Quando a cinderela mora ao lado

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Este diário pertence à Bárbara Henkels dos Santos (Babi para os mais íntimos). Qualquer tentativa de leitura deste por pessoas não autorizadas resultará em um castigo cruel e doloroso ao infrator, não importa quem seja. E isso também vale para

você,

Alice,

minha

querida

irmã.

Ah,

está

duvidando? Pois então ouse ler o conteúdo do que está escrito aqui, mas eu não faria isso se fosse você. Não faria mesmo...


31 de Maio (terça-feira) Meu quarto

15:30- Segundo minha mãe “Vida nova pede um diário novo” e foi isso que eu fiz. Comprei esse diário ontem, aposentei o velho que me acompanhou durante tanto tempo, e estou fazendo meu primeiro registro nesse daqui. A Alice, minha irmã mais velha, mesmo tendo cursado dois semestres de Psicologia na UFRGS, diz que escrever em diários é pura idiotice. Mas ela adora encher minha paciência desde que eu nasci, então a opinião dela não conta muito. O Daniel, meu irmãozinho insano de cinco anos, até pouco tempo tinha medo do meu diário. Tudo porque a criança viu na TV a reprise de um desenho japonês antigo chamado Death Note, em que o personagem principal tinha um caderno onde escrevia o nome das pessoas que ele queria que morressem (e elas morriam mesmo!), e aí o guri acabou encasquetando com o meu diário, achando que a coisa tinha o mesmo poder sobrenatural de mandar os outros passarem dessa pra melhor. Então, sempre que eu o pegava, o Dani disparava um “Ahhhhhhh” e saia correndo apavorado pela casa. O que por um lado foi bom, pois nessa época eu tive toneladas de privacidade sem nem ao menos precisar gritar com meu irmãozinho.

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Minha mãe, por sua vez, acha que ter um diário é uma ótima forma de eu sair um pouco da “concha” na qual escondo meus sentimentos, devido a minha timidez aguda. Ela vive dizendo: “Isso mesmo, minha filha! Ficar abafando as emoções dentro do peito só vai fazer você virar uma panela de pressão. E mais cedo ou mais tarde ela vai acabar explodindo. Então escreva! Desabafe! Ponha tudo pra fora!” Quanto a mim, eu já acho que escrever em diários é só uma forma de me expressar livremente. Ainda mais agora, que nós vamos nos mudar, e toda vez que eu tento me expressar livremente sobre o quanto eu estou odiando essa situação, minha irmã me chama de Ogra (ou monstrinha, dependendo do humor dela no dia) e diz pra eu calar a boca e parar de encher o saco. Comigo ela não tem a mínima psicologia... Minha mãe, apesar de toda a correria pra aprontar as coisas da viagem, teve tempo de me fazer um mimo hoje (alguns diriam que foi uma espécie de suborno pra que eu parasse de bater o pé contra a mudança, mas se foi não adiantou muito não). Ela comprou uma dúzia de canetas coloridas e com perfume pra que eu escrevesse com elas nesse diário - estou usando agora mesmo uma super fofa que tem cheirinho de coca-cola. Apesar do pequeno presente, ainda não consegui me reanimar, e o Dani fica me perguntando o tempo todo porque eu estou triste. Já expliquei várias vezes, com a maior paciência do mundo, que é por causa da mudança, mas ele simplesmente não entende. Também, é pedir demais pra uma criança que enfia o dedo no nariz e come a própria meleca que compreenda a dimensão do que é se mudar pra outro país.

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Se bem que eu acho que ninguém no mundo faz idéia disso, nem mesmo minha melhor amiga Mariana, que sempre entende tudo no quesito “sentimentos.” Eu até tentei explicar pra ela uma vez, dizendo que a sensação que eu estava sentindo era a mesma de pular de Bungee Jump com uma banana de dinamite nas mãos (não que eu já tenha feito isso alguma vez, Deus me livre!), mas acho que ela ou qualquer outra pessoa só vai entender o quanto dói se mudar pra um país estranho, quando passar realmente por isso. E quer saber por que eu estou tão chateada? Porque aposto que essa mudança vai ser o fim da minha vida! Mesmo que minha mãe insista em afirmar que isso não é o final de nada e sim apenas uma espécie de recomeço. Sei, sei. Pode ser pra você mãe, não pra mim! Agora falando sério. Por que eu iria querer trocar o Sul do Brasil, por um lugar que tem um bando de pântanos e um monte de espécies de jacarés e crocodilos. Isso mesmo. Aqueles bichões grandes, cheios de dentes que passam naqueles filmes do “Crocodilo Dundee” supereprisados na Sessão da tarde! O Douglas, meu outro amigo, me contou que a prima dele mora há um tempão nesse lugar pra onde a gente está se mudando, e ela quase foi mordida por um filhote de jacaré dentro de casa! E depois ainda querem que eu fique só olhando o lado positivo disso tudo. Tipo, do que adianta essa tal cidade ter vários parques de diversão e uma comunidade enorme de brasileiros, se o meu dedão pode ser abocanhado por um baby jacaré quando eu estiver dormindo? Ah, como eu queria acordar agora e ver que tudo não passou de um sonho. O chato é que eu tenho certeza de que isso não é um, porque se fosse, pelo menos o Zac Efron apareceria sem

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camisa e, até o momento, não há nenhum sinal dele por aqui. Só do Dani, pulando na minha cama e desarrumando as roupas que eu dobrei com todo o cuidado pra colocar na minha mala de viagem. Por que a vida é tão injusta comigo, hein? Já não basta eu ser a filha do meio, oprimida entre a primogênita inteligente e o caçulinha mimado só por ter nascido menino? Não, pelo visto não basta... Vou te dizer, se existe mesmo esse negócio de reencarnação, eu devo ter sido uma bruxa terrível que chutava cachorros e comia criancinhas, pois só sendo má assim na vida passada explicaria porque eu estou sendo tão castigada nessa daqui! 19:40- A Mari me mandou um link por email pra eu tirar um biscoito da sorte on line. Ela adora coisas que supostamente advinham o futuro e vive enchendo minha caixa de entrada com isso, tanto que o meu provedor de email já até pensa que é Spam. Geralmente eu nem olho, mas dessa vez, só pra ver se eu paro de pensar um pouco nessa droga de viagem, resolvi dar uma chance ao tal “biscoito”, e foi essa a frase que apareceu na tela: “O amor sempre aparece onde deve estar. Deixe que o acaso faça o seu trabalho.” Hum. Acho que não entendi... Bem que essas mensagens proféticas podiam ser menos genéricas e mais explicativas, não é? De qualquer jeito, eu sei que isso é pura bobagem. Aposto que milhares de pessoas também receberam essa mesmíssima frase só hoje. Nem vou perder meu tempo tentando entender.

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20:02- Mamãe aproveitou que eu estava no computador, e falou pra eu imprimir o email da American Airlines com a confirmação da compra das passagens que ela tinha feito pela internet. Então eu imprimi e guardei aqui no diário pra não perder.

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==================================== De: aa.tkt.center@aa.com. Para: Valkiriafdsantos@yahoo.com.br Enviada: 18 de maio, 19:20 Assunto: Confirmação Prezado passageiro: A American Airlines® agradece a sua preferência e confiança em comprar seus (s) bilhete(s) via AA.com.br. Gostaríamos de informar que a cobrança no cartão de crédito XXXX XXXX XXXX 2347 foi efetuada da seguinte maneira:

Número do Bilhete: 0012191596773 Nome: DOS SANTOS/BARBARA HENKELS MS Código da Reserva: CMDBFF Número do Bilhete: 0012191998401 Nome: DOS SANTOS/MARIA ALICE HENKELS MS Código da Reserva: FGBRTW Número do Bilhete: 0012191596761 Nome: DOS SANTOS/VALKIRIA HENKELS MRS Código da Reserva: KFHMBR

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Número do Bilhete: 0012191910002 Nome: DOS SANTOS/DANIEL HENKELS MR Código de Reserva: VTDRHY Para obter mais detalhes sobre a sua reserva clique no botão Ver Reserva. Para visualizar seu itinerário, digite o nome e sobrenome do passageiro e indique também o código de reserva. É obrigatório a apresentação do Cartão de Crédito utilizado para esta compra no Aeroporto (CHECK-IN). A não apresentação do mesmo impedirá o seu embarque. Lembre-se de que você deverá comparecer ao aeroporto com devida antecedência, portando seu passaporte válido, documentos de viagem necessários (vistos) e uma cópia desta confirmação. Obrigado Por Escolher A American Airlines®.

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01 de Junho (quarta-feira) Meu quarto

19:25- Meus amigos são tão fofos! A Mari me atraiu até a casa dela hoje pra uma festa de despedida surpresa que o pessoal organizou pra mim. Estava todo mundo lá: o Douglas, a Cecília, a Joana, a Camilla, a Isabela e mais um bando de gente da minha turma do primeiro ano que não fazia parte da nossa “panelinha”... Quase chorei quando vi colada na parede uma faixa escrita: “Bye Bye Babi. Você está indo, mas nosso coração vai contigo”. Gostei de saber que eles iam sentir minha falta. Tudo bem que eu preferia não estar viajando pros Estados Unidos amanhã, mas pelo menos essa demonstração de carinho me animou. Sem falar que a festinha de “bota fora” foi tão boa que acabei nem vendo a tarde passar. Dancei, brinquei, cantei no karaokê, comi besteira, ri bastante relembrando tudo que os meus amigos e eu já tínhamos aprontado na escola... Horas e mais horas de pura diversão. À noitinha, o assunto sobre a cidade onde eu iria viver começou a dominar a conversa, e eu me senti meio desconfortável com o rumo que o papo estava tomando, então a Mari correu pra pegar uma coisa no quarto dela e, ao voltar, me deu uma caixinha branca com um fitilho roxo enorme. Ela

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disse que aquilo era um presente do nosso grupinho pra que, quando eu estivesse em solo americano, nunca me esquecesse deles. Abri a caixinha toda curiosa, sem saber o que esperar, e encontrei ali dentro uma pulseira de prata, com uma fita rosa choque e vários pingentes pequenos que eram a coisa mais linda que eu já vi na vida! A Cecília tratou logo de explicar que cada um deles representava alguém da turma. No caso dela, tinha escolhido o pingente em forma de sandália, por causa da nossa paixão por sapatos. A Isabella quis um no formato de um sorvete, pra que eu lembrasse das sorvetadas que a gente fazia quase todo dia no verão e a Joana, por sua vez, preferiu um de Joaninha por causa do nome dela mesmo. Já a Camilla escolheu um pingente no formato de coroa, por todas as mil vezes que gente assistiu o filme Diário da Princesa juntas, enquanto que o Douglas optou por um no formato do símbolo da paz, pra que eu lembrasse de nossas eternas brigas quando íamos ao cinema e ele queria ver um filme de ação enquanto eu e as meninas queríamos ver o que ele chama de filmes “mela-cueca” (Há-Há, esse Douglas!). E finalmente, o pingente da Mari era o mais bonito de todos, uma fechadura rosa com detalhes em ouro branco, pra que eu me lembrasse que os meus segredos estariam eternamente seguros com ela. Só que, além de todos esses, ainda tinha mais um, bem pequenininho mesmo, no formato de uma estrela, e eu fiquei curiosa pra saber de quem poderia ser, até que a Mari disse que aquele representava a nossa cidade, Estrela, pra que quando eu estivesse nos Estados Unidos e olhasse pra ele, lembrasse que

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havia pessoas bem longe dali que gostavam muito de mim. Óóóin, meu Deus! Que amor! No final de toda a explicação eu já tinha explodido em lágrimas e todo mundo veio me dar um abraço em grupo. Eu estava me sentindo muito feliz pelo presente fofo que os meus amigos tinham me dado, mas também profundamente triste por ter que deixá-los assim. Eu não ia apenas fazer uma viagem, eu ia embora pra sempre! Talvez nunca fosse vê-los de novo. Só de pensar nisso eu chorei mais e mais. Como não consegui parar, me despedi de todos sob novas ondas de lágrimas e decidi ir pra casa, antes que ficasse desidratada. Agora estou sozinha aqui, sentada num balanço que tem no meu quintal, com o capuz do casaco na cabeça por causa do frio, enquanto olho pra pulseira e penso em cada um dos meus amigos. Vai ser difícil partir amanhã. Difícil deixar tudo pra trás. Mas infelizmente não posso fazer nada, a não ser esperar pela hora de dizer “adeus”.

