. O que eu reconheço que foi bem legal da parte dela, mas pra falar a verdade, eu sinto que não vai ficar nada bem. Acho que só agora, com mamãe saindo pra procurar emprego, é que caiu realmente a minha ficha. Nós não estamos aqui pra visitar tia Vivian ou bancar os turistas em Orlando, nós estamos aqui pra morar e DEFINITIVAMENTE! “Forever and ever” como eles dizem aqui. Adeus Sul! Adeus Brasil! Asta la vista!


Oh, só de pensar nisso me dá uma reviravolta no estômago... O que eu faço pra essa sensação ruim ir embora? Ah, já sei! Que tal EU ir embora? Com certeza vou ficar boa e meus olhos vão desinchar rapidinho!

15:29-AI-MEU-DEUS! Ele acabou de ligar! Disse que ia e ligou mesmo! Hoje, precisamente às 15:20. Quem? O Théo, né dããã! Que outra pessoa poderia ser? Jesus Cristo numa ligação DDD direto do paraíso? Se bem que, no momento em que a Ana me estendeu o telefone sem fio eu não acreditei que fosse o Théo. Pensei logo na tia Vera, ou na minha mãe ligando pra se certificar de que o Dani ainda não tinha posto fogo na casa ou desenvolvido um raio mortal pra dizimar metade da vizinhança... Por isso fiquei tremendamente surpresa quando ouvi a voz do Théo pelo telefone e corri pro meu quarto pra falar com ele bem longe dos ouvidos curiosos da Alice e mais ainda dos do meu primo Vini, que não sabia nem metade da história sobre o Théo. Melhor dizendo, não sabia NADA sobre o Théo. No quarto, meu irmão Dani estava comendo mais um pedaço de bolo de cenoura –e fazendo a maior sujeira- enquanto via num volume absurdo o DVD Magic English da Disney que a Alice tinha colocado pra ir familiarizando ele com a língua. Eu gritei pedi


gentilmente pra pequena encarnação do mal criança abaixar o som, mas ele só me mostrou a língua e jogou uma parte do bolo na minha cara, do qual eu habilmente desviei no maior estilo Matrix. Não tive outra opção se não a de atender o telefonema do Théo dentro do closet mesmo, entre os cabides com as roupas da Alice e os sapatos de mamãe. Eu ainda podia ouvir a musiquinha chata do DVD entrando pelas frestas da porta: “Who is afraid of the big bad wolf? Big, bad, wolf. Big, bad, wolf. Who is afraid of the big bad wolf? Big. Bad. Wolf! (versão americana de “Quem tem medo do lobo mau?”), mas o nível do som até que era tolerável. A conversa entre eu e o Théo foi mais ou menos assim:

Eu: Oi. Desculpa pela demora. Théo: Nada. O lobo mau deve ter realmente te dado trabalho. Eu: Ah, que ótimo! Você consegue ouvir a música daí... Théo (meio que rindo): É. Mas não se preocupe. Não vou contar a ninguém que você mora com os três porquinhos. Eu: Na verdade aqui tem um só e com tendências psicopatas. Se bem que analisando os hábitos higiênicos do Dani, no final das contas acho que ele vale por três porquinhos mesmo.


Risos Théo: Ok. Mas mudando um pouco de assunto... Está a fim de ir ao Sea World amanhã? Eu: Amanhã?! Já?! Bem, não sei. Tenho que falar com a minha mãe... Ver se o meu primo pode levar o Dani e eu... Théo: Ah, se você quiser eu passo aí pra pegar vocês. Eu: Não, acho que não é uma boa idéia. Voz vinda do além: É verdade. Oops! Falei... Eu (totalmente pasma): Ana???????? Ana (na extensão): Eh... Oi. Desculpe aí, prima. Fui pegar o meu telefone pra ligar pra Britt e acabei ouvindo um pouquinho da conversa... Eu: Tá, mas será que dá pra fazer o favor de sair da linha? Ana: Claro! Claro! Já estou desligando! Bye Théo. Théo (rindo): Bye, Ana.

Ruído de telefone sendo desligado. Eu: Onde a gente estava mesmo? Théo: Na parte em que você recusava minha oferta de te levar ao Sea World. Eu: Ah, é... Bem, não é nada pessoal tá? É só que a minha mãe é meio paranóica. Eu já falei sobre você pra ela, mas a criatura não me deixa sair com nenhum amigo novo antes de ter certeza de que a pessoa não


faz parte de nenhuma quadrilha internacional de tráfico de órgãos. Théo (brincando): Se isso ajuda, eu não tenho nenhuma passagem pela polícia. Voz do além (dessa vez rindo): Essa foi boa... Putz! Falei de novo... Eu: ANAAAAAAAAAAAAAAAA!

Grito saindo do quarto da minha prima: “Tá bom! Já desliguei! Já desliguei!” Eu: Desculpa, Théo. Não vai acontecer de novo. Théo: Relaxa, Babi... Mas então? Rola Sea World amanhã? Eu: Vou perguntar pra minha mãe e pro meu primo e depois te ligo. Théo: Certo. Melhor eu te dar meu celular. Aquele outro número que você tem é o telefone da minha casa e lá praticamente ninguém fala português. Eu: Ok. Só espera um minutinho pra eu ir pegar uma caneta. Théo: Claro!

Juro que ao fiz nada tão rápido em minha vida! Eu (depois de sair do closet a procura de caneta e voltar aos tropeços): Diz aí. Théo (falando de um lugar mais barulhento agora): 715-5199. Anotou?


Eu: Ok. Tá aqui. Ei, você está ouvindo “Yellow” do Coldplay? Théo: Estou. Desculpe, acho que cheguei perto demais do som. Eu: Sem problema. Essa é uma das músicas deles que eu mais gosto. Théo: Verdade? Eu nem gostava tanto, mas ultimamente tenho ouvido muito ela porque me lembra um certo momento... Eu: Que momento?

De repente uma voz de mulher surge ao fundo da música do Coldplay: “Theo, could you help me with my car? It’s turning over but it won’t start!” Théo: Dammit!

Silêncio. Como se ele tivesse tapado o bocal do microfone. Théo (parecendo meio chateado agora): Babi, olha mil desculpas, mas minha madrasta está me chamando. Acho que tem algum problema com o carro dela. Me liga depois pra dar a resposta sobre o Sea World? Eu: Ahã. Théo: Ok. Então fica assim. Um beijo. Eu: Pra você também.


Tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tutu-tu

20:15- Minha mãe mesmo arrasada por não ter conseguido emprego deixou eu e o Dani irmos ao Sea World amanhã! U-Huuuuuuuuuuu! Ultimamente ela tem dito “sim” com uma certa freqüência e pra quase tudo que eu e meus irmão pedimos. Com certeza ela só está fazendo isso pra tentar nos agradar e fazer com que a gente se sinta mais á vontade nesse país. Pelo menos isso! E o Vini concordou em levar a gente ao parque (não mencionei o nome do Théo em nenhum momento). De início meu primo falou que não ia de jeito nenhum, nem amarrado, porque odiava locais turísticos em Orlando nesse período de alta temporada, já que eles são cheios e super tumultuados, mas foi só a Ana dizer que ele não precisava ficar com a gente que o Vini topou no ato! Ah, é! A Ana vai também... Que seja. É melhor eu ligar pro Théo pra confirmar nosso passeio amanhã.


20:23- Pronto. Está feito! Estranho... De repente fiquei tão bem disposta! De onde veio toda essa injeção de ânimo?

[em off] Nada de usar aparelho amanhã!

11 de Junho (sábado) Casa de tia Vivian

19:45-Hoje fomos finalmente conhecer o parque marinho que o Théo prometeu levar o Dani. E nossa! Eu tenho tantas recordações boas desse dia que eu nem sei por onde começo. A Alice não quis ir com a gente, porque tinha marcado de conversar pelo Skype com as amigas da antiga faculdade dela, mamãe por sua vez saiu pra procurar emprego com a ajuda do Tio Oscar (mesmo


hoje sendo sábado), e acabou me deixando totalmente responsável pelo Dani, algo que me fez muito feliz (ATÉ PARECE!) já que eu teria de bancar a babá do endiabrado o tempo todo. Apesar disso eu pude aproveitar o parque (e que parque!) muito bem. Não tinha idéia do que iria ver no tal Sea World, mas vou te contar, eu quero voltar lá mais vezes! O Théo tinha marcado com a gente perto dos guichês, às nove horas em ponto, bem ao lado de um farol que tinha umas Orcas pintadas, e foi lá que a gente encontrou ele e sua irmãzinha Rubie já esperando por nós. Logo na entrada do parque uns fotógrafos profissionais tiram fotos dos visitantes, para que eles comprem, e um deles pensou que o Théo e eu fossemos namorados. Acredita? Eu na verdade não tinha entendido muito bem quando o cara nos abordou com uma câmera na mão, mas o Théo me puxou pra junto dele e depois que o fotógrafo já tinha nos fotografado, ele me explicou rindo que o homem tinha apenas pedido permissão pra tirar uma foto do casal. Na hora eu não fiquei vermelha de vergonha, fiquei roxa! Depois do momento embaraçoso com o fotógrafo (graças a Deus a Ana estava meio longe e não viu nada) nós levamos o Dani e a Rubie para alimentar os golfinhos. Juro que teve um momento que meu irmão se aproximou perigosamente deles e isso me deixou


aflita. O Théo disse pra eu não me preocupar com o Dani porque os golfinhos são seres realmente dóceis. Eu então respondi que não estava preocupada com meu irmão, mas sim com a integridade física dos golfinhos, já que o Dani era o único ser realmente indócil ali. Nós ainda vimos muitas coisas antes de irmos para as apresentações e, é claro, tivemos que agüentar meu irmãozinho fazendo um bando de besteiras pelo parque. Desde pegar uma arraia enorme de um tanque e colocar na cabeça (o que fez ele ficar fedendo o dia inteiro a maresia) até chutar a canela da funcionária da montanha russa que não deixou ele ir no brinquedo porque não tinha altura suficiente. E mamãe ainda diz que ele é um anjo... Há-há. Isso porque ela ainda não reparou o rabinho saindo da bunda dele com triângulo na ponta! A montanha russa chamada Kraken foi demais, sem exageros. Eu me lembro perfeitamente a hora em que o Théo apontou para o operador do brinquedo quando nós estávamos já sentados no carrinho e disse em inglês “Velocidade máxima cara!” ao que o operador mostrou um sinal positivo e, bem, acho que ele realmente fez o que o Théo pediu porque o kraken foi adrenalina puraaaaaaaaaaaaa! Tudo bem que na saída eu simplesmente tive que me apoiar no Théo até encontrar com a Ana e as crianças, de tão enjoada, tonta, descabelada e pálida que eu estava, afinal eu nunca havia andado de


montanha russa na vida e, ainda por cima, tinha medo de altura, mas acredita que valeu à pena? Lá pela uma da tarde, já famintos e meio cansados de tanto andar e tirar fotos, nós fomos num restaurante super legal no subsolo do parque que, ao invés de janelas, tinha simplesmente como paredes os vidros do tanque de tubarões que nós havíamos acabado de visitar na superfície! O Dani, atentado que só ele, ficou batendo no vidro e tentando atrair os bichos esfregando pedaços de nugget na superfície do tanque, mas isso só serviu pra deixar o vidro super engordurado e eu morrendo de vergonha das outras pessoas que estavam no restaurante. Porque os tubarões mesmo, que era bom, não estavam nem aí pro meu irmãozinho. Cara, porque o Dani não era comportado igual a Bibi hein? Ela estava lá, toda quieta, sem dar um pio, sentadinha igual a uma mocinha, enquanto o Théo dava comida pra ela na boca. Que graça era aquela menina! Oh, e por falar no Théo... Nossa, ele era tão paciente com as crianças, inclusive com meu irmão Dani (a própria encarnação do Chuck, o boneco assassino) que era impossível não admirar o jeito que ele tratava os pirralhos. Até a Ana disse no meu ouvido que achou tudo que ele estava fazendo muito fofo. Eu só não gostei de duas coisas que ele fez. A primeira foi dele ter brincado comigo quando eu disse um pouco antes do almoço que estava com vontade


de comer um misto quente. Ele pediu pra eu ficar repetindo “misto quente” várias vezes porque, segundo ele, eu falava de um jeito muito engraçadinho. Até parece! O Théo é que com o “carioquês” dele dizia tudo estranho, arrastando demais o “s”, trocando as vogais, colocando consoantes onde não tem... Vide o “Misssstu Quentchi” dele. Esse povo do Rio de Janeiro deve possuir um dialeto próprio! Só pode! A segunda coisa que eu não gostei foi dele ter pego sorrateiramente a conta e pago a refeição de todo mundo. Tudo bem que eu não estou podendo recusar dado o estado financeiro quebrado da minha mãe, mas eu tinha dinheiro suficiente pro Dani e eu comermos. Apesar de tudo decidi encarar aquilo como gentileza e não reclamei. Ok, ok, talvez eu tenha reclamado só um pouquinho, mas agradeci educadamente ao Théo. Bom, depois disso fomos a uma atração sobre o Ártico que imitava uma estação de pesquisa e tinha até um urso polar de verdade. Tudo bem que a gente entrou na atração mais pra escapar do calor, pois lá o ar condicionado era muito forte pra que você se sentisse no Ártico mesmo, só que de qualquer jeito valeu à pena, porque o Dani e a Bibi ficaram admirados com o ursão branco. Na saída da atração, que dava direto numa loja do parque, o Théo comprou uma baleia Orca de pelúcia pra mim, um pinguim pro Dani e pra Rubie um bebê foca branco que era uma espécie de fantoche, mas a diversão acabou sendo pros dois


guris mesmo, pois o Théo ficou brincando com as crianças, modificando a voz e se fazendo de ventrículo. “Meu nome é Senhor Branquinho...” ele disse mexendo com a boca da foca “... or in english, my name is Mr. Withy” ele completou virando a pelúcia pra irmã. A Ana também entrou na brincadeira e cumprimentou o “Senhor Branquinho” dando os parabéns a ele por ser o único animal selvagem bilíngue que ela conhecia! Já eu tive que beijar a foca na bochecha porque, segundo o próprio “Senhor Branquinho”, beijos de meninas bonitas dão boa sorte. Ai, ai, só o Théo mesmo... Como as crianças já estavam recuperadas do almoço, elas insistiram pra ir ver os pingüins (de novo) na atração chamada Penguin Encounter, e lá fomos nós mais uma vez nos render ao desejo dos pequenos. Pelo menos o bom daquele lugar é que você via os pinguins no tanque deles, enquanto uma esteira rolante ia comodamente levando você, sem falar do arcondicionado maravilhoso que tinha ali. Vou ser sincera, bateu uma preguiça enorme quando eu estava no Penguin Encounter. Tanto que quando as crianças se encheram dos pingüins e quiseram ir à mini montanha russa com carrinho em forma de baleia (que era por sinal quase do outro lado do parque!), eu pedi pra ficar descansando mais um pouquinho e me sentei no chão acarpetado da atração, em uma parte meio escurinha- perfeita por sinal pra se dormir. O Dani e a Rubie, é claro, começaram a


reclamar e a Ana disse que levaria eles sem problema enquanto eu descansava. O Théo, por sua vez, se ofereceu gentilmente pra ficar comigo e se sentou no chão bem ao meu lado. As crianças nem mesmo esperaram pelo aval da Ana e saíram correndo feito loucas pra ir à tal montanha russa infantil. O Théo encostou a cabeça na parede e fechou os olhos, parecendo esgotado, o que dá pra entender, pois ele tinha carregado a Bibi nos ombros quase o dia inteiro e sem reclamar. Como eu estava cansada também, encostei a cabeça na parede do mesmo jeito que ele fez e, enquanto isso, fiquei observando tudo à nossa volta. As pessoas maravilhadas na esteira rolante, as crianças que passavam perto da gente ainda empolgadas por terem visto os pingüins, os turistas hilários de meia branca até quase no joelho, outros de pochete achando que estavam na última moda (rá, última mesmo!), uns poucos com aqueles Crocs fluorescentes... E de repente, antes mesmo que eu me desse conta, eu já tinha abandonado toda a observação e estava com os olhos presos no rosto do Théo. Não sei por que, mas fiquei o encarando por um certo tempo. Eram tão bem feitas as linhas do rosto dele. Sem falar da pele branca cheia de pintinhas fofas no pescoço. Parecia uma verdadeira constelação, dava até vontade de ligar as pintas pra ver o desenho que formava...


