Quando a Cinderela mora ao lado

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Este diário pertence à Bárbara Henkels dos Santos (Babi para os mais íntimos). Qualquer tentativa de leitura deste por pessoas não autorizadas resultará em um castigo cruel e doloroso ao infrator, não importa quem seja. E isso também vale para você, Alice, minha querida irmã. Ah, está duvidando? Pois então ouse ler o conteúdo do que está escrito aqui, mas eu não faria isso se fosse você. Não faria mesmo...

31 de Maio (terça­feira)


Meu quarto

15:30­ Segundo minha mãe “Vida nova pede um diário novo” e foi isso que eu fiz. Comprei esse diário ontem, aposentei o velho que me acompanhou durante tanto tempo, e estou fazendo meu primeiro registro nesse daqui. A Alice, minha irmã mais velha, mesmo tendo cursado dois semestres de Psicologia na UFRGS, diz que escrever em diários é pura idiotice. Mas ela adora encher minha paciência desde que eu nasci, então a opinião dela não conta muito. O Daniel, meu irmãozinho insano de cinco anos, até pouco tempo tinha medo do meu diário. Tudo porque a criança viu na TV a reprise de um desenho japonês antigo chamado Death Note, em que o personagem principal tinha um caderno onde escrevia o nome das pessoas que ele queria que morressem (e elas morriam mesmo!), e aí o guri acabou encasquetando com o meu diário, achando que a coisa tinha o mesmo poder sobrenatural de mandar os outros passarem dessa pra melhor. Então, sempre que eu o pegava, o Dani disparava um “Ahhhhhhh” e saia correndo apavorado pela casa. O que por um lado foi bom, pois nessa época eu tive toneladas de privacidade sem nem ao menos precisar gritar com meu irmãozinho. Minha mãe, por sua vez, acha que ter um diário é uma ótima forma de eu sair um pouco da “concha” na qual escondo meus sentimentos, devido a minha timidez aguda. Ela vive

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dizendo: “Isso mesmo, minha filha! Ficar abafando as emoções dentro do peito só vai fazer você virar uma panela de pressão. E mais cedo ou mais tarde ela vai acabar explodindo. Então escreva! Desabafe! Ponha tudo pra fora!” Quanto a mim, eu já acho que escrever em diários é só uma forma de me expressar livremente. Ainda mais agora, que nós vamos nos mudar, e toda vez que eu tento me expressar livremente sobre o quanto eu estou odiando essa situação, minha irmã me chama de Ogra (ou monstrinha, dependendo do humor dela no dia) e diz pra eu calar a boca e parar de encher o saco. Comigo ela não tem a mínima psicologia... Minha mãe, apesar de toda a correria pra aprontar as coisas da viagem, teve tempo de me fazer um mimo hoje (alguns diriam que foi uma espécie de suborno pra que eu parasse de bater o pé contra a mudança, mas se foi não adiantou muito não). Ela comprou uma dúzia de canetas coloridas e com perfume pra que eu escrevesse com elas nesse diário ­ estou usando agora mesmo uma super fofa que tem cheirinho de coca­cola. Apesar do pequeno presente, ainda não consegui me reanimar, e o Dani fica me perguntando o tempo todo porque eu estou triste. Já expliquei várias vezes, com a maior paciência do mundo, que é por causa da mudança, mas ele simplesmente não entende. Também, é pedir demais pra uma criança que enfia o dedo no nariz e come a própria meleca que compreenda a dimensão do que é se mudar pra outro país. Se bem que eu acho que ninguém no mundo faz idéia disso, nem mesmo minha melhor amiga Mariana, que sempre entende tudo no quesito “sentimentos.” Eu até tentei explicar

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pra ela uma vez, dizendo que a sensação que eu estava sentindo era a mesma de pular de Bungee Jump com uma banana de dinamite nas mãos (não que eu já tenha feito isso alguma vez, Deus me livre!), mas acho que ela ou qualquer outra pessoa só vai entender o quanto dói se mudar pra um país estranho, quando passar realmente por isso. E quer saber por que eu estou tão chateada? Porque aposto que essa mudança vai ser o fim da minha vida! Mesmo que minha mãe insista em afirmar que isso não é o final de nada e sim apenas uma espécie de recomeço. Sei, sei. Pode ser pra você mãe, não pra mim! Agora falando sério. Por que eu iria querer trocar o Sul do Brasil, por um lugar que tem um bando de pântanos e um monte de espécies de jacarés e crocodilos. Isso mesmo. Aqueles bichões grandes, cheios de dentes que passam naqueles filmes do “Crocodilo Dundee” supereprisados na Sessão da tarde! O Douglas, meu outro amigo, me contou que a prima dele mora há um tempão nesse lugar pra onde a gente está se mudando, e ela quase foi mordida por um filhote de jacaré dentro de casa! E depois ainda querem que eu fique só olhando o lado positivo disso tudo. Tipo, do que adianta essa tal cidade ter vários parques de diversão e uma comunidade enorme de brasileiros, se o meu dedão pode ser abocanhado por um baby jacaré quando eu estiver dormindo? Ah, como eu queria acordar agora e ver que tudo não passou de um sonho. O chato é que eu tenho certeza de que isso não é um, porque se fosse, pelo menos o Zac Efron apareceria sem camisa e, até o momento, não há nenhum sinal

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dele por aqui. Só do Dani, pulando na minha cama e desarrumando as roupas que eu dobrei com todo o cuidado pra colocar na minha mala de viagem. Por que a vida é tão injusta comigo, hein? Já não basta eu ser a filha do meio, oprimida entre a primogênita inteligente e o caçulinha mimado só por ter nascido menino? Não, pelo visto não basta... Vou te dizer, se existe mesmo esse negócio de reencarnação, eu devo ter sido uma bruxa terrível que chutava cachorros e comia criancinhas, pois só sendo má assim na vida passada explicaria porque eu estou sendo tão castigada nessa daqui! 19:40­ A Mari me mandou um link por email pra eu tirar um biscoito da sorte on line. Ela adora coisas que supostamente advinham o futuro e vive enchendo minha caixa de entrada com isso, tanto que o meu provedor de email já até pensa que é Spam. Geralmente eu nem olho, mas dessa vez, só pra ver se eu paro de pensar um pouco nessa droga de viagem, resolvi dar uma chance ao tal “biscoito”, e foi essa a frase que apareceu na tela: “O amor sempre aparece onde deve estar. Deixe que o acaso faça o seu trabalho.” Hum. Acho que não entendi... Bem que essas mensagens proféticas podiam ser menos genéricas e mais explicativas, não é? De qualquer jeito, eu sei que isso é pura bobagem. Aposto que milhares de pessoas também receberam essa mesmíssima frase só hoje. Nem vou perder meu tempo tentando entender.

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20:02­ Mamãe aproveitou que eu estava no computador, e falou pra eu imprimir o email da American Airlines com a confirmação da compra das passagens que ela tinha feito pela internet. Então eu imprimi e guardei aqui no diário pra não perder.

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==================================== De: aa.tkt.center@aa.com. Para: Valkiriafdsantos@yahoo.com.br Enviada: 18 de maio, 19:20 Assunto: Confirmação Prezado passageiro: A American Airlines® agradece a sua preferência e confiança em comprar seus (s) bilhete(s) via AA.com.br. Gostaríamos de informar que a cobrança no cartão de crédito XXXX XXXX XXXX 2347 foi efetuada da seguinte maneira:

Número do Bilhete: 0012191596773 Nome: DOS SANTOS/BARBARA HENKELS MS Código da Reserva: CMDBFF Número do Bilhete: 0012191998401 Nome: DOS SANTOS/MARIA ALICE HENKELS MS Código da Reserva: FGBRTW Número do Bilhete: 0012191596761 Nome: DOS SANTOS/VALKIRIA HENKELS MRS Código da Reserva: KFHMBR

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Número do Bilhete: 0012191910002 Nome: DOS SANTOS/DANIEL HENKELS MR Código de Reserva: VTDRHY Para obter mais detalhes sobre a sua reserva clique no botão Ver Reserva. Para visualizar seu itinerário, digite o nome e sobrenome do passageiro e indique também o código de reserva. É obrigatório a apresentação do Cartão de Crédito utilizado para esta compra no Aeroporto (CHECK-IN). A não apresentação do mesmo impedirá o seu embarque. Lembre-se de que você deverá comparecer ao aeroporto com devida antecedência, portando seu passaporte válido, documentos de viagem necessários (vistos) e uma cópia desta confirmação. Obrigado Por Escolher A American Airlines®.

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01 de Junho (quarta­feira) Meu quarto

19:25­ Meus amigos são tão fofos! A Mari me atraiu até a casa dela hoje pra uma festa de despedida surpresa que o pessoal organizou pra mim. Estava todo mundo lá: o Douglas, a Cecília, a Joana, a Camilla, a Isabela e mais um bando de gente da minha turma do primeiro ano que não fazia parte da nossa “panelinha”... Quase chorei quando vi colada na parede uma faixa escrita: “Bye Bye Babi. Você está indo, mas nosso coração vai contigo”. Gostei de saber que eles iam sentir minha falta. Tudo bem que eu preferia não estar viajando pros Estados Unidos amanhã, mas pelo menos essa demonstração de carinho me animou. Sem falar que a festinha de “bota fora” foi tão boa que acabei nem vendo a tarde passar. Dancei, brinquei, cantei no karaokê, comi besteira, ri bastante relembrando tudo que os meus amigos e eu já tínhamos aprontado na escola... Horas e mais horas de pura diversão. À noitinha, o assunto sobre a cidade onde eu iria viver começou a dominar a conversa, e eu me senti meio desconfortável com o rumo que o papo estava tomando, então a Mari correu pra pegar uma coisa no quarto dela e, ao voltar,

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me deu uma caixinha branca com um fitilho roxo enorme. Ela disse que aquilo era um presente do nosso grupinho pra que, quando eu estivesse em solo americano, nunca me esquecesse deles. Abri a caixinha toda curiosa, sem saber o que esperar, e encontrei ali dentro uma pulseira de prata, com uma fita rosa choque e vários pingentes pequenos que eram a coisa mais linda que eu já vi na vida! A Cecília tratou logo de explicar que cada um deles representava alguém da turma. No caso dela, tinha escolhido o pingente em forma de sandália, por causa da nossa paixão por sapatos. A Isabella quis um no formato de um sorvete, pra que eu lembrasse das sorvetadas que a gente fazia quase todo dia no verão e a Joana, por sua vez, preferiu um de Joaninha por causa do nome dela mesmo. Já a Camilla escolheu um pingente no formato de coroa, por todas as mil vezes que gente assistiu o filme Diário da Princesa juntas, enquanto que o Douglas optou por um no formato do símbolo da paz, pra que eu lembrasse de nossas eternas brigas quando íamos ao cinema e ele queria ver um filme de ação enquanto eu e as meninas queríamos ver o que ele chama de filmes “mela­cueca” (Há­Há, esse Douglas!). E finalmente, o pingente da Mari era o mais bonito de todos, uma fechadura rosa com detalhes em ouro branco, pra que eu me lembrasse que os meus segredos estariam eternamente seguros com ela. Só que, além de todos esses, ainda tinha mais um, bem pequenininho mesmo, no formato de uma estrela, e eu fiquei curiosa pra saber de quem poderia ser, até que a Mari disse que aquele representava a nossa cidade, Estrela, pra que

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quando eu estivesse nos Estados Unidos e olhasse pra ele, lembrasse que havia pessoas bem longe dali que gostavam muito de mim. Óóóin, meu Deus! Que amor! No final de toda a explicação eu já tinha explodido em lágrimas e todo mundo veio me dar um abraço em grupo. Eu estava me sentindo muito feliz pelo presente fofo que os meus amigos tinham me dado, mas também profundamente triste por ter que deixá­los assim. Eu não ia apenas fazer uma viagem, eu ia embora pra sempre! Talvez nunca fosse vê­los de novo. Só de pensar nisso eu chorei mais e mais. Como não consegui parar, me despedi de todos sob novas ondas de lágrimas e decidi ir pra casa, antes que ficasse desidratada. Agora estou sozinha aqui, sentada num balanço que tem no meu quintal, com o capuz do casaco na cabeça por causa do frio, enquanto olho pra pulseira e penso em cada um dos meus amigos. Vai ser difícil partir amanhã. Difícil deixar tudo pra trás. Mas infelizmente não posso fazer nada, a não ser esperar pela hora de dizer “adeus”.

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02 de Junho (quinta­feira) *Minha casa, ainda Brasil

15:20­ Bem, é isso. Depois de tanta briga, tanto choro e tanta pirraça nós estamos aqui, sentadas na escada de nossa varanda, com um bando de malas alinhadas uma atrás da outra, apenas esperando tia Vera que vai nos levar até o aeroporto em Porto Alegre. Nossa casa está vazia agora. Sem móveis, sem eletrodomésticos, sem nada. Dá até dó de olhar pro meu quarto. Meu lindo castelinho encantado virou apenas um esqueleto lilás frio e sem alma. O que aconteceu com o meu bando de bichinhos de pelúcia? Já era! Meu mural de fotos? Já era! Penteadeira, pufe, bonequinhos toy art? Já era! Já era! Já era! Tudo se foi! As poucas coisas que minha mãe não vendeu nós terminamos de entulhar hoje pela manhã, num quartinho que fica nos fundos da casa de tia Vera. Se eu pudesse, é claro que teria trazido comigo o meu armário inteiro, mas mamãe também nos impôs o limite de duas malas por pessoa da família (cruel, muito cruel isso), o que me fez ter a dolorosa missão de escolher algumas poucas peças de roupa e um número ínfimo de sapatos que iria querer

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levar e me desfazer do resto (leia­se: doar tudinho pra uma instituição de caridade perto daqui de casa, inclusive a maioria das minhas Melissas). Dá pra imaginar como eu me senti na hora? Arrasada, lógico! Até tentei convencer a minha mãe de que a gente poderia mandar as coisas encaixotadas pelo correio, mas ela foi irredutível. Disse que ia custar uma fortuna e que nós não tínhamos dinheiro pra isso. Então eu apelei. Apelei mesmo. “Não mãe, pelo amor de Deeeeeeus! As Melissas nãâãããão!” eu disse agarrando as sandálias enquanto minha mãe tentava tirar elas de mim. Mas o drama que eu fiz e o choro compulsivo não deram em nada. E lá se foi mamãe levando o resto das minhas sandálias embora. Ainda estou deprimida por nossa separação prematura. Espero pelo menos que as pobrezinhas estejam em boas mãos nesse momento, quero dizer, bons pés. Minha amiga Mari deu um pulinho aqui agora a pouco. Ela veio se despedir de mim, mas não aguentou ficar muito tempo. Porque mal bem a coitada começou a falar, as lágrimas foram saindo e saindo e eu, mesmo tendo tentando bravamente segurar a emoção, comecei a chorar também, e aí nós duas nos abraçamos aos soluços, e ela disse que seríamos amigas pra vida inteira, mesmo se eu fosse morar num outro continente ou em Plutão. Depois disso, ela se despediu da Alice, pediu desculpas mais uma vez por não poder ir até ao aeroporto com a gente, me deu um papel exigindo que eu o lesse só no avião e saiu pelo portão afora, enxugando os olhos enquanto chorava baldes. Parecia que eu ia morrer ou algo assim...

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Assim que ela saiu não resisti e abri o bilhete. Vi que tinha uma letra de música escrita (a Mari sabe que eu AMO música) e o título dela era “Canção da América”, o que eu achei superoportuno pro momento, já que era pra lá mesmo que eu estava indo. Aqui está o bilhete:

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Canção da América Amigo é coisa pra se guardar Debaixo de sete chaves Dentro do coração Assim falava a canção que na América ouvi Mas quem cantou chorou Ao ver seu amigo partir Mas quem ficou, no pensamento voou com seu canto que o outro lembrou E quem voou, no pensamento ficou Com a lembrança que o outro cantou Mari

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Nem bem terminei de ler e eu já estava em prantos de novo, me sentindo a pessoa mais desolada da face da terra. E o pior é que a Alice não se comoveu nem um pouco com a minha cachoeira de lágrimas e mamãe não estava por perto na hora pra me consolar ou dizer que tudo ia ficar bem no final. Ela tinha ido com meu irmão Dani na lojinha de doces da esquina comprar alguns Kinder Ovos e um monte de balas para tentar distrair o guri durante o voo. Sei que ninguém em sã consciência daria açúcar para uma criança hiperativa, como é o caso dele, mas eu não posso culpar minha mãe por isso.

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Ela está realmente tentando fazer com que nossa mudança não seja tão traumática assim. Ontem a noite mesmo, depois de eu voltar da festa, ela fez uma panela gigante de negrinho (brigadeiro), a minha sobremesa preferida, como uma espécie de despedida do Brasil. Mas o gosto doce dele simplesmente se foi e, nesta varanda, eu apenas sinto a sensação amarga da partida. Minha irmã Alice está sentada bem ao meu lado, na escadinha dessa mesma varanda, totalmente indiferente ao meu sofrimento, enquanto lê um guia sobre a cidade pra qual a gente vai se mudar. Mamãe diz que por ser quatro anos mais velha que eu a Alice acaba sendo mais madura e tendo um outro olhar para toda essa situação. Mas a verdade é que minha irmã parece tranquila porque sinceramente ela não tem um terço dos meus problemas! Quero dizer, Alice tem um corpo bonito, com formas bem delineadas, um cabelo loiro ondulado maravilhoso (tipo Gisele Bündchen), nenhuma gordura a mais ou a menos (resultado de hoooooras na academia, mas e daí?) e um inglês perfeito graças aos sete anos que ela passou estudando num cursinho de línguas. Já eu... bem... Eu não me assemelho em nada a minha irmã. Nem na inteligência, nem na beleza. Primeiro, porque eu sou deficiente peitoral (leia­se: não tenho nada na região do meu busto que possa preencher um sutiã satisfatoriamente). Segundo, que o meu cabelo louro escuro, apesar de ser liso na raiz, é tão anelado e tão espigado nas pontas que eu pareço um Cocker Spaniel gigante! Problema esse que seria facilmente resolvido com uma Escova Progressiva, se a exagerada da minha mãe não achasse que o

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cheiro forte da química vai me matar sufocada por causa da minha asma. Ah, é. Tem isso também... Eu sofro de bronquite asmática, ou seja, tenho crises de falta de ar quase o tempo todo e preciso usar um inalador ridículo para tentar controlá­ las. E ajudando a piorar ainda mais a minha imagem, faltou mencionar o aparelho móvel horroroso que eu uso e sempre preciso tirar quando vou comer alguma coisa. Nojento! Argh! Mas isso não é tudo, oh não! Pra fechar com chave de ouro, o meu inglês é uma coisa ter­rí­vel, já que eu tive que sair do curso, pois minha mãe ficou numa situação financeira muito difícil quando o meu pai resolveu sair de casa. Resumindo, meu conhecimento na língua não vai muito além do básicão “The book is on the table” e outras inutilidades que eu consegui aprender vagando pela internet Então agora me diz: depois dessa lista, como é que eu posso bancar a “garota madura” tendo tantos problemas e ainda por cima estando de mudança contra a própria vontade pra outro país? Minha mãe disse que apesar dos meus 14 anos eu estou agindo como uma criançinha mimada de 7, mas que um dia, quando eu tiver mais maturidade (ou alguma pelo menos) eu vou entender. Tudo bem, eu admito que ela está tentando fazer o melhor por nós, que depois da separação teve de segurar a barra toda sozinha, pois meu pai esqueceu que existimos, mas sinceramente eu acho que essa ideia dela de mudar para um outro país ­só pra tentar continuar nos proporcionando a

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vidinha de classe média que a gente estava acostumado­ foi uma decisão muito precipitada. Sei que meus tios foram para os Estados Unidos e estão tendo uma vida ótima lá, só que isso não significa que vai acontecer a mesma coisa com a gente quando colocarmos os pés na América. Além do mais, eu amo o lugar onde moro morava. Estrela pode não passar de uma cidade pequena no Sul do Brasil, mas ainda assim é a nossa cidade Natal, é a nossa casa. Quando meu tio Oscar decidiu morar em Orlando, na Flórida, nós sabíamos que ele nunca mais voltaria, porque pra ser sincera ele não gostava nem um pouco de Estrela. Dizia que cheirava a bosta de vaca, o que vou lhe dizer, é uma grande mentira! Porque nós temos um bom nível de urbanização aqui, ou seja, nada de vaquinhas se aliviando pela rua! Minha tia Vivian, por sua vez, também não tinha muita afeição pela cidade, e foi só o vovô Henkels morrer pra ela pegar a parte dela na herança, meus dois primos Ana e Vini e ir embora sem olhar pra trás. É claro que ela não foi para os Estados Unidos com rios de dinheiro, já que a fazenda do vovô ­ o “Recanto dos Piás”­ não valia muita coisa e o seguro de vida deixado pelo marido dela antes de morrer tinha um valor bem baixo, mas tia Vivian montou um negócio em Orlando, e vive muito bem lá até hoje como empresária, sem qualquer saudade de Estrela. Por isso, sabendo dos problemas financeiros que estamos passando, sugeriu que minha mãe, meus irmãos e eu nos juntássemos a ela. A única do clã Henkels que pelo visto não herdou o gene “aventureiro” foi minha tia Vera. Ela é a mais velha de todos os

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irmãos de minha mãe, a solteirona incorrigível da família e a única que quer viver e morrer em Estrela. Tia Vera praticamente disse pra minha mãe que ela estava fazendo uma burrada em acreditar no “Sonho Americano”, mas pra minha tristeza mamãe não a escutou. E aqui estamos nós. Apenas à espera da carona que nos levará ao aeroporto. Além do choro convulsivo, meu estômago parece dar cambalhotas agora e eu estou me esforçando pra não fazer igual aquela garota do filme “O exorcista”. Me refiro ao lance de vomitar uma gosma verde, não o de girar a cabeça 360 graus. Até porque só faltaria isso mesmo pra eu me tornar uma aberração completa!

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02 de Junho *Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro (Galeão). 21:20­ Estamos neste momento num saguão, apenas aguardando o nosso próximo voo. Partimos exatamente às 18:30 do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, e chegamos sem atrasos aqui no Rio de Janeiro, onde vamos fazer nossa primeira conexão. Não vai dar pra gente conhecer a cidade maravilhosa nem um pouquinho, por causa do tempo curto entre um vôo e outro, mas eu já me dou por satisfeita só pelo fato de não estar tão frio aqui quanto fazia no Sul. Mamãe foi no segundo andar do aeroporto tentar encontrar minha pulseirinha de pingentes que eu devo ter perdido quando nós fomos lanchar (É. Mais essa agora! Perdi logo o presente mais importante que ganhei dos meus amigos!). Meu irmão Dani está passando agora na minha frente, deslizando em alta velocidade num carrinho de malas, enquanto grita “Uiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii”, mas eu estou deliberadamente fingindo que não conheço a peste. Eu disse pra não dar doces

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pro hiperativo, não disse? Quando é que as pessoas dessa família vão começar a me ouvir? Além do Dani um monte de gente barulhenta transita ao meu redor com carrinhos abarrotados de malas. Tem de tudo, desde crianças atentadas como o meu irmão ­ pras quais eu fiquei dando careta de brincadeira quando os pais não estavam olhando­ até pessoas vestidas com Quimonos!!!!!!! (Bem, com esses aí é melhor não mexer. Vai que é algum faixa preta em jiu jitsu?). Ah, e tem também um grupinho de pessoas numa chorosa despedida bem perto de onde eu estou sentada. Três garotas lindíssimas estão chorando desesperadamente, enquanto uma mulher meio cinquentona e super elegante se acaba em lágrimas abraçando um garoto altão. E olhando direito pro tal (não tinha prestado muita atenção nele antes), até que o garoto é bem bonitinho... Sabe o tipo de menino que tem os cabelos tão pretos que contrastam com a pele branquinha? É ele. E o cabelo ainda está aparado nesse corte da moda, com franja, em que as pontas das mechas dão voltas fofas no ar. Eu nunca gostei muito desse tipo de corte, pra ser sincera, mas admito que fica muuuuito bem nesse menino. Oh, e eu já falei sobre as pintinhas charmosas que ele tem no pescoço? Consigo enxergar elas daqui. A única coisa que não dá pra ver mesmo é a cor dos seus olhos, graças ao Ray­Ban que ele está usando. Sério. Esse garoto deve ser daquele tipo de cara que gosta de uma atenção. Afinal, por qual outro motivo alguém iria ficar

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andando dentro de um aeroporto, às nove horas da noite, com um par de óculos escuros? Sem mencionar o fato de que ele parece ser igualzinho ao Gustavo, o metidinho a conquistador da minha antiga escola. E eu não estou dizendo isso apenas por dizer. Antes das três garotas lindíssimas chegarem com a mulher cinquentona, o garoto do Ray­Ban ficou dando em cima de todas as meninas que estavam sentadas aqui perto de mim. E eu falo sério quando digo todas! Ele abordou uma por uma ! Não sei ao certo o que disse pra elas (na hora eu estava bem mais interessada em ouvir o MP3 da Alice), mas com certeza deve ter sido alguma cantada muito boa, porque elas ficavam rindo pra ele com aquela cara de abobadas. Bem, mas como ele não veio com esse papinho pra cima de mim nem nada, e o que ele faz com as outras garotas não é da minha conta, acho melhor eu continuar escrevendo nesse diário pra ver se relaxo, ou pelo menos me acalmo um pouco. Daqui a alguns instantes vou entrar pela segunda vez em um avião e não quero despejar bem em cima de alguma pobre aeromoça todo o Cheetos que acabei de comer. Isso definitivamente seria começar com o pé esquerdo. A Alice está nesse momento verificando mais uma vez na mochila dela se nossas passagens e passaportes estão mesmo guardados ali. O que eu com certeza não ficaria triste se ela os tivesse perdido, já que eu não quero ir pra Orlando e a minha foto 3x4 do passaporte é uma verdadeira piada. Sem falar que o pessoal do consulado colocou o meu último sobrenome vindo primeiro no documento, o que me torna de agora em diante a senhorita “dos Santos”. Argh, isso é mais

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horrível que o meu aparelho! Ei, espera aí, onde está meu aparelho por falar nisso? Ah, não! Como se já não bastasse ter perdido a pulseira que eu mais amo, ainda pro cima esqueci o aparelho no banheiro do aeroporto! Tenho que ir lá buscar agora!!!!! Fui.

21:36­ Graças a Deus meu aparelho ainda estava dentro da caixinha roxa dele, bem em cima de uma pia do banheiro feminino. Por via das dúvidas só vou usar ele quando chegar na casa da tia Vivian e puder desinfetá­lo. Afinal, eu não sei por que mãos ele pode ter passado naquele banheiro e nem quero imaginar! Acho que eu estou ficando maníaca por limpeza igual a minha mãe. A Alice disse que meu empenho todo em procurar o aparelho foi desnecessário, já que se eu tiver que continuar usando (o que ela também acha que eu não preciso mais) vou ter que fazer um novo de qualquer maneira, pois nós vamos morar em Orlando a partir de agora. Apesar de eu odiar admitir isso, até que ela tinha um pouco de razão, mas eu não gostei nem um pouco quando a Alice usou a palavra novo. E eu não estou me referindo só ao aparelho ou aos machucados que ele causa quando eu coloco um zero bala. Estou falando de tudo que vem por aí daqui pra frente. Novo aparelho, Novo dentista, Novo lar, Novos vizinhos, Novo colégio, Novo idioma, Novo PAÍS!!!!!!

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Será que eu já mencionei o quanto tudo isso soa assustador pra mim? Talvez mamãe esteja certa quando ela diz que eu não passo de uma criançona. Às vezes eu queria me encolher como uma bola e ficar escondidinha debaixo de um cobertor esquecendo do mundo, sentindo apenas a minha própria respiração. Só que aí eu olho a cara de animada da Alice e vejo que tenho de tentar ser forte. Pelo menos pra disfarçar, mesmo que a minha maior vontade nesse momento seja a de chorar uma cachoeira! Minha irmã diz que eu deveria ficar feliz por ir morar na cidade onde as pessoas economizam quase uma vida inteira só pra passar alguns dias de férias. Só que eu não consigo me entusiasmar com isso. O engraçado é que, quando era pequena, fiz o maior drama pra minha mãe me deixar ir numa excursão com a turma da escola pra ver o espetáculo “Disney On Ice” em Porto Alegre, pois na época eu era viciada nos personagens do filme da Cinderela, mas agora que eu estou indo pro lugar onde ficam basicamente todos os parques da Disney, não estou dando a mínima. Nunca pensei que seria tão difícil dizer adeus ao meu quarto, a minha cidade, a Mari, aos meus amigos. É como se fosse uma sensação de morte. Dói, sufoca, desespera... Oh, não! Estão falando o número do nosso vôo nos alto falantes! Chegou a hora! Quando nós passarmos por aquele túnel que leva ao avião estará tudo acabado! Ai, meu pai! E pra piorar ainda mais a situação, não há nem sinal da mamãe com a minha pulseira e a Alice está feito uma histérica

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gritando pelo Dani, que acabou de passar na nossa frente em alta velocidade dizendo: “Vem me pegarrrrrrrrrrrrrrr.” Depois disso tudo só tenho uma coisa a dizer: que Deus me ajude, por que eu não faço ideia do que me espera daqui pra frente. Próxima parada: Terra do Tio Sam!

02 de junho (quinta­feira) *Dentro do avião.

22:10­ Acabei de sentar na minha poltrona e duvido que alguém consiga adivinhar quem está agorinha mesmo arrumando a mochila no compartimento de bagagens de mão da primeira classe? O garoto do Ray­Ban! Bem, agora ele não está mais usando os óculos escuros. Acho que finalmente se deu conta de que já é noite fechada...

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Tudo indica que o “arrasador de corações” vai pra Orlando também. Pelo menos ele está bem longe de mim, já que minha poltrona fica aqui na classe econômica. Ah, e sabe o que mais? Daqui a pouquinho vamos decolar. Está me dando um frio na barriga nesse momento que... Nossa! Vou rezar todas as orações conhecidas e inventar uma três só pra garantir que tudo corra bem na hora da decolagem. Mesmo que eu não queira morar em Orlando, se é pra ir que ao menos eu chegue inteira, não é? 23:58 –Ok. Apesar do meu medo bizarro de altura acho que viajar de avião não é tão ruim assim. É claro que quando a aeronave levantou voo eu senti que meus órgãos internos quase mudaram de lugar e meu cérebro descolou do crânio, mas agora estou um pouco mais calma do que antes. A única coisa que infelizmente não consigo fazer é dormir. Mamãe, Alice e o Dani estão esparramados nos seus assentos, adormecidos graças ao Dramin que tomaram. Se minha vida fosse uma revista em quadrinhos aposto que agora estariam saindo Z’s enormes e em sequência da boca deles (além da baba, claro). ZZZZZZZZZZZZZZZZZZZ... Eu fui a única que não quis nenhum remédio pra dormir, pois achei que o sono viria naturalmente depois do jantar (uma lasanha muito boa por sinal), mas desde então ainda não consegui pregar o olho. Tentei fazer de tudo para que o sono viesse, inclusive me submeter a atividades de alto gasto energético, como tentar girar o dedo para o lado esquerdo enquanto girava o outro pro

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direito, tocar bateria imaginária, levar um biscoito da testa até a boca sem usar as mãos (meu novo Record é de 30 segundos. U­hú!), fazer aviõezinhos com as páginas da revista dada pela American Airlines e mirar na TV... Até assisti ao filme que foi exibido há alguns minutos atrás, e que vamos ser sinceros, era incompreensível e um sonífero letal de tããããããão chato, mas não consegui nem mesmo bocejar com aquilo. Poxa, seria pedir demais que passasse um filmezinho legal e com legendas para uma garota não bilíngue que está com a vida arruinada? Tipo, “Shrek para sempre” é o filme do voo Hawaí­Alaska (pelo menos foi o que eu consegui ler na revista da American Airlines que usei pra fazer os aviõezinhos), por que então a companhia aérea não passou Shrek pro nosso voo também? Como eu estou com os dois i’s (inquieta e indignada) resolvi escrever nesse diário como uma forma de passar o tempo, afinal não há mais nada pra fazer nesse voo além de dormir (Por que meu deus? Por que eu não coloquei meu MP3 na bagagem de mão? E porque a Alice teve que enfiar a mochila onde está o dela, num compartimento tão longe da gente?). A maioria dos passageiros daqui da classe econômica está roncando ou babando nos seus assentos, bem encolhidinhos debaixo das mantas de cor vinho dadas pela companhia aérea. As pouquíssimas pessoas acordadas ficam vagueando pelo corredor do avião parecendo uma horda de zumbis daquele jogo “Resident Evil”, mas prefiro acreditar que elas estão apenas tentando esticar um pouco as pernas para amenizar

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cãibras, e não procurando carne fresca humana para alimentar seus estômagos de mortos­vivos. O tal garoto do Ray­ban parece que também não está conseguindo dormir, sei disso porque dá pra ver ele daqui onde eu estou. Tá, tudo bem, eu tenho que esticar um pouquinho o pescoço pra vê­lo, mas como ele está num assento de corredor, e eu estou sentada na terceira fileira depois da parede que divide a primeira classe da econômica, pude ver claramente que ele está com fones nos ouvidos curtindo música num Ipod. Até bate o pé ou tamborila os dedos no ritmo da música às vezes. Chega a ser meio engraçado... Voltando a classe econômica, nos pequenos monitores onde antes passava o filme sonífero agora é mostrado um mapa, e nele tem um minúsculo aviãozinho representando a nossa aeronave. Segundo a rota do avião no monitor, estamos bem em cima da Amazônia neste momento, o que significa que ainda não saímos do espaço aéreo brasileiro. Isso me reconforta um pouco, mas não impede que a tristeza e a raiva tomem conta de mim. Eu gosto muito, muito mesmo do meu país. Sempre amei o sol, o clima, o aroma gostoso das noites de verão, as cigarras guinchando no final da tarde, o cheirinho de chuva que vinha antes das trovoadas. Eu não sei se em Orlando vai existir tudo isso, talvez até exista, mas tenho certeza de que não vai ser a mesma coisa. Porque não importa o que aconteça, a verdade é que eu ainda vou estar longe de casa. Agora o que está me preocupando de verdade nessa mudança toda, é como eu vou conseguir sobreviver nesse

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novo país e vivendo, ainda por cima, lado a lado com os meus primos. É verdade que o Vini e Ana são da minha família e tal. Só que eu convivi com eles durante um bom tempo aqui no Brasil, antes de tia Vivian se mudar pra Flórida, e posso dizer que graças ao nosso desastroso histórico infantil, já prevejo que essa nova convivência não vai dar certo. E eu falo sério quando digo “desastroso”. Sabe, a Ana e eu tínhamos uma relação familiar altamente conflituosa quando crianças. Se eu fosse colocar isso na linguagem dos desenhos, nós éramos como Perna­longa e Eufrazino. Em outras palavras, minha prima me odiava e eu correspondia totalmente ao sentimento. Eu até a chamava de Ana Banana só pra irritar. Já minha relação com o Vinícius... Bem, o meu relacionamento com meu primo era beeeeeeeeem diferente. Porque ao contrário da Ana eu gostava do Vini (muito mesmo, se é que dá pra entender) embora isso não fosse recíproco. Ou seja, como eu vou conseguir conviver na mesma casa com as pessoas cuja primeira eu havia odiado mortalmente e pela outra havia nutrido uma paixão platônica no maior estilo Pucca e Garu? Ok. Isso já foi há muito tempo, nós éramos apenas crianças e hoje eu não tenho motivos pra odiar a Ana e muito menos ainda gosto do Vini. Mas mesmo assim eu não sei se vou conseguir não morrer de vergonha quando ficar frente à frente com a garota que eu quase afoguei na minha piscininha de plástico e com o garoto pra quem eu escrevia cartas de amor e dizia ser meu namorado.

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Sem falar que minha mãe adora relembrar meus ternos momentos infantis. Tenho consciência de que até mesmo o balconista da farmácia perto de casa já ouviu falar sobre o dia em que eu enfiei um lápis quase inteiro na minha cavidade nasal. O que significa que os tópicos Babi­odiava­Ana, Babi­amava­ Vini com certeza serão levantados em algum momento de nossa estadia na casa de tia Vivian. Já posso sentir meu rosto ardendo em chamas de tanta vergonha! As coisas do passado deviam ser mortas, enterradas e nunca mais lembradas. Por que senhor? Por que eu tinha que estar me mudando pra Orlando? E por que dentre milhões de mulheres vós foste me colocar logo no ventre da criatura mais sem noção desse planeta? O que eu fiz pra merecer tudo isso, hein? Karma? Castigo? Maldição? Mau alinhamento planetário no momento em que eu nasci? Sério, não dizem que eu estou indo morar na terra das princesas encantadas? Quando será então que o meu conto de fadas vai começar realmente? Tudo bem que o meu príncipe deve ser vesgo e ter um senso de orientação terrível, por isso ele ainda não me achou, mas será que não dá pra pular essa parte toda do sofrimento e irmos direto pro final com o “Felizes Pra Sempre”? Estou precisando tanto disso agora...

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03 de junho *ainda Sobre o Atlântico

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3:10 –Uau! Estou chocada com o que pré julgamentos fazer! O engraçado é que eu nunca fui do tipo que se engana com as pessoas, mas dessa vez eu errei e errei feio. Pelo menos acho que dá pra tirar uma lição disso tudo: Nunca julgue um livro pela capa! Do que eu estou falando? Eu vou te dizer sobre o que estou falando, se chama Théo Medina! Mas é melhor eu explicar direitinho (até porque não tem mais nada pra fazer nesse avião mesmo!). Bem, a questão é que tudo começou assim: eu estava sentada na minha poltrona, irritada por não conseguir dormir e com a garganta seca de tanto nervoso. Como as aeromoças não passavam mais com os carrinhos nos servindo, por que já era bem tarde, decidi dar um pulinho no final do avião, onde a tripulação ficava reunida, pra pedir um copo de água. Detalhe, a tripulação não falava o meu idioma e eu tinha esquecido como era a palavra “água” em inglês. Acho que já dá pra imaginar um pouco o vexame que foi, não é? Continuando... Uma aeromoça sonolenta veio me atender e me perguntou alguma coisa em inglês à qual eu entendi “patavinas”. Então, o que eu fiz? O que eu fiz? Comecei a gesticular igual a uma doida segurando um copo imaginário com a mão e fazendo ainda sonoros glup glups pra tentar me fazer entender. Mas estava difícil. Nem por um decreto a aeromoça descobriu o que eu queria. E ainda ficou olhando pra mim, com cara de “Meu Deus do céu, eu aprendi cinco idiomas pra ter que agüentar isso?!” quando de repente alguém chegou

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por trás de mim e disse em inglês: “She wants water, and so do I.” (bem pelo menos foi essa a frase que, segundo a Alice, ele devia ter dito. É, eu acordei minha irmã só pra isso!) Na mesma hora em que eu me virei pra ver quem era o dono da tal voz dei de cara com o garoto do Ray­Ban. E tenho de ser sincera, agora, sem os óculos, pude perceber que ele tinha os olhos azuis piscina mais lindos que eu já vi em toda a minha vida! Parecia até que tinha um coro de anjos cantando enquanto eu olhava pra eles. É claro que eu não encarei o garoto por muito tempo, já que a aeromoça prontamente estendeu um copo de água mineral pra mim e logo depois deu outro pra ele. Só que o garoto ao invés de beber começou a puxar papo comigo. “Não consegue dormir também, não é?” ele disse abrindo o lacre do copo enquanto se apoiava na parede que separava a classe econômica daquela parte do avião. Eu dei um sorriso meio forçado em resposta e me encaminhei pra voltar à poltrona ao lado da minha irmã. Até então não tinha percebido que o tal garoto estava vindo bem atrás de mim. “Você por um acaso tem medo de avião?”, ele perguntou. “Não, não tenho!” eu menti meio que pra cortar o assunto. Na mesma hora, como que em punição a minha mentira, a aeronave deu uma oscilada mais forte e eu gemi de medo derramando o copo de água bem no corredor. O tal garoto deu uma risadinha gostosa e estendeu o copo dele pra mim dizendo que eu podia ficar já que ele não estava com tanta sede assim.

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Até aí tudo bem. Teria sido muito gentil da parte dele, se o engraçadinho não tivesse acrescentado um irônico “senhorita­ sou­super­corajosa” ao se referir a mim. Juro que no momento eu pensei em dar um chega pra lá naquele garoto folgado, dizer que ele não tinha nada haver com a minha vida, mas mudei de idéia e acabei aceitando o copo de água. Depois de agradecer me encaminhei até a poltrona onde eu estava minutos atrás, e foi com total surpresa que eu vi o garoto se sentar bem no assento de corredor vizinho ao meu. Por sinal, um dos poucos que estavam abandonados pelos seus donos. “Você não foi com a minha cara mesmo, não é?”, ele disse bem baixinho, se inclinando na minha direção. ‘Sério? Que bom que você percebeu! Achei que ia ter que desenhar!’ Foi o que eu pensei na hora, mas não o que eu falei de verdade. Nunca fui mal educada com os outros. “Por que você acha isso?” “É que eu conheço muito bem as mulheres”, ele disse todo convencido. Eu virei o rosto pra começar a ignorá­lo, na esperança de que o chato se tocasse e fosse embora (pois de Gustavos eu já estava cheia!), quando ele acrescentou: “Eu tenho cinco irmãs.” Aquilo realmente me pegou de surpresa e, como num flash, a imagem das três garotas chorosas se despedindo dele no aeroporto do Rio vieram à minha mente. Ops... Elas não eram potencias flertes dele, eram as suas IRMÃS! E eu o julgando tão mal... Percebei então que já era hora de começar a ser educada com ele, pelo menos um pouquinho.

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“E você ainda não pirou com tanto estrógeno dentro de casa?” perguntei. “Já estou acostumado. Tirando as TPMs e os garotos idiotas que eu tenho de quebrar a cara quando destroçam o coração delas, o resto é até fácil.” Ele disse rindo. Eu achei aquilo bem fofo, digo, não o lance de bater nos caras, mas o fato dele ser tão cuidadoso com as irmãs. Infelizmente eu nunca vou saber o que é isso, já que o meu único irmão além de ser mais novo do que eu está muito mais interessado em comer areia do parquinho ou girar em torno de si mesmo até ficar tonto e vomitar. Uma graça... “Então você é do tipo irmão superprotetor?” eu perguntei. “Não muito. Só não quero que elas se machuquem. O mundo está cheio de garotos babacas.” Ô, nem me fale... “E você se inclui nesse time?” eu alfinetei. Ele riu. “Não. Não. Eu sou do time dos bonzinhos.” Depois estendeu a mão pra mim a fazendo atravessar o corredor do avião. “Meu nome é Théo. Théo Medina.” “Bárbara” eu disse trocando o copo de mão pra apertar a dele. “Mas todo mundo só me chama de Babi.” Ele sorriu de novo mostrando seus dentes bem alinhados e brancos, mas largou minha mão logo em seguida pra desbloquear o corredor e permitir que uma senhora pudesse passar. Ela realmente parecia estar apertada para ir ao banheiro. Chegava a cruzar as pernas e andar de um jeito esquisito, a coitada. Não tivemos como não rir da cena. Só

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depois que a mulher saiu do nosso campo de visão entrando no banheiro foi que o Théo retomou a conversa. “Ei, você por um acaso perdeu alguma coisa no aeroporto?” “Perdi sim, uma pulseira de pingentes” respondi espantada colocando o copo em cima da bandeja “Como é que você sabe?” “É que minha irmã encontrou isso aqui perto de uma lanchonete no segundo andar do Galeão” ele disse tirando uma pulseira do bolso da sua jaqueta azul marinho. Eu a reconheci na hora. “Perguntei pra todas as garotas que encontrei no saguão, mas nenhuma delas tinha perdido nada. Quando te vi até pensei em falar com você, mas só que tu parecia tão concentrada ouvindo música que achei melhor não incomodar.” Uhhhh. Segunda mancada oficial da noite! Ele não estava ”cantando” as garotas como eu tinha pensado. Só estava gentilmente procurando pela dona da pulseira perdida... Viu? É isso que dá estereotipar as pessoas! “Toma” ele disse enquanto me estendia a pulseira “Você deu muita sorte. A minha irmã queria porque queria ficar com ela. Tive que prometer comprar uma igualzinha quando chegasse nos Estados Unidos.” “Obrigada, Théo. Valeu mesmo. Ela representa muito pra mim. Fico te devendo pro resto da vida” eu agradeci completamente tonta de felicidade. Tanto que me atrapalhei toda com o fecho da pulseira. E aí mais uma vez o Théo foi supergentil e se ofereceu pra ajudar.

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“Então? Está indo pra Orlando a passeio ou a negócios?” ele perguntou de brincadeira, colocando o ganchinho dentro do fecho dela. “Na verdade nenhum dos dois. Eu vou morar lá com a minha família.” Eu disse apontando com a cabeça pra Alice e pro Dani. “Pô, que legal! Eu vou morar em Orlando também. Quer dizer, eu já meio que moro... Olha, é uma história baita complicada.” o Théo disse. Eu pedi que contasse mesmo assim e ele começou a explicar que na verdade tinha nascido nos Estados Unidos e era filho de um americano com uma brasileira, mas como tinha dupla nacionalidade veio pro Brasil ainda criança, alguns anos depois dos pais se separarem. E que desde então, por causa da guarda compartilhada, vivia numa espécie de ponte aérea louca entre o Rio de Janeiro e Orlando, ficando seis meses no Brasil e seis meses nos EUA, até que o pai sugeriu pra mãe do Théo que ele fosse terminar o Ensino Médio todo lá, já que ele queria cursar Recording Arts numa faculdade de Orlando. Tenho de admitir que eu não fazia ideia do que Recording Arts podia ser, e no exato momento em que o Théo começou a me explicar, o dono da poltrona finalmente apareceu (o americano era um dos zumbis que ficavam vagueando pelo avião) e deu duas tossidinhas pra que o Théo se tocasse e saísse dali. Na mesma hora o Théo devolveu o lugar e ainda pediu desculpas educadamente em inglês. Ele até tentou continuar conversando comigo, em pé mesmo, mas umas pessoas chatas começaram a reclamar do barulho fazendo “shhhhhh” e

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então o Théo se despediu de mim sem ter me explicado direito o que era o tal curso. Pelo pouco que pude entender, acho que tem haver com gravação de música ou alguma coisa do tipo. Cerca de cinco minutos depois, quando eu achei que o Théo já estivesse dormindo bem quietinho lá na primeira classe, eis que o garoto surge de repente no corredor da classe econômica e vem falar comigo de novo. Só que dessa vez ele trazia uma coisa na mão. “Você gosta de chocolate com avelã?” o Théo perguntou bem baixinho, se agachando ao lado da minha poltrona. Não! Imagina! As pessoas me chamam de chocólatra à toa... “Gosto. Por quê?” eu rebati. Então ele colocou na minha mão duas embalagens bonitinhas contendo três bombons Ferrero Rocher cada uma. “As aeromoças deram isso depois do jantar, mas eu não curto muito avelã.” Ele disse pra mim sorrindo. Eu agradeci e já ia abrir um bombom toda felizinha ­e meio deslumbrada também­ porque tinha ganhado uma coisa da primeira classe, mesmo que fossem meros bombons, quando o Théo tirou algo do bolso de trás da calça jeans. “Acho que isso aqui pode te ajudar a dormir”, ele disse estendendo um Ipod pra mim, “Música é um ótimo calmante. Dependendo da trilha sonora, é claro.” Na hora eu não acreditei que ele estivesse mesmo me emprestando o próprio Ipod. Afinal, a gente se conhecia há pouco mais de dez minutos! Porque ele estava sendo tão simpático a ponto de me dar chocolate e se preocupar com o meu sono? Sem falar que estava confiando seu Ipod a uma total estranha! Tá, tudo bem, não tinha perigo nenhum de eu

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roubar o aparelho, afinal o que eu poderia fazer? Fugir pela saída de emergência e saltar de pára­quedas em pleno Atlântico? Claro que não! Deixo isso pro James Bond! A questão aqui é: será que o Théo sentiu pena de mim, já que eu pareço o resultado do cruzamento entre o Alien e o Predador, e por isso resolveu ser legal? Eu não sabia o motivo ­e pra ser sincera ainda não sei­ mas acabei aceitando a oferta dele. O Théo disse que eu poderia devolver o Ipod assim que o avião pousasse em Miami, me ensinou com toda a calma do mundo a mexer no aparelho e escolheu uma pasta chamada “Relax” (dentre as milhões que tinha ali) pra eu escutar. A lista de músicas até que era boa: 1) Same mistake – James Blunt 2) Under the bridge – Red Hot Chili Peppers 3) Airplanes – B.O.B e Hayley Williams 4) The Kill­ 30 seconds to Mars e Pitty 5) O vento – Los Hermanos 6) The scientist –Coldplay 7) Breakdown – Jack Johnson 8) Fix you – Coldplay 9) Misguided ghosts – Paramore 10) I’ll see you soon – Coldplay 11) Só os loucos sabem –Charlie Brown Jr. 12) Don’t go away ­ Oasis Depois disso voltou pra poltrona dele, onde no final das contas acabou pegando no sono. Sei disso porque fiquei dando

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umas esticadelas de pescoço de hora em hora pra ver o que ele estava fazendo. Por pura curiosidade, que fique bem claro! Quanto a mim, estou ainda aqui escrevendo nesse diário ao som de The scientist do grupo Coldplay, só que ainda não sinto vontade alguma de dormir. Sei que virar a noite não vai me fazer nem um pouco bem, e que pela manhã minhas olheiras provavelmente vão estar chegando a nuca, mas eu não ligo. Tenho muito mais coisas pra me preocupar do que uma simples olheira e meu nervosismo só aumenta conforme esse avião se aproxima da Flórida. De acordo com o mapa que esta sendo mostrado na TV do avião, estamos nesse momento deixando o espaço aéreo das Bahamas, o que significa que não levaremos muito tempo para chegar em Miami, onde faremos a conexão para o nosso destino final, a cidade de Orlando e... Ah, não! Só faltava essa agora!Não estou conseguindo respirar direito! Acho que estou começando a ter uma crise de asma de tanto nervoso. É melhor pegar a bombinha na minha mochila, antes que eu comece a ficar roxa por falta de ar. Depois eu escrevo mais aqui. Se estiver viva até lá, é claro.

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03 de Junho (sexta­feira) *Saguão do “MIA” (Miami Internacional Airport) 5:20 ­Finalmente chegamos na Flórida e correu tudo bem na parte da “Imigração”, o temido setor responsável por permitir ou não (e na maioria das vezes é não) a entrada de estrangeiros no país. Mamãe disse que íamos a Disney, já que tínhamos vistos B2 de turistas, e então fomos liberados sem muitas perguntas. Sério, depois dessa ela ainda acha que vai ter autoridade pra nos dar bronca por mentir? Tsc,tsc,tsc. Que vergonha dona Valkíria! Oh, e eu não sei onde o Théo se meteu. A última vez que o vi, minha família e eu estávamos na fila da imigração e ele indo pra uma outra, a fila dos americanos eu acho, com um dos passaportes na mão (ele tem dois, um americano e outro brasileiro, por causa da dupla nacionalidade). Às vezes esqueço que, apesar do Português fluente e do jeitão carioca, o Théo na verdade nasceu aqui. Porque, sendo sincera, ele não tem a menor pinta de americano! Exceto pelos olhos azuis piscina e a cor bem branquinha da pele.