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02 de Junho (quinta-feira) *Minha casa, ainda Brasil

15:20- Bem, é isso. Depois de tanta briga, tanto choro e tanta pirraça nós estamos aqui, sentadas na escada de nossa varanda, com um bando de malas alinhadas uma atrás da outra, apenas esperando tia Vera que vai nos levar até o aeroporto em Porto Alegre. Nossa casa está vazia agora. Sem móveis, sem eletrodomésticos, sem nada. Dá até dó de olhar pro meu quarto. Meu lindo castelinho encantado virou apenas um esqueleto lilás frio e sem alma. O que aconteceu com o meu bando de bichinhos de pelúcia? Já era! Meu mural de fotos? Já era! Penteadeira, pufe, bonequinhos toy art? Já era! Já era! Já era! Tudo se foi! As poucas coisas que minha mãe não vendeu nós terminamos de entulhar hoje pela manhã, num quartinho que fica nos fundos da casa de tia Vera. Se eu pudesse, é claro que teria trazido comigo o meu armário inteiro, mas mamãe também nos impôs o limite de duas malas por pessoa da família (cruel, muito cruel isso), o que me fez ter a dolorosa missão de escolher algumas poucas peças de roupa e um número ínfimo de sapatos que iria querer levar e me desfazer do resto (leia-se: doar tudinho pra uma instituição de caridade perto daqui de casa, inclusive a maioria das minhas Melissas). Dá pra imaginar como eu me senti na hora? Arrasada,

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lógico! Até tentei convencer a minha mãe de que a gente poderia mandar as coisas encaixotadas pelo correio, mas ela foi irredutível. Disse que ia custar uma fortuna e que nós não tínhamos dinheiro pra isso. Então eu apelei. Apelei mesmo. “Não mãe, pelo amor de Deeeeeeus! As Melissas nãâãããão!” eu disse agarrando as sandálias enquanto minha mãe tentava tirar elas de mim. Mas o drama que eu fiz e o choro compulsivo não deram em nada. E lá se foi mamãe levando o resto das minhas sandálias embora. Ainda estou deprimida por nossa separação prematura. Espero pelo menos que as pobrezinhas estejam em boas mãos nesse momento, quero dizer, bons pés. Minha amiga Mari deu um pulinho aqui agora a pouco. Ela veio se despedir de mim, mas não aguentou ficar muito tempo. Porque mal bem a coitada começou a falar, as lágrimas foram saindo e saindo e eu, mesmo tendo tentando bravamente segurar a emoção, comecei a chorar também, e aí nós duas nos abraçamos aos soluços, e ela disse que seríamos amigas pra vida inteira, mesmo se eu fosse morar num outro continente ou em Plutão. Depois disso, ela se despediu da Alice, pediu desculpas mais uma vez por não poder ir até ao aeroporto com a gente, me deu um papel exigindo que eu o lesse só no avião e saiu pelo portão afora, enxugando os olhos enquanto chorava baldes. Parecia que eu ia morrer ou algo assim... Assim que ela saiu não resisti e abri o bilhete. Vi que tinha uma letra de música escrita (a Mari sabe que eu AMO música) e o título dela era “Canção da América”, o que eu achei superoportuno pro momento, já que era pra lá mesmo que eu estava indo. Aqui está o bilhete:

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Canção da América Amigo é coisa pra se guardar Debaixo de sete chaves Dentro do coração Assim falava a canção que na América ouvi Mas quem cantou chorou Ao ver seu amigo partir Mas quem ficou, no pensamento voou com seu canto que o outro lembrou E quem voou, no pensamento ficou Com a lembrança que o outro cantou Mari

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Nem bem terminei de ler e eu já estava em prantos de novo, me sentindo a pessoa mais desolada da face da terra. E o pior é que a Alice não se comoveu nem um pouco com a minha cachoeira de lágrimas e mamãe não estava por perto na hora pra me consolar ou dizer que tudo ia ficar bem no final. Ela tinha ido com meu irmão Dani na lojinha de doces da esquina comprar alguns Kinder Ovos e um monte de balas para tentar distrair o guri durante o voo. Sei que ninguém em sã consciência daria açúcar para uma criança hiperativa, como é o caso dele, mas eu não posso culpar minha mãe por isso. Ela

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está realmente tentando fazer com que nossa mudança não seja tão traumática assim. Ontem a noite mesmo, depois de eu voltar da festa, ela fez uma panela gigante de negrinho (brigadeiro), a minha sobremesa preferida, como uma espécie de despedida do Brasil. Mas o gosto doce dele simplesmente se foi e, nesta varanda, eu apenas sinto a sensação amarga da partida. Minha irmã Alice está sentada bem ao meu lado, na escadinha dessa mesma varanda, totalmente indiferente ao meu sofrimento, enquanto lê um guia sobre a cidade pra qual a gente vai se mudar. Mamãe diz que por ser quatro anos mais velha que eu a Alice acaba sendo mais madura e tendo um outro olhar para toda essa situação. Mas a verdade é que minha irmã parece tranquila porque sinceramente ela não tem um terço dos meus problemas! Quero dizer, Alice tem um corpo bonito, com formas bem delineadas, um cabelo loiro ondulado maravilhoso (tipo Gisele Bündchen), nenhuma gordura a mais ou a menos (resultado de hoooooras na academia, mas e daí?) e um inglês perfeito graças aos sete anos que ela passou estudando num cursinho de línguas. Já eu... bem... Eu não me assemelho em nada a minha irmã. Nem na inteligência, nem na beleza. Primeiro, porque eu sou deficiente peitoral (leia-se: não tenho nada na região do meu busto que possa preencher um sutiã satisfatoriamente). Segundo, que o meu cabelo louro escuro, apesar de ser liso na raiz, é tão anelado e tão espigado nas pontas que eu pareço um Cocker Spaniel gigante! Problema esse que seria facilmente resolvido com uma Escova Progressiva, se a exagerada da minha mãe não achasse que o cheiro forte da química vai me matar sufocada por causa da

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minha asma. Ah, é. Tem isso também... Eu sofro de bronquite asmática, ou seja, tenho crises de falta de ar quase o tempo todo e preciso usar um inalador ridículo para tentar controlálas. E ajudando a piorar ainda mais a minha imagem, faltou mencionar o aparelho móvel horroroso que eu uso e sempre preciso tirar quando vou comer alguma coisa. Nojento! Argh! Mas isso não é tudo, oh não! Pra fechar com chave de ouro, o meu inglês é uma coisa ter-rí-vel, já que eu tive que sair do curso, pois minha mãe ficou numa situação financeira muito difícil quando o meu pai resolveu sair de casa. Resumindo, meu conhecimento na língua não vai muito além do básicão “The book is on the table” e outras inutilidades que eu consegui aprender vagando pela internet Então agora me diz: depois dessa lista, como é que eu posso bancar a “garota madura” tendo tantos problemas e ainda por cima estando de mudança contra a própria vontade pra outro país? Minha mãe disse que apesar dos meus 14 anos eu estou agindo como uma criançinha mimada de 7, mas que um dia, quando eu tiver mais maturidade (ou alguma pelo menos) eu vou entender. Tudo bem, eu admito que ela está tentando fazer o melhor por nós, que depois da separação teve de segurar a barra toda sozinha, pois meu pai esqueceu que existimos, mas sinceramente eu acho que essa ideia dela de mudar para um outro país -só pra tentar continuar nos proporcionando a vidinha de classe média que a gente estava acostumado- foi uma decisão muito precipitada.

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Sei que meus tios foram para os Estados Unidos e estão tendo uma vida ótima lá, só que isso não significa que vai acontecer a mesma coisa com a gente quando colocarmos os pés na América. Além do mais, eu amo o lugar onde moro morava. Estrela pode não passar de uma cidade pequena no Sul do Brasil, mas ainda assim é a nossa cidade Natal, é a nossa casa. Quando meu tio Oscar decidiu morar em Orlando, na Flórida, nós sabíamos que ele nunca mais voltaria, porque pra ser sincera ele não gostava nem um pouco de Estrela. Dizia que cheirava a bosta de vaca, o que vou lhe dizer, é uma grande mentira! Porque nós temos um bom nível de urbanização aqui, ou seja, nada de vaquinhas se aliviando pela rua! Minha tia Vivian, por sua vez, também não tinha muita afeição pela cidade, e foi só o vovô Henkels morrer pra ela pegar a parte dela na herança, meus dois primos Ana e Vini e ir embora sem olhar pra trás. É claro que ela não foi para os Estados Unidos com rios de dinheiro, já que a fazenda do vovô - o “Recanto dos Piás”- não valia muita coisa e o seguro de vida deixado pelo marido dela antes de morrer tinha um valor bem baixo, mas tia Vivian montou um negócio em Orlando, e vive muito bem lá até hoje como empresária, sem qualquer saudade de Estrela. Por isso, sabendo dos problemas financeiros que estamos passando, sugeriu que minha mãe, meus irmãos e eu nos juntássemos a ela. A única do clã Henkels que pelo visto não herdou o gene “aventureiro” foi minha tia Vera. Ela é a mais velha de todos os irmãos de minha mãe, a solteirona incorrigível da família e a única que quer viver e morrer em Estrela.

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Tia Vera praticamente disse pra minha mãe que ela estava fazendo uma burrada em acreditar no “Sonho Americano”, mas pra minha tristeza mamãe não a escutou. E aqui estamos nós. Apenas à espera da carona que nos levará ao aeroporto. Além do choro convulsivo, meu estômago parece dar cambalhotas agora e eu estou me esforçando pra não fazer igual aquela garota do filme “O exorcista”. Me refiro ao lance de vomitar uma gosma verde, não o de girar a cabeça 360 graus. Até porque só faltaria isso mesmo pra eu me tornar uma aberração completa!

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02 de Junho *Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro (Galeão). 21:20- Estamos neste momento num saguão, apenas aguardando o nosso próximo voo. Partimos exatamente às 18:30 do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, e chegamos sem atrasos aqui no Rio de Janeiro, onde vamos fazer nossa primeira conexão. Não vai dar pra gente conhecer a cidade maravilhosa nem um pouquinho, por causa do tempo curto entre um vôo e outro, mas eu já me dou por satisfeita só pelo fato de não estar tão frio aqui quanto fazia no Sul. Mamãe foi no segundo andar do aeroporto tentar encontrar minha pulseirinha de pingentes que eu devo ter perdido quando nós fomos lanchar (É. Mais essa agora! Perdi logo o presente mais importante que ganhei dos meus amigos!). Meu irmão Dani está passando agora na minha frente, deslizando em alta velocidade num carrinho de malas, enquanto grita “Uiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii”, mas eu estou deliberadamente fingindo que não conheço a peste. Eu disse pra não dar doces pro hiperativo, não disse? Quando é que as pessoas dessa família vão começar a me ouvir? Além do Dani um monte de gente barulhenta transita ao meu redor com carrinhos abarrotados de malas. Tem de tudo, desde crianças atentadas como o meu irmão - pras quais eu fiquei dando careta de brincadeira quando os pais não estavam

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olhando- até pessoas vestidas com Quimonos!!!!!!! (Bem, com esses aí é melhor não mexer. Vai que é algum faixa preta em jiu jitsu?). Ah, e tem também um grupinho de pessoas numa chorosa despedida bem perto de onde eu estou sentada. Três garotas lindíssimas estão chorando desesperadamente, enquanto uma mulher meio cinquentona e super elegante se acaba em lágrimas abraçando um garoto altão. E olhando direito pro tal (não tinha prestado muita atenção nele antes), até que o garoto é bem bonitinho... Sabe o tipo de menino que tem os cabelos tão pretos que contrastam com a pele branquinha? É ele. E o cabelo ainda está aparado nesse corte da moda, com franja, em que as pontas das mechas dão voltas fofas no ar. Eu nunca gostei muito desse tipo de corte, pra ser sincera, mas admito que fica muuuuito bem nesse menino. Oh, e eu já falei sobre as pintinhas charmosas que ele tem no pescoço? Consigo enxergar elas daqui. A única coisa que não dá pra ver mesmo é a cor dos seus olhos, graças ao Ray-Ban que ele está usando. Sério. Esse garoto deve ser daquele tipo de cara que gosta de uma atenção. Afinal, por qual outro motivo alguém iria ficar andando dentro de um aeroporto, às nove horas da noite, com um par de óculos escuros? Sem mencionar o fato de que ele parece ser igualzinho ao Gustavo, o metidinho a conquistador da minha antiga escola. E eu não estou dizendo isso apenas por dizer. Antes das três garotas lindíssimas chegarem com a mulher cinquentona, o garoto do Ray-Ban ficou dando em cima de todas as meninas que estavam sentadas aqui perto de mim. E eu falo sério quando digo todas! Ele abordou uma por uma ! Não sei ao

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certo o que disse pra elas (na hora eu estava bem mais interessada em ouvir o MP3 da Alice), mas com certeza deve ter sido alguma cantada muito boa, porque elas ficavam rindo pra ele com aquela cara de abobadas. Bem, mas como ele não veio com esse papinho pra cima de mim nem nada, e o que ele faz com as outras garotas não é da minha conta, acho melhor eu continuar escrevendo nesse diário pra ver se relaxo, ou pelo menos me acalmo um pouco. Daqui a alguns instantes vou entrar pela segunda vez em um avião e não quero despejar bem em cima de alguma pobre aeromoça todo o Cheetos que acabei de comer. Isso definitivamente seria começar com o pé esquerdo. A Alice está nesse momento verificando mais uma vez na mochila dela se nossas passagens e passaportes estão mesmo guardados ali. O que eu com certeza não ficaria triste se ela os tivesse perdido, já que eu não quero ir pra Orlando e a minha foto 3x4 do passaporte é uma verdadeira piada. Sem falar que o pessoal do consulado colocou o meu último sobrenome vindo primeiro no documento, o que me torna de agora em diante a senhorita “dos Santos”. Argh, isso é mais horrível que o meu aparelho! Ei, espera aí, onde está meu aparelho por falar nisso? Ah, não! Como se já não bastasse ter perdido a pulseira que eu mais amo, ainda pro cima esqueci o aparelho no banheiro do aeroporto! Tenho que ir lá buscar agora!!!!! Fui.