Me perdi tanto tempo na dita contemplação que levei um susto quando o Théo abriu a boca. “Que foi?” ele perguntou ainda de olhos fechados. “Nada” eu respondi rápido desviando o olhar “Só estava imaginando como você está fazendo pra enxergar as coisas sem o Ray-Ban ou os seus óculos de nerd.” Ufa! Me sai bem... O Théo sacudiu a cabeça e riu. “Meu último recurso se chama: lentes de contato!” ele disse abrindo os olhos finalmente pra me encarar. “E por que você não usa sempre ao invés dos óculos?” “Sei lá. É meio irritante ter que colocar. Dá um certo nervoso. Só uso mesmo em ocasiões especiais.” “Ah, tá. E essa é uma?” “Totalmente” o Théo respondeu rindo pra mim. Eu ri também, mas senti uma sensação tão esquisita quando ele olhou nos meus olhos, uma mistura de vergonha com nervoso, que na mesma hora eu baixei a cabeça pra encarar o chão de novo. Acho que o Théo não chegou a perceber minha falta de jeito, pois ele pegou o meu queixo sem qualquer cerimônia e o ergueu. “Peraí. Tem um negócio no seu rosto” ele se explicou, enquanto tentava tirar alguma coisa que estava meio que grudada na minha bochecha. Quando ele finalmente conseguiu, eu vi que se tratava apenas de um cílio solto. Com certeza meu,


pois era longo e supercurvado, no estilinho bem de boneca mesmo, como os da Alice. “Diz aí. Quer fazer do jeito brasileiro ou americano?” o Théo perguntou segurando o cílio bem perto do meu rosto. “Como assim?” eu rebati. “É, tipo, no Brasil a gente faz um desejo, depois pressiona os nossos polegares com o cílio bem no meio deles e no final, quando a gente separa os dois, quem fica com o cílio grudado no dedo é que vai ter o pedido realizado. Lembra? Então, já aqui nos Estados Unidos a brincadeira não é assim. O dono do cílio é quem faz o desejo e depois sopra ele pra que o vento leve o cílio e traga o pedido realizado. Entendeu a diferença?” Eu fiz com a cabeça que sim e, após pensar um pouco, acabei me decidindo pelo jeito brasileiro, já que parecia mais justo. Não que eu acreditasse realmente nessas coisas de cílios realizadores de desejos... Era só pela brincadeira mesmo. Então o Théo e eu unimos nossos polegares e ele me disse pra pensar numa coisa que eu desejasse muito mesmo, do fundo do meu coração. De primeira, eu quis pedir pra voltar pro Brasil, mas depois achei que seria melhor apenas desejar ter uma vida feliz. Era bem genérico, mas se eu for analisar bem, voltar a viver no meu país estava meio que embutido nisso. O Théo ficou olhando pra mim enquanto fazia o pedido dele e quando terminou quis saber se eu já


tinha feito o meu. Respondi que sim e nós dois finalmente separamos nossos polegares. Como o cílio havia ficado no meu dedo eu comemorei igual a uma criança boba e no mesmo instante guardei ele dentro da gola da blusa, como a brincadeira manda. “Será que eu podia perguntar o que você pediu?” O Théo falou parecendo curioso. “Não. Porque se eu contar, o desejo não se realiza!” eu respondi dando uma careta pra ele. “Quer saber o meu, então?” o Théo perguntou meio que sorrindo, mas o sorriso lindo dele se desmanchou assim que o seu telefone começou a tocar o refrão de “Stick with you” das Pussycat Dolls. O que, vamos combinar, é uma música um tanto incomum de se ouvir num telefone de menino. Ele tirou o celular do bolso de trás da calça e, como nós ainda estávamos muito próximos um do outro, eu sem querer vi pelo identificador de chamadas quem estava ligando. Por que além do nome “Zoey” gritando ali na tela, havia também a foto de uma menina loira maravilhosa, mais ainda que a tal Megan que eu tinha visto no Ale House (só chovia mulher bonita em cima desse cara ou era impressão minha, hein?) O Théo balançou a cabeça fazendo uma careta meio estranha e ficou um tempo sem reagir de fato, apenas ouvindo o telefone tocar aquela musiquinha chata. “Você pode atender se quiser, sabia?” eu disse num tom de brincadeira.


“Não. Não vale a pena. É só o passado querendo me incomodar.” O Théo disse recusando a chamada. Depois desligou o telefone. Eu me levantei antes que ele pensasse em me dar uma explicação (porque eu não precisava de nenhuma dada a obviedade daquilo tudo: o cara simplesmente tinha dois rolos!) e disse que era melhor a gente ir procurar a Ana e as crianças. O Théo ainda me perguntou se eu não queria ficar descansando só mais um pouquinho, mas eu disse que aqueles minutos já tinham sido suficientes (que mentira!). E então nós partimos pra encontrar os pequenos no “Shamu happy harbor”. Ainda fomos em outros brinquedos depois disso (eu estava mal humorada demais pra aproveitar, acho que a comida do restaurante dos tubarões não deve ter caído bem ou coisa assim) e só mais tarde é que vimos os shows que o parque exibia. A Bibi adorou o espetáculo com dois leões marinhos treinados chamados Clyde and Seamore mesmo sendo a trigésima vez que ela assistia. Já o Dani ficou alucinado mesmo foi com o show Believe e eu vou te dizer por que: ele finalmente viu a bendita orca que o Théo falou! Pra ser sincera até eu adorei esse show, pois era realmente fantástico ver uma baleia enorme, nadando em um tanque maior ainda e dando piruetas no ar como se não pesasse toneladas. Meu mau humor foi até embora naquele momento. A Ana, no entanto não


gostou nadinha do show, já que a baleia (que era chamada de Shamu) simplesmente começou a jogar a água do tanque com a cauda bem em cima da platéia e acabou sobrando pra gente também. Bom, não posso culpar minha prima de todo, afinal ela nos avisou que isso iria acontecer e, além disso, tinha passado chapinha no cabelo bem naquele dia e agora ele estava totalmente arruinado. Todos nós saímos muito molhados do show, encharcados pra ser mais precisa e, vou te dizer, valeu muito à pena ganhar todo aquele banho, ainda mais pelo fato de estar fazendo um calor horroroso naquela tarde. No final foi o Théo que se prontificou a nos levar pra casa. A Ana disse que não precisava, pois ela iria ligar pro Vini pra ele vir nos buscar, mas o Théo fez questão e nós não tivemos como negar a carona dele. As crianças adoraram o parque, é claro, mas infelizmente ficaram cantando a música do espetáculo da baleia Orca durante todo o caminho da volta pra casa, então eu fui forçada a ligar o rádio do carro do Théo quase no volume máximo pra não ter que ouvir aquela cantoria desafinada deles. Apesar de que, pra ser sincera, nem mesmo o hip hop agitado da música “We on to the next one” do Jay-Z foi suficiente para abafar a voz do Dani e da Bibi. O Théo por sua vez ficava sacudindo o cabelo molhado dele em cima de mim sempre que parávamos em um sinal de trânsito, mas eu prontamente revidava


fazendo cosquinha nele. Algo que a Ana com certeza desaprovava, porque a pude ver pelo retrovisor revirando os olhos várias vezes no banco de trás. Théo e eu, no entanto não estávamos nem aí pra isso. Continuamos na nossa criancice, rindo e implicando um com o outro até chegarmos a casa. É, meu humor havia se restabelecido totalmente! Acho que foi algo que eu comi mesmo... Fora o momento rabugento da Ana, foi um dia bem legal, e o melhor de tudo é que hoje eu não causei nenhum dano material ao Théo nem a mais ninguém. Engraçado é que pela primeira vez desde que cheguei aqui eu não senti falta do Brasil. É óbvio que não esqueci minha terrinha, mas o dia de hoje foi de certa forma especial. Eu nunca me diverti tanto quanto me diverti no Sea World hoje ao lado do Théo e das crianças, e acho que posso dizer que Orlando não é tão ruim assim no fim das contas. Além do mais parece que minha sorte finalmente está começando a mudar... Ah, e antes da gente entrar em casa, o Théo convidou a Ana e eu pra irmos a pequena festa de boas-vindas que o seu melhor amigo, um tal de Kevin, ia dar na quarta-feira pra comemorar a volta dele pros Estados Unidos. Minha prima quase teve um treco quando o Théo disse o nome desse garoto e confirmou na mesma


hora a nossa presença, mas eu disse que primeiro iria ver com a minha mãe se eu poderia mesmo ir. E depois de nós nos despedirmos do Théo e entrarmos em casa a Ana começou a pular feito uma doida dizendo que havia sido convidada pra uma festa do Kevin (seja lá quem esse garoto for!) Ainda bem que não tinha quase ninguém em casa pra ver a cena. Só minha irmã Alice, que ainda falava com as amigas pelo Skype e se desculpou com elas pelos gritos da Ana dizendo que os hambúrgueres dos McDonald’s daqui são alucinógenos. 20:02- Não esquecer de descarregar no notebook da Ana as fotos que a gente tirou no Sea World hoje e também entrar no MSN pra fofocar um pouco com a Mari!

12 de Junho (domingo) quintal de tia Vivian.

09:10- Eu estou totalmente falando sobre o convite do Théo com a minha mãe... É. Por telepatia! Sendo sincera agora, ela nunca vai me deixar ir numa festa desse tipo, ainda mais depois da mamis ter


visto todos aqueles filmes antigos (ok, apenas partes) da saga “American Pie”. Ela acha que os garotos americanos não passam de um bando de animais hiperassexuados constantemente em busca de acasalamento e festas uma mera desculpa social pra se entrar em coma alcoólico. Eu sei que é exagero dela, mas minha mãe ainda acha que eu sou uma criancinha bobinha, sem falar que ela está sempre com o alarme de “perversão” ligado na cabeça, então as possibilidades de eu ir a essa festa do amigo do Théo são mínimas. Além do mais, aposto que o Théo não vai nem sentir minha falta lá, dado o pequeno harém americano cheio de Megans e Zoeys que ele tem. Nem sei como contar pra Ana que eu não vou à festa. Ela parecia tão animada. P.S.: Hoje é dia dos namorados no Brasil, mas aqui nos Estados Unidos se comemora em outra data, 14 de fevereiro. Melhor assim! Não agüentaria ficar nesse país e, ainda por cima, vendo casaizinhos apaixonados fazendo programinha a dois, enquanto eu estou às traças. Se bem que eu não deixei de ficar meio deprimida com a data. O Vini até reparou a minha cara de velório e perguntou o que ele poderia fazer por mim. Eu agradeci, mas disse que nem um caminhão de flores iria melhorar meu humor. Então ele disse que compraria dois... Ai, o Vini é tão piadista!


11:10- Não! Ela não fez isso! Fez? Meu Deus, como ela consegue? Sim, porque uma coisa é você inventar uma mentirinha inocente, que não fere ninguém, outra é você tramar uma verdadeira teia imbricada de mentiras! E foi isso que a Ana fez pra convencer minha mãe e a dela a nos deixar ir á festa do Kevin. Ou nas palavras da minha prima “a uma mini festa do pijama na casa da melhor amiga dela, a Brittany, para apoiá-la e confortá-la nesse momento de dor pela morte de seu avozinho há alguns dias.” O pior é que a mentira descarada colou! Só que o único detalhe dessa coisa toda é que o avô da Britt morreu vinte anos atrás! VINTE ANOS! Isso significa que o velinho a essa altura já virou pó coitado! A Ana decididamente não tem escrúpulos, e eu juízo por participar de uma armação tão maluca como essa. Onde está aquela garota boazinha e inocente de Estrela que em raras ocasiões mentia pra mãe e o máximo de maldade que fazia era tentar afogar a prima na piscininha que não tinha nem 10 centímetros de água, hein? Morta e enterrada igual ao pobre vovozinho da Brittany?


Pois é! Lista VIP do inferno que nada! Eu vou é passar a eternidade por lá limpando os banheiros com uma escova de dentes!

15:30- Eu estava agora a pouco deliberadamente pensando em inventar uma hepatuberculose viral tipo D ou qualquer outra doença altamente contagiosa e falsa para não ir a festa, quando o Théo ligou perguntando se eu já tinha pedido permissão pra minha mãe, porque ele precisava saber o número certo de pessoas que realmente iriam, já que o tal Kevin disse a ele que não poderia fazer nada muito grande devido ás regras do condomínio onde ele mora. Nisso, eu movida por uma estranha força vinda sabe lá Deus de onde, disse que a Ana e eu apareceríamos na festa com certeza! (Um minutinho só que eu vou pegar minha consciência ali no lixo, tá?) O Théo pareceu animado ao telefone, mas depois disse uma coisa totalmente sem cabimento. Achei até que eu é que tivesse me confundido por causa da ligação barulhenta (ele devia estar na rua ou coisa assim), mas acho que foi isso mesmo: “Vermelho ou rosa?” ele perguntou do nada. “Hein?” “Vermelho ou rosa?” ele insistiu. “É que eu estou aqui com a minha irmãzinha escolhendo uma coisa pra minha madrasta e quero sua opinião.” “Ah, mais aí depende. Escolha do quê?” eu falei.