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A espera na fila da imigração, no entanto, não foi nada comparada a de agora que minha família está enfrentando. Nosso vôo de conexão pra Orlando só sai as 8:20 da manhã, então somos obrigados a ficar no saguão do MIA igual a um bando de sem tetos. Simplesmente não tem nada aberto ainda, nem uma lanchonete sequer está funcionando nesse bendito aeroporto e o máximo que dá pra fazer é tentar se ajeitar nesse banco horrível onde estou agora enquanto escrevo. Meu irmão Dani se cobriu com a manta que ele roubou trouxe do avião (o ar condicionado daqui é poderoso!) e está dormindo todo encolhidinho encostado na minha mãe, que por sua vez está dormindo encostada na Alice, que por sua vez está babando no ombro de um desconhecido com cara de Boliviano sentado ao lado dela. Eu até poderia fazer a gentileza de acordar minha irmã, mas eu decidi não me privar da cena hilária que vai ser quando todo mundo despertar e a nojenta da Alice der de cara com o tal homem a menos de cinco centímetros do rosto dela. Já dei um passeio pelo aeroporto pra ver se me distraía enquanto este momento mágico não chega (é, o Théo não está por aqui mesmo!), mas a única coisa que me chamou a atenção nesse lugar foi um quadro daquele artista brasileiro, o Romero Britto, bem perto do terminal de embarque da American Airlines. A pintura era muito colorida e o sol desenhado na tela tinha uma série de raios preenchidos de amarelo, laranja e rosa. Sei que aquele quadro deve ter sido feito em homenagem a Flórida, mas foi difícil não lembrar do Brasil ao olhar pra ele. Então eu decidi voltar pro banco onde estou agora ao lado do

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Dani, antes que eu começasse a chorar de saudades da minha terra. Coisa que por sinal eu tenho tentado evitar desde que nosso avião aterrissou em Miami. Pois como diz aquela música (da Fergie se não me engano): “It’s time to be a big girl now, and big girls don’t cry.” Atrás de mim tem um homem sentado junto com uma criança, provavelmente é o seu pai, e em vez de dormir como a maioria das pessoas ao redor da gente está fazendo, ele está tentando entreter ela passando um filme em seu notebook. Dei uma olhadela de canto de olho pra ver qual é, e percebi pela qualidade da imagem que era algo bem antigo. Só depois de prestar muita atenção é que descobri ser “O mágico de Oz”. Eu até gosto desse filme, mas ele é tãããããão velho! Existem dezenas de animações 3D disponíveis pra agradar as crianças dessa nova geração. Por que então “O mágico de Oz”, cara? Se bem que apesar de antigo esse filme tem lá seu charme. Digo, eu tenho certa simpatia pela protagonista, a Dorothy. Talvez pelo fato de que eu estou agora na mesma situação que ela. O lance de ter ido parar em uma terra estranha e querer com todas as forças voltar pra casa, entende? Sem falar que eu tenho praticamente os companheiros de jornada da Dorothy babando e roncando bem aqui ao meu lado. Afinal, meu irmão Dani anda precisando de um cérebro, minha irmã Alice de um coração e minha mãe de um pouco de coragem, ou seja, qualquer semelhança com o Espantalho, o Homem de Lata e o Leão Medroso não é mera coincidência.

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O que me deixa triste nessa história toda é que ao contrário da Dorothy, meu par de All Star brancos não tem o poder de me levar pra casa assim como fizeram os sapatinhos vermelhos dela. E olha que eu já tentei bater meus calcanhares a La Dorothy umas duas vezes, mas o máximo que consegui foi tirar um bocado de poeira que estava grudada em meus tênis desde que saímos de Estrela. Pena, pois como já dizia a Dorothy “Não há lugar como o nosso lar.”

06:52­ O homem acordou antes da Alice e sabe o que ele fez?????????? Nada. Só tirou o ombro devagarzinho pra coitadinha não se assustar. Agora me diz Deus, é sério isso? Se fosse comigo o homem iria gritar, dar uma escarrada na minha cara e ainda me mandar voltar pro zoológico que eu tinha saído. Mas nããããão, essas coisas não acontecem com a Alice. E sabe por quê? Primeiro­ porque ela é bonita, segundo­ por que ela tem peito, e terceiro­ por que ela não parece uma anomalia da natureza como eu. Sério, às vezes eu acho o mundo um lugar muito injusto. Deus deveria saber dosar melhor essa coisa de defeito e qualidade nas pessoas.

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Eu sinceramente não sei como ele faz essa distribuição, mas tenho certeza que o todo poderoso errou feio na minha vez. Bem que o céu podia fazer um recall feminino de vez em quando não é? Seria ótimo. Imagina só: “Atenção mulheres de nascimento final 74, 85, 93, 96 e 97. A companhia Céu S.A. informa que certos problemas foram detectados na região peitoral e traseira de seus produtos, o que pode acarretar sérios problemas em sua vida social. Favor comparecer ao paraíso para troca das peças defeituosas por bustos e glúteos de tamanhos mais satisfatórios. A Céu S.A. pede mais uma vez desculpas pelo transtorno e agradece sua paciência, já que por nossa causa você ainda não conseguiu arranjar um namorado. Muito obrigado.” Está vendo? Peças de freio que nada, definitivamente é desse tipo de recall que nós garotas precisamos!

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03 de junho (sexta­feira) *Dentro do avião de novo! Não aguento mais!!!!!!!!!!!!!

08:40­ Saímos bem atrasados de Miami e daqui a alguns minutos vamos desembarcar em Orlando, então eu já estou no modo ‘contagem ­ regressiva’. Minhas olheiras ficaram medonhas graças à noite em claro que passei e agora eu pareço um Panda gigante. Sinceramente não dou a mínima pra

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isso, até por que eu estou me preocupando muito mais em não surtar conforme esse avião claustrofóbico vai furando as poucas nuvens que tem nesse céu azul. Mamãe e Alice estão conversando sobre meus primos neste momento. Minha irmã está virada para o assento atrás de nós, onde mamãe se encontra, e o Dani parece não aguentar mais ficar em aviões também, já que desde que saímos de Miami ele tem chutado de forma incessante a minha poltrona, fazendo com que a minha letra nesse diário fique um belo garrancho. Mas como eu disse, mamãe está conversando com Alice e parece não dar à mínima para isso. Minha irmã está dizendo que está curiosa pra ver o Vini, já que na última foto que minha tia Vivian nos mandou (há uns dois anos atrás mais ou menos) ele parecia ter aderido ao estilo roqueiro­rebelde­sem­causa. Havia deixado o cabelo crescer, só vestia roupas pretas ou camisas de bandas de rock como Iron Maiden, usava vários anéis de caveira, esmalte preto nas unhas e até tinha colocado um piercing na sobrancelha e uma argola no nariz! Ou seja, defina estranho em uma palavra e o que você tem? Vini! Tia Vivian ­ como boa evangélica e defensora da moral e bons costumes­ é que não gostou nadinha do visual dele, óbvio. Mas na época ela nos disse ter entendido que o Vinícius estava fazendo aquilo só pra chocar as pessoas, já que assim como eu ele também não queria se mudar pra Orlando. Então, tentando não dar mais corda àquela estranha forma de protesto de meu primo, tia Vivian decidiu parar de reclamar e até sugeriu que o Vini colocasse um piercing no mamilo! Acredita?

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Gente, se eu é que estivesse fazendo esse protesto, tenho certeza que minha mãe não seria compreensiva desse jeito. No mínimo ela iria arrancar todos os meus piercings com alicate e me banhar em água benta por que ela acharia que eu estava possuída pelo “Cão”! Mas voltando ao Vini, será que ele continua nessa fase rebelde sem causa, ou melhor dizendo, com causa? Será que ele ainda odeia Orlando? Por que se isso for verdade então seremos dois. Tenho certeza de que não vou gostar nem um pouco desse lugar. Um mês antes de viajarmos mamãe ficou falando das maravilhas da cidade, que nós iríamos adorar porque tem uma grande comunidade de brasileiros, muitos shoppings, muitos parques da Disney bem pertinho de casa, onde eu vou poder ver o Mickey, o castelo da Cinderela e blá, blá, blá. Só que nada disso realmente me fez ficar mais animada. Primeiro, porque se é pra ver brasileiro eu prefiro ver em casa, no Brasil. Segundo, porque nós éramos bem servidos de shopping em Estrela (Tá. Tudo bem, não éramos nem um pouco. Na verdade o mais perto que tinha era o Unicshopping na cidade vizinha em Lajeado. Mas pelo menos tinha!) e terceiro, por que eu não possuo simpatia alguma por uma droga de rato que se veste como gente. E mais, mesmo que meu sonho de criança sempre tenha sido conhecer o castelo da Cinderela, uma coisa é você fazer uma visita a gata borralheira e ir embora, outra é ser vizinha dela! Então não me venha dizer que eu vou gostar desta cidade, sei que isso nunca vai acontecer. NUNCA!

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08:48: Acho que o Théo foi abduzido por alguma nave Alien no aeroporto de Miami, por que não o vi embarcando nesse avião. Pelo menos eu fiquei de olho por bastante tempo na Primeira Classe, mas nem sinal dele. Será que aconteceu alguma coisa? Mistério...

Ainda 03 de Junho *banheiro feminino do aeroporto de Orlando. 10:20 ­ AI ­MEU ­DEUS! Nosso avião finalmente pousou e eu ainda não consigo acreditar que estamos aqui, nossa futura casa! Minhas pernas ficam até meio trêmulas só de pensar. Mas vamos lá Babi, respira fundo. 1, 2, 3... Solta o ar... Isso. Ventila...

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Ok. É melhor contar logo de uma vez como foi nossa chegada e tudo mais, antes que eu tenha um ataque de asma nesse lugar. Aconteceu o seguinte: a gente desembarcou no aeroporto de Orlando e apesar de não sabermos ao certo para onde ir mamãe e meus irmãos resolvemos seguir a multidão que saiu do voo, do mesmo jeito que fizemos no aeroporto de Miami. Depois de pegarmos o monotrilho, recebermos aquele bafo de calor de Orlando e descermos pelas escadas rolantes do saguão, nos dirigimos até as esteiras, onde um monte de bagagens do nosso voo já estava sendo rolada por ela. Mamãe decidiu ficar de olho para ver se encontrava o Vini por ali ­ já que ele é que iria nos receber no aeroporto­ enquanto eu fiquei encarregada de pegar nossas malas (maldade, isso hein!) e a Alice de cuidar do Dani. O que por sinal minha irmã não conseguiu, já que foi só ela se distrair para que o guri escapulisse da mão dela, subisse na esteira rolante de um outro voo e começasse a dançar cantando “Eu me remexo muito, ele remexe muito, ela remexe muito...” Alice teve um trabalhão pra tirar ele daquela esteira porque o nosso pequeno viciado no filme Madagascar ficou correndo por ela, pulando sobre as malas dos outros passageiros, então minha irmã não teve alternativa se não arrastar a criança à força dali. Ao que o Dani não se dando por vencido começou a gritar “Socorro! Criança sendo sequestrada. Criança sendo sequestrada!”. Como todo mundo estava olhando, o rosto da Alice se encheu de raiva ­igualzinho ao dia em que o Dani pegou dois absorventes da gaveta dela e colou um em cada lado da

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cabeça para fingir que eram orelhinhas de cachorro­ e então minha irmã não encontrou outra solução a não ser amordaçar o pirralho com o cachecol dela. Nesse meio tempo em que eu mais uma vez fingia não conhecê­los fui tirando nossas malas pouco a pouco da esteira, até que uma grandona e pesada da Alice surgiu e eu tive que fazer uma força enorme pra conseguir tirá­la dali. O problema foi que logo assim que eu a puxei usando todo o peso de meu corpo, ela acabou vindo junto comigo e eu inevitavelmente cai de bunda no chão com mala e tudo. Na mesma hora senti alguém surgir atrás de mim e perguntar “Precisando de uma ajudinha?”. Quando virei minha cabeça pra agradecer e dizer que não, foi então que eu finalmente o vi. Lá estava o Théo, bem na minha frente, usando mais uma vez seu Ray­ban e mostrando aqueles dentes brancos maravilhosos. Agora ele estava sem jaqueta, só com uma blusa pólo (não era pra menos, fazia um calor enorme naquele aeroporto) e o cabelo preto parecia meio desgrenhado como se ele tivesse pegado bastante vento. O Théo ainda ficou me encarando sorrindo, até que resolveu tirar a mala de cima de mim e me deu a mão para que eu pudesse levantar. “Meu Deus, o que tem aqui dentro? Um corpo?” ele perguntou empilhando a mala da Alice ao lado das de mamãe. “É. Do último engraçadinho que me fez perguntas idiotas.” Eu respondi numa tentativa (sem sucesso) de fazer um tom ameaçador. O Théo apenas riu.

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“Então eu acho que tenho que tomar mais cuidado com você” ele afirmou enfiando as mãos no bolso. “Pra falar a verdade não. Eu sou do time das boazinhas, sabe?” eu falei enquanto colocava os olhos na esteira rolante em busca das outras malas da minha família. Pelo canto do olho pude ver que ele balançou a cabeça sorrindo. E que sorriso lindo... “Não vi você entrar no avião em Miami.” eu disse meio casual, me preparando pra pegar a mala do meu irmãzinho que estava vindo na esteira. “É, eu não peguei esse voo.” “Como assim? Veio num outro?!” eu perguntei surpresa. “Não. De carro.” Ele disse enquanto me ajudava a retirar a mala do Dani da esteira rolante. Eu olhei pra ele meio que sem entender nada e então o Théo explicou que tinha emprestado o carro dele pra um amigo ir a uma festa Rave na quinta­feira em Miami Beach e que o amigo, sabendo que ele estaria de volta naquela sexta, foi o pegar no aeroporto pra ele assim poder vir pra Orlando dirigindo. Primeiramente eu achei aquilo meio estranho e depois um bocado exaustivo, afinal enfrentar 7 horas de avião e ainda mais um tanto de carro devia ter sido horrível! Mas o Théo disse que ele adorava dirigir e sempre que podia fazia isso nos Estados Unidos, já que no Rio ele ainda não tinha idade pra tirar carteira por ter só 16 anos. Além disso, ele me contou que o caminho de Miami a Orlando nem era tão longo, sendo que ele conseguia fazer o trajeto em incríveis duas horas e cinqüenta minutos (isso não é longo????), quando

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normalmente se levava três e meia (credo!). Então não foi tão ruim assim pra ele dirigir até aqui (ah, tá bom!). O único problema é que, querendo ou não, ele teve que vir pegar as malas no aeroporto de Orlando e por isso estava ali agora. Nesse meio tempo em que Théo terminava de explicar a ausência dele no vôo, minha irmã Alice se aproximou de nós arrastando o Dani literalmente pelo chão, e soltou­o na mesma hora que viu o Théo. “Oi. Você é o garoto que salvou minha irmã de morrer desidratada não foi?” Alice perguntou, achando que tinha feito a piada mais engraçada do mundo. Eu apresentei o Théo a ela e ao Dani, e minha irmã o cumprimentou com dois beijinhos no rosto. Quando ele se agachou pra falar com o Daniel, minha irmã se aproximou de mim e sussurrou bem perto do meu ouvido um: “Nossa, que gatinho, hein! Pena que ainda ‘cheira’ a leite.” Eu revirei os olhos, claro. A Alice achava todo garoto um colírio. Não que o Théo não fosse um espetáculo para os olhos, mas a Alice não tinha parâmetros com relação à beleza masculina. Se fosse alto e tivesse testosterona ela já coroava como Deus do Olimpo. “Então você é o irmãozinho delas?” o Théo perguntou educadamente pro Dani. “Não seu mané. Eu sou o irmãozão e já sou grandão, tá!” o Dani revidou cruzando os braços e fazendo cara de mau. Criançinha atrevida... “Ah, você acha que é grandão?”, o Théo retrucou, “Então eu vou te levar num parque daqui pra você conhecer uma baleia

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Orca bem de perto. Aí sim você vai ver o que é algo realmente grande.” Na mesma hora o Dani se interessou e os olhinhos dele brilharam. Meu irmão adorava qualquer coisa relacionada ao fundo do mar desde que viu Procurando Nemo, então meio que sem querer o Théo havia ganhado de cara a confiança daquele diabinho. “Sério? Você me leva mesmo?!” meu irmãozinho perguntou totalmente fascinado. “Claro! É só me darem o telefone da casa de vocês aqui, que a gente marca.” O Théo falou pra Alice e pra mim enquanto se levantava. Minha irmã só sussurrou um “Muito esperto” meio que sorrindo (por sinal eu não entendi nem um pouco esse comentário dela) ao que eu expliquei pro Théo que a gente não sabia o endereço nem o telefone de cabeça de onde íamos ficar, e que minha mãe era a única que tinha ele por escrito, mas ela não estava por perto pra que eu pudesse passar pra ele. O Théo pareceu meio decepcionado e o Dani também, mas a Alice deu a fabulosa idéia da gente anotar o telefone dele. Como ninguém tinha papel, o Théo anotou na minha mão mesmo, depois pegou a única mala dele na esteira e se despediu da gente indo em direção a um elevador que provavelmente levava ao estacionamento. Assim que ele entrou no elevador, a Alice se virou pra mim dizendo que não sabia se eu era ingênua ou burra mesmo. Eu pedi pra ela explicar, mas minha irmã só balançou a cabeça e

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foi atrás do Dani que estava tentando fugir pela porta automática do saguão. Enquanto isso fiquei esperando pelas minhas malas roxas. Passaram­se dois minutos, depois cinco, depois dez... E nada delas na esteira rolante. Foi aí então que eu comecei realmente a me preocupar. Onde estavam as drogas das minhas malas que não apareciam, gente? Depois de mais alguns minutos de tolerância esperando por elas, a esteira parou de rolar afinal e o desespero tomou conta de mim. Mamãe, que tinha ido dar uma procurada de novo pra ver se achava o Vini, voltou sozinha dizendo que não havia sinal de nosso primo em lugar nenhum e achou melhor que a gente procurasse um telefone pra ligar pra loja da tia Vivian, pois talvez o Vini tivesse se esquecido da gente. Antes de irmos procurar o telefone como ela mandou, minha irmã e eu fomos reclamar com a companhia aérea do sumiço das minhas malas. Eu tive que descrevê­las (na verdade foi a Alice), dei o telefone de tia Vivian como contato e a mulher da American Airlines disse que ligaria assim que eles encontrassem a bagagem desaparecida. Obviamente eu saí sem muitas esperanças do balcão da companhia aérea, e fui me arrastando desolada atrás da minha irmã pra procurar o bendito telefone, só que quando a gente achou um, nos lembramos (tá bom, na verdade foi a Alice de novo) que pra fazer ligação nos Estados Unidos você usa moedas de dólar e nós não tínhamos nenhuma com a gente.

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A única opção era voltar aquele aeroporto enorme todinho, pois o dinheiro trocado estava com a nossa a mãe e foi isso que fizemos. Quando a gente estava voltando ao saguão eu percebi que tinha uma pessoa alta conversando com a minha mãe. Não dava pra ver o rosto, pois ele estava de costas pra gente, mas na mesma hora que eu forcei os olhos pra ver melhor, minha mãe gritou apontando pra gente: “Ah, olha elas ali!” e o tal cara se virou pra olhar na nossa direção. A princípio eu não o reconheci. Mas os olhos verdes inconfundíveis que ele tinha não me deixaram dúvida. Era o meu primo Vinícius parado bem ao lado de minha mãe e sorrindo daquele jeito tão familiar, cheio de covinhas no rosto, enquanto olhava diretamente pra mim. Minha irmã e eu nos aproximamos dos dois e foi só aí então que eu pude dar uma boa olhada no meu primo. Roupas pretas? Cabelo cumprido? Anéis de caveira? Nada disso! Ele estava vestindo bermuda comum e uma blusa da Billabong, sem falar no seu cabelo loiro escuro, cheio de cachos, que o fazia parecer um verdadeiro anjinho. Quanto aos piercings... Bem, não havia nenhum à vista até aquele momento. Só um rosto bem barbeado, sem falar que muito bonito. Ah, e o Vinícius não parecia estar prestes há completar dezoito anos, como minha mãe nos lembrou no avião. Talvez porque seu corpo e sua altura (1,75 no mínimo!) o dessem a aparência de um cara de vinte e poucos. Eu ainda fiquei olhando pro Vini sem acreditar o quanto ele tinha crescido e mudado desde a última vez que eu o vi, até

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que de repente minha mãe falou: “Bárbara você não vai abraçar seu primo?” Vini então franziu a testa. “Babi?! É você?! Eu achei que fosse a Alice.”, ele disse meio tímido, parecendo realmente não acreditar que estava diante de mim. Como uma idiota eu apenas fiz um “sim” com a cabeça e continuei parada, começando a ficar vermelha igual a um tomate. Eu havia lembrado das cartas de amor ridículas que tinha escrito pra ele e isso me deixou com uma vergonha brutal. * Pequeno intervalo pra uma leve amostra: [Se cada vez que eu pensasse em você sumisse um pouquinho de mim. Ué! Cada eu?] ARGH! Ok. Agora corta pro momento embaraçoso no aeroporto de novo... Embora minha vontade fosse correr e me esconder no banheiro ou no primeiro buraco que encontrasse por ali, naquele momento eu não consegui nem ao menos me mexer. Bom, mas a questão é que como eu não fui abraçá­lo, Vini veio ao meu encontro e, quando ele me enlaçou bem de levinho, todo acanhado, com aqueles braços longos, eu não consegui abraçar ele de volta porque eu estava simplesmente travada de tanta vergonha.

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“É legal rever você prima”, ele sussurrou no meu ouvido enquanto isso. Estava na cara que assim como eu o Vini não se sentia confortável com aquela situação. “É... é bom rever você também.” eu disse, finalmente articulando uma frase. Afinal eu tinha que falar alguma coisa, não é? O Vini riu e me largou pra ir abraçar a Alice e o Dani logo em seguida. Eu respirei de alívio... E depois disso, quero dizer, de mais uma série de comentariozinhos bobos de família, eu disse a minha mãe que precisava ir ao banheiro e corri pra cá. Não que eu tivesse alguma necessidade fisiológica para ser saciada, mas sim porque eu tinha que escrever tudo o que aconteceu. Até agora eu não consigo me perdoar por ter agido feito uma idiota colossal com o Vini. Tudo bem, o fato de eu ter azucrinado meu primo com aquelas cartas de amor bobas quando a gente era criança fez com que eu ficasse um tanto sem graça e tímida diante dele agora, mas isso não é motivo para eu travar e agir igual a uma estúpida. É? Afinal, é só o Vini! Uma pessoa que eu conheço desde que nasci! Qual é o meu problema, hein? Oh, droga! Mamãe acabou de abrir a porta do banheiro e está perguntando aos berros se eu estou bem. Acho melhor eu sair desse “reservado” e voltar para o saguão antes que ela e todos os outros integrantes de minha família pensem que eu estou tendo um pequeno problema intestinal. Se é que você me entende... Porque pelo jeito que eu vim correndo pra cá qualquer um iria imaginar essa possibilidade.

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Ai, que vergonha!

Ainda 03 de Junho, *num posto de gasolina em Orlando.

10:40 – Vini acabou de parar para reabastecer o carro. Tive uma pequena brecha para escrever nesse diário porque minha irmã resolveu ir até a loja de conveniência do posto chamada “7­Eleven”, e minha mãe está tentando fazer o Dani voltar pro carro, pois ele saiu em disparada quando viu dois esquilos em um canteiro perto daqui. Dessa vez eu não posso culpá­lo. Afinal, os únicos animais que meu irmãozinho já viu de perto (tirando os domésticos) foram gambás e tatus. Então dá pra entender a empolgação da criança quando ele viu a dupla de esquilinhos fofinhos. Vini disse que nós também vamos ver muitos guaxinins por aqui. E por falar no meu primo, é ele mesmo quem está colocando gasolina no carro. Não tem frentista nesse posto, o que eu achei muito estranho, mas a Alice ­nossa expert em

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cultura americana­ assegurou que isso é mais do que comum nos Estados Unidos. Oh, e falando ainda sobre carros, esse em que estamos é do próprio Vini e, vou te dizer, é um carro bem legal! No Brasil ele é meio caro, mas meu primo disse que os automóveis daqui são relativamente baratos e por isso todo mundo tem um, ou seja, quase ninguém anda a pé ou usa ônibus. Tudo bem, isso só colabora ainda mais para o aquecimento global, o que decididamente é péssimo, mas por outro lado olha a comodidade absurda que esse povo daqui tem! Voltando ao Vini, ele agora parece ser do tipo que não fala muito (outra coisa que mudou pra caramba nele, pois meu primo costumava ser o tagarela da família), mas apesar disso o Vini tem sido bastante simpático comigo desde que a gente saiu do aeroporto. Inclusive, fez questão que eu sentasse no banco do carona, bem em frente à saída de ar condicionado, pois a blusa de lã amarela que estou usando não é nem um pouquinho adequada ao calor terrível que está fazendo em Orlando agora. Deve estar no mínimo uns 40 graus aqui, bem diferente dos 08 geladíssimos de Porto Alegre! E o pior é que eu suei tanto graças ao calor, que o telefone do Théo acabou virando um grande borrão preto na palma da minha mão. O que é uma pena, pois ele realmente parecia ser um garoto legal... Mas deixando de lado a temperatura insuportável, Théo, carros, esquilos, e tudo mais, o real motivo de eu estar escrevendo nesse exato instante é porque quero comentar minhas primeiras impressões sobre Orlando.

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Não, ainda não vi jacarés por aqui e muito menos pântanos repletos de crocodilos!Na verdade essa cidade é bem diferente do que eu imaginava. Falo sério! Ela até tem bastantes palmeiras como o guia da Alice mostrava, mas o que me chamou a atenção mesmo é que tudo aqui é muito limpo e organizado, mais ainda do que no Sul do Brasil. Você não vê nem mesmo folhas de árvores se esparramando na calçada. Parece que elas fizeram acordo com Deus pra não cair, então o chão daqui acaba sendo estupidamente limpo. A grama que cobre os canteiros tem um tom vivíssimo de verde (parece até a cidade das Esmeraldas do filme o Mágico de Oz!) e todos os arbustos estão milimetricamente podados. As ruas também são incríveis! Superlargas, bem sinalizadas... Acredita que até agora não vi um buraco sequer no asfalto? Me sinto como se estivesse dentro de uma série americana, daquelas que a gente sempre vê nos canais de TV por assinatura, sabe? Tenho que admitir que Orlando é muito bonito mesmo, mas ainda assim eu prefiro Estrela. Não há nada como o aconchego da minha casa, a simplicidade de minha cidade. Sei que se eu dissesse isso alto ninguém iria me entender, mas é o que eu sinto. Mamãe e Alice são as mais maravilhadas com tudo aqui. Elas não pararam de perguntar e tagarelar durante todo o trajeto do aeroporto pra cá. Queriam saber de tudo, ver tudo, olhar tudo. Pareciam felizes por estar em Orlando. Acho que isso se deve ao fato de tudo ser novidade pra elas. Já eu, bem, eu fico triste por não sentir o mesmo. Digo, eu realmente queria estar encarando essa mudança como algo

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positivo, mas simplesmente não consigo. A saudade de minha terra Natal já dói e a insegurança em relação ao que me espera nesse lugar me apavora ainda mais. Não sei como será minha vida daqui pra frente e tremo só de me imaginar estudando em uma dessas escolas de Orlando. Meu inglês não é lá essas coisas, eu não estou acostumada com a cultura americana e além do mais eu sou muito estranha, o que com certeza vai dificultar ainda mais meu entrosamento no corpo estudantil. Agora depois disso tudo me diz, como é que eu posso bancar a “felizinha” se um futuro catastrófico me espera? Simplesmente não dá!

Ainda 03 de Junho (quarto de hóspedes)

23:10­ Estou muito cansada agora, pois tivemos um dia cheio, mas precisava contar sobre o que aconteceu hoje. São tantas novidades que eu estou até meio tonta. Depois de nos pegar no aeroporto Vini nos trouxe pra cá, a casa de Tia Vivian, que fica em uma tal de “Pineapple Court”. Não me contive e acabei soltando uma gargalhada dentro do carro quando Alice traduziu o nome da rua e disse que significava “Quadra Abacaxi.” A casa de tia Vivian não era a mais luxuosa de todas dali, mas é bonita e enorme. Não tem muros, como todas as da rua, e a única coisa que nos separa do vizinho é uma árvore

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frondosa e uma cerca viva, bem verde por sinal. Tudo aqui é muito verde mesmo, desde a grama até as árvores, mas acho que eu já disse isso antes. Assim que o Vini arrastou como um bom cavalheiro todas as nossas malas pra dentro de casa, ele nos apresentou a Lola, a gatinha de dois anos de nossa prima Ana. Dani quis logo brincar com ela (a gata, quero dizer), mas a Lola ficou pulando em cima de mim e depois começou a se enroscar nas minhas pernas toda manhosa ao que eu a peguei no colo pra fazer carinho. Vini disse que seu cachorro devia ter gostado muito de mim, já que não saia distribuindo saliva na cara das pessoas assim de primeira. Minha mãe, paranóica que só ela, ficou desesperada com isso e acabou falando aos berros pra que eu largasse logo a gata antes que o pêlo dela me causasse uma crise de asma e eu morresse sufocada. Exagerada, eu sei, mas também o que mais eu poderia esperar de uma mulher que me fez usar tesouras sem ponta até meus doze anos? Em seguida Vini nos mostrou por alto todos os cômodos da casa, a mesa de piquenique no quintal dos fundos e é claro, este quarto de hóspedes onde meus irmãos, minha mãe e eu iremos ficar provisoriamente até nos organizarmos pra alugar uma casa por aqui. Ele é muito espaçoso mesmo e do jeitinho que tia Vivian tinha descrito pelo telefone. Cabem duas camas de casal, um criado mudo, além de ter um closet enorme que dá até pra entrar e se esconder nele. A janela é virada pro quintal dos fundos e de tão grande que ela é parece uma porta.

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O Vinícius, no entanto não ficou muito tempo com a gente, pois tia Vivian ligou pela manhã e o mandou comprar algumas coisas pra pequena comemoração tipicamente gaúcha que iríamos ter a noite, em homenagem a nossa chegada. Tia Vivian é dona de uma Tinturaria em Orlando e por isso não podia deixar a loja. Minha prima Ana, por sua vez, estava visitando uma amiga da escola que havia sofrido um acidente, então sobrou pro pobre do Vini ter que ir ao mercado. Como não tínhamos muitas coisas pra fazer aqui e ficamos sozinhos nessa terra estranha, mamãe e eu decidimos esvaziar as malas e arrumar as roupas no closet. Dani foi pros fundos ver o “ninho” de esquilos que tem numa árvore daqui do quintal e Alice sentou no sofá para assistir um pouco de TV americana, pois segundo ela, queria ficar atualizada com o que estava rolando nos “States”. O dia passou rápido depois disso e quase lá pelo entardecer a Ana chegou. Ela estava alta (pouco mais do que eu), tinha a pele hiper branca, as maçãs do rosto pintadas num blush quase rosa chiclete, e o seu cabelo loiro escuro dos tempos de criança agora era quimicamente um louro dourado. Apesar de nossas antigas desavenças dos tempos infantis e do jeitão meio reservado dela agora, a Ana não parecia me odiar. Na verdade ela foi até bem legal comigo. Me mostrou o quarto rosa dela (ou melhor dizendo, LAVANDA!) os pôsteres pregados na parede do Black Eyed Peas (grupo que ela adora), a esmaltoteca que ela tinha dentro do closet ( era esmalte até dizer chega!), disse que estava feliz por me ver, e que qualquer coisa que eu não soubesse em inglês eu podia perguntar pra ela (ah, pode apostar que eu vou fazer isso!).

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À noitinha, assim que sai do banheiro depois de eu ter ficado hooooras de molho me refrescando numa banheira maravilhosa, percebi que havia uma grande agitação na casa e, quando fui até o quintal dos fundos, senti logo um cheirinho gostoso de churrasco se espalhando pelo ar. O clima já estava bem melhor do que o calor horroroso que fez de dia, e na mesa de piquenique havia várias pessoas sentadas, sob as luzes de lanternas japonesas vermelhas que iluminavam o quintal. Eu não conhecia quase metade daquele povo, mas nem precisei me esforçar pra descobrir quem eram. Tio Oscar, que estava no controle da churrasqueira, veio até mim sorrindo. Ele agora era careca e tinha uma pança de dar inveja ao Papai Noel, mas fora isso continuava o mesmo bobo de sempre. “Essa mulher enorme é a Bárbara, ou você comeu ela?”, ele perguntou fingindo estar horrorizado. Tudo bem, essa não é a melhor coisa a se dizer pra sua sobrinha que não o vê a mais de nove anos e que tem sérios problemas em lidar com a aparência, mas o que é que eu posso fazer? Meu tio sempre foi meio sem noção e esses anos nos Estados Unidos infelizmente não mudaram isso. Depois de me abraçar até quase tirar todo o ar de meus pulmões, Tio Oscar me apresentou a mulher dele, a Jane, e aos meus primos americanos que eu só conhecia por foto, o Markus e a Emma. Markus, ou Mark como ele mesmo disse que preferia ser chamado, tinha dezessete anos, era loiro, fortão e branco do tipo “vela”. Ele não me abraçou nem nada quando fomos apresentados, mas me cumprimentou com um português carregadíssimo de sotaque americano. Mark até disse que não

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sabia que tinha uma prima tão bonita (com certeza estava tentando apenas ser simpático), ao que o Vini deu uma cotovelada nele e disse: “Pode parando Mark. Essa é da família.” Já a Emma era uma criança adorável. Tinha apenas três anos, a mesma cor de cabelo do Mark e era super educada, uma qualidade que com certeza vai perder já que estava brincando com a peste do meu irmão. Emma não falava português, nem mesmo “arranhava” como o Mark e a Jane, mas Dani não teve problemas em lidar com isso, porque eles estavam tão empolgados brincando, que a barreira linguística parecia nem existir. É triste dizer isso, mas quando se é criança tudo é mais fácil... Também cumprimentei tia Vivian que tinha chegado a pouco da loja e ela me abraçou dizendo que eu estava muito bonita, que parecia quase uma mulher. Mas eu não acreditei, afinal, elogios de parentes nunca devem ser levados a sério, ainda mais se a sua tia em questão tem vista cansada e quatro graus de hipermetropia. O blá­blá­blá mentiroso sobre como eu estava bonita ainda continuou até que eu me sentei ao lado do Vini na mesa de piquenique. Ele e Mark estavam conversando animadamente em inglês (um raro momento em que vi o Vini sendo realmente sociável com alguém), mas pararam assim que eu cheguei. “E então Babi, que é você está achando de Orlando?”, o Vini perguntou levando logo depois a boca uma latinha de um refrigerante chamado Sierra Mist, tipo Sprite sabe?

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“Ah, legalzinho. Na verdade, ainda não vi muita coisa...”, eu disse tentando parecer casual. Não achei que me lamentar ali na frente de todo mundo fosse algo muito sensato. “Eu posso te mostrar a cidade se você quiser, Babi.”, meu primo Mark ofereceu. O sotaque dele parecia o de um paulista do interior e, quando ele falava meu apelido, pronunciava estranhamente “Baby” em vez de “Babi”. “Cara tu não desiste nunca não, é?”, o Vini disse rindo e jogando com a colher um pouquinho de salada de batata em cima do Mark. Então Ana também entrou na conversa, apesar de estar um pouco afastada da gente, sentada ao lado da Alice. “Cuidado com o Markus hein. Esse aí é um perigo quando quer bancar o sedutor. Believe me!”, ela falou pra mim enquanto apontava o garfo na direção do nosso primo. De repente a Alice, que estava apenas nos encarando, resolveu puxar conversa com o Vini. “Minha mãe disse que a Bárbara vai entrar pra mesma escola de vocês, a Olympia High School. Ela é boa?” “Olha, eu só estudo há seis meses lá, mas até agora eu não tenho muito do que reclamar não.”, Vini respondeu. “Dahhh! Depois do que aconteceu na Gotha Midlle qualquer outra escola é uma maravilha pra você”, a Ana disse num tom sarcástico. “O que aconteceu lá?”, eu perguntei meio inocente. Mas Vini apenas disse “nada” e voltou a ficar daquele jeito caladão dele. De repente tio Oscar levantou a voz: “Oh, você vai adorar esse país, minha irmã”. Ele disse pra mamãe enquanto remexia a carne numa churrasqueira engraçada que parecia

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mais um brinquedo com rodas. “A Flórida é praticamente o 28° estado brasileiro! É só andar por aí que a gente encontra um conterrâneo. Sem falar que esse lugar tem um clima ótimo. Você nem vai notar a diferença daqui em relação ao Brasil.” É. Tá legal... O Mark, meu primo, se levantou da mesa logo depois desse comentário de tio Oscar, já que o churrasco parecia não sair nunca, e chamou o Vini para jogar no XBOX que ele havia trazido. Os dois foram então ao carro do Tio Oscar para pegar o videogame e o Dani e a Emma os seguiram saltitantes logo atrás. Como mamãe estava conversando com tia Vivian e com minha tia “postiça” Jane, não me restou muita opção a não ser ficar calada. Ana era legal, mas eu não sabia o que nós duas poderíamos conversar e, além disso, ela misturava tanto o inglês com o português que às vezes era até difícil entender a criatura, então eu fiquei enchendo a cara de Coca­cola (pelo menos encontrei alguma bebida familiar aqui!) pra manter minha boca ocupada e assim não precisar dizer nada. Alice até tentou puxar assunto com minha prima, mas a Ana não parecia ter ido muito com a cara dela e simplesmente a ignorou a maior parte do tempo. Só respondia o necessário quando minha irmã perguntava alguma coisa. Nesse meio tempo Vini e Mark já haviam instalado o XBOX na TV e estavam jogando Halo nele. Sei disso porque a porta de vidro que dava para os fundos da casa de tia Vivian mostrava todo o interior da sala e eu também podia ouvir o Mark gritar pro Vini em meio a um som de artilharia pesada: “Granada de plasma, usa a granada de plasma”.

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Não sei por que, mas fiquei durante um bom tempo observando o Vini jogar. Ele parecia tão normal agora que era difícil crer que já havia bancado o bad boy um dia. É estranho o que o tempo pode fazer com as pessoas. Transforma verdadeiros sapos em... hum, príncipe acho que é uma palavra forte demais, mas meio que serve. O churrasco depois disso não demorou a sair. Todos nós nos reunimos à mesa, brindamos com latinhas de refrigerante por nossa família estar reunida novamente e nos deliciamos com a carne ­quase boa para os padrões gaúchos­ que tio Oscar tinha feito. Foi um momento legal, e a tristeza por estar longe do Brasil até passou quando o Dani deu um arroto enorme por causa do gás do refrigerante e minha mãe ficou vermelha de tanta vergonha. A noite seguiu sem muitas novidades (mamãe por um milagre dos céus não tocou nos assuntos Babi­odiava­Ana, Babi­amava­Vini) e Tio Oscar, Jane, Mark e Emma foram embora agora a pouco. Minha irmã Alice falou pra eu ajudá­la a tirar as coisas da mesa de piquenique, mas Vini mandou a gente deixar isso com ele e a Ana, pois devíamos estar muito cansadas da viagem. Não mencionei o fato de que estou a mais de 32 horas acordada para não chocá­lo, mas agradeci e muito o favor. Mamãe não veio se deitar ainda, porque está na sala botando os assuntos em dia com tia Vivian e mostrando os presentes que nós trouxemos do Brasil (sandálias Havaianas pra minha prima, blusa do nosso time ­ o “Internacional” ­ pro Vini e uma cuia de chimarrão pra tia Vivian). Já eu estou

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finalmente morrendo de sono e minhas pálpebras parecem super pesadas, prestes a desabar. Amanhã vai ser um longo dia, pois vamos ao shopping comprar algumas roupas pra mim enquanto a American Airlines não encontra minhas malas perdidas (minha irmã teve que me emprestar uma camisola dela pra eu poder passar essa noite). Então acho melhor parar de escrever nesse diário e ir dormir antes que eu pegue no sono aqui e babe bem em cima dele, ou muito pior, a Alice o roube de mim enquanto isso, só pra ver o que eu tanto escrevo afinal.

23:19­ Lembrete: Não esquecer de desinfetar meu aparelho amanhã e de mandar notícias pra Mari, que já deve estar louca da vida achando que meu avião caiu ou foi seqüestrado por terroristas muçulmanos!

04 de junho (sábado) Quarto de hóspedes

10:30­ Sabe aquela sensação de confusão seguida por um pouco de pânico que te domina quando você abre os olhos pela manhã e não reconhece nada que está em volta de você?

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Foi isso que eu senti ao acordar agora pouco, no quarto de hóspedes da casa de tia Vivian. Estava todo mundo na cozinha já tomando café, então graças a Deus ninguém viu minha cara de assustada quando eu pulei da cama ainda tentando me situar. Na verdade, todos já estavam arrumados esperando apenas que eu acordasse (dormi feito uma pedra!) pra irmos ao shopping. Até mesmo tia Vivian vai com a gente. Ela disse que deixou a loja sob a supervisão de uma empregada de confiança dela e vai dedicar esse dia exclusivamente a nos “pajear” (fala sério, só gente velha usa essa palavra!) Não consegui comer nada no café da manhã mesmo minha mãe tendo insistido muito. É que amanheci meio enjoada e ainda estou ouvindo um zumbido estranho no ouvido, talvez por causa da pressão da aeronave. Sei lá... Só sinto que incomoda bastante! Ah, a Ana passou em frente à porta do quarto agora a pouco e me viu escrevendo. É claro que ela não se agüentou de curiosidade e perguntou o que é que eu estava fazendo já de manhã com um caderno nas mãos. Se eu era nerd ou coisa parecida. Respondi que na verdade isto aqui era um diário e aí ela ficou toda: “Nossa, que coisa mais antiga! Por que você não cria um blog? É muito mais cool! Aí eu falei que preferia mais a “coisa” do papel e caneta e então ela disse: “Ah, tá. Você é meio Old Style. Mas até que isso tem lá seu charme, né?”e então saiu. Cara, esse negócio da Ana misturar as línguas me deixa confusa. E o pior é que eu aposto que ela não faz isso pra se exibir.

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De qualquer maneira, estou indo me arrumar agora (botar alguma roupa da Alice, já que minhas malas ainda estão perdidas) antes que minha mãe grite comigo pela terceira vez dizendo que eu sou muito “mole”. Pelo visto está todo mundo só me esperando mesmo pra sair... [em off] Acho que vou ter que encontrar um lugar mais sossegado e com blindagem anti­bisbilhoteiros pra escrever minhas coisas nesse diário. Mas onde? Hummm... Pensa... Pensa... Ei, esse closet que tem aqui no quarto de hóspedes é bem grande, hein?! E tem até lâmpada! Definitivamente é uma possibilidade a se analisar.

04 de junho (sábado) Provador da loja de fábrica da Nike

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14:10 ­Apesar de estar aqui dentro eu não estou experimentando roupa alguma. Só queria um momento sozinha pra chorar em paz e contar sobre esse dia tenebroso que estou tendo, então eu peguei a primeira blusa que vi pela frente, e me enfiei nesse provador. Depois de tudo que aconteceu seria melhor que o chão se abrisse e eu fosse engolida por ele. Como isso não é possível acho que vou ficar nesse lugar pra sempre! Quero dizer, hoje é meu primeiro dia de verdade em Orlando e, ainda que eu mal tenha chegado de viagem, já quero ir embora. E não é pra menos! Mas vamos começar a contar as tragédias, ou melhor dizendo, a história do começo... Minha família veio pra cá pro Prime Outlet, pra gente fazer umas comprinhas. Segundo tia Vivian esse é uma das melhores Outlets de Orlando, pois dá pra encontrar coisas bem em conta nela. Em outras palavras, é o paraíso suburbano dos brasileiros! Alice, Ana e eu viemos no carro do Vini enquanto mamãe e Dani pegaram carona com tia Vivian. Tudo seguia normalmente até aquele momento e, depois de uns quinze minutos nós chegamos ao shopping, um lugar muito bonito por sinal porque, ao contrário dos que eu estava acostumada no Brasil, uma boa parte dos daqui é ao ar livre. Ou seja, não é aquele monte de concreto cheio de andares, no qual você entra e perde a noção se é noite ou dia. Como eu precisava comprar blusas de verão, tia Vivian me levou em algumas lojas e foi aí que aconteceram as primeiras gafes internacionais...

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Aqui todas as portas têm um pequeno letreiro na saída indicando se é pra puxá­las ou empurrá­las. E eu, com o meu inglês “The­books­is­on­the­table” simplesmente não lembrei que “push” é na verdade “empurre” em português! Então, quando eu estava saindo da loja da Levi’s com a minha tia, fui abrir a porta pra nós duas, mas fiz isso com tanta vontade, com tanta empolgação (afinal, era pra push­ar, ora!) que nem reparei o estado imóvel da porta e daí... POF! Dei de cara no vidro! O choque fez um barulho enorme e sacudiu tanto a porta, que as dezenas de pessoas dentro da loja pararam o que faziam só pra ver o que tinha acontecido, sem falar que um bando de turistas brasileiros desalmados (que eu estou rezando pra que comam algum Big Mac estragado e tenham dor de barriga por quinze dias) ficaram rindo à beça da minha cara. Oh, e a minha prima que estava fora da loja brincando de fotógrafa com o novo celular dela – e que de agora em diante vou chamá­la de Ana­sacana­ ainda tirou uma foto minha exatamente no momento do choque com o vidro, pois ela achou que seria muito mais engraçado ver a prima se esborrachando (e podendo até perder um dente no meio do processo) do que avisá­la sobre a porta. Maravilha, hein! Afinal, quem precisa de um canino, certo Ana? E agora, lá estava eu, imortalizada no celular dela, com a cara prensada no vidro da porta e o nariz esmagado parecendo um dos três porquinhos! Adoro minha família...

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Mas se acha que a “sessão embaraço” para por aí, esqueça! Pois foi só a gente ir à outra loja, pra eu começar a pagar mais um mico. Só que esse não teve haver com portas de vidro assassinas nem nada disso. O problema mesmo foi a minha total e completa falta de conhecimento da cultura econômica americana (leia­se, ignorância!). Dessa vez eu estava na fila do caixa de uma outra loja, a Gap, pronta pra pagar pelas roupas que eu tinha experimentado, quando a Ana decidiu levar alguma coisa pra ela também e simplesmente me deixou sozinha na fila. De cara eu não me preocupei. Até porque eu tinha dinheiro suficiente comigo e, mesmo que eu não conseguisse entender o que a operadora de caixa me dissesse, eu sabia muito bem quanto àquelas roupas iam custar, pois eu tinha feito a conta nos dedos de cabeça. Então, não ia ter problema algum. Rá! Vai sonhando que tudo terminou fácil assim... Na minha vez de pagar, a operadora de caixa passou todas as roupas pelo leitor de código de barras, olhou pra tela do computador e disse: “95,00 dóllars, Miss”. Eu imediatamente fiquei revoltada. Afinal, aquelas roupas iam dar no máximo oitenta e sete dólares! Como é que de repente elas tinham aumentado tanto assim? Inflação galopante? “Não, isso não pode estar certo!” pensei comigo mesma, e no ápice do momento “cadê­meus­direitos­de­consumidor­ chame­o­PROCON!” comecei a “rodar a baiana” – apesar de ser gaúcha. Disse pra caixa que eu não era uma turista idiota, que ela estava se aproveitando do fato de eu não falar inglês pra superfaturar o preço das roupas, que ela não tinha

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vergonha na cara... E enquanto isso, atrás de mim, uma fila enoooorme de pessoas impacientes ia ficando cada vez maior. Pra encurtar a história, a confusão toda só terminou mesmo quando a Ana apareceu e, após tentar entender o motivo do tumulto, me disse pra eu deixar de ser tonta, pois nos Estados Unidos o imposto das coisas não vinha embutido no preço do produto, como é feito no Brasil, e sim que o valor dele só era adicionado na hora em que se fazia o pagamento no caixa. Uhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh! Que vergonha, meu Deus! Tá Vendo? Nessas horas é que eu queria ter entrado numa academia de ninjas ao invés de ter frequentado aquelas aulas estúpidas de balé! Pelo menos com as habilidades ninjas eu poderia escapar do climão pós­mico me camuflando na parede ou coisa assim... Mas acredite esse ainda não foi o pior vexame. Oh, não. Prepare­se, pois o King Kong dos micos vem agora! Depois de Ana e eu sairmos da Gap (eu ainda não sabendo onde enfiar minha cara, mesmo tendo pedido zilhões de desculpas à atendente e as pessoas da fila), nós fomos até a praça de alimentação onde o resto de nossa família estava começando a lanchar. A Ana sugeriu que a gente comesse no Subway (que é uma lanchonete especializada em sanduíches) e eu aceitei já que, segundo minha prima, os atendentes perguntam o que você quer que coloque no seu lanche, enquanto vão apontando pros ingredientes. Ou seja, dificuldade zero pra mim, né? É... certo...