21:36- Graças a Deus meu aparelho ainda estava dentro da caixinha roxa dele, bem em cima de uma pia do banheiro

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feminino. Por via das dúvidas só vou usar ele quando chegar na casa da tia Vivian e puder desinfetá-lo. Afinal, eu não sei por que mãos ele pode ter passado naquele banheiro e nem quero imaginar! Acho que eu estou ficando maníaca por limpeza igual a minha mãe. A Alice disse que meu empenho todo em procurar o aparelho foi desnecessário, já que se eu tiver que continuar usando (o que ela também acha que eu não preciso mais) vou ter que fazer um novo de qualquer maneira, pois nós vamos morar em Orlando a partir de agora. Apesar de eu odiar admitir isso, até que ela tinha um pouco de razão, mas eu não gostei nem um pouco quando a Alice usou a palavra novo. E eu não estou me referindo só ao aparelho ou aos machucados que ele causa quando eu coloco um zero bala. Estou falando de tudo que vem por aí daqui pra frente. Novo aparelho, Novo dentista, Novo lar, Novos vizinhos, Novo colégio, Novo idioma, Novo PAÍS!!!!!! Será que eu já mencionei o quanto tudo isso soa assustador pra mim? Talvez mamãe esteja certa quando ela diz que eu não passo de uma criançona. Às vezes eu queria me encolher como uma bola e ficar escondidinha debaixo de um cobertor esquecendo do mundo, sentindo apenas a minha própria respiração. Só que aí eu olho a cara de animada da Alice e vejo que tenho de tentar ser forte. Pelo menos pra disfarçar, mesmo que a minha maior vontade nesse momento seja a de chorar uma cachoeira! Minha irmã diz que eu deveria ficar feliz por ir morar na cidade onde as pessoas economizam quase uma vida inteira só pra passar alguns dias de férias. Só que eu não consigo me

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entusiasmar com isso. O engraçado é que, quando era pequena, fiz o maior drama pra minha mãe me deixar ir numa excursão com a turma da escola pra ver o espetáculo “Disney On Ice” em Porto Alegre, pois na época eu era viciada nos personagens do filme da Cinderela, mas agora que eu estou indo pro lugar onde ficam basicamente todos os parques da Disney, não estou dando a mínima. Nunca pensei que seria tão difícil dizer adeus ao meu quarto, a minha cidade, a Mari, aos meus amigos. É como se fosse uma sensação de morte. Dói, sufoca, desespera... Oh, não! Estão falando o número do nosso vôo nos alto falantes! Chegou a hora! Quando nós passarmos por aquele túnel que leva ao avião estará tudo acabado! Ai, meu pai! E pra piorar ainda mais a situação, não há nem sinal da mamãe com a minha pulseira e a Alice está feito uma histérica gritando pelo Dani, que acabou de passar na nossa frente em alta velocidade dizendo: “Vem me pegarrrrrrrrrrrrrrr.” Depois disso tudo só tenho uma coisa a dizer: que Deus me ajude, por que eu não faço ideia do que me espera daqui pra frente. Próxima parada: Terra do Tio Sam!

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02 de junho (quinta-feira) *Dentro do avião.

22:10- Acabei de sentar na minha poltrona e duvido que alguém consiga adivinhar quem está agorinha mesmo arrumando a mochila no compartimento de bagagens de mão da primeira classe? O garoto do Ray-Ban! Bem, agora ele não está mais usando os óculos escuros. Acho que finalmente se deu conta de que já é noite fechada... Tudo indica que o “arrasador de corações” vai pra Orlando também. Pelo menos ele está bem longe de mim, já que minha poltrona fica aqui na classe econômica. Ah, e sabe o que mais? Daqui a pouquinho vamos decolar. Está me dando um frio na barriga nesse momento que... Nossa! Vou rezar todas as orações conhecidas e inventar uma três só pra garantir que tudo corra bem na hora da decolagem. Mesmo que eu não queira morar em Orlando, se é pra ir que ao menos eu chegue inteira, não é? 23:58 –Ok. Apesar do meu medo bizarro de altura acho que viajar de avião não é tão ruim assim. É claro que quando a aeronave levantou voo eu senti que meus órgãos internos quase mudaram de lugar e meu cérebro descolou do crânio, mas agora estou um pouco mais calma do que antes. A única coisa que infelizmente não consigo fazer é dormir.

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Mamãe, Alice e o Dani estão esparramados nos seus assentos, adormecidos graças ao Dramin que tomaram. Se minha vida fosse uma revista em quadrinhos aposto que agora estariam saindo Z’s enormes e em sequência da boca deles (além da baba, claro). ZZZZZZZZZZZZZZZZZZZ... Eu fui a única que não quis nenhum remédio pra dormir, pois achei que o sono viria naturalmente depois do jantar (uma lasanha muito boa por sinal), mas desde então ainda não consegui pregar o olho. Tentei fazer de tudo para que o sono viesse, inclusive me submeter a atividades de alto gasto energético, como tentar girar o dedo para o lado esquerdo enquanto girava o outro pro direito, tocar bateria imaginária, levar um biscoito da testa até a boca sem usar as mãos (meu novo Record é de 30 segundos. Uhú!), fazer aviõezinhos com as páginas da revista dada pela American Airlines e mirar na TV... Até assisti ao filme que foi exibido há alguns minutos atrás, e que vamos ser sinceros, era incompreensível e um sonífero letal de tããããããão chato, mas não consegui nem mesmo bocejar com aquilo. Poxa, seria pedir demais que passasse um filmezinho legal e com legendas para uma garota não bilíngue que está com a vida arruinada? Tipo, “Shrek para sempre” é o filme do voo Hawaí-Alaska (pelo menos foi o que eu consegui ler na revista da American Airlines que usei pra fazer os aviõezinhos), por que então a companhia aérea não passou Shrek pro nosso voo também? Como eu estou com os dois i’s (inquieta e indignada) resolvi escrever nesse diário como uma forma de passar o tempo, afinal não há mais nada pra fazer nesse voo além de dormir

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(Por que meu deus? Por que eu não coloquei meu MP3 na bagagem de mão? E porque a Alice teve que enfiar a mochila onde está o dela, num compartimento tão longe da gente?). A maioria dos passageiros daqui da classe econômica está roncando ou babando nos seus assentos, bem encolhidinhos debaixo das mantas de cor vinho dadas pela companhia aérea. As pouquíssimas pessoas acordadas ficam vagueando pelo corredor do avião parecendo uma horda de zumbis daquele jogo “Resident Evil”, mas prefiro acreditar que elas estão apenas tentando esticar um pouco as pernas para amenizar cãibras, e não procurando carne fresca humana para alimentar seus estômagos de mortos-vivos. O tal garoto do Ray-ban parece que também não está conseguindo dormir, sei disso porque dá pra ver ele daqui onde eu estou. Tá, tudo bem, eu tenho que esticar um pouquinho o pescoço pra vê-lo, mas como ele está num assento de corredor, e eu estou sentada na terceira fileira depois da parede que divide a primeira classe da econômica, pude ver claramente que ele está com fones nos ouvidos curtindo música num Ipod. Até bate o pé ou tamborila os dedos no ritmo da música às vezes. Chega a ser meio engraçado... Voltando a classe econômica, nos pequenos monitores onde antes passava o filme sonífero agora é mostrado um mapa, e nele tem um minúsculo aviãozinho representando a nossa aeronave. Segundo a rota do avião no monitor, estamos bem em cima da Amazônia neste momento, o que significa que ainda não saímos do espaço aéreo brasileiro. Isso me reconforta um pouco, mas não impede que a tristeza e a raiva tomem conta de mim.

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Eu gosto muito, muito mesmo do meu país. Sempre amei o sol, o clima, o aroma gostoso das noites de verão, as cigarras guinchando no final da tarde, o cheirinho de chuva que vinha antes das trovoadas. Eu não sei se em Orlando vai existir tudo isso, talvez até exista, mas tenho certeza de que não vai ser a mesma coisa. Porque não importa o que aconteça, a verdade é que eu ainda vou estar longe de casa. Agora o que está me preocupando de verdade nessa mudança toda, é como eu vou conseguir sobreviver nesse novo país e vivendo, ainda por cima, lado a lado com os meus primos. É verdade que o Vini e Ana são da minha família e tal. Só que eu convivi com eles durante um bom tempo aqui no Brasil, antes de tia Vivian se mudar pra Flórida, e posso dizer que graças ao nosso desastroso histórico infantil, já prevejo que essa nova convivência não vai dar certo. E eu falo sério quando digo “desastroso”. Sabe, a Ana e eu tínhamos uma relação familiar altamente conflituosa quando crianças. Se eu fosse colocar isso na linguagem dos desenhos, nós éramos como Perna-longa e Eufrazino. Em outras palavras, minha prima me odiava e eu correspondia totalmente ao sentimento. Eu até a chamava de Ana Banana só pra irritar. Já minha relação com o Vinícius... Bem, o meu relacionamento com meu primo era beeeeeeeeem diferente. Porque ao contrário da Ana eu gostava do Vini (muito mesmo, se é que dá pra entender) embora isso não fosse recíproco. Ou seja, como eu vou conseguir conviver na mesma casa com as pessoas cuja primeira eu havia odiado mortalmente e pela

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outra havia nutrido uma paixão platônica no maior estilo Pucca e Garu? Ok. Isso já foi há muito tempo, nós éramos apenas crianças e hoje eu não tenho motivos pra odiar a Ana e muito menos ainda gosto do Vini. Mas mesmo assim eu não sei se vou conseguir não morrer de vergonha quando ficar frente à frente com a garota que eu quase afoguei na minha piscininha de plástico e com o garoto pra quem eu escrevia cartas de amor e dizia ser meu namorado. Sem falar que minha mãe adora relembrar meus ternos momentos infantis. Tenho consciência de que até mesmo o balconista da farmácia perto de casa já ouviu falar sobre o dia em que eu enfiei um lápis quase inteiro na minha cavidade nasal. O que significa que os tópicos Babi-odiava-Ana, Babi-amavaVini com certeza serão levantados em algum momento de nossa estadia na casa de tia Vivian. Já posso sentir meu rosto ardendo em chamas de tanta vergonha! As coisas do passado deviam ser mortas, enterradas e nunca mais lembradas. Por que senhor? Por que eu tinha que estar me mudando pra Orlando? E por que dentre milhões de mulheres vós foste me colocar logo no ventre da criatura mais sem noção desse planeta? O que eu fiz pra merecer tudo isso, hein? Karma? Castigo? Maldição? Mau alinhamento planetário no momento em que eu nasci? Sério, não dizem que eu estou indo morar na terra das princesas encantadas? Quando será então que o meu conto de fadas vai começar realmente? Tudo bem que o meu príncipe deve ser vesgo e ter um senso de orientação terrível, por isso

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ele ainda não me achou, mas será que não dá pra pular essa parte toda do sofrimento e irmos direto pro final com o “Felizes Pra Sempre”? Estou precisando tanto disso agora...