“Coisas de decoração... Só diz ‘vermelho’ ou ‘rosa’, Babi.” Eu pensei um pouco e respondi “Rosa?”. E então ele respondeu “Ok. Muito obrigada pela ajuda.” e depois de se despedir, desligou. ????????????????????????? Primeiro a Ana fica cheia de mistérios, depois o Théo me faz uma pergunta super louca... Deve ter alguma coisa a mais na água de Orlando. Bem que eu achei esse negócio de poder beber direto da torneira muito estranho. “Não tem problema não, é limpinha!” a minha tia disse sobre a água. Sei! E depois metade da cidade começa a falar coisas sem sentido e vira zumbi! 18:05- Mamãe, Dani e tia Vivian acabaram de sair pra ir ao culto da igreja brasileira que ela freqüenta aqui em Orlando. Meus primos não foram, pois disseram que preferiam ficar fazendo companhia pra Alice e pra mim, mas a verdade é que eles não fazem muito o tipo “religiosos” e qualquer desculpa pra cabular a igreja é válido pra eles. Espertinhos... 20:10 - Não acredito no que aconteceu agora a pouco. Não, não dá pra acreditar! Eu devo estar sonhando! Acho que meu coração vai sair pela boca de tanto emoção. Eu preciso me acalmar. É, é isso, eu tenho que ficar calma pra conseguir processar esse buquê


enorme de rosas cor de chá que o entregador deixou aqui há pouco mais de meia hora. Tinha até um cartão pequeno dentro, mas tudo que estava escrito era isso:

Don’t be afraid if I’ll go crazy for you Don’t be surprised if I fall at your feet I don’t care about what they’ll think of me I don’t know what to do ‘Cause I’m falling for you. (Can’t live without your love)

Mais nada. Sem assinatura, sem dedicatória. Nadinha mesmo! Eu havia ganhado um buquê de flores -pela primeira vez na vida - e nem sabia de quem era! Quero dizer, na hora eu pensei que tivesse sido o Vini, já que ele veio com toda aquela história de que compraria caminhões de rosa pra me alegrar, mas quando eu recebi o buquê ele pareceu tão surpreso quanto eu. Ficou até meio vermelho. Mas se não foi ele, quem mais poderia ter sido? Théo? Não, nem pensar! O garoto me conhece há pouquíssimo tempo pra fazer uma coisa desse tipo. Aposto que foi engano. A Ana até sugeriu isso também, quando o Vini pediu pra ver o cartão e ficou


me interrogando se eu tinha algum admirador no Brasil, ao que minha irmã Alice falou que se eu tivesse um, esse garoto devia ser louco ou cego no mínimo. E é verdade. Quem em sã consciência iria se apaixonar por mim? A menina de sorriso metálico menos atrativa da face da terra? Com certeza o entregador deve ter errado o número da casa. Se bem que ele estava procurando por uma Bárbara pra entregar o tal buquê, mas como a minha irmã mesmo disse, esse nome é comum nos Estados Unidos. Tanto que daí vem o apelido da boneca mais famosa do mundo, a “Barbie”. Além do mais, o interior do cartão tinha uma música em inglês. Provavelmente vinha de algum americano. O fato de hoje ser dia dos namorados no Brasil foi só uma coincidência... Minha mãe, que chegou agora a pouco da igreja com Tia Vivian, reparou logo nas rosas que eu coloquei num vaso bem em cima do meu criado mudo. Eu expliquei que elas tinham sido fruto do engano de um entregador avoado e mamãe disse que a garota que iria receber devia estar muito triste agora, pois aquelas rosas chá eram muito bonitas. E vou te dizer, eram mesmo! E o perfume... hummm nem se fala. Pena que elas não eram verdadeiramente pra mim. Acho que nem vou comentar sobre isso no email que vou mandar pra Mari hoje. Se ela já ficou insinuando que o Théo tinha gamado em mim só por


que eu contei a ela das gentilezas que ele me fez no avião e no Sea World, imagina o que ela não vai pensar dessa vez? Provavelmente que eu já arranjei algum namorado aqui e não quis contar pra ela!

P.S.: Mesmo não sendo pra mim, de qualquer jeito guardei o cartão. A Ana traduziu o conteúdo dele e eu achei tão romântico que não consegui nem pensar em jogar no lixo. Até resolvi escrever o significado da música nesse diário e colei o cartãozinho aqui (digo, na outra página):

“Não tema se eu ficar louco por você Não se surpreenda se eu cair aos seus pés Eu não me importo com o que eles vão pensar sobre mim Eu não sei o que fazer Porque eu estou me apaixonando por você”

Ai, ai. Ainda estou suspirando...


13 de Junho (segunda-feira)

09:23- Eu amo ser despertada de um sono profundo pelo meu irmãozinho hiperativo, enquanto ele pula em cima da minha cama dizendo musicalmente: “Ô, Babiê. A-cor-da! Babi cara de me-le-ca, a-corda-a que a gente vai sa-i-ir!” Adorável. Mas sair pra onde, cara pálida? E será que dá pra parar de bancar o coelhinho da Páscoa na minha cama? Isso aqui não é pula-pula não! Que saudade do tempo em que eu tinha um quarto só pra mim...


09:24- Ótimo. O Dani continua quicando ao meu lado...Se ele só chegar perto do vaso com as minhas rosas eu mando a criança pro Alaska! Se quebrar então... Porque será que a palavra “esterilização” não passou pela cabeça da minha mãe depois do meu nascimento, hein? 09:30- Ok. Eu ainda não sei direito pra onde vamos, mas independente disso, estou indo me arrastando pro carro do Vini sem questionar. Alice perguntou se eu não tinha ferro em casa pra passar minha cara amassada. Eu disse que não, mas que estava considerando seriamente em comprar um rolo compressor pra passar sim, só que por cima dela! Pediu, né? Ah, cara! Eu nem tomei café direito e já tenho que agüentar essas gracinhas da Alice de manhã... E afinal, pra onde a gente vai? 09:34- “Já estamos chegando, Vini?” o Dani perguntou. “Não.” 09:39“Já estamos chegando?” “Não.” 09:47“Já estamos chegando?” “Não!” 09:52-


“Já estamos chegando?” “Nãããããão!!!!!” 09:55“Já est...” “Já! Já! Já” meu primo respondeu aliviado, apontando pra direita dele “Olha o condomínio OakView ali!” E todos nós olhamos pro muro de tijolinhos vermelhos que exibia uma grande faixa amarela:

“Community Garage sale This week 8 a.m – 2.pm”

“O que é uma garage sale?” minha mãe quis saber fazendo a mesma pergunta que eu tinha na cabeça. “Significa ‘Venda de garagem’ ao pé da letra” a Alice respondeu. “Ou em outras palavras, tia Valkíria...” a Ana começou “... uma oportunidade bem brega dos americanos se livrarem das tranqueiras que eles não precisam mais e de brasileiros, bobos como nós, comprarmos por preço de banana essas mesmas tranqueiras que nós também não precisamos”. “Oh, então são tipo os brechós que a gente vê no Brasil, não é?” minha mãe perguntou. “É, mas só que aqui você vê de tudo mesmo tia” a Ana acrescentou “Desde coisas usadas de cozinha até brinquedos.”


“Maneiro!” o Dani disse dando um pulo supernanimado do colo da Alice. “E essa venda de garagem promete ser boa. Esse aqui é um condomínio de classe média alta” o Vini finalizou enquanto estacionava o carro já dentro do lugar. E foi aí, num evento totalmente casual e no meio de uma conversa mais banal ainda, que a minha mãe se virou do nada pra mim e perguntou: “Babi, e aquele seu amiguinho do avião? Você não o viu mais depois de terem se esbarrado no parque da baleia, não é?” “Que amigo é esse?” o Vini foi logo perguntando intrigado, olhando pra mim pelo espelho retrovisor. “Não sei direito. Qual era o nome dele mesmo, filha? Acho que começava com “t”, não é?” minha mãe perguntou fazendo força pra lembrar. “Ah, é. O Théo....“ eu respondi e “...AU!!!!”, não pude nem ao menos completar o que ia dizer, porque nessa hora fui atacada pela Ana, que me deu um doloroso beliscão disfarçadamente. “Não, ela não tem visto” minha prima respondeu por mim, me lançando um olhar altamente estranho “Também, Orlando é muito grande, tia Val! Talvez a gente nunca mais o veja.” Ela completou meio que pra fechar o assunto. “Oh, que pena. Seria bom pra Bárbara ir se enturmando com os adolescentes daqui. É sempre bom fazer novos amigos.” Mamãe disse enquanto abria a porta.


O Vini ficou encarando a Ana e eu por um tempo, sentindo que tinha alguma coisa no ar, mas como a Alice e o Dani já tinham saído do carro, ele resolveu se juntar aos dois. Minha prima Ana só cochichou um “depois eu te explico” no meu ouvido e saiu do carro também, me deixando mais curiosa ainda do que eu já estava. Mas afinal de contas, porque o Vini não pode saber sobre o Théo? Por que tanto mistério? E por que o beliscão da Ana ainda está doendo pra caramba? Ai ai ai....Vai ficar roxo! 11:40- É engraçado como essas vendas de garagem são um pequeno evento aqui nos Estados Unidos! Tem um bando de gente nesse condomínio agora e a maioria é de pessoas que vieram comprar as bugigangas semi-novas que os moradores daqui estão vendendo. Tudo fica em umas mesinhas improvisadas em frente a garagem do morador e com os precinhos em cima, e vou te dizer, a maioria das coisas sai por uma bagatela mesmo! Só pra se ter uma idéia, o Vini conseguiu negociar um controle quase novo pro Playstation 3 dele por apenas quatro dólares, minha irmã Alice comprou uma carteira original da Louis Vuitton por apenas nove e a Ana ( que inicialmente tinha dito com o nariz empinado que só gostava de comprar as coisas dela no tal shopping Millenia Mall) pagou vinte num par de


sapatos Jimmy Choo da coleção passada, que por sinal ela me garantiu que vai usar na festa do Kevin e dizer que é “Vintage” se alguém perguntar alguma coisa. E quanto a mim... bem. Eu fiquei maluca com uma jaqueta que era nada mais, nada menos que o uniforme de Quadribol do Harry Potter! Tinha até escrito o nome Potter e o número dele atrás! A Ana disse que eu poderia ir ao parque do Universal Studios e comprar um casaco igualzinho aquele -na parte que era especialmente dedicada ao bruxo- só que com a diferença de que esse seria novo em folha. Ao que eu disse que duvidava que saísse por menos de dez dólares, como foi o caso do meu. E, além disso, a jaqueta estava praticamente nova porque o dono, que era um menino, a tinha usado só três vezes. Depois teve uma explosão de crescimento e no inverno seguinte já não cabia mais nele! Mas apesar desse verdadeiro “achado” quem saiu ganhando mesmo foi o Dani. Ele conseguiu comprar um patinete por dez dólares, um conjunto de patins, joelheiras e capacete por nove e ainda levou de sobra uma boa grana da minha mãe! É que ela tinha dado pra ele só cinco dólares pra gastar na garage sale, mas como o patinete e tal saia por muito mais do que isso, o Dani simplesmente virou pra ela e falou: “Não, mamãe. Um Abbe Lincon só não dá. Eu quero é um Benjamin Franklin!” ele disse se referindo as notas de dólar. É que aqui cada valor vem


com a cara de um ex-presidente americano estampado. Minha mãe ficou tão orgulhosa que o pestinha estava se adaptando rápido ao país, que deu mesmo um Benjamim Franklin pra ele (detalhe que essa é a nota de CEM dólares!!!!!!!) É mole? O garoto ainda nem saiu da primeira dentição e já sabe como extorquir uma pessoa! Sem mencionar o fato de que não vive nem há quinze dias no país e já consegue diferenciar as notas americanas! Enquanto que eu... Rá! Não consigo nem falar “Me passa o ketchup, por favor?” Vergonha. Mais tarde Ana e eu fomos dar uma volta no resto do condomínio pra ver o que tinha à venda nas outras casas, já que mamãe estava superentretida negociando (com a ajuda da Alice, óbvio) uma cafeteira que mais parecia uma mini nave espacial e o Vini experimentando uma bola de basquete autografada, sei lá por quem (mas pelo visto muito importante) do time Orlando Magic. Ana e eu demos uma volta num pequeno lago que tinha no condomínio e decidimos olhar umas coisas que uma garota morena estava vendendo bem na frente da casa dela. Não era nada demais, só alguns ursinhos velhos e muita tranqueira pra falar a verdade, mas eu me senti incomodada porque a garota ficou olhando fixo pra gente o tempo todo. Parecendo estar nos analisando ou algo assim.


Só depois, quando a Ana disse pra gente ir embora, a garota deu um grito: “Eu sabia! Vocês são brasileiras também!” e foi logo se apresentando toda empolgada. O nome dela era Michelle e antes de se mudar pra Orlando, há uns dois anos atrás, ela e os pais moravam em Águas Claras, uma cidade satélite de Brasília. Achei engraçado como nesse país a gente encontra um bando de brasileiros e já sente uma familiaridade absurda com eles. É só falar da terrinha tupiniquim e todo mundo fica conversando como se fosse amigo de infância. Parece que o Brasil é um estado só. Não há regionalismos, sotaques, cultura local ou nada que diferencie a gente. Pisou aqui somos a mesma coisa, somos só brasileiros e ponto final! A Ana até me disse de brincadeira que é mais fácil achar um Brasileiro em Orlando do que um chinês em Pequim. Eu sei que ela estava exagerando, mas no fundo minha prima tinha um pouco de razão. Seja visitante ou morador, a gente sempre topa com um brasileiro em cada esquina daqui. Ficamos conversando um pouco com a Michelle sobre isso e ela acabou perguntando se nós éramos imigrantes também. A Ana respondeu que sim, só que ela tinha o Green Card enquanto que eu tinha entrado no país com visto de turista apenas. E foi aí que a segunda ficha finalmente “caiu” no meu cérebro... Tin-dlim!


Eu era uma imigrante! Não igual aquele povo que entra ilegalmente pelo deserto lá do Texas, correndo o perigo de levar uma bala na bunda ou morrer de sede e hipotermia, mas de qualquer forma EU ERA UMA IMIGRANTE! Senti uma coisa tão estranha por dentro depois dessa constatação... Interrompendo meus pensamentos, mas até parecendo que tinha lido eles, a Michelle disse que infelizmente estava ilegal no país, porque o contador incompetente do pai dela esqueceu de revalidar o visto deles por mais seis meses. Mas ela disse que o pai já tinha entrado com um recurso na justiça americana pra ver se dava um jeito nessa situação complicada e que agora a família estava apenas esperando o veredito. Só que a parte triste da coisa toda é que, por causa da ilegalidade deles no país, a Michelle disse que raramente saia do condomínio com medo de esbarrar com a polícia e eles a deportarem. Segundo ela, se te pegarem aqui com o visto vencido os caras não te deixam nem ir em casa pra você arrumar as malas. Da delegacia tu vais direto pro aeroporto e tchau! É literalmente chutado do país com uma mão na frente e outra atrás! Sem falar que, em alguns casos, eles te dão remédios antes da hora do embarque, a maioria desses pra esquizofrenia, e desse jeito te põem dopadaça num avião rumo ao seu país. Me deu um arrepio só de pensar nisso... A gente ainda ficou conversando com a Michelle mais um tempinho sobre ilegalidade e tal, até que eu e


a Ana nos despedimos (sem comprar nada) e fomos fazer o caminho inverso ao do lago pra tentar encontrar mamãe e o resto da família. Como eu percebi que, por causa da Michelle, a Ana tinha esquecido do assunto sobre o Théo (ou fingido, vai saber...) fui eu quem puxei a conversa antes que a gente chegasse perto do Vini. “Então. Você vai me contar que história é essa do seu irmão não poder saber sobre o Théo ou não?” O engraçado é que minha prima não ficou surpresa por eu estar levantando o assunto, ela apenas suspirou e falou pra gente sentar em baixo de uma árvore que tinha bem perto do tal lago enorme. Eu não gostei muito da idéia de início, pois pra mim podia sair um jacaré ou crocodilo a qualquer momento dali (ainda não conseguia esquecer aquela história do baby jacaré que quase mordeu a prima do Douglas), mas não tive escolha se não acompanhar minha prima. “A questão Babi...” ela começou enquanto se sentava. “... é que o Vinícius odeia o Théo.” “Peraí! Então eles já se conhecem?!” eu perguntei meio embasbacada, quase cuspindo meu aparelho pra fora da boca. “Há anos...” a Ana respondeu com uma cara estranha. E então ela começou a contar a confusão que tinha acontecido entre os dois. Segundo minha prima o Théo, o Vini e ela estudavam na mesma escola a, Gotha Middle School, sendo que o Théo e o Vini eram da mesma turma na época.