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Na hora a atendente do Subway foi super simpática comigo e começou a colocar as coisas no meu sanduíche. Queijo, tomate, pepino, azeitona, picles, alface... até que apontou pra um pote cheio de coisinhas meio amareladas cortadas em rodelas e perguntou: “jalapenó?”. Eu não fazia idéia do que era essa coisa, mas como aquilo me lembrava pimentão amarelo, eu não liguei e acabei deixando que a atendente colocasse o tal do “jalapenó” no sanduíche. Depois, já de volta à mesa onde minha família estava, eu dei várias mordidas seguidas no meu lanche (é, eu tenho Magali feelings, aquela da revistinha mesmo, às vezes) e de repente comecei a sentir minha boca arder. E então ela ardeu mais, e mais, e absurdamente mais, e os meus olhos se encheram de água na mesma hora, e eu não sabia direito o que fazer pra parar aquela queimação horrorosa na língua, até que comecei a tossir, tossir, tossir... E fiquei nesse desespero durante uns cinco minutos, sentindo meu estômago revirar e arder como se o próprio fogo do inferno estivesse dentro dele. Aí foi a deixa perfeita pra minha família perturbada entrar em ação. A Ana sugeriu que eu tomasse refrigerante, minha mãe ­achando que eu tinha engasgado­ deu uns tapas estilo “ranca­ pulmão” nas minhas costas, tia Vivian começou a orar alto por mim segurando minha garganta, a Alice disse pra eu tentar ficar acordada e não ir em direção à luz, caso desmaiasse, enquanto que o Vini tentava fazer a manobra de Heimilich comigo ainda sentada, me dando cada tranco no estômago que

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eu chegava a pular na cadeira. Foi simplesmente O CAOS, e é claro que nada daquilo adiantou. Só voltei ao normal mesmo quando... bem... Quando o Vini fez uma pressão um pouco mais forte no meu diafragma eu coloquei tudo, tudinho pra fora, inclusive o “jalapenó”. Que, de acordo com o que a Ana me disse mais tarde, era um tipo de pimenta das brabas. É, isso aí mesmo. PI­MEN­TA! Agora imagina só a cena tragicômica: eu, vermelha igual a um tomate, com os olhos inundados de água, cercada pelos malucos da minha família, sendo agarrada por trás pelo meu primo e despejando no chão limpinho da praça de alimentação parte do lanche que eu havia comido ­graças a Deus ainda não estava usando meu aparelho­ enquanto várias pessoas nas mesas ao nosso redor assistiam enojadas ao desenrolar (vergonhoso) da situação. Após mais esse mico me arrependi de novo de não possuir as tais habilidades ninjas. Seria tão útil nesse momento... Tudo o que eu precisaria fazer era só gritar “Raiáááá”, jogar uma bomba de pó no chão e depois desaparecer na fumaça branca. Pronto! Sem vexame, sem drama, sem pessoas me encarando com cara de nojo! Mas nããããão, a Babi vai fazer aulas de balé por que é bonitinho... É. Tá aí o resultado! Eu mortalmente envergonhada, com uma baita vontade de chorar e tendo que agüentar todo mundo olhando pra mim com cara de repulsa. Ótimo primeiro dia nos Estados Unidos, hein? U­hu! (sarcasmo pesado)

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E depois disso tudo, minha família veio pra cá, a loja de fábrica da Nike, e eu tratei de sumir da vista de qualquer pessoa que pudesse ter estado na praça de alimentação e apreciado meu momento “chafariz humano”. Nojento, eu sei, por isso nunca mais vou sair desse provador. Estou até cogitando a possibilidade de viver aqui, igual ao personagem do Tom Hanks, naquele filme “O terminal”, em que o cara ficou morando no aeroporto de Nova York durante anos e se escondendo do chefe da imigração que queria chutá­lo de lá. O único problema é que eu não tenho habilidade alguma com construção civil, logo não sei construir paredes e muitos menos chafarizes, caso eu precise de dinheiro pra me alimentar ou fazer alguma surpresa romântica pra alguém. Pelo menos tenho alguns dólares no bolso da calça e um pacote de jujubas que o Dani não quis. Já deve dar pra alguma coisa...

16:44­ Ok. Eu parei de chorar e saí do provador... Mas estou superarrependida de ter feito isso! De ter saído do provador, quero dizer ­ chorar já está meio que virando costume. No fundo do meu coração eu ainda tinha esperanças de que o dia fosse melhorar um pouco depois de todos aqueles vexames, mas acabou que ele está terrivelmente arruinado agora. E mais uma vez por minha culpa... Se bem que a Alice também ajudou um pouco com a fissura dela pela marca Victoria’s Secret. Por que todos nós estávamos muito bem na loja da Nike, até ela ver uma placa do

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shopping dizendo que ali também tinha uma loja da tal Victoria’s e arrastar a família pra lá. Inclusive eu, que mal fazia idéia do outro fiasco que me esperava perto dali... “Deus abençoe a América!” foi o que minha irmã disse assim que entrou na loja da VS e se deparou com a infinidade de cremes e desodorantes corporais espalhados pelas gôndolas com cartazes escrito “75% de desconto” em cima. Depois disso as mulheres de minha família, que foram contaminadas pela euforia da Alice, se dispersaram pela loja. Vini e Dani eram os únicos que não pareciam muito à vontade lá. Se bem que o meu irmão se acostumou logo, já que ele colocou uma calcinha por cima do jeans dele, um sutiã vermelho na cabeça, amarrou um pano nas costas feito uma capa e ficou correndo à toda pela loja gritando “Eu sou o Capitão Calcinha!” Enquanto isso o Vini ficou olhando para três telões pendurados na parede da loja que passavam comerciais da Victoria’s Secret com belas mulheres de roupa íntima. “Não baba não ô ‘cabeça de cogumelo’, elas são muito areia pro seu caminhãozinho.”, a Ana disse pra ele enquanto carregava uma bolsa da loja já abarrotada de cremes e outros produtos. “Não preciso babar. Eu ainda vou namorar uma modelo da Victoria’s Secret.”, o Vini falou de brincadeira. A Ana então disse debochada pra ele “ir sonhando” e foi para outra parte da loja ver os sutiãs “levanta peito” que estavam em promoção. Se eu tivesse alguma coisa no lugar do busto eu compraria algum também, mas como sou

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desprovida de seios, me mandei para a seção de cremes, onde pelo menos não teria a auto­estima arrasada. Vini e eu ficamos circulando por aquela parte da loja, experimentando todos os tipos de hidratantes e essências que eles tinham pra vender, até que minha asma começou a atacar já que perfume, assim como mofo e poeira, são minhas kriptonitas. O Vini então achou melhor que a gente saísse da loja e ele, o Dani e eu resolvermos descansar um pouco na borda de uma fonte que ficava bem em frente à loja da Guess, pois estávamos muito cansados de tanto andar no shopping. Como fazia um baita calor, o Vini resolveu ir comprar sorvete pra nós três me deixando sozinha com o endiabrado do meu irmão. E foi aí que eu tive uma surpresa inacreditável... Enquanto o Dani enfiava a mão na água pra tentar roubar as moedinhas que as pessoas tinham jogado na fonte (não estou falando que essa criança é do mal?) e eu tentava normalizar a minha respiração, uma garotinha loira começou a chorar bem perto de mim. Ela devia ter uns quatro anos mais ou menos e estava sentadinha na fonte, sem nenhum adulto por perto, segurando uma boneca Minnie vestida de princesa. Parecia tão perdida, tão assustada que eu, mesmo com meu inglês terrível, achei que deveria tentar fazer alguma coisa pra ajudar. Perguntei toda gentil, com aquela voz de tia de creche, qual era o nome dela e sequei o seu rostinho lavado de lágrimas, mas a garota só balbuciou alguma coisa como “mmmbbbrother” e caiu no choro de novo. Eu ­ graças ao meu

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coração­mole ­ fiquei morrendo de dó da pobrezinha, mas sinceramente ainda não tinha idéia do que fazer com ela. Nisso alguém gritou: “Mandy!” e a menina deu um pulo da fonte e saiu correndo. Eu olhei pra trás instantaneamente, mas quando vi a pessoa que havia se agachado pra receber o abraço da garotinha, achei que eu estivesse tendo uma visão ou coisa assim. Por que era simplesmente o garoto do Ray­Ban! Quero dizer, o Théo, que eu tinha conhecido no avião. Dá pra acreditar?! Bom, no início nem eu acreditei, pra ser sincera. Só quando ele se aproximou de mim e tirou o Ray­Ban do rosto parecendo tão surpreso quanto eu, foi que eu percebi que era ele de fato. “Babi?! Esse mundo é mesmo muito pequeno!” o Théo disse sorrindo, enquanto segurava a menininha na mão esquerda e carregava um bando de sacolas da Victoria’s Secret na outra. Eu continuei sem reação ao que ele perguntou se eu tinha ido fazer compras. Respondi que sim e perguntei o mesmo e então ele respondeu brincando que: “As mulheres é que fazem compras, os homens só seguram as sacolas!” e depois me apresentou a garotinha. “Essa fujona aqui, que me deixou morrendo de preocupação, é minha irmãzinha americana, a Amanda. Só que eu só a chamo de Mandy. And this girl, Mandy...” ele disse apontando pra mim enquanto falava em inglês com a irmã “... is Bárbara. A friend of mine.” A garotinha, que mais parecia uma boneca, me cumprimentou com um “Hi” muito fofo e ficou me olhando durante um bom tempo, até que começou a puxar a camisa do

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irmão pra chamar a atenção dele, ao que o Théo se abaixou na mesma hora pra ver o que ela queria. “She’s beautiful”, ela disse bem baixinho. Théo olhou pra mim, deu um risinho e depois sussurrou no ouvido dela “I Know”. Tudo bem, eu posso ser uma negação em inglês, porém entendi o que eles disseram e, é claro, não concordei nem um pouco. Afinal, eu não sou bonita e tenho consciência disso. Quem aqueles dois queriam enganar? Ou será que eles tinham o dom de enxergar a beleza interior das pessoas, igual no filme “O amor é cego”? Aquele em que o Jack Black se apaixona pela Gwen... Gnyw... Gnwyet... Ah, aquela loira de nome difícil e mulher do vocalista do Coldplay! Enfim... Nesse meio tempo o Dani apareceu com as mãos cheias de moedinhas da fonte, mas despejou tudo no chão quando viu o Théo e ficou enchendo a paciência dele com a história do parque da tal baleia Orca. Meu irmão só parou de azucrinar o Théo quando eu apresentei a Mandy a ele, e mandei os dois brincarem de pique­pega em volta da fonte. E então eu e o Théo ficamos conversando ali, e ele me perguntou se eu já sabia o meu endereço em Orlando. Eu disse cheia de vergonha que era “Pineapple” alguma coisa, porque pra ser sincera eu só lembrava disso mesmo e olhe lá. “Road?” O Théo chutou “Pineapple Road?” Eu fiz com a cabeça que não.

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“Pineapple Drive? Pineapple Boulevard? Pinapple Street? Pineapple Trail?” o Théo insistiu, mas eu fui sacudindo a cabeça, até que ele se convenceu de que aquilo era inútil. “Bom, pelo menos você sabe como me achar.” ele disse, e eu fiquei pensando se deveria contar que o meu suor tinha apagado o número dele da minha mão. Sei lá, o Théo poderia pensar que aquilo era só uma forma educada de demonstrar que eu não queria papo com ele. Por que, vamos ser sinceros, se não tivesse acontecido comigo eu acharia uma desculpa muito esfarrapada o lance do suor. Se bem que, por outro lado, se eu não dissesse ao Théo sobre o que aconteceu com número dele, eu provavelmente não o veria nunca mais. Pois olhando o tamanho dessa cidade (eu vi um mapa de Orlando na casa de tia Vivian antes de vir pra cá) foi a maior sorte da gente ter se encontrado nesse shopping. Mas antes mesmo que eu pudesse me decidir entre contar ou não, o Théo puxou o Ipod dele e me perguntou se eu gostava de Coldplay. Eu disse que adorava e então ele me mostrou uma música nova deles, que tinha sido lançada ha pouco mais de três dias. Não gravei o nome dela, mas depois de escutar achei muito boa. Era uma baladinha gostosa de se ouvir, meio romântica... Depois que a música acabou, o Ipod dele começou a tocar outra que tinha um ritmo bem agitado, do tipo dessas músicas eletrônicas sem vocal nem letra, sabe? Mas era impossível de se ficar parado ouvindo ela. Eu perguntei ao Théo de quem era aquela música “Flying High”, mas ele simplesmente surtou quando eu disse isso e me pediu o Ipod de volta ficando vermelho que nem um pimentão.

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Eu não devolvi e perguntei por que ele estava tão sem graça e o Théo me contou que na verdade ele é que tinha feito aquela música. “Ah, eu estava meio sem nada pra fazer no Rio, então baixei na internet um programinha de edição, juntei uma batida aqui, outra ali... e deu nisso. Ficou uma droga, não é?” ele perguntou todo inseguro. Eu disse que não, que a música tinha ficado muito boa (o que era totalmente verdade) e que queria escutar mais, só que o Théo não acreditou e tentou pegar o Ipod da minha mão. Eu não deixei, e a gente começou uma verdadeira briguinha ridícula parecendo duas crianças bobas. Ele tentando pegar o Ipod de mim e eu tentando evitar que ele fizesse isso. No final nós dois já estávamos meio que rindo, como se estivéssemos brincando, quando o Théo finalmente conseguiu pegar o IPod. Eu revidei dando um tapinha na mão dele. Ok, tudo bem, foi um tapão descontrolado! O que fez o Ipod do Théo voar e cair advinha onde? Advinha? Exato! Na droga da fonte! Na hora o Théo não fez nada e nem eu. Ficamos parados, olhando o Ipod afundar na água fazendo “glub,glub,glub”, até chegar ao fundo da fonte. Depois disso, quando se recuperou do susto, o Théo correu pra tirar ele da água, mas o Ipod não estava funcionando. Nem mesmo ligar ele ligou, pra falar a verdade. E sério, tinha que ver a cara de desolação do garoto olhando pro Ipod encharcado. Deu pena. “Me... me desculpa. Juro que não fiz por querer. Olha, eu pago o concerto!”, eu disse completamente arrependida pela burrada que havia feito.

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“Acho que não tem jeito. A água vai oxidar o sistema.”, ele disse balançando a cabeça arrasado. “Bem, então eu compro outro pra você.” “Bárbara, eu não fiz backup nem de metade das coisas que eu tenho armazenado nesse Ipod.” Shiiiiiii. Quando alguém me chama de Bárbara, ao invés de só Babi, é porque está na hora de dar no pé pela saída de emergência... “Olha, esquece está bem? Não se preocupe com isso. É sério. Não se preocupe.”, o Théo disse meio que para encerrar o assunto. Eu ainda insisti que poderia pedir pra minha mãe pagar um novo, mas o Théo continuou falando pra eu esquecer aquilo. De repente o telefone dele começou a tocar e ele atendeu. A pessoa do outro lado da linha era uma garota, pelo que eu pude ouvir, e o Théo pediu licença e se afastou pra falar com ela. Talvez por que o Dani e a Mandy estavam fazendo muito barulho com a brincadeira do pique­pega, ou talvez porque ele não queria que eu ouvisse a conversa. Vai saber... Minutos depois o Théo voltou e chamou a Mandy dizendo: “Ok, princess. Time to go! Megan is waiting for us.” E ao se virar pra mim disse que precisava ir naquela hora, mas que tinha sido legal me encontrar (Não tenho dúvidas de que ele só falou isso por educação). Eu pedi desculpas mai uma vez pelo Ipod afogado ­até porque eu estava com a consciência suuuuuuuperpesada­ mas o Théo disse pra eu esquecer mesmo aquilo, me deu um beijinho no rosto e falou pro Dani que eles iam se ver logo­logo pra ir ao parque da tal baleia grande. E por fim foi embora, de

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mãos dadas com a Mandy e carregando um monte de sacolas da Victoria’s Secret. O Théo não parecia mesmo estar irritado, longe disso, só que eu tenho certeza de que ele me odeia agora. Tudo bem, ele não disse nada na minha cara, mas eu sei que a frase “Morra Babi, morra!” deve estar passando na cabeça dele neste exato momento, porque o que fiz foi terrível mesmo. Eu não passo de uma completa e total idiota! Essa é que a verdade! Será que o lápis que eu enfiei no nariz quando era criança atingiu meu cérebro e causou algum dano permanente? Por que ninguém com a capacidade cerebral intacta faria tanta besteira como eu fiz hoje! Não mesmo! Bom, pelo menos o Théo deve estar sendo consolado pela namorada dele agora. Digo, ele não falou que tinha uma, mas é só juntar as coisas. Afinal, que homem estaria carregando bolsas da Victória’s Secret se não fosse uma gentileza pra namorada? (como membro da nação feminina me recuso a acreditar que tal belo espécime tivesse comprado calcinhas e cremes pra uso próprio!) E a tal ligação que ele recebeu? Era uma voz de garota do outro lado da linha, aposto minha vida nisso! Então acho que o resultado dessa equação é mais do que óbvio, não é? Sacolas da Victoria’s Secret + voz sensual de garota do outro lado da linha + pressa em ir embora = namorada nervosa chamada Megan esperando!

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De qualquer jeito, com namorada ou não, eu ainda me sinto culpada pelo que fiz. E o meu dia ainda nem terminou apesar de todos os fiascos pelos quais já passei hoje. Argh. Ai, ai. Como eu queria estar no Brasil agora, onde as pessoas entendem o que eu digo e, o máximo de prejuízo material que eu causava aos outros, era vez ou outra, uma vidraça quebrada do nosso vizinho, o Seu Antônio, quando eu ia jogar futebol com o Dani no quintal dos fundos...

16:57­ Só agora que reparei. Esqueci de pegar o número do Théo! Mas também, do que adiantaria? Depois do acidente com o Ipod ele não vai querer me ver nunca mais mesmo...

05 de Junho (domingo) quarto de hóspedes 11:49­ Por um tempo eu fiquei meio que com vergonha de pedir o notebook Vaio da Ana emprestado, mas acabei criando coragem pela Mari. Eu tinha que dar algum sinal de vida e dizer que tinha chegado bem em Orlando, se não ela com certeza iria colocar a polícia, o exército, a aeronáutica e todo o resto das forças armadas atrás de mim!

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Minha prima, apesar da gracinha de ter tirado aquela foto do meu mico no shopping, me emprestou o computador dela sem reclamar, disse que eu podia usar sempre quando eu quisesse, e ainda me garantiu que tinha apagado do telefone a tal foto comprometedora. Por que será que ela está sendo tão boazinha comigo, hein? Quando eu abri a minha página pessoal no site de recados que mais uso, vi que a Mari já tinha me deixado quase umas quinhentas mensagens! Essas são só algumas delas... Mari: Amiga, como foi o vôo? Já chegou aí? Dã. Que pergunta idiota a minha... A essa hora você ainda deve estar nos ares, né? Espero que vc tenha uma boa viagem. Ah, e não vomita no avião não, tá? Eu sei q vc morre de medo de qualquer coisa que fique á mais de 2 metros do chão, mas tenho certeza que vai correr tudo bem. Minha mãe está mandando um beijo enorme pra ti. Não se esquece dos meus creminhos da Victoria’s Secret! Bjim! Há 2 dias * Curtir * Comentar * 2 pessoas curtiram isto Camilinha: Hu-hu. Não se esquece do meu VS também! ; ) Luísa: Nuuuussa! Babi, está internacional agora! E não é do time de futebol que eu estou falando! QUE INVEJA DE VC!

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Mari: Hello, dona Bárbara! Seu avião pousou há um tempão que eu sei! Então não tem desculpa pra vc ainda não ter me mandado email nem nada. Como é a terra do Mickey? Bonita mesmo como o povo fala? Já esbarrou com o Nick ou o Brian dos Backstreet Boys por aí? E a sua prima Ana? Continua aquela chata que você me contava ou ela melhorou? E vc? Conheceu algum gatinho loiro americano? Aposto que já foi superpaquerada e não percebeu! Tu é meio distraída quando o assunto são meninos... Não se esquece de me escrever hein! : ) Há 1 dia* Curtir * Comentar 1 pessoa curtiu isto Douglas: As garotas daí dos “States” são mais bonitas que as daqui ????? Preciso saber! Saudade guria! Mari: Miga, minha mãe disse que vai fazer a torta alemã que você adora (aquela com crocante) pro almoço de domingo. Pena que você não está aqui pra devorar ela comigo! Mande notícias Babizita! Quero saber todas as novidades!Hj já é sábado e vc nem “tchum” pra mim! Aposto que conheceu um príncipe aí na terra dos contos de fada e já fugiu com ele pro Castelo da Cinderela! HAHAHAHA! Tá, agora é sério! Vou chorar de saudade. :*************************** Há 21 horas * Curtir * Comentar

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Cecília: Não se esquece dos pobres aqui não, hein. Babi sortuda! rs Mari: Babiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii. Kd vc mulher????????? Está se divertindo na Disney e já se esqueceu de mim, foi? Entra em contanto, manda email, sinal de fumaça, código Morse, qualquer coisa! Quero saber de vc. Não se esquece de me dar o telefone da casa da sua tia pra eu te ligar. Agora vou me despedindo do jeito americano: Kisses e mais Kisses. Miss You! Hahaha que inglês fail o meu... Há 15 horas* Curtir * Comentar Depois de ler todos os emails e recados de desespero da Mari, escrevi respondendo tudo que ela tinha me perguntado e até falei algumas coisas sobre Orlando. Nada muito longo, pois eu ainda estou tentando compreender essa cidade, mas o suficiente pra Mari e o resto dos meus amigos pararem de ficar me perguntando o tempo todo sobre isso aqui. O micasso no shopping envolvendo o Théo e tudo mais eu nem mencionei. Sei que a Mari teria uma palavra amiga pra me dizer, porque ela sempre tem (não é a toa que chamam ela de “Mari Thereza de Calcutá”), mas não quero falar sobre isso tão cedo. Na verdade eu queria era fingir que tudo isso não aconteceu. Não, melhor! Eu queria apagar da minha memória, igual ao Jim Carrey naquele filme “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, mas como não posso, fico só tentando evitar que aquelas cenas vergonhosas voltem a minha mente.

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13:40­ Até que enfim, uma boa notícia no meio desse pesadelo chamado Estados Unidos. A American Airlines achou minhas malas e as entregou agora a pouco, aqui na casa de tia Vivian. Ebaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa! Dei uma olhada rápida dentro delas e vi que não sumiu nadinha. Estava tudo intacto, desde meu MP3, aos DVDs infantis do Dani (que por sinal não sei por que estavam na minha mala, mas tenho certeza que isso foi obra da minha mãe!) até minha coleção de canetas em gel coloridas. Agora esse diário vai parecer um verdadeiro arco­íris com tantas cores! Pelo menos isso deve melhorar um pouco meu humor, já que eu ainda estou morrendo de vergonha pelos micos que paguei ontem e, principalmente, por ter afogado o Ipod do Théo. Oh, e por falar no Théo, só agora, lendo os outros registros do meu diário, eu fui reparar que tinha o endereço da rua de tia Vivian escrito aqui, bem no dia 5 de junho. É, o endereço estava nessa droga de diário o tempo todo e eu, como uma idiota, nem me dei conta disso! Só posso ter tido falta de oxigenação no cérebro quando nasci... Bom, por via das dúvidas, é melhor escrever o endereço certinho aqui. Vai que eu encontro o Théo e ele não está mais bravo comigo? Se bem que a probabilidade da gente se encontrar de novo é mínima (e ele não estar bravo comigo quase nula). Mas sonhar não custa nada...

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Quero dizer, eu estou fazendo isso pelo Dani que quer muito ver a tal baleia, tá? Só isso! Pineapple Court, 502 Orlando 32835 Tel: 407 9823933

22:17­ Sabe o que eu acho mais estranho nesse lugar? Você não ouve o barulho dos vizinhos. Melhor dizendo, você nem mesmo vê os vizinhos. Simplesmente parece que eles não existem! Ficam o tempo todo trancados dentro de casa e quando vão ao quintal dos fundos pra fazer um churrascão de domingo (como hoje) são tão discretos que você nem percebe que eles estão lá. Inclusive as crianças! Eu achei isso meio louco, afinal, lá em Estrela todo mundo da minha rua se conhecia. E quando as noites ficavam muito quentes no verão, as pessoas iam pra pracinha que tinha perto de casa e ficavam lá conversando até tarde. Mas aqui pelo visto não é assim. Todo mundo parece ser muito reservado e o povo se preocupa mesmo com a privacidade. Pra você ter uma idéia do quanto esses americanos são discretos, tia Vivian me contou que ainda não conhece os vizinhos de lado dela, sendo que ela mora nessa casa há três anos! Isso mesmo! TRÊS ANOS! Povinho estranho esse daqui... Oh, e quase ia me esquecendo. Mais cedo, depois do almoço, escapei de um acidente doméstico por um triz! Se não

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fosse o meu primo Vini, eu estaria igual ao capitão gancho agora, sem a mão! A única diferença é que a dele foi comida por um crocodilo enquanto que a minha teria sido arrancada por um réles triturador de lixo! Veja bem, eu não estava nem um pouco acostumada com essas “tecnologias” americanas e no Brasil a cozinha da gente não tinha isso. Então quando eu fui jogar o resto do almoço no triturador e uma colher caiu dentro dele travando a coisa toda, eu não vi perigo algum em tirar ela de lá com a mão. Por isso fui enfiando toda inocente os meus dedinhos no triturador pra tentar puxar a colher e, se não fosse meu primo Vini gritando “BABI, NÃO FAZ ISSO PELO AMOR DE DEUS!”, eu provavelmente estaria agora escrevendo nesse diário segurando a caneta com a boca. Ou, segundo a Ana, pedindo emprego na Disney pra participar da atração “Piratas do Caribe” ao lado do Jack Sparrow! É, ia ser uma graça mesmo eu com um tapa­olho e papagaio verde no ombro dizendo com aquela voz rouca: “Aye, aye, capitão!Vamos fazê­los andar na prancha!” Estou imensamente agradecida pelo o que o Vini fez. Devo minha vida a ele! Até mesmo disse pro meu primo que ele era o meu herói, mas o Vini ficou instantaneamente vermelho nas orelhas (indicativo de que ele está com vergonha ou então muita raiva) e pediu pra que eu parasse com isso, pois só tinha feito o que era certo. Depois se trancou no quarto dele pra ficar jogando Silent Hill no Playstation, e só saiu de lá agora a pouco, pra detonar um pacote de Cheetos tamanho família e o resto da pizza do Domino’s que a gente comeu ontem no jantar

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. Mas nem falou comigo na cozinha. O que é bem normal, já que ele sempre foi de poucas palavras mesmo... A Ana deu uma passada agorinha no meu quarto, antes de ir na casa da melhor amiga dela, e disse que amanhã o Vini vai levar a gente pra conhecer a loja de tia Vivian e de quebra a Olympia High, minha nova escola, pois é tudo pertinho daqui. Falando sério agora, eu não sei se estou preparada pra isso. Quero dizer, tudo bem, não vai haver nenhum aluno lá nem nada, pois a escola está em recesso devido às férias, mas a questão é que eu fico nervosa só de imaginar que daqui a três meses eu vou estar em uma sala de aula americana. Ain gente, eu não sei inglês direito! Como é que eu vou fazer amigos? Como é que eu vou entender os professores? Como é que eu vou fazer PROVAS em outra língua?! E mais, será que os meus novos colegas vão implicar comigo do mesmo jeito que faziam os da minha antiga escola no Brasil? Eu não sei e pra ser sincera estou com muito medo mesmo de descobrir. Bem, mas de qualquer jeito acho melhor apagar a luz do abajur e tentar dormir agora. O Dani já se remexeu umas dez vezes na cama da mamãe, por causa da claridade, e eu não quero acordar o moleque. Além disso, eu tenho que estar bem disposta pra encarar a visita a minha nova escola amanhã. Então já vou indo. Mas antes, acho melhor enfiar uma de minhas meias na boca da Alice pra ver se ela para de roncar ao meu lado igual a cria de uma porca com uma brincadeira. Vou te dizer, minha irmã pode até pode ser bonita, mas ô guria barulhenta dormindo!

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06 de junho (segunda­feira) estacionamento da loja da tia Vivian

12:10­ Eu devia ter previsto que esse dia não iria ser bom. Quero dizer, eu já havia tido meio que uma amostra do quanto horroroso ele ia ser quando minha mãe acordou às cinco da manhã gritando “Socorro! Estou tendo uma hemorragia cerebral. Estou tendo uma hemorragia cerebral!”. Tia Vivian conseguiu acalmá­la explicando que aquilo era apenas um sangramento em um vasinho no nariz, e que tinha ocorrido graças a diferença do nível de umidade de Orlando em relação a do Brasil, mas inevitavelmente o dia já havia começado ruim e o que aconteceria mais tarde só veio me mostrar que tudo sempre pode piorar. Depois de todo mundo ter tomado café, Vini pegou o carro dele pra nos levar a Olympia High. Durante o caminho até a escola, eu confesso que ainda observava tudo com um “olhar” de novidade, mas pra ser bem sincera, de medo também. Pela janela do Honda Civic do Vinícius eu assistia Orlando passar devagarzinho (carros de marcas que eu não conhecia, pessoas com roupas super diferentes, plantas de espécies que eu nunca tinha visto antes) e me sentia brutalmente estranha àquilo tudo. Era como se eu fosse a única coisa fora do lugar naquela cidade perfeita, como se ela olhasse pra mim de volta

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e ficasse gritando: Você não faz parte daqui, garota! Vá embora! Volte para o Brasil que é o seu lugar! Acho que eu nunca senti uma sensação tão estranha assim na vida... Antes de entrar na Olympia High, é verdade que fiquei com um pouco de medo de encarar a escola, mas quando chegamos lá de qualquer maneira não podemos ficar muito tempo porque, como ela estava em recesso devido ás férias de verão, havia poucos funcionários ali e nenhum gostou muito de nos ver zanzando pelas dependências da escola. Mesmo o Vini explicando que ele estudava lá e apenas queria apresentar o colégio a uma nova aluna. Além do estacionamento imenso na frente da Olympia High (que por sinal era imensa também), só vimos os campos onde acontece a educação física e algumas partes dentro da escola, menos é claro as salas de aula, biblioteca, refeitórios e afins porque os funcionários realmente ficaram desconfiados com o nosso pequeno bando e estavam prestes a chamar a polícia quando decidimos ir embora. Esse povo americano é muito desconfiado... Depois de quase sermos confundidos com delinquentes juvenis na Olympia High School, fomos até a loja de tia Vivian na Rua Hiawassee, distante apenas alguns quilômetros da nossa escola. A Tinturaria de Tia Vivian ficava em uma galeria de lojas com estacionamento na frente, aliás, tudo aqui em Orlando tem estacionamento. Oh, e quase não existem prédios nessa área, o que por um lado é bom, já que eu odeio muito concreto junto.

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Tia Vivian tinha uns seis empregados na loja e eles foram muito simpáticos quando fomos apresentados. A maioria do grupo era americana e mexicana, mas também tinha uma brasileira muito simpática, a Carla, que era de Feira de Santana na Bahia, e ainda não tinha perdido o sotaque, nem a mania de falar “Meu rei”. O Dani ficou esquadrinhando a loja estranhamente quieto, até que achou um taco de baseball e uma bola jogados em uma parte da tinturaria. A Carla disse que um cliente tinha esquecido aquelas coisas na loja e nunca apareceu pra pegar de volta. Vini então decidiu levar o Dani para trás da Tinturaria, onde havia também um mini estacionamento para carga e descarga, com a intenção de ensinar meu irmão um esporte verdadeiramente americano, pois a gente só estava acostumado com futebol e vôlei em nosso país. Vou lhe dizer, eu fiquei imensamente preocupada com o fato do Dani estar de posse de uma bola mega pesada de baseball porque, cá entre nós, aquilo viraria fácil uma arma letal nas mãos diabólicas daquela criança, mas não foi ele quem estragou tudo. Fui eu e mais uma vez! Isso porque depois que o Dani não conseguiu arremessar nenhuma bola forte o suficiente para o Vini rebater, meu primo teve a brilhante idéia de me chamar pra jogar. Eu confesso que na primeira vez que arremessei a bola não fiz com muita vontade e ela nem mesmo foi mais longe que a do Dani, mas então, tomada pela raiva da Alice ter rido de mim e dito que eu não tinha forças porque eu não passava de

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uma ogra fracote, eu simplesmente lancei a bola o mais forte que pude. Bem, você tem cinco segundos para adivinhar o que aconteceu... 1, 2, 3, 4, 5 pééééééé. Tempo esgotado! Eu vou te dizer então o que aconteceu: aquela maldita bola (que deve pesar no mínimo uns três quilos) foi direto, e com toda força, bem em cheio na lanterna traseira do carro do Vini. A cena foi realmente ridícula porque eu não sabia o que fazer. Lá estava eu de boca aberta, parecendo ter sido congelada enquanto o alarme do carro do Vini apitava feito louco fazendo pí­pí­pí­pí, já que eu o havia feito disparar no momento que estraçalhei a lanterna com a tal bola de baseball. O Vini fez uma cara de desolação, muito parecida com a do Théo que eu tinha visto no dia anterior, mas não brigou comigo nem nada (como o Théo também não tinha feito). É claro que eu pedi milhões de desculpas a ele, só que isso não ia trazer a lanterna de volta, então meu primo partiu na mesma hora para levar o carro no concerto. Segundo a Ana, aqui em Orlando a polícia não perdoa se você estiver com uma lanterninha quebrada e multa mesmo. Logo o Vini não poderia correr esse risco. Também era só o que faltava! Meu primo levar uma multa por minha causa! Na boa, eu queria entender como eu consigo ser tão desastrada! Porque vamos combinar, desde que cheguei em Orlando eu não tenho dado uma bola dentro (só em lanternas de carro, pelo visto!). Até a Ana, que se mostrou super legal comigo (com exceção daquele dia no shopping), disse que eu sou a rainha dos “clumsy moments” e, pra ser sincera, ela não

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está errada, vide os vexames no shopping, o acidente com o Ipod do Théo e agora com a lanterna do carro do meu primo. Se bem que o que mais me preocupa é o que o Vini está pensando nesse exato momento. Eu de verdade não o culpo se ele estiver me odiando agora, porque já lhe dei um prejuízo enorme, mas sinceramente eu não queria que meu primo ficasse com raiva de mim apesar de eu ser um tremendo gato preto na vida dele. Eu gosto do Vini, quero dizer, não do jeito afetivo que costumava há anos atrás, mas meu coração estranhamente dói só de pensar que meu primo vai ficar irado comigo quando receber a nota da loja de peças de carro. Eu devo ser mesmo uma experiência que deu errado, até porque não a outra explicação para o meu grau elevado de demência. Eu realmente e totalmente me O­D­E­I­O! Argh!

P.S.: pedir o notebook da Ana emprestado de novo quando chegar em casa pra pesquisar o maldito preço da lanterna na internet. Dependendo de quanto for mamãe pode até pagar o conserto. Pelo menos é isso que eu espero.

Ainda 06 de Junho (closet do quarto de hóspedes)

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18:10­ Procurei mais ou menos na internet quanto custaria uma lanterna. A Alice teve que me ajudar, pois eu queria saber o preço das lojas de peças daqui de Orlando e o meu inglês, como todo mundo já sabe, não passa do nível “imbecil intermediário”. Depois de muita pesquisa eu tive duas notícias: uma boa e a outra ruim. A boa é que eu era a milésima visitante do site e tinha que clicar na caixinha pop­up brilhante que apareceu na tela para eu levar meu prêmio! Há­há­há! Será que esses caras da internet acham que alguém ainda cai nessa? Agora a notícia ruim (e verdadeira) é que eu devo muito ao Vini, mas muito messsssmo! E nem a minha mãe pode pagar pelo conserto da lanterna porque vai sair muito caro e a gente não está podendo gastar dinheiro assim. Já que ela vendeu nosso carro antes da viagem pra bancar nossa estadia aqui até que conseguisse um emprego e nós já usamos parte do dinheiro só pagando as passagens de avião pra cá. Em outras palavras, estou ferrada e lisa feito coco! Aposto o que você quiser que o Vinícius está arrependido de ter salvo meus dedinhos do triturador de lixo, ou melhor, aposto que ele está se perguntando por que não enfiou minha cabeça logo de uma vez dentro daquela coisa quando teve chance. Pelo menos assim ele estaria livrando a humanidade da catástrofe que eu sou. Sinceramente acho que deveriam colocar meu nome num furacão. Se encaixa direitinho, até porque nós dois viramos

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tudo de cabeça pra baixo e deixamos um rastro de destruição por onde passamos! Furacão Bárbara. Soa até legal... 18:16­ A Ana pegou meu diário que estava jogado em cima da minha cama e leu o que eu acabei de escrever nele (acho que ela ainda não entendeu que isso aqui é território proibido para todas as pessoas desse planeta!) Segundo minha prima, já nomearam um furacão de Bárbara uma vez. Só que esse era de magnitude F5 e passou bem perto de Miami. Ela disse também que a Flórida é a terra dos furacões. No verão vira e mexe tem um passando pela costa e deixando o estado inteiro em alerta. Ah, tá... O quê???????????????????????????????????????? ONDE É QUE EU VIM PARAR MEU DEUS?

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07 de junho (terça­feira) casa de tia Vivian

11:58­ Eu estou morta de cansaço e com o pé doloridíssimo, mas ainda sem qualquer ânimo pra dormir. Acho que desenvolvi um certo tipo de insônia desde que cheguei em Orlando. Porque dificilmente tenho pego no sono antes das duas da manhã. Também, com tanta novidade dia após dia é meio difícil dormir. Eu fico repassando mentalmente tudo o que aconteceu comigo e de repente puf! O sono vai embora. Mas como agora estou muito bem acordada, ainda que cansada, é verdade, preciso contar todos os detalhes dessa noite. O Mark, meu primo americano, ligou pra cá lá pelas sete chamando a gente pra sair com uns amigos dele. A Ana por

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sua vez ligou para as amigas e marcou um encontro com elas no mesmo lugar que o Vini e o Mark iriam, mais para aproveitar a carona é verdade, pois ela ainda não tem idade pra dirigir o carro de tia Vivian. A Alice meio que se convidou pra ir com o grupo e o Vini, sempre muito legal, não conseguiu dizer não pra ela. Então todas nós corremos rapidamente para nossos quartos para nos arrumarmos. No meu caso eu ia apenas trocar de roupa já que eu sei que nada pode melhorar minha aparência, mas a Ana não permitiu que eu fosse com meu jeans e a blusa que eu havia comprado na liquidação da loja da Nike. Ela me forçou a usar um vestido preto (a única roupa dela que cabia em mim já que eu sou tamanho 38 e ela 36) além de um par de sandálias pretas que era um número menor que o meu pé e tinha um salto de no mínimo 3 centímetros! “Eu não vou sair com isso...”, disse tentando me equilibrar em cima da sandália, “... esse salto enorme está me dando até vertigem.” Mas a Ana mandou eu ficar quieta, parar de banca a “Drama Queen” e começou a me maquiar. É claro que ela não fez nada gritante no meu rosto, até porque eu disse que não queria ficar parecendo o coringa do Batman, então minha maquiagem ficou resumida a máscara nos cílios, blush bem clarinho e gloss. O que levou mais tempo mesmo foi a escova que ela fez no meu cabelo e a pintura nas minhas unhas, mesmo eu insistindo que meus cotocos não precisavam de base fortalecedora naquele momento. Quando nós aparecemos no jardim, depois do Vini já ter buzinado umas duzentas vezes, mamãe ­que estava do lado

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de fora com tia Vivian olhando a vizinhança­ meu deu um sermão sobre comportamento como se eu fosse a própria bad girl saindo pra aprontar e me instituiu 12:00 como horário de regresso. Isso mesmo. MEIA­NOITE! Um absurdo!!!!! Afinal, eu não sou mais criança e muito menos a Cinderela, só que infelizmente não consigo confrontar minha mãe nessas horas. Além disso, ela nunca vai mudar, já que foi criada em bases tão rígidas e conservadoras. Em outras palavras, muito obrigada vovô Henkels, o senhor criou um monstro e agora quem se ferra sou eu! Mas deixa isso pra lá, não vai adiantar nada mesmo eu ficar me queixando aqui... Assim que entrei na mini­van de tia Vivian (o carro do Vini ainda está no concerto) e me sentei no banco do carona, meu primo parou na mesma hora de mexer no som e olhou pra mim espantado, como se estivesse nascendo um terceiro olho na minha testa ou eu fosse um ET que tinha acabado de descer da nave mãe. “Gostou maninho?”, a Ana perguntou do banco de trás. Eu sinceramente não entendi a pergunta dela. Afinal, pela cara do meu primo eu devia estar horrorosa. “Babi não é sua boneca Barbie pra você fazer o que quiser com ela.”, o Vini disse voltando ao normal e colocando o cinto. Sério, aquilo só não foi um banho de água fria completo porque eu já meio que esperava que ele dissesse o quanto eu estava estranha naquela produção toda. Mas mesmo assim a reação de meu primo foi tão negativa (e parte dela provavelmente motivada pelo ressentimento com o prejuízo da lanterna quebrada), que eu me encolhi magoada no banco do

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carro e fiquei quietinha até chegarmos ao Bar onde encontraríamos o Mark. O Miller’s Ale House, como o letreiro dizia, tinha um estilo bem legal de pub. Além de muitas mesas com banquinhos altos, também possuía duas de sinuca, algumas máquinas de fliperamas em um canto do bar e televisores enormes espalhados pelo ambiente, por onde um bando de americanos assistia a uma partida de basquete. Mesmo gostando do “jeitão” do Ale House eu estranhei um pouco aquilo tudo. Nunca tinha entrado em lugares daquele tipo antes. Na verdade, o máximo que eu cheguei disso foi quando mamãe foi visitar a prima dela em Porto Alegre e acabou me levando num restaurante Outback pra comemorar antecipadamente meu aniversário de quatorze anos. Fora esse evento isolado, era McDonald’s vez ou outra e olhe lá! Assim que entramos no pub as amigas de Ana acenaram pra gente. Elas estavam sentadas próximas as mesas de sinuca e só a alguns passos de distância do Mark e dos amigos dele. Na mesma hora nosso pequeno grupo se dividiu. Ana e eu fomos falar com as meninas, enquanto os mais velhos (Vini e Alice) foram ficar com nosso primo Mark. Eu e Ana demos um tchauzinho de longe pra ele, tentando não sermos indelicadas e então minha prima me apresentou as amigas dela. A maioria era brasileira ou havia nascido nos Estados Unidos, mas eram filhas de brasileiros. Só duas garotas chamadas Brittany e Jennifer eram americanas natas, mas todas sem exceção estudavam na Olympia High.

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A morena Luana, que era de São Paulo, foi a primeira a puxar assunto comigo. “Ana disse que você chegou essa semana, né? O que é que está achando de Orlando?”. Ela perguntou com seu sotaque paulista. Eu inevitavelmente respondi o mesmo que disse ao Vini no dia do churrasco de boas vindas, embora não estivesse deprimida hoje como estava naquele dia. Então a Carol, uma das nascidas na Flórida, e que estava sentada à minha frente disse: “Ai meu deus, ele voltou!” enquanto cutucava a Ana, e as duas começaram a olhar fixamente pra alguma coisa atrás de mim. Como todas as outras garotas da mesa se viraram curiosas pra descobrir o que as duas estavam olhando tanto, eu também fiz o mesmo que elas. E, na hora que eu dei aquela olhadela pra trás, simplesmente não acreditei em quem estava caminhando no corredor do restaurante, meio distraídão, girando uma chave de carro no dedo indicador. Era ninguém mais, ninguém menos que o... Théo!!!!!! Acho até que esqueci de respirar naquele momento, ou talvez fosse apenas minha velha asma começando a atacar de novo. Não tenho certeza... Só sei que o Théo estava muito lindo, usando um boné vermelho escrito “Tampa Bay Buccanneers”, além de um jeans comum e regata preta, por baixo de uma blusa xadrez azul que estava aberta. Não sou expert nem nada no guarda roupa dos meninos americanos, mas posso dizer que aquele estilinho de roupa dele não era nem um pouco brasileiro.

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O Théo continuou se aproximando de nossa mesa, sem ainda ter percebido o bando de garotas que olhava fixamente pra ele e até acenou para o fundo do bar onde uns garotos jogavam sinuca. Eu achei que ele não ia me enxergar ali, no meio de tanta gente, mas no exato minuto em que o Théo passava pela nossa mesa, ele olhou pra mim de relance, voltou o rosto pro fundo do bar como se não tivesse me visto e, num centésimo de segundo depois, virou a cabeça pra mim de novo com os olhos cheios de espanto. “Babi!” ele disse parando de repente. Eu sorri e disse apenas um “oi” meio encabulado pra ele. Afinal, eu não sabia se aquele olhar de surpresa do Théo era do tipo “Que legal! Você por aqui!” ou do tipo “Corram todos! A afogadora de Ipods está na área!”. Talvez ele só estivesse sendo educado (como sempre, aliás), mas o Théo perguntou o que eu estava fazendo ali no Ale House e eu expliquei que tinha vindo com minha prima encontrar as amigas dela. Com essa pequena “deixa”, a Carol logo se intrometeu na nossa conversa estendendo a mão pra cumprimentar o Théo, e eu acabei obrigada a apresentar todas as meninas a ele. Tive que fazer um esforço danado pra lembrar bem rápido o nome de algumas delas, é verdade. Só que o mais engraçado de tudo foi no momento em que apresentei o Théo, ou melhor dizendo, quando eu tentei apresentá­lo. Porque eu só disse “Meninas esse é o...” ao que elas completaram imediatamente, pronunciando o nome dele de uma forma engraçada, do mesmo jeito que se fala a palavra “tio” em português.

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Eu fiquei pasma com aquilo e o Théo mais ainda, tanto que perguntou de onde elas o conheciam. Minha prima Ana se adiantou e disse que ela e as amigas estudaram na mesma escola que ele, uma tal de Gotha Middle School. O Théo pediu desculpas por não lembrar delas (embora elas lembrassem muito bem dele, pelo visto!) e antes de ir ao encontro dos seus amigos americanos que estavam jogando sinuca no fundo do bar, ele disse que voltaria pra falar comigo. Nem bem o menino saiu, a Ana e as gurias me perguntaram se eu era amiga do Théo e só ficaram satisfeitas quando eu contei Tim­Tim por Tim­Tim do jeito que a gente se conheceu na viagem do Brasil pra Orlando (não mencionei o fiasco no shopping, é claro! Só minha irmã sabe dessa história tenebrosa e isso por que eu queria escrever certinho as coisas que o Théo tinha falado em inglês com a irmã dele, então tive que contar pra Alice). As meninas ainda ficaram um tempo falando o quanto o Théo foi fofo por ter me dado chocolate e emprestado o finado Ipod dele, até que uma das garçonetes do Ale House trouxe uma rodada de refrigerante e asinhas de frango interrompendo nossa conversa. Passada a sessão comilança e eu ter bebido litros de refrigerante por causa das asinhas super apimentadas (não tanto quanto o jalapenó daquele dia, mas ainda suficientemente forte pra eu cuspir fogo igual a um dragão e ainda soluçar fumacinha), as meninas mudaram de assunto e começaram a falar em inglês pra não deixarem a Brittany e a Jennifer alheias a conversa. O que acabou me fazendo “boiar” durante um bom tempo enquanto elas fofocavam. Por isso

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minha atenção acabou se desviando para as mesas de sinuca no fundo do bar. O Théo estava apoiado em uma delas, com um taco nas mãos enquanto conversava com uma loira linda, o que me deixou meio inquieta, não sei por quê. Eu tentei não ficar olhando diretamente praquela mesa de sinuca, mas era meio difícil, porque de onde eu estava podia ter uma visão privilegiada do Théo, já que ele se encontrava bem de frente pra mim. Decidi encarar alguma daquelas televisões de plasma só pra desviar o olhar, mas jogos de basquete decididamente não me atraem, então eu acabei voltando minha atenção pra mesa de sinuca e, dessa vez, meus olhos e os do Théo se cruzaram. Ele riu pra mim, mas a garota com a qual ele estava conversando começou a estalar os dedos diante do rosto dele e então o Théo voltou a encará­la na mesma hora, ainda que parecendo meio zangado. Pelo jeito que ela exigia a atenção dele, era óbvio que aquela garota só podia ser a namorada misteriosa do Théo. A tal Megan que falou com ele pelo telefone no shopping. Cheguei a essa conclusão porque ela era estupidamente linda e os dois, tenho de admitir, meio que combinavam. Apesar do cabelo do Théo ser todo preto e o dela um loiro quase branco, eles tinham os mesmos olhos cor azul piscina e narizes arrebitados iguaizinhos. Pareciam até aqueles casais perfeitos de filme romântico adolescente: o garoto popular e a líder de torcida. Só que o engraçado disso tudo é que mesmo estando com a namorada bem ali, sempre que eu resolvia olhar pro Théo eu

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o pegava olhando pra mim! É claro que na hora que isso acontecia nós desviávamos nossos olhos bem rapidinho pra outro lugar. Eu até lançava aquele típico olhar furtivo, usando minha visão periférica do tipo estou­te­vendo­mas­você­não­ sabe, e peguei o Théo me encarando várias vezes. Será que eu estava com carne de frango no dente e ele de alguma forma queria me avisar, mas estava sem coragem de fazer isso? Acho que sim. Afinal, cá entre nós, porque ele iria ficar olhando logo pra mim se diante dele tinha uma garota maravilhosa que parecia a última estrela adolescente do Disney Channel? Oh, mas isso não foi o mais estranho da noite. Não mesmo. Vou te dizer o que me deixou completamente abismada até agora. Começou quando uma música antiga da Rihanna “Hate that I Love you” tocava nos alto­falantes do bar, quebrando toda a sequência de hip­hop’s e pop’s agitados que haviam tocado a noite toda. Eu meio que fiquei absorta pelo ritmo calmo daquela música e só percebi que o meu primo Vini não estava mais na mesa dele tempos depois. A Ana, que tinha acabado de voltar do banheiro junto com a Britt, explicou que o irmão tinha ido pegar um amigo num bar perto dali, mas que estaria de volta em pouco tempo pra me levar em casa. O detalhe, é que isso havia sido a mais de meia hora e não havia nem sinal do meu primo no bar! E o pior, o relógio estava se aproximando da meia­noite! Minha mãe ia me dar uma bronca se eu chegasse em casa depois do horário combinado, eu tinha certeza disso. Mas nem tive tempo de pensar muito no castigo doloroso que me esperava, pois o Théo deixou os

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amigos na mesa de sinuca (e a loira linda que tinha alugado ele durante um tempão) pra vir finalmente falar comigo. “Desculpe pela demora.” Ele disse sorrindo e depois apontou pro espaço vazio ao lado do meu. “Posso sentar aqui?” Eu fiz com a cabeça que sim. “E aí? Já se adaptou a sua nova vida em Orlando?” ele perguntou puxando assunto. “Quase... Quero dizer, mais ou menos... Ok. Na verdade, nem um pouco.” eu disse suspirando. Me deu uma vontadezinha de chorar ao pensar nisso, mas segurei. “Não se preocupa, não. Você só está aqui faz cinco dias. Com o tempo se acostuma, acredite em mim. Até porque de readaptação eu entendo bem demais!” ele respondeu rindo, provavelmente lembrando da vida quase “cigana” que levava. Eu sorri em resposta e então olhei apreensiva pro relógio no pulso dele. Quase surtei quando vi que já faltavam vinte minutos pra meia noite. Ai­Meu­Deus!!!!!!!!!!!!!!! O Théo percebeu que tinha alguma coisa errada comigo e perguntou o que houve. Eu contei toda a história e ele a princípio riu (não o culpo, eu também riria), depois se ofereceu gentilmente pra me levar em casa. De cara é claro que eu não aceitei. Primeiro porque eu não conhecia ele direito e segundo porque me lembrei do que ele falou sobre ter feito o trajeto Miami­Orlando em um tempo bem menor do que normalmente se leva, o que significava que ele veio correndo (pra não dizer voando!). Mas a Ana e as meninas ficaram insistindo tanto pra eu aceitar e meia noite estava tão perto agora que eu não tive escolha a não ser ir com o Théo.