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03 de junho *ainda Sobre o Atlântico

3:10 –Uau! Estou chocada com o que pré julgamentos fazer! O engraçado é que eu nunca fui do tipo que se engana com as pessoas, mas dessa vez eu errei e errei feio. Pelo menos acho que dá pra tirar uma lição disso tudo: Nunca julgue um livro pela capa! Do que eu estou falando? Eu vou te dizer sobre o que estou falando, se chama Théo Medina! Mas é melhor eu explicar direitinho (até porque não tem mais nada pra fazer nesse avião mesmo!). Bem, a questão é que tudo começou assim: eu estava sentada na minha poltrona, irritada por não conseguir dormir e com a garganta seca de tanto nervoso. Como as aeromoças não passavam mais com os carrinhos nos servindo, por que já era bem tarde, decidi dar um pulinho no final do avião, onde a tripulação ficava reunida, pra pedir um copo de água. Detalhe, a tripulação não falava o meu idioma e eu tinha esquecido como era a palavra “água” em inglês. Acho que já dá pra imaginar um pouco o vexame que foi, não é? Continuando... Uma aeromoça sonolenta veio me atender e me perguntou alguma coisa em inglês à qual eu entendi “patavinas”. Então, o que eu fiz? O que eu fiz? Comecei a gesticular igual a uma doida segurando um copo imaginário

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com a mão e fazendo ainda sonoros glup glups pra tentar me fazer entender. Mas estava difícil. Nem por um decreto a aeromoça descobriu o que eu queria. E ainda ficou olhando pra mim, com cara de “Meu Deus do céu, eu aprendi cinco idiomas pra ter que agüentar isso?!” quando de repente alguém chegou por trás de mim e disse em inglês: “She wants water, and so do I.” (bem pelo menos foi essa a frase que, segundo a Alice, ele devia ter dito. É, eu acordei minha irmã só pra isso!) Na mesma hora em que eu me virei pra ver quem era o dono da tal voz dei de cara com o garoto do Ray-Ban. E tenho de ser sincera, agora, sem os óculos, pude perceber que ele tinha os olhos azuis piscina mais lindos que eu já vi em toda a minha vida! Parecia até que tinha um coro de anjos cantando enquanto eu olhava pra eles. É claro que eu não encarei o garoto por muito tempo, já que a aeromoça prontamente estendeu um copo de água mineral pra mim e logo depois deu outro pra ele. Só que o garoto ao invés de beber começou a puxar papo comigo. “Não consegue dormir também, não é?” ele disse abrindo o lacre do copo enquanto se apoiava na parede que separava a classe econômica daquela parte do avião. Eu dei um sorriso meio forçado em resposta e me encaminhei pra voltar à poltrona ao lado da minha irmã. Até então não tinha percebido que o tal garoto estava vindo bem atrás de mim. “Você por um acaso tem medo de avião?”, ele perguntou. “Não, não tenho!” eu menti meio que pra cortar o assunto. Na mesma hora, como que em punição a minha mentira, a aeronave deu uma oscilada mais forte e eu gemi de medo

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derramando o copo de água bem no corredor. O tal garoto deu uma risadinha gostosa e estendeu o copo dele pra mim dizendo que eu podia ficar já que ele não estava com tanta sede assim. Até aí tudo bem. Teria sido muito gentil da parte dele, se o engraçadinho não tivesse acrescentado um irônico “senhoritasou-super-corajosa” ao se referir a mim. Juro que no momento eu pensei em dar um chega pra lá naquele garoto folgado, dizer que ele não tinha nada haver com a minha vida, mas mudei de idéia e acabei aceitando o copo de água. Depois de agradecer me encaminhei até a poltrona onde eu estava minutos atrás, e foi com total surpresa que eu vi o garoto se sentar bem no assento de corredor vizinho ao meu. Por sinal, um dos poucos que estavam abandonados pelos seus donos. “Você não foi com a minha cara mesmo, não é?”, ele disse bem baixinho, se inclinando na minha direção. ‘Sério? Que bom que você percebeu! Achei que ia ter que desenhar!’ Foi o que eu pensei na hora, mas não o que eu falei de verdade. Nunca fui mal educada com os outros. “Por que você acha isso?” “É que eu conheço muito bem as mulheres”, ele disse todo convencido. Eu virei o rosto pra começar a ignorá-lo, na esperança de que o chato se tocasse e fosse embora (pois de Gustavos eu já estava cheia!), quando ele acrescentou: “Eu tenho cinco irmãs.” Aquilo realmente me pegou de surpresa e, como num flash, a imagem das três garotas chorosas se despedindo dele no aeroporto do Rio vieram à minha mente. Ops... Elas não eram

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potencias flertes dele, eram as suas IRMÃS! E eu o julgando tão mal... Percebei então que já era hora de começar a ser educada com ele, pelo menos um pouquinho. “E você ainda não pirou com tanto estrógeno dentro de casa?” perguntei. “Já estou acostumado. Tirando as TPMs e os garotos idiotas que eu tenho de quebrar a cara quando destroçam o coração delas, o resto é até fácil.” Ele disse rindo. Eu achei aquilo bem fofo, digo, não o lance de bater nos caras, mas o fato dele ser tão cuidadoso com as irmãs. Infelizmente eu nunca vou saber o que é isso, já que o meu único irmão além de ser mais novo do que eu está muito mais interessado em comer areia do parquinho ou girar em torno de si mesmo até ficar tonto e vomitar. Uma graça... “Então você é do tipo irmão superprotetor?” eu perguntei. “Não muito. Só não quero que elas se machuquem. O mundo está cheio de garotos babacas.” Ô, nem me fale... “E você se inclui nesse time?” eu alfinetei. Ele riu. “Não. Não. Eu sou do time dos bonzinhos.” Depois estendeu a mão pra mim a fazendo atravessar o corredor do avião. “Meu nome é Théo. Théo Medina.” “Bárbara” eu disse trocando o copo de mão pra apertar a dele. “Mas todo mundo só me chama de Babi.” Ele sorriu de novo mostrando seus dentes bem alinhados e brancos, mas largou minha mão logo em seguida pra desbloquear o corredor e permitir que uma senhora pudesse passar. Ela realmente parecia estar apertada para ir ao banheiro.

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Chegava a cruzar as pernas e andar de um jeito esquisito, a coitada. Não tivemos como não rir da cena. Só depois que a mulher saiu do nosso campo de visão entrando no banheiro foi que o Théo retomou a conversa. “Ei, você por um acaso perdeu alguma coisa no aeroporto?” “Perdi sim, uma pulseira de pingentes” respondi espantada colocando o copo em cima da bandeja “Como é que você sabe?” “É que minha irmã encontrou isso aqui perto de uma lanchonete no segundo andar do Galeão” ele disse tirando uma pulseira do bolso da sua jaqueta azul marinho. Eu a reconheci na hora. “Perguntei pra todas as garotas que encontrei no saguão, mas nenhuma delas tinha perdido nada. Quando te vi até pensei em falar com você, mas só que tu parecia tão concentrada ouvindo música que achei melhor não incomodar.” Uhhhh. Segunda mancada oficial da noite! Ele não estava ”cantando” as garotas como eu tinha pensado. Só estava gentilmente procurando pela dona da pulseira perdida... Viu? É isso que dá estereotipar as pessoas! “Toma” ele disse enquanto me estendia a pulseira “Você deu muita sorte. A minha irmã queria porque queria ficar com ela. Tive que prometer comprar uma igualzinha quando chegasse nos Estados Unidos.” “Obrigada, Théo. Valeu mesmo. Ela representa muito pra mim. Fico te devendo pro resto da vida” eu agradeci completamente tonta de felicidade. Tanto que me atrapalhei toda com o fecho da pulseira. E aí mais uma vez o Théo foi supergentil e se ofereceu pra ajudar.

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“Então? Está indo pra Orlando a passeio ou a negócios?” ele perguntou de brincadeira, colocando o ganchinho dentro do fecho dela. “Na verdade nenhum dos dois. Eu vou morar lá com a minha família.” Eu disse apontando com a cabeça pra Alice e pro Dani. “Pô, que legal! Eu vou morar em Orlando também. Quer dizer, eu já meio que moro... Olha, é uma história baita complicada.” o Théo disse. Eu pedi que contasse mesmo assim e ele começou a explicar que na verdade tinha nascido nos Estados Unidos e era filho de um americano com uma brasileira, mas como tinha dupla nacionalidade veio pro Brasil ainda criança, alguns anos depois dos pais se separarem. E que desde então, por causa da guarda compartilhada, vivia numa espécie de ponte aérea louca entre o Rio de Janeiro e Orlando, ficando seis meses no Brasil e seis meses nos EUA, até que o pai sugeriu pra mãe do Théo que ele fosse terminar o Ensino Médio todo lá, já que ele queria cursar Recording Arts numa faculdade de Orlando. Tenho de admitir que eu não fazia ideia do que Recording Arts podia ser, e no exato momento em que o Théo começou a me explicar, o dono da poltrona finalmente apareceu (o americano era um dos zumbis que ficavam vagueando pelo avião) e deu duas tossidinhas pra que o Théo se tocasse e saísse dali. Na mesma hora o Théo devolveu o lugar e ainda pediu desculpas educadamente em inglês. Ele até tentou continuar conversando comigo, em pé mesmo, mas umas pessoas chatas começaram a reclamar do barulho fazendo “shhhhhh” e então o Théo se despediu de mim sem ter me explicado direito o que

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era o tal curso. Pelo pouco que pude entender, acho que tem haver com gravação de música ou alguma coisa do tipo. Cerca de cinco minutos depois, quando eu achei que o Théo já estivesse dormindo bem quietinho lá na primeira classe, eis que o garoto surge de repente no corredor da classe econômica e vem falar comigo de novo. Só que dessa vez ele trazia uma coisa na mão. “Você gosta de chocolate com avelã?” o Théo perguntou bem baixinho, se agachando ao lado da minha poltrona. Não! Imagina! As pessoas me chamam de chocólatra à toa... “Gosto. Por quê?” eu rebati. Então ele colocou na minha mão duas embalagens bonitinhas contendo três bombons Ferrero Rocher cada uma. “As aeromoças deram isso depois do jantar, mas eu não curto muito avelã.” Ele disse pra mim sorrindo. Eu agradeci e já ia abrir um bombom toda felizinha -e meio deslumbrada também- porque tinha ganhado uma coisa da primeira classe, mesmo que fossem meros bombons, quando o Théo tirou algo do bolso de trás da calça jeans. “Acho que isso aqui pode te ajudar a dormir”, ele disse estendendo um Ipod pra mim, “Música é um ótimo calmante. Dependendo da trilha sonora, é claro.” Na hora eu não acreditei que ele estivesse mesmo me emprestando o próprio Ipod. Afinal, a gente se conhecia há pouco mais de dez minutos! Porque ele estava sendo tão simpático a ponto de me dar chocolate e se preocupar com o meu sono? Sem falar que estava confiando seu Ipod a uma total estranha! Tá, tudo bem, não tinha perigo nenhum de eu roubar o aparelho, afinal o que eu poderia fazer? Fugir pela saída de

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emergência e saltar de pára-quedas em pleno Atlântico? Claro que não! Deixo isso pro James Bond! A questão aqui é: será que o Théo sentiu pena de mim, já que eu pareço o resultado do cruzamento entre o Alien e o Predador, e por isso resolveu ser legal? Eu não sabia o motivo -e pra ser sincera ainda não sei- mas acabei aceitando a oferta dele. O Théo disse que eu poderia devolver o Ipod assim que o avião pousasse em Miami, me ensinou com toda a calma do mundo a mexer no aparelho e escolheu uma pasta chamada “Relax” (dentre as milhões que tinha ali) pra eu escutar. A lista de músicas até que era boa:

1) Same mistake – James Blunt 2) Under the bridge – Red Hot Chili Peppers 3) Airplanes – B.O.B e Hayley Williams 4) The Kill- 30 seconds to Mars e Pitty 5) O vento – Los Hermanos 6) The scientist –Coldplay 7) Breakdown – Jack Johnson 8) Fix you – Coldplay 9) Misguided ghosts – Paramore 10) I’ll see you soon – Coldplay 11) Só os loucos sabem –Charlie Brown Jr. 12) Don’t go away - Oasis Depois disso voltou pra poltrona dele, onde no final das contas acabou pegando no sono. Sei disso porque fiquei dando umas esticadelas de pescoço de hora em hora pra ver o que ele estava fazendo. Por pura curiosidade, que fique bem claro!

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Quanto a mim, estou ainda aqui escrevendo nesse diário ao som de The scientist do grupo Coldplay, só que ainda não sinto vontade alguma de dormir. Sei que virar a noite não vai me fazer nem um pouco bem, e que pela manhã minhas olheiras provavelmente vão estar chegando a nuca, mas eu não ligo. Tenho muito mais coisas pra me preocupar do que uma simples olheira e meu nervosismo só aumenta conforme esse avião se aproxima da Flórida. De acordo com o mapa que esta sendo mostrado na TV do avião, estamos nesse momento deixando o espaço aéreo das Bahamas, o que significa que não levaremos muito tempo para chegar em Miami, onde faremos a conexão para o nosso destino final, a cidade de Orlando e... Ah, não! Só faltava essa agora!Não estou conseguindo respirar direito! Acho que estou começando a ter uma crise de asma de tanto nervoso. É melhor pegar a bombinha na minha mochila, antes que eu comece a ficar roxa por falta de ar. Depois eu escrevo mais aqui. Se estiver viva até lá, é claro.