Um dia o Vini disse pra professora que precisava ir á enfermaria da escola e não voltou mais pra sala. O Théo também pediu um passe, só que pra beber água, e acabou passando pelo Vini que estava parado igual a um maluco no corredor. Minutos depois disso, quando o Théo já estava voltando pra aula, o alarme de incêndio disparou e todo mundo começou a correr em pânico pra fora das salas. Só depois de um tempo da confusão ter diminuído e dos bombeiros terem chegado, é que foram perceber que não havia fogo nenhum. Ai então começou a “caça ás bruxas” pra saber quem é que tinha disparado intencionalmente o alarme porque, segundo a Ana, isso é uma coisa muito grave aqui nos Estados Unidos! Todos os alunos que tinham recebido passe naquela hora foram interrogados pelo diretor da escola e o Théo contou que as únicas pessoas que ele tinha visto no corredor foram um japonesinho do oitavo ano e o Vini. E aí a culpa de tudo logicamente caiu sobre o Vini porque ele era repetente, imigrante, andava com aquelas roupas todas esquisitas de roqueiro e já tinha sido expulso de uma escola de Orlando uma vez, por ter dado um soco num colega de sala que tinha chamado ele de “latino idiota”. Com isso o Vini foi expulso da Gotha Middle, mesmo ele jurando que não tinha culpa alguma na história (segundo a Ana não teve mesmo), e até hoje ele acha que o Théo foi o responsável pela expulsão


dele. Por isso os dois não podiam nem se ver. Se bem que, segundo minha prima, eles estavam tão diferentes agora que provavelmente nem se reconheceriam mais (pelo menos não se reconheceram quando eles passaram bem perto um do outro no Ale House), mas ela disse que não valeria à pena arriscar. De imediato eu fiquei realmente triste pelo Vini e também um pouco pelo Théo, que acabou ganhando um inimigo mortal e fama de dedo duro (mesmo não sendo um), mas eu logo me lembrei do que a minha prima tinha dito a pouco, e fiquei com a pulga atrás da orelha. O que a Ana não poderia arriscar, afinal? “Calma. Não é o que você está pensando, não.” ela disse quando eu a interroguei sobre isso. “Eu to com segundas intenções sim, mas não é com o Théo. É com o Kevin.” Ela completou. “Você tem uma queda por esse tal garoto aí?” “Queda? Queda não. Eu tenho é um tombo!” ela disse admitindo, mas ficando vermelha. O que era engraçado, porque a Ana parece sempre tão confiante que ninguém conseguiria imaginá-la com vergonha de alguma coisa. “E como providencialmente você ficou ‘amiga’ do Théo” ela continuou falando, enquanto fazia aspas aéreas com os dedos ao dizer a palavra ‘amiga’. “... eu tenho chances de chegar mais perto do Kevin. Por isso é que venho tentado manter o ‘cabeça de cogumelo’ do meu irmão longe do seu amiguinho. Porque sem Théo, sem Kevin. Entendeu?”


É, agora fazia sentido mesmo... Mas eu só não saquei a questão das aspas aéreas quando ela falou a palavra “amiga”. E muito menos tive a chance de esclarecer isso, porque a Ana colocou os olhos em uma casa um pouco mais a frente ao lago e simplesmente gritou quando avistou tio Oscar fincando uma placa escrito “sale” no jardim dela. Eu sabia que ele era corretor de imóveis aqui na Flórida e especializado em atender brasileiros e todos os outros tipos de latinos que quisessem comprar casas pela área de Orlando, mas não achava que poderia encontrar com ele assim, do nada, em pleno condomínio do outro lado da cidade. Foi uma surpresa total e pra todo mundo. Tanto que quando nós nos aproximamos, nosso tio levou um baita susto ao nos ver. Nós brincamos falando sobre a careca dele que estava “brilhando” de suor (afinal ele tinha fincado a placa sozinho naquele jardim, ainda por cima debaixo de um sol escaldante) e ele disse que tinha sido até bom a gente ter se encontrado ali, porque precisava falar com a minha mãe a respeito de uma vaga de emprego. Como eu sei que minha mãe está ficando desesperada pra conseguir um, Ana e eu fomos correndo dar a notícia a ela antes mesmo que tio Oscar pudesse entrar no carro dele e alcançar a gente. E agora os dois estão conversando sobre o tal “job”, como a Ana disse em inglês, e eu estou sentada


debaixo da sombra gostosa de uma árvore na entrada do condomínio, tomando conta da cafeteira espacial que mamãe conseguiu comprar por vinte dólares, enquanto vejo meu irmãozinho se esborrachar de patins na minha frente (calma, foram só uns arranhões. Ele vai sobreviver). Pelo menos o dia foi bem proveitoso. Comprei um uniforme de quadribol do Harry por uma bagatela, descobri o mistério que cercava o Vini e o Théo, e agora é só esperar chegar o dia da festa do Kevin. Porque fora isso não tem mais nada realmente legal pra acontecer na minha vida e, segundo a Ana, essa festa vai ser o evento do ano! Ai, ai. Já estou me vendo no meio daquela americanada toda, sem saber falar um pingo de inglês e ainda por cima com a maior cara de tacho do mundo! Acho que vou seguir o conselho dos pingüins do filme Madagascar: “Apenas sorria e acene, sorria e acene...”

13 de Junho (terçafeira)


Closet do quarto de Hóspedes

15:31- A Mari me ligou tem algumas horas e nós ficamos por quase 50 longos minutos no telefone. A dona Sílvia, mãe da Mari, com certeza vai colocá-la num castigo perpétuo quando vir a conta telefônica, mas não foi minha culpa. A gente precisava realmente botar o papo em dia e, toda vez que eu falava pra Mari desligar, ela se recusava dizendo que ainda não tinha matado suficientemente as saudades de mim. Eu, por minha vez, também não estava nem um pouco a fim de desligar (só fiz isso por forças externas que me obrigaram!). Ouvir de novo aquela voz familiar da minha melhor amiga me acalmava tanto! Era como se ela estivesse me ligando da casa dela, bem no final da minha rua, e mais tarde eu fosse dar uma passada lá pra estudar o último exercício de Química e depois ficar até tarde vendo alguma maratona de séries no canal Sony. Bons tempos... A conversa entre nós duas ia muito bem (a Mari sempre tentava me fazer rir e absolutamente conseguia) se o assunto, que até então era sobre a nova dieta maluca da Isabela, não tivesse descambado pro lado do Théo. Não sei por que, mas a Mari estava ficando particularmente interessada nisso e eu não


consegui desviar a conversa pra qualquer outra coisa por mais que tentasse. Quero dizer, na verdade eu meio que sabia sim o porquê de tanta vontade dela em falar sobre ele... Mari: Babi, o garoto é supergracinha com você no vôo, insiste em levar vocês ao parque, te chama pra festa de boas vindas dele e isso porque ele sofre da ‘Síndrome de Gasparzinho, fantasminha camarada”? Eu: Síndrome do quê? Mari: É. Tipo, chega pra qualquer um e pergunta ‘Você quer ser meu amiguinho?’ Ah, por favor, né? Claro que não! Eu (falando bem baixo): Então você acha mesmo que ele pode estar querendo ser mais do que amigo? Mari: Óbvio! Ninguém faz tudo isso por uma garota que acabou de conhecer, a não ser que esteja realmente interessada nela. Amizades não nascem instantaneamente assim. Eu: Mas nós ficamos amigas meio que do nada também... Mari: Acontece que você já estudava no mesmo colégio que eu quando veio morar na minha rua. A gente já meio que se conhecia de vista. E, além disso, nós somos meninas! Essa coisa de menino ficar amigo de menina é meio difícil, sempre rola uma tensão sexual. Eu (olhando pro sofá e me certificando que o Dani e a Alice estavam prestando mesmo atenção no desenho


do Cartoon Network): Amiga, eu posso te assegurar que não tem nada sexual rolando entre eu e o Théo! Mari: Ai, sua tonta. Quando eu digo isso, é claro que não é no sentido literal da palavra, né?! Estou falando da tensão entre os sexos. Masculino e feminino... Eu: Ah... Eu sabia disso... Mari: Ahã... Sei!

Risos Mari: Babi, essas investidas desse Théo não são por acaso. E eu se fosse você deixaria de ser boba e aproveitaria, porque ele é um gato! Lembra tanto aquele garoto do Smallville, o que fazia o Super Homem adolescente... Só que o Théo é mais magrinho. Eu (sem entender nada): Peraí! Como você sabe disso? Mari: Dããããã! Você me falou o nome e o sobrenome dele uma vez, então eu procurei na internet ora! Se bem que foi um “parto” achar o garoto, porque o nome dele não é Theodoro não. Se escreve “Theodor”. Acho que a pronúncia em inglês deve ser “Tiodor” ou alguma coisa assim... Eu (boquiaberta): Mari, sua danada! Fuçou a vida do menino toda, é? Mari: Claro! Acha que eu vou deixar minha melhor amiga ser enrolada por qualquer um só porque é bonito, engraçado, tem pintinhas charmosas no pescoço, uns olhos azuis lindos e parece até o... Como é o nome daquele garoto de Smallville mesmo hein?


Eu: Tom Welling. Mari: é, isso! Esse gostoso aí!

Risos Eu: E o que mais você descobriu, senhorita detetive? Mari: Ahhhhh! Tá se remoendo por não ter tido a idéia de procurar o perfil dele na internet antes, né? Eu: Para de enrolar, Mari! Agora que você já fez o trabalho fala logo! Mari: Ok. Bom, ele... Mas aí justamente quando ela iria me dar uma informação que com certeza seria mega importante (ou não), minha mãe entrou toda avoada pela porta da sala e fez sinal pra eu desligar. Eu respondi com a cabeça que não, afinal essa era a primeira vez que eu falava realmente com a Mari desde que cheguei aqui em Orlando, mas mamãe pegou o telefone da minha mão, se despediu da Mari por mim dizendo que tinha uma coisa muito importante pra falar comigo e desligou. DESLIGOU!!!!! Eu fiquei terrivelmente chocada (pra não dizer irada), mas mamãe estendeu uma pequena caixinha preta pra Alice e pra mim pedindo toda empolgada pra que nós abríssemos. A meio que contragosto, fiz o que ela mandou, e vi que tinha um celular ali dentro, não desses de última


geração, mas um daqueles bem básicos (pra não dizer meio feioso). “Se isso aqui tiver pelo menos Bluetooth eu sou a rainha da Inglaterra!” a Alice disse toda sarcástica, mas mamãe não ligou nem um pouco pro comentário. Começou a explicar que o motivo de ter comprado aqueles celulares é porque ela queria ficar em contato com a gente todo o tempo agora que... (Pausa dramática) ...ELA TINHA CONSEGUIDO UM EMPREGO! Não vou mentir que não fiquei feliz pela mamãe, apesar de ainda estar com muita raiva dela por ter desligado o telefone na cara da Mari. Mas as novidades não pararam por aí e, após alguns minutos de euforia, é que veio a notícia estranha... “Que bom mãe! Você vai dar aulas onde?” eu perguntei toda inocente, ao que ela respondeu: “Aula? Que aula?! Querida, eu vou trabalhar como corretora na mesma imobiliária do seu tio Oscar.” Acho que nem preciso dizer que não entendi nada naquele instante. Minha mãe, uma criatura formada em Letras Espanhol-Português por uma faculdade FEDERAL e que ainda por cima havia feito pós graduação na ARGENTINA ia trabalhar vendendo casas????? Tá, tudo bem, ser corretora é até legal, e além do mais, mamãe só exerceu a profissão de professora durante poucos anos, porque aí veio a Alice e ela preferiu seguir a “carreira de mãe” depois disso,


virando uma verdadeira “madame” em tempo integral. Só que poxa, ela tem uma formação específica! Sem falar que é tão tímida quanto eu e sempre foi péssima pra vender coisas. Nem cartelas de bingo pra ajudar as obras de caridade da igreja ela conseguia fazer com que a vizinhança comprasse! Imagina uma casa?! Mais aí ela veio toda: “Ah, minha filha! Se quisermos viver em Orlando, nós vamos ter que nos reinventar daqui pra frente, e não se esqueça que a reserva de dinheiro que a gente conseguiu com a venda do carro não vai durar a vida toda. Eu preciso ganhar algum dinheiro logo pra poder continuar colaborando no pagamento das despesas da casa. Não quero mais mexer na poupança de vocês três.” É, no final das contas foram argumentos realmente razoáveis os dela... Acho que tenho uma mãe corretora a partir de agora. Ah, e de acordo com o manual que veio na caixa, um celular da operadora AT&T também! O plano é de meros vinte dólares, mas não tem problema. Se fosse no Brasil isso não daria “nem pra saída” de tanto que eu ia gastar falando com a Mari, mas aqui eu não conheço quase ninguém pra ligar. A Alice foi quem não gostou muito do celular que ganhou, disse que queria um Blackberry igual ao que ela tinha e não um Blackbrega como aquele. Ahã. Espera sentada que em pé vai cansar filha. Seus tempos de “patricinha” já eram!


15:50- O Vini acabou de chegar aqui em casa e adivinha? Ele conseguiu um emprego também, no turno da noite em um Mcdonalds! Nem sabia que ele andava procurando por um! Mas aí é que está. Meu primo me disse que estava fazendo aquilo porque precisava de dinheiro extra pra pagar a tia Vivian o que ela gastou com o conserto da lanterna do Honda Civic dele, pois não queria ficar devendo nada à mãe. Ou seja, o Vini vai ter que trabalhar por MINHA CAUSA! E sabe o que é mais incrível? Ele confessou que sumia às vezes durante o dia pra procurar emprego e não comentava nada com a gente pra que eu não me sentisse culpada. Muito legal da parte dele, eu sei, mas agora estou me sentindo pior ainda! Tenho que recompensar o Vini de alguma maneira, coitado. Ele não merece pagar “literalmente” por um erro meu.


14 de Junho (quartafeira) Suíte de tia Vivian ( dia da festa!!!!!)

11:40 – A Ana começou a “operação festa” hoje bem cedo depois que tia Vivian foi pro trabalho. E isso, é claro, me incluía. Assim que minha prima acordou ela foi ligar pra Britt e combinou direitinho a história sobre o tal “avô defunto” caso tia Vivian resolvesse ligar pra lá. Depois arranjou o telefone da companhia de táxi através do serviço de informações, pegou a chave reserva da Tinturaria de tia Vivian e foi procurar a mochila dela da escola. Minha prima ainda não me contou todos os detalhes sórdidos do plano, mas eu já sei que vêm algo grande por aí! Agora estou neste no banheiro enorme de tia Vivian, só de roupão, ouvindo “Party in the USA” da Miley Cirus que sai do IHome rosa da Ana, e com a cara toda


lambuzada de uma mistura melequenta feita com iogurte natural e mel. Minha prima, que está aqui comigo, me garantiu que essa máscara caseira vai hidratar minha pele e atrair todos os garotos na festa. Eu respondi a ela que contanto que isso não atraísse todas as abelhas da vizinhança eu já estava satisfeita. Antes disso a Ana me torturou um pouquinho depilando as minhas pernas, porque segundo minha prima “Perna peluda é igual a nota ruim: horrível de se mostrar e por mais que você tente esconder tem sempre alguém que vai ver!” Eu ri com a “filosofia depilatória” dela e nisso meu primo Vini entrou no banheiro, pra saber o que tanto a gente fazia há horas por lá. A Ana, que estava com uma máscara esfoliante da Aveda (a poção mágica dos produtos de beleza), deu um verdadeiro “piti” e expulsou ele aos berros, o chamando de cabeça de cogumelo, playmobil, abajur e por aí vai. Amor fraternal é lindo, não? Depois disso minha prima fechou a porta, nos trancou à chave lá dentro, pegou uma tesoura numa gaveta na pia de tia Vivian e veio pra cima de mim com um sorriso maníaco altamente suspeito. Quase morri de susto, afinal eu pensei que a Ana ia finalmente descontar aquela vez que eu quase afoguei ela na minha piscininha de plástico, mas minha prima apenas pegou o meu cabelo e disse: “Tá achando que é quem com essa juba enorme, Babi? A Rapunzel?”