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Quando nós estávamos saindo do bar, vi que a loira Barbie ficou olhando pra gente com cara feia. Senti uma imensa vontade de dar língua pra ela, mas não fiz isso. Óbvio! No estacionamento o Théo demorou um tempinho procurando o carro dele, até que parou diante de uma coisa enorme e preta. Eu não reconheci a marca daquilo, até ler na parte traseira o nome dele. Era algo como Land Rover LRX. E tenho que dizer, nunca tinha visto um carro tão grande na minha vida! É sério! Dava pra fazer uma festa lá dentro e convidar toda a minha família. Tá, tudo bem, isso foi exagero, mas o carro era grande mesmo (aliás, tem muitos automóveis aqui em Orlando que são enormes!) Ok, mas voltando ao Théo, ele abriu a porta do Land Rover pra mim e eu, ainda meio abismada com o tamanho daquilo, entrei no automóvel dizendo pro Théo que ele tinha um carro muito legal. O Théo entrou também, agradeceu explicando que na verdade o Land Rover foi uma tentativa do pai fazer com que ele ficasse em Orlando em tempo integral (que inveja, minha mãe tenta me comprar com meras canetas coloridas!) e então o Théo se esticou pra pegar alguma coisa no porta­luvas. Foi aí que eu o vi mexendo no Ray­Ban. Na hora não consegui me conter. “Você só pode estar de brincadeira! Vai usar óculos escuros pra dirigir a noite?” Ele riu. “Não. O Ray­Ban é apenas pra sol... ou emergências”. Ele disse enquanto remexia o porta­luvas a procura de outra coisa.

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Eu fiz cara de quem não tinha entendido e o Théo estendeu os óculos escuros dele pra que eu botasse, pois só assim eu “veria” o que ele quis dizer com “emergências”. Na mesma hora que eu coloquei o Ray­Ban não consegui enxergar absolutamente nada. O mundo parecia um grande borrão confuso e meus olhos até doeram um pouco. “Esses óculos têm grau!” eu gritei tirando logo o Ray­Ban do rosto. “É. E eles me salvaram quando eu fui pro Brasil e esqueci meus óculos de nerd aqui em Orlando.” ele disse enquanto tirava outro par de óculos do porta­luvas. Só que esse era um daqueles bem comuns, de grau, com hastes pretas. “Você tem problema de visão?!” eu perguntei abismada. “Três horríveis graus de miopia.” Ele respondeu meio que envergonhado colocando os tais óculos “de nerd”. “Eu tive de ficar andando com Ray­Ban pra cima e pra baixo no Rio, até mesmo de noite. Foi vergonhoso, mas era isso ou não enxergar nada de longe.” Ele disse arrancando com o carro afinal. Ao ouvir aquilo eu imediatamente comecei a me remoer de remorso por ter julgado o Théo do jeito que fiz no aeroporto lá no Rio. Eu havia chamado o garoto de “exibido” quando na verdade ele era apenas míope! Que vergonha! Aposto que o meu nome está na lista VIP do Inferno! Eu devo ser mesmo uma pessoa horrível... Mas em compensação, o Théo, que é uma ótima pessoa, me levou até em casa direitinho, sem correr nem nada, me

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deixando no jardim de Tia Vivian exatamente dez pra meia noite. Eu agradeci a ele várias vezes pela carona, dei tchau antes mesmo que ele pudesse pensar em abrir a porta pra mim e fui me dirigindo a entrada da casa (revoltada pelo fato de minha mãe ser uma fascista e minha vida uma piada adolescente) quando o Théo saiu do carro e me chamou. “O passeio pro Sea World ainda está de pé, certo?” ele perguntou se apoiando no teto do Land Rover. “Sea o quê?” eu rebati, já que eu não tinha entendido nadinha. “O parque marinho da baleia que eu comentei com o seu irmãozinho.” Oh, então esse era o nome do tal lugar... “Ah... Está de pé sim.” eu respondi. O Théo me deu um sorriso enorme, disse que a gente se veria em breve e já ia entrar no carro quando chamou meu nome de novo. “Sabe o que é engraçado?” ele disse tirando os óculos. “Eu tenho tentado te achar no Orkut, no Facebook, no Buzz, no Twitter e tudo que é rede social possível e de repente te encontro em pleno Ale House e ainda descubro que você mora a apenas cinco minutos de carro da minha casa.” “Que coincidência, não é?” eu disse meio que rindo. “Não. Eu não acredito muito em coincidências.” o Théo afirmou e depois de se despedir de mim dizendo “Durma bem, Cinderela. Sweet dreams.” entrou no carro, saindo rapidamente da Pineapple Court.

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E neste exato momento, a Alice, a Ana, o Vini, o Mark, o Théo e a namorada dele devem estar se divertindo no Ale House enquanto eu estou aqui, debaixo dos lençóis, escrevendo neste diário e vendo meu irmãozinho vestido com o pijama do Bob Esponja se remexer freneticamente ao lado da minha mãe na cama por causa de um pesadelo. Acho que não preciso repetir o quanto esse mundo é injusto, preciso?

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08 de Junho (quarta­feira) casa de Tia Vivian.

13:40­Hoje de manhã bem cedo eu fui ao mercado com o Vini pra gente comprar algumas coisas que começaram a faltar em casa (também com um aumento recente da população de moradores desse lugar, não me admira que a dispensa fique vazia rapidinho). A gente já tinha enchido o carrinho de compras com coisas de extrema necessidade (leia­se saco de Doritos, batata Lays, biscoito Oreo, barras de chocolate Sneackers..) e passado na padaria do Wal­Mart, quando o Vini fez a pergunta que eu tanto temia ultimamente. Não, graças ao bom Deus, não tinha nada haver com o antigo tópico Babi­amava­Vini, porque se ele tivesse mencionado isso eu teria entrado em combustão espontânea com certeza. Na verdade o assunto foi outro... “Que amigo da Ana te trouxe pra casa ontem?” ele quis saber enquanto tirava as coisas do carrinho de compras e colocava em cima do caixa. Eu congelei. A Ana tinha inventado uma mentira pro Vini, sabe­se lá Deus porque, e tinha dito que ontem, como ele estava demorando muito pra voltar, pediu pra um amigo dela

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me levar em casa. Só que ela disse assim mesmo: um amigo. Não especificou nome nem nada! E agora? O que eu iria fazer? Contar a verdade ou continuar com a mentira? Tic­Tac, Tic­Tac. Vamos lá, Babi! Pensa rápido! Tic­Tac. Tic­Tac! “Ah, não lembro o nome agora. Era um loirinho bem simpático.” eu disse na maior cara lavada, cuspindo a primeira coisa que me veio a cabeça. “Engraçado. Eu achava que todos os amigos da Ana ainda não tinham carteira.” O Vini rebateu. “É, ele não tinha mesmo. Tirou faz pouco tempo”. Eu disse colocando o saco de pão em cima do caixa. Meu Deus! Como é que eu consegui me transformar numa metralhadora de mentiras assim tão rápido? Danação eterna no inferno, aí vou eu! “Não sabia que a Ana tinha amigos mais velhos. Pra mim eram todos pirralhos que estudavam com ela.” meu primo disse me encarando. Eu fiquei paralisada. Afinal, eu já tinha ido longe demais com aquilo e não era tão criativa assim pra continuar com a encenação. Por sorte a operadora de caixa do Wal­Mart perguntou alguma coisa pro Vini e ele se virou pra responder, me livrando da tremenda “saia justa” que a Ana tinha me enfiado. Foi então que eu aproveitei pra mudar o assunto. Expertamente perguntei ao Vini o que a mulher tinha dito e

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meu primo explicou que ela só queria saber quantos pães tinha no saco que a gente pegou na padaria. Eu achei aquilo super estranho, porque ela não conferiu o saco nem nada pra ver se o Vini estava mentindo, mas meu primo disse que aqui as pessoas são assim mesmo. Elas realmente acreditam umas nas outras. Às vezes “dar” a sua palavra já é o suficiente pros americanos. “Isso só não funciona no Brasil...” o Vini afirmou “...porque lá a maioria das pessoas tem a mania de dar uma de esperto, querer levar vantagem em tudo. Minha mãe disse que isso tem até nome. Se chama “lei de Gérson”. Você conhece a lei de Gérson, Babi?” “Não...” Eu respondi meio pensativa “... só a ‘lei de’ Gaga”. Hã? Hã? Entendeu o trocadilho? Entendeu? Lei de Gérson... Lady Gaga... Não. Pela cara do meu primo ele não tinha entendido. Enfim. Pelo menos isso fez o Vini esquecer o assunto sobre o tal amigo misterioso da Ana e não me perguntar mais nada depois, nem mesmo quando a gente estava no carro voltando pra casa. Agora, o que eu não entendo é por que minha prima mentiu pro Vini. Será que além de caladão ele é do tipo ciumento e superprotetor também? Vou perguntar pra ela assim que ela voltar da casa da Carol. 19:20­ Nem sinal de vida da Ana. E o Théo ainda não ligou pra marcar o passeio pro Sea World. Não que eu esteja esperando ou coisa assim. Só... sabe... Achei que ele ia ligar...

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20:37­ Finalmente desinfetei meu aparelho! Agora é só usar aquela maldita aranha de acrílico... ou não! Estou pensando seriamente em aposentá­lo precocemente! 23:12­ E ainda nada da Ana. Acho que ela vai ficar na casa da amiga. Vou dormir. P.S.: O único telefonema que recebemos a noite toda foi o de tia Vera querendo saber como a gente estava aqui nos Estados Unidos. Minha mãe achou estranho o jeito que eu fui correndo pra atender. Eu só não queria que a pessoa ficasse muito tempo esperando na linha, ora!Tem algum mal nisso? Imagina se fosse a Mari?

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09 de Junho (quinta­feira) casa de tia Vivian 09:58­ Hoje minha irmã resolveu me ajudar um pouco com a língua inglesa. Na verdade ela só usou isso como desculpa pra fugir do Dani que queria ficar jogando “Uno” com ela, mesmo ele não sabendo as regras direito e ainda sempre se achando o ganhador no final – experimente só dizer pro guri que ele perdeu pra ver o que te acontece! A Alice achou que seria legal me mostrar algumas frases que podiam ser úteis no dia­a­dia. Então aqui estão elas: I’m so sorry. It was an accident. Tradução: Me desculpe. Foi um acidente. (o­ho­ho essa eu vou usar com certeza!) No problem! Tradução: Sem problema! (dã, essa eu já sabia)

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Nice to meet you. Tradução: Prazer em conhecê­lo. (idem acima) You’re welcome. Tradução: De nada. Sorry, I don’t understand. Tradução: Desculpe, não entendo. (outra que vai ser uma ‘mão na roda’!) My feet stink and I smell like a monkey. Tradução: Você sabe onde fica o banheiro? Opa. Espere aí! “Monkey” não é “macaco” em português? Quando é que um símio teria alguma coisa haver com banheiros? Será que é algum tipo de expressão? 10:07­ Está vendo? É isso que dá ouvir a irmã mais velha! O Vini me explicou o real sentido da última frase. Segundo ele eu acabei de dizer que “Tenho chulé e cheiro igual a um macaco”! Rá! Essas maldades são bem a cara da Alice mesmo! Mas vai ter volta maninha. Uma hora você vai ter que dormir e aí... Muáhaha! (pequena­esfregada­de­mão­no­estilo­vilão­sádico) 11:33­Minha prima chegou em casa a alguns minutinhos atrás e quando eu perguntei porque ela tinha mentido pro Vini, a Ana só disse que era pra facilitar as coisas.

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Ahn? Tipo, facilitar o quê?????????? Ela estranhamente não disse. Só riu pra mim e fechou a porta do quarto na minha cara, pois queria se trocar. Eu hein! Será que o sol quente da Flórida fritou os miolos da minha prima? Garota doida...

23:59­ E o Théo não ligou hoje também. Pena...

10 de Junho­Sexta­feira (sala de tia Vivian.

02:34­ É madrugada ainda, mas eu não consigo dormir. Fiquei rolando um tempão na cama e agora a pouco fui na cozinha beber água. Quando passei pela sala, reparei que o Vini tinha deixado o notebook dele bem em cima da mesa de jantar. Como eu estava meio sem sono decidi usar ele um pouquinho pra ver se havia algum recado novo da Mari. Sei que eu não tinha pedido permissão ao Vini nem nada, mas naquela hora ele já devia estar no quarto sono e de qualquer maneira tenho certeza que se eu tivesse pedido ele teria deixado eu usar o “note” dele. Tomando todo o cuidado pra não fazer barulho, liguei o computador, entrei na internet e fui logo ver a minha página de recados. A Mari, como sempre, tinha deixado dúzias deles

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dizendo que estava sentindo minha falta (e me contando algumas fofocas também), mas o que realmente mexeu comigo foi ver os recados que os meus amigos e colegas de turma tinham deixado um pros outros: Roberta: Galera, estamos querendo marcar cineminha pra esse sábado. Tá passando um filme tri legal do Adam Sandler no Unicshopping. Quem quer ir? Há 06 horas *Curtir * Comentar Camilinha: Eu e o Felipe estamos dentro! Isabella: Se for comédia vou sim! Quais são os horários das sessões? Douglas: A gente se encontra onde? Lá em Lajeado mesmo, em frente ao cinema? Luisa: Já estou lá! Isso se alguma alma caridosa me der carona né... Mari: Vou também. Preciso rir um pouco. Quer ir comigo Lú? Minha mãe leva a gente de carro. Bia: Povo do cinema. Domingo vamos num rodízio de pizzas? Há 4horas* Curtir * Comentar Douglas: V6’s querem me quebrar financeiramente nesse fds, mas tudo bem. Onde, como e quanto $$$$$$? Isabella: Estou de dieta, mas vou sim. Sempre tem umas opções de saladinhas nesses lugares... Cecília: Tu vai num rodízio pra comer folha, Bela? Vamos ser felizes no catupiry que é muito melhor! ^^

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Nando: Vamos sim. Definam o lugar logo, plz! Mari: Pipoca, pizza... Vou virar uma bola, mas vou! Camilinha: Abriu uma Pizzaria muito boa em Lajeado, perto do shopping, mas se vcs quiserem ficar por aki. Tudo bem.

Pode parecer estranho, mas eu fiquei com certa inveja da animação da minha antiga turma marcando pra sair no fim de semana. Porque será que doía tanto ver os meus amigos levando normalmente a vida deles sem mim? Como se eu não existisse mais? Era tão estranho, tão anormal, tão... tão... angustiante! Por mais que eu soubesse que isso um dia iria acontecer, de alguma forma eu me senti passada pra trás. Ou melhor dizendo, esquecida. Porque era isso que eles tinham começado a fazer: esquecer de mim! Ninguém soltou um réles comentário do tipo: “Ah, que pena que a Babi não pode ir com a gente!” ou “Queria que a Babi estivesse aqui”. Não! Nada! Zero! Bárbara se foi e agora é vida que segue! Até a Mari, que parecia estar sentindo absurdamente minha falta, já estava arranjando programas pro fim de semana e eu nunca mais vou poder fazer parte deles de novo, por mais que queira. Fiquei tão chocada com essa constatação, que nem mesmo tive estômago pra ver o resto das mensagens. Desliguei imediatamente o computador com os olhos cheios de lágrimas e corri pro quarto pra pegar esse diário.

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Mas eu não quero e não vou chorar por causa do que eu acabei de ver! Só preciso botar pra fora toda essa frustração de estar nessa terra estranha chamada Estados Unidos. Só isso... Tenho certeza de que vai ser o suficiente pra eu melhorar.

10 de Junho ­ Sexta­feira (sala de tia Vivian)

13:14­ Acordei me sentindo muito mal essa manhã. Não era nada realmente físico, por isso nem contei a minha mãe. Ela já estava preocupada demais por ser o primeiro dia em que ia sair com tio Oscar pra procurar emprego. Então preferi ficar quieta pelo bem da dona Valkíria. O que eu estou sentindo agora é meio difícil de se explicar. Parece uma mistura de tristeza com desânimo e piora ainda mais quando eu penso no Sul.

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É incrível como tudo hoje me faz lembrar o Brasil. Uma foto num porta­retrato na sala de tia Vivian, uma música tocada no rádio do quarto da Ana (‘Mais que nada’ do Sérgio Mendes com o Black Eyed Peas, pra ser mais precisa), o bolo de cenoura com cobertura de Nutella que a Alice está preparando pra entupir o Dani e evitar que ele faça mais besteiras­ atitude muito válida, por sinal, já que é isso ou continuar assistindo ao guri raspar a cabeça da Lola pra tentar fazer um corte estilo moicano na pobre da gata. E detalhe, com o aparelho barbeador do Vini! Mas nem mesmo as travessuras do Dani conseguiram me distrair. Eu estava me sentindo tão deprimida esta manhã e com uma vontade tão grande de gritar, que simplesmente sentei no closet do quarto de hóspedes e comecei a chorar feito criança. Mas muito mesmo, durante horas talvez e ainda por cima em pleno escuro. A Ana ouviu os soluços vindos do armário (graças a Deus ela ainda não viu o novo visual punk da Lola) e se sentou ao meu lado no closet pra tentar descobrir o que eu tinha. Acabei desabafando um pouco com minha prima sobre a sensação horrorosa que estou sentindo e ela disse que eu devo estar sofrendo de homesick (saudade de casa), o que é algo bem normal e acontece com a maioria dos brasileiros que se muda pra cá, inclusive aconteceu com ela e o Vini, mas que os dois já tinham superado isso. Depois minha prima pegou uma blusa da Alice que tinha caído do cabide, limpou meu rosto e me abraçou dizendo que no final tudo ia ficar bem.

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O que eu reconheço que foi bem legal da parte dela, mas pra falar a verdade, eu sinto que não vai ficar nada bem. Acho que só agora, com mamãe saindo pra procurar emprego, é que caiu realmente a minha ficha. Nós não estamos aqui pra visitar tia Vivian ou bancar os turistas em Orlando, nós estamos aqui pra morar e DEFINITIVAMENTE! “Forever and ever” como eles dizem aqui. Adeus Sul! Adeus Brasil! Asta la vista! Oh, só de pensar nisso me dá uma reviravolta no estômago... O que eu faço pra essa sensação ruim ir embora? Ah, já sei! Que tal EU ir embora? Com certeza vou ficar boa e meus olhos vão desinchar rapidinho!

15:29­AI­MEU­DEUS! Ele acabou de ligar! Disse que ia e ligou mesmo! Hoje, precisamente às 15:20. Quem? O Théo, né dããã! Que outra pessoa poderia ser? Jesus Cristo numa ligação DDD direto do paraíso? Se bem que, no momento em que a Ana me estendeu o telefone sem fio eu não acreditei que fosse o Théo. Pensei logo na tia Vera, ou na minha mãe ligando pra se certificar de que o Dani ainda não tinha posto fogo na casa ou desenvolvido um raio mortal pra dizimar metade da vizinhança... Por isso fiquei tremendamente surpresa quando ouvi a voz do Théo pelo telefone e corri pro meu quarto pra falar com ele bem longe dos ouvidos curiosos da Alice e mais ainda dos do

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meu primo Vini, que não sabia nem metade da história sobre o Théo. Melhor dizendo, não sabia NADA sobre o Théo. No quarto, meu irmão Dani estava comendo mais um pedaço de bolo de cenoura –e fazendo a maior sujeira­ enquanto via num volume absurdo o DVD Magic English da Disney que a Alice tinha colocado pra ir familiarizando ele com a língua. Eu gritei pedi gentilmente pra pequena encarnação do mal criança abaixar o som, mas ele só me mostrou a língua e jogou uma parte do bolo na minha cara, do qual eu habilmente desviei no maior estilo Matrix. Não tive outra opção se não a de atender o telefonema do Théo dentro do closet mesmo, entre os cabides com as roupas da Alice e os sapatos de mamãe. Eu ainda podia ouvir a musiquinha chata do DVD entrando pelas frestas do closet: “Who is afraid of the big bad wolf? Big, bad, wolf. Big, bad, wolf. Who is afraid of the big bad wolf? Big. Bad. Wolf! (versão americana de “Quem tem medo do lobo mau?”), mas o nível do som até que era tolerável. A conversa entre eu e o Théo foi mais ou menos assim:

Eu: Oi. Desculpa pela demora. Théo: Nada. O lobo mau deve ter realmente te dado trabalho. Eu: Ah, que ótimo! Você consegue ouvir a música daí... Théo (meio que rindo): É. Mas não se preocupe. Não vou contar a ninguém que você mora com os três porquinhos.

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Eu: Na verdade aqui tem um só e com tendências psicopatas. Se bem que analisando os hábitos higiênicos do Dani, no final das contas acho que ele vale por três porquinhos mesmo. Risos Théo: Ok. Mas mudando um pouco de assunto... Está a fim de ir ao Sea World amanhã? Eu: Amanhã?! Já?! Bem, não sei. Tenho que falar com a minha mãe... Ver se o meu primo pode levar o Dani e eu... Théo: Ah, se você quiser eu passo aí pra pegar vocês. Eu: Não, acho que não é uma boa idéia. Voz vinda do além: É verdade. Oops! Falei... Eu (totalmente pasma): Ana???????? Ana (na extensão): Eh... Oi. Desculpe aí, prima. Fui pegar o meu telefone pra ligar pra Britt e acabei ouvindo um pouquinho da conversa... Eu: Tá, mas será que dá pra fazer o favor de sair da linha? Ana: Claro! Claro! Já estou desligando! Tchau Théo. Théo (rindo): Bye, Ana. Ruído de telefone sendo desligado. Eu: Onde a gente estava mesmo? Théo: Na parte em que você recusava minha oferta de te levar ao Sea World. Eu: Ah, é... Bem, não é nada pessoal tá? É só que a minha mãe é meio paranóica. Eu já falei sobre você pra ela, mas a

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criatura não me deixa sair com nenhum amigo novo antes de ter certeza de que a pessoa não faz parte de nenhuma quadrilha internacional de tráfico de órgãos. Théo (brincando): Se isso ajuda, eu não tenho nenhuma passagem pela polícia. Voz do além (dessa vez rindo): Essa foi boa... Putz! Falei de novo... Eu: ANAAAAAAAAAAAAAAAA! Grito saindo do quarto da minha prima: “Tá bom! Já desliguei! Já desliguei!” Eu: Desculpa, Théo. Não vai acontecer de novo. Théo: Relaxa, Babi... Mas então? Rola Sea World amanhã? Eu: Vou perguntar pra minha mãe e pro meu primo e depois te ligo. Théo: Certo. Melhor eu te dar meu celular. Aquele outro número que você tem é o telefone da minha casa e lá praticamente ninguém fala português. Eu: Ok. Só espera um minutinho pra eu ir pegar uma caneta. Théo: Claro! Juro que ao fiz nada tão rápido em minha vida! Eu (depois de sair do closet a procura de caneta e voltar aos tropeços): Diz aí. Théo (falando de um lugar mais barulhento agora): 715­5199. Anotou?

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Eu: Ok. Tá aqui. Ei, você está ouvindo “Yellow” do Coldplay? Théo: Estou. Desculpe, acho que cheguei perto demais do som. Eu: Sem problema. Essa é uma das músicas deles que eu mais gosto. Théo: Verdade? Eu nem gostava tanto, mas ultimamente tenho ouvido muito ela porque me lembra um certo momento... Eu: Que momento? De repente uma voz de mulher surge ao fundo da música do Coldplay: “Theo, could you help me with my car? It’s turning over but it won’t start!” Théo: Dammit! Silêncio. Como se ele tivesse tapado o bocal do microfone. Théo (parecendo meio chateado agora): Babi, olha mil desculpas, mas minha madrasta está me chamando. Acho que tem algum problema com o carro dela. Me liga depois pra dar a resposta sobre o Sea World? Eu: Ahã. Théo: Ok. Então fica assim. Um beijo. Eu: Pra você também. Tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu

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20:15­ Minha mãe mesmo arrasada por não ter conseguido emprego deixou eu e o Dani irmos ao Sea World amanhã! U­Huuuuuuuuuuu! Ultimamente ela tem dito “sim” com uma certa freqüência e pra quase tudo que eu e meus irmão pedimos. Com certeza ela só está fazendo isso pra tentar nos agradar e fazer com que a gente se sinta mais á vontade nesse país. Pelo menos isso! Ah, e o Vini concordou em levar a gente ao parque. De início ele falou que não ia de jeito nenhum, nem amarrado, porque odiava locais turísticos em Orlando nesse período de alta temporada, já que eles são cheios e super tumultuados, mas foi só a Ana dizer que ele não precisava ficar com a gente que o meu primo topou no ato! Ah, é! A Ana vai também... Que seja. É melhor eu ligar pro Théo pra confirmar nosso passeio amanhã. 20:23­ Pronto. Está feito! Estranho... De repente fiquei tão bem disposta! De onde veio toda essa injeção de ânimo? [em off] Nada de usar aparelho amanhã!

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11 de Junho (sábado) Casa de tia Vivian

19:45­Hoje fomos finalmente conhecer o parque marinho que o Théo prometeu levar o Dani. E nossa! Eu tenho tantas recordações boas desse dia que eu nem sei por onde começo. A Alice não quis ir com a gente, porque tinha marcado de conversar pelo Skype com as amigas da antiga faculdade dela, mamãe por sua vez saiu pra procurar emprego com a ajuda do Tio Oscar (mesmo hoje sendo sábado), e acabou me deixando totalmente responsável pelo Dani, algo que me fez muito feliz (ATÉ PARECE!) já que eu teria de bancar a babá do endiabrado o tempo todo. Apesar disso eu pude aproveitar o parque (e que parque!) muito bem. Não tinha idéia do que iria ver no tal Sea World, mas vou te contar, eu quero voltar lá mais vezes! O Théo tinha marcado com a gente perto dos guichês, às nove horas em ponto, bem ao lado de um farol que tinha umas Orcas pintadas, e foi lá que a gente encontrou ele e sua irmãzinha Amanda já esperando por nós. Logo na entrada do parque uns fotógrafos profissionais tiram fotos dos visitantes, para que eles comprem, é claro, e

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um deles pensou que o Théo e eu fossemos namorados. Acredita? Eu na verdade não tinha entendido muito bem quando o cara nos abordou com uma câmera na mão, mas o Théo me puxou pra junto dele e depois que o fotógrafo já tinha nos fotografado, ele me explicou rindo que o homem tinha apenas pedido permissão pra tirar uma foto do casal. Na hora eu não fiquei vermelha de vergonha, fiquei roxa! Depois do momento embaraçoso com o fotógrafo (graças a Deus a Ana estava meio longe e não viu nada) nós levamos o Dani e a Amanda para alimentar os golfinhos. Juro que teve um momento que meu irmão se aproximou perigosamente deles e isso me deixou aflita. O Théo disse pra eu não me preocupar com o Dani porque os golfinhos são seres realmente dóceis. Eu então respondi que não estava preocupada com meu irmão, mas sim com a integridade física dos golfinhos, já que o Dani era o único ser realmente indócil ali. Nós ainda vimos muitas coisas antes de irmos para as apresentações e, é claro, tivemos que agüentar meu irmãozinho fazendo um bando de besteiras pelo parque. Desde pegar uma arraia enorme de um tanque e colocar na cabeça (o que fez ele ficar fedendo o dia inteiro a maresia) até chutar a canela da funcionária da montanha russa que não deixou ele ir no brinquedo porque não tinha altura suficiente. E mamãe ainda diz que ele é um anjo... Há­há. Isso porque ela ainda não reparou o rabinho saindo da bunda dele com triângulo na ponta! A montanha russa chamada Kraken foi demais, sem exageros. Eu me lembro perfeitamente a hora em que o Théo

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apontou para o operador do brinquedo quando nós estávamos já sentados no carrinho e disse em inglês “Velocidade máxima cara!” ao que o operador mostrou um sinal positivo e, bem, acho que ele realmente fez o que o Théo pediu porque o kraken foi adrenalina puraaaaaaaaaaaaa! Tudo bem que na saída eu simplesmente tive que me apoiar no Théo até encontrar com a Ana e as crianças, de tão enjoada, tonta, descabelada e pálida que eu estava, afinal eu nunca havia andado de montanha russa na vida e ainda por cima tinha medo de altura, mas acredita que valeu à pena? Lá pela uma da tarde, já famintos e meio cansados de tanto andar e tirar fotos, nós fomos num restaurante super legal no subsolo do parque que, ao invés de janelas, tinha simplesmente como paredes os vidros do tanque de tubarões que nós havíamos acabado de visitar na superfície! O Dani, atentado que só ele, ficou batendo no vidro e tentando atrair os bichos esfregando pedaços de nugget na superfície do tanque, mas isso só serviu pra deixar o vidro super engordurado e eu morrendo de vergonha das outras pessoas que estavam no restaurante. Porque os tubarões mesmo, que era bom, não estavam nem aí pro meu irmãozinho. Cara, porque o Dani não era comportado igual a Mandy hein? Ela estava lá, toda quieta, sem dar um pio, sentadinha igual a uma mocinha, enquanto o Théo dava comida pra ela na boca. Que graça era aquela menina! Oh, e por falar no Théo... Nossa, ele era tão paciente com as crianças, inclusive com meu irmão Dani (a própria encarnação do Chuck, o boneco assassino) que era impossível não admirar o jeito que ele tratava os pirralhos. Até a Ana disse

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no meu ouvido que achou tudo que ele estava fazendo muito fofo. Eu só não gostei de duas coisas que ele fez. A primeira foi dele ter brincado comigo quando eu disse um pouco antes do almoço que estava com vontade de comer um misto quente. Ele pediu pra eu ficar repetindo “misto quente” várias vezes porque, segundo ele, eu falava de um jeito muito engraçadinho. Até parece! O Théo é que com o “carioquês” dele dizia tudo estranho, arrastando demais o “s”, trocando as vogais, colocando consoantes onde não tem... Vide o “Misssstu Quentchi” dele. Esse povo do Rio de Janeiro deve possuir um dialeto próprio! Só pode! A segunda coisa que eu não gostei foi dele ter pego sorrateiramente a conta e pago a refeição de todo mundo, até mesmo a da Ana. Tudo bem que eu não estou podendo recusar dado o estado financeiro quebrado da minha mãe, mas eu tinha dinheiro suficiente pro Dani e eu comermos. Apesar de tudo decidi encarar aquilo como gentileza e não reclamei. Ok, ok, talvez eu tenha reclamado só um pouquinho, mas agradeci educadamente ao Théo. Bom, depois disso fomos a uma atração sobre o Ártico que imitava uma estação de pesquisa e tinha até um urso polar de verdade. Tudo bem que a gente entrou na atração mais pra escapar do calor, pois lá o ar condicionado era muito forte pra que você se sentisse no Ártico mesmo, só que de qualquer jeito valeu a pena, porque o Dani e a Mandy ficaram admirados com o ursão branco. Na saída da atração, que dava direto numa loja do parque, o Théo comprou uma baleia Orca de pelúcia pra mim, um pinguim pro Dani e pra Amanda um bebê

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foca branco que era uma espécie de fantoche, mas a diversão acabou sendo pros dois guris mesmo, pois o Théo ficou brincando com as crianças, modificando a voz e se fazendo de ventrículo. “Meu nome é Senhor Branquinho...” ele disse mexendo com a boca da foca “...or in english, my name is Mr. Withy” ele completou virando a pelúcia pra irmã. A Ana também entrou na brincadeira e cumprimentou o “Senhor Branquinho” dando os parabéns a ele por ser o único animal selvagem bilíngue que ela conhecia! Já eu tive que beijar a foca na bochecha porque, segundo o próprio “Senhor Branquinho”, beijos de meninas bonitas dão boa sorte. Ai, ai, só o Théo mesmo... Como as crianças já estavam recuperadas do almoço, elas insistiram pra ir ver os pingüins (de novo) na atração chamada Penguin Encounter, e lá fomos nós mais uma vez nos render ao desejo dos pequenos. Pelo menos o bom daquele lugar é que você via os pinguins no tanque deles, enquanto uma esteira rolante ia comodamente levando você, sem falar do ar­ condicionado maravilhoso que tinha ali. Vou ser sincera, bateu uma preguiça enorme quando eu estava no Penguin Encounter. Tanto que quando as crianças se encheram dos pingüins e quiseram ir à mini montanha russa com carrinho em forma de baleia (que era por sinal quase do outro lado do parque!), eu pedi pra ficar descansando mais um pouquinho e me sentei no chão acarpetado da atração, em uma parte meio escurinha­ perfeita por sinal pra se dormir. O Dani e a Amanda, é claro, começaram a reclamar e a Ana disse que levaria eles sem problema enquanto eu descansava.

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O Théo, por sua vez, se ofereceu gentilmente pra ficar comigo e se sentou no chão bem ao meu lado. As crianças nem mesmo esperaram pelo aval da Ana e saíram correndo feito loucas pra ir à tal montanha russa infantil. O Théo encostou a cabeça na parede e fechou os olhos, parecendo esgotado, o que é bastante compreensível, pois ele tinha carregado a Mandy nos ombros quase o dia inteiro e sem reclamar. Como eu estava cansada também, encostei a cabeça na parede do mesmo jeito que ele fez e, enquanto isso, fiquei observando tudo à nossa volta. As pessoas maravilhadas na esteira rolante, as crianças que passavam perto da gente ainda empolgadas por terem visto os pingüins, os turistas hilários de meia branca até quase no joelho, outros de pochete achando que estavam na última moda (rá, última mesmo!), uns poucos com aqueles Crocs fluorescentes... E de repente, antes mesmo que eu me desse conta, eu já tinha abandonado toda a observação e estava com os olhos presos no rosto do Théo. Não sei por que, mas fiquei o encarando por um certo tempo. As linhas do rosto dele eram tão bem feitas. Sem falar da pele branca cheia de pintinhas fofas no pescoço. Parecia uma verdadeira constelação, dava até vontade de ligar as pintas pra ver o desenho que formava... Me perdi tanto tempo na dita comtemplação que levei um susto quando o Théo abriu a boca. “Que foi?” ele perguntou ainda de olhos fechados. “Nada” eu respondi rápido “Só estava imaginando como você está fazendo pra enxergar as coisas sem o Ray­Ban ou os seus óculos de nerd.” Ufa! Me sai bem...

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O Théo sacudiu a cabeça e riu. “Meu último recurso se chama: lentes de contato!” ele disse abrindo os olhos finalmente pra me encarar. “E por que você não usa sempre ao invés dos óculos?” “Sei lá. É meio irritante ter que colocar. Dá um certo nervoso. Só uso mesmo em ocasiões especiais.” “Ah, tá. E essa é uma?” “Totalmente” o Théo respondeu rindo pra mim. Eu ri também, mas senti uma sensação tão esquisita quando ele olhou nos meus olhos, uma mistura de vergonha com nervoso, que na mesma hora eu baixei a cabeça pra encarar o chão. Acho que o Théo não chegou a perceber minha falta de jeito, pois ele pegou o meu queixo sem qualquer cerimônia e o ergueu. “Peraí. Tem um negócio no seu rosto” ele se explicou, enquanto tentava tirar alguma coisa que estava meio que grudada na minha bochecha. Quando ele finalmente conseguiu, eu vi que se tratava apenas de um cílio solto. Com certeza meu, pois era longo e supercurvado, no estilinho bem de boneca mesmo, como os da Alice. “Diz aí. Quer fazer do jeito brasileiro ou americano?” o Théo perguntou segurando o cílio bem perto do meu rosto. “Como assim?” eu rebati. “É, tipo, no Brasil a gente faz um desejo, depois pressiona os nossos polegares com o cílio bem no meio deles e no final, quando a gente separa os dois, quem fica com o cílio grudado no dedo é que vai ter o pedido realizado. Lembra? Então, já

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aqui nos Estados Unidos a brincadeira não é assim. O dono do cílio é quem faz o desejo e depois sopra ele pra que o vento leve o cílio e traga o pedido realizado. Entendeu a diferença? Eu fiz com a cabeça que sim e, após pensar um pouco, acabei me decidindo pelo jeito brasileiro, já que parecia mais justo. Não que eu acreditasse realmente nessas coisas de cílios realizadores de desejos... Era só pela brincadeira mesmo. Então o Théo e eu unimos nossos polegares e ele me disse pra pensar numa coisa que eu desejasse muito mesmo, do fundo do meu coração. De primeira, eu quis pedir pra voltar pro Brasil, mas depois achei que seria melhor apenas desejar ter uma vida feliz. Era bem genérico, mas se eu for analisar bem, voltar a viver no meu país estava meio que embutido nisso. O Théo ficou olhando pra mim enquanto fazia o pedido dele e quando terminou quis saber se eu já tinha feito o meu. Respondi que sim e nós dois finalmente separamos nossos polegares. Como o cílio havia ficado no meu dedo eu comemorei igual a uma criança boba e no mesmo instante guardei ele dentro da gola da blusa, como a brincadeira manda. “Será que eu podia perguntar o que você pediu?” O Théo falou parecendo curioso. “Não. Porque se eu contar, o desejo não se realiza!” eu respondi dando uma careta pra ele. “Quer saber o meu, então?” o Théo perguntou meio que sorrindo, mas o sorriso lindo dele se desmanchou assim que o seu telefone começou a tocar o refrão de “Stick with you” das

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Pussycat Dolls. O que, vamos combinar, é uma música um tanto incomum de se ouvir num telefone de menino. Ele tirou o celular do bolso de trás da calça e, como nós ainda estávamos muito próximos um do outro, eu sem querer vi pelo identificador de chamadas quem estava ligando. Por que além do nome “Zoey” gritando ali na tela, havia também a foto de uma menina loira maravilhosa, mais ainda que a tal Megan que eu tinha visto no Ale House (só chovia mulher bonita em cima desse cara ou era impressão minha, hein?) O Théo balançou a cabeça fazendo uma careta meio estranha e ficou um tempo sem reagir de fato, apenas ouvindo o telefone tocar aquela musiquinha chata. “Você pode atender se quiser, sabia?” eu disse num tom de brincadeira. “Não. Não vale a pena. É só o passado querendo me incomodar.” O Théo disse recusando a chamada. Depois desligou o telefone. Eu me levantei antes que ele pensasse em me dar uma explicação (porque eu não precisava de nenhuma dada a obviedade daquilo tudo: o cara simplesmente tinha dois rolos!) e disse que era melhor a gente ir procurar a Ana e as crianças. O Théo ainda me perguntou se eu não queria ficar descansando só mais um pouquinho, mas eu disse que aqueles minutos já tinham sido suficientes (que mentira!). E então nós partimos pra encontrar os pequenos no “Shamu happy harbor”. Ainda fomos em outros brinquedos depois disso (eu estava mal humorada demais pra aproveitar, acho que a comida do restaurante dos tubarões não deve ter caído bem ou coisa

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assim) e só mais tarde é que vimos os shows que o parque exibia. A Mandy adorou o espetáculo com dois leões marinhos treinados chamados Clyde and Seamore mesmo sendo a trigésima vez que ela assistia. Já o Dani ficou alucinado mesmo foi com o show Believe e eu vou te dizer por que: ele finalmente viu a bendita orca que o Théo falou! Pra ser sincera até eu adorei esse show, pois era realmente fantástico ver uma baleia enorme, nadando em um tanque maior ainda e dando piruetas no ar como se não pesasse toneladas. Meu mau humor foi até embora naquele momento. A Ana, no entanto não gostou nadinha do show, já que a baleia (que era chamada de Shamu) simplesmente começou a jogar a água do tanque com a cauda bem em cima da platéia e acabou sobrando pra gente também. Bom, não posso culpar minha prima de todo, afinal ela nos avisou que isso iria acontecer e, além disso, tinha passado chapinha no cabelo bem naquele dia e agora ele estava totalmente arruinado. Todos nós saímos muito molhados do show, encharcados pra ser mais precisa e, vou te dizer, valeu muito à pena ganhar todo aquele banho, ainda mais pelo fato de estar fazendo um calor horroroso naquela tarde. No final foi o Théo que se prontificou a nos levar pra casa. A Ana disse que não precisava, pois ela iria ligar pro Vini pra ele vir nos buscar, mas o Théo fez questão e nós não tivemos como negar a carona dele. As crianças adoraram o parque, é claro, mas infelizmente ficaram cantando a música do espetáculo da baleia Orca

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durante todo o caminho da volta pra casa, então eu fui forçada a ligar o rádio do carro do Théo quase no volume máximo pra não ter que ouvir aquela cantoria desafinada deles. Apesar de que, pra ser sincera, nem mesmo o hip hop agitado da música “We on to the next one” do Jay­Z foi suficiente para abafar a voz do Dani e da Mandy. O Théo por sua vez ficava sacudindo o cabelo molhado dele em cima de mim sempre que parávamos em um sinal de trânsito, mas eu prontamente revidava fazendo cosquinha nele. Algo que a Ana com certeza desaprovava, porque a pude ver pelo retrovisor revirando os olhos várias vezes no banco de trás. Théo e eu, no entanto não estávamos nem aí pra isso. Continuamos na nossa criancice, rindo e implicando um com o outro até chegarmos a casa. É, meu humor havia se restabelecido totalmente! Acho que foi algo que eu comi mesmo... Fora o momento rabugento da Ana, foi um dia bem legal, e o melhor de tudo é que hoje eu não causei nenhum dano material ao Théo nem a mais ninguém. Engraçado é que pela primeira vez desde que cheguei aqui eu não senti falta do Brasil. É óbvio que não esqueci minha terrinha, mas o dia de hoje foi de certa forma especial. Eu nunca me diverti tanto quanto me diverti no Sea World hoje ao lado do Théo e das crianças, e acho que posso dizer que Orlando não é tão ruim assim no fim das contas. Além do mais parece que minha sorte finalmente está começando a mudar...

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Ah, e antes da gente entrar em casa, o Théo convidou a Ana e eu pra irmos a pequena festa de boas­vindas que o seu melhor amigo, um tal de Kevin, ia dar no sábado pra comemorar a volta dele pros Estados Unidos. Minha prima quase teve um treco quando o Théo disse o nome desse garoto e confirmou na mesma hora a nossa presença, mas eu disse que primeiro iria ver com a minha mãe se eu poderia mesmo ir. E depois de nós nos despedirmos do Théo e entrarmos em casa a Ana começou a pular feito uma doida dizendo que havia sido convidada pra uma festa do Kevin (seja lá quem esse garoto for!) Ainda bem que não tinha quase ninguém em casa pra ver a cena. Só minha irmã Alice, que ainda falava com as amigas pelo Skype e se desculpou com elas pelos gritos da Ana dizendo que os hambúrgueres dos McDonald’s daqui são alucinógenos. 20:02­ Não esquecer de descarregar no notebook da Ana as fotos que a gente tirou no Sea World hoje e também entrar no MSN pra fofocar um pouco com a Mari!

12 de Junho (domingo) quintal de tia Vivian.

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09:10­ Eu estou totalmente falando sobre o convite do Théo com a minha mãe... É. Por telepatia! Sendo sincera agora, ela nunca vai me deixar ir numa festa desse tipo, ainda mais depois da mamis ter visto todos aqueles filmes antigos (ok, apenas partes) da saga “American Pie”. Ela acha que os garotos americanos não passam de um bando de animais hiperassexuados constantemente em busca de acasalamento e festas uma mera desculpa social pra se entrar em coma alcoólico. Eu sei que é exagero dela, mas minha mãe está sempre com o alarme de “perversão” ligado na cabeça, então as possibilidades de eu ir a essa festa do amigo do Théo são mínimas. Além do mais, aposto que o Théo não vai nem sentir minha falta lá, dado o pequeno harém americano cheio de Megans e Zoeys que ele tem. Nem sei como contar pra Ana que eu não vou à festa. Ela parecia tão animada. P.S.: Hoje é dia dos namorados no Brasil, mas aqui nos Estados Unidos se comemora em outra data, 14 de fevereiro. Melhor assim! Não agüentaria ficar nesse país e ainda por cima vendo casaizinhos apaixonados fazendo programinha a dois enquanto eu estou às traças. Se bem que eu não deixei de ficar meio deprimida com a data. O Vini até reparou a minha cara de velório e perguntou o que ele poderia fazer por mim. Eu agradeci, mas disse que nem um caminhão de flores iria melhorar meu humor. Então ele disse que compraria dois... Ai, o Vini é tão piadista!

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11:10­ Não! Ela não fez isso! Fez? Meu Deus, como ela consegue? Sim, porque uma coisa é você inventar uma mentirinha inocente que não fere ninguém, outra é você tramar uma verdadeira teia imbricada de mentiras! E foi isso que a Ana fez pra convencer minha mãe e a dela a nos deixar ir á festa do Kevin. Ou nas palavras da minha prima “a uma mini festa do pijama na casa da melhor amiga dela, a Brittany, para apoiá­la e confortá­la nesse momento de dor pela morte de seu avozinho há alguns dias.” O pior é que a mentira descarada colou! Só que o único detalhe dessa coisa toda é que o avô da Britt morreu vinte anos atrás! VINTE ANOS! Isso significa que o velinho a essa altura já virou pó coitado! A Ana decididamente não tem escrúpulos, e eu juízo por participar de uma armação tão baixa como essa. Onde está aquela garota boazinha e inocente de Estrela que em raras ocasiões mentia pra mãe e o máximo de maldade que fazia era tentar afogar a prima na piscininha que não tinha nem 10 centímetros de água, hein? Morta e enterrada igual ao pobre vovozinho da Brittany? Pois é! Lista VIP do inferno que nada! Eu vou é passar a eternidade por lá limpando os banheiros com uma escova de dentes!

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15:30­ Eu estava agora a pouco deliberadamente pensando em inventar uma hepatuberculose viral tipo D ou qualquer outra doença altamente contagiosa e falsa para não ir a festa, quando o Théo ligou perguntando se eu já tinha pedido permissão pra minha mãe, porque ele precisava saber o número certo de pessoas que realmente iriam, já que o tal Kevin disse a ele que não poderia fazer nada muito grande devido ás regras do condomínio onde ele mora. Nisso, eu movida por uma estranha força vinda sabe lá Deus de onde, disse que a Ana e eu apareceríamos na festa com certeza! (Um minutinho só que eu vou pegar minha consciência ali no lixo, tá?) O Théo pareceu animado ao telefone, mas depois disse uma coisa totalmente sem cabimento. Achei até que eu é que tivesse me confundido por causa da ligação barulhenta (ele devia estar na rua ou coisa assim), mas acho que foi isso mesmo: “Vermelho ou rosa?” ele perguntou do nada. “Hein?” “Vermelho ou rosa?” ele insistiu. “É que eu estou aqui com a minha irmãzinha escolhendo uma coisa pra minha madrasta e quero sua opinião.” “Ah, mais aí depende. Escolha do quê?” eu falei. “Coisas de decoração... Só diz ‘vermelho’ ou ‘rosa’, Babi.” Eu pensei um pouco e respondi “Rosa?”. E então ele respondeu “Ok. Muito obrigada pela ajuda.” e depois de se despedir desligou. ?????????????????????????

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Primeiro a Ana fica cheia de mistérios, depois o Théo me faz uma pergunta super louca... Deve ter alguma coisa a mais na água de Orlando. Bem que eu achei esse negócio de poder beber direto da torneira muito estranho. “Não tem problema não, é limpinha!” a minha tia disse sobre a água. Sei! E depois metade da cidade começa a falar coisas sem sentido e vira zumbi! 18:05­ Mamãe, Dani e tia Vivian acabaram de sair pra ir ao culto da igreja brasileira que ela freqüenta aqui em Orlando. Meus primos não foram, pois disseram que preferiam ficar fazendo companhia pra Alice e pra mim, mas a verdade é que eles não fazem muito o tipo “religiosos” e qualquer desculpa pra cabular a igreja é válido pra eles. Espertinhos... 20:10 ­ Não acredito no que aconteceu agora a pouco. Não, não dá pra acreditar! Eu devo estar sonhando! Acho que meu coração vai sair pela boca de tanto emoção. Eu preciso me acalmar. É, é isso, eu tenho que ficar calma pra conseguir processar esse buquê enorme de rosas cor de chá que o entregador deixou aqui há pouco mais de meia hora. Tinha até um cartão pequeno dentro, mas tudo que estava escrito era isso:

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Don’t be afraid if I’ll go crazy for you Don’t be surprised if I fall at your feet I don’t care about what they’ll think of me I don’t know what to do ‘Cause I’m falling for you. (Can’t live without your love)

Mais nada. Sem assinatura, sem dedicatória. Nadinha mesmo! Eu havia ganhado um buquê de flores ­pela primeira vez na vida ­ e nem sabia de quem era! Quero dizer, na hora eu pensei que tivesse sido o Vini, já que ele veio com toda aquela história de que compraria caminhões de rosa pra me alegrar, mas quando eu recebi o buquê ele pareceu tão surpreso quanto eu. Ficou até meio vermelho. Mas se não foi ele, quem mais poderia ter sido? Quem mais eu conheço aqui? Théo? Não, nem pensar! Aposto que foi engano. A Ana até sugeriu isso também quando o Vini pediu pra ver o cartão e ficou me interrogando se eu tinha algum admirador no Brasil, ao que minha irmã Alice falou que se eu tivesse um, esse garoto devia ser louco ou cego no mínimo. E é verdade. Quem em sã consciência iria se apaixonar por mim? A menina de sorriso metálico menos atrativa da face da terra? Com certeza o entregador deve ter errado o número da casa. Se bem que ele estava procurando por uma Bárbara pra

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entregar o tal buquê, mas como a minha irmã mesmo disse, esse nome é comum nos Estados Unidos. Tanto que daí vem o apelido da boneca mais famosa do mundo, a “Barbie”. Além do mais, o interior do cartão tinha uma música em inglês. Provavelmente vinha de algum americano. O fato de hoje ser dia dos namorados no Brasil foi só uma coincidência... Minha mãe, que chegou agora a pouco da igreja com Tia Vivian, reparou logo nas rosas que eu coloquei num vaso bem em cima do meu criado mudo. Eu expliquei que elas tinham sido fruto do engano de um entregador avoado e mamãe disse que a garota que iria receber devia estar muito triste agora, pois aquelas rosas chá eram muito bonitas. E vou te dizer, eram mesmo! E o perfume... hummm nem se fala. Pena que elas não eram verdadeiramente pra mim. Acho que nem vou comentar sobre isso no email que vou mandar pra Mari hoje. Se ela já ficou insinuando que o Théo tinha gamado em mim só por que eu contei a ela das gentilezas que ele me fez no avião e no Sea World, imagina o que ela não vai pensar dessa vez? Provavelmente que eu já arranjei algum namorado aqui e não quis contar pra ela!

P.S.: Mesmo não sendo pra mim, de qualquer jeito guardei o cartão. A Ana traduziu o conteúdo dele e eu achei tão romântico que não consegui nem pensar em jogar no lixo. Até resolvi escrever o significado da música nesse diário e colei o cartãozinho aqui (digo, na outra página): “Não tema se eu ficar louco por você

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Não se surpreenda se eu cair aos seus pés Eu não me importo com o que eles vão pensar sobre mim Eu não sei o que fazer Porque eu estou me apaixonando por você”

Ai, ai. Ainda estou suspirando...

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13 de Junho (segunda­feira)

09:23­ Eu totalmente amo ser despertada de um sono profundo pelo meu irmãozinho hiperativo, enquanto ele pula em cima da minha cama dizendo musicalmente: “Ô, Babiê. A­cor­da! Babi cara de me­le­ca, a­corda­a que a gente vai sa­i­ir!” Adorável. Mas sair pra onde, cara pálida? E será que dá pra parar de bancar o coelhinho da Páscoa na minha cama? Isso aqui não é pula­pula não! Que saudade do tempo em que eu tinha um quarto só pra mim... 09:24­ Ótimo. O Dani continua quicando ao meu lado...Se ele só chegar perto do vaso com as minhas rosas eu mando a criança pro Alaska! Se quebrar então... Porque será que a palavra “esterilização” não passou pela cabeça da minha mãe depois do meu nascimento, hein? 09:30­ Ok. Eu ainda não sei direito pra onde vamos, mas independente disso estou indo me arrastando pro carro do Vini.