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03 de Junho (sexta-feira) *Saguão do “MIA” (Miami Internacional Airport) 5:20 -Finalmente chegamos na Flórida e correu tudo bem na parte da “Imigração”, o temido setor responsável por permitir ou não (e na maioria das vezes é não) a entrada de estrangeiros no país. Mamãe disse que íamos a Disney, já que tínhamos vistos B2 de turistas, e então fomos liberados sem muitas perguntas. Sério, depois dessa ela ainda acha que vai ter autoridade pra nos dar bronca por mentir? Tsc,tsc,tsc. Que vergonha dona Valkíria! Oh, e eu não sei onde o Théo se meteu. A última vez que o vi, minha família e eu estávamos na fila da imigração e ele indo pra uma outra, a fila dos americanos eu acho, com um dos passaportes na mão (ele tem dois, um americano e outro brasileiro, por causa da dupla nacionalidade). Às vezes esqueço que, apesar do Português fluente e do jeitão carioca, o Théo na verdade nasceu aqui. Porque, sendo sincera, ele não tem a menor pinta de americano! Exceto pelos olhos azuis piscina e a cor bem branquinha da pele. A espera na fila da imigração, no entanto, não foi nada comparada a de agora que minha família está enfrentando. Nosso vôo de conexão pra Orlando só sai as 8:20 da manhã, então somos obrigados a ficar no saguão do MIA igual a um bando de sem tetos.

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Simplesmente não tem nada aberto ainda, nem uma lanchonete sequer está funcionando nesse bendito aeroporto e o máximo que dá pra fazer é tentar se ajeitar nesse banco horrível onde estou agora enquanto escrevo. Meu irmão Dani se cobriu com a manta que ele roubou trouxe do avião (o ar condicionado daqui é poderoso!) e está dormindo todo encolhidinho encostado na minha mãe, que por sua vez está dormindo encostada na Alice, que por sua vez está babando no ombro de um desconhecido com cara de Boliviano sentado ao lado dela. Eu até poderia fazer a gentileza de acordar minha irmã, mas eu decidi não me privar da cena hilária que vai ser quando todo mundo despertar e a nojenta da Alice der de cara com o tal homem a menos de cinco centímetros do rosto dela. Já dei um passeio pelo aeroporto pra ver se me distraía enquanto este momento mágico não chega (é, o Théo não está por aqui mesmo!), mas a única coisa que me chamou a atenção nesse lugar foi um quadro daquele artista brasileiro, o Romero Britto, bem perto do terminal de embarque da American Airlines. A pintura era muito colorida e o sol desenhado na tela tinha uma série de raios preenchidos de amarelo, laranja e rosa. Sei que aquele quadro deve ter sido feito em homenagem a Flórida, mas foi difícil não lembrar do Brasil ao olhar pra ele. Então eu decidi voltar pro banco onde estou agora ao lado do Dani, antes que eu começasse a chorar de saudades da minha terra. Coisa que por sinal eu tenho tentado evitar desde que nosso avião aterrissou em Miami. Pois como diz aquela música (da Fergie se não me engano): “It’s time to be a big girl now, and big girls don’t cry.” Atrás de mim tem um homem sentado junto com uma criança, provavelmente é o seu pai, e em vez de dormir como a

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maioria das pessoas ao redor da gente está fazendo, ele está tentando entreter ela passando um filme em seu notebook. Dei uma olhadela de canto de olho pra ver qual é, e percebi pela qualidade da imagem que era algo bem antigo. Só depois de prestar muita atenção é que descobri ser “O mágico de Oz”. Eu até gosto desse filme, mas ele é tãããããão velho! Existem dezenas de animações 3D disponíveis pra agradar as crianças dessa nova geração. Por que então “O mágico de Oz”, cara? Se bem que apesar de antigo esse filme tem lá seu charme. Digo, eu tenho certa simpatia pela protagonista, a Dorothy. Talvez pelo fato de que eu estou agora na mesma situação que ela. O lance de ter ido parar em uma terra estranha e querer com todas as forças voltar pra casa, entende? Sem falar que eu tenho praticamente os companheiros de jornada da Dorothy babando e roncando bem aqui ao meu lado. Afinal, meu irmão Dani anda precisando de um cérebro, minha irmã Alice de um coração e minha mãe de um pouco de coragem, ou seja, qualquer semelhança com o Espantalho, o Homem de Lata e o Leão Medroso não é mera coincidência. O que me deixa triste nessa história toda é que ao contrário da Dorothy, meu par de All Star brancos não tem o poder de me levar pra casa assim como fizeram os sapatinhos vermelhos dela. E olha que eu já tentei bater meus calcanhares a La Dorothy umas duas vezes, mas o máximo que consegui foi tirar um bocado de poeira que estava grudada em meus tênis desde que saímos de Estrela. Pena, pois como já dizia a Dorothy “Não há lugar como o nosso lar.”

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06:52- O homem acordou antes da Alice e sabe o que ele fez?????????? Nada. Só tirou o ombro devagarzinho pra coitadinha não se assustar. Agora me diz Deus, é sério isso? Se fosse comigo o homem iria gritar, dar uma escarrada na minha cara e ainda me mandar voltar pro zoológico que eu tinha saído. Mas nããããão, essas coisas não acontecem com a Alice. E sabe por quê? Primeiro- porque ela é bonita, segundo- por que ela tem peito, e terceiro- por que ela não parece uma anomalia da natureza como eu. Sério, às vezes eu acho o mundo um lugar muito injusto. Deus deveria saber dosar melhor essa coisa de defeito e qualidade nas pessoas. Eu sinceramente não sei como ele faz essa distribuição, mas tenho certeza que o todo poderoso errou feio na minha vez. Bem que o céu podia fazer um recall feminino de vez em quando não é? Seria ótimo. Imagina só:

“Atenção mulheres de nascimento final 74, 85, 93, 96 e 97. A companhia Céu S.A. informa que certos problemas foram detectados na região peitoral e traseira de seus produtos, o que pode acarretar sérios problemas em sua vida social. Favor comparecer ao paraíso para troca das peças defeituosas por bustos e glúteos de tamanhos mais satisfatórios. A Céu S.A. pede mais uma vez desculpas pelo transtorno e agradece sua

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paciência, já que por nossa causa você ainda não conseguiu arranjar um namorado. Muito obrigado.” Está vendo? Peças de freio que nada, definitivamente é desse tipo de recall que nós garotas precisamos!

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03 de junho (sexta-feira) *Dentro do avião de novo! Não aguento mais!!!!!!!!!!!!!

08:40- Saímos bem atrasados de Miami e daqui a alguns minutos vamos desembarcar em Orlando, então eu já estou no modo ‘contagem - regressiva’. Minhas olheiras ficaram medonhas graças à noite em claro que passei e agora eu pareço um Panda gigante. Sinceramente não dou a mínima pra isso, até por que eu estou me preocupando muito mais em não surtar conforme esse avião claustrofóbico vai furando as poucas nuvens que tem nesse céu azul. Mamãe e Alice estão conversando sobre meus primos neste momento. Minha irmã está virada para o assento atrás de nós, onde mamãe se encontra, e o Dani parece não aguentar mais ficar em aviões também, já que desde que saímos de Miami ele tem chutado de forma incessante a minha poltrona, fazendo com que a minha letra nesse diário fique um belo garrancho. Mas como eu disse, mamãe está conversando com Alice e parece não dar à mínima para isso. Minha irmã está dizendo que está curiosa pra ver o Vini, já que na última foto que minha tia Vivian nos mandou (há uns dois anos atrás mais ou menos) ele parecia ter aderido ao estilo roqueiro-rebelde-sem-causa.

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Havia deixado o cabelo crescer, só vestia roupas pretas ou camisas de bandas de rock como Iron Maiden, usava vários anéis de caveira, esmalte preto nas unhas e até tinha colocado um piercing na sobrancelha e uma argola no nariz! Ou seja, defina estranho em uma palavra e o que você tem? Vini! Tia Vivian - como boa evangélica e defensora da moral e bons costumes- é que não gostou nadinha do visual dele, óbvio. Mas na época ela nos disse ter entendido que o Vinícius estava fazendo aquilo só pra chocar as pessoas, já que assim como eu ele também não queria se mudar pra Orlando. Então, tentando não dar mais corda àquela estranha forma de protesto de meu primo, tia Vivian decidiu parar de reclamar e até sugeriu que o Vini colocasse um piercing no mamilo! Acredita? Gente, se eu é que estivesse fazendo esse protesto, tenho certeza que minha mãe não seria compreensiva desse jeito. No mínimo ela iria arrancar todos os meus piercings com alicate e me banhar em água benta por que ela acharia que eu estava possuída pelo “Cão”! Mas voltando ao Vini, será que ele continua nessa fase rebelde sem causa, ou melhor dizendo, com causa? Será que ele ainda odeia Orlando? Por que se isso for verdade então seremos dois. Tenho certeza de que não vou gostar nem um pouco desse lugar. Um mês antes de viajarmos mamãe ficou falando das maravilhas da cidade, que nós iríamos adorar porque tem uma grande comunidade de brasileiros, muitos shoppings, muitos parques da Disney bem pertinho de casa, onde eu vou poder ver o Mickey, o castelo da Cinderela e blá, blá, blá. Só que nada disso realmente me fez ficar mais animada. Primeiro, porque se é pra ver brasileiro eu prefiro ver em casa,

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no Brasil. Segundo, porque nós éramos bem servidos de shopping em Estrela (Tá. Tudo bem, não éramos nem um pouco. Na verdade o mais perto que tinha era o Unicshopping na cidade vizinha em Lajeado. Mas pelo menos tinha!) e terceiro, por que eu não possuo simpatia alguma por uma droga de rato que se veste como gente. E mais, mesmo que meu sonho de criança sempre tenha sido conhecer o castelo da Cinderela, uma coisa é você fazer uma visita a gata borralheira e ir embora, outra é ser vizinha dela! Então não me venha dizer que eu vou gostar desta cidade, sei que isso nunca vai acontecer. NUNCA!

08:48: Acho que o Théo foi abduzido por alguma nave Alien no aeroporto de Miami, por que não o vi embarcando nesse avião. Pelo menos eu fiquei de olho por bastante tempo na Primeira Classe, mas nem sinal dele. Será que aconteceu alguma coisa? Mistério...

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Ainda 03 de Junho *banheiro feminino do aeroporto de Orlando. 10:20 - AI -MEU -DEUS! Nosso avião finalmente pousou e eu ainda não consigo acreditar que estamos aqui, nossa futura casa! Minhas pernas ficam até meio trêmulas só de pensar. Mas vamos lá Babi, respira fundo. 1, 2, 3... Solta o ar... Isso. Ventila... Ok. É melhor contar logo de uma vez como foi nossa chegada e tudo mais, antes que eu tenha um ataque de asma nesse lugar. Aconteceu o seguinte: a gente desembarcou no aeroporto de Orlando e apesar de não sabermos ao certo para onde ir mamãe e meus irmãos resolvemos seguir a multidão que saiu do voo, do mesmo jeito que fizemos no aeroporto de Miami. Depois de pegarmos o monotrilho, recebermos aquele bafo de calor de Orlando e descermos pelas escadas rolantes do saguão, nos dirigimos até as esteiras, onde um monte de bagagens do nosso voo já estava sendo rolada por ela. Mamãe decidiu ficar de olho para ver se encontrava o Vini por ali - já que ele é que iria nos receber no aeroporto- enquanto eu fiquei encarregada de pegar nossas malas (maldade, isso hein!) e a Alice de cuidar do Dani. O que por sinal minha irmã não conseguiu, já que foi só ela se distrair para que o guri escapulisse da mão dela, subisse na esteira rolante de um outro voo e começasse a dançar cantando “Eu me remexo muito, ele remexe muito, ela remexe muito...”

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Alice teve um trabalhão pra tirar ele daquela esteira porque o nosso pequeno viciado no filme Madagascar ficou correndo por ela, pulando sobre as malas dos outros passageiros, então minha irmã não teve alternativa se não arrastar a criança à força dali. Ao que o Dani não se dando por vencido começou a gritar “Socorro! Criança sendo sequestrada. Criança sendo sequestrada!”. Como todo mundo estava olhando, o rosto da Alice se encheu de raiva -igualzinho ao dia em que o Dani pegou dois absorventes da gaveta dela e colou um em cada lado da cabeça para fingir que eram orelhinhas de cachorro- e então minha irmã não encontrou outra solução a não ser amordaçar o pirralho com o cachecol dela. Nesse meio tempo em que eu mais uma vez fingia não conhecê-los fui tirando nossas malas pouco a pouco da esteira, até que uma grandona e pesada da Alice surgiu e eu tive que fazer uma força enorme pra conseguir tirá-la dali. O problema foi que logo assim que eu a puxei usando todo o peso de meu corpo, ela acabou vindo junto comigo e eu inevitavelmente cai de bunda no chão com mala e tudo. Na mesma hora senti alguém surgir atrás de mim e perguntar “Precisando de uma ajudinha?”. Quando virei minha cabeça pra agradecer e dizer que não, foi então que eu finalmente o vi. Lá estava o Théo, bem na minha frente, usando mais uma vez seu Ray-ban e mostrando aqueles dentes brancos maravilhosos. Agora ele estava sem jaqueta, só com uma blusa pólo (não era pra menos, fazia um calor enorme naquele aeroporto) e o cabelo preto parecia meio desgrenhado como se ele tivesse pegado bastante vento.