Eu ainda estava tentando processar se aquilo havia sido um elogio ou um insulto (agora pensando bem, acho que foi mais pro lado do insulto mesmo) quando a Ana cortou uma mecha do meu cabelo. !!!!!!!!!!!!!!!!!!! Aí, eu pirei sério! “O que você está fazendo sua maluca?!” disse aos berros, correndo pra me trancar dentro do Box de tia Vivian. “Só tentando dar um corte nesse cabelo de Barbie caipira que você tem. Será que dá pra sair daí?” Não. É claro que não dava! E eu disse a ela que não ia colocar os pés pra fora do Box enquanto estivesse segurando aquela tesoura, mas a Ana pediu pra que eu confiasse nela e me assegurou que no final eu ia ficar tão bonita que o Théo não ia parar de olhar pra mim na festa. Eu acabei saindo do Box, não pelo o que ela tinha dito a respeito do Théo (ele já tinha bastantes garotas pra olhar, se quer saber!), mas porque eu tinha certeza de que a Ana não ia desistir até conseguir o que queria, então eu dei passe livre a ela pra fazer mesmo o que quisesse com o meu cabelo (contanto que não fosse nenhum corte no estilinho que o Johnny Depp fazia nos arbustos em “Edward mãos de tesoura”). E a Ana fez realmente o que queria com o meu cabelo... Só que pra ser sincera ainda não me olhei no espelho. Estou sem coragem até agora de saber como


ficou. Tipo, medo de ver e cair dura no chão de susto, sabe? Segundo minha prima meu corte é totally cool e eu vou arrasar corações hoje á noite. Mas pra ser sincera eu não acreditei muito nela não. Cara, eu já nasci zoada! Não vai ser um corte de cabelo, a retirada de células mortas de meu rosto ou a derrubada da Mata Atlântica dos meus membros inferiores que vai me fazer virar a Miss Estados Unidos!

[em Off] Será que eu tinha mesmo cabelo de Barbie caipira?

20:40- É isso. Já conseguimos passar pela primeira trincheira: mamãe e tia Vivian! As duas estavam na sala, assistindo a novela das sete pela Globo Internacional, quando nós nos despedimos pra irmos à casa da Brittany. Minha mãe quase me matou de susto nessa hora, pois eu nem bem tinha atravessado o quintal, quando ela gritou meu nome. Tremi na base, rezei pra todos os santos dizendo que era muito nova pra morrer, mas graças a Deus mamãe só queria me dar o aparelho que eu tinha esquecido dentro da caixinha em cima da mesa de jantar. Na verdade foi totalmente intencional esse “esquecimento”, mas pra disfarçar peguei o aparelho, enfiei na boca e sai correndo porta à fora, com a desculpa de que estava atrasada.


A segunda trincheira foi o Vini. Quando nós já estávamos paradas bem em frente à casa da Brittany ele perguntou a Ana o que ela estava escondendo na mochila da escola, ao que minha prima respondeu, na maior cara de pau, ser um tabuleiro do jogo War, pra gente brincar um pouco (ahã, invadir Sumatra depois de consolar sua amiga por horas devido ao seu vovozinho morto é realmente a “cereja no bolo” da diversão!) Claro que aquela desculpa não tinha como ser mais tosca, só que o Vini acreditou (cara, a Ana devia ser atriz!) e foi embora pro trabalho sem falar nada. Então minha prima chamou um táxi pelo celular, e agora nós estamos aqui na Tinturaria de tia Vivian (que está fechada pros clientes) terminando de nos arrumarmos pra festa. Tenho de admitir que estou começando a ficar meio nervosa. Mesmo eu já tendo me olhado no espelho umas cinqüenta milhões de vezes e visto que a Ana não tinha feito nada pavoroso no meu cabelo (só diminuiu o comprimento e fez uma franja curta) ainda estou me sentindo um pouco estranha com esse corte e a produção toda que minha prima “montou” em mim. Apesar dessa blusa que estou usando agora ter essa cor rosa-chá linda (bem parecida por sinal com a das rosas que eu recebi por engano) acho que ela é decotada demais pro meu gosto (mesmo que eu não tenha quase peito nenhum pra mostrar). E esses


brincos de argola pendurados nas minhas orelhas? Dá até pra brincar de bambolê com eles! Será que o Théo vai achar estranho quando me ver toda produzida desse jeito? E será que a Mari está realmente certa sobre ele gostar de mim? Não que eu esteja me importando com isso... Mas será? 20:52- Chegou o táxi que a Ana pediu. Ai, acho que vou vomitar! Oh, não , não posso! Estou com o meu aparelho! Ei, o que é que eu faço com isso por sinal? Não quero aparecer na festa de sorriso metálico. Por outro lado também não posso deixar ele largado aqui, sem ser dentro da caixinha... Ah, já sei! Vou enrolar ele num lenço de papel e colocar no bolso de trás da calça. Depois quando chegar em casa é só colocar de volta na boca e pronto! Mamãe nunca vai saber que eu o tirei. 20:54-Opa, o taxista já buzinou pela segunda vez. Agora eu tenho que ir mesmo. Festa do Kevin aqui vamos nós!

Ainda 14 de Junho (condomínio do Kevin)


22:40- Conclusão da noite: Megan é uma bruxa, Zoey é uma vaca, o Théo é um galinha e eu sou uma perfeita idiota! Porque isso? Não sei, talvez seja pelo fato de que chamar uma garota pra sua festa de boas vindas, onde também vai estar sua namorada malvada, não é a coisa mais decente que um menino pode fazer! Mas eu explico, pois tenho todo tempo do mundo aqui e não vou sair desse balanço enquanto minha prima não voltar (ou pelo menos enquanto os donos da casa de onde eu estou ocupando o jardim não aparecerem). Sabe o que é mais engraçado nisso tudo? As coisas estavam dando tão certo nessa noite, que eu pensei ter espantado de vez os meus “ clumsy moments”, como minha prima diz. A Ana e eu nem precisamos do mapa que o Théo (argh!) mandou por email ontem à noite pra que a gente conseguisse encontrar a casa do Kevin. Ela era a única dentro do condomínio Lake Vilma que estava tocando uma música superalta e tinha fileiras enormes de carros estacionados em frente, inclusive uma chamativa moto R1 verde e branca, que a Ana comentou ser o sonho de consumo do Vini. Então foi bem fácil achar a casa no final das contas. Nós tocamos a campainha rezando pra que alguém a ouvisse no meio daquela barulheira toda e, atendendo ao nosso pedido, um garoto moreno, de brinco e cabelo arrepiado, abriu a porta.


“Sorry. Do I know you?” ele perguntou tentando reconhecer a gente. “Probably not.” A Ana disse naquele inglês perfeito e maravilhoso dela “I’m Ana Frieling and this is my cousin Bárbara Henkels. Théo invited us to the party”. “Ah, é... Ele me falou que vocês vinham!” o garoto respondeu surpreendentemente em português. É impressão minha ou aqui você levanta uma pedra e encontra um brasileiro? “Mas vão entrando aí enquanto o Théo não chega. Ah, e a propósito. Meu nome é Fábio.” “Já vi que pelo sotaque é mineiro, né?” a Ana concluiu. “Yeap! De BH. Me mudei pra cá tem uns cinco anos.” Ele disse sorrindo de orelha a orelha pra minha prima. “E aí? Posso oferecer alguma bebida pra vocês? A gente tem de tudo: Cerveja, Red Bull, ‘Fada Verde’, refrigerante...” “Refrigerante está bom.” a Ana respondeu antes que eu pudesse perguntar pra ela o que era ‘Fada Verde’. O simpático Fábio disse que ia pegar duas latas de Coca pra gente, mandou ficarmos à vontade e foi em direção a cozinha, nos deixando na sala, no meio daquelas pessoas todas que eu não fazia idéia de quem eram e só falavam em inglês. (Deus, seria demais pedir pra apertar a Tecla SAP desse povo?) Apesar do Théo (argh!) ter dito pra gente que ia ser uma festa pequena por causa das regras rígidas do


condomínio, não era isso o que parecia estar rolando naquela casa. Tinha gente pra todo o lado que você olhasse, inclusive pessoas sentadas nos degraus da escada que levava ao segundo andar. Uns garotos riam, outros conversavam, um grupinho de meninas dançava mais adiante ao som de ‘ Club Can’t handle me’... Era tanta animação, que não perdia em nada praquelas festas fictícias que a gente vê nos filmes americanos. A Ana, no entanto, não estava nem aí pra isso. Parecia bem mais preocupada em procurar pelo Kevin e quase teve um treco quando o viu. “Ai meu Deus, olha lá ele!” ela disse apontando discretamente pra um cara alto, cercado por um grupinho de garotos fortões. E ele era do jeitinho mesmo que minha prima tinha falado: loiro, atlético, olhos verdes, bochechas meio rosadas por causa da pele absurdamente branca. Não me admira que a Ana gostasse do Kevin. O garoto era um monumento! “Aqueles caras em volta dele são o que a gente chama de ‘jocks’ aqui. Os atletas da escola. Todos eles fazem parte do time de futebol americano da Olympia High, inclusive o Kevin. Ele é o quarterback e é tão bom, que já foi até sondado pela Universidade da Flórida pra, quando terminar o colégio, jogar pelo time deles, os Flórida Gators. “ a Ana disse praticamente babando. Eu soltei um “Ah...” meio que pra dizer alguma coisa e continuei olhando em volta. Não fazia idéia do


que era um quarter-sei-lá-oquê e muito menos tinha visto uma partida de futebol americano na vida (pra ser sincera, nem do brasileiro eu sou muito fã). Então virei os olhos pro quintal dos fundos, que dava pra ser visto, pois a porta de vidro de correr estava aberta, e foi aí que eu a avistei, sentada perto da piscina, com um bando de loiras clones. Era a mesma garota que o Théo estava conversando naquele dia no Ale House. A tal Megan. Ela me olhou também, e tenho certeza que me reconheceu, mas ao invés de virar a cara, puxou o celular da bolsa na mesma hora, digitou rapidamente um número, e ficou o tempo todo me encarando, enquanto falava ao telefone. Nisso, um monte de gente começou a bater palma e gritar vários “u-hus” animados dentro da casa. Era pro Théo que tinha acabado de chegar. Ele não me viu logo de cara. Foi entrando na festa e cumprimentando todo mundo por onde passava, totalmente maravilhoso dentro de uma calça jeans e blusa pólo preta da Lacoste. Os garotos iam dando tapinha nas costas dele, fazendo aqueles cumprimentos estranhos que são uma mistura de abraço e aperto de mão (nesse ponto brasileiros e americanos são bem parecidos) enquanto que as garotas davam beijinhos nele ou faziam comentários lançando sorrisos totalmente derretidos. Não posso negar que ele parecia ser bem popular com o pessoal da escola. De repente o Kevin saiu do grupinho onde estava e chegando perto do Théo gritou: “Ladies and


Gentlemen. Here’s the man!” apontando pra ele. A música parou na hora. Todo mundo começou a bater palma e gritar o nome do Théo. Ele ficou meio envergonhado, mas agradeceu parecendo realmente mexido com aquela demonstração do povo da festa. Um garoto, que estava estacionado perto da lareira, disse meio irônico: “Ohhhhh. He’s gonna cryyyyyy!”, ao que o Théo riu e respondeu brincando “Yeah, Zac. I missed you too.” Depois começou a agradecer a todos pela festa, disse que estava muito feliz por estar de volta a Orlando e que sentiu falta de cada um quando estava no Brasil. Ele deve ter dito mais algumas coisas, mas a Ana já parecia estar de saco cheio de traduzir o discurso dele pra mim então eu só sei até aí. Assim que o Théo terminou de falar todo mundo ergueu os copos de plástico ou as garrafas de cerveja e ofereceram um brinde a ele. A música voltou a explodir nos alto-falantes e alguns minutos depois a festa estava bombando mais uma vez. O Théo parou pra cumprimentar direito o grupinho do time de futebol americano que conversava com o Kevin e no momento em que socava de mentirinha a barriga de um garoto gordão ele finalmente me viu. Meu coração deu um pulo (eu já disse que sou uma total idiota, não disse?) quando ele começou a se aproximar de nós sorrindo. Parecia realmente feliz em ver a gente.


“Caramba! Não acredito que vocês vieram mesmo!” disse enquanto dava um beijo na Ana e em mim (aqui se cumprimenta desse jeito, nada de dois beijinhos como a gente faz no Brasil. É um só e olhe lá). Eu fiquei vermelha com a aproximação do Théo, mas tentei me acalmar. O cheiro de sabonete e perfume que desprendia dele era tão bom que, apesar da minha asma, eu queria ficar sentindo aquela mistura de aromas a noite toda... “Ei, você fez alguma coisa no cabelo. Não fez, Babi?” ele perguntou olhando pra minha cabeça. “Meu Deus! Um homem que repara!” A Ana disse fingindo estar chocada. “É isso que dá conviver com cinco irmãs.” O Théo disse rindo. “Mas eu gostei Babi, é sério. Esse corte conseguiu te deixar mais bonita ainda do que você já é.” Nesse momento eu quase explodi de tanta vergonha. Só consegui ficar mais travada ainda quando o Théo olhou pra minha blusa. “Você gosta da cor rosa chá?” ele perguntou pra mim. Afirmei com a cabeça. “Que bom.” Ele respondeu e riu. Hein? Eu fiz aquela cara de “não entendi nada” (por que eu realmente não entendi nada!) e na mesma hora a Ana deu um espirro superestranho, que mais parecia ter o som da palavra “tapada” do que um comum


“atchim”, e saiu de perto da gente dizendo que ia procurar lenço de papel no banheiro. Detalhe que ela nem fazia ideia de onde era. “Sua prima é uma figura.” O Théo disse. “Ela é louca, isso sim!” Eu brinquei. E aí um silêncio meio estranho se instalou entre a gente, mas o Théo continuou olhando pra mim com aqueles olhos azuis lindos. Fiquei pensando se o que a Mari disse sobre ele estar gostando de mim era verdade. Comecei a ficar vermelha de novo. “Que música é essa que está tocando?” perguntei só pra cortar o clima estranho. “Sweetest girl. Se não me engano do Wyclef Jean com o Akon, a Lil Wayne e a Nia.” ele respondeu mostrando que entendia mesmo de música. Silêncio de novo. Dessa vez eu não sabia mais pra onde olhar. “Que festaça, hein!” comentei meio que pra ter algum assunto. “Coisas do Kevin e do Fábio. Eu disse que não queria que eles fizessem nada muito grande, mas às vezes falar com esses dois malucos é o mesmo que falar pro vento”. “Ah, pelo menos todos os seus amigos estão aqui. É isso que importa, não é?” “Eu não preciso de toda essa gente.” Ele afirmou enfiando a mãos nos bolsos. “Só de uma pessoa, e ela já chegou. Então...”