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Alice perguntou se eu não tinha ferro em casa pra passar minha cara amassada. Eu disse que não, mas que estava considerando seriamente em comprar um rolo compressor pra passar sim, só que por cima dela! Pediu, né? Ah, cara! Eu nem tomei café direito e já tenho que agüentar essas gracinhas da Alice de manhã... E afinal, pra onde a gente vai? 09:34­ “Já estamos chegando, Vini?” o Dani perguntou. “Não.” 09:39­ “Já estamos chegando?” “Não.” 09:47­ “Já estamos chegando?” “Não!” 09:52­ “Já estamos chegando?” “Nãããããão!!!!!” 09:55­ “Já est...” “Já! Já! Já” meu primo respondeu aliviado, apontando pra direita dele “Olha o condomínio OakView ali!” E todos nós olhamos pro muro de tijolinhos vermelhos que exibia uma grande faixa amarela: “Community Garage sale

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This week 8 a.m – 2.pm”

“O que é uma garage sale?” minha mãe quis saber fazendo a mesma pergunta que eu tinha na cabeça. “Ao pé da letra significa “Venda de garagem” a Alice respondeu. “Ou em outras palavras, tia Valkíria...” a Ana começou “... uma oportunidade bem brega dos americanos se livrarem das tranqueiras que eles não precisam mais e de brasileiros, bobos como nós, comprarmos por preço de banana essas mesmas tranqueiras que nós também não precisamos”. “Oh, então são tipo os brechós que a gente vê no Brasil, não é?” minha mãe perguntou. “É, mas só que aqui você vê de tudo mesmo tia” a Ana acrescentou “Desde coisas usadas de cozinha até brinquedos.” “Maneiro!” o Dani disse dando um pulo supernanimado do colo da Alice. “E essa venda de garagem promete ser boa. Esse aqui é um condomínio de classe média alta” o Vini finalizou enquanto estacionava o carro já dentro do lugar. E foi aí, num evento totalmente casual e no meio de uma conversa mais banal ainda, que a minha mãe se virou pra mim do nada e perguntou: “Babi, e aquele seu amiguinho do avião? Você não o viu mais depois de terem se esbarrado no parque da baleia, não é?” “Que amigo é esse?” o Vini foi logo perguntando intrigado, olhando pra mim pelo espelho retrovisor.

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“Não sei direito. Qual era o nome dele mesmo, filha? Acho que começava com “t”, não é?” minha mãe perguntou fazendo força pra lembrar. “Ah, é. O Théo....“ eu respondi e “...AU!!!!”, não pude nem ao menos completar o que ia dizer, porque nessa hora fui atacada pela Ana, que me deu um doloroso beliscão disfarçadamente. “Não, ela não tem visto” minha prima respondeu por mim, me lançando um olhar altamente estranho “Também, Orlando é muito grande, tia Val! Talvez a gente nunca mais o veja.” Ela completou meio que pra fechar o assunto. “Oh, que pena. Seria bom pra Bárbara ir se enturmando com os adolescentes daqui. É sempre bom fazer novos amigos.” Mamãe disse enquanto abria a porta. O Vini ficou encarando a Ana e eu por um tempo, sentindo que tinha alguma coisa no ar, mas como a Alice e o Dani já tinham saído do carro ele resolveu se juntar aos dois. Minha prima Ana só cochichou um “depois eu te explico” no meu ouvido e saiu do carro também, me deixando mais curiosa ainda do que eu já estava. Mas afinal de contas, porque o Vini não pode saber sobre o Théo? Por que tanto mistério? E por que o beliscão da Ana ainda está doendo pra caramba? Ai ai ai....Vai ficar roxo! p.s.: Acho melhor eu sair desse carro logo de uma vez, antes que minha mãe me arraste daqui á força enquanto escrevo! 11:40­ É engraçado como essas vendas de garagem são um pequeno evento aqui nos Estados Unidos! Tem um bando de

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gente nesse condomínio agora e a maioria é de pessoas que vieram comprar as bugigangas semi­novas que os moradores daqui estão vendendo. Tudo fica em umas mesinhas improvisadas em frente a garagem do morador e com os precinhos em cima, e vou te dizer, a maioria das coisas sai por uma bagatela mesmo! Só pra se ter uma idéia, o Vini conseguiu negociar um controle quase novo pro Playstation 3 dele por apenas quatro dólares, minha irmã Alice comprou uma carteira original da Louis Vuitton por apenas nove e a Ana ( que inicialmente tinha dito com o nariz empinado que só gostava de comprar as coisas dela no tal shopping Millenia Mall) pagou vinte num par de sapatos Jimmy Choo da coleção passada, que por sinal ela me garantiu que vai usar na festa do Kevin e dizer que é “Vintage” se alguém perguntar alguma coisa. E quanto a mim... bem. Eu fiquei maluca com uma jaqueta que era nada mais, nada menos que o uniforme de Quadribol do Harry Potter! Tinha até escrito o nome Potter e o número dele atrás! A Ana disse que eu poderia ir ao parque do Universal Studios e comprar um casaco igualzinho aquele ­na parte que era especialmente dedicada ao bruxinho­ só que com a diferença de que esse seria novo em folha. Ao que eu disse que duvidava que saísse por menos de dez dólares como foi o caso do meu. E, além disso, a jaqueta estava praticamente nova porque o dono, que era um menino, a tinha usado só três vezes. Depois teve uma explosão de crescimento e no inverno seguinte já não cabia mais nele!

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Mas apesar desse verdadeiro “achado” quem saiu ganhando mesmo foi o Dani. Ele conseguiu comprar um patinete por dez dólares, um conjunto de patins, joelheiras e capacete por nove e ainda levou de sobra uma boa grana da minha mãe! É que ela tinha dado pra ele só cinco dólares pra gastar na garage sale, mas como o patinete e tal saia por muito mais do que isso, o Dani simplesmente virou pra ela e falou: “Não, mamãe. Um Abbe Lincon só não dá. Eu quero é um Benjamin Franklin!” ele disse se referindo as notas de dólar. É que aqui cada valor vem com a cara de um ex­presidente americano estampado. Minha mãe ficou tão orgulhosa que o pestinha estava se adaptando rápido ao país, que deu mesmo um Benjamim Franklin pra ele (detalhe que essa é a nota de CEM dólares!!!!!!!) É mole? O garoto ainda nem saiu da primeira dentição e já sabe como extorquir uma pessoa! Sem mencionar o fato de que não vive nem há quinze dias no país e já consegue diferenciar as notas americanas! Enquanto que eu... Rá! Não consigo nem falar “Me passa o ketchup, por favor?” Vergonha. Mais tarde Ana e eu fomos dar uma volta no resto do condomínio pra ver o que tinha à venda nas outras casas, já que mamãe estava superentretida negociando (com a ajuda da Alice, óbvio) uma cafeteira que mais parecia uma mini nave espacial e o Vini experimentando uma bola de basquete

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autografada, sei lá por quem (mas pelo visto muito importante) do time Orlando Magic. Ana e eu demos uma volta num pequeno lago que tinha no condomínio e decidimos olhar umas coisas que uma garota morena estava vendendo bem na frente da casa dela. Não era nada demais, só alguns ursinhos velhos e muita tranqueira pra falar a verdade, mas eu me senti incomodada porque a garota ficou olhando fixo pra gente o tempo todo. Parecendo estar nos analisando ou algo assim. Só depois, quando a Ana disse pra gente ir embora, a garota deu um grito: “Eu sabia! Vocês são brasileiras também!” e foi logo se apresentando toda empolgada. O nome dela era Michelle e antes de se mudar pra Orlando, há uns dois anos atrás, ela e os pais moravam em Águas Claras, uma cidade satélite de Brasília. Achei engraçado como nesse país a gente encontra um bando de brasileiros e já sente uma familiaridade absurda com eles. É só falar da terrinha tupiniquim e todo mundo fica conversando como se fosse amigo de infância. Parece que o Brasil é um estado só. Não há regionalismos, sotaques, cultura local ou nada que diferencie a gente. Pisou aqui somos a mesma coisa, somos só brasileiros e ponto final! A Ana até me disse de brincadeira que é mais fácil achar um Brasileiro em Orlando do que um chinês em Pequim. Eu sei que ela estava exagerando, mas no fundo minha prima tinha um pouco de razão. Seja visitante ou morador, a gente sempre topa com um brasileiro em cada esquina daqui. Ficamos conversando um pouco com a Michelle sobre isso e ela acabou perguntando se nós éramos imigrantes também. A

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Ana respondeu que sim, só que ela tinha o Green Card enquanto que eu tinha entrado no país com visto de turista apenas. E foi aí que a segunda ficha finalmente “caiu” no meu cérebro... Tin­dlim! Eu era uma imigrante! Não igual aquele povo que entra ilegalmente pelo deserto lá do Texas, correndo o perigo de levar uma bala na bunda ou morrer de sede e hipotermia, mas de qualquer forma EU ERA UMA IMIGRANTE! Senti uma coisa tão estranha por dentro depois dessa constatação... Interrompendo meus pensamentos, mas até parecendo que tinha lido eles, a Michelle disse que infelizmente estava ilegal no país, porque o contador incompetente do pai dela esqueceu de revalidar o visto deles por mais seis meses. Mas ela disse que o pai já tinha entrado com um recurso na justiça americana pra ver se dava um jeito nessa situação complicada e que agora a família estava apenas esperando o veredito. Só que a parte triste da coisa toda é que, por causa da ilegalidade deles no país, a Michelle disse que raramente saia do condomínio com medo de esbarrar com a polícia e eles a deportarem. Segundo ela, se te pegarem aqui com o visto vencido os caras não te deixam nem ir em casa pra você arrumar as malas. Da delegacia tu vais direto pro aeroporto e tchau! É literalmente chutado do país com uma mão na frente e outra atrás! Sem falar que em alguns casos eles te dão remédios antes da hora do embarque, a maioria desses pra esquizofrenia, e desse jeito te põem dopadaça num avião rumo ao seu país. Me deu um arrepio só de pensar nisso...

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A gente ainda ficou conversando com a Michelle mais um tempinho sobre ilegalidade e tal, até que eu e a Ana nos despedimos (sem comprar nada) e fomos fazer o caminho inverso ao do lago pra tentar encontrar mamãe e o resto da família. Como eu percebi que, por causa da Michelle, a Ana tinha esquecido do assunto sobre o Théo (ou fingido, vai saber...) fui eu quem puxei a conversa antes que a gente chegasse perto do Vini. “Então. Você vai me contar que história é essa do seu irmão não poder saber sobre o Théo ou não?” O engraçado é que minha prima não ficou surpresa por eu estar levantando o assunto, ela apenas suspirou e falou pra gente sentar em baixo de uma árvore que tinha bem perto do tal lago enorme. Eu não gostei muito da idéia de início, pois pra mim podia sair um jacaré ou crocodilo a qualquer momento dali (ainda estava com aquela bendita pesquisa que fiz antes de vir pra cá na cabeça), mas não tive escolha se não acompanhar minha prima. “A questão Babi...” ela começou enquanto se sentava. “... é que o Vinícius odeia o Théo.” “Peraí! Então eles já se conhecem?!” eu perguntei meio embasbacada, quase cuspindo meu aparelho pra fora da boca. “Há anos...” a Ana respondeu com uma cara estranha. E então ela começou a contar a confusão que tinha acontecido entre os dois. Segundo minha prima o Théo, o Vini e ela estudavam na mesma escola a, Gotha Middle School, sendo que o Théo e o Vini eram da mesma turma na época.

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Um dia o Vini disse pra professora que precisava ir á enfermaria da escola e não voltou mais pra sala. O Théo também pediu um passe, só que pra beber água, e acabou passando pelo Vini que estava parado igual a um maluco no corredor. Minutos depois disso, quando o Théo já estava voltando pra aula, o alarme de incêndio disparou e todo mundo começou a correr em pânico pra fora das salas. Só depois de um tempo da confusão ter diminuído e dos bombeiros terem chegado, é que foram perceber que não havia fogo nenhum. Ai então começou a “caça ás bruxas” pra saber quem é que tinha disparado intencionalmente o alarme porque, segundo a Ana, isso é uma coisa muito grave aqui nos Estados Unidos! Todos os alunos que tinham recebido passe naquela hora foram interrogados pelo diretor da escola e o Théo contou que as únicas pessoas que ele tinha visto no corredor foram um japonesinho da 7 série e o Vini. E aí a culpa de tudo logicamente caiu sobre o Vini porque ele era repetente, imigrante, andava com aquelas roupas todas esquisitas de roqueiro e já tinha sido expulso de uma escola de Orlando uma vez, por ter dado um soco num colega de sala que tinha chamado ele de “latino idiota”. Com isso o Vini foi expulso da Gotha Middle, mesmo ele jurando que não tinha culpa alguma na história (segundo a Ana não teve mesmo), e até hoje ele acha que o Théo foi o responsável pela expulsão dele. Por isso os dois não podiam nem se ver. Se bem que, segundo minha prima, eles estavam tão diferentes agora que provavelmente nem se reconheceriam mais (pelo menos não se reconheceram quando eles passaram

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bem perto um do outro no Ale House), mas ela disse que não valeria à pena arriscar. De imediato eu fiquei realmente triste pelo Vini e também um pouco pelo Théo, que acabou ganhando um inimigo mortal e fama de dedo duro (mesmo não sendo um), mas eu logo me lembrei do que a minha prima tinha dito a pouco e fiquei com a pulga atrás da orelha. O que a Ana não poderia arriscar, afinal? “Calma. Não é o que você está pensando, não.” ela disse quando eu a interroguei sobre isso. “Eu to com segundas intenções sim, mas não é com o Théo. É com o Kevin.” Ela completou. “Você tem uma queda por esse tal garoto aí?” “Queda? Queda não. Eu tenho é um tombo!” ela disse admitindo, mas ficando vermelha. O que era engraçado, porque a Ana parece sempre tão confiante que ninguém conseguiria imaginá­la com vergonha de alguma coisa. “E como providencialmente você ficou ‘amiga’ do Théo” ela continuou falando, enquanto fazia aspas aéreas com os dedos ao dizer a palavra ‘amiga’. “... eu tenho chances de chegar mais perto do Kevin. Por isso é que venho tentado manter o ‘cabeça de cogumelo’ do meu irmão longe do seu amiguinho. Porque sem Théo, sem Kevin. Entendeu?” É, agora fazia sentido mesmo... Mas eu só não saquei a questão das aspas aéreas quando ela falou a palavra “amiga”. E muito menos tive a chance de esclarecer isso, porque a Ana colocou os olhos em uma casa um pouco mais a frente ao lago e simplesmente gritou quando avistou tio Oscar fincando uma placa escrito “sale” no jardim dela.

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Eu sabia que ele era corretor de imóveis aqui na Flórida e especializado em atender brasileiros e todos os outros tipos de latinos que quisessem comprar casas pela área de Orlando, mas não achava que poderia encontrar com ele assim, do nada, em pleno condomínio do outro lado da cidade. Foi uma surpresa total e pra todo mundo. Tanto que quando nós nos aproximamos, nosso tio levou um baita susto ao nos ver. Nós brincamos falando sobre a careca dele que estava “brilhando” de suor (afinal ele tinha fincado a placa sozinho naquele jardim, ainda por cima debaixo de um sol escaldante) e ele disse que tinha sido até bom a gente ter se encontrado ali, porque precisava falar com a minha mãe a respeito de uma vaga de emprego. Como eu sei que minha mãe está ficando desesperada pra conseguir um, Ana e eu fomos correndo dar a notícia a ela antes mesmo que tio Oscar pudesse entrar no carro dele e alcançar a gente. E agora os dois estão conversando sobre o tal “job”, como a Ana disse em inglês, e eu estou sentada debaixo da sombra gostosa de uma árvore na entrada do condomínio, tomando conta da cafeteira espacial que mamãe conseguiu comprar por vinte dólares, enquanto vejo meu irmãozinho se esborrachar de patins na minha frente (calma, foram só uns arranhões. Ele vai sobreviver). Pelo menos o dia foi bem proveitoso. Comprei um uniforme de quadribol do Harry por uma bagatela, descobri o mistério que cercava o Vini e o Théo, e agora é só esperar chegar o dia da festa do Kevin. Porque fora isso não tem mais nada

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realmente legal pra acontecer na minha vida e, segundo a Ana, essa festa vai ser o evento do ano! Ai, ai. Já estou me vendo no meio daquela americanada toda, sem saber falar um pingo de inglês e ainda por cima com a maior cara de tacho do mundo! Acho que vou seguir o conselho dos pingüins do filme Madagascar: “Apenas sorria e acene, sorria e acene...”

13 de Junho (terça­feira) Closet do quarto de Hóspedes

15:31­ A Mari me ligou tem algumas horas e nós ficamos por quase 50 longos minutos no telefone. A dona Sílvia, mãe da Mari, com certeza vai fazer picadinho dela e a “comer com farofa” quando vir a conta telefônica, mas não foi minha culpa. A gente precisava realmente botar o papo em dia e toda vez

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que eu falava pra Mari desligar, ela se recusava dizendo que ainda não tinha matado suficientemente as saudades de mim. Eu, por minha vez, também não estava nem um pouco a fim de desligar (só fiz isso por forças externas que me obrigaram!). Ouvir de novo aquela voz familiar da minha melhor amiga me acalmava tanto! Era como se ela estivesse me ligando da casa dela, bem no final da minha rua, e mais tarde eu fosse dar uma passada lá pra estudar o último exercício de Química e depois ficar até tarde vendo alguma maratona de séries no canal Sony. Bons tempos... A conversa entre nós duas ia muito bem (a Mari sempre tentava me fazer rir e absolutamente conseguia) se o assunto, que até então era sobre a nova dieta maluca da Isabela, não tivesse descambado pro lado do Théo. Não sei por que, mas a Mari estava ficando particularmente interessada nisso e eu não consegui desviar a conversa pra qualquer outra coisa por mais que tentasse. Quero dizer, na verdade eu meio que sabia sim o porquê de tanta vontade dela em falar sobre ele... Mari: Babi, o garoto é supergracinha com você no vôo, insiste em levar vocês ao parque, te chama pra festa de boas vindas dele e isso porque ele sofre da ‘Síndrome de Gasparzinho o fantasminha camarada? Eu: Síndrome do quê? Mari: É. Tipo, chega pra qualquer um e pergunta ‘Você quer ser meu amiguinho?’ Ah, por favor, né? Claro que não!

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Eu (falando bem baixo): Então você acha mesmo que ele pode estar querendo ser mais do que amigo? Mari: Óbvio! Ninguém faz tudo isso por uma garota que acabou de conhecer, a não ser que esteja realmente interessada nela. Amizades não nascem instantaneamente assim. Eu: Mas nós ficamos amigas meio que do nada também... Mari: Acontece que você já estudava no mesmo colégio que eu quando veio morar na minha rua. A gente já meio que se conhecia de vista. E, além disso, nós somos meninas! Essa coisa de menino ficar amigo de menina é meio difícil, sempre rola uma tensão sexual. Eu (olhando pro sofá e me certificando que o Dani e a Alice estavam prestando mesmo atenção no desenho do Cartoon Network): Amiga, eu posso te assegurar que não tem nada sexual rolando entre eu e o Théo! Mari: Ai, sua tonta. Quando eu digo isso é claro que não é no sentido literal da palavra, né?! Estou falando da tensão entre os sexos. Masculino e feminino... Eu: Ah... Eu sabia disso... Mari: Ahã... Sei! Risos Eu: Ai, será mesmo que ele está a fim de mim? Mari: Estou quase 100% certa disso. E eu se fosse você deixaria de ser boba e aproveitaria, porque ele é um gato! Lembra tanto aquele garoto do Smallville, o que fazia o Super Homem adolescente... Só que o Théo é mais magrinho.

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Eu (sem entender nada): Peraí! Como você sabe disso? Mari: Dããããã! Você me falou o nome e o sobrenome dele uma vez, então eu procurei na internet ora! Se bem que foi um “parto” achar o garoto, porque o nome dele não é Theodoro não. Se escreve “Theodor”. Acho que a pronúncia em inglês deve ser “Tiodor” ou alguma coisa assim... Eu (boquiaberta): Mari, sua danada! Fuçou a vida do menino toda, é? Mari: Claro! Acha que eu vou deixar minha melhor amiga ser enrolada por qualquer um só porque é bonito, engraçado, tem pintinhas charmosas no pescoço, uns olhos azuis lindos e parece até o... Como é o nome daquele garoto de Smallville mesmo hein? Eu: Tom Welling. Mari: é, isso! Esse gostoso aí! Risos Eu: E o que mais você descobriu, senhorita detetive? Mari: Ahhhhh! Tá se remoendo por não ter tido a idéia de procurar o perfil dele na internet antes, né? Eu: Para de enrolar, Mari! Agora que você já fez o trabalho fala logo! Mari: Ok. Bom, ele... Mas aí justamente quando ela iria me dar uma informação que com certeza seria mega importante (ou não), minha mãe entrou toda avoada pela porta da sala e fez sinal pra eu

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desligar. Eu respondi com a cabeça que não, afinal essa era a primeira vez que eu falava realmente com a Mari desde que cheguei aqui em Orlando, mas mamãe pegou o telefone da minha mão, se despediu da Mari por mim dizendo que tinha uma coisa muito importante pra falar comigo e desligou. Eu fiquei terrivelmente chocada (pra não dizer irada), mas mamãe estendeu uma pequena caixinha preta pra Alice e pra mim pedindo toda empolgada pra que nós abríssemos. A meio que contragosto fiz o que ela mandou e vi que tinha um celular ali dentro, não desses de última geração, mas um daqueles bem básicos (pra não dizer meio feioso). “Se isso aqui tiver pelo menos Bluetooth eu sou a rainha da Inglaterra!” a Alice disse toda sarcástica, mas mamãe não ligou nem um pouco pro comentário dela. Começou a explicar que o motivo de ter comprado aqueles celulares é porque ela queria ficar em contato com a gente todo o tempo agora que... (Pausa dramática) ...ELA TINHA CONSEGUIDO UM EMPREGO! Apesar de ainda estar meio chateada por ela ter desligado o telefone na cara da Mari na hora fiquei feliz pela mamãe. Ou melhor dizendo, nos minutos em que ela disse isso, porque depois veio a notícia estranha... “Que legal mãe! Você vai dar aulas onde?” eu perguntei toda inocente, ao que ela respondeu: “Aula? Que aula?! Querida, eu vou trabalhar como corretora na mesma imobiliária do seu tio Oscar.” Acho que nem preciso dizer que não entendi nada naquele instante. Minha mãe, uma criatura formada em Letras

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Espanhol­Português por uma faculdade FEDERAL e que ainda por cima havia feito pós graduação na ARGENTINA ia trabalhar vendendo casas????? Tá, tudo bem, ser corretora é até legal e além do mais, mamãe só exerceu a profissão de professora durante poucos anos, porque aí veio a Alice e ela preferiu seguir a “carreira de mãe” depois disso, virando uma verdadeira “madame” em tempo integral. Só que poxa, ela tem uma formação específica! Sem falar que é tão tímida quanto eu e sempre foi péssima pra vender coisas. Nem cartelas de bingo pra ajudar as obras de caridade da igreja ela conseguia fazer com que a vizinhança comprasse! Imagina uma casa?! Mais aí ela veio toda: “Ah, minha filha! Se quisermos viver em Orlando nós vamos ter que nos reinventar daqui pra frente, e não se esqueça que a reserva de dinheiro que a gente conseguiu com a venda do carro não vai durar a vida toda. Eu preciso ganhar algum dinheiro logo pra colaborar com as despesas da casa. Não quero mais mexer na poupança de vocês três.” É, no final das contas foram argumentos realmente razoáveis os dela... Acho que tenho uma mãe corretora a partir de agora. Ah, e de acordo com o manual que veio na caixa, um celular da operadora AT&T também! O plano é de meros vinte dólares, mas não tem problema. Eu não tenho quase ninguém pra ligar mesmo. A Alice foi quem não gostou muito do celular, disse que queria um Blackberry igual ao que ela tinha no Brasil e não um Blackbrega como aquele.

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Ahã. Espera sentada que em pé vai cansar filha. Seus tempos de “patricinha” já eram! 15:50­ O Vini acabou de chegar aqui em casa e adivinha? Ele conseguiu um emprego também, no turno da noite em um Mcdonalds! Nem sabia que ele andava procurando por um! Mas aí é que está. Meu primo me disse que estava fazendo aquilo porque precisava de dinheiro extra pra pagar a tia Vivian o que ela gastou com o conserto da lanterna do Honda Civic dele, pois não queria ficar devendo nada à mãe. Ou seja, o Vini vai ter que trabalhar por MINHA CAUSA! E sabe o que é mais incrível? Ele confessou que sumia às vezes durante o dia pra procurar emprego e não comentava com a gente pra que eu não me sentisse culpada. Muito legal da parte dele, eu sei, mas agora estou me sentindo pior ainda! Tenho que recompensar o Vini de alguma maneira, coitado. Ele não merece pagar “literalmente” por um erro meu.

14 de Junho (quarta­feira)

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Suíte de tia Vivian ( dia da festa!!!!!)

10:40 – A Ana começou a “operação festa” hoje bem cedo depois que tia Vivian foi pro trabalho. E isso, é claro, me incluía. Assim que minha prima acordou ela foi ligar pra Britt e combinou direitinho a história sobre o tal “avô defunto” caso tia Vivian resolvesse ligar pra lá. Depois arranjou o telefone da companhia de táxi através do serviço de informações, pegou a chave reserva da Tinturaria de tia Vivian e foi procurar a mochila dela da escola. Minha prima ainda não me contou todos os detalhes sórdidos do plano, mas eu já sei que vêm algo grande por aí! Agora ela está preparando algumas coisas na cozinha. Acho que é uma máscara esfoliante caseira e não sei mais o que. Vamos esperar pra ver... 10:41 – Bom, seja lá o que for fede pra caramba! 11:58­ Estou neste exato momento no banheiro enorme de tia Vivian, só de roupão, ouvindo “Party in the USA” da Miley Cirus que sai do IHome rosa da Ana, e com a cara toda lambuzada de uma mistura melequenta feita com iogurte natural e mel. Minha prima, que está aqui comigo, me garantiu que isso vai hidratar minha pele e atrair todos os garotos na festa.

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Eu respondi a ela que contanto que isso não atraísse todas as abelhas da vizinhança eu já estava satisfeita. Antes disso a Ana me torturou um pouquinho depilando as minhas pernas, porque segundo minha prima “Perna peluda é igual a nota ruim: horrível de se mostrar e por mais que você tente esconder tem sempre alguém que vai ver!” Eu ri com a “filosofia depilatória rimante” dela e nisso meu primo Vini entrou no banheiro pra saber o que tanto a gente fazia há horas por lá. A Ana, que estava com uma máscara esfoliante da Aveda (a poção mágica dos produtos de beleza), deu um verdadeiro “piti” e expulsou ele aos berros o chamando de cabeça de cogumelo, playmobil, abajur e por aí vai. Amor fraternal é lindo, não? Depois disso minha prima fechou a porta, nos trancou à chave lá dentro, pegou uma tesoura numa gaveta na pia de tia Vivian e veio pra cima de mim com um sorriso maníaco altamente suspeito. Quase morri de susto, afinal eu pensei que a Ana ia finalmente descontar aquela vez que eu quase afoguei ela na minha piscininha de plástico, mas minha prima apenas pegou o meu cabelo e disse: “Tá achando que é quem com essa juba enorme, Babi? A Rapunzel?” Eu ainda estava tentando processar se aquilo havia sido um elogio ou um insulto (agora pensando bem, acho que foi mais pro lado do insulto mesmo) quando a Ana cortou uma mecha do meu cabelo. !!!!!!!!!!!!!!!!!!! Aí, eu pirei sério! “O que você está fazendo sua maluca?!” disse aos berros, correndo pra me trancar dentro do Box de tia Vivian.

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“Só tentando dar um corte nesse cabelo de Barbie caipira que você tem. Será que dá pra sair daí?” Não. É claro que não dava! E eu disse a ela que não ia colocar os pés pra fora do Box enquanto estivesse segurando aquela tesoura, mas a Ana pediu pra que eu confiasse nela e me assegurou que no final eu ia ficar tão bonita que o Théo não ia parar de olhar pra mim na festa. Eu acabei saindo do Box, não pelo o que ela tinha dito a respeito do Théo (ele já tinha bastantes garotas pra olhar, se quer saber!), mas porque eu tinha certeza de que a Ana não ia desistir até conseguir o que queria, então eu dei passe livre a ela pra fazer mesmo o que quisesse com o meu cabelo (contanto que não fosse nenhum corte no estilinho que o Johnny Depp fazia nos arbustos em “Edward mãos de tesoura”). E a Ana fez realmente o que queria com o meu cabelo... Só que pra ser sincera ainda não me olhei no espelho. Estou sem coragem até agora de saber como ficou. Tipo, medo de ver e cair dura no chão de susto, sabe? Segundo minha prima meu corte é totally cool e eu vou arrasar corações hoje á noite. Mas pra ser sincera eu não acreditei muito nela não. Cara, eu já nasci zoada! Não vai ser um corte de cabelo, a retirada de células mortas de meu rosto ou a derrubada da Mata Atlântica dos meus membros inferiores que vai me fazer virar a Miss Estados Unidos! [em Off] Será que eu tinha mesmo cabelo de Barbie caipira?

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13:00 – Estou pensando na produção pra hoje a noite... Será que eu devo ir com aquela blusinha rosa chá de seda que eu comprei na Guess ou com aquela bata da Forever 21? Ai, que dúvida cruel! Pelo menos a calça já está decidida. Vou usar aquela estilo “curvy” da Levi’s mesmo. 20:40­ É isso. Já conseguimos passar pela primeira trincheira: mamãe e tia Vivian! As duas estavam na sala, assistindo a novela das sete pela Globo Internacional, quando nós nos despedimos pra irmos à casa da Brittany. Minha mãe quase me matou de susto nessa hora, pois eu nem bem tinha atravessado o quintal quando ela gritou meu nome. Tremi na base, rezei pra todos os santos dizendo que era muito nova pra morrer, mas graças a Deus mamãe só queria me dar o aparelho que eu tinha esquecido dentro da caixinha em cima da mesa de jantar. Na verdade foi totalmente intencional esse “esquecimento”, mas pra disfarçar peguei o aparelho, enfiei na boca e sai correndo porta à fora com a desculpa de que estava atrasada. A segunda trincheira foi o Vini. Quando nós já estávamos paradas bem em frente à casa da Brittany ele perguntou a Ana o que ela estava escondendo na mochila da escola ao que minha prima respondeu na maior cara de pau ser um tabuleiro do jogo War, pra gente brincar um pouco (ahã, invadir Sumatra depois de consolar sua amiga por horas devido ao seu vovozinho morto é realmente a “cereja no bolo” da diversão!) Claro que aquela desculpa não tinha como ser mais tosca, só que o Vini acreditou (cara, a Ana devia ser atriz!) e foi

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embora pro trabalho sem falar nada. Então minha prima chamou um táxi pelo celular e agora nós estamos aqui na Tinturaria de tia Vivian (que está fechada pros clientes) terminando de nos arrumarmos pra festa. Tenho de admitir que estou começando a ficar meio nervosa agora. Mesmo eu já tendo me olhado no espelho umas cinqüenta milhões de vezes e visto que a Ana não tinha feito nada pavoroso no meu cabelo (só diminuiu o comprimento e fez uma franja curta) ainda estou me sentindo um pouco estranha com esse corte e a produção toda que minha prima “montou” em mim. Apesar dessa blusa que estou usando agora ter essa cor rosa­chá linda (bem parecida por sinal com a das rosas que eu recebi por engano) acho que ela é decotada demais pro meu gosto (mesmo que eu não tenha quase peito nenhum pra mostrar). E esses brincos de argola pendurados nas minhas orelhas? Dá até pra brincar de bambolê com eles! Será que o Théo vai achar estranho quando me ver toda produzida desse jeito? E será que a Mari está realmente certa sobre ele gostar de mim? Não que eu esteja me importando com isso... Mas será? 20:52­ Chegou o táxi que a Ana pediu. Ai, acho que vou vomitar! Oh, não , não posso! Estou com o meu aparelho! Ei, o que é que eu faço com isso por sinal? Não quero aparecer na festa de sorriso metálico. Por outro lado também não posso deixar ele largado aqui, sem ser dentro da caixinha...

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Ah, já sei! Vou enrolar ele num lenço de papel e colocar no bolso de trás da calça. Depois quando chegar em casa é só colocar de volta na boca e pronto! Mamãe nunca vai saber que eu o tirei. 20:54­Opa, o taxista já buzinou pela segunda vez. Agora eu tenho que ir mesmo. Festa do Kevin aqui vamos nós!

Ainda 14 de Junho (condomínio do Kevin)

22:40­ Conclusão da noite: Megan é uma bruxa, Zoey é uma vaca, o Théo é um galinha e eu sou uma perfeita idiota! Porque isso? Não sei, talvez seja pelo fato de que chamar uma garota pra sua festa de boas vindas, onde também vai estar sua namorada malvada, não é a coisa mais decente que um menino pode fazer! Mas eu explico, pois tenho todo tempo do mundo aqui e não vou sair desse balanço enquanto minha prima não voltar (ou pelo menos enquanto os donos da casa de onde eu estou ocupando o jardim não aparecerem). Sabe o que é mais engraçado nisso tudo? As coisas estavam dando tão certo nessa noite, que eu pensei ter espantado de vez os meus “clumsy moments”, como minha prima diz.

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A Ana e eu nem precisamos do mapa que o Théo (argh!) mandou por email ontem à noite pra que a gente conseguisse encontrar a casa do Kevin. Ela era a única dentro do condomínio Lake Vilma que estava tocando uma música superalta e tinha fileiras enormes de carros estacionados em frente, inclusive uma chamativa moto R1 verde e branca que a Ana comentou ser o sonho de consumo do Vini. Então foi bem fácil achar a casa no final das contas. Nós tocamos a campainha rezando pra que alguém a ouvisse no meio daquela barulheira toda e, atendendo ao nosso pedido, um garoto moreno, de brinco e cabelo arrepiado, abriu a porta. “Sorry. Do I know you?” ele perguntou tentando reconhecer a gente. “Probably not.” A Ana disse naquele inglês perfeito e maravilhoso dela “I’m Ana Frieling and this is my cousin Bárbara Henkels. Théo invited us to the party”. “Ah, é... Ele me falou que vocês vinham!” o garoto respondeu surpreendentemente em português. “Mas vão entrando aí enquanto o Théo não chega. Ah, e a propósito. Meu nome é Fábio.” “Já vi que pelo sotaque é mineiro, né?” a Ana concluiu. “Yeap! De BH. Me mudei pra cá tem uns cinco anos.” Ele disse sorrindo de orelha a orelha pra minha prima. “E aí? Posso oferecer alguma bebida pra vocês? A gente tem de tudo: Cerveja, Red Bull, ‘Fada Verde’, refrigerante...” “Refrigerante está bom.” a Ana respondeu antes que eu pudesse perguntar pra ela o que era ‘Fada Verde’.

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O tal Fábio disse que ia pegar duas latas de Coca pra gente, falou pra ficarmos à vontade e foi em direção a cozinha, nos deixando na sala, no meio daquelas pessoas todas que eu não fazia idéia de quem eram e só falavam em inglês. (Deus, seria demais pedir pra apertar a Tecla SAP desse povo?) Apesar do Théo (argh!) ter dito pra gente que ia ser uma festa pequena por causa das regras rígidas do condomínio, não era isso o que parecia estar rolando naquela casa. Tinha gente pra todo o lado que você olhasse, inclusive pessoas sentadas nos degraus da escada que levava ao segundo andar. Uns garotos riam, outros conversavam, um grupinho de meninas dançava mais adiante ao som de ‘Club Can’t handle me’... Era tanta animação, que não perdia em nada praquelas festas fictícias que a gente vê nos filmes americanos. A Ana, no entanto, não estava nem aí pra isso. Parecia bem mais preocupada em procurar pelo Kevin e quase teve um treco quando o viu. “Ai meu Deus, olha lá ele!” ela disse apontando discretamente pra um cara alto, cercado por um grupinho de garotos fortões. E ele era do jeitinho mesmo que minha prima tinha falado: loiro, atlético, olhos verdes, bochechas meio rosadas por causa da pele absurdamente branca. Não me admira que a minha prima gostasse do Kevin. O garoto era um gato! “Aqueles caras em volta dele são o que a gente chama de ‘jocks’ aqui. Os atletas da escola. Todos eles fazem parte do time de futebol americano da Olympia High, inclusive o Kevin. Ele é o quarterback e é tão bom, que já foi até sondado pela Universidade da Flórida pra quando terminar o colégio jogar

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pelo time deles, os Flórida Gators. “ a Ana disse praticamente babando. Eu soltei um “Ah...” meio que pra dizer alguma coisa e continuei olhando em volta. Não fazia idéia do que era um quarter­sei­lá­oquê e muito menos tinha visto uma partida de futebol americano na vida. Então virei os olhos pro quintal da casa, que dava pra ser visto, pois a porta de vidro de correr estava aberta, e foi aí que eu a avistei, sentada perto da piscina com um bando de loiras clones. Era a mesma garota que o Théo estava conversando naquele dia no Ale House. A tal Megan. Ela me olhou também e tenho certeza que me reconheceu, mas ao invés de virar a cara, puxou o celular da bolsa na mesma hora, digitou rapidamente um número e ficou o tempo todo me encarando enquanto falava pelo telefone. Nisso um monte de gente começou a bater palma e gritar vários “u­hus” animados dentro da casa. Era pro Théo que tinha acabado de chegar. Ele não me viu logo de cara. Foi entrando na festa e cumprimentando todo mundo por onde passava, totalmente maravilhoso dentro de uma calça jeans e blusa pólo preta da Lacoste. Os garotos iam dando tapinha nas costas dele, fazendo aqueles cumprimentos estranhos que são uma mistura de abraço e aperto de mão (nesse ponto brasileiros e americanos são bem parecidos) enquanto que as garotas davam beijinhos nele ou faziam comentários dando sorrisos totalmente derretidos. Não posso negar que ele parecia ser bem popular com o pessoal da escola. De repente o Kevin saiu do grupinho onde estava e chegando perto do Théo gritou: “Ladies and Gentlemen. Here’s the man!” apontando pra ele. A música parou na hora. Todo

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mundo começou a bater palma e gritar o nome do Théo. Ele ficou meio envergonhado, mas agradeceu parecendo realmente mexido com aquela demonstração do povo da festa. Um garoto, que estava estacionado perto da lareira, disse meio irônico: “Ohhhhh. He’s gonna cryyyyyy!”, ao que o Théo riu e respondeu brincando “Yeah, Zac. I missed you too.” Depois começou a agradecer a todos pela festa, disse que estava muito feliz por estar de volta a Orlando e que sentiu falta de cada um quando estava no Brasil. Ele deve ter dito mais algumas coisas, mas a Ana já parecia estar de saco cheio de traduzir o discurso dele pra mim então eu só sei até aí. Assim que o Théo terminou de falar todo mundo ergueu os copos de plástico ou as garrafas de cerveja e ofereceram um brinde a ele. A música voltou a explodir nos alto­falantes e alguns minutos depois a festa estava bombando mais uma vez. O Théo parou pra cumprimentar direito o grupinho do time de futebol americano que conversava com o Kevin e no momento em que socava de mentirinha a barriga de um garoto gordão ele finalmente me viu. Meu coração deu um pulo (eu já disse que sou uma total idiota, não disse?) quando ele começou a se aproximar de nós sorrindo. Parecia realmente feliz em ver a gente. “Caramba! Não acredito que vocês vieram mesmo!” disse enquanto dava um beijo na Ana e em mim (aqui se cumprimenta desse jeito, nada de dois beijinhos como a gente faz no Brasil. É um só e olhe lá). Eu fiquei vermelha com a aproximação do Théo, mas tentei me acalmar. O cheiro de sabonete e perfume que desprendia dele era tão bom que,

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apesar da minha asma, eu queria ficar sentindo aquela mistura de aromas a noite toda... “Ei, você fez alguma coisa no cabelo. Não fez, Babi?” ele perguntou olhando pra minha cabeça. “Meu Deus! Um homem que repara!” A Ana disse fingindo estar chocada. “É isso que dá conviver com cinco irmãs.” O Théo disse rindo. “Mas eu gostei Babi, é sério. Esse corte conseguiu te deixar mais bonita ainda do que você já é.” Nesse momento eu quase explodi de tanta vergonha. Só consegui ficar mais travada ainda quando o Théo olhou pra minha blusa. “Você gosta da cor rosa chá?” ele perguntou pra mim. Afirmei com a cabeça. “Que bom.” Ele respondeu e riu. Hein? Eu fiz aquela cara de “não entendi nada” (por que eu realmente não entendi nada!) e na mesma hora a Ana deu um espirro superestranho, que mais parecia ter o som da palavra “tapada” do que um comum “atchim”, e saiu de perto da gente dizendo que ia procurar lenço de papel no banheiro. Detalhe que ela nem fazia ideia de onde era. “Sua prima é uma figura.” O Théo disse. “Ela é louca, isso sim!” Eu brinquei. E aí um silêncio meio estranho se instalou entre a gente, mas o Théo continuou olhando pra mim com aqueles olhos azuis lindos. Fiquei pensando se o que a Mari disse sobre ele estar gostando de mim era verdade. Comecei a ficar vermelha de novo.

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“Que música é essa que está tocando?” perguntei só pra cortar o clima estranho. “Sweetest girl. Se não me engano do Wyclef Jean com o Akon, a Lil Wayne e a Nia.” ele respondeu mostrando que entendia mesmo de música. Silêncio de novo. Dessa vez eu não sabia mais pra onde olhar. “Que festaça, hein!” comentei meio que pra ter algum assunto. “Coisas do Kevin e do Fábio. Eu disse que não queria que eles fizessem nada muito grande, mas às vezes falar com esses dois malucos é o mesmo que falar pro vento”. “Ah, pelo menos todos os seus amigos estão aqui. É isso que importa, não é?” “Eu não preciso de toda essa gente.” Ele afirmou enfiando a mãos nos bolsos. “Só de uma pessoa, e ela já chegou. Então...” Opa. Será que ele estava falando de mim? Não, não podia ser... De qualquer maneira eu desviei meu olhar do dele rapidinho e fiquei encarando o chão por um bom tempo. Depois quando levantei a cabeça reparei que a tal loira perto da piscina estava olhando torto pra gente. “Você está falando da sua namorada, não é?” eu perguntei. O Théo fez uma cara estranha e rebateu “Que namorada?”. Aí eu apontei pra loira com a cabeça e falei: “Aquela ali que estava no Ale House com você semana passada. O nome dela é Megan, não é?

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Théo olhou pra mim parecendo não acreditar no que estava ouvindo e deu uma sonora gargalhada como se eu tivesse contado uma piada ou algo do tipo. “A Megan? Minha namorada?! Você só pode estar brincando!” ele disse ainda rindo. Como eu não estava, fiz cara séria e cruzei os braços, mas o Théo pegou minha mão e começou a me puxar em direção a área da piscina onde a garota estava sentada. Tentei me soltar dele, perguntei o que estava fazendo, mas foi totalmente em vão. Quando nós chegamos perto da talzinha, ela olhou pra mim com cara de que ia vomitar e eu não tive como não retribuir a “gentileza”. “Meg essa aqui é a Bárbara, aquela amiga brasileira que eu te falei.” Ele disse se virando pra ela. Depois apontou pra mim. “E Bárbara, essa é a Megan. A minha outra irmã americana”. Ele completou apontando pra garota. Huuuuuuu. Como é que eu não pensei nisso antes? Agora a conta fechava perfeitamente! Três irmãs brasileiras + duas americanas = a cinco criaturas cheias de estrógeno! E eu achando que a tal era namorada dele! Bem essa realmente não era... Essa... Depois de devidamente apresentadas a Megan me saudou em português que, segundo ela, tinha aprendido com o Théo (bem mal, diga­se de passagem). Nós não conversamos muito porque ela não fez o mínimo esforço em ser simpática comigo. Aliás, foi esse o motivo que o Théo alegou pra não ter me apresentado a ela antes, apesar de ter tido duas oportunidades: uma na Prime Outlet e outra no Ale House.

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“Ela é meio antisocial às vezes, principalmente quando conhece pessoas novas. Mas eu acho que a Meg gostou de você.” O Théo disse, mesmo sendo óbvio que a megera não tinha ido nem um pouco com a minha cara. Nessa hora o Fábio chegou por trás da gente com dois copos descartáveis nas mãos, o que foi a deixa perfeita pra Megan se afastar de nós e voltar a conversar com a sua gangue. “Aí, Bárbara. Desculpe a demora, mas não tinha mais refrigerante não. Tive que mandar comprar e só chegou agora. Ei, cadê a sua prima?” “Acho que ela foi no banheiro” eu respondi pegando o copo de refri que ele me estendia. Vi que o Fábio fez uma cara meio desapontada quando eu disse isso, mas depois abriu um sorriso de novo. “Cara, que droga é essa que está tocando, hein?” ele perguntou pro Théo se referindo a música cheio de gemidos que de fato já estava enchendo a paciência. “Sexual Eruption do Snoop Dog. Mais um daqueles CDs de péssimo gosto do Kevin.” o Théo respondeu pegando o outro copo de refrigerante das mãos do Fábio. “E as pessoas ainda dizem que os americanos é que tem cultura!” ele rebateu com seu sotaque mineirinho. “É, falam mal pra caramba dos funks “probidões” cariocas, mas mal sabem que aqui tem também os “proibidões” do Hip Hop.” O Théo disse rindo. “Acho que eu vou em casa pegar meu Ipod e trazer um pouco de música de verdade pra essa gente!”

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“Bom, contanto que seja David Guetta dou meu total apoio!” o Fábio disse e aí estendeu uma chave pra ele. “Toma, aproveita e vai com a minha moto.” Pelo visto ele era o dono da R1­sonho­de­consumo­do­Vini. Eu entrei em pânico só de pensar na possibilidade de ficar sozinha ali. Até porque, não sabia onde a Ana estava (talvez tentando chegar no Kevin), tinha certeza de que não ia poder contar com a companhia do Fábio (pois ele era um dos responsáveis pela festa) e não estava nem um pouco a fim de agüentar a chata da Megan. “Você vai demorar?” eu perguntei ao Théo quando ele já estava indo pra dentro da casa. “Por quê? Vai sentir minha falta?” ele rebateu sério, mas logo depois riu. “Brincadeira. Eu moro nesse condomínio também. Umas duas ruas mais adiante. Prometo que volto no máximo em cinco minutos, tá bom? Aproveita e fica conversando com a Megan enquanto isso.” Ele completou. E saiu junto com o Fábio que foi ver alguma coisa na cozinha. Deus! O Théo não podia ter sugerido nada pior! Inicialmente a Megan não falou comigo. Claro. Estava mais interessada em conversar com as amiguinhas loiras dela que tinham corpos mais pra “boneco palito” do que pra gente. Apesar do meu inglês ser péssimo, eu notei que elas estavam falando de mim, porque vira e mexe olhavam na minha direção e riam, mas pra não criar um clima desnecessário ali fingi não notar. Ouvi também a palavra “fat” sair várias vezes da boca daquelas garotas, até que a Megan disse em português: “É, ela é gorda.” E então todas as

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amiguinhas idiotas dela ficaram repetindo “É, ela é gorda” como se fossem verdadeiros papagaios. Eu me recusava a acreditar que aquele bando de loiras não oxigenadas estavam falando de mim. Eu não era gorda! Nunca fui! A conta do meu IMC diz que eu estou totalmente dentro dos padrões aceitáveis de peso pro meu tamanho! Na verdade eu estou quase abaixo. Onde elas viram gordura em mim então? E foi exatamente nessa hora de questionamento existencial que eu descobri que era das minhas coxas que elas estavam falando. Tá, tudo bem. Realmente as minhas eram mais grossas do que as delas. Mas ainda assim aquilo não era gordura! Ou era? Será que de alguma forma pros padrões americanos eu era um tipo de... bem... hum... gorda? Vai saber... Só sei que eu já estava começando a ficar meio paranóica com isso e olhando insistentemente pras minhas coxas, quando uma garota super magra (essas meninas vivem de quê? Vento?) usando uma saia do tamanho de um band­aid saiu da casa do Kevin e veio até a gente. A Megan a abraçou como se fossem amigas de infância e aí, num estalo, eu finalmente a reconheci. Ela era a Zoey, a tal que tinha uma foto no celular do Théo e ainda por cima um toque telefônico específico só pra ela, a música “Stick With you” das Pussycat Dolls. De início pensei em sumir dali pra não ter que ser apresentada a garota, mas raciocinei tarde demais. Bem no momento em que eu estava me preparando pra sair de fininho a Megan segurou meu braço. Eu me virei estampando um

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sorriso fingido na cara e a Zoey deu uma boa olhada pra mim de cima abaixo e completou a análise rindo. “Bárbara, querer apresentar você minha best friend, Zoey.” A Megan disse com um português horrível e ainda por cima misturado com inglês. Eu poderia ser solidária a ela em relação a esse lance da língua, afinal eu passo por micos parecidos com esses todos os dias, mas aquela garota definitivamente não merecia nada de mim, nem um livro de gramática! “Oh, e me esqueci de dizer você. Zoey ser namorada do Théo.” ela disse soltando a bomba, na sua voz fina e irritante de quem tinha inalado uma bexiga de gás hélio. Aquela notícia estranhamente surtiu efeito em mim como se tivessem me dado um soco bem na boca do estômago! Não sei por que, mas me senti horrível naquele momento. Horrível por ter pensado na possibilidade idiota do Théo gostar de verdade de mim. Horrível por provavelmente ser só mais uma na lista enorme de traições dele. Horrível por ter ido àquela festa. Por ter ido ao parque com ele no sábado enquanto ele ignorava as ligações da namorada. E horrível também por estar ali, bem ao lado da Zoey, esperando justamente pelo namorado dela voltar. Fiquei tão abalada que procurei uma cadeira pra me sentar um pouco. Na hora esqueci que o aparelho estava no bolso de trás da calça e só me dei conta quando senti uma coisa estranha cutucar meu bumbum quando sentei. Num reflexo rápido, levantei e tirei o aparelho do bolso pra ver se tinha quebrado, mas foi a pior coisa que eu podia ter feito. Pois a Megan viu aquele bolo enorme de lenços de papel e num estalo o tirou da minha mão. Tentei pegar de volta, mas ela

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rapidamente abriu o embrulho e ao perceber que era um aparelho jogou cheia de nojinho pra cima de uma amiga gritando “Yiuuuu”. A outra garota o segurou por um tempo até que se deu conta do que era e atirou ele em outra amiga que gritou “Gross” com cara de quem ia vomitar e então arremessou pra a Zoey. Eu ainda tentei pegar meu aparelho, mas a namorada do Théo o jogou na mesma hora de volta pra Megan e aí eu percebi que elas tinham começado a brincar de “bobinho” comigo. As pessoas que até aquele momento estavam conversando ao redor da piscina começaram a prestar atenção na gente e uma verdadeira platéia se formou pra ver a cena. As meninas pareciam estar realmente se divertindo agora. Tanto que nem davam mais gritinhos de nojo quando pegavam no meu aparelho. Ficavam apenas rindo enquanto continuavam jogando ele de umas pras outras. Mas isso não foi o máximo da humilhação. Não. Não foi. O ápice aconteceu mesmo quando uma delas jogou meu aparelho pra Zoey e eu, sem reparar em nada a minha volta, me estiquei pra tentar pegar ele. Na hora, consegui agarrar o aparelho no ar, mas senti um leve empurrão nas minhas costas e numa fração de segundos... TIBUM! Eu já tinha me desequilibrado e caído como um “prego” dentro da piscina. Acho que nem preciso dizer o terror que eu senti ali, no meio daquele monte de água enquanto me debatia feito louca, já que a piscina era terrivelmente funda e eu não sabia nadar . O mais cruel disso tudo, no entanto, é que por mais que eu tivesse gritado socorro e até mesmo “Help” ninguém se dignou

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a me ajudar. Pelo contrário, eu ouvia as pessoas rindo pra valer ao redor da borda da piscina enquanto eu engolia litros e mais litros de água. Só depois de alguns segundos ­que pareceram uma eternidade­ é que alguém saltou na piscina e me segurou. Era a Ana, uma das últimas pessoas que eu achava que poderia fazer aquilo por mim. Minha prima me arrastou pra parte rasa e me tirou da água fazendo um esforço tremendo. Quando nós já estávamos sentadas na borda, ouvi a Megan gritando do outro lado da piscina: ”Welcome to America, loser!” e então ela e suas amigas clones, inclusive a Zoey, riram feito um bando de hienas histéricas e ficaram fazendo um “L” com os dedos sobre as testas. Em resposta a Ana mostrou o dedo médio pra elas e depois me ajudou a levantar. Eu disse a minha prima que queria ir embora o mais rápido dali, então nós saímos da casa do Kevin dando a volta pelo jardim mesmo. Só na rua é que as minhas lágrimas começaram a cair, mas também daí em diante não pararam mais. Eu tinha passado por um verdadeiro vexame, quase morrido afogada e descoberto que o Théo, o garoto mais legal que eu tinha conhecido na vida, era um cretino metido a conquistador. O que poderia ser pior? Nada! E pra completar a noite péssima que estava tendo nós quase topamos com o dito cujo numa das ruas do condomínio, mas ele não nos viu, porque a Ana e eu nos escondemos bem

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rápido atrás de um arbusto enquanto ele passava em alta velocidade pilotando a moto do Fábio. Saindo de trás do arbusto minha prima pediu que eu explicasse direitinho tudo que tinha acontecido antes de eu cair na piscina e, quando eu falei sobre a Zoey, ela achou muito estranha aquela história da Megan dizer que a amiga era a namorada do Théo, pois a notícia que rolava na escola desde o começo do ano é que eles tinham terminado um tempo antes dele ir pro Rio. Mas a Ana também disse que os dois podiam ter resolvido reatar agora que ele estava de volta, e parecendo revoltada, começou a chamar o Théo de cretino desprezível por ter ficado atrás de mim todo aquele tempo e me mandado flores secretamente quando na verdade ainda tinha uma namorada. Eu quase caí pra trás quando minha prima falou sobre o lance das flores. Então era o Théo o meu admirador secreto? O buquê entregue na minha casa não havia sido um simples engano do entregador? Como ela sabia disso? Bom, naquele momento nada mais importava. As rosas agora estavam quase murchas, eu já tinha descoberto o grande cafajeste que o Théo era, e definitivamente queria ir embora dali. Melhor dizendo, ir embora pro Brasil! Nossa! Que saudade eu estava sentindo agora da minha terra, dos meus amigos, da minha cidade! Ah... a minha cidade... Tudo bem, tudo bem, a minha vida podia não ser perfeita lá no Sul, mas pelo menos não era esse desastre total que é aqui! Eu quero voltar. Eu PRECISO voltar! E definitivamente antes que as aulas comessem!