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O Théo ainda ficou me encarando sorrindo, até que resolveu tirar a mala de cima de mim e me deu a mão para que eu pudesse levantar. “Meu Deus, o que tem aqui dentro? Um corpo?” ele perguntou empilhando a mala da Alice ao lado das de mamãe. “É. Do último engraçadinho que me fez perguntas idiotas.” Eu respondi numa tentativa (sem sucesso) de fazer um tom ameaçador. O Théo apenas riu. “Então eu acho que tenho que tomar mais cuidado com você” ele afirmou enfiando as mãos no bolso. “Pra falar a verdade não. Eu sou do time das boazinhas, sabe?” eu falei enquanto colocava os olhos na esteira rolante em busca das outras malas da minha família. Pelo canto do olho pude ver que ele balançou a cabeça sorrindo. E que sorriso lindo... “Não vi você entrar no avião em Miami.” eu disse meio casual, me preparando pra pegar a mala do meu irmãzinho que estava vindo na esteira. “É, eu não peguei esse voo.” “Como assim? Veio num outro?!” eu perguntei surpresa. “Não. De carro.” Ele disse enquanto me ajudava a retirar a mala do Dani da esteira rolante. Eu olhei pra ele meio que sem entender nada e então o Théo explicou que tinha emprestado o carro dele pra um amigo ir a uma festa Rave na quinta-feira em Miami Beach e que o amigo, sabendo que ele estaria de volta naquela sexta, foi o pegar no aeroporto pra ele assim poder vir pra Orlando dirigindo.

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Primeiramente eu achei aquilo meio estranho e depois um bocado exaustivo, afinal enfrentar 7 horas de avião e ainda mais um tanto de carro devia ter sido horrível! Mas o Théo disse que ele adorava dirigir e sempre que podia fazia isso nos Estados Unidos, já que no Rio ele ainda não tinha idade pra tirar carteira por ter só 16 anos. Além disso, ele me contou que o caminho de Miami a Orlando nem era tão longo, sendo que ele conseguia fazer o trajeto em incríveis duas horas e cinqüenta minutos (isso não é longo????), quando normalmente se levava três e meia (credo!). Então não foi tão ruim assim pra ele dirigir até aqui (ah, tá bom!). O único problema é que, querendo ou não, ele teve que vir pegar as malas no aeroporto de Orlando e por isso estava ali agora. Nesse meio tempo em que Théo terminava de explicar a ausência dele no vôo, minha irmã Alice se aproximou de nós arrastando o Dani literalmente pelo chão, e soltou-o na mesma hora que viu o Théo. “Oi. Você é o garoto que salvou minha irmã de morrer desidratada não foi?” Alice perguntou, achando que tinha feito a piada mais engraçada do mundo. Eu apresentei o Théo a ela e ao Dani, e minha irmã o cumprimentou com dois beijinhos no rosto. Quando ele se agachou pra falar com o Daniel, minha irmã se aproximou de mim e sussurrou bem perto do meu ouvido um: “Nossa, que gatinho, hein! Pena que ainda ‘cheira’ a leite.” Eu revirei os olhos, claro. A Alice achava todo garoto um colírio. Não que o Théo não fosse um espetáculo para os olhos, mas a Alice não tinha parâmetros com relação à beleza masculina. Se fosse alto e tivesse testosterona ela já coroava como Deus do Olimpo.

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“Então você é o irmãozinho delas?” o Théo perguntou educadamente pro Dani. “Não seu mané. Eu sou o irmãozão e já sou grandão, tá!” o Dani revidou cruzando os braços e fazendo cara de mau. Criançinha atrevida... “Ah, você acha que é grandão?”, o Théo retrucou, “Então eu vou te levar num parque daqui pra você conhecer uma baleia Orca bem de perto. Aí sim você vai ver o que é algo realmente grande.” Na mesma hora o Dani se interessou e os olhinhos dele brilharam. Meu irmão adorava qualquer coisa relacionada ao fundo do mar desde que viu Procurando Nemo, então meio que sem querer o Théo havia ganhado de cara a confiança daquele diabinho. “Sério? Você me leva mesmo?!” meu irmãozinho perguntou totalmente fascinado. “Claro! É só me darem o telefone da casa de vocês aqui, que a gente marca.” O Théo falou pra Alice e pra mim enquanto se levantava. Minha irmã só sussurrou um “Muito esperto” meio que sorrindo (por sinal eu não entendi nem um pouco esse comentário dela) ao que eu expliquei pro Théo que a gente não sabia o endereço nem o telefone de cabeça de onde íamos ficar, e que minha mãe era a única que tinha ele por escrito, mas ela não estava por perto pra que eu pudesse passar pra ele. O Théo pareceu meio decepcionado e o Dani também, mas a Alice deu a fabulosa idéia da gente anotar o telefone dele. Como ninguém tinha papel, o Théo anotou na minha mão mesmo, depois pegou a única mala dele na esteira e se

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despediu da gente indo em direção a um elevador que provavelmente levava ao estacionamento. Assim que ele entrou no elevador, a Alice se virou pra mim dizendo que não sabia se eu era ingênua ou burra mesmo. Eu pedi pra ela explicar, mas minha irmã só balançou a cabeça e foi atrás do Dani que estava tentando fugir pela porta automática do saguão. Enquanto isso fiquei esperando pelas minhas malas roxas. Passaram-se dois minutos, depois cinco, depois dez... E nada delas na esteira rolante. Foi aí então que eu comecei realmente a me preocupar. Onde estavam as drogas das minhas malas que não apareciam, gente? Depois de mais alguns minutos de tolerância esperando por elas, a esteira parou de rolar afinal e o desespero tomou conta de mim. Mamãe, que tinha ido dar uma procurada de novo pra ver se achava o Vini, voltou sozinha dizendo que não havia sinal de nosso primo em lugar nenhum e achou melhor que a gente procurasse um telefone pra ligar pra loja da tia Vivian, pois talvez o Vini tivesse se esquecido da gente. Antes de irmos procurar o telefone como ela mandou, minha irmã e eu fomos reclamar com a companhia aérea do sumiço das minhas malas. Eu tive que descrevê-las (na verdade foi a Alice), dei o telefone de tia Vivian como contato e a mulher da American Airlines disse que ligaria assim que eles encontrassem a bagagem desaparecida. Obviamente eu saí sem muitas esperanças do balcão da companhia aérea, e fui me arrastando desolada atrás da minha irmã pra procurar o bendito telefone, só que quando a gente achou um, nos lembramos (tá bom, na verdade foi a Alice de

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novo) que pra fazer ligação nos Estados Unidos você usa moedas de dólar e nós não tínhamos nenhuma com a gente. A única opção era voltar aquele aeroporto enorme todinho, pois o dinheiro trocado estava com a nossa a mãe e foi isso que fizemos. Quando a gente estava voltando ao saguão eu percebi que tinha uma pessoa alta conversando com a minha mãe. Não dava pra ver o rosto, pois ele estava de costas pra gente, mas na mesma hora que eu forcei os olhos pra ver melhor, minha mãe gritou apontando pra gente: “Ah, olha elas ali!” e o tal cara se virou pra olhar na nossa direção. A princípio eu não o reconheci. Mas os olhos verdes inconfundíveis que ele tinha não me deixaram dúvida. Era o meu primo Vinícius parado bem ao lado de minha mãe e sorrindo daquele jeito tão familiar, cheio de covinhas no rosto, enquanto olhava diretamente pra mim. Minha irmã e eu nos aproximamos dos dois e foi só aí então que eu pude dar uma boa olhada no meu primo. Roupas pretas? Cabelo cumprido? Anéis de caveira? Nada disso! Ele estava vestindo bermuda comum e uma blusa da Billabong, sem falar no seu cabelo loiro escuro, cheio de cachos, que o fazia parecer um verdadeiro anjinho. Quanto aos piercings... Bem, não havia nenhum à vista até aquele momento. Só um rosto bem barbeado, sem falar que muito bonito. Ah, e o Vinícius não parecia estar prestes há completar dezoito anos, como minha mãe nos lembrou no avião. Talvez porque seu corpo e sua altura (1,75 no mínimo!) o dessem a aparência de um cara de vinte e poucos. Eu ainda fiquei olhando pro Vini sem acreditar o quanto ele tinha crescido e mudado desde a última vez que eu o vi, até

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que de repente minha mãe falou: “Bárbara você não vai abraçar seu primo?” Vini então franziu a testa. “Babi?! É você?! Eu achei que fosse a Alice.”, ele disse meio tímido, parecendo realmente não acreditar que estava diante de mim. Como uma idiota eu apenas fiz um “sim” com a cabeça e continuei parada, começando a ficar vermelha igual a um tomate. Eu havia lembrado das cartas de amor ridículas que tinha escrito pra ele e isso me deixou com uma vergonha brutal. * Pequeno intervalo pra uma leve amostra:

[Se cada vez que eu pensasse em você sumisse um pouquinho de mim. Ué! Cada eu?] ARGH! Ok. Agora corta pro momento embaraçoso no aeroporto de novo... Embora minha vontade fosse correr e me esconder no banheiro ou no primeiro buraco que encontrasse por ali, naquele momento eu não consegui nem ao menos me mexer. Bom, mas a questão é que como eu não fui abraçá-lo, Vini veio ao meu encontro e, quando ele me enlaçou bem de levinho, todo acanhado, com aqueles braços longos, eu não consegui abraçar ele de volta porque eu estava simplesmente travada de tanta vergonha. “É legal rever você prima”, ele sussurrou no meu ouvido enquanto isso. Estava na cara que assim como eu o Vini não se sentia confortável com aquela situação.

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“É... é bom rever você também.” eu disse, finalmente articulando uma frase. Afinal eu tinha que falar alguma coisa, não é? O Vini riu e me largou pra ir abraçar a Alice e o Dani logo em seguida. Eu respirei de alívio... E depois disso, quero dizer, de mais uma série de comentariozinhos bobos de família, eu disse a minha mãe que precisava ir ao banheiro e corri pra cá. Não que eu tivesse alguma necessidade fisiológica para ser saciada, mas sim porque eu tinha que escrever tudo o que aconteceu. Até agora eu não consigo me perdoar por ter agido feito uma idiota colossal com o Vini. Tudo bem, o fato de eu ter azucrinado meu primo com aquelas cartas de amor bobas quando a gente era criança fez com que eu ficasse um tanto sem graça e tímida diante dele agora, mas isso não é motivo para eu travar e agir igual a uma estúpida. É? Afinal, é só o Vini! Uma pessoa que eu conheço desde que nasci! Qual é o meu problema, hein? Oh, droga! Mamãe acabou de abrir a porta do banheiro e está perguntando aos berros se eu estou bem. Acho melhor eu sair desse “reservado” e voltar para o saguão antes que ela e todos os outros integrantes de minha família pensem que eu estou tendo um pequeno problema intestinal. Se é que você me entende... Porque pelo jeito que eu vim correndo pra cá qualquer um iria imaginar essa possibilidade. Ai, que vergonha!

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Ainda 03 de Junho, *num posto de gasolina em Orlando.