Opa. Será que ele estava falando de mim? Não, não podia ser... De qualquer maneira, eu desviei meu olhar do dele rapidinho, e fiquei encarando o chão por um bom tempo. Depois quando levantei a cabeça, reparei que a tal loira perto da piscina estava olhando torto pra gente. “Você está falando da sua namorada, não é?” eu perguntei. O Théo fez uma cara estranha e rebateu “Que namorada?”. Aí eu apontei pra loira com a cabeça e falei: “Aquela ali que estava no Ale House com você semana passada. O nome dela é Megan, não é? Théo olhou pra mim parecendo não acreditar no que estava ouvindo, e deu uma sonora gargalhada, como se eu tivesse contado uma piada ou algo do tipo. “A Megan? Minha namorada?! Você só pode estar brincando!” ele disse ainda rindo. Como eu não estava, fiz cara séria e cruzei os braços, mas o Théo pegou minha mão e começou a me puxar em direção a área da piscina onde a garota estava sentada. Tentei me soltar dele, perguntei o que estava fazendo, mas foi totalmente em vão. Quando nós chegamos perto da talzinha, ela olhou pra mim com cara de que ia vomitar e eu não tive como não retribuir a “gentileza”. “Meg, essa aqui é a Bárbara, aquela amiga brasileira que eu te falei.” Ele disse se virando pra ela. Depois


apontou pra mim. “E Bárbara, essa é a Megan. A minha outra irmã americana”. Ele completou apontando pra garota. Huuuuuuu. Como é que eu não pensei nisso antes? Agora a conta fechava perfeitamente! Três irmãs brasileiras + duas americanas = a cinco criaturas cheias de estrógeno! E eu achando que a tal era namorada dele! Bem essa realmente não era... Essa... Depois de devidamente apresentadas a Megan me saudou em português que, segundo ela, tinha aprendido com o Théo (bem mal, diga-se de passagem). Nós não conversamos muito porque ela não fez o mínimo esforço em ser simpática comigo. Aliás, foi esse o motivo que o Théo alegou pra não ter me apresentado a ela antes, apesar de ter tido duas oportunidades: uma na Prime Outlet e outra no Ale House. “Ela é meio antisocial às vezes, principalmente quando conhece pessoas novas. Mas eu acho que a Meg gostou de você.” O Théo disse, mesmo sendo óbvio que a megera não tinha ido nem um pouco com a minha cara. Nessa hora o Fábio chegou por trás da gente com duas latinhas de Coca nas mãos, o que foi a deixa perfeita pra Megan se afastar de nós e voltar a conversar com a sua gangue platinada.


“Aí, Bárbara. Desculpe a demora, mas não tinha mais refrigerante não. Tive que mandar comprar e só chegou agora. Ei, cadê a sua prima?” “Acho que ela foi ao banheiro” eu respondi pegando o refri que ele me estendia. Vi que o Fábio fez uma cara meio desapontada quando eu disse isso, mas depois abriu um sorriso de novo. “Cara, que droga é essa que está tocando, hein?” ele perguntou pro Théo, se referindo a música cheio de gemidos que de fato já estava enchendo a paciência. “Sexual Eruption do Snoop Dog. Mais um daqueles CDs de péssimo gosto do Kevin.” o Théo respondeu pegando a outra lata de Coca das mãos do Fábio. “E as pessoas ainda dizem que os americanos é que tem cultura!” ele rebateu com seu sotaque mineirinho. “É, falam mal pra caramba dos funks “probidões” cariocas, mas mal sabem que aqui tem também os “proibidões” do Hip Hop.” O Théo disse rindo. “Acho que eu vou em casa pegar meu Ipod e trazer um pouco de música de verdade pra essa gente!” “Bom, contanto que seja David Guetta dou meu total apoio!” o Fábio disse, e aí estendeu uma chave pra ele. “Toma, aproveita e vai com a minha moto que é mais rápido.” Pelo visto ele era o dono da R1-sonhode-consumo-do-Vini. Eu entrei em pânico só de pensar na possibilidade de ficar sozinha ali. Até porque, não sabia onde a Ana estava (talvez tentando se aproximar do Kevin), tinha


certeza de que não ia poder contar com a companhia do Fábio (pois ele era um dos responsáveis pela festa) e não estava nem um pouco a fim de agüentar a chata da Megan. “Você vai demorar?” eu perguntei ao Théo, quando ele já estava indo em direção ao interior da casa. “Por quê? Já está sentindo minha falta?” ele rebateu sério, mas logo depois riu. “Tô brincando... Eu moro nesse condomínio também. Umas duas ruas mais adiante. Não devo demorar nem cinco minutos. Aproveita e fica conversando com a Megan enquanto isso.” ele completou. E saiu junto com o Fábio, que foi ajudar um garoto que estava vomitando no sofá. Deus! O Théo não podia ter sugerido nada pior! Inicialmente a Megan não falou comigo. Claro. Estava mais interessada em conversar com as amiguinhas loiras dela, que tinham corpos mais pra “boneco palito” do que pra gente. Apesar do meu inglês ser péssimo, eu notei que elas estavam falando de mim, porque vira e mexe olhavam na minha direção e riam, mas pra não criar um clima desnecessário ali fingi não notar. Ouvi também a palavra “fat” sair várias vezes da boca daquelas garotas, até que a Megan disse em português: “É, ela é gorda.” E então todas as amiguinhas idiotas dela ficaram repetindo “É, ela é gorda” como se fossem verdadeiros papagaios. Eu me recusava a acreditar que aquele bando de loiras não oxigenadas estavam falando de mim. Eu não


era gorda! Nunca fui! A conta do meu IMC diz que eu estou totalmente dentro dos padrões aceitáveis de peso pro meu tamanho! Na verdade eu estou quase abaixo. Onde elas viram gordura em mim então? E foi exatamente nessa hora de questionamento existencial que eu descobri que era das minhas coxas que elas estavam falando. Tá, tudo bem. Realmente as minhas eram mais grossas do que as delas. Mas ainda assim aquilo não era gordura! Ou era? Será que de alguma forma pros padrões americanos eu era um tipo de... bem... hum... gorda? Não tenho idéia. Só sei que eu já estava começando a ficar meio paranóica com isso e olhando insistentemente pras minhas coxas, quando uma garota super magra (essas meninas vivem de quê aqui? Vento?), usando uma saia do tamanho de um bandaid, saiu da casa do Kevin e veio até a gente. A Megan a abraçou como se fossem amigas de infância e aí, num estalo, eu finalmente a reconheci. Ela era a Zoey, a tal que tinha uma foto no celular do Théo e, ainda por cima, um toque telefônico específico só pra ela, a música “Stick With you” das Pussycat Dolls. De início pensei em sumir dali pra não ter que ser apresentada a garota, mas raciocinei tarde demais. Bem no momento em que eu estava me preparando pra sair de fininho, a Megan segurou meu braço. Eu me virei estampando um sorriso fingido na cara e a Zoey deu uma boa olhada pra mim de cima abaixo e completou a análise rindo.


“Bárbara, querer apresentar você minha best friend, Zoey.” A Megan disse com um português horrível e ainda por cima misturado com inglês. Eu poderia ser solidária a ela em relação a esse lance da língua, afinal eu passo por micos parecidos com esses todos os dias, mas aquela garota definitivamente não merecia nada de mim, nem um livro de gramática! “Oh, e me esqueci de dizer você. Zoey ser namorada Théo.” ela disse soltando a bomba, na sua voz fina e irritante de quem tinha inalado uma bexiga de gás hélio. Aquela notícia estranhamente surtiu efeito em mim como se tivessem me dado um soco bem na boca do estômago! Eu me senti horrível naquele momento. Horrível por ter pensado na possibilidade idiota do Théo gostar de verdade de mim. Horrível por provavelmente ser só mais uma na lista enorme de traições dele. Horrível por ter ido àquela festa. Por ter ido ao parque com ele no sábado, enquanto ele ignorava as ligações da namorada. E horrível também por estar ali, bem ao lado da Zoey, esperando justamente pelo namorado dela voltar. Fiquei tão abalada que procurei uma cadeira pra me sentar um pouco. Na hora esqueci que o aparelho estava no bolso de trás da calça, e só me dei conta quando senti uma coisa estranha cutucar meu bumbum quando sentei. Num reflexo rápido, levantei e tirei o aparelho do bolso pra ver se tinha quebrado, mas foi a pior coisa que eu podia ter feito. Pois a


Megan viu aquele bolo enorme de lenços de papel e num estalo o tirou da minha mão. Tentei pegar de volta, mas ela rapidamente abriu o embrulho e, ao perceber que era um aparelho, jogou cheia de nojinho pra cima de uma amiga gritando “Yiuuuu”. A outra garota o segurou por um tempo, até que se deu conta do que era, e atirou ele em outra amiga, que gritou “Gross”, com cara de quem ia vomitar, e então arremessou pra a Zoey. Eu ainda tentei pegar meu aparelho, mas a namorada do Théo o jogou na mesma hora de volta pra Megan e aí eu percebi que elas tinham começado a brincar de “bobinho” comigo. As pessoas, que até aquele momento estavam conversando ao redor da piscina, começaram a prestar atenção na gente e uma verdadeira platéia se formou pra ver a cena. As meninas pareciam estar realmente se divertindo agora. Tanto que nem davam mais gritinhos de nojo quando pegavam no meu aparelho. Ficavam apenas rindo, enquanto continuavam jogando ele de umas pras outras. Mas isso não foi o máximo da humilhação. Não. Não foi. O ápice aconteceu mesmo quando uma delas jogou meu aparelho pra Zoey e eu, sem reparar em nada a minha volta, me estiquei toda pra tentar pegar ele. Na hora, consegui agarrar o aparelho no ar, mas senti um leve empurrão nas minhas costas e, numa fração de segundos... TIBUM! Eu já tinha me


desequilibrado e caído como uma pedra dentro da piscina. Acho que nem preciso dizer o terror que eu senti ali, no meio daquele monte de água, enquanto me debatia feito louca, já que a piscina era terrivelmente funda e eu não sabia nadar . O mais cruel disso tudo, no entanto, é que por mais que eu tivesse gritado socorro e até mesmo “Help” ninguém se dignou a me ajudar. Pelo contrário, eu ouvia as pessoas rindo pra valer ao redor da borda da piscina, enquanto eu engolia litros e mais litros de água. Só depois de alguns segundos -que pareceram uma eternidade- é que alguém saltou na piscina e me segurou. Era a Ana, uma das últimas pessoas que eu achava que poderia fazer aquilo por mim. (Pelo menos não é essa a atitude que se espera da garota que você grudou chiclete no cabelo quando era criança). Minha prima me arrastou pra parte rasa e me tirou da água fazendo um esforço tremendo. Quando nós já estávamos sentadas na borda, ouvi a Megan gritando do outro lado da piscina: ”Welcome to America, loser!” e então ela e suas amigas clones, inclusive a Zoey, riram feito um bando de hienas histéricas e ficaram fazendo um “L” com os dedos sobre as testas. Em resposta a Ana mostrou o dedo médio pra elas e depois me ajudou a levantar. Eu disse a minha prima que queria ir embora o mais rápido dali, então nós saímos da casa do Kevin dando a volta pelo jardim mesmo. Só na rua é que as minhas lágrimas


começaram a cair, mas também daí em diante não pararam mais. Eu tinha passado por um verdadeiro vexame, quase morrido afogada e descoberto que o Théo, o garoto mais legal que eu tinha conhecido na vida, era um cretino metido a conquistador. O que poderia ser pior? Nada! E pra completar a noite péssima que estava tendo, nós quase topamos com o próprio, numa das ruas do condomínio, mas ele não nos viu, porque a Ana e eu nos escondemos bem rápido atrás de um arbusto, enquanto ele passava em alta velocidade pilotando a moto do Fábio. Saindo de trás do arbusto, minha prima pediu que eu explicasse direitinho tudo que tinha acontecido antes de eu cair na piscina e, quando eu contei sobre a Zoey, ela achou muito estranha aquela história da Megan dizer que a amiga era a namorada do Théo, pois a notícia que rolava na escola desde o começo do ano é que eles tinham terminado um tempo antes dele ir pro Rio. Mas a Ana também disse que os dois podiam ter resolvido reatar, agora que ele estava de volta. E depois disso minha prima me pediu mil desculpas por ter tentado empurrar o Théo pra cima de mim, e começou a chamá-lo de cretino desprezível por ele ter ficado na minha cola todo aquele tempo, e ainda por cima me mandado flores secretamente, quando na verdade tinha uma namorada.


Eu quase caí pra trás quando minha prima falou sobre o lance das flores. Então era o Théo o meu admirador secreto? O buquê entregue na minha casa não havia sido um simples engano do entregador? Como ela sabia disso? Bom, naquele momento nada mais importava. As rosas agora estavam quase murchas, eu já tinha descoberto o grande cafajeste que o Théo era, e definitivamente queria ir embora dali. Melhor dizendo, ir embora pro Brasil! Nossa! Que saudade eu estava sentindo agora da minha terra, dos meus amigos, da minha cidade! Ah... a minha cidade... Tudo bem, tudo bem, a minha vida podia não ser perfeita lá no Sul, mas pelo menos não era esse desastre total que é aqui! Eu quero voltar. Eu PRECISO voltar! E definitivamente antes que as aulas comessem! Depois desse vexame na piscina não vou conseguir encarar meus novos colegas na Olympia High e muito menos agüentar ficar esbarrando com o Théo, a Megan e a Zoey todos os dias pelos corredores da escola. A Ana disse pra eu não pensar nisso, pois quando as aulas começarem todo mundo com certeza já vai ter esquecido o que aconteceu. Disse também pra eu não me importar com o que as “bitches” da Zoey e da Megan tinham dito e me mandou parar de chorar, pois segundo ela, o traste do Théo não merecia que eu derramasse uma lágrima sequer por ele. Depois ela voltou pra festa pra pegar a bolsa dela que tinha


esquecido no banheiro (e que por sinal meu diário estava dentro), mas quando chegou aqui e puxou o celular do bolso, percebeu que ele estava encharcado devido ao “banho” forçado de piscina. Então minha prima decidiu que era melhor ir a casa do Kevin de novo e ligar de lá pedindo um táxi pra gente, já que depois de tudo que tinha acontecido nessa noite ela disse que nós não merecíamos ir á pé até a Hiawassee, a rua onde fica a loja de tia Vivian. E até esse momento a Ana ainda não voltou, mas eu continuo aqui, sentada nesse balanço. Ensopada, com o orgulho ferido e me derretendo em lágrimas, enquanto escrevo nesse diário aproveitando a luz da lua cheia. O som da festa está tão alto que eu consigo ouvilo daqui. O que só confirma a minha teoria de que o Théo não só não vai sentir minha falta lá, como deve estar se divertindo muito ao som das músicas que ele mesmo escolheu pra sua grande festa de boas vindas. Quanto a mim... Minha única vontade agora é bem simples: eu só quero ir pra casa. Mas na minha doce e aconchegante cidade nos pampas gaúchos. Pois só lá eu fui e serei realmente feliz.


15 de junho (quinta-feira) No closet do quarto de hóspedes

10:38-Nem sei o quanto agradecer a Ana por ela estar sendo tão legal comigo. Ontem à noite quando chegamos em casa, ela disse que seria melhor eu dormir no quarto dela, porque nós duas já sabíamos que eu iria passar a noite toda chorando, então pra não correr o risco de assustar a minha mãe ou acordar os meus irmãos, minha prima pegou um saco de dormir que o Vini sempre usa quando vai acampar, colocou do lado da cama dela e foi ali mesmo que eu me “joguei”, morta de cansaço e vergonha. Antes que eu pegasse no sono, no entanto, a Ana me contou uma coisa estranha. Disse que quando ela voltou pra festa do Kevin, se esgueirando sorrateiramente no jardim pra tentar encontrar alguma janela que estivesse aberta (pois não queria entrar pela porta da frente molhada do jeito que estava), viu o Théo sozinho no escritório do pai do Kevin, largado no sofá parecendo meio chateado. E que ele só saiu de lá quando o Fábio apareceu e literalmente o arrastou pra fora.


Eu disse pra minha prima que, estranha ou não, daqui pra frente nenhuma história que envolvesse o Théo me interessava mais, e então ela me fez a seguinte pergunta que eu mesma não sei responder até agora: “Você estava começando a gostar dele, não estava, Babi?” Eu pensei um instante, depois disse que não queria falar sobre o assunto e dei boa noite pra ela. Mas é claro que eu não consegui dormir direito. As risadas de todos da festa ainda ecoavam em meus ouvidos, assim como a conversa reveladora que tive com a Megan. Por causa disso, acordei hoje pela manhã com um belo par de olheiras que a Ana tentou disfarçar colocando corretivo. Só que, por mais que elas estejam bem escondidas sob quilos de maquiagem agora, o meu cérebro idiota não consegue esconder as lembranças que eu tenho do Théo. Tentei até assistir ao Discovery Kids com o Dani pela manhã pra não pensar nele, mas ver uma sequência seguida de Backyardigans, Peixonauta e Clifford o Cão Vermelho, e ainda por cima em inglês, não ajudou nem um pouco e só conseguiu piorar meu humor. Agora estou tentando apagar as cenas do Théo na minha cabeça, mesmo que o sorriso dele venha de hora em hora na minha mente. Assim como todas as gentilezas que ele fez pra mim no avião, a brincadeira do cílio no Sea World, o jeito que ele cuidava da Bibi, as flores... Ah, as flores! Eram tão lindas... Argh!