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Depois desse vexame na piscina não vou conseguir encarar meus novos colegas na Olympia High e muito menos agüentar ficar esbarrando com o Théo, a Megan e a Zoey todos os dias pelos corredores da escola. A Ana disse pra eu não ficar pensando nisso, pois quando as aulas começarem todo mundo com certeza já vai ter esquecido o que aconteceu. Disse também pra eu não me importar com o que as “cheerbitches” da Zoey e da Megan tinham dito e me mandou parar de chorar, pois segundo ela, o traste do Théo não merecia que eu derramasse uma lágrima sequer por ele. Depois ela voltou pra festa pra pegar a bolsa dela que tinha esquecido no banheiro (e que por sinal meu diário estava dentro), mas quando chegou aqui e puxou o celular do bolso percebeu que ele estava encharcado devido ao “banho” forçado de piscina. Então minha prima decidiu que era melhor ir a casa do Kevin de novo e ligar de lá pedindo um táxi pra gente, já que depois de tudo que tinha acontecido nessa noite ela disse que nós não merecíamos ir á pé até a Hiawassee, a rua onde fica a loja de tia Vivian. E até esse momento a Ana ainda não voltou, mas eu continuo aqui, sentada nesse balanço. Ensopada, com o orgulho ferido e me derretendo em lágrimas, enquanto escrevo nesse diário aproveitando a luz da lua cheia. O som da festa está tão alto que eu consigo ouvi­lo daqui. O que só confirma a minha teoria de que o Théo não só não vai sentir minha falta lá, como deve estar se divertindo muito ao som das músicas que ele mesmo escolheu pra sua grande festa de boas vindas.

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Quanto a mim... Minha única vontade agora é bem simples: eu só quero ir pra casa. Mas na minha doce e aconchegante cidade nos pampas gaúchos. Pois só lá eu fui e serei realmente feliz.

15 de junho (quinta­feira) No closet do quarto de hóspedes

10:38­Nem sei o quanto agradecer a Ana por ela estar sendo tão legal comigo. Ontem à noite quando chegamos em casa, ela disse que seria melhor eu dormir no quarto dela porque nós duas já sabíamos que eu iria passar a noite toda chorando, então pra não correr o risco de assustar a minha mãe ou acordar os meus irmãos, minha prima pegou um saco de dormir que o Vini sempre usa quando vai acampar, colocou do lado da cama dela e foi ali mesmo que eu me “joguei”, morta de cansaço e vergonha. Antes que eu pegasse no sono, no entanto, a Ana me contou uma coisa estranha. Disse que quando ela voltou pra festa do Kevin, se esgueirando sorrateiramente no jardim pra tentar encontrar alguma janela que estivesse aberta (pois não queria entrar pela porta da frente molhada do jeito que estava), viu o Théo sozinho no escritório do pai do Kevin, largado no

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sofá parecendo meio chateado. E que ele só saiu de lá quando o Fábio apareceu e literalmente o arrastou pra fora. Eu disse pra minha prima que, estranha ou não, daqui pra frente nenhuma história que envolvesse o Théo me interessava mais e então ela me fez a seguinte pergunta que eu mesma não sei responder até agora: “Você estava começando a gostar dele, não estava, Babi?” Eu pensei um instante, depois disse que não queria falar sobre o assunto e dei boa noite pra ela. Mas é claro que eu não consegui dormir. Por causa disso acordei hoje pela manhã com um belo par de olheiras que a Ana tentou disfarçar colocando corretivo. Só que por mais que elas estejam bem escondidas sob quilos de maquiagem agora, o meu cérebro idiota não consegue esconder as lembranças que eu tenho do Théo. Tentei até assistir ao Discovery Kids com o Dani pela manhã pra não pensar nele, mas ver uma sequência seguida de Backyardigans, Peixonauta e Clifford o Cão Vermelho, e ainda por cima em inglês, só conseguiu piorar meu humor. Agora estou tentando apagar as cenas do Théo na minha cabeça, mesmo que o sorriso dele venha de hora em hora na minha mente. Assim como todas as gentilezas que ele fez pra mim no avião, a brincadeira do cílio no Sea World, o jeito que ele cuidava da Mandy, as flores... Ah, as flores! Eram tão lindas... Argh! Foco, Babi! Foco! Simplesmente arrasta tudo isso pra lixeira do seu cérebro e deleta!

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10:45­Melhor, vou preparar alguma coisa pra comer. É isso aí. Fritar um bando de hambúrgueres gordurosos vai ocupar meu tempo e me fazer sentir bem. Que se dane que eu estou descontando minhas frustrações na comida! Fui eu que quase me afoguei na piscina ontem, tá! Fui eu que descobri que o garoto que gostav achava legal era um tremendo cafajeste! Mereço alguma alegria de vez em quando, mesmo que ela venha de um monte de gordura saturada, não? 11:59­ Caos! Essa é a palavra exata pra definir minha vida nesse momento. Por quê? Simples. Porque eu fui até o freezer de tia Vivian, peguei uns doze hambúrgueres e coloquei um monte pra fritar. Onde está o caos nisso? Oh, ele já vem... é só esperar mais algumas linhas... Mas continuando, estava lá eu fritando os malditos hambúrgueres e assim que terminei ­já pensando em me empanturrar e virar uma obesa de verdade pra fazer valer o comentário da Megan e das amiguinhas dela sobre o meu peso­ fui lavar a frigideira. Como ela ainda estava muito quente, na mesma hora em que a água da torneira se encontrou com o óleo saiu aquela nuvem típica de fumaça. Eu comecei a tossir por causa disso, mas a Ana que estava sentada no sofá com o notebook dela no colo gritou “Babi, abana isso! Abana!” e jogou o computador de qualquer jeito em cima da mesinha de centro da sala pra vir correndo tentar dissipar a fumaceira com um pano. Na hora eu fiquei sem ação. Não entendia o que eu tinha feito demais pra Ana ter aquele ataque todo, até que eu ouvi

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um barulhinho engraçado, e então uma série de gotas começou a cair sobre a minha testa e a molhar meu cabelo e minhas roupas. Eu olhei pra cima assustada e vi que no teto da casa de tia Vivian tinham aqueles detectores de fumaça com chuveirinho. E foi aí que eu finalmente juntei as coisas. Eu tinha feito o sistema anti­incêndio disparar com a droga da frigideira! MEU DEUS!!!!! A Ana nem mesmo teve tempo de brigar comigo por causa disso. Gritou pro Vini fechar o registro da água e saiu feito louca pela casa tentando cobrir todos os aparelhos eletrônicos pra que não fossem ensopados. O Vini, que estava tomando banho, saiu apenas de toalha do banheiro e correu também, só que pra lavanderia da casa onde ficava o registro. Enquanto isso o Dani pulava e gritava “Uiiiii! Está chovendo na sala. Que legal!” e a Alice me xingava, me chamando de Fiona e dizendo que eu tinha feito um ótimo trabalho arruinando tudo mais uma vez. Quando a água finalmente parou de jorrar dos sprinklers (esse é o nome dos chuveirinhos em inglês) a cena era devastadora. Estava tudo molhado: tapetes, sofá, móveis, cortinas... Tudinho mesmo, inclusive a gente. O Vini voltou da lavanderia ainda segurando a toalha na cintura e, após olhar em volta, disse que a sala parecia até que tinha sido palco do Show da Shamu no Sea World. A Ana, no entanto, não achou a menor graça do comentário dele, só virou pro irmão e disse numa voz super séria: “Reze pra que eles não venham, seu cabeça de cogumelo. Reze muito!” E depois

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foi pro quarto ver se a água tinha feito algum estrago nas coisas dela. Me deu uma vontade enorme de perguntar pro Vini sobre o que ela estava falando, mas a Alice mandou a gente calar a boca, pois estava tentando identificar se o barulho que ela estava ouvindo era mesmo de uma sirene. A cor do Vini imediatamente sumiu quando ela disse isso. Minha prima Ana voltou na mesma hora pra sala, parecendo ter sido atraída pelo tal barulho, e mandou desesperada que o Vini fosse colocar uma roupa porque eles estavam chegando. Minha curiosidade sobre quem eram eles não durou muito, pois foi só o Vini sair do quarto dele colocando uma camisa de qualquer jeito sobre o corpo molhado, pra um carro do corpo de bombeiros de Orlando parar bem em frente a nossa casa com a sirene aos berros. Nessa hora a Ana soltou um palavrão super alto e foi correndo pegar o telefone pra ligar pra tia Vivian. O Vini botou as mãos na cabeça parecendo não saber o que fazer, mas acabou mandando que eu fosse pro quarto com o Dani, que até então estava achando tudo a maior brincadeira. Não sei direito o que aconteceu depois, mas o saldo final disso tudo foi mais desastroso do que eu imaginava. A vizinhança toda apareceu aqui em frente (só assim mesmo pra gente ver os vizinhos!), uma pequena parte da mobília da casa está arruinada, a outra está lá fora no quintal pra tentar ser secada pelo sol e tia Vivian tem nada menos do que uma MULTA POR ALARME FALSO DE INCÊNDIO!!!!!!!!

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É isso mesmo! Os bombeiros vieram aqui, não encontraram foco nenhum de fogo e tia Vivian acabou sendo multada por isso! Ou melhor, dizendo por minha causa! Deus, Por quê eu tinha que passar por isso hoje?! Castigo divino? Mas pelo o quê? Eu não saio por aí sacaneando vidas alheias nem nada! Sem falar que ter me sentido pior do que uma ameba ontem já não foi suficiente não? Eu tinha mesmo que me sentir terrivelmente culpada também? Porque é isso que está ardendo agora dentro de mim. Uma culpa enorme! E não é o que digo? Se eu tivesse no Brasil, bem quietinha na minha casa como eu falei antes, nada disso teria acontecido. A essa hora eu estaria saindo do colégio, rezando pras férias de Julho chegarem logo e não aqui, nesse lugar com costumes tão diferentes, ainda tentando me desculpar pelo estrago na casa e na conta bancária de tia Vivian! Oh, e o olhar que o Vini e a Ana estão me dando agora... Nossa, é terrível! Parece até que eu voltei aos tempos de criança quando a Ana me odiava e o meu primo vivia me evitando. Não sei se vou conseguir continuar morando na mesma casa que eles depois de tudo o que aconteceu. Na verdade não sei nem mesmo se vou conseguir continuar vivendo aqui. Não agüento mais tudo isso! Estou no meu limite! Chega de Estados Unidos, chega de Orlando! Por favor, Chega! Eu só quero ir embora desse inferno!!!!!!!!!!!!!!!!! Mas quer saber? Já está decidido. Eu vou voltar pro Brasil! É, é isso. Não importa o que minha mãe diga, nem o quanto ela tente evitar. Vou tratar de enxugar essas drogas de lágrimas

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que insistem em cair e correr pra fazer as malas. O sonho americano definitivamente acabou pra mim. E já era hora! 14:01­ Eu pensei melhor... Não, não é nada disso. Eu ainda quero voltar pro Brasil. Acontece que eu cheguei a conclusão que minha mãe não me permitiria botar nem o pé esquerdo pra fora de casa, quanto mais me deixar chegar perto do aeroporto de Orlando! Além disso, eu não tenho dinheiro pra pagar a passagem de avião, mesmo que seja a da companhia aérea mais fuleira que tem por aí. Então eu estou meio que num beco sem saída. Mas eu tenho que arranjar uma solução pra isso e bem rápido. Estou contando os minutos pra sumir daqui e não vejo a hora de poder pisar em solo brazuca de novo. Então vamos lá, Babi! Bota esse cérebro pra funcionar. Faça valer o pouco de massa cinzenta que Deus te deu. Pensa! 14:40­ Sabe aquele momento em que “acende” uma lâmpada no seu cérebro iluminando a escuridão de dúvidas que tinha ali? Pois é, e a idéia que eu tive nesse momento se resume a apenas uma palavra: Poupança! Claro! Como é que eu não pensei nisso antes? Eu ainda tenho uma poupança em um banco no Brasil! Tá certo que ela não está tão rechonchuda quanto antes, mas dá pra fazer bastante coisa com ela. Vou poder pagar o concerto do Honda Civic do Vini, a multa de incêndio que tia Vivian recebeu hoje, comprar um Ipod novo pro Théo (não quero ficar devendo nada àquele mau caráter!), um Iphone novo pra Ana (já que o antigo

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dela levou um banho quando ela se jogou na piscina pra me salvar) e ainda sobra um pouco pra pagar grande parte da passagem aérea. Maravilha! Verdade que a conta vai ficar zerada e eu ainda não vou ter como voltar pro Brasil, mas talvez eu consiga complementar o valor da passagem com... sei lá...trabalho talvez? Até as princesas tem seus dias de gata borralheira não, tem? E ultimamente tá todo mundo arranjando emprego, acho que eu também posso conseguir um se quiser. Além do mais, como é alta temporada aqui em Orlando, a cidade está cheia de turistas, logo sobra trabalho. Até mesmo pra adolescentes como eu. Tá certo que eu nunca tive um emprego na vida, mas não deve ser tão difícil assim trabalhar. Vou perguntar ao Vini se ele sabe de alguma vaga por aqui por perto. Isso se o meu primo ainda estiver falando comigo né? Porque depois do que aconteceu hoje... Ai, ai. Se bem que o problema maior nesse plano todo vai ser convencer minha mãe. Ela não vai me deixar trabalhar, ainda mais se souber que o meu objetivo é ganhar dinheiro pra ir embora daqui. Por isso acho que vou dar uma mentida básica só dessa vez e inventar um motivo nobre pra justificar o trabalho. E aí, depois de ganhar o suficiente pra voltar pra casa, eu ligo pra Mari pedindo pra ela me pegar no aeroporto em Porto Alegre, arrumo as malas em segredo, fujo no meio da noite, me mando pro aeroporto de Orlando de táxi e chegando no Brasil vou morar com tia Vera. Pronto! O plano perfeito!

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Claro que eu sei que vou sentir falta dos meus primos, da minha tia, da minha mãe, do Dani e até mesmo da Alice, mas eles vão poder me visitar a hora que quiserem lá no Sul. Sem falar que a gente sempre vai poder matar um pouco da saudade pelo MSN ou pelo Skype. O que não dá mesmo é pra eu ficar aqui! Sei que fugir é uma atitude meio covarde, mas eu me sinto tão deslocada e infeliz nesse lugar que se eu não for embora logo, vou acabar surtando, tendo uma crise de depressão ou raspando a cabeça pra me juntar a alguma gangue de motoqueiros! 17:30­ Ebaaaaa! O Vini ainda está falando comigo! E sabe o que mais? Ele me disse que tem uma vaga de emprego numa lanchonete perto daqui! Que bom que meu primo nem desconfiou quando eu falei que queria trabalhar pra pagar a multa que tia Vivian recebeu. Na verdade, ele disse pra eu não me preocupar com isso, mas eu insisti e amanhã mesmo nós vamos na tal lanchonete. Quanto a mamãe? Bem, na hora em que eu falei sobre o lance do emprego ela ficou meio receosa, disse toda cheia de emoção que a menininha dela (eu no caso) até pouco tempo atrás pedia pra ela comprar a sandália da Hello Kitty e hoje já era uma mulher quase feita e estava até querendo trabalhar. Mas ela acabou aceitando tudo numa boa, não sei pelo Vini ter dito que aqui nos Estados Unidos os adolescentes tem costume de trabalhar no verão, se pelo fato dela estar muito feliz depois de ter sido oficialmente contratada hoje pela imobiliária de tio Oscar ou se porque ela está finalmente deixando de ser superprotetora. De qualquer maneira, acho

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que no final das contas os ares da Flórida estão fazendo muito bem a minha mãe... A Alice é que falou toda irônica de que queria ver isso (eu esfregando chão) já que, segundo ela, eu tenho esse jeito meio dondoca e em casa eu muito mal arrumava a minha cama. Ah, tá. Quem é que quando a empregada lá de casa faltava ia lavar a louça com luvas de borracha só pra não estragar as unhas? É, Alice, depois eu é que sou a dondoca... Implicâncias da minha irmã à parte, mal posso esperar pra ir à essa tal lanchonete. Não que eu ame esfregar chão! Fala sério né! Mas porque graças a esse trabalho meus dias na terra do Mickey estarão contados! Pena que eu vou embora sem ter ido uma única “vezinha” sequer à Disney. Queria tanto ver o castelo da minha “vizinha” Cinderela... P.S.: A Ana está falando comigo também, mas pelo visto ainda parece meio zangada pelos ursinhos de pelúcia dela terem ficado encharcados. E admito, ela tem todo o direito.

16 de Junho (sexta­feira)

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05:30­ Acordei antes mesmo do despertador do meu celular tocar. Estava tão ansiosa pela entrevista hoje no Firehouse Subs que nem tomei café da manhã direito, o que por um lado é bom, já que caso o meu estômago resolva ter alguma atividade nervosa ele não vai ter muita coisa pra botar pra fora. Apesar do sol ainda estar nascendo já estou arrumada só esperando pelo Vini acordar. Ontem á noite, ele me disse pra usar roupas normais na entrevista, pois eu estava indo falar com o dono de uma lanchonete, não de uma multinacional. Por via das dúvidas vou com a calça e a blusa de manga mais “sérias” que tenho. 07:15­ Meu primo vai me levar agora. Mamãe está saindo também, toda arrumadinha de saia e blazer cinza, mas é pra ir pro trabalho com tio Oscar que acabou de buzinar aqui em frente de casa. Ela disse pra eu não me preocupar com a entrevista e que tudo vai dar certo. É o que eu espero... Me deseje sorte! 13:10­O Firehouse Subs é uma lanchonete que vende sanduíches bem no estilo do Subway e fica na “Old Winter Garden”, uma rua relativamente perto de onde a gente mora. Vini me levou até dentro da lanchonete e perguntou a um dos atendentes pelo dono. Em segundos um homem gordo, de pele morena e cabelo bem escuro veio pra falar com a gente. Se chamava Fernão Alcazar e era um simpático mexicano de “Tijuana” como ele mesmo disse todo orgulhoso em espanhol.

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Na hora em que eu reconheci a língua fiquei feliz de cara. Eu conseguia entender perfeitamente o espanhol (falar já é outra história...) e vi que não ia ter muitos problemas com o inglês ali. Isso, até enfrentar um freguês americano né... O senhor Alcazar pareceu gostar de mim tanto quanto gostei dele. Me perguntou se eu falava inglês e eu respondi “So so”, expressão que graças a Deus o Vini tinha me ensinado no carro antes de chegarmos aqui. Depois de mais algumas perguntas sobre minha idade e outras coisas, o dono do Firehouse Subs se deu por satisfeito, disse que eu parecia perfeita pro emprego, mas que precisava fazer um teste comigo antes e, quando eu perguntei o dia em que seria isso, ele disse: “Agora mesmo” e me deu uma camisa pólo preta mais um boné da mesma cor, onde estava escrito o nome da lanchonete em letras amarelas. Eu respondi que tudo bem, estava preparada pro que der e viesse e então o Vini foi embora dizendo que assim que eu terminasse tudo, ligasse pro seu celular pra ele vir me buscar. Querendo começar logo meu teste o senhor Alcazar me apresentou antes a cada um dos atendentes do Firehouse Subs numa tentativa rápida de me enturmar. Tinha um cubano, o Héctor, que era imigrante ilegal, uma panamenha chamada Dulce, que tinha se casado com um cara daqui só pra conseguir o Green Card, e uma americana, a Norah, que me pareceu supersimpática a princípio. Só que minha visão sobre ela mudou rapidinho assim que meu futuro chefe comentou no meu ouvido que ela estava cumprindo prisão domiciliar (só podia sair de casa pra vir pra cá pro trabalho).

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Um arrepio subiu pela minha espinha assim que eu vi o aparelho de monitoramento que ela trazia no tornozelo, mesmo que o senhor Alcazar tivesse acrescentado que apesar do lance da prisão a Norah era totalmente inofensiva. (ok. Mas por via das dúvidas vou ficar de olho! Vai que dá uma vontade nela de fazer picadinho de mim pra montar um sanduíche de Babi?) Oh, e por falar em sanduíches, meu chefe me ensinou passo a passo como eu tinha que montá­los, como lidar com o forno pra esquentar eles, caso o cliente quisesse, e me mandou escrever na mão as frases padrões de atendimento pra que eu não cometesse nenhuma gafe em inglês (bem pensando hein!). Fiz tudinho que ele mandou, fui pro banheiro colocar o uniforme e, quando sai, meu chefe olhou pra porta da loja e disse pra mim que se eu conseguisse alguma gorjeta do cliente que estava chegando naquele momento eu estaria contratada. Respondi pro senhor Alcazar que não iria desapontá­lo e fui até o balcão. Quando olhei pro tal cliente quase cai pra trás. Era o THÉO! AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH! Sem pensar duas vezes me abaixei e fiquei ali sentada, bem em baixo do balcão, rezando pra que ele não tivesse me reconhecido, mas era óbvio que tinha. Nós havíamos ficado frente a frente, muito perto mesmo e, além disso, ele estava com o Ray­Ban no rosto, ou seja, sem chances de eu poder usar a miopia dele em meu favor naquele momento. “Babi, eu já vi você. Aparece” o Théo disse falando sobre o balcão.

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Como eu lembrei que a minha contratação estava em jogo naquele momento, levantei morrendo de vergonha, mas o encarei. “Good morning, Sir and welcome to the Firehouse Subs. May I help you?” respondi lendo a frase que estava escrita na palma da minha mão. “Babi, sou eu... O Théo!” ele disse estranhando. “Olha aqui, eu sei exatamente quem você é” respondi baixinho, com os dentes cerrados de raiva “Mas hoje é o meu primeiro dia de trabalho aqui e eu tenho que ganhar uma boa gorjeta se quiser continuar nele. Então só fala comigo se for pedir algum sanduíche. Tá legal?” “Tudo bem” ele disse enquanto tirava o Ray­ban “Me vê um Buffalo Chicken pequeno com uma Coca grande então.” “O que você quer?” eu perguntei indo pra cesta de pães. “Falar sobre a festa do Kevin.” “Estou me referindo ao pão. Qual tipo?” “Oh, hããã... Ah, qualquer um, Babi! Só vim aqui por sua causa.” Ele disse se apoiando no balcão. Eu olhei o passo­a­passo da montagem de sanduíches que também tinha escrito na mão e fui esquentar o pão no forno. Coisa que teoricamente eu tinha que perguntar ao Théo se ele queria, mas eu estava pouco ligando pras preferências dele. Minha vontade é que ele fosse embora o mais rápido dali! “Como você me achou?” eu perguntei enchendo o copo de Coca na máquina de refil. Ele demorou um pouco pra responder, mas acabou confessando que tinha ligado tanto pra Ana hoje que ela acabou contando onde eu estava.

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“Ok, agora é a minha vez de perguntar.” Ele disse. “Será que eu posso saber por que você foi embora da festa sem nem falar comigo?” Nesse momento eu já tinha tirado o pão do forno e ido pra bandeja de ingredientes. “Ah, vai dizer que você não sabe?” “Não, eu não sei.” Ele garantiu. “Do que você está falando?” Fingido! “Do assunto que provavelmente dominou a festa inteira!” eu disse irritada. Já tinha colocado tomates, picles e um bom punhado de jalapenó (pra mim vingança é um prato ardido que se come quente!) no sanduíche dele. “O quê? Você está falando da garota que caiu bêbada na piscina?” Bêbada? EU?????? Nossa, aí é que eu fiquei mesmo com raiva dele! Tanta que espremi com força demais a bisnaga de maionese e até voou um pouco do molho na minha blusa. Acho que ele entendeu tudo só pela minha cara. “Espera... Você era a tal garota?!” “Era. Mas eu não estava bêbada não, tá! Eu fui é deliberadamente empurrada na piscina. Só não sei por quem, se foi pela sua irmãzinha malvada ou pela sua namorada pior ainda, aquela tal de Zoey!” O Théo pareceu chocado. “Epa! Calma aí! Vamos por partes... Primeiro: Quem te disse que a Zoey era a minha namorada?” Não respondi, mas ele adivinhou rapidinho, pois sussurrou logo em seguida: “Ah, eu mato a Megan!” e então explicou tudo. Que a irmã é superamiga da Zoey e que, desde que eles

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terminaram (há uns sete meses atrás), a Megan tem feito uma campanha enorme pros dois voltarem, pois na cabeça dela os dois formam o casal perfeito (nisso eu tenho que concordar com a bruxa). E o Théo ainda disse mais: contou que naquele dia do Ale House a irmã estava enchendo a paciência dele com essa história e que, depois dele ter me levado em casa, ela ficou “pra morrer” achando que eu era uma ameaça ao “reinado” da Zoey. O que, por sinal, o Théo frizou muito bem que já tinha acabado e sem chance alguma de voltar. Quando ele terminou de falar tudo isso, a raiva que eu sentia já tinha diminuído um pouco, mas em compensação eu estava totalmente vermelha de vergonha agora. Então a Megan (e pelo visto a Zoey também) me odiava porque o Théo parecia interessado em mim?! Ai meu DEUS! Talvez a Mari estivesse certa o tempo todo! Talvez ele gostasse de mim mesmo! “Babi” o Théo disse segurando a minha mão quando eu estendi o sanduíche pronto pra ele. “Eu juro pra você que não sabia de nada. Não continua brava comigo não, vai. Por favor.” Óin... que jeito fofo que ele falou isso... Mas saindo do mundo da lua e voltando pra terra firme... Eu disse que não estava mais brava (verdade), que ele não tinha culpa da irmã ser uma tremenda vaca (tá, não usei esse termo né? Afinal era a irmã do cara), disse também pra ele não se preocupar porque eu já tinha colocado uma pedra em cima daquele assunto, e então o Théo sorriu parecendo aliviado, procurou a carteira pra pagar o sanduíche e colocou uma nota de cinquenta dólares no balcão.

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Por um triz não passei dessa pra melhor quando voltei com o troco e ele disse pra eu guardar, pois era aminha gorjeta. Hein? 44 Dólares? De gorjeta?! Uhuuuuuuuuuuu! Agradeci demais ao Théo e, como ele estava sendo muito legal comigo, achei que deveria retribuir, por isso o avisei sobre a quantidade exagerada de jalapenó que eu tinha colocado maldosamente deixado cair no sanduíche dele. Mas, pra minha surpresa total, ele disse que já estava mais do que acostumado com jalapenó e até deu uma mordida enorme pra me provar que não tinha problema algum com pimentas. Dãããããã. Claro! O Théo era americano! Ele deve ter crescido comendo isso no café da manhã (Ai, que exagero o meu...) Bem, mas logo depois ele limpou a boca com o guardanapo e perguntou “Posso te ligar hoje a noite?” “Ah, pode. Mas acho melhor pro meu “cel”. Eu vou te dar o número...” eu disse pegando um guardanapo pra anotar, só que nem cheguei a escrever nada nele. “Não precisa, não” o Théo disse tirando o Ray­ban do bolso. ”Eu já tenho” e dando uma piscadela pra mim, colocou os óculos no rosto, deu meia volta e saiu da lanchonete. Peraí! Ele tinha o meu número? Como? Ah não ser que... Ohhhhhhhh. A Ana! Sim, só pode ter sido ela! Nossa, sinceramente eu não sabia se eu matava ou agradecia minha prima por isso. Quer dizer, na verdade, na verdade, eu sabia sim, só não queria admitir... De qualquer jeito, o que importa agora é que consegui a gorjeta que o senhor Alcazar exigiu como teste e quer saber mais? Fui contratada pra trabalhar no turno da tarde! E ainda

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vou ganhar 7 dólares por hora! Ou seja, vou conseguir o dinheiro da passagem pro Brasil em menos de um mês! Não podia estar mais feliz!!!!!!!!

21:02­ Oh, como eu estava errada. Eu podia ficar mais feliz sim! Nós estávamos todos sentados juntos a mesa, comendo como uma família o feijão “ado” (aguado, enlatado e apimentado) que tia Vivian preparou, quando mamãe perguntou onde estava meu aparelho. Faltou pouco pra eu virar um picolé de tão gelada que fiquei naquele momento. Como é que eu ia explicar que tinha perdido ele, quando fui maldosamente jogada numa piscina e, ainda por cima, em uma festa que ela nem mesmo sabia que eu tinha ido? Por sorte meu celular começou a tocar no sofá da sala e eu fui correndo atender, aproveitando a deixa perfeita pra fugir do assunto e daquele feijão pavoroso de lata. Meu coração praticamente veio a boca quando eu vi o número do Théo no visor. Ai meu Deus!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Era ele!!!! Atendi toda felizinha a ligação, mas quando vi que a minha família inteira estava olhando curiosa pra mim da mesa de jantar, pedi pro Théo esperar um pouco e fui pro quintal. Como estava muito cansada, deitei no banquinho da mesinha de piquenique e fiquei olhando o céu enquanto falava com ele. Nunca tinha reparado no céu de Orlando antes, por isso deu um aperto no coração quando não vi a constelação do Cruzeiro do Sul lá em cima. Ao menos ouvir a voz do Théo do outro lado da linha falando o nosso bom e velho português, me confortou um pouco...

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Théo: Achou que eu não ia ligar, né? Eu: Não. Já percebi que você cumpre o que promete. Théo: Com certeza... Então, como foi seu dia hoje no trabalho? Eu: Cansativo. Mas alguma coisa me diz que não foi nem um terço da ralação normal. Théo (rindo): Por falar nisso, porque você está trabalhando, Babi? Eu (me lembrando que não podia dizer a verdade): Tenho que pagar uma multa por alarme falso de incêndio. Théo: Hummm. Andou bancando a menina má, foi? Eu: Eu já te disse que sou time das boazinhas... O problema é que só descobri tarde demais que água gelada e frigideira com óleo quente não são uma boa combinação numa casa com detector de fumaça... Risos Théo: no Brasil não tem nada disso, né? Verdade. Oh, meu doce e amado Brasil... Ai, ai... Théo: esse suspiro por um acaso tem dono? Eu: tem sim, mas é dona e se chama saudade. Théo: ah, entendi. Está sentindo falta da terrinha, não é? Eu: demais... Me sinto um peixe fora d’água aqui.

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Théo: Faço ideia. Sempre rola isso comigo também quando eu volto de uma temporada longa no Brasil. É meio difícil mesmo se acostumar com tanta coisa diferente. Eu: E olha que você é americano... Théo: Só se for na certidão. Porque de alma eu sou brazuca, flamenguista e carioca do Leblon! Eu: Leblon? Théo: É o bairro onde minha mãe mora. Fica na Zona Sul do Rio. Perto de Ipanema e Copacabana. Um dia eu te levo pra conhecer o mirante que tem na praia de lá. É uma das vistas mais lindas do mundo! Eu: Ah, tá! Como se a minha mãe fosse deixar eu viajar com você. Théo: Mas eu sou tão inofensivo... Quero dizer, exceto em noites de lua cheia. Eu: Por quê? Tu viras lobisomem? Théo: Não. Mas fico um pouquinho, digamos, agitado demais... Ei, mas repete isso de novo? Adoro quando você fala com esse jeito gauchinho cheio de “tu” pra lá e “tu” pra cá. Me sinto falando com um livro de gramática! Eu: Você por um acaso está debochando do meu sotaque, é? Théo: Não. Sério! Eu acho ele bonitinho... Ah, não me diz que vai ficar bravinha de novo? Silêncio Théo: Babi.

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Silêncio Théo: Ah, Babi. Não faz assim não, vai. Eu só estava brincando! Eu: Que tal a gente mudar de assunto? Théo: Tá. O que você quiser... Eu: Que música é essa que está tocando aí no fundo? Théo: Consegue ouvir? É “Paradise City” do Guns ‘n Roses. Eu: Você gosta mesmo de música não é? Théo: Muito! Pra falar a verdade sou alucinado. Não tem um momento da minha vida que não tenha uma trilha sonora. Só nunca aprendi nenhum instrumento porque eu achava um saco ter um professor em cada hemisfério... Eu: Aposto que você conhece todo tipo de música da face da terra! Théo: Com certeza. Posso até te dar umas sugestões se você quiser. Sou praticamente um expert nisso. Eu: Acredito... Nessa hora ouvi uma voz feminina bem baixinha do outro lado da linha Théo: Ih, a Megan chegou! Vou desligar, Babi. Preciso ter uma certa conversinha com ela agora. Eu: Ah, entendi... Vê se pega leve tá? Théo: Sem problema. Só vou fazer ela assistir a todos os jogos do Campeonato Brasileiro que eu tenho gravado. Acho que é um bom castigo.

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Eu: Castigo? Você já ouviu falar na palavra tortura? Théo: Você sabe que a Megan merece... Eu: É verdade... Tudo bem, vai lá. Mas pelo menos poupe ela dos replays. Théo: Vou pensar no assunto. Foi bom falar com você gauchinha. Vê se não some hein! Eu: Pode deixar. Beijo. Théo: Beijo.

22:16– Acabei de receber um torpedo! E é do Théo! Olha o que estava escrito: <Sugestão do dia: Nothin’ on you­ B.O.B e Bruno Mars ‘Beautiful girls all ovr the wrld I could b chasing But my time would b wasted They got nothing on u, baby Nothing on u’> Conheço essa música, mas vou perguntar a Ana se naquela pasta dela do Itunes tem o arquivo. Quero colocar logo no meu Mp3. Só não peço pro Vini porque ele está superestranho comigo desde o jantar. Ah, e mamãe insistiu tanto pra saber quem tinha me ligado que eu acabei contando. Fiquei meio encrencada na hora de

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responder por que o Théo tinha o número do meu celular, mas a Ana me salvou dizendo que ele tinha aparecido no Firehouse Subs, o que não era uma total mentira. Cara, se continuar assim a Ana vai acabar virando o Pinóquio... ou ganhando um Oscar!

17 de Junho (sábado) Fire House Subs

15:30 – Ok. Estou no meu momento de folga que vai durar mais ou menos uns cinco minutinhos ou até que algum cliente apareça. Sei que estava toda animada pra trabalhar e tal, mas agora colocando a “mão na massa” é que eu vejo o quanto é duro ter que lavar louça e esfregar o piso da lanchonete com um esfregão, além de ficar boa parte do tempo em pé atendendo as pessoas. Sério, já estou morrendo de dor nas pernas! Acho que nem vou sentia­las quando chegar em casa. Mas é o preço a pagar se eu quiser dar o fora desse país né? Oh, a quem eu quero enganar? Estou pagando caro até demais! Isso aqui é quase trabalho escravo! Ei, Deus! Se você é brasileiro como dizem, porque está dificultando tanto a minha vida? Qual é, somos conterrâneos,

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não somos? Que tal uma “aliviada” de vez em quando hein? Hein? 15:31 – Ótimo! Zoey e a Megan estão entrando neste exato segundo na lanchonete. *Gracias, Dios! Ahora estoy seguro que usted es Argentino! 16:00­ Como desgraça pouca é bobagem, a Norah estava atendendo outro cliente, a Dulce tinha ido no estoque arrumar os engradados de refrigerante e o Héctor saido pra fazer alguma coisa pro senhor Alcazar. Resultado: sobrou pra pobre coitada aqui ter que enfrentar os dois dragões louros! Engraçado é que nos contos de fadas isso é função dos príncipes, não das princesas! Se bem que, pensando bem, eu não faço nem um pouco o tipo “Real”. Meu pai até dizia que eu era a princesinha dele, mas ele também me prometia que sempre estaria por perto pra me proteger e olha no que deu: não nos falamos há meses, cai sem “páraquedas” nessa terra estranha e ainda tenho que enfrentar uma dupla cuspidora de fogo logo no meu segundo dia no emprego. NINGUÉM MERECE! Até que no início a Megan estava toda boazinha comigo. Pediu um Veggie Delite dizendo “por favor” e tudo, como se não me conhecesse, mas foi só eu começar a montar o tal sanduíche vegetariano pro veneno também começar a escorrer de sua boquinha toda lambuzada de gloss pink. “Theo mandar eu vir aqui pedir desculpa” ela disse no seu deprimente português ‘uga­uga’. Tentei não rir, afinal, eu

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também não era a rainha da concordância na língua dela. “Ele achar que foi má cum você.” “Cum”? Que “cum” é esse gente? Isso é Português? Ah, deixa pra lá. Se concentra nos ingredientes do sanduba Babi. Se concentra... “But você não merecer. “ela continuou “É Zoey quem ele gostar. Você ser diversão ele.” Vem cá, essa garota nunca foi apresentada a conjugação de verbos não é? Preposições então, nem pergunto... Dessa vez foi a Zoey que resolveu falar no bom e velho inglês: “Stay away from him, your brazilian bitch! I’m serious, stay away from Theo or I’ll kick your butt! O­ho­ho. Esperaí! Eu era uma negação em inglês, mas a Ana já tinha me explicado o sentido de “bitch”. E não é nada legal tá! Quem era aquela garota pra me insultar daquele jeito? Ahhhh... Foi subindo uma raiva em mim, mas uma raiva tão grande, que no momento em que eu estava colocando a mostarda no sanduíche não me contive e intencionalmente espremi o pote quase todo no vestidinho rosa dela. A Megan gritou: “What the hell are you doing?” e aí eu despejei o resto na roupa dela também só pra ver se ela deixava de ser nojenta. É claro que as duas fizeram o maior escândalo e quiseram falar com o gerente ou quem quer que fosse o encarregado ali (obviamente pra pedir minha ‘cabeça’), mas quando o senhor Alcazar veio da salinha que ele faz de escritório, a Norah assumiu o papel do meu anjo da guarda e disse em espanhol (sim! Graças a Deus ela é bilíngüe!) que o pote de mostarda

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estava entupido desde ontem e por isso explodiu bem em cima das meninas (Valeu Norah!). A Zoey e a Megan –que não entenderam nada do que a Norah disse­ ainda tentaram protestar pedindo pra que eu fosse demitida, mas meu chefe se desculpou com elas dizendo que pagaria a conta da lavanderia e elas ganhariam um vale pra comerem de graça ali por um mês. As duas nojentas claro que não aceitaram e saíram revoltadas do Firehouse Subs soltando fogo pelas ventas. Quanto a mim... Bem, graças a Deus não fui demitida. Só que pelo visto não estou muito em alta com o senhor Alcazar. Ele me deu um sermão sério sobre como atender clientes (quase chorei) e me fez prometer que acidentes como esse não vão acontecer de novo, caso contrário estou fora daqui antes mesmo que consiga dizer a palavra “perdón”. Ah, tá como se eu conseguisse pronunciar isso rápido... Oh, e antes que eu me esqueça, acabei de decidir uma coisa muito importante. Haja o que houver eu NÃO posso e NÃO vou me apaixonar pelo Théo. Sei que não se manda no coração, mas vou tentar evitar a qualquer custo me aproximar dele, não só pra não ter que aguentar crises de raiva como essa da Zoey e da Megan de novo, mas também porque eu estou firme na decisão de voltar pro Brasil, logo ter qualquer coisa com o Théo com certeza só iria atrapalhar tudo. E além do mais, eu acho que ele nem está tão a fim de mim assim. A Mari exagerou um pouco nas conclusões dela e eu também. O garoto só está sendo simpático, como ele é com todo mundo pelo visto. Se bem que a Ana disse que ele me

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mandou aquelas flores... Mas será que foi o Théo mesmo? Ele nunca comentou nada! Nem insinuar, insinuou! Ah, quer saber? É melhor eu esquecer isso e ir trabalhar. Ainda tenho um bando de coisas pra fazer e quero tentar recuperar os pontinhos que eu perdi com o senhor Alcazar depois do “incidente” com a mostarda. Então, mãos à obra! [em off] Nossa, como eu realmente queria ser igual àquelas princesas dos contos de fadas agora. Não pelo lance do príncipe encantado, mas pelo fato de que é só elas chamarem e um bando de animaizinhos bonitinhos aparece pra ajudar nas tarefas de limpeza. Infelizmente os únicos animaizinhos que eu tive contato hoje foram dois guaxinins malandros que entraram pela porta dos fundos e roubaram um bocado de pão da despensa. Que momento mágico...

21:09­ recebi outro torpedo do Théo. É só o celular tocar e eu já estou dando um pulo! Sugestão do dia: Você é linda –Caetano Veloso. Você é forte Letras e músicas Todas as músicas que eu ainda hei de ouvir

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18 de Junho – domingo Firehouse Subs

12:40­ Ninguém vai acreditar no que aconteceu hoje. Estou até escrevendo com caneta vermelha pra combinar com o drama pelo qual a gente passou há algumas horas atrás. Parecia cena de filme! Um furgão todo preto, com vidro fumê estacionou em frente à lanchonete, e um monte de caras usando camisas pretas e rádios na cintura saíram dele. Não dei tanta bola pra isso, até porque deviam ser só mais clientes chatos pra eu ter que atender, mas de repente um deles se virou e então deu pra ver o que estava escrito nas costas da camisa dele, era Police ICE. O Héctor quase teve um treco quando eu comentei isso e correu pra se esconder, pois ele estava vivendo ilegalmente no país há mais de seis anos e aqueles caras eram nada mais nada menos do que oficiais do departamento de imigração à caça de imigrantes ilegais! Caramba! O Héctor não conseguiu encontrar nenhum lugar bom para se esconder depois de ficar um tempão igual a uma barata tonta, indo de um lado pro outro desesperado, e acabou acredite ou não, entrando num freezer enorme que tem aqui. Esse ato de loucura dele me fez ficar com um pouco de medinho, mas achei que não tinha com o que me preocupar, afinal o meu Visto ainda era válido, certo? ERRADO! A Norah

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atacou de anjo da guarda novamente e me lembrou que pessoas como eu, que tinham Visto de turista, não podiam trabalhar no país, mesmo que fossem adolescentes em empregos temporários de verão. E, que se os oficias da imigração descobrissem isso, talvez eu fosse deportada, pois de acordo com o pensamento deles eu estava tirando o emprego de um americano! Ai minha Nossa Senhora das adolescentes desesperadas, o que eu ia fazer então? Gritar socorro e sair correndo? Não. Graças a um milagre dos céus a Norah tinha uma idéia melhor (cara, independente do crime que ela cometeu devo muito a ela). Falou pra eu ir sorrateiramente pro banheiro tirar o uniforme da loja e depois me sentar em alguma mesa da lanchonete pra fingir que era uma simples cliente, e foi isso que fiz. Quando voltei do banheiro os policiais já estavam dentro da loja falando com a Norah. Sentei em uma cadeira, bem no fundo da lanchonete e fiquei lá com o coração na mão, esperando que aquilo tudo acabasse. De repente um daqueles homens olhou pra mim e começou a vir na minha direção. Engoli seco. Não conseguia pensar em mais nada enquanto ele se aproximava a não ser na minha mãe, nos meus irmãos e, tenho que admitir, no Théo também. Por mais que eu quisesse ir embora desse país, preferia que fosse com um mínimo de decência e não expulsa como uma criminosa. Não sei se a Norah percebeu que o cara havia ficado intrigado comigo, mas ela rapidamente pegou um sanduíche (que era pra ser jogado fora, pois tinha caído no chão) e me

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serviu dizendo: “Here is your sandwish, miss. I hope you enjoy it.” Pelo menos aquele teatro todo dela valeu de alguma coisa. O oficial passou direto por mim e foi checar o banheiro pra ver se algum “ilegal” estava escondido lá. Não achou ninguém, óbvio, e muito menos no resto da loja, então tanto ele quanto os outros caras da imigração se deram por satisfeitos e acabaram indo embora. Nisso nós ouvimos um barulho enorme vindo do freezer e só aí lembramos de que o pobre Héctor estava escondido lá dentro. A Norah correu pra abrir a porta com medo que ele pudesse morrer de hipotermia, mas nosso colega saiu ileso (ainda que tremendo de frio) e foi correndo pro estacionamento tomar sol igual a um lagartinho. É verdade que agora tudo parece muito engraçado, a gente até apelidou o Héctor de “Popsicle” (picolé em inglês), mas na hora foi um verdadeiro susto. Pra ser sincera eu ainda estou meio tensa. Tudo que eu queria agora era ir pra casa. Aqui ou no Brasil, tanto faz, nesse momento só estou precisando me sentir segura e protegida. É pedir demais depois de ter sofrido o risco de ser presa e expulsa dos Estados Unidos? Ai, acho que eu preciso de um abraço... ou terapia! 20:45 (casa de Tia Vivian)­ Vini me pegou na lanchonete e foi voando pra começar o turno dele no Mcdonalds. A Ana foi ao cinema com a Britt e a Carol, e o resto da família foi pra vigília da igreja com tia Vivian. Eles vão ficar lá à noite toda e só voltarão de manhã. Mamãe queria que eu fosse também. Ela ficou meio preocupada em me deixar em casa sozinha, mas

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como eu disse que estava muito cansada (sem falar estressada pelo lance dos oficiais da imigração) e tia Vivian garantiu a ela que a nossa vizinhança era super segura, mamãe acabou cedendo e me deixou ficar. Admito que é meio assustador ficar em casa sozinha. Estou sentada aqui na sala, com a Lola ao meu lado, assistindo ao Fantástico pela Globo Internacional, mas qualquer barulhinho que ouço dou um pulo... Ahhhhhhhhhhh! Como esse!!!!!!! Ufa. Calma Babi! Só estão tocando a campainha. Vou atender... Não. Esperai. E se for o Jason daquele filme? Sabe, máscara de ski, serra elétrica, sede de sangue e vingança... Ou um cara com máscara do pânico? Ou pior, aquele bonequinho dos Jogos Mortais montado num triciclo querendo me seqüestrar e colocar num jogo torturante pra que eu possa reavaliar minha vida e ver o quanto ela é boa? Ah, tá. Como se esfregar chão e ainda por cima num país estranho fosse muito bom! Ain! A campainha de novo! Calma Babi, lembra do lema do Padre Quevedo: “Isso non ecziste. Non ecziste!”

20:46­ Só por precaução olhei pela janela pra ver quem era e adivinhe? É o Théo!!!!! Ai meu pai! O que é que esse doido está fazendo aqui tocando a campainha da minha casa?! E eu? O que é que eu faço? Prometi a mim mesma que ia ficar longe dele! Será que eu devo atender a porta?

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20:47­ Din­Don. Din­Don. E a campainha irritante continua... Está difícil de ignorar. 20:47:53­ Ah, quer saber? Vou atender sim! Uma ova que eu vou ficar bancando a chata: ai­meu­deus­tem­um­garoto­super­ gato­na­minha­porta­oh­como­eu­sofro! 20: 54­ É estranho demais, mas quando ele está por perto não consigo pensar em nada ruim. Nem na saudade do Brasil e muito menos na bronca que minha mãe me daria se soubesse que eu estive sozinha com um garoto em casa. Eu só penso o quanto o Théo é legal e o quanto é bom estar com ele, e aí faço coisas malucas como essa última: aceitar um convite pra sair a essa hora da noite numa cidade desconhecida e ainda sem a permissão da minha mãe! Quero dizer, assim que ele perguntou se eu queria dar uma volta eu rejeitei o convite, mas o Théo se apoiou no batente da porta me brindando com aquele perfume maravilhoso dele e ainda por cima todo arrumadinho com essa camisa de listras (tipo de rúgbi, sabe?) que foi só ele insistir mais uma vez pra eu acabar aceitando. E agora o Théo está lá na sala esperando por mim, enquanto vê o resultado da última rodada do Campeonato Brasileiro no Fantástico e eu troco de roupa aqui no quarto de hóspedes. Ou pelo menos tento, porque eu cheguei a conclusão de que não tenho nada decente pra vestir!