10:40 – Vini acabou de parar para reabastecer o carro. Tive uma pequena brecha para escrever nesse diário porque minha irmã resolveu ir até a loja de conveniência do posto chamada “7Eleven”, e minha mãe está tentando fazer o Dani voltar pro carro, pois ele saiu em disparada quando viu dois esquilos em um canteiro perto daqui. Dessa vez eu não posso culpá-lo. Afinal, os únicos animais que meu irmãozinho já viu de perto (tirando os domésticos) foram gambás e tatus. Então dá pra entender a empolgação da criança quando ele viu a dupla de esquilinhos fofinhos. Vini disse que nós também vamos ver muitos guaxinins por aqui. E por falar no meu primo, é ele mesmo quem está colocando gasolina no carro. Não tem frentista nesse posto, o que eu achei muito estranho, mas a Alice -nossa expert em cultura americana- assegurou que isso é mais do que comum nos Estados Unidos. Oh, e falando ainda sobre carros, esse em que estamos é do próprio Vini e, vou te dizer, é um carro bem legal! No Brasil ele é meio caro, mas meu primo disse que os automóveis daqui são

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relativamente baratos e por isso todo mundo tem um, ou seja, quase ninguém anda a pé ou usa ônibus. Tudo bem, isso só colabora ainda mais para o aquecimento global, o que decididamente é péssimo, mas por outro lado olha a comodidade absurda que esse povo daqui tem! Voltando ao Vini, ele agora parece ser do tipo que não fala muito (outra coisa que mudou pra caramba nele, pois meu primo costumava ser o tagarela da família), mas apesar disso o Vini tem sido bastante simpático comigo desde que a gente saiu do aeroporto. Inclusive, fez questão que eu sentasse no banco do carona, bem em frente à saída de ar condicionado, pois a blusa de lã amarela que estou usando não é nem um pouquinho adequada ao calor terrível que está fazendo em Orlando agora. Deve estar no mínimo uns 40 graus aqui, bem diferente dos 08 geladíssimos de Porto Alegre! E o pior é que eu suei tanto graças ao calor, que o telefone do Théo acabou virando um grande borrão preto na palma da minha mão. O que é uma pena, pois ele realmente parecia ser um garoto legal... Mas deixando de lado a temperatura insuportável, Théo, carros, esquilos, e tudo mais, o real motivo de eu estar escrevendo nesse exato instante é porque quero comentar minhas primeiras impressões sobre Orlando. Não, ainda não vi jacarés por aqui e muito menos pântanos repletos de crocodilos!Na verdade essa cidade é bem diferente do que eu imaginava. Falo sério! Ela até tem bastantes palmeiras como o guia da Alice mostrava, mas o que me chamou a atenção mesmo é que tudo aqui é muito limpo e organizado, mais ainda do que no Sul do Brasil. Você não vê nem mesmo folhas de árvores se esparramando na calçada.

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Parece que elas fizeram acordo com Deus pra não cair, então o chão daqui acaba sendo estupidamente limpo. A grama que cobre os canteiros tem um tom vivíssimo de verde (parece até a cidade das Esmeraldas do filme o Mágico de Oz!) e todos os arbustos estão milimetricamente podados. As ruas também são incríveis! Superlargas, bem sinalizadas... Acredita que até agora não vi um buraco sequer no asfalto? Me sinto como se estivesse dentro de uma série americana, daquelas que a gente sempre vê nos canais de TV por assinatura, sabe? Tenho que admitir que Orlando é muito bonito mesmo, mas ainda assim eu prefiro Estrela. Não há nada como o aconchego da minha casa, a simplicidade de minha cidade. Sei que se eu dissesse isso alto ninguém iria me entender, mas é o que eu sinto. Mamãe e Alice são as mais maravilhadas com tudo aqui. Elas não pararam de perguntar e tagarelar durante todo o trajeto do aeroporto pra cá. Queriam saber de tudo, ver tudo, olhar tudo. Pareciam felizes por estar em Orlando. Acho que isso se deve ao fato de tudo ser novidade pra elas. Já eu, bem, eu fico triste por não sentir o mesmo. Digo, eu realmente queria estar encarando essa mudança como algo positivo, mas simplesmente não consigo. A saudade de minha terra Natal já dói e a insegurança em relação ao que me espera nesse lugar me apavora ainda mais. Não sei como será minha vida daqui pra frente e tremo só de me imaginar estudando em uma dessas escolas de Orlando. Meu inglês não é lá essas coisas, eu não estou acostumada com a cultura americana e além do mais eu sou muito estranha, o que com certeza vai dificultar ainda mais meu entrosamento no

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corpo estudantil. Agora depois disso tudo me diz, como é que eu posso bancar a “felizinha” se um futuro catastrófico me espera? Simplesmente não dá!

Ainda 03 de Junho (quarto de hóspedes)

23:10- Estou muito cansada agora, pois tivemos um dia cheio, mas precisava contar sobre o que aconteceu hoje. São tantas novidades que eu estou até meio tonta. Depois de nos pegar no aeroporto Vini nos trouxe pra cá, a casa de Tia Vivian, que fica em uma tal de “Pineapple Court”. Não me contive e acabei soltando uma gargalhada dentro do carro quando Alice traduziu o nome da rua e disse que significava “Quadra Abacaxi.” A casa de tia Vivian não era a mais luxuosa de todas dali, mas é bonita e enorme. Não tem muros, como todas as da rua, e a única coisa que nos separa do vizinho é uma árvore frondosa e uma cerca viva, bem verde por sinal. Tudo aqui é muito verde mesmo, desde a grama até as árvores, mas acho que eu já disse isso antes. Assim que o Vini arrastou como um bom cavalheiro todas as nossas malas pra dentro de casa, ele nos apresentou a Lola, a gatinha de dois anos de nossa prima Ana. Dani quis logo brincar com ela (a gata, quero dizer), mas a Lola ficou pulando em cima de mim e depois começou a se enroscar nas minhas pernas toda manhosa ao que eu a peguei no colo pra fazer carinho. Vini disse que seu cachorro devia ter gostado muito de

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mim, já que não saia distribuindo saliva na cara das pessoas assim de primeira. Minha mãe, paranóica que só ela, ficou desesperada com isso e acabou falando aos berros pra que eu largasse logo a gata antes que o pêlo dela me causasse uma crise de asma e eu morresse sufocada. Exagerada, eu sei, mas também o que mais eu poderia esperar de uma mulher que me fez usar tesouras sem ponta até meus doze anos? Em seguida Vini nos mostrou por alto todos os cômodos da casa, a mesa de piquenique no quintal dos fundos e é claro, este quarto de hóspedes onde meus irmãos, minha mãe e eu iremos ficar provisoriamente até nos organizarmos pra alugar uma casa por aqui. Ele é muito espaçoso mesmo e do jeitinho que tia Vivian tinha descrito pelo telefone. Cabem duas camas de casal, um criado mudo, além de ter um closet enorme que dá até pra entrar e se esconder nele. A janela é virada pro quintal dos fundos e de tão grande que ela é parece uma porta. O Vinícius, no entanto não ficou muito tempo com a gente, pois tia Vivian ligou pela manhã e o mandou comprar algumas coisas pra pequena comemoração tipicamente gaúcha que iríamos ter a noite, em homenagem a nossa chegada. Tia Vivian é dona de uma Tinturaria em Orlando e por isso não podia deixar a loja. Minha prima Ana, por sua vez, estava visitando uma amiga da escola que havia sofrido um acidente, então sobrou pro pobre do Vini ter que ir ao mercado. Como não tínhamos muitas coisas pra fazer aqui e ficamos sozinhos nessa terra estranha, mamãe e eu decidimos esvaziar as malas e arrumar as roupas no closet. Dani foi pros fundos ver o “ninho” de esquilos que tem numa árvore daqui do quintal e

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Alice sentou no sofá para assistir um pouco de TV americana, pois segundo ela, queria ficar atualizada com o que estava rolando nos “States”. O dia passou rápido depois disso e quase lá pelo entardecer a Ana chegou. Ela estava alta (pouco mais do que eu), tinha a pele hiper branca, as maçãs do rosto pintadas num blush quase rosa chiclete, e o seu cabelo loiro escuro dos tempos de criança agora era quimicamente um louro dourado. Apesar de nossas antigas desavenças dos tempos infantis e do jeitão meio reservado dela agora, a Ana não parecia me odiar. Na verdade ela foi até bem legal comigo. Me mostrou o quarto rosa dela (ou melhor dizendo, LAVANDA!) os pôsteres pregados na parede do Black Eyed Peas (grupo que ela adora), a esmaltoteca que ela tinha dentro do closet ( era esmalte até dizer chega!), disse que estava feliz por me ver, e que qualquer coisa que eu não soubesse em inglês eu podia perguntar pra ela (ah, pode apostar que eu vou fazer isso!). À noitinha, assim que sai do banheiro depois de eu ter ficado hooooras de molho me refrescando numa banheira maravilhosa, percebi que havia uma grande agitação na casa e, quando fui até o quintal dos fundos, senti logo um cheirinho gostoso de churrasco se espalhando pelo ar. O clima já estava bem melhor do que o calor horroroso que fez de dia, e na mesa de piquenique havia várias pessoas sentadas, sob as luzes de lanternas japonesas vermelhas que iluminavam o quintal. Eu não conhecia quase metade daquele povo, mas nem precisei me esforçar pra descobrir quem eram. Tio Oscar, que estava no controle da churrasqueira, veio até mim sorrindo. Ele agora era careca e tinha uma pança de dar inveja ao Papai Noel, mas fora isso continuava o mesmo bobo de sempre.

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“Essa mulher enorme é a Bárbara, ou você comeu ela?”, ele perguntou fingindo estar horrorizado. Tudo bem, essa não é a melhor coisa a se dizer pra sua sobrinha que não o vê a mais de nove anos e que tem sérios problemas em lidar com a aparência, mas o que é que eu posso fazer? Meu tio sempre foi meio sem noção e esses anos nos Estados Unidos infelizmente não mudaram isso. Depois de me abraçar até quase tirar todo o ar de meus pulmões, Tio Oscar me apresentou a mulher dele, a Jane, e aos meus primos americanos que eu só conhecia por foto, o Markus e a Emma. Markus, ou Mark como ele mesmo disse que preferia ser chamado, tinha dezessete anos, era loiro, fortão e branco do tipo “vela”. Ele não me abraçou nem nada quando fomos apresentados, mas me cumprimentou com um português carregadíssimo de sotaque americano. Mark até disse que não sabia que tinha uma prima tão bonita (com certeza estava tentando apenas ser simpático), ao que o Vini deu uma cotovelada nele e disse: “Pode parando Mark. Essa é da família.” Já a Emma era uma criança adorável. Tinha apenas três anos, a mesma cor de cabelo do Mark e era super educada, uma qualidade que com certeza vai perder já que estava brincando com a peste do meu irmão. Emma não falava português, nem mesmo “arranhava” como o Mark e a Jane, mas Dani não teve problemas em lidar com isso, porque eles estavam tão empolgados brincando, que a barreira linguística parecia nem existir. É triste dizer isso, mas quando se é criança tudo é mais fácil...

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Também cumprimentei tia Vivian que tinha chegado a pouco da loja e ela me abraçou dizendo que eu estava muito bonita, que parecia quase uma mulher. Mas eu não acreditei, afinal, elogios de parentes nunca devem ser levados a sério, ainda mais se a sua tia em questão tem vista cansada e quatro graus de hipermetropia. O blá-blá-blá mentiroso sobre como eu estava bonita ainda continuou até que eu me sentei ao lado do Vini na mesa de piquenique. Ele e Mark estavam conversando animadamente em inglês (um raro momento em que vi o Vini sendo realmente sociável com alguém), mas pararam assim que eu cheguei. “E então Babi, que é você está achando de Orlando?”, o Vini perguntou levando logo depois a boca uma latinha de um refrigerante chamado Sierra Mist, tipo Sprite sabe? “Ah, legalzinho. Na verdade, ainda não vi muita coisa...”, eu disse tentando parecer casual. Não achei que me lamentar ali na frente de todo mundo fosse algo muito sensato. “Eu posso te mostrar a cidade se você quiser, Babi.”, meu primo Mark ofereceu. O sotaque dele parecia o de um paulista do interior e, quando ele falava meu apelido, pronunciava estranhamente “Baby” em vez de “Babi”. “Cara tu não desiste nunca não, é?”, o Vini disse rindo e jogando com a colher um pouquinho de salada de batata em cima do Mark. Então Ana também entrou na conversa, apesar de estar um pouco afastada da gente, sentada ao lado da Alice. “Cuidado com o Markus hein. Esse aí é um perigo quando quer bancar o sedutor. Believe me!”, ela falou pra mim enquanto apontava o garfo na direção do nosso primo.