Foco, Babi! Foco! Simplesmente arrasta tudo isso pra lixeira do seu cérebro e deleta! 10:45-Melhor, vou preparar alguma coisa pra comer. É. Isso aí! Fritar um bando de hambúrgueres gordurosos vai ocupar meu tempo e me fazer sentir bem. Que se dane que eu estou descontando minhas frustrações na comida! Fui eu que quase me afoguei na piscina ontem, tá! Fui eu que descobri que o garoto que gostav achava legal era um tremendo cafajeste! Mereço alguma alegria de vez em quando, mesmo que ela venha de um monte de gordura saturada, não? 11:59- Caos! Essa é a palavra exata pra definir minha vida nesse momento. Por quê? Simples. Porque eu fui até o freezer de tia Vivian, peguei uns doze hambúrgueres e coloquei um monte pra fritar. Onde está o caos nisso? Oh, ele já vem... é só esperar mais algumas linhas... Mas continuando, estava lá eu fritando os malditos hambúrgueres e assim que terminei -já pensando em me empanturrar e virar uma obesa de verdade pra fazer valer o comentário da Megan e das amiguinhas dela sobre o meu peso- fui lavar a frigideira. Como ela ainda estava muito quente, na mesma hora em que a água da torneira se encontrou com o óleo saiu aquela nuvem típica de fumaça. Eu comecei a tossir por causa disso, mas a Ana que estava sentada no sofá com o notebook dela no colo


gritou “Babi, abana isso! Abana!” e jogou o computador de qualquer jeito em cima da mesinha de centro da sala, pra vir correndo tentar dissipar a fumaceira com um pano. Na hora eu fiquei sem ação. Não entendia o que eu tinha feito demais pra Ana ter aquele ataque todo, até que eu ouvi um barulhinho engraçado, e então uma série de gotas começou a cair sobre a minha testa e a molhar meu cabelo e minhas roupas. Olhei pra cima assustada, e vi que no teto da casa de tia Vivian tinha aqueles detectores de fumaça com chuveirinho. E foi aí que eu finalmente juntei as coisas. Eu tinha feito o sistema anti-incêndio disparar com a droga da frigideira! MEU DEUS!!!!! A Ana nem mesmo teve tempo de brigar comigo por causa disso. Gritou pro Vini fechar o registro da água e saiu pela casa feito louca, tentando cobrir todos os aparelhos eletrônicos antes que ficassem completamente ensopados. O Vini, que estava tomando banho, saiu apenas de toalha do banheiro e correu também, só que pra lavanderia da casa, onde ficava o registro de água. Enquanto isso, o Dani se alternava entre pular gritando: “Uííííí! Está chovendo na salaaaa! Ebaaaaa!” e ficar com a boca aberta e o linguão pra fora, tentando engolir as gotas que caiam do teto. A Alice veio do quintal na mesma hora, onde estava tomando um pouco de sol, e quando viu o que eu tinha feito, disse que se burrice fosse medida em decibéis, a minha seria um show de


rock pauleira. (Ah... Minha irmã e suas palavras de conforto. Não poderia estar me sentindo melhor!) Quando a água finalmente parou de jorrar dos sprinklers (esse é o nome dos chuveirinhos em inglês) a cena era devastadora. Estava tudo molhado: tapetes, sofá, móveis, cortinas... Tudinho mesmo, inclusive a gente. O Vini voltou da lavanderia ainda segurando a toalha na cintura e, após olhar em volta, disse que a sala parecia até que tinha sido palco do Show da Shamu no Sea World. A Ana, no entanto, não achou a menor graça do comentário dele, só virou pro irmão e disse numa voz super séria: “Reze pra que eles não venham, seu cabeça de cogumelo! Reze muito!” e depois foi pro quarto, ver se a água tinha feito algum estrago nas coisas dela. Me deu uma vontade enorme de perguntar pro Vini sobre o que ela estava falando, mas a Alice mandou a gente calar a boca, pois estava tentando identificar se o barulho que ela estava ouvindo era mesmo de uma sirene. A cor do Vini imediatamente sumiu quando ela disse isso. Minha prima Ana voltou na mesma hora pra sala, parecendo ter sido atraída pelo tal barulho, e mandou desesperada que o Vini fosse colocar uma roupa porque eles estavam chegando. Minha curiosidade sobre quem eram eles não durou muito, pois foi só o Vini sair do quarto dele usando apenas shorts, enquanto colocava uma camisa de qualquer jeito sobre


o corpo molhado, pra um carro do corpo de bombeiros de Orlando parar bem em frente a nossa casa com a sirene aos berros. Nessa hora a Ana soltou um palavrão super alto em inglês e foi correndo pegar o telefone pra ligar pra tia Vivian. O Vini botou as mãos na cabeça parecendo não saber o que fazer, mas acabou mandando que eu fosse pro quarto com o Dani, que até então estava achando tudo a maior brincadeira. Não sei direito o que aconteceu depois, mas o saldo final disso tudo foi mais desastroso do que eu imaginava. A vizinhança toda apareceu aqui em frente (só assim mesmo pra gente ver os vizinhos!), uma pequena parte da mobília da casa está arruinada, a outra está lá fora no quintal pra tentar ser secada pelo sol e tia Vivian tem nada menos do que uma MULTA POR ALARME FALSO DE INCÊNDIO!!!!!!!! É isso mesmo! Os bombeiros vieram aqui, não encontraram foco nenhum de fogo e tia Vivian acabou sendo multada por isso! Ou melhor, dizendo por minha causa! Deus, Por quê eu tinha que passar por isso hoje?! Castigo divino? Mas pelo o quê? Eu não saio por aí sacaneando vidas alheias nem nada! Sem falar que ter me sentido pior do que uma ameba ontem já não foi suficiente não? Eu tinha mesmo que me sentir terrivelmente culpada também? Porque é isso que está ardendo agora dentro de mim. Uma culpa enorme!


E não é o que digo? Se eu tivesse no Brasil, bem quietinha na minha casa como eu falei antes, nada disso teria acontecido. A essa hora eu estaria saindo do colégio, rezando pras férias de Julho chegarem logo e não aqui, nesse lugar com costumes tão diferentes, ainda tentando me desculpar pelo estrago na casa e na conta bancária de tia Vivian! Oh, e o olhar que o Vini e a Ana estão me dando agora... Nossa, é terrível! Parece até que eu voltei aos tempos de criança quando a Ana me odiava e o meu primo vivia me evitando. Não sei se vou conseguir continuar morando na mesma casa que eles depois de tudo o que aconteceu. Na verdade não sei nem mesmo se vou conseguir continuar vivendo aqui. Não agüento mais tudo isso! Estou no meu limite! Chega de Estados Unidos, chega de Orlando! Por favor, Chega! Eu só quero ir embora desse inferno! Mas quer saber? Já está decidido. Eu vou voltar pro Brasil! É, é isso. Não importa o que minha mãe diga, nem o quanto ela tente evitar. Vou tratar de enxugar essas drogas de lágrimas que insistem em cair e correr pra fazer as malas. O sonho americano definitivamente acabou pra mim! 14:01- Eu pensei melhor... Não, não é nada disso. Eu ainda quero voltar pro Brasil. Agora que eu botei isso na cabeça ninguém mais tira. Acontece que eu cheguei


a conclusão que minha mãe não me permitiria nem colocar o pé esquerdo pra fora de casa, quanto mais me deixar chegar perto do aeroporto de Orlando! Além disso, eu não tenho dinheiro pra pagar a passagem de avião, mesmo que seja a da companhia aérea mais fuleira que tem por aí. Então eu estou meio que num beco sem saída. Mas eu tenho que arranjar uma solução pra isso, o mais rápido que puder. Estou contando os minutos pra sumir daqui e não vejo a hora de poder pisar em solo brazuca de novo. Então vamos lá, Babi! Bota esse cérebro pra funcionar. Faça valer o pouco de massa cinzenta que Deus te deu. Pensa! 14:40- Sabe aquele momento em que “acende” uma lâmpada no seu cérebro, iluminando a escuridão de dúvidas que tinha ali? Pois é, e a idéia que eu tive nesse momento se resume a apenas uma palavra: Poupança! Claro! Como é que eu não pensei nisso antes? Eu ainda tenho uma poupança em um banco no Brasil! Tá certo que ela não está tão rechonchuda quanto antes, mas dá pra fazer bastante coisa com ela. Vou poder pagar o concerto do Honda Civic do Vini, a multa de incêndio que tia Vivian recebeu hoje, comprar um Ipod novo pro Théo (não quero ficar devendo nada àquele mau caráter!), um Iphone novo pra Ana (já que o antigo dela levou um banho quando ela se jogou na


piscina pra me salvar) e ainda sobra um pouco pra pagar grande parte da passagem aérea. Maravilha! Verdade que a conta vai ficar zerada e eu ainda não vou ter como voltar pro Brasil, mas talvez eu consiga complementar o valor da passagem com... sei lá...trabalho talvez? Até as princesas tem seus dias de gata borralheira não, tem? E ultimamente tá todo mundo arranjando emprego, acho que eu também posso conseguir um se quiser. Além do mais, como é alta temporada aqui em Orlando, a cidade está cheia de turistas, logo sobra trabalho. Até mesmo pra adolescentes como eu. Tá certo que eu nunca tive um emprego na vida, mas não deve ser tão difícil assim trabalhar. Vou perguntar ao Vini se ele sabe de alguma vaga por aqui por perto. Isso se o meu primo ainda estiver falando comigo, porque depois do que aconteceu hoje... Se bem que o problema maior nesse plano todo vai ser convencer minha mãe. Ela não vai me deixar trabalhar, ainda mais se souber que o meu objetivo é ganhar dinheiro pra ir embora daqui. Por isso acho que vou dar uma mentida básica, só dessa vez, e inventar um motivo nobre pra justificar o trabalho. E aí, depois de ganhar o suficiente pra voltar pra casa, eu ligo pra Mari pedindo pra ela me pegar no aeroporto em Porto Alegre, arrumo as malas em segredo, fujo no meio da noite, me mando pro


aeroporto de Orlando de táxi e chegando no Brasil vou morar com tia Vera. Pronto! O plano perfeito! E o melhor de tudo é que eu vou estar tão longe, que mamãe não terá como me colocar de castigo por isso. Claro que eu sei que vou sentir falta dos meus primos, da minha tia, da minha mãe, do Dani e até mesmo da Alice, mas eles vão poder me visitar a hora que quiserem lá no Sul. Sem falar que a gente sempre vai poder matar um pouco da saudade pelo MSN ou pelo Skype. O que não dá mesmo é pra eu ficar aqui! Sei que fugir é uma atitude meio covarde, mas eu me sinto tão deslocada e infeliz nesse lugar que se eu não for embora logo, vou acabar surtando, tendo uma crise de depressão ou raspando a cabeça pra me juntar a alguma gangue de motoqueiros! 17:30- Ebaaaaa! O Vini ainda está falando comigo! E sabe o que mais? Ele me disse que tem uma vaga de emprego numa lanchonete perto daqui! Que bom que meu primo nem desconfiou quando eu falei que queria trabalhar pra pagar a multa que tia Vivian recebeu. Na verdade, ele disse pra eu não me preocupar com isso, mas eu insisti e amanhã mesmo nós vamos na tal lanchonete. Quanto a mamãe? Bem, na hora em que eu falei sobre o lance do emprego ela ficou meio receosa, disse toda cheia de emoção que a menininha dela (eu


no caso) até pouco tempo atrás pedia pra ela comprar a sandália da Hello Kitty e hoje já era uma mulher quase feita e estava até querendo trabalhar. Mas ela acabou aceitando tudo numa boa, não sei pelo Vini ter dito que aqui nos Estados Unidos os adolescentes tem costume de trabalhar no verão, se pelo fato dela estar muito feliz depois de ter sido oficialmente contratada hoje pela imobiliária de tio Oscar, ou se porque ela está finalmente deixando de ser superprotetora. De qualquer maneira, acho que, no final das contas, os ares da Flórida estão fazendo muito bem a minha mãe... A Alice é que falou toda irônica de que queria ver isso (eu esfregando chão) já que, segundo ela, eu tenho esse jeito meio dondoca e em casa eu muito mal arrumava a minha cama. Ah, tá. Quem é que quando a empregada lá de casa faltava ia lavar a louça com luvas de borracha só pra não estragar as unhas? É, Alice, depois eu é que sou a dondoca... Implicâncias da minha irmã à parte, mal posso esperar pra ir à essa tal lanchonete. Não que eu ame esfregar chão! Fala sério né! Mas porque graças a esse trabalho meus dias na terra do Mickey estarão contados! Pena que eu vou embora sem ter ido à Disney. Queria tanto ver o castelo da minha “vizinha” Cinderela...


P.S.: A Ana está falando comigo também, mas pelo visto ainda parece meio zangada pelos ursinhos de pelúcia dela terem ficado encharcados. E admito, ela tem todo o direito.

16 de Junho (sexta-feira)

05:30- Acordei antes mesmo do despertador do meu celular tocar. Estava tão ansiosa pela entrevista hoje no Firehouse Subs que nem tomei café da manhã direito, o que por um lado é bom, já que caso o meu estômago resolva ter alguma atividade nervosa ele não vai ter muita coisa pra botar pra fora. Apesar do sol ainda estar nascendo já estou arrumada só esperando pelo Vini acordar. Ontem á noite, ele me disse pra usar roupas normais na entrevista, pois eu estava indo falar com o dono de uma lanchonete, não de uma multinacional. Por via das dúvidas vou com a calça e a blusa de manga mais “séria” que tenho.