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Ainda bem que eu estou firme no meu propósito de não ter nada com o Théo, senão já teria pirado com a tremenda falta de opções de roupas decentes no meu closet! Sei que não posso botar todo meu plano de fuga a perder por causa de um simples garoto e não vou! Até bolei um mantra pra repetir mentalmente e garantir que eu não faça nenhuma besteira hoje a noite: “OMMMM, Não se apaixone, Babi. Não se apaixone. OMMMMM”. Vamos ver se funciona... 21:07­ Esperai! Eu acabei de passar o brilho labial da Alice? Eu NUNCA passo brilho labial! Pra que eu estou fazendo isso? Vou tirar essa coisa toda agora! 21:08­ Passei o brilho de novo... Por razões óbvias de que eu não quero sair igual a uma ogra pelas ruas de Orlando. Só isso... Só isso MESMO! Humm... Será que dá tempo de fazer uma escova básica? 21:17­ Deixei um recado na geladeira pro povo da casa avisando que eu sai com um amigo. Espero que ninguém dê por falta de mim... 23:49 ­ Ai. Foi uma noite ótima! Tirando algumas coisas que aconteceram, claro. Mas quando é que tudo é perfeito pra mim? Nunca né!

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Bem, apesar do meu cansaço, sair de casa de vez em quando é muito bom! Ainda mais com uma companhia tão boa e um destino melhor ainda: o Théo me levou em um parque de diversões! Ok, não era nada do tipo Disney, mas eu não posso dizer que não me diverti no “Magical Midway”. Na verdade foi tudo meio que uma surpresa pra mim. O Théo não me disse que nós íamos a um parque nem nada. Só quando a gente estava na Rua Internacional Drive e eu perguntei o que eram aquelas duas torres enormes e com luzes coloridas que eu estava vendo pela janela do carro que ele resolveu me contar que era ali que a gente ia. Já estava tudo meio que planejado, tanto que em vez de comprar os tíquetes na bilheteria, o Théo me deu uma pulseirinha VIP do parque ainda no estacionamento mesmo. Ah, e sabe o que eram aquelas duas torres metálicas que eu falei? Um brinquedo super­radical chamado “estilingue”. Por que? Bem, eu vou te dizer o porque: as pessoas eram simplesmente catapultadas pro céu numa velocidade absurda! No começo o Théo ficou todo animadinho pra ir, mas eu falei pra ele que por causa do meu medo de altura eu ia passar longe daquele brinquedo e então ele acabou desistindo da idéia. Infelizmente esse brinquedo não era o único radical do mini parque e o pior é que alguns deles parecem inofensivos a princípio. Tipo um tal de StarFlyer, uma espécie de carrossel de balanços. O Théo me levou pra fila do brinquedo e eu, como ainda não tinha visto o jeito que ele funcionava, fui toda inocente e saltitante pra lá. Somente quando a gente estava subindo a escada pra ir no brinquedo é que a criatura resolve

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me contar que a estrutura daquele carrossel com balanços subia e ficava girando a nada menos que 60 metros de altura! Ahhhhhhh. Ele estava maluco ou o quê? Eu sou cardíaca, para com isso! Na hora eu tentei fugir, mas o Théo me agarrou e me arrastou até me colocar sentada no balanço do brinquedo. Quase morri do coração quando o Carrossel começou a subir e girar lá no alto. Por um tempo eu gritei apavorada, pensei que ia vomitar, desmaiar, “fazer a passagem”, mas logo depois comecei a gostar daquilo. Não sei se pelo fato do Théo ter segurado minha mão bem forte ou se pela vista incrível que Orlando tinha de lá de cima! Segundo o Théo dava até pra ver os parques do Universal Studios ao longe. O triste é que justamente no momento em que eu estava realmente adorando tudo, o nosso tempo no brinquedo acabou, e a fila de gente que já esperava sua vez agora parecia quatro vezes maior, então não deu pra ir de novo. Depois disso o Théo me levou pra andar de Kart, o que foi um verdadeiro desastre, quero dizer, EU fui um verdadeiro desastre! Ele até tentou me dar uns toques antes sobre a pista tipo, onde era bom pra ultrapassar e tal, mas eu já sabia que aquilo não ia dar certo. Eu não era boa nem naquele jogo de vídeo game, o Mário Kart (sempre perdia de forma humilhante pro Dani) quanto mais numa corrida ao vivo e à cores. O Théo é que parecia bem empolgado na hora da largada, ele olhava pra mim e erguia as sobrancelhas conforme acelerava ao máximo o Kart. Foi engraçado, mas ficou mais do que na cara que ele gosta mesmo de velocidade. E sabe o que mais? O Théo ar­ra­sou na corrida! Apesar da gente ter largado em

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último na fila de karts, ele passou todo mundo e ainda deu três voltas de vantagem em mim. Pelo menos não ficou todo se gabando por causa disso. Nós ainda brincamos bastante nos carrinhos bate­bate (ah, nisso eu era boa! Mas também quem não é?), andamos em outros brinquedos bem legais, comemos uma pizza superpicante num restaurante do parque (acho que esse americanos não conhecem outro tempero além de pimenta!) e fomos no Fliperama de lá. Tinha todos os jogos que você possa imaginar naquele lugar, desde os típicos de dança (que eu nem me atrevo, pois sou toda descoordenada) até um de Luta de Box, onde os controles eram luvas de verdade. Assim que a gente entrou no salão, vimos o Kevin e mais um bando de garotos fortões jogando numa daquelas máquinas que tem cestinhas de basquete e um monte de bolas pra você arremessar nelas. Théo e eu fomos falar com ele, e então eu fui apresentada ao grupo e finalmente ao Kevin, já que graças ao “banho” de piscina na casa dela nós não tivemos a oportunidade. Ele foi simpático comigo, na medida do possível, (já deu pra perceber que esse americanos são meio frios quando conhecem gente nova) e até disse que eu parecia muita com a Dakota Fanning. Pode?! Eu, a Dakota Fanning?! Oh­ho­ho, chamem um oftalmologista, tem mais alguém com problemas de visão aqui! Nós só não ficamos conversando mais tempo com o Kevin porque quando eu avisei ao Théo que já estava quase na hora do meu toque de recolher à La Cinderela (mesmo minha mãe não estando em casa, preferi não abusar) ele disse que ainda queria fazer uma coisa comigo antes da gente ir embora. E

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então me puxou pra uma cabine muito parecida com aquelas que a gente tira fotos 3X4 no Brasil, dizendo que nós tínhamos que ter uma lembrança daquela noite. Como o espaço dentro da cabine era meio pequeno, eu falei pro Théo sentar no meu colo (até porque eu não ia sentar no dele nem por um decreto!) e aí ele pegou o Ray­Ban do bolso e o colocou no rosto, porque segundo o Théo, garotos tem que fazer cara de mau na foto pra impor respeito! É claro que ele só estava brincando, mas ficou com o Ray­Ban assim mesmo e nós começamos a fazer poses pras fotos. Primeiro eu e o Théo demos caretas pra câmera, na segunda eu fiz biquinho e ele abaixou os óculos e lançou aquele olhar de playboyzinho conquistador por cima deles. Na terceira, eu puxei as bochechas dele o fazendo dar um sorriso forçado e finalmente, na última, nós estávamos rindo tanto por eu ter dito que ia fingir ser vesga na próxima foto, que não deu nem tempo da gente fazer pose alguma. Quando saímos da cabine e fomos ver o resultado das fotos, eu simplesmente me O­D­I­E­I em todas elas. O Théo tinha ficado um gato, (dã, que novidade!) já eu... Afe! Em algumas parecia que eu tinha um nariz enorme, em outras que o meu rosto era todo irregular. Um verdadeiro horror! O Théo até disse que adorou as fotos e que eu era louca por achar que eu tinha ficado estranha nelas, mas esse discursinho dele não colou nem um pouco e eu obriguei ele a voltar a cabine pra tirarmos novas fotos. Dessa vez o Théo decidiu que não iria colocar o Ray­Ban. Nas primeiras poses eu tentei não me mexer muito e usei o único ângulo em que eu não parecia uma ogra: o bom e velho

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perfil. Na última foto, no entanto, eu esqueci completamente da minha busca pela pose perfeita e comecei a olhar pro Théo. Ele passou o braço por trás do meu pescoço e retribuiu o olhar sorrindo. Eu nunca tinha visto os olhos dele tão de perto e tudo que queria era mergulhar naquelas enormes piscinas que eles pareciam. O mantra que eu tinha bolado em casa desapareceu da minha cabeça como fumaça enquanto o Théo se aproximava bem devagarzinho do meu rosto. Oi? Mantra? Que mantra? Meu coração acelerou. AI MEU DEUS! Será que ele ia me beijar? Será MESMO que ele ia me beijar? Vai saber... Bem na hora em que os nossos narizes estavam quase se tocando.... tchan­tchan­tchan­tchan... o infeliz do Kevin colocou a cabeça dentro da cabine, disse “Cheese!” pra câmera e depois saiu correndo as gargalhadas. O Théo saiu na mesma hora em disparada atrás dele, xingando alguma coisa em inglês (pelo menos, pelo tom era o que parecia) e quando alcançou o Kevin quase na porta de saída do Fliperama por onde ele tentava fugir, deu uma chave­de­ pescoço no garoto. Eu realmente achei que o Théo fosse matar o Kevin, apesar de ser bem mais fraco que ele, mas no final de tudo os dois já estavam gargalhando e então percebi que a lutinha deles não passava daquelas brincadeiras brutas e idiotas de meninos. Quanto às fotos, eu realmente preferi as últimas que a gente tirou ­mesmo com o cabeção loiro do Kevin aparecendo em uma delas­ por isso o Théo ficou com as primeiras enquanto que eu fiquei com as outras de lembrança.

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Como já estava meio que em cima do meu horário, Théo e eu nos despedimos do Kevin e viemos embora. E é aí que a noite até então perfeita se torna não tão perfeita assim. No meio do caminho pra casa o Théo inventou de tomar um Sundae no McDonald’s. Ele disse que ia dar uma parada rapidinha num 24 horas que tem na Rua Hiawasse e eu, sem saber quem estava lá, concordei. Afinal, que mal ia fazer um Sundae? Vai vendo... Então, nós paramos no estacionamento do dito McDonalds e, quando o Théo e eu entramos na lanchonete rindo a beça porque tínhamos visto um cara a pé no Drive­through (não estou brincando. Ele estava a pé mesmo!) tive a maior surpresa da noite ao me deparar com meu primo Vini, bem atrás do balcão. Puuuuutz! Tanto McDonald’s nessa terra do Fast Food e nós paramos logo no que ele trabalha? É, alguém lá em cima não gosta mesmo de mim! Meu primo estava com aquela roupa feiosa de atendente e uma cara que era apura mistura de tédio e sono, mas minha presença pareceu ter despertado ele como se tivesse levado um beliscão. “Bárbara?! O que é que você está fazendo aqui a essa hora da noite? “Dei uma saidinha rápida com...er... um amigo...” eu disse morrendo de vergonha e culpa. Nesse momento o Théo chegou por trás de mim. A expressão de surpresa do Vini deu lugar a duas sobrancelhas cerradas e uma cara de poucos amigos.

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“Vocês se conhecem?” o Théo perguntou se aproximando do balcão. Eu respondi que sim, expliquei que nós éramos primos e tive que encarar o olhar gelado do Vini pra ele. “Por favor, que eles não se reconheçam! Por favor, que eles NÃO se reconheçam! “era tudo que eu conseguia pensar. “Cara, você me lembra muito alguém” o Vini disse... E ele dispara o relógio da bomba! “Será que a gente já se viu antes?” o Théo rebateu. Iniciando contagem regressiva: 5... “Quem sabe... Você está há muito tempo em Orlando?” 4... “Na verdade eu sou daqui, mas por causa da minha família brasileira eu fico seis meses em Orlando e os outros seis passo no Brasil.” 3... “Entendi... em que escola você estudou?” 2... “Agora eu estou na Olympia High, mas fiz o secundário todo na Gotha Middle.” 1... “O seu nome, por um acaso, é Théo Medina?” 0... “É. Como você sabe?” BUMMMMMMMMMMMMMM! “Estudei com você na Gotha Middle” o Vini falou super calmo.

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Mas hein? Cadê a briga? Cadê o ranger de dentes? Cadê a raiva mortal que a Ana disse que o Vini sentia pelo Théo? O que é que está acontecendo aqui afinal? “Foi mal cara, mas eu não lembro de você” o Théo se desculpou “ Sou péssimo pra gravar fisionomias. Qual é o seu nome mesmo? Victor, não é?” Por sorte não deu tempo do Vini responder. A supervisora dele (que era americana, mas falava espanhol) apareceu do nada e, o chamando pelo sobrenome, mandou ele parar de conversar e continuar o trabalho. O Théo pediu dois Sundaes de chocolate e assim que os pegamos, eu me despedi do Vini garantindo que ia pra casa e segui direto pro estacionamento com o Théo. Lá, ele parou de repente olhando de forma estranha pro Sundae que ainda não tinha dado uma única colherada sequer. “O seu primo não vai com a minha cara” “Porque você está dizendo isso?” “Porque eu acho que vi ele cuspindo no meu Sundae.” “Nãããão. Ele não faria isso... “eu disse indo em direção ao carro do Théo. “Ah, é? Então porque além da calda e dos M&Ms tem ranho também cobrindo o meu?” o Théo questionou, me mostrando o copo de sorvete. ECA! QUE NOJO! É, agora não tenho dúvida que o Vini tinha reconhecido ele. Meio chateado o Théo jogou o Sundae no lixo e eu tentei contornar a situação oferecendo um pouco do meu. “Pelo menos o cara caprichou na sua vez” ele disse rindo, enquanto saboreava uma colherada que eu tinha dado a ele na

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boca. Mas depois disso o sorriso do Théo se apagou e ele ficou só olhando fixamente pra mim. “Você se sujou um pouco com a calda” ele disse apontando pro meu rosto. Antes que eu pudesse pensar em pegar o guardanapo que tinha no bolso o Théo se aproximou de mim, segurou meu queixo e começou a limpar o cantinho da minha boca com o polegar. Meu coração deu saltos. Eu esperava que qualquer coisa acontecesse naquela hora, menos que o meu telefone fosse tocar. E foi isso que aconteceu. Ah, tá brincando né? Eu tirei ele rapidinho do bolso de trás da calça e reconheci o número do Vini no visor. Automaticamente olhei pro McDonald’s e vi que ele estava na vidraça sibilando: “Vai pra casa ou eu ligo pra sua mãe!” Eu revirei os olhos, disse pro Théo que a gente precisava ir embora logo antes que o meu primo me dedurasse porque eu não tinha pedido permissão pra sair de casa e entrei no carro dele bufando. Ao chegar na frente da casa de tia Vivian levei um susto enorme. As luzes da sala estavam acesas agora e eu tinha deixado elas desligadas quando sai, o que era um claro sinal de que alguém tinha chegado. Pensando ser minha mãe, entrei em pânico e nem me despedi direito do Théo. Ele ficou me pedindo pra esperar, mas eu não ouvi mais nada. Mandei um beijo pra ele no ar, agradeci pela noite ótima e sai correndo do carro morrendo de medo de quem eu ia encontrar. Será que o Vini tinha me dedurado? Ah, aquele traira sem coração! Já dentro de casa, apesar da luz acesa, não havia sinal de ninguém na sala. Fui até meu quarto, o de tia Vivian, mas pro

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meu alívio minha família não tinha voltado da vigília ainda. Ufa! Tive a idéia de procurar no quarto da Ana e aí , ao ver minha prima deitada na cama dela, já no quinto ou sexto sono, é que o mistério se solucionou. Então vim pra aqui pro meu quarto, bem quietinha e já vou dormir. Isso se eu conseguir parar de pensar no Théo. Mas também, ficar vendo e revendo as fotos que a gente tirou no parque não ajuda nem um pouco. 01:02­ Nossa, quem será que está me mandando uma mensagem de texto a essa hora? A Mari ainda não tem meu número. 01:03­ Claro! Só podia ser ele... Pena que o torpedo veio cortado. <Sugestão de música: You give me something­ James Morrinson. “Cause u give me smthing That makes m scared alright This could be nothing But I’m willing to give it a try Plz give me smthing” p.s.: desculpe pela sms de madrugada, sei q eh tarde mas eh q n consigo dormir

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e nem de parar de pensar em> Pensar em que? Será que era em mim?????? Meu Deeeeeeeeeeeus que tortura! Malditos burocratas das telecomunicações e seus caracteres contados! Será que eles não sabem que três letrinhas a mais podem salvar a vida de uma pessoa?

Junho 11:37­ Depois de acordar a Ana me crivou de perguntas. Ela tinha visto o bilhete na geladeira quando chegou e queria saber a qualquer custo quem era o tal amigo com quem eu sai, embora ela tivesse dito que já tinha uma certa ideia... Tentei mudar de assunto perguntando como foi o filme e inventando um monte de coisas pra desviar a atenção dela, mas a Ana não era nada boba e ficou me encarando de braços cruzados com aquela cara de “desembucha, Babi” que ela tem feito muito

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ultimamente. Percebi que não tinha escolha, então puxei minha prima pro quarto (mamãe estava na sala estudando plantas de casas e poderia ouvir) e comecei a contar: “Fui num parque de diversões com o Théo” eu disse sem muita animação, pra disfarçar. Na verdade eu estou empolgada até agora! “A date hã?” ela disse com aquele sorrisinho malandro. Sério, eu odeio essa mania da minha prima de misturar inglês com o português. Eu fico perdidaça! “Ana, pra começo de conversa eu nem sei o que é isso, tá.” eu disse em minha defesa, embora eu sentisse que o que quer que “date” fosse com certeza era algo que eu não iria querer ouvir. “Aqui quando duas pessoas estão naquela fase da paquera eles tem um encontro, ‘date’, pra se conhecerem melhor.” ela disse toda didática como se eu fosse uma criancinha burra do jardim de infância. Eu garanti que não teve date nenhum, mas a Ana ficou me pentelhando pra saber se rolou beijo. Eu disse que não e aí, como já tinha falado sobre quase tudo mesmo, contei do “acontecimento” no McDonald’s. Quero dizer, quando o Vini deu de cara com o Théo e não fez absolutamente nada. Ao ouvir isso os olhos da Ana se arregalaram como se ela tivesse acabado de se entalar com uma bala Soft. “Tem certeza que o meu irmão reconheceu ele?” minha prima perguntou ainda sem acreditar. “Total.” eu garanti. “Foi como eu te disse, o Vini chegou a perguntar o nome do Théo e quando ele respondeu, ficou tudo numa boa. Quero dizer, exceto pelo Sundae com ranho. Mas

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pelo o que você tinha dito, eu esperava no mínimo um nível 5 de destruição quando os dois se encontrassem, e não um estalinho de festa junina, como foi.” “Hummm. Não sei não, Babi. Isso está muito esquisito. Não é a cara do Vini deixar uma coisa dessa passar em branco. Ainda mais quando isso envolve o cara que ele mais detesta”. minha prima afirmou. Nós ainda ficamos sentadas na cama um tempinho, meio pensativas, tentando achar uma explicação pra reação civilizada (e anormal) do Vini, mas já estava quase em cima da minha hora de ir pro trabalho, então eu fui tomar meu banho. O Vini, que acordou quando eu sai do chuveiro (isso já lá pelas onze da manhã) estranhamente não trocou uma palavra sequer comigo enquanto me levava pro Firehouse Subs. Foi só no momento em que eu me despedi dele em frente a lanchonete, que o meu primo segurou o meu braço me impedindo de sair do carro e falou comigo afinal. Na verdade “falar” é maneira de dizer, ele simplesmente me interrogou! “De onde você conhece o Medina, Bárbara? Ele é o tal cara do avião que a tia Val comentou? E o que você estava fazendo com o ele ontem, aquela hora da noite? Vocês estão saindo juntos por um acaso?” o Vini disparou a queima roupa, sem nem ao menos respirar. Eu fui tão pega de surpresa por todas aquelas perguntas que não sabia por onde começar as explicações. Gaguejei, fiquei nervosa, me encolhi toda no banco e só disse o básico. Tipo: sim, ele era o cara do avião e não, nós não estávamos saindo juntos. Aquela noite foi um evento isolado e só.

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A expressão do Vini relaxou ao ouvir isso, mas ele não parecia totalmente satisfeito. “É melhor mesmo que você não esteja ficando amiga desse cretino. Você não sabe a sacanagem que ele fez comigo...” meu primo disse começando a se irritar de novo. A verdade é que eu sabia muito bem o que tinha acontecido, a versão oficial da coisa toda, só não ia falar isso pro Vini naquele momento. Dizer que o Théo não teve culpa da expulsão dele só iria deixar meu primo ainda mais irritado. “... mas esse gringo metido a brasileiro vai me pagar um dia. Ah, se vai! No McDonald’s eu tive que me controlar, por causa daquela gerente chata quê só quer um motivo pra me por no olho da rua, mas espera só esse cara cruzar o meu caminho de novo por aí. Vai voltar pra casa com um monte de dentes a menos!” ele ameaçou batendo no volante com força. Nem parecia aquele Vini calmo e caladão que foi nos pegar no aeroporto de Orlando. Eu sacudi a cabeça meio apavorada mostrando que tinha entendido o recado – Ok, nada de Théo!­ e, me despedindo do meu primo, entrei correndo na lanchonete com a desculpa que estava atrasada. Na verdade ainda faltavam dez minutos pro meu turno começar e então eu fiquei conversando com a Norah sobre o dilema “Théo e Vini”. O que ela fez ontem por mim, me ajudando a despistar os caras da imigração, acabou aproximando bastante a gente. Até descobri que o crime que ela cometeu não foi tão grave assim. Quero dizer, vender remédios sem receita é errado (apesar de muitos balconistas de farmácias lá no Brasil fazerem isso como se fosse a coisa mais normal do mundo) e você pode prejudicar a saúde de

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muitas pessoas fazendo isso, mas pelo menos a Norah não era uma louca psicopata que retalha os outros pra comer com bacon matou ninguém como eu tinha pensado e está pagando direitinho o que deve a sociedade. Ela disse em espanhol que nessa briga entre o Théo e o Vini eu deveria seguir o que meu coração queria, se era continuar amiga do Théo ou preservar minha relação familiar com meu primo. E que independente da escolha que eu fizesse, ia haver uma perda de qualquer jeito. Agora só cabia a mim decidir qual seria. Filósofa essa Norah, hein! 15:53­ O dia hoje no Firehouse Subs está sendo “pauleira”. Milhares de turistas de toda a parte do mundo já apareceram por aqui. Sem falar que teve banheiro entupido, pilhas de louças pra lavar, chão pra varrer... Eu seriamente pensei em processar o senhor Alcazar por trabalho escravo infantil e desistir desse emprego sugador de vida. Só não fiz isso porque lembrei que o salário daqui vai ser meu passaporte pra dar o fora de Orlando, então continuei fazendo o serviçinho sujo. Literalmente. Na hora eu achei que seria fácil decidir. Nunca mais ver o Théo e ignorar os telefonemas dele no final das contas só ia me ajudar a canalizar toda a minha atenção pro meu plano de fuga de Orlando, mas agora eu já não sei se quero ficar longe dele nesse tão pouco tempo que eu ainda tenho aqui nessa terra.

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Gosto da atenção que ele me dá, do jeito fofo que ele fala comigo, dos gestos de carinho que. Talvez eu esteja sendo muito dramática.

Junho (lembrar q pula um dia de ontem pra hj pq não deu tempo dela escrever) 14:19­ Estou escrevendo sentada aqui num cantinho entre o fogão e a geladeira. É difícil ter um tempinho livre pra isso. Ontem nem deu pra escrever porque sempre tem um cli... Ah, não! Viu? Nem bem falei e um cliente já está me chamando de novo. Vou lá atender. 14:27 – Pronto. Voltei. Então, continuando... Tem sempre uma criatur... Puuuutz! Tá de brincadeira, né? Acabou de estacionar uma van cheia de turistas brasileiros aqui na frente! Dá pra ver que eles estão numa excursão pra Disney pelas camisas amarelas iguaiszinhas escrito: “Turminha da tia Carla no mundo mágico do Mickey”. O bizarro é que a maioria da “turminha da tia Carla” é composta por um bando de marmanjos! Alguns com a pança maior do que a do meu tio Oscar. Sério, deu vergonha alheia agora desse povo vestido com essa camisa da cor do Piu­piu e ostentando um slogan tão ridículo. Melhor eu atender esses pobres coitados logo. Brasil me espera e ainda faltam _______ dólares pra eu poder comprar minha passagem e ir pra casa. Então, mãos a

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obra! Gorjetas são bem vindas, pessoal da “turminha da tia Carla”! 18:50 (No estacionamento do Firehouse Subs)­ Estou “moída”! Não consigo nem me mexer direito de tanto que trabalhei, mas vi uma coisa muito estranha hoje e quero registrar aqui antes que eu me esqueça e o Vini chegue pra me levar pra casa. Quando o bando de brasileiros sedentos por gordura foi embora, o Héctor não colocou na caixa registradora o dinheiro que ele recebeu como pagamento pelos dois sanduíches que um dos fregueses tinha comprado. Eu não falei isso pra ninguém, nem pra Norah, e aparentemente o Héctor não percebeu o que o vi fazendo. Estou em dúvida se conto ou não pro senhor Alcazar. Não gosto de bancar a dedo­duro nem nada. Se bem que, pensando bem agora, talvez o que eu vi tenha sido só o Héctor botando a gorjeta dele no bolso. Pode ser, não pode? É. Eu devo ter me confundido mesmo. O Héctor nunca iria desviar dinheiro da lanchonete. Pelo o que me contou num dia desses, ele sofreu muito pra chegar até aqui nos Estados Unidos. Pagou um dinheiro absurdo pra um “coyote” atravessar ele na fronteira do México, andou uma noite inteira no deserto do Texas tendo que esfregar alho esmagado de hora em hora no tênis pra espantar as cobras, passou fome, sede, quase levou um tiro de uma patrulha americana... Ele não iria correr o risco de estragar o seu sonho americano sendo deportado por causa de míseros $10. Duvido muito.

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Junho Casa de tia Vivian 19:42­ Imagine que o seu corpo não tem nem mais um pingo de energia e você não consegue nem ficar de pé porque todas as partes dele doem. Imagine que os seus pés estão tão doloridos e que mesmo você usando tênis o tempo todo eles estão formigando e cheios de bolhas. Imaginou? Prazer, esse bagaço sou eu depois de mais um dia no Firehouse Subs! E pra piorar ainda mais a situação, sabe o que eu percebi? Ninguém se lembrou que amanhã é o meu aniversário! Olha, tudo bem que meus primos não tinham muito contato comigo devido á distância, e que minha mãe e meus irmãos ainda estão meio atordoados com essa mudança recente pra Orlando, mas esquecer o meu aniversário de QUINZE ANOS é brincadeira! O Vini até veio todo atencioso (ah, se ele soubesse que eu vou sair com o Théo amanhã) sentou ao meu lado e ficou brincando com o meu cabelo, enquanto eu comia um pote enorme de sorvete Häagen Dazs sabor banana split e assistia a TV, mas tudo que ele queria era perguntar se eu estava a fim de ir a uma festa junina num condomínio na Metro West, onde uns amigos brasileiros dele moram. Fiquei irada, disse que não queria sair pra droga de lugar nenhum (apesar de estar morrendo de vontade de ir, pois eu amo festas Juninas) e me tranquei aqui no quarto. Do corredor, ouvi mamãe dizer pro Vini não ligar, pois eu devia estar muito cansada do trabalho e,

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pasmem, lá foi ela com o meu primo e quase todo mundo da minha família pra tal festa.

Junho Mari: Flor, pq vc não aparece por aki +? O que está acontecendo? Muito trabalho? Ou a sua ocupação começa com T. ? Será q eu vou ter q escrever saudade num tijolo e tacar na sua cabeça pra tu ver como saudade dói? =’( Há dias * Curtir * Comentar : Ui, a Mari está violenta! kkkkkkkkkkk Mari: Miga linda e sumida! Vc tinha q estar aki na festa junina da escola! Foi tão legal! Tá, não tão legal assim pq o meu par faltou e eu tive que dançar quadrilha com o Felipe, akele lerdão q soh senta no fundo da sala pra dormir! Mas tirando isso foi ótima! Há dias * Curtir * Comentar *

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: legal foi a Joana, nossa prof de matemática, cuidando da barraca do churrasquinho e do salsichão! Vamos chamar ela de Jojo Labareda agora! KKKKKKKK : É, ela quase botou fogo na barraca! Huiahuiahuia. Mari: Nem fala nisso, até eu tomei o maior susto quando vi a labareda subindo! Foi tenso! Mari: Niver chegando hein! Quais são os planos pra aí? Vou te mandar um presente por Sedex. Espero que chegue a tempo. Me passa o seu endereço certinho. Bjim! : ) p.s.: Vc sabe qnto custa um Sedex pra Orlando? Há dias * Curtir * Comentar *

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Junho 12:40­ Indo pro FireHouse Subs trabalhar. Ainda estou nas nuvens! Não consigo parar de pensar no Théo e nem de parar de falar nele. A Ana já disse que não agüenta mais ouvir esse nome e fica me perguntando quando eu vou ajudar a com o Kevin, pois ela também quer um “príncipe importado”. Não tenho idéia de como fazer isso (se bem que eu devo muito a minha prima, pois por minha culpa ela não disse nem um “oi” pro Kevin na festa de boas vindas do Théo). A única coisa que sei, no entanto, é que estou nas nuvens! Ai, ai. Nunca tive um aniversário tão bom... 13:00­Cheguei no Firehouse Subs. O senhor Alcazar não está nos melhores dias dele. Eu sei disso porque ele não entrou na loja hoje cantando “el dia em que me quieres”, música que é um clássico sinal de que ele acordou com o pé direito. 18:20­Oh, Deus. Como isso pode ter acontecido? Como eu posso ter caído assim das nuvens direto no inferno? E porque ele fez isso comigo?Por quê? Eu pensei que éramos amigos!

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Tá, tudo bem, não amigos, mas pelo menos colegas de trabalho. Como ele pode ser tão baixo a esse ponto? Ok. Eu explico, isso se as lágrimas deixarem e pararem de borrar o que eu escrevo nesse diário. (explicar o lance do cara aqui) E agora estou aqui, aos prantos, usando um bando de guardanapos que a Norah me deu pra eu secar os olhos. Tem umas pessoas ao meu lado e elas estão olhando pra mim provavelmente pensando “Que é que deu nessa louca pra estar se esgoelando assim?”. Mas o que elas queriam? EU ESTOU DESESPERADA, SEM FALAR HUMILHADA! Nem sei como ainda não botei o almoço todo pra fora! Meu estômago está todo revirado... Espera. Tem uma pessoa aqui. Acho que ela está falando comigo em português! Pelo visto é brasileira! Ei, agora eu a reconheço, ela estava no Firehouse Subs quando o meu chefe me expulsou aos berros de lá. Vou ver o que ela quer. Acho que mencionou algo como carona. Não sei...

15:90­ Não sei como sobrevivi a tudo que aconteceu. Sem exageros! Nesse exato momento em que escrevo, estou até mesmo tendo que fazer nebulização pra tentar domar a crise terrível de asma que me atacou hoje. Não gosto muito de usar meu nebulizador, já que ele tem a forma tosca de um elefantinho, mas era isso ou sucumbir com falta de ar, então apesar do mico cá estou eu escrevendo neste diário com a mão esquerda enquanto seguro o nebulizador no rosto com a outra e choro feito uma criança.

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Quase me meti numa cilada hoje e o Théo... Só rezo pra que ele esteja bem agora, pois se alguma coisa acontecer com ele não vou me perdoar. NUNCA! E tudo por quê? Porque eu ignorei o principal conselho de minha mãe de não falar com estranhos! Sabe aquela mulher brasileira? Aquela que me ofereceu carona? Pois é, eu aceitei. Mas entenda o meu lado, por favor, eu estava me sentindo tão sem chão e um lixo tão grande que, apesar do meu cérebro ter mandado vários avisos pra eu desconfiar, acabei encarando a oferta da carona como um gesto de bondade. Além disso, ninguém faz idéia do quanto é bom ouvir o seu idioma num país estranho quando tudo parece estar “desmoronando” ao seu redor. Então achei que não tinha problema em ir com a tal mulher. Não podia estar mais errada... Entrei no carro, achando que ainda existiam pessoas boas no meio dessa humanidade podre e a mulher, que pelo sotaque era nordestina, se apresentou como Rochele enquanto me estendia uma caixa de lenços de papel das Princesas da Disney. Eu disse meu nome também e ela perguntou onde eu morava, porque daquele jeito eu obviamente não ia conseguir chegar a lugar nenhum. Nisso, me prometeu que ia me levar até em casa e, no meio do caminho, nós começamos a conversar sobre o que tinha acontecido no Firehouse Subs. Na verdade, foi ela quem falou praticamente o tempo todo, porque eu mesma disse pouca coisa. Fiquei a maior parte do tempo chorando e enxugando o nariz com os lenços. Quase vinte minutos depois disso olhei pela janela e vi que a aparência da vizinhança tinha mudado. Mesmo ainda não

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sabendo andar direito por Orlando, percebi que pelo tempo eu já deveria estar em casa e não naquele lugar que nunca tinha visto na vida. Não que fosse horroroso (porque eu acho que aqui nessa cidade nada consegue ser desse tipo), mas as ruas por onde começamos a passar tinham um clima estranho. Um ar meio abandonado e decadente. “Onde é que a gente está?” eu perguntei sem conseguir esconder o medo na voz. Na verdade, ele devia estar estampado em toda minha cara vermelha e inchada de lágrimas. Rochele disse pra eu não me preocupar porque ela ia dar uma passadinha no antigo trabalho dela, mas que logo depois me deixava em casa. Por algum motivo eu senti um mau pressentimento naquilo tudo. Não sei se foi pelo vestido curto de oncinha que ela estava usando (e que eu não tinha visto no restaurante porque ele estava escondido debaixo de um sobretudo preto), pelas guimbas de cigarro espalhadas pelo chão do carro ou se pelo jeito que ela me olhou de cima abaixo quando eu respondi que tinha quatorze quinze anos. Só senti que aquilo não ia terminar bem. Ainda rodamos mais alguns minutos por aquela vizinhança (eu já com a idéia maluca na cabeça de abrir a porta e descer rolando igual aqueles caras nos filmes de ação de Hollywood) quando a Rochele parou o carro bem em frente a um lugar que parecia mais uma boate abandonada (nesse momento já estava escurecendo e as luzes da cidade começavam a se acender). Ela então saiu do carro e disse que ia falar com o ex­

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chefe dela, mas pediu pra que eu esperasse ali, pois ia voltar rapidinho. É claro que foi só a criatura estranha sumir da minha vista, pra eu pular do carro, jogar fora a bola de lenços de papel usados e começar a correr. Não sabia pra onde deveria ir, só sentia que tinha que me afastar ao máximo dali. Depois de um tempo, meus pulmões começaram a falhar e eu sabia que um ataque de asma estava bem próximo. Como esqueci a bombinha em casa e parecia até que tinha um gato ronronando dentro do meu peito, resolvi parar de correr e comecei a caminhar. A vizinhança por ali ainda era meio desoladora. Muitos lugares pareciam abandonados, pouca gente circulava pelas ruas e as que faziam isso ficavam me encarando. Teve até uma hora em que um garoto negro com uma calça jeans enorme ficou um bom tempo andando do meu lado, falando comigo em inglês, enquanto me mostrava alguma coisa na mão. Não vi o que era, mas percebi pelo tom insistente do garoto que ele estava tentando me oferecer algo. Eu gelei, meu coração disparou parecendo que estava pulsando nos meus ouvidos e então resolvi apressar o passo. Alguns minutos depois, quando virei a cabeça pra trás, vi que o garoto já estava abordando outra pessoa. Mais à frente na calçada onde eu estava umas mulheres de roupas curtas e totalmente chamativas conversavam rindo. Só aí eu me dei conta. Deus, eu estava na periferia de Orlando! Sim! Sim! Orlando, a cidade perfeita que milhares de turistas amam, a terra do Mickey e do castelo da Cinderela também tinha o seu lado “nada mágico”.

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Comecei a me desesperar (e a chorar também). Muito mesmo! Não sabia como voltar pra casa, nem pedir um táxi e muito menos onde pedir ajuda. Nenhum lugar parecia confiável ali, mas eu sabia que tinha que sair daquele lugar de qualquer jeito. Antes que fosse assaltada ou coisa pior! Na hora, pensei em ligar pro Vini, depois pra mamãe ou tia Vivian, mas não queria levar uma bronca deles e nem receber nenhuma liçãozinha de moral naquele momento. Já bastava o que eu estava passando, né? E foi nesse exato momento que eu lembrei dele. Sim! Ele ia vir me salvar com certeza! Então tirei o celular da mochila e digitei o número do seu telefone... “Théo?” perguntei choramingando quando ele atendeu. Tentei explicar bem rápido o que tinha acontecido, mas os soluços faziam eu parecer que estava falando qualquer outra língua, menos o português. “Babi, calma! Me explica direito. Você está bem? Alguém te machucou? Para de chorar, por favor, e me diz o que aconteceu.” Ele disse parecendo nervoso. “Eu... pe­peguei uma ca­carona e... e não sei onde vim parar. Théo, eu to mo­morrendo de me­medo! Tem muita ge­ gente estranha a­aqui. Vem me buscar, por­por favor” eu disse soluçando. “Onde você está?” “Na­não faço idéia. Só me ti­tira daqui pelo AMOR DE DEUS!” eu gritei e comecei a chorar de novo. Meu telefone deu um bip avisando que a bateria dele estava baixa. “Calma, Babi. Me escuta, tá bom? Faz o seguinte, olha em volta e me diz o que você está vendo.” O Théo disse meio

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esbaforido. Depois só ouvi ele sussurrar pra si mesmo “cadê a droga desse tênis?”. Eu fiz exatamente como o Théo mandou e contei sobre tudo que havia ao meu redor. Na calçada onde eu estava tinha um clube com letreiro luminoso escrito “Baby Dolls” e do outro lado da rua, uma série de concessionárias com pátios abarrotados de carros. Nem sinal das casinhas bonitinhas e familiares que eu via por Orlando. “Cara. Eu não faço idéia de onde você está. Tenta procurar uma placa de rua.“ ele sugeriu. Pelo barulho que eu ouvi no fundo da ligação ele já devia estar ligando o carro. Andei alguns minutos pra ver se achava alguma pista de que lugar era aquele, até que cheguei numa esquina. “Acho que encontrei alguma coisa” eu disse esfregando o nariz e comecei a tentar explicar no meu melhor inglês: “As placas dizem Pauline Avenue e S. Orange BlossomTrail ...” “Caramba! Você está na O.B.T!” ele gritou e eu ouvi uma freada brusca de carro do outro lado da linha. “Babi, essa é a área mais barra pesada de Orlando! Como você foi parar aí?” Eu disse que não sabia e o tom de desespero do Théo me fez começar a chorar de novo. Eu estava perdida, num lugar perigoso e com um celular prestes a “morrer”. Ou seja, eu estava ferrada. Muito ferrada! Naquele momento a vontade de estar á quilômetros dali, no Brasil, voltou com força total! Por que raios eu tinha ido praquela droga de terra? Por que , meu Deus? Porquêêêêê? Foi o Théo que cortou meus pensamentos raivosos e angustiados.

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“Babi, me escuta! Não fica na rua. Tá bom? Procura uma loja de conveniência, um posto de gasolina, qualquer coisa. Mas não fica dando bandeira por aí não, ouviu?” “O­ouvi.Tem u­uma lanchonete pe­pequena aqui pe­perto” eu disse tentando raciocinar um pouco quando o choro deixou. “Isso! Vai e fica lá que eu te pego daqui a alguns minutos. Qual é o nome dela?” “Steak Out lanches” respondi limpando o nariz com o punho. “Descreve ela pra mim.” O Théo pediu. Nessa hora meu telefone apitou de novo avisando que a bateria estava prestes acabar. “A placa é amarela e as paredes tem uns azulejos vermelhos e amarelos e... Théo? Théo?!” Silêncio. O telefone tinha apagado, me fazendo entrar em total desespero. A falta de ar piorou, mas eu usei a parte lúcida do meu cérebro e me arrastei até a lanchonete. Minha única chance de sair daquele lugar era ficar no Steak Out e rezar pro Théo me encontrar. Se ele não conseguisse... Ai, meu Deus... Quando entrei na lanchonete ela estava meio vazia. Só tinha duas pessoas (estranhas) comendo sentadas nas mesinhas e uma (mais estranha ainda) pedindo um lanche. Eu decidi que seria melhor comprar alguma coisa, só pra disfarçar, então pedi uma Coca pequena (pelo menos trabalhar no Firehouse Subs ajudou um pouco meu inglês) e fiquei olhando nervosa pela janela da lanchonete a espera do Theo. Como meu celular havia “morrido”, não fazia ideia de quanto tempo tinha passado. Se segundos ou séculos, se bem que pra mim pareciam mais milênios! Nem preciso dizer que eu estava uma

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verdadeira pilha de nervos naquele momento. Não sabia se batia o pé, roia as unhas ou tomava o resto do refrigerante. Os atendentes da lanchonete já olhavam desconfiados pra mim e eu retribuía sorrindo amarelo pra eles, rezando em silêncio pra que eu saísse o quanto antes daquela situação terrível. De repente um carro preto surgiu no estacionamento da lanchonete fazendo meu coração disparar. Tinha que ser ele. Sim! Sim! Era ele! Oh, obrigado Meu Deus! Obrigada! Obrigada! Obrigada! Acompanhando tudo pela janela, vi o Théo descer do Land Rover vestido com uma camisa da seleção brasileira e caminhar em direção à entrada do Steak Out lanches. Não me contive. Larguei o copo de refrigerante e fui ao encontro dele correndo e chorando. Na hora o Théo não me perguntou nada, apenas me abraçou apertado dizendo que estava tudo bem agora e foi aí que eu chorei mais, só que de alívio. Nunca havia me sentido tão protegida antes quanto me sentia agora, nos braços dele. Por mim eu ficaria durante toda a eternidade naquele abraço, sentindo o seu cheirinho (não era perfume não, era o cheiro natural dele mesmo e muito bom por sinal), mas o Théo me deu um beijo na testa, secou minhas lágrimas com os polegares e me guiou pra que eu entrasse no carro. Suspirei de alívio novamente ao olhar pela janela do Land Rover e ver que aquela vizinhança estranha começava a ficar pra trás. Eu ainda chorei algumas vezes no carro, mas o Théo sempre tirava uma das mãos do volante pra fazer carinho na minha cabeça tentando me consolar. Ele até me falou que se eu quisesse, o noivo da tia dele, que era advogado, podia entrar com um processo por constrangimento contra o meu

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antigo chefe. Eu respondi que queria só esquecer aquilo tudo e ir pra casa. Foi aí que eu reparei que o Théo estava meio que espremendo os olhos ao olhar a rua. Ele notou que eu o estava encarando e me deu um sorriso meio sem graça. “Pode rir do cegueta aqui. Mas a culpa de eu não estar enxergando agora é toda sua, tá! Saí tão alucinado pra te pegar que na correria acabei esquecendo os óculos em casa.” ele disse fazendo o maior esforço pra enxergar uma placa. Eu ri mesmo, mas me ergui um pouco do banco e dei um beijinho estalado na bochecha dele. Na verdade uma grande parte de mim queria que fosse em outro lugar bem por ali por perto. Só que eu não podia... “Nossa... Acho que você devia ficar perdida mais vezes na O.B.T” o Théo disse fazendo piada. Nós rimos e eu dei um soquinho de leve em seu ombro, mas o rosto risonho do Théo ficou tenso assim que ele olhou pelo espelho retrovisor. Eu me virei pra trás tentando entender o porque daquela mudança tão rápida de humor e vi que havia um carro da polícia com as luzes apagadas super colado na traseira do Land Rover. “Babi, vê o que é que está escrito nessa placa que está vindo, por favor.” Ele pediu parecendo meio tenso. Eu olhei pra frente e li alto: “Speed Limit 30”. O Théo imediatamente encarou o velocímetro do carro dele e ficou branco como se tivesse visto um fantasma. O ponteiro já havia passado do número 50 o que, no bom sistema métrico brasileiro, significava que ele estava dirigindo á quase 80 Kms

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por hora numa estrada em que o limite era só de 48! E isso dá multa séria aqui! “Por favor, não liga o giroscópio. Não liga o giroscópio...” o Théo ficou repetindo pra ninguém em especial enquanto olhava pelo retrovisor. De repente as luzes vermelhas e azuis do carro de polícia se ascenderam e a viatura soltou um som engraçado, que parecia mais um pio. O Théo deu um soco no volante e depois perguntou se eu tinha trazido o meu passaporte. Eu confirmei que sim e então ele foi saindo lentamente da estrada e encostou o carro. Não deu nem dois minutos e um policial bigodudo já estava batendo na janela do Land Rover. O Théo engoliu seco, baixou o vidro devagar e saudou o policial com a cabeça. O homem não respondeu, apenas olhou pra mim desconfiado e depois pro Théo de novo, ou melhor dizendo, pra camisa da seleção brasileira que ele estava usando. Eu sussurrei um: “Nós estamos encrencados?”, mas acho que o meu “português” só piorou a situação. “Passports, please” o policial pediu com uma cara de poucos amigos. Eu tirei o meu rapidamente da bolsa e entreguei a ele. O Théo começou a falar alguma coisa em inglês, talvez dizendo que fosse americano e então o policial rebateu todo irônico, olhando de novo pra camisa dele do Brasil: “Oh, yeah? American? So, can I see your american license, please?” O Théo fez com a cabeça que sim, botou a mão no bolso e na mesma hora soltou um ”Ah, não...”

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Eu perguntei o que tinha acontecido e ele disse totalmente desolado que na pressa em ir me buscar tinha esquecido a carteira de motorista também. O policial pareceu não estar gostando nem um pouco da nossa conversinha em português e começou a falar com o Théo de um jeito mais duro. Eles até conversaram durante alguns minutos (o Théo já parecendo desesperado) e então o policial fez um sinal pra ele com a cabeça. “Pega as suas coisas e sai do carro, Babi.” O Théo disse sério se virando pra mim. Ele saiu primeiro, eu logo depois sem entender nada, e aí ele ligou o piscar alerta e travou as portas do Land Rover. Depois virou pro policial, falou alguma coisa em inglês (essa parte nem a Ana aqui em casa conseguiu entender quando eu grunhi o que achei que o Théo poderia ter dito) e tirou o celular dele do bolso, bem devagarzinho, acho que pro cara não achar que ele ia sacar uma arma ou coisa do tipo. “Babi” o Théo disse enquanto entregava o celular pra mim “Olha só, eu vou ter que ir pra delegacia porque eles acham que eu sou um ‘ilegal’. Fica com a chave do carro e o meu celular também. Com ele você vai ligar pro Fábio pra ele vir te pegar aqui. Nós já estamos bem perto da sua casa. Ah, e o número dele está gravado na agenda, tá? Faz isso. Entendeu? Liga pro Fábio!” Ao ouvir aquilo eu desesperei. E de novo! Como assim o Théo ia pra delegacia? Ele não tinha feito nada. Quero dizer, foi só uma multa de trânsito por estar acima do limite de velocidade! E ele era americano, poxa! Como é que a polícia podia estar fazendo aquilo logo com um cidadão do seu próprio país?

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“Théo, por favor, não vai” eu disse agarrando o braço dele. Nessa hora o outro policial que até então estava dentro do da viatura saiu e foi anotar a placa do Land Rover. O Théo segurou meu rosto, disse pra eu não me preocupar, que só ia pra delegacia pra esclarecer as coisas e que assim que o pai dele chegasse lá com os documentos dele, todo aquele mal entendido ia se resolver e ele ia ser solto bem rapidinho. Mesmo assim eu não agüentei a tensão do momento e comecei a chorar de novo enquanto dava um abraço nele. O policial ficou o chamando várias vezes num tom meio áspero “Sir, sir, sir...” e quando o Théo e eu nos separamos, vimos que o bigodudo já estava com a mão sobre o coldre da arma dele. Tremi só de pensar na possibilidade de que ele pudesse sacar ela. O Théo ainda fez um carinho no meu rosto e depois foi escoltado pelo policial até a viatura. Não acreditei quando o vi passar por mim, sentando no banco de trás daquele carro, com aqueles olhos azuis lindos cheios de culpa. Foi uma visão realmente cruel. E repito: ELE NÃO TINHA FEITO NADA DEMAIS! Minha primeira reação quando a viatura virou a esquina foi sentar no meio fio, colocar a cabeça entre os joelhos e chorar um tempão, até cansar. Depois com os olhos ainda turvos de lágrimas e já um pouco menos de adrenalina circulando pelo sangue, fiquei olhando meio que em choque pra placa do Land Rover do Théo. Era 777­KYZ. O engraçado é que minha mãe dizia que o número 7 era um número de sorte...

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É. Total! Mas não pro Théo e nem pra mim! Na verdade acho que eu é que sou a azarada dessa história toda. Desde que pisei aqui, só aconteceram coisas ruins. Eu realmente tinha que voltar pro Brasil, pra acabar com esse gato preto que eu sou na vida de todo mundo, inclusive na do Théo. Mas como naquele momento eu ainda não podia fazer isso, liguei pro Fábio pra que viesse me buscar. De início ele não entendeu quase nada do que eu disse pelo telefone, só quando chegou de moto trazendo o Kevin na garupa é que eu expliquei direito a situação toda. E depois disso o Kevin me trouxe com o carro do Théo (pra delírio da Ana ele chegou a entrar aqui em casa) enquanto que o Fábio seguia a gente bem atrás, na R1 verde dele. 20:41­ E neste momento o remédio que estava no meu nebulizador já acabou e a Ana continua ligando por mim pra casa do Théo em busca de notícias, mas ela diz que só está caindo na secretária eletrônica, o que provavelmente indica que a família dele ainda deve estar na delegacia. Estou tão desesperada que minha mãe nem me deu muito sermão pela “roubada” em que eu me meti por pegar carona com estranhos. Aposto que ela está guardando tudo pra amanhã. Mal posso esperar... P.S.: Deus, se você tiver alguma pena de mim, não deixe que nada de ruim aconteça com o Théo. Por favor, eu imploro!

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Torpedo Sugestão do dia: For you ­ The calling “I’m there for u No matter what I’m there for u Never given up”

ao Downtown Disney! Ok, lá é só o centro comercial da Disney e tal. Não é parque nem nada do tipo não, mas tem um bando de lojas, restaurantes, boates além de um clima super agradável! O Théo perguntou se eu estava com fome e disse que eu podia escolher qualquer restaurante dali que quisesse ir: Planet Hollywood, Fulton Crab House, Rainforest Café... Eu disse que já tinha jantado (sete bolinhos pequenos e uma porção de batatas fritas murchas pode ser considerado janta não pode?) e então ele me arrastou pra uma loja ennorme, a World of Disney.

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Quase paguei um mico antes de entrar nela, pois tem um Stitch gigante (aquele e.t. surfista do filme Lilo & Stitch) na fachada da loja, e de tempos em tempos ele fica esguichando água em turistas desavisados, mas o Théo me salvou de voltar pra casa toda ensopada. Tudo bem que ele me puxou de um jeito que a gente ficou bem juntinho e, se não fossem os empurrões de uns turistas brasileiros sem educação que passaram pela gente quase nos levando junto, nem sei o que poderia ter acontecido... Na verdade eu até imagino, mas me proíbo de pensar! Repete o mantra Babi “Não se apaixone. Não se apaixone.” Voltando à loja da Disney...

Nós fomos direto pro banheiro, eu lavei meu rosto, mas as lágrimas simplesmente não paravam. Ficamos lá dentro um tempo, a Gabi tentando me consolar, dizendo que tinha sido melhor assim, que agora eu ia fazer intercâmbio sem amarras aqui, e também que, da próxima vez, era pra eu me apaixonar por alguém da minha idade, sem perigo de ser casado. Falou mal do Marquinho, que ele era um “galinha”, que devia fazer isso com qualquer aluna que se interessasse por ele, que ela viu que ele estava me dando bola e que, sendo casado, isso só provava o quanto ele era mau­caráter e não merecia as minhas lágrimas. A gente saiu do banheiro, eu munida com metros de papale higiênico, e fomos sentar perto da sorveteria, porque, segundo

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a Gabi, sorvete tem um componente que inibe as glêndulas que fabricam lágrimas... não acreditei, mas pelo menos consegui achar um pouco de graça no esforço que ela estava fazendo. Ela foi comprar os sorvetes, eu fiquei sentada guardando a mesa (naquele horário, ás duas da tarde, o shopping estava começando a encher) e comecei a olhar na direção do cinema, tentando ver se tinha estreado algum filme novo que eu não estivesse sabendo. Bati o olho na fila da bilheteria e de repente avistei as últimas pessoas que eu queria ver naquele momento: o Léo e a Vanessa. Eu aidna tentei disfarçar, olhei pro outro lado rápido, coloquei a mão na cara, mas foi tarde demais, eles já tinham me visto. OU pelo menos, ele tinha, já que veio vindo na minha direção enquanto ela continuou na fila. Ele chegou, abaixou pra me cumprimentar com beijinhos e de repente recuou, franziu as sobrancelhas e perguntou todo preocupado: ”O que houve? Porque você está chorando Fani? Aconteceu alguam coisa?” Eu não estava mais chorando, mas não sei o que acontece comigo que sempre que alguém fala que eu estou fazendo ou

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A fiona do Shrek em pessoa Apesar de ela ter vendido nosso carro antes da viagem ele não valeu muita coisa (por ser bem velho) e além do mais, nós já usamos parte do dinheiro ganho com ele pra pagar as passagens de avião pra cá. Portanto nada de gastança desenfreada no shopping!

Por sorte mamãe chegou e controlou a situação como sempre, já que a ameaça de “castigo perpétuo” surtia tanto efeito em Alice quanto em mim. Mas logo depois que os ânimos se acalmaram e minha irmã voltou pisando duro para o banco onde estava sentada, mamãe afinal se deu conta de que o integrante mais novo da família não estava por perto, e quase entrou em pânico por mexicano muito engraçado chamado Ramirez que falava com sotaque igualzinho ao Gato de Botas do Shrek. Até tive um pouco de falta de ar, mas acho que não deve ter sido por causa da presença dele, talvez tenha haver com o seu perfume. Se bem que eu não senti cheiro algum em seu pescoço, mas vai saber né? Minha asma às vezes não precisa de odores muito fortes para resolver atacar... Só saí do quarto do meu primo agora a pouco e isso porque minha mãe praticamente me puxou pela orelha dizendo que já tinha passado da minha hora de dormir. Vergonhoso eu sei, mas o que eu posso fazer? Ela é louca, mas me deu a luz! Não dá pra esquecer isso... Não se vêem há cinco anosQndo a tia foi embora Vini tinha 13 anos, Ana 10 anos

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Agora Ana tem 15 e Téo 18. A irmã Alice tem 19 anos

AI-MEU-DEUS! Não acredito que isso esteja acontecendo. Não, não dá pra acreditar. Eu devo estar sonhando! Acho que meu coração vai sair pela boca de tanto emoção. Eu preciso me acalmar. É, é isso, eu tenho que ficar calma pra conseguir processar a notícia. Vamos lá Cat, respira fundo, expira, respira fundo de novo... Isso, oxigenando, oxigenando... Agora conta até 10 pausadamente... 1...2...3...4...5... AHHHHHHHHHHHHH! Sério, não dá! Eu não vou conseguir me acalmar tão cedo. Mas também como eu poderia diante do que acabou de acontecer? Depois de receber a notícia que simplesmente alegrou um dia que eu já considerava terrivelmente arruinado?! Ok, ok. Menos histeria e mais explicação Cat. Aqui está o que aconteceu.

mas eu nem sei como consegui deduzir isso, já que quase me perdi na imensidão dos grandes olhos azul­piscina dele. Dani insistiu fazendo biquinho. Ele sabia ser adorável quando queria. Na mesma hora meu estômago revirou. Lembrar que nós não estávamos apenas de visita em Orlando me fazia mal. Era inevitável não ficar triste com isso.

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18:50 – Não sei como sobrevivi a esse abalo sísmico super ultra mega poderoso que acabou de acontecer. E eu não estou exagerando! Nesse exato momento em que escrevo estou até mesmo tendo que fazer nebulização pra tentar domar a crise terrível de asma que eu tive depois de tudo que aconteceu. Não gosto muito de usar meu nebulizador, já que ele tem a forma tosca de um elefantinho, mas era isso ou sucumbir com falta de ar, então apesar do mico cá estou eu escrevendo neste diário com a mão esquerda enquanto seguro o nebulizador no rosto com a outra. Minha mãe acabou de sair do quarto. Ela tinha batido de porta em porta hoje procurando emprego mais uma vez, mas acabou voltando lá pelas quatro da tarde, totalmente frustrada por só ter ouvido “não” atrás de “não” o dia inteiro. Quando o telefone tocou eu realmente não pensei que ela fosse atender, afinal mamãe não fala um pingo de inglês, só que sabe­se lá Deus porque ela resolveu atender. Eu estava deitada em minha cama ouvindo Coldplay no Ipod que o Vini me emprestou, e não achei que o telefonema fosse algo demais porque eu vi a Ana correr pra sala logo em seguida, mas depois de alguns minutos minha mãe entrou no quarto, arrancou os fones do meu ouvido e ficou parada bem na minha frente com as mãos na cintura. “Que história é essa de agência de modelos Bárbara?” ela perguntou parecendo furiosa.

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“Do que é que você está falando mãe?” eu retruquei. Juro que não estava dissimulando, eu estava era muito assustada, afinal aquela pergunta havia me pego de surpresa. “Não minta pra mim mocinha. Alguém de uma agência de modelos acabou de ligar pra cá perguntando se você já tinha decidido se tem interesse em ser modelo. Então o que você tem a me dizer sobre isso Bárbara?” Antes que eu pudesse me defender a Ana entrou no quarto também e veio em meu socorro. “Tia, como eu te disse antes a Babi não tem culpa de nada, fui eu que dei o telefone daqui de casa pro caça talentos da agência. Ela nunca pensou em ser modelo, a culpa é toda minha, só minha. Eu que fiquei enchendo a paciência dela com isso.” Mas minha mãe ainda parecia furiosa mesmo depois de tudo que Ana havia dito e me mandou explicar com todos os detalhes como eu havia conhecido o tal caça talentos. Depois de eu contar a história sobre a abordagem do tal Paul no shopping minha mãe continuou olhando pra mim como se fosse explodir. “Minha filha você por um acaso tem noção do risco que você correu? Esse homem podia ser um aliciador de menores, um pedófilo, um traficante de drogas ou sei lá o que... Você devia ter me contado sobre isso, eu sou sua mãe, só eu sei o que é bom ou não pra você!”, ela disse me fazendo sentir pior do que nunca. Na mesma hora meus olhos se encheram de água, e eu estava prestes a chorar quando a Ana falou:

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“Tia Val, a moça da agência disse que a Babi não precisa dar a resposta agora, se você quiser pode fazer uma visita antes pra ver como é, perguntar como a agência funciona, enfim se certificar que é uma empresa realmente idônea.” “Ana, deixa isso pra lá.”, eu disse começando a secar as lágrimas que já rolavam rosto abaixo. “Minha mãe está certa por brigar comigo. E, além disso, eu sou horrível, eu nunca teria chance de ser modelo, não do jeito que eu sou...” “Que jeito que você é?”, minha mãe perguntou cruzando os braços e parecendo altamente indignada. “Ah mãe, você sabe. Eu pareço mais um espantalho de horta do que uma garota.” “Você não me repita isso nunca mais Bárbara!”, minha mãe disse sentando ao meu lado na cama e parecendo estar ficando mais calma. “Você é linda minha filha, como toda a nossa família por sinal. Se alguém disse que você tem potencial pra ser modelo é porque é verdade.” “Então você vai a deixar ir na agência?”, Ana perguntou animando­se. “Bem...” mamãe disse hesitante “... se ela realmente quiser... E você quer Babi?”, minha mãe perguntou virando­se pra mim. Na hora não respondi, eu ainda estava tão atordoada com o esporro que do nada virou encorajamento que eu não consegui pensar realmente em nada naquele instante. Além disso, eu não sabia por que minha mãe tinha ficado tão compreensiva repentinamente, se havia sido o que Ana falou sobre ela poder ir a agência e ver com seus próprios

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olhos como funcionava, ou se tinha ficado saudosa dos tempos em que quase foi Miss Rio Grande do Sul e vestia 38. Sei lá, muitos pais geralmente descontam nos filhos suas frustrações ou mesmo projetam neles tudo que eles não conseguiram realizar. Talvez minha mãe já esteja cansada de se olhar no espelho e ver uma gordinha tamanho 46 e por isso decidiu se auto­realizar em mim. Pode parecer uma explicação forçada, mas é a mais plausível de todas, dado o fato de que minha mãe é uma doida varrida paranóica e super protetora que em outras circunstâncias não me deixaria nem mesmo cogitar a possibilidade de ir a tal agência... Então, apesar do estranho sinal verde de mamãe com relação ao lance de ser modelo, eu não dei nenhuma resposta a ela sobre o que havia decidido, porque pra falar a verdade eu não sei o que fazer. Mamãe saiu do quarto junto com a Ana para que eu pudesse pensar mais a vontade e segundo ela eu tenho todo o tempo do mundo pra decidir, já que a mulher da agência disse que aguardaria o tanto que fosse preciso por uma resposta minha. Só que eu realmente estou confusa com tudo isso. Ainda não acho que eu seja bonita pra ser modelo. Quero dizer, se alguém dissesse há um tempo atrás que eu seria convidada para trabalhar como modelo eu riria na cara da pessoa com certeza. Mas hoje... hoje eu não sei o que pensar a respeito. E estou tão nervosa com essa decisão louca que tenho de tomar que minha asma voltou com força total, não que alguma vez ela tenha sumido, mas quando eu fico nervosa as crises

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pioram absurdamente e por isso eu estou aqui agora com meu nebulizador de elefantinho no ápice da falta de ar. Vini foi com o Dani levar o Rocky no pet shop e graças a Deus ele não estava em casa pra presenciar a conversa sobre a agência de modelos. Só espero que minha mãe espere minha decisão antes de contar alguma coisa pro meu primo. Não sei por que, mas fico vermelha só de imaginar a cara do Vini quando ele souber de tudo que aconteceu. Ele vai rir com certeza e dizer que eu estou louca em pensar na possibilidade de ser modelo, afinal eu estou mais pra Babizilla do que pra Gisele Bundchen! Mas, e se (veja bem, eu disse E SE) o Vini não rir? E se por um milagre do destino ele realmente achar que eu sou bonita (como a Ana disse que ele tinha afirmado) e me encorajar a me tornar uma modelo? AI MEU DEUS!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! O que é que eu faço??????????????????????????? O que??????????????????????????????????????????????? ?????? Devo ir a agência ou não? Hein? Hein?

Acho que vou vomitar.... Se não morrer de falta de ar antes!

01 de Abril, quarta­feira

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17:00­ Minha mãe saiu mais uma vez para procurar emprego. Ela disse que está sendo bem difícil achar um por causa da idade dela, mas mesmo assim mamãe continua tentando. Eu sinceramente espero que ela consiga logo, pra gente se mudar o mais rápido daqui. Não que eu não goste de morar com os meus primos, a questão é que nós estamos aqui de favor, comendo e bebendo as custas de minha Tia Vivian e ainda por cima sem contribuir quase em nada com as despesas da casa. Confesso que já estou me sentindo uma sanguessuga por causa disso, então eu torço realmente para que minha mãe arrume um emprego logo. Oh, e sabe aquele lance sobre minha sorte estar mudando? Retiro totalmente o que disse, porque a Babi gato preto voltou a atacar. Dessa vez não foi um estrago tão grande quanto o da câmera e lanterna do carro do Vini, mas ainda assim foi um estrago e tanto. Veja bem, eu só estava tentando ser útil quando me ofereci para cuidar da lavagem das roupas hoje. Eu realmente não sabia que a blusa vermelha da Alice manchava e que água muito quente podia encolher certas roupas. Portanto, eu não quis reduzir todas as blusas brancas do Vini a meras baby looks rosa de propósito. Apenas, sabe, aconteceu... Eu não tive intenção de transformar uma parte do guarda­ roupa do meu primo em modelitos da Barbie. Pra minha sorte, o Vini foi super compreensivo com o lance das camisas. Ele só riu e disse que estava precisando comprar roupas novas mesmo, já que a mãe dele havia dito que ele

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estava andando muito desleixado ultimamente. O que não é verdade e isso eu posso garantir, porque o que o Vini tem de gato, tem de cheiroso e bem arrumado! Mas agora me diz, como é que alguém que simplesmente teve um prejuízo de quase quatro mil dólares mais um guarda­ roupa devastado consegue ter essa paciência absurda? Será que meu primo tem vocação pra monge Tibetano? Se bem que vamos combinar, até mesmo o Dalai Lama já teria me dado um tiro de bazuca depois de tudo o que fiz! Bem, não sei. Mas que o meu primo tem sido exageradamente compreensivo, a isso tem! Na parte da tarde tanto Ana quanto Vini ficaram enclausurados em seus quartos. O Vini porque estava mexendo no site dele, enquanto que minha prima ensaiava insistentemente alguns passos de dança ao som de Single ladies da Beyonce. A Ana estava fazendo isso porque ela vai participar das audições pra líder de torcida que começam semana que vem juntamente com as aulas, então ela está dando realmente duro pra tentar conseguir o posto. Ontem mesmo, enquanto estávamos no Sea World, ela ficou em casa ensaiando o dia inteiro. Um empenho que me deixou realmente impressionada, apesar do Vini ter dito que minha prima só estava querendo ser líder de torcida para ver se tem chances com um certo garoto do time de futebol americano da escola. O que eu não acho que seja verdade. Quero dizer, não totalmente...

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Ana até mesmo pediu que eu e Alice assistíssemos o ensaio dela para darmos nossa opinião sobre a coreografia, mas minha irmã simplesmente saiu do quarto dizendo que ser líder de torcida era um clichê ridículo valorizado apenas pelos filmes americanos e que ela não iria participar daquilo. Minha prima ficou realmente irritada com o discurso da Alice, mas ao invés de partir pra cima dela (o que eu realmente achei que fosse acontecer) apenas continuou fazendo a coreografia e voltou a sorrir afetadamente. No final da “apresentação” a Ana me perguntou o que eu tinha achado, ao que eu apenas respondi com um mero “Legal”, até porque no Brasil não tem essa coisa de líder de torcida, então eu não tenho nenhum padrão de comparação para dizer se minha prima estava indo bem. Só que o assunto sobre os testes mudou do nada enquanto saíamos do quarto para ir à cozinha, e a Ana voltou a me atormentar com a história do homem que me abordou no shopping. “Você ainda não ligou pra agência?”, minha prima perguntou enquanto bebia uma garrafinha de água encostada na bancada ao lado da pia. “Não e nem vou.”, eu disse fechando com raiva a porta da geladeira depois de ter pego um galão de quase cinco litros de leite para fazer uma vitamina. “Pois deveria. Babi, é sério, se eu fosse você não pensaria nem duas vezes. Imagina só, ter a chance de ser uma modelo conhecida, ganhar rios de dinheiro e ainda ter todos os garotos aos meus pés! Ai, seria demais. Você não sabe a inveja que eu tenho de você.”

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“Alôôôôôu. Eu não sou nada disso Ana. Porque você teria inveja de mim?”, eu disse pegando algumas bananas na fruteira. “E você ainda pergunta? Cara, você foi abordada por um Scouter de uma agência de modelos! E, além disso, olha só pra você!” Eu me olhei de cima a baixo e, pra ser bem sincera, não vi nada demais a não ser pernas que pareciam dois palitos numa calça jeans desbotada e dois limõezinhos no lugar do busto. “Ana, por favor! Eu pareço o Godzilla! Tenho certeza que se eu botar os pés naquela agência os caras vão mandar caças F­16 pra me destruírem antes que eu acabe com a cidade de Miami!” “Sério Bárbara, eu não consigo entender porque tanto humor auto depreciativo se você é linda.”, minha prima disse enquanto me ajudava a cortar as bananas. “Rá. Eu, linda? Essa é boa.”, retruquei após despejar todos os ingredientes da vitamina no copo do liquidificador e ligá­lo. Ana continuou falando aos berros durante um tempo, ao que eu fingi que não ouvia por causa do barulho do liquidificador, mas então ela disse uma coisa que realmente chamou minha atenção. “Babi, até meu irmão disse que você estava uma verdadeira gata.” “O Vini disse o quê?”, eu perguntei desligando o liquidificador na mesma hora. “Ah, você ouviu! E, além disso, se você está tão preocupada em ressarcir o meu irmão de todo o prejuízo que causou a ele, eu se fosse você aceitaria o trabalho de modelo.

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Eu li em uma revista que modelos ganham muito bem. Com dois ou três trabalhos você paga o Vini e ainda me convida pra andar de limusine!” “Não acredito que seja assim não...” eu respondi, ainda que meio abalada pela constatação de que meu primo, o Deus grego em pessoa, me achava realmente bonita. Ana ainda ficou tagarelando como uma verdadeira metralhadora enquanto eu bebia a vitamina, mas quase não prestei atenção no que ela dizia. A idéia de pagar todo o prejuízo que eu tinha dado ao Vini com trabalho dominou minha mente, embora eu achasse que, se eu conseguisse fazer isso, dificilmente seria trabalhando como modelo. Então surpreendendo nós duas, o Vini entrou de repente na cozinha. Ele estava usando uma das suas camisas que encolheu e vou te dizer, apesar de ficar engraçado naquela coisa minúscula e rosa, era difícil não notar os músculos dele e a barriga saradíssima a mostra. “E ai gostaram da roupa?”, ele perguntou de brincadeira entrando na cozinha e desfilando masculamente. “Quem é a estilista do modelito?”, minha prima perguntou debochada quase que morrendo de rir. “Uma tal de Babi Henkels dos Santos”, ele disse enquanto dava uma beliscadinha na minha cintura, coisa que sempre me fazia sentir cócegas e automaticamente dar um pulo. Vini, no entanto, não ficou muito tempo com a camisa porque ela parecia que ia explodir a qualquer momento de tão apertada que estava. Então antes que uma cena do filme Incrível Hulk acontecesse em nossa casa, ele tirou a “baby look” bem na minha frente e juro, eu tive de me segurar pra não

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ter um ataque na hora. Porque eu tenho de ser sincera, que abdômen definido o meu primo tem! Melhor dizendo, que corpo, ele tem! Barbaridade, alguém me segura porque o desmaio é certo só de lembrar, ui... Bem, mas o Vini foi pro quarto logo depois disso pra colocar uma camisa “de verdade” e eu então me dediquei à lavagem da louça suja, ainda tentando me restabelecer da visão de tirar o fôlego que havia tido minutos atrás. Depois disso Ana também voltou para o quarto dela e continuou ensaiando a tarde inteira ao som de Beyonce. Juro que já não suporto mais ouvir o refrão “All the single ladies, all the single ladies, all the single ladies, now put your hands up” Argh! Oh, e tudo bem, é estranho eu dizer isso, mas eu dei uma olhada no cartão que o tal homem me deu no shopping. É claro que não estou considerando ir à agência, até porque minha mãe nunca deixaria, mas eu fiquei meio que, sabe, tentada a ir. O que a Ana disse sobre pagar ao Vini com o dinheiro do trabalho de modelo meio que me fez balançar um pouco. Mas graça a Deus eu voltei à realidade quando vi meu reflexo no espelho do banheiro e me dei conta de minha condição quase alienígena. Por que vamos ser sinceros, eu pareço mais uma criatura de outro mundo do que uma humana. Vide meu corpo desproporcional e seco como uma vara. Eu modelo? Rá, nem pensar! Pelo menos não esta ser disforme que vos escreve! Ah, e o cartão que o tal Paul me deu? Bem, digamos que ele não habita mais meu criado mudo. Acredito que seus pedacinhos devam estar nesse momento navegando pelos

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canos de esgoto da cidade de Orlando rumo a alguma grande estação de tratamento de dejetos. Foi o melhor que eu fiz. Tenho certeza. Deve ter algum jeito (real) que eu possa pagar o prejuízo que causei ao Vini. Porque esse negócio de eu virar modelo e ainda ganhar dinheiro com isso só podia acontecer mesmo dentro da mente fértil e ingênua da minha prima Ana.

4 de Abril (quinta­feira) piscina de tia Vivian 02:20­ Bem, estou aqui, sentada em uma espreguiçadeira da piscina de tia Vivian e ainda não tomei minha decisão. Nem consigo dormir, mas isso não é novidade dado a minha insônia que já está ficando tão crônica quanto minha asma. Ana e eu conversamos horas atrás sobre a visita a agência. Ela disse que eu não preciso decidir se quero ser modelo agora. Segundo minha prima o que eu tenho que fazer é ir a

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agência e ver com meus próprios olhos como tudo funciona lá, e aí, se eu gostar, só depois assinar um contrato com a tal Heavenly Models Mannagement. Esse lance de decidir depois realmente me agradou, então eu disse a minha mãe que queria ir a agência só pra dar uma olhadinha, ao que ela (por um milagre dos Céus) me apoiou. E mais, fez até a Ana ligar para a Heavenly e marcar um horário para nós visitarmos a tal agência. Infelizmente a parte estressante não é essa. Não, não mesmo. A parte estressante é que minha mãe me mandou pedir ao Vini pra nos levar a Miami, já que tia Vivian não poderia, pois ela tem a tinturaria pra cuidar. Vini ainda não sabe sobre o que aconteceu hoje à tarde e eu estou realmente sem coragem pra contar a ele. Com certeza meu primo não vai nos negar carona, afinal ele é muito prestativo e educado, mas eu não sei como eu vou falar sobre essa história de ser modelo pro Vini. Por que vamos combinar é algo bizarro demais! Afinal quantas garotas que você conhece são aspirantes a modelo? Ou melhor dizendo, quantas garotas horrorosas que você conhece de repente recebem um convite pra se tornar modelo?! Qualquer garoto iria rir e achar que eu estou contando uma piada muito engraçada. Se bem que, conhecendo o Vini como eu conheço, ele não deve fazer isso não. Meu primo não me parece ser do tipo que machuca as pessoas com ironias. Provavelmente ele vai achar essa idéia de me tornar modelo a coisa mais hilária da face da terra, mas vai guardar pra si num claro respeito a minha pobre insanidade mental.

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Só que hoje infelizmente não dá mais pra falar com ele, porque meu primo já foi dormir. Aliás, todos da casa já estão dormindo, exceto eu e o Rocky que está bem aqui ao meu lado enquanto escrevo neste diário. Acho melhor deixar pra reunir coragem amanhã. Ficar pensando no assunto e me torturando com o que pode acontecer não vai adiantar nada agora.

4 de Abril (quinta­feira) enclausurada em meu quarto.

15:30­ Tudo bem, eu ainda não falei com o Vini. Não que eu não tivesse tido oportunidade, porque eu passei a manhã quase inteira no quarto dele enquanto víamos vários filmes como “Zombieland” e “Anjos da Noite”, mas sim porque eu não tive coragem mesmo. Durante vários momentos enquanto assistíamos aos DVDs eu até tentei tocar no assunto, só que sempre quando eu começava a falar a peste do meu irmão Dani me mandava calar a boca, ao que eu acatava como uma estúpida. Pelo amor de Deus ele só tem cinco anos! Como é que eu posso ser mandada por uma mera criança que ainda está no jardim de infância? Bem, mas foi assim que a manhã se foi. Na hora do almoço comemos salmão ao molho de alcaparras, prato preparado por

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minha mãe especialmente para o dia de hoje, já que é Sexta­ feira Santa ou Good Friday como se diz por aqui. Sério, eu havia totalmente me esquecido que a Páscoa está chegando. Também, não é todo dia que sua família se muda para outro país, sua antiga paixão dorme no quarto ao lado do seu e você é abordada por um olheiro de uma agência de modelos que diz que você tem talento pra coisa! Portanto não me culpe por estar fora de órbita ultimamente. Minha vida está de cabeça pra baixo desde que nos mudamos pra Orlando e eu ainda não sei como lidar com tudo que está acontecendo. Mas uma coisa é certa, eu tenho de reunir coragem pra falar com o Vini. Não agora, é claro, mais lá pelo anoitecer. É que ele está nesse momento nadando na piscina com o Dani, a Ana e minha irmã Alice então acho que não é uma boa hora pra conversar. Vou esperar pra fazer isso quando ele estiver sozinho no quarto dele. Enquanto isso, eu fico aqui no meu vendo através da janela todo mundo se divertir na piscina. Eu até queria estar lá, já que Orlando amanheceu bem quente hoje quebrando a sequência de dias congelantes que estava fazendo, mas eu não posso me atrever a botar um biquíni por duas razões: primeira­ eu não quero que o Vini me veja em trajes de banho porque meu corpo é simplesmente horrível, segundo (e com certeza o fator mais importante de todos) infelizmente estou naqueles dias terríveis. Sei que existe O.B e Tampax aqui nos EUA, pois já os vi uma vez quando fui com o Vini comprar aspirinas pra minha tia Vivian na CVS Pharmacy, mas minha mãe não me deixa usá­ los com medo de que eu “perca minha pureza”.

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Juro que foi isso mesmo que ela disse quando ficou alardeando os motivos para não se usar esse tipo de absorvente tão íntimo. Se ela tivesse dito que o uso contínuo dele pode causar inflamações no ovário e até em alguns casos câncer tenho certeza que isso iria fazer mais efeito em mim do que o lance da pureza. Por que convenhamos, isso é coisa que minha avó (que ela descanse em paz) diria. Por favor, né dona Valkíria, não estamos mais na Idade Média! Perder a pureza com Tampax? Fala sério! Bem, mas tirando isso, achou que vou a cozinha fazer um lanchinho, quero dizer, um lanchão, já que eu sempre tenho uma fome equivalente a de dez mil mendigos. Ana disse que eu sou uma sortuda por ter um metabolismo de dar inveja, visto que nada que entra no meu corpo se transforma em gordura. Bem, só posso dizer que nasci assim, mas em compensação os genes da beleza dos Henkels só foram herdados pela Alice, o que eu acho totalmente injusto, mas fazer o que? Processar Deus? O que me leva novamente a começar a achar o lance de me tornar modelo uma piada, mas tudo bem, eu vou tentar assim mesmo pra ver no que dá. O máximo que pode acontecer é que os caras da agência se desculpem por ter cometido o erro de achar que eu poderia ser modelo. No final das contas pelo menos eu vou ter conhecido Miami, isto é, se eu conseguir pedir ao Vini pra nos levar lá né.... Mas por agora acho melhor ir pra cozinha saciar essa minha barriga que não para de roncar. Além disso, tia Vivian

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comprou um monte de batata Lays, Doritos, Pringles e mais um bocado de barras de chocolate e todos estes pobrezinhos estão naquela dispensa escura e assustadora precisando de carinho e atenção. Não posso deixá­los esperando (nem meu estômago, he­he­he). Então... Atacarrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr!

Coisas das quais já estou sentindo saudade por que não tem aqui: ­Chimarrão ­Pão quentinho de manhã ­Bolo de aipim ­Alfajor (ok, isso é um doce argentino, mas de qualquer jeito aqui não tem!) ­Canjica ­Feijão!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Ah, meu bom e velho Feijão!

Coisas das quais não sinto a menor falta ­galinha ao molho pardo (eca)

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Théo: Alô, Valkíria? Eu: Não, é a filha dela. Quem fala? Vini: Alice? É você? Eu (já meio impaciente): Não, é a Bárbara. Quem fala, por favor? Vini: Babi?! Eu não acredito que você não esteja reconhecendo minha voz. Ela não mudou tanto assim, mudou? Foi nesse exato momento que percebi com quem eu estava falando no telefone. Meus joelhos tremeram estranhamente na hora. Eu diria um abalo sísmico de 8.0 na escala Babi de tremores. Era ele! O meu Vini... Quero dizer... O meu primo Vini! Eu (querendo parecer casual): Ah, oi Vini. Como está tudo aí? Vini: Nada de novo. Orlando é sempre a mesma coisa. Turistas, turistas e mais turistas. E vocês aí da terrinha? Eu (sem conseguir raciocinar direito): Estamos bem......... errrrrrr... E como está tudo aí? Vini (parecendo não entender): Hã? Tipo, alooooooou. Eu já tinha feito aquela pergunta! Será que eu tive falta de oxigenação no cérebro quando nasci? Vini (depois de uma risadinha): Olha, eu estou ligando por que preciso do número do seu voo e saber que horas ao certo ele

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chega aqui. Sou eu quem vai pegar vocês no aeroporto de Orlando. Eu (antes de sair em disparada pela casa): Ah, claro, claro... Espera um pouquinho só porque eu vou no quarto pegar as passagens e já volto. Juro que eu nunca fiz nada tão rápido na minha vida! Eu (voltando do quarto às pressas depois de ter tropeçado no tapete e caído de quatro no chão): Oi Vini. Sou eu de novo. Olha, a empresa aérea é a American Airlines e o vôo é o 1165. A gente sai do aeroporto daqui as 18:30, depois faz conexão no Rio de Janeiro as 22:00, depois fazemos a segunda conexão em Miami as 7:10 e finalmente chegamos aí em Orlando 8:10 da manhã. Anotou tudo? Vini (meio que rindo): Bem, eu só precisava do horário que vocês iam chegar aqui na cidade. Mas tudo bem. Depois de todas estas informações eu não tenho como errar! Eu (completamente abobada): É...Quero dizer.. Não... Quero dizer... Silêncio perturbador durante alguns segundos Vini: Bárbara, você ainda está aí? Eu: Tô, to sim. Pode falar. Vini: Não, era só isso mesmo. Eu: Hã... Vini: E aí? Animada pra morar na terra do Mickey?

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Eu (estranhamente monossilábica): Uhum. Mais silêncio Vini: Ok. Então fica assim. Depois de amanhã a gente se vê no Aeroporto. Manda um beijo pra tia Val, pra Alice e pro Dani por mim. Eu: Pode deixar. Vini: Foi legal falar com você prima. Até sábado. Eu: Até. Tchau Vini. Tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu­tu Sério, agora me diz: O que foi isso? Como é que eu pude agir igual a uma idiota ao telefone com o Vini? Quero dizer, é só o Vini, meu primo que conviveu comigo durante anos. Eu supostamente não deveria ficar nervosa por falar com ele no telefone. Mas então o que aconteceu comigo? Por que eu agi como uma boba? Por que as palavras simplesmente não saíram da minha boca? Será que o lápis que eu enfiei no nariz quando era criança atingiu meu cérebro e causou algum dano permanente? Por que eu posso apostar que até um mudo ao telefone conseguiria ser mais comunicativo do que eu! Se bem que o que mais eu poderia conversar com o Vini? “Ei, e aí cara! Que é que ta pegando em Orlando? Muito agito?” Não mesmo. Eu não tenho intimidade pra isso. Nós não nos vemos faz cinco anos! E além do mais, a única coisa que nos

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liga hoje são os laços de sangue. E vamos ser sinceros, nem isso é tão forte assim, já que nós somos meio­primos graças ao fato de termos avós maternas diferentes. Ou seja, eu não tenho que ficar me martirizando só porque nossa conversa pareceu mais um monólogo. Mas então porque eu me senti tão estranha naquele di.

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Depois do dia estressante no Prime Outlet, e de uma passada rápida em outras lojas, voltamos pra casa bem a tardinha com o sol já se pondo. Eu não havia mais falado com o Vini desde o acidente com a câmera e ele também não pareceu querer falar comigo. O que eu até entendi, porque afinal qualquer um ficaria super chateado se uma garota idiota quebrasse a sua câmera de quase três mil dólares. Isso mesmo, quase TRÊS MIL DÓLARES!!!!!!!!!!!!! Sei disso porque antes de virmos para casa Vini levou a gente na Best Buy (uma loja daqui que vende produtos eletrônicos) e enquanto ele pesquisava preços de câmeras junto com o vendedor no computador da loja, eu pude dar uma olhada em quanto custava a tal Canon EOS 5D Mark. Minha prima Ana disse que dado o quanto a câmera era cara estranhou o fato do Vini não estar espumando de raiva, mas como o irmão tinha muitas outras ela disse pra eu não ficar me martirizando tanto. Só que isso foi impossível. Eu fiquei com tanta dor na consciência que acabei indo até o quarto do Vini para pedir desculpas de novo, mas meu primo estranhamente não estava lá. Eu sabia que o Vini não havia saído porque o carro dele ainda encontrava­se estacionado em frente a casa de tia Vivian, então fui até a sala perguntar a Ana se ela sabia do irmão.

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“Já procurou na caverna?”, ela disse sentada na mesa de jantar enquanto digitava alguma coisa em seu notebook. “Caverna?”, eu repeti confusa. Então Ana apontou para o corredor e disse “Primeira porta à esquerda”. Apesar de não ter entendido nada, fiz o que ela mandou e me dirigi até a tal porta no começo do corredor. O mais engraçado é que de todos os cômodos da casa, aquele havia sido o único que o Vini não nos mostrou e, o mais estranho ainda é que o Rocky estava deitado bem ao lado da tal porta meio que como um vigia. Eu afastei o cachorro delicadamente do caminho e quando abri porta chamando pelo Vini, só pude ouvir a voz dele gritar “Nããããããããããão!” e logo depois bater a porta com uma tremenda força na minha cara. Meus olhos encheram de água na mesma hora, porque finalmente o Vini estava extravasando a raiva que estava sentindo por mim, então pra não chorar ali como uma boba eu corri pro meu quarto e enfiei a cara no travesseiro onde poderia soluçar a vontade sem que ninguém visse. Só que minutos depois o Vini entrou no quarto e sentou bem ao meu lado na cama. “Babi por que você está chorando?”, ele perguntou parecendo realmente não estar entendendo. “Você bateu a porta na minha cara.”, eu disse aos soluços com o rosto virado para a parede. “Oh. Então é só por causa disso?”, ele falou sorrindo. “Você ainda diz só?”, eu perguntei indignada me sentando na cama e finalmente o encarando.

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Vini então pegou minha mão e me puxou (mesmo sobre muito protesto meu) para o tal quarto. Quando entrei no lugar percebi que ali na verdade não era um quarto, mas sim um cômodo minúsculo e que havia várias tigelas brancas sobre uma mesinha, além de um bando de fotos penduradas com pregadores em um pequeno varal. “Esse é o meu pequeno estúdio, ou como prefiro chamar minha caverna”, o Vini disse desligando a luz comum e acendendo uma outra que coloriu o lugar de vermelho. “Eu passo muito tempo aqui revelando as fotos que faço com a câmera analógica antiga que tenho. Quase ninguém mais usa esse tipo de máquina, mas eu ainda gosto dela porque a resolução das digitais não me permite, por exemplo, fazer ampliações de 16x20 polegadas com um filme de 35 mm.” Apesar de não entender de novo quase nada do que o Vini tinha dito (Deus será que eu sou tão burra assim?) fiquei aliviada por meu primo não estar com raiva de mim. Na verdade ele havia fechado a porta na minha cara porque estava revelando algumas fotos e, segundo ele, a luz vela os filmes estragando os completamente, o que pra minha sorte não aconteceu, pois já basta eu ter assassinado uma câmera de quase três mil dólares! Mas como eu disse, o Vini não parecia bravo comigo, ele até me mostrou como era o antigo processo de revelar fotos e depois me levou para o quarto dele onde tinha uma parede inteira coberta por fotografias que ele mesmo havia tirado e também outras de um tal fotógrafo francês que ele adorava chamado Robert Doisneau.

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Sei que não entendo nada de arte, mas tanto as fotos do Vini quando do tal Doisneau eram muito bonitas. Quero dizer, eu só sabia distinguir uma da outra porque as do fotógrafo francês retratavam décadas antigas enquanto as do meu primo eram bem atuais. Mesmo assim eu fiquei totalmente fascinada com ambas. Vini também me mostrou o site dele no laptop, mas eu não prestei muita atenção pra ser sincera, porque eu fiquei muito tensa com ele sentado ao meu lado na cama, e ele estava realmente perto se quer saber! Bem, mas o importante é que Vini e eu continuamos no quarto dele, conversando durante um bom tempo sobre várias coisas, desde a saudade que ele ainda sentia do Brasil até sobre a escola dele a Olympia High. Graças ao bom Deus ele não tocou no assunto Babi­amava­Vini, porque se ele tivesse feito isso eu teria entrado em combustão espontânea com certeza. Mas para meu alívio ele não mencionou nada mesmo e, depois de conversarmos sentados na cama dele ao som de Coldplay, que por sinal Vini é super fã assim como eu, nós ficamos jogando no seu Playstation por horas e horas. Então eu simplesmente obedeci a minha mãe (meio que a contra gosto é claro) e vim pra cá pro quarto, mas eu não consigo dormir. Primeiro, porque eu estou dividindo a cama de casal com minha irmã Alice e ela está roncando igual a uma porca ao meu lado, e segundo, porque

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7 de abril (segunda­feira) aula de biologia.

10:15.­ Hoje está sendo meu primeiro dia na Olympia High e devo dizer que não está tão ruim assim. Primeiro porque nós não viemos naqueles ônibus amarelos como minha irmã me disse que viríamos. Ao invés disso Vini nos deu carona pra escola, o que vou dizer foi muito bom porque eu vim praticamente babando no vidro do carro de tanto sono que estava. Ao chegarmos na Olympia High School eu fiquei meio que abismada com o tamanho da escola, ela é com certeza quatro vezes maior do que a minha antiga e tem um campo enorme onde acho que devem ser lecionadas as aulas de educação física e acontecem os jogos. Quando entramos no prédio da escola (eu ainda estava meio abobada com tudo a minha volta) várias pessoas cumprimentaram o Vini em inglês pronunciando o nome dele mais ou menos do jeito que a gente fala a palavra “tio” em português. Ana também era bem enturmada e logo foi conversar com um grupinho de amigas que estavam no corredor. Minha prima até me apresentou pra elas e confesso

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que todas foram bem simpáticas comigo me dando as boas vindas. Sei disso porque a Ana traduziu tudo. Se bem que havia algumas brasileiras no grupo e elas me cumprimentaram no nosso bom e velho português. Vini foi muito gentil e levou Alice e eu até a sala da diretoria onde pegamos a lista com os nomes das matérias e as salas onde teríamos as aulas. Coisas que por sinal eu já sabia por que tia Vivian (que foi a responsável por fazer minha matrícula antes mesmo de eu chegar em Orlando) me colocou em quase todas as matérias que a Ana estava. Então eu não vou ter problemas em achar as salas, porque é só seguir a Ana. Neste exato momento me encontro em meio a uma aula de biologia, mas não estou prestando a mínima atenção porque a professora está passando um documentário horroroso e totalmente incompreensível pra mim, já que eu não sei inglês direito. Portanto estou escrevendo aqui no escurinho, forçando a vista é claro, mas pelos menos matando um pouco o tempo até que essa droga de filme acabe. Minha professora de Biologia, a miss Berke, é bem nova e assim como nós não está nem aí pro documentário. Está no fundo da sala escrevendo uma mensagem em seu celular, mas a maioria da turma não está prestando atenção nisso ou em qualquer outra coisa porque estão todos dormindo ou em processo disso. O único momento de fato ruim nessa aula aconteceu bem no comecinho, quando miss Berke pediu pra que eu me apresentasse. Acho que fiquei tão vermelha quanto um tomate, mas consegui dizer um “Hi. My name is Babi Henkels” e só.

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Depois disso miss Berke ficou o tempo todo me chamando de “dos Santos” já que esse é meu último nome, embora eu o odeie e prefira muito mais o Henkels. Oh, antes da aula começar Vini, Ana e eu encontramos com nosso primo Mark e vou te dizer, ele é bem popular aqui pois todas as garotas ficavam olhando pra ele e meio que babando. Vini disse que ele atrai garotas como ímã porque é fortão e está na equipe de luta da escola, embora o próprio Vini não entenda como as garotas podem achar sexy um cara enfiado em um colã se agarrando freneticamente com outro macho no chão. Sei que ele não disse isso por inveja, até porque o Vini também não fica muito atrás no gosto feminino da Olympia High. Quero dizer, eu pude comprovar isso não só por ter visto as olhadas que as meninas davam nele no corredor, mas também porque quando Ana e eu fomos ao banheiro eu vi que havia uma lista dos mais gatos da escola escrita com canetinha em uma das portas do reservado, e o nome Theo Welinsky ficava na terceira posição, logo abaixo de um tal de Joey Sisto e, é claro, Mark Henkels. Está vendo, é isso que dá ter uma família onde todo mundo é lindo. Exceto eu é claro. Ah, e falando em beleza, Alice ficou igual a um carrapato atrás do Vini porque ela está nas mesmas classes que ele então, ela está se achando no direito de ficar no pé do nosso primo o tempo todo! Eu não ligo. Apesar de achar deprimente sei que ela não está se jogando em cima dele nem nada, mas por favor deixa o cara um minutinho em paz né!

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Oops miss Berke acabou de passar por mim. O filme acabou e ela está indo acender as luzes. É melhor parar de escrever antes disso.

Ainda 7 de abril, banheiro feminino da Olympia High

14:00­Bem eu não sei como vai ser meu dia daqui pra frente nessa escola, mas eu estou arrasada. Abalo 9.7 na escala Babi de tremores e garanto que minha vida está acabada depois desse! Não, eu não estou exagerando. Até mesmo o Vini que está do lado de fora do banheiro me esperando pra me dar uma carona pra casa iria concordar comigo. O engraçado, ou melhor dizendo o desesperador, é que tudo isso começou por um simples engano! É que hoje de manhã quando minha família estava tomando café pra ir à escola, eu estava comentando com minha mãe que estava triste, pois como a gente morava em Orlando eu não ia mais poder tomar Chimarrão pela manhã como eu sempre fazia no Brasil. Minha mãe então disse que talvez existisse alguma loja de que importasse a erva, já que a comunidade brasileira aqui é enorme. Animada com isso fui até o quarto da Ana onde tia Vivian tagarelava feito louca sobre uma notícia que ela leu no jornal da manhã e que falava sobre o crescimento do uso de drogas nas próprias dependências das escolas. Depois que tia Vivian saiu eu perguntei a Ana como se falava “erva” em inglês ao

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que ela respondeu: “ Oh, tem várias formas. Pot, Marijuana, hemp.” Mas antes mesmo que nós pudéssemos conversar mais sobre isso Vini buzinou insistentemente pra que a gente se apressasse e Ana, Alice e eu nos jogamos dentro do carro antes que ele partisse sem a gente. Coisa que eu duvido que o Vini faria. Ele só estava ameaçando mesmo. Ok, agora vamos pular as aulas que tive pela manhã e ir direto para o vexame. No primeiro tempo depois do almoço tive aula de história, o nome não é esse aqui mas eu ainda não gravei direito. Só sei que fala sobre coisas antigas então de qualquer jeito é história! Bem, mas voltando ao incidente vergonhoso, estava lá eu sentadinha, bonitinha em uma mesa ao lado da Ana quando nosso professor, Mr. Marshall, entrou na sala e colocou sua pasta em cima da mesa. Como eu era um rosto novo ele logo se virou pra mim. Eu tive de me apresentar mais uma vez, o que me deixou vermelha de novo, e sem que eu esperasse ele me perguntou o que eu mais sentia falta do meu país. Agora imagina comigo a cena: Um bando de pessoas desconhecidas te olhando como se fosse um animal exótico e você em pé extremamente vermelha tentando gaguejar alguma coisa. Bem, foi isso que aconteceu. Não saia nada de minha boca, nadinha mesmo, até que eu tive um estalo na minha cabeça. “Vou falar sobre a erva mate, pois tomar chimarrão de manhã é algo que eu realmente sinto falta”. Mas ao invés de falar no bom português eu, como uma verdadeira idiota, tentei me expressar na língua deles, e aí é que deu­se a tragédia. “I miss mate pot.”, eu disse em um tom meio baixo.

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Mr. Marshall deu um pulo e disse “Excuse me?” Na mesma hora todos arregalaram os olhos e eu, achando que eles apenas não tinham me ouvido, simplesmente completei “Yes, I miss mate marijuana.” A Ana escondeu o rosto com as mãos, e Mr. Marshall na mesma hora me arrastou pra diretoria sob uma onda de gargalhadas dos meus colegas de classe. Depois disso foi o caos. Vini apareceu em minutos, talvez avisado por Ana e tentou contornar a situação com o diretor, mas ele mesmo assim chamou minha mãe. Eu ainda não tinha entendido o porquê daquilo tudo quando o Vini me explicou na sala de espera que “pot e marijuana” eram gírias para maconha. Sério , eu tinha dito para meu professor e meus colegas que sentia falta de maconha!!!!!!!!!!!!! Na mesma hora eu comecei a chorar pela vergonha absurda que havia passado. E ainda estou choramingando até agora nesse banheiro. No final das contas tudo se resolveu, porque minha mãe e até tia Vivian (que fechou a loja só por causa disso) explicaram para o diretor que eu estava querendo dizer erva mate e não canabis quando respondi a pergunta do senhor Marshall. Elas explicaram até que era com a erva mate que se fazia o chimarrão, uma bebida muito apreciada no Sul do Brasil e que essa erva não era alucinógena nem nada. Não passava de uma espécie de chá. Bem, mas mesmo com tudo devidamente explicado, o estrago já foi feito, minha reputação já era e eu simplesmente quero morrer!!!!!!!!!!!!

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Sério, como é que eu posso voltar amanhã aqui e encarar meus colegas de novo, depois da vergonha imensa que eu passei? Eu não quero mais botar os pés na Olympia High! Eu quero ir pro Brasil, voltar a estudar no Martin Luther. Mesmo com todo o lance dos apelidos pelos menos se fala português lá e assim eu não vou me sentir uma tremenda analfabeta como estou me sentindo aqui. Ah, e dificilmente vou pagar um mico surreal como o de hoje. Se bem que até uma passagem só de ida pro Japão eu estou aceitando! Qualquer coisa pra ficar longe desse lugar. Por favor, meu Deus me tira daqui! Eu odeio essa cidade, eu odeio essa escola, odeio ser uma negação em inglês. Eu odeio tudo!!!!!!!!!!!!!!!! Alguém por favor me tira desse inferno! Oh, não minha asma. Só faltava isso mesmo. Uma falta de ar bem agora. É melhor pegar a bombinha antes que a crise piore. Por que coisa ruins só acontecem comigo hein? Por quê?

Ainda 7 de abril, meu quarto.

20:15­ Vini acabou de sair daqui. Ele veio tentar me fazer comer um pedaço de pizza, provavelmente a pedido de minha mãe. Mas eu recusei. Não consigo comer nada. Estou muito deprimida e arrasada com o que aconteceu hoje na escola.

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Meu primeiro dia foi simplesmente uma catástrofe e eu não sei o que vai ser de mim nos próximos. Quero dizer, sei sim, vou ficar conhecida como a drogada da Olympia High, aposto! O que me faz desejar arduamente não por os pés lá nunca mais! Só que eu sei que minha mãe vai me obrigar a ir a escola. Ela não entende a humilhação que eu passei. Ao invés disso fica falando “Tudo vai dar certo Cat, não se preocupe.” Mas eu sei que não vai dar pois Deus me odeia! E o pior é que ainda por cima eu tenho dever de casa pra fazer... Em inglês, lógico!Arghhhhhhhhhhhh.

a escada rolante pra voltar ao saguão onde tínhamos deixado mamãe, eu me encontrava tão distraída olhando os degraus que a Alice teve que me dar uma cutucada pra conseguir chamar minha atenção. Eu dei uma olhada pra trás já esperando alguma idiotice dela, mas Alice só apontou pra frente com o queixo e perguntou: “Quem será o cara?” Não sei se foi apenas impressão minha, mas naquele momento a escada pareceu andar num ritmo muito mais devagar, como se estivesse em câmera lenta. O Vini continuou lá parado com as mãos no bolso, me acompanhando descer apenas com o olhar, até que depois do que pareciam séculos, a escada finalmente deixou minha irmã Alice Nome: Bárbara Henkels dos Santos. (caso você encontre este diário, saiba que

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meu sobrenome é de origem alemã, então se lê Frílin, ok?) Idade: 15 anos Data de nascimento: 28/02 Signo: Peixes Endereço: Asteróide B 612, fundos. Qualquer coisa falar com o Pequeno Príncipe após as 16:00 horas. (há-há-há. brincadeira!) Cor: roxo, rosa, azul bebê Melhor amigo(a): Mariana Prado Time: Internacional Cantor/banda: Coldplay Livro: O pequeno príncipe e eu diante dele. Dados Pessoais:

A “Escala Babi de Tremores” é uma unidade de medida feita por euzinha para avaliar a intensidade dos “abalos sísmicos” que acontecem em minha vida. Qualquer semelhança com a escala “Richter” (que mede a intensidade dos terremotos) não é mera coincidência.

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*9,1 a 10 pontos= (Acontecimentos extraordinários) Falta de ar, tontura, sensação de borboletas no estômago, palpitações no coração, frio na barriga e na espinha, pernas trêmulas, mãos frias e úmidas de suor. *8 a 9 pontos= (acontecimentos surpreendentes) Sensação de borboletas no estômago e palpitações no coração. *6 a 7 pontos= (acontecimentos marcantes) Frio na barriga e na espinha. *4 a 5 pontos = (acontecimentos moderados) Pernas trêmulas. *1 a 3 pontos = (acontecimentos fracos) Mãos frias e úmidas de suor.

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