07:15- Meu primo vai me levar agora. Mamãe está saindo também, toda arrumadinha de saia e blazer cinza, mas é pra ir pro trabalho com tio Oscar, que acabou de buzinar aqui em frente de casa. Ela disse pra eu não me preocupar com a entrevista e que tudo vai dar certo. É o que eu espero... Me deseje sorte! 13:10-O Firehouse Subs é uma lanchonete que vende sanduíches bem no estilo do Subway e fica na “Old Winter Garden”, uma rua relativamente perto de onde a gente mora. Vini me levou até dentro da lanchonete e perguntou a um dos atendentes pelo dono. Em segundos um homem gordo, de pele morena e cabelo bem escuro veio pra falar com a gente. Se chamava Fernão Alcazar e era um simpático mexicano de Tijuana, como ele mesmo disse todo orgulhoso em espanhol. Na hora em que eu reconheci a língua fiquei feliz de cara. Eu conseguia entender perfeitamente o espanhol (falar já é outra história) e vi que não ia ter muitos problemas com o inglês ali. Isso, até enfrentar um freguês americano né... O senhor Alcazar pareceu gostar de mim tanto quanto gostei dele. Me perguntou se eu falava inglês e eu respondi “So so”, expressão que graças a Deus o Vini tinha me ensinado no carro antes de chegarmos aqui. Depois de mais algumas perguntas sobre minha


idade e outras coisas, o dono do Firehouse Subs se deu por satisfeito, disse que eu parecia perfeita pro emprego (ele devia estar desesperado, só pode!), mas que precisava fazer um teste comigo antes e, quando eu perguntei o dia em que seria isso, ele disse: “Ahora mismo!” e me deu uma camisa pólo preta, mais um boné da mesma cor, onde estava escrito o nome da lanchonete em letras amarelas. Eu respondi que tudo bem, estava preparada pro que der e viesse, e então o Vini foi embora, dizendo que assim que eu terminasse tudo, ligasse pro seu celular pra ele vir me buscar aqui. Como eu queria começar logo o meu teste, o senhor Alcazar me apresentou antes a cada um dos atendentes do Firehouse Subs, numa tentativa rápida de me enturmar. Tinha um cara de El Salvador, o Héctor, que depois descobri ser imigrante ilegal, uma mexicana chamada Dulce, que tinha se casado com um cara daqui só pra conseguir o Green Card, e uma americana, a Norah, que me pareceu supersimpática a princípio. Digo isso, porque minha visão sobre ela mudou rapidinho, assim que meu futuro chefe comentou baixinho comigo que ela estava cumprindo prisão domiciliar - só podia sair de casa pra vir pra cá pro trabalho. Um arrepio subiu pela minha espinha assim que eu vi o aparelho de monitoramento que ela trazia no tornozelo, mesmo que o senhor Alcazar tivesse acrescentado logo depois que, apesar do lance da


prisão, a Norah era totalmente inofensiva. (ok. Mas por via das dúvidas vou ficar de olho! Vai que dá uma vontade nela de fazer picadinho de mim pra montar um sanduíche de Babi?) Oh, e por falar em sanduíches, meu chefe me ensinou passo a passo como eu tinha que montá-los, como lidar com o forno, caso o cliente quisesse que eu tostasse eles, e me mandou escrever na mão as frases padrões de atendimento, pra que eu pudesse “colar” dali, e assim não cometer nenhuma gafe em inglês (bem pensando hein!). Fiz tudinho que ele mandou, me dirigi até o banheiro pra colocar o uniforme e, quando sai, meu chefe olhou pra porta da loja, e me falou que se eu conseguisse alguma gorjeta do cliente que estava chegando naquele momento, eu estaria contratada. Respondi pro senhor Alcazar que não iria desapontá-lo e fui até o balcão cheia de gás pra começar o “teste”. Quando olhei o tal cliente quase cai pra trás. Era o THÉO! AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH! Sem pensar duas vezes, me abaixei e fiquei ali sentada, bem em baixo do balcão, rezando pra que ele não tivesse me reconhecido, mas era óbvio que tinha. Nós havíamos ficado frente a frente, muito perto mesmo e, além disso, ele estava com o Ray-Ban no rosto, ou seja, sem chances de eu poder usar a miopia dele em meu favor naquele momento.


“Babi, eu já vi você. Aparece” o Théo disse falando sobre o balcão. Como eu lembrei que a minha contratação estava em jogo naquele momento, levantei morrendo de vergonha, mas o encarei. “Good morning, Sir and welcome to the Firehouse Subs. May I help you?” respondi dando olhadas rápidas para frase que estava escrita na palma da minha mão. “Babi, sou eu... O Théo!” ele disse estranhando. “Olha aqui, eu sei exatamente quem você é” respondi baixinho, com os dentes cerrados de raiva “Mas hoje é o meu primeiro dia de trabalho aqui, e eu tenho que ganhar uma boa gorjeta se quiser continuar nele. Então só fala comigo se for pedir algum sanduíche. Tá legal?” “Tudo bem” ele disse enquanto tirava o Ray-ban “Me vê um Buffalo Chicken pequeno com uma Coca grande então.” “O que você quer?” eu perguntei indo pra cesta de pães. “Falar sobre a festa do Kevin.” “Estou me referindo ao pão. Qual tipo?” “Oh, hããã... Ah, qualquer um, Babi! Só vim aqui por sua causa.” Ele disse se apoiando no balcão. Eu olhei o passo-a-passo da montagem de sanduíches que também tinha escrito na mão e fui esquentar o pão no forno. Coisa que teoricamente eu tinha que perguntar ao Théo se ele queria, mas eu


estava pouco ligando pras preferências dele. Minha vontade é que ele fosse embora o mais rápido dali! “Como você me achou?” eu perguntei enchendo o copo de Coca na máquina de refil. Ele demorou um pouco pra responder, mas acabou confessando que tinha ligado tanto pra Ana hoje que ela, depois de bater o telefone milhares de vezes na cara dele, acabou contando onde eu estava. “Ok, agora é a minha vez de perguntar.” ele falou. “Será que eu posso saber por que a sua prima disse que ia comer meu fígado se eu te magoasse, e por que você foi embora da festa sem nem se despedir de mim?” Nesse momento eu já tinha tirado o pão do forno e ido pra bandeja de ingredientes. “Ah, vai dizer que você não sabe?” “Não, eu não sei.” ele garantiu. “Do que você está falando?” Fingido! “Do assunto que provavelmente dominou a festa inteira!” eu disse irritada. Já tinha colocado tomates, picles e um bom punhado de jalapenó no sanduíche dele -pra mim vingança é um prato ardido que se come quente! “O quê? Você está falando da garota que caiu bêbada na piscina?” Bêbada? EU?????? Nossa, aí é que eu fiquei mesmo com raiva dele! Tanta que espremi com força demais a bisnaga de maionese, e até voou um pouco do molho


na minha blusa. Acho que ele entendeu tudo só pela minha cara. “Espera... Você era a tal garota?!” “Era. Mas eu não estava bêbada não, tá! Eu fui é deliberadamente empurrada na piscina. Só não sei por quem, se foi pela sua irmãzinha malvada ou pela sua namoradinha pior ainda, aquela tal de Zoey!” O Théo pareceu chocado. “Epa! Calma aí! Vamos por partes... Primeiro: Quem te disse que a Zoey era a minha namorada?” Não respondi, mas ele adivinhou rapidinho, pois sussurrou logo em seguida: “Ah, eu mato a Megan!” e então explicou tudo. Que a irmã é superamiga da Zoey e que, desde que eles terminaram (há uns oito meses atrás), a Megan tem feito uma campanha enorme pros dois voltarem, pois na cabeça dela eles formam o casal perfeito (nisso eu tenho que concordar com a bruxa). E o Théo ainda disse mais: contou que naquele dia do Ale House a irmã estava enchendo a paciência dele com essa história e que, depois dele ter me levado em casa, ela ficou “pra morrer” achando que eu era uma ameaça ao “reinado” da Zoey. O que, por sinal, o Théo frizou muito bem que já tinha acabado e sem chance alguma de voltar. Quando ele terminou de falar tudo isso, a raiva que eu sentia já tinha diminuído um pouco, mas em compensação eu estava totalmente vermelha de vergonha agora.


Então a Megan (e pelo visto a Zoey também) me odiava porque o Théo parecia interessado em mim?! Ai meu DEUS! Talvez a Mari estivesse certa o tempo todo! Talvez ele gostasse de mim mesmo! “Babi” o Théo disse segurando a minha mão quando eu estendi o sanduíche pronto pra ele. “Eu juro pra você que não sabia de nada. Não continua brava comigo não, vai. Por favor.” Óin... que jeito fofo que ele falou isso... Mas saindo do mundo da lua e voltando pra terra firme... Eu disse que não estava mais brava (verdade), que ele não tinha culpa da irmã ser uma tremenda vaca (tá, não usei esse termo né? Afinal era a irmã do cara), disse também pra ele não se preocupar, porque eu já tinha colocado uma pedra em cima daquele assunto, e então o Théo sorriu parecendo aliviado, procurou a carteira pra pagar o sanduíche e colocou uma nota de cinquenta dólares no balcão. Por um triz não passei dessa pra melhor quando voltei com o troco, e ele disse pra eu guardar, pois era aminha gorjeta. Hein? 44 Dólares? De gorjeta?! Uhuuuuuuuuuuu! Agradeci demais ao Théo e, como ele estava sendo muito legal comigo, achei que deveria retribuir, por isso o avisei sobre a quantidade exagerada de jalapenó que eu tinha colocado maldosamente deixado cair no sanduíche dele. Mas, pra minha surpresa total, ele disse que já estava mais do que acostumado com jalapenó e até deu uma mordida enorme pra me provar que não


tinha problema algum com pimentas. Dãããããã. Claro! O Théo era americano! Ele deve ter crescido comendo isso no café da manhã (Ai, que exagero o meu...) Bem, mas logo depois ele limpou a boca com o guardanapo e perguntou “Posso te ligar hoje a noite?” “Ah, pode. Mas acho melhor pro meu “cel”. Eu vou te dar o número...” eu disse pegando um outro guardanapo pra anotar, só que nem cheguei a escrever nada nele. “Não precisa, não” o Théo disse tirando o Ray-ban do bolso. ”Eu já tenho” e dando uma piscadela pra mim, colocou os óculos no rosto, deu meia volta e saiu da lanchonete. Peraí! Ele tinha o meu número? Como? Ah não ser que... Ohhhhhhhh. A Ana! Sim, só pode ter sido ela! Nossa, sinceramente eu não sabia se eu matava ou agradecia minha prima por isso. Quer dizer, na verdade, na verdade, eu sabia sim, só não queria admitir... De qualquer jeito, o que importa agora é que consegui a gorjeta que o senhor Alcazar exigiu como teste, e quer saber mais? Fui contratada pra trabalhar no turno da tarde, de domingo a domingo, com uma folga na semana! E ainda vou ganhar 7 dólares por hora! Ou seja, vou conseguir o dinheiro da passagem pro Brasil em menos de um mês! Apesar da carga horária brutal, não podia estar mais feliz!!!!!!!!


21:02- Oh, como eu estava errada. Eu podia ficar mais feliz sim! Nós estávamos todos sentados juntos a mesa, comendo como uma família o feijão “ado” (aguado, enlatado e apimentado) que tia Vivian preparou, quando mamãe perguntou onde estava meu aparelho. Faltou pouco pra eu virar um picolé de tão gelada que fiquei naquele momento. Como é que eu ia explicar que tinha perdido ele, quando fui maldosamente jogada numa piscina e, ainda por cima, em uma festa que ela nem mesmo sabia que eu tinha ido? Por sorte meu celular começou a tocar no sofá da sala, e eu fui correndo atender, aproveitando a deixa perfeita pra fugir do assunto e daquele feijão pavoroso de lata. Meu coração praticamente veio a boca quando eu vi o número do Théo no visor. Ai meu Deus!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Era ele!!!! Atendi toda felizinha a ligação, mas quando vi que a minha família inteira estava olhando curiosa pra mim da mesa de jantar, pedi pro Théo esperar um pouco na linha e fui pro quintal. Como estava muito cansada, deitei no banquinho da mesinha de piquenique, e fiquei olhando o céu enquanto falava com ele. Nunca tinha reparado no céu de Orlando antes, por isso deu um aperto no coração quando não vi a constelação do Cruzeiro do Sul lá em cima. Ao menos ouvir a voz do Théo, do outro lado falando o nosso bom e velho português, me confortou um pouco...


Théo: Achou que eu não ia ligar, né? Eu: Não. Já percebi que você cumpre o que promete. Théo: Com certeza... Então, como foi seu dia hoje no trabalho? Eu: Cansativo. Mas alguma coisa me diz que não foi nem um terço da ralação normal. Théo (rindo): Por falar nisso, porque você está trabalhando, Babi? Eu (me lembrando que não podia dizer a verdade ): Tenho que pagar uma multa por alarme falso de incêndio. Théo: Hummm. Andou bancando a menina levada, foi? Eu: Não. O problema é que eu descobri do pior jeito que água gelada e frigideira com óleo quente não são uma boa combinação numa casa com detector de fumaça... Risos Théo: no Brasil não tem nada disso, né?

Verdade. Oh, meu doce e amado Brasil... Ai, ai... Théo: esse suspiro por um acaso tem dono? Eu: tem sim, mas é dona e se chama saudade. Théo: ah, entendi. Está sentindo falta da terrinha, não é? Eu: demais... Me sinto um peixe fora d’água aqui.


Théo: Faço ideia. Sempre rola isso comigo também quando eu volto de uma temporada longa no Brasil. É meio difícil mesmo se acostumar com tanta coisa diferente. Eu: E olha que você é americano... Théo: Só se for na certidão. Porque de alma eu sou brazuca, flamenguista e carioca do Leblon! Eu: Leblon? Théo: É o bairro onde minha mãe mora. Fica na Zona Sul do Rio. Perto de Ipanema e Copacabana. Um dia eu te levo pra conhecer o mirante que tem na praia de lá. É uma das vistas mais lindas do mundo! Eu: Ah, tá! Como se a minha mãe fosse deixar eu viajar com você. Théo: Mas eu sou tão inofensivo... Quero dizer, exceto em noites de lua cheia. Eu: Por quê? Tu viras lobisomem? Théo: Não. Mas fico um pouquinho, digamos, agitado demais... Ei, mas repete isso de novo? Adoro quando você fala com esse jeito gauchinho cheio de “tu” pra lá e “tu” pra cá. Me sinto falando com um livro de gramática! Eu: Você por um acaso está debochando do meu sotaque, é? Théo: Não. Sério! Eu acho ele bonitinho... Ah, não me diz que vai ficar bravinha de novo?

Silêncio


Théo: Babi.

Silêncio Théo: Ah, Babi. Não faz assim não, vai. Eu só estava brincando! Eu: Que tal a gente mudar de assunto? Théo: Tá. O que você quiser... Eu: Que música é essa que está tocando aí no fundo? Théo: Consegue ouvir? É “Paradise City” do Guns ‘n Roses. Eu: Você gosta mesmo de música não é? Théo: Muito! Pra falar a verdade sou alucinado. Não tem um momento da minha vida que não tenha uma trilha sonora. Só nunca aprendi nenhum instrumento a fundo porque eu achava um saco ter um professor em cada hemisfério... Eu: Aposto que você conhece todo tipo de música da face da terra! Théo: Com certeza. Posso até te dar umas sugestões se você quiser. Sou praticamente um expert nisso. Eu: Acredito...

Nessa hora ouvi uma voz feminina bem baixinha do outro lado da linha Théo: Ih, a Megan chegou! Vou desligar, Babi. Preciso ter uma certa conversinha com ela agora. Eu: Ah, entendi... Vê se pega leve tá?


Théo: Sem problema. Só vou fazer ela assistir a todos os jogos do Campeonato Brasileiro que eu tenho gravado. Acho que é um bom castigo. Eu: Castigo? Você já ouviu falar na palavra tortura? Théo: Você sabe que a Megan merece... Eu: É verdade... Tudo bem, vai lá. Mas pelo menos poupe ela dos replays. Théo: Vou pensar no assunto. Foi bom falar com você gauchinha. Vê se não some hein! Eu: Pode deixar. Beijo. Théo: Beijo.

22:16– Acabei de receber um torpedo! E é do Théo! Olha o que estava escrito: <Sugestão do dia: Nothin’ on youB.O.B e Bruno Mars

‘Beautiful girls all ovr the wrld I could b chasing But my time would b wasted They got nothing on u, baby Nothing on u’> Conheço essa música, mas vou perguntar a Ana se naquela pasta dela do Itunes tem o arquivo. Quero colocar logo no meu Mp3. Só não peço pro Vini,


porque ele começou hoje no McDonald’s e só deve chegar lá pelas tantas do trabalho. Ah, e mamãe insistiu tanto pra saber quem tinha me ligado que eu acabei contando. Fiquei meio encrencada na hora de responder por que o Théo tinha o número do meu celular, mas a Ana me salvou dizendo que ele tinha aparecido no Firehouse Subs, o que não era uma total mentira. Cara, se continuar assim a Ana vai acabar virando o Pinóquio... ou ganhando um Oscar!


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