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De repente a Alice, que estava apenas nos encarando, resolveu puxar conversa com o Vini. “Minha mãe disse que a Bárbara vai entrar pra mesma escola de vocês, a Olympia High School. Ela é boa?” “Olha, eu só estudo há seis meses lá, mas até agora eu não tenho muito do que reclamar não.”, Vini respondeu. “Dahhh! Depois do que aconteceu na Gotha Midlle qualquer outra escola é uma maravilha pra você”, a Ana disse num tom sarcástico. “O que aconteceu lá?”, eu perguntei meio inocente. Mas Vini apenas disse “nada” e voltou a ficar daquele jeito caladão dele. De repente tio Oscar levantou a voz: “Oh, você vai adorar esse país, minha irmã”. Ele disse pra mamãe enquanto remexia a carne numa churrasqueira engraçada que parecia mais um brinquedo com rodas. “A Flórida é praticamente o 28° estado brasileiro! É só andar por aí que a gente encontra um conterrâneo. Sem falar que esse lugar tem um clima ótimo. Você nem vai notar a diferença daqui em relação ao Brasil.” É. Tá legal... O Mark, meu primo, se levantou da mesa logo depois desse comentário de tio Oscar, já que o churrasco parecia não sair nunca, e chamou o Vini para jogar no XBOX que ele havia trazido. Os dois foram então ao carro do Tio Oscar para pegar o videogame e o Dani e a Emma os seguiram saltitantes logo atrás. Como mamãe estava conversando com tia Vivian e com minha tia “postiça” Jane, não me restou muita opção a não ser ficar calada. Ana era legal, mas eu não sabia o que nós duas poderíamos conversar e, além disso, ela misturava tanto o inglês com o português que às vezes era até difícil entender a

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criatura, então eu fiquei enchendo a cara de Coca-cola (pelo menos encontrei alguma bebida familiar aqui!) pra manter minha boca ocupada e assim não precisar dizer nada. Alice até tentou puxar assunto com minha prima, mas a Ana não parecia ter ido muito com a cara dela e simplesmente a ignorou a maior parte do tempo. Só respondia o necessário quando minha irmã perguntava alguma coisa. Nesse meio tempo Vini e Mark já haviam instalado o XBOX na TV e estavam jogando Halo nele. Sei disso porque a porta de vidro que dava para os fundos da casa de tia Vivian mostrava todo o interior da sala e eu também podia ouvir o Mark gritar pro Vini em meio a um som de artilharia pesada: “Granada de plasma, usa a granada de plasma”. Não sei por que, mas fiquei durante um bom tempo observando o Vini jogar. Ele parecia tão normal agora que era difícil crer que já havia bancado o bad boy um dia. É estranho o que o tempo pode fazer com as pessoas. Transforma verdadeiros sapos em... hum, príncipe acho que é uma palavra forte demais, mas meio que serve. O churrasco depois disso não demorou a sair. Todos nós nos reunimos à mesa, brindamos com latinhas de refrigerante por nossa família estar reunida novamente e nos deliciamos com a carne -quase boa para os padrões gaúchos- que tio Oscar tinha feito. Foi um momento legal, e a tristeza por estar longe do Brasil até passou quando o Dani deu um arroto enorme por causa do gás do refrigerante e minha mãe ficou vermelha de tanta vergonha. A noite seguiu sem muitas novidades (mamãe por um milagre dos céus não tocou nos assuntos Babi-odiava-Ana,

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Babi-amava-Vini) e Tio Oscar, Jane, Mark e Emma foram embora agora a pouco. Minha irmã Alice falou pra eu ajudá-la a tirar as coisas da mesa de piquenique, mas Vini mandou a gente deixar isso com ele e a Ana, pois devíamos estar muito cansadas da viagem. Não mencionei o fato de que estou a mais de 32 horas acordada para não chocá-lo, mas agradeci e muito o favor. Mamãe não veio se deitar ainda, porque está na sala botando os assuntos em dia com tia Vivian e mostrando os presentes que nós trouxemos do Brasil (sandálias Havaianas pra minha prima, blusa do nosso time - o “Internacional” - pro Vini e uma cuia de chimarrão pra tia Vivian). Já eu estou finalmente morrendo de sono e minhas pálpebras parecem super pesadas, prestes a desabar. Amanhã vai ser um longo dia, pois vamos ao shopping comprar algumas roupas pra mim enquanto a American Airlines não encontra minhas malas perdidas (minha irmã teve que me emprestar uma camisola dela pra eu poder passar essa noite). Então acho melhor parar de escrever nesse diário e ir dormir antes que eu pegue no sono aqui e babe bem em cima dele, ou muito pior, a Alice o roube de mim enquanto isso, só pra ver o que eu tanto escrevo afinal.

23:19- Lembrete: Não esquecer de desinfetar meu aparelho amanhã e de mandar notícias pra Mari, que já deve estar louca da vida achando que meu avião caiu ou foi seqüestrado por terroristas muçulmanos!

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04 de junho (sábado) Quarto de hóspedes

10:30- Sabe aquela sensação de confusão seguida por um pouco de pânico que te domina quando você abre os olhos pela manhã e não reconhece nada que está em volta de você? Foi isso que eu senti ao acordar agora pouco, no quarto de hóspedes da casa de tia Vivian. Estava todo mundo na cozinha já tomando café, então graças a Deus ninguém viu minha cara de assustada quando eu pulei da cama ainda tentando me situar. Na verdade, todos já estavam arrumados esperando apenas que eu acordasse (dormi feito uma pedra!) pra irmos ao shopping. Até mesmo tia Vivian vai com a gente. Ela disse que deixou a loja sob a supervisão de uma empregada de confiança dela e vai dedicar esse dia exclusivamente a nos “pajear” (fala sério, só gente velha usa essa palavra!) Não consegui comer nada no café da manhã mesmo minha mãe tendo insistido muito. É que amanheci meio enjoada e ainda estou ouvindo um zumbido estranho no ouvido, talvez por causa da pressão da aeronave. Sei lá... Só sinto que incomoda bastante! Ah, a Ana passou em frente à porta do quarto agora a pouco e me viu escrevendo. É claro que ela não se agüentou de curiosidade e perguntou o que é que eu estava fazendo já de

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manhã com um caderno nas mãos. Se eu era nerd ou coisa parecida. Respondi que na verdade isto aqui era um diário e aí ela ficou toda: “Nossa, que coisa mais antiga! Por que você não cria um blog? É muito mais cool! Aí eu falei que preferia mais a “coisa” do papel e caneta e então ela disse: “Ah, tá. Você é meio Old Style. Mas até que isso tem lá seu charme, né?”e então saiu. Cara, esse negócio da Ana misturar as línguas me deixa confusa. E o pior é que eu aposto que ela não faz isso pra se exibir. De qualquer maneira, estou indo me arrumar agora (botar alguma roupa da Alice, já que minhas malas ainda estão perdidas) antes que minha mãe grite comigo pela terceira vez dizendo que eu sou muito “mole”. Pelo visto está todo mundo só me esperando mesmo pra sair...

[em off] Acho que vou ter que encontrar um lugar mais sossegado e com blindagem anti-bisbilhoteiros pra escrever minhas coisas nesse diário. Mas onde? Hummm... Pensa... Pensa... Ei, esse closet que tem aqui no quarto de hóspedes é bem grande, hein?! E tem até lâmpada! Definitivamente é uma possibilidade a se analisar.

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04 de junho (sábado) Provador da loja de fábrica da Nike

14:10 -Apesar de estar aqui dentro eu não estou experimentando roupa alguma. Só queria um momento sozinha pra chorar em paz e contar sobre esse dia tenebroso que estou tendo, então eu peguei a primeira blusa que vi pela frente, e me enfiei nesse provador. Depois de tudo que aconteceu seria melhor que o chão se abrisse e eu fosse engolida por ele. Como isso não é possível acho que vou ficar nesse lugar pra sempre! Quero dizer, hoje é meu primeiro dia de verdade em Orlando e, ainda que eu mal tenha chegado de viagem, já quero ir embora. E não é pra menos! Mas vamos começar a contar as tragédias, ou melhor dizendo, a história do começo... Minha família veio pra cá pro Prime Outlet, pra gente fazer umas comprinhas. Segundo tia Vivian esse é uma das melhores Outlets de Orlando, pois dá pra encontrar coisas bem em conta nela. Em outras palavras, é o paraíso suburbano dos brasileiros! Alice, Ana e eu viemos no carro do Vini enquanto mamãe e Dani pegaram carona com tia Vivian. Tudo seguia normalmente até aquele momento e, depois de uns quinze minutos nós chegamos ao shopping, um lugar muito bonito por sinal porque, ao contrário dos que eu estava acostumada no Brasil, uma boa parte dos daqui é ao ar livre. Ou seja, não é aquele

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monte de concreto cheio de andares, no qual você entra e perde a noção se é noite ou dia. Como eu precisava comprar blusas de verão, tia Vivian me levou em algumas lojas e foi aí que aconteceram as primeiras gafes internacionais... Aqui todas as portas têm um pequeno letreiro na saída indicando se é pra puxá-las ou empurrá-las. E eu, com o meu inglês “The-books-is-on-the-table” simplesmente não lembrei que “push” é na verdade “empurre” em português! Então, quando eu estava saindo da loja da Levi’s com a minha tia, fui abrir a porta pra nós duas, mas fiz isso com tanta vontade, com tanta empolgação (afinal, era pra push-ar, ora!) que nem reparei o estado imóvel da porta e daí... POF! Dei de cara no vidro! O choque fez um barulho enorme e sacudiu tanto a porta, que as dezenas de pessoas dentro da loja pararam o que faziam só pra ver o que tinha acontecido, sem falar que um bando de turistas brasileiros desalmados (que eu estou rezando pra que comam algum Big Mac estragado e tenham dor de barriga por quinze dias) ficaram rindo à beça da minha cara. Oh, e a minha prima que estava fora da loja brincando de fotógrafa com o novo celular dela – e que de agora em diante vou chamá-la de Ana-sacana- ainda tirou uma foto minha exatamente no momento do choque com o vidro, pois ela achou que seria muito mais engraçado ver a prima se esborrachando (e podendo até perder um dente no meio do processo) do que avisá-la sobre a porta. Maravilha, hein! Afinal, quem precisa de um canino, certo Ana?

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E agora, lá estava eu, imortalizada no celular dela, com a cara prensada no vidro da porta e o nariz esmagado parecendo um dos três porquinhos! Adoro minha família... Mas se acha que a “sessão embaraço” para por aí, esqueça! Pois foi só a gente ir à outra loja, pra eu começar a pagar mais um mico. Só que esse não teve haver com portas de vidro assassinas nem nada disso. O problema mesmo foi a minha total e completa falta de conhecimento da cultura econômica americana (leia-se, ignorância!). Dessa vez eu estava na fila do caixa de uma outra loja, a Gap, pronta pra pagar pelas roupas que eu tinha experimentado, quando a Ana decidiu levar alguma coisa pra ela também e simplesmente me deixou sozinha na fila. De cara eu não me preocupei. Até porque eu tinha dinheiro suficiente comigo e, mesmo que eu não conseguisse entender o que a operadora de caixa me dissesse, eu sabia muito bem quanto àquelas roupas iam custar, pois eu tinha feito a conta nos dedos de cabeça. Então, não ia ter problema algum. Rá! Vai sonhando que tudo terminou fácil assim... Na minha vez de pagar, a operadora de caixa passou todas as roupas pelo leitor de código de barras, olhou pra tela do computador e disse: “95,00 dóllars, Miss”. Eu imediatamente fiquei revoltada. Afinal, aquelas roupas iam dar no máximo oitenta e sete dólares! Como é que de repente elas tinham aumentado tanto assim? Inflação galopante? “Não, isso não pode estar certo!” pensei comigo mesma, e no ápice do momento “cadê-meus-direitos-de-consumidorchame-o-PROCON!” comecei a “rodar a baiana” – apesar de ser

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gaúcha. Disse pra caixa que eu não era uma turista idiota, que ela estava se aproveitando do fato de eu não falar inglês pra superfaturar o preço das roupas, que ela não tinha vergonha na cara... E enquanto isso, atrás de mim, uma fila enoooorme de pessoas impacientes ia ficando cada vez maior. Pra encurtar a história, a confusão toda só terminou mesmo quando a Ana apareceu e, após tentar entender o motivo do tumulto, me disse pra eu deixar de ser tonta, pois nos Estados Unidos o imposto das coisas não vinha embutido no preço do produto, como é feito no Brasil, e sim que o valor dele só era adicionado na hora em que se fazia o pagamento no caixa. Uhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh! Que vergonha, meu Deus! Tá Vendo? Nessas horas é que eu queria ter entrado numa academia de ninjas ao invés de ter frequentado aquelas aulas estúpidas de balé! Pelo menos com as habilidades ninjas eu poderia escapar do climão pós-mico me camuflando na parede ou coisa assim... Mas acredite esse ainda não foi o pior vexame. Oh, não. Prepare-se, pois o King Kong dos micos vem agora! Depois de Ana e eu sairmos da Gap (eu ainda não sabendo onde enfiar minha cara, mesmo tendo pedido zilhões de desculpas à atendente e as pessoas da fila), nós fomos até a praça de alimentação onde o resto de nossa família estava começando a lanchar. A Ana sugeriu que a gente comesse no Subway (que é uma lanchonete especializada em sanduíches) e eu aceitei já que, segundo minha prima, os atendentes perguntam o que você quer que coloque no seu lanche, enquanto vão apontando pros ingredientes. Ou seja, dificuldade zero pra mim, né?

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É... certo... Na hora a atendente do Subway foi super simpática comigo e começou a colocar as coisas no meu sanduíche. Queijo, tomate, pepino, azeitona, picles, alface... até que apontou pra um pote cheio de coisinhas meio amareladas cortadas em rodelas e perguntou: “jalapenó?”. Eu não fazia idéia do que era essa coisa, mas como aquilo me lembrava pimentão amarelo, eu não liguei e acabei deixando que a atendente colocasse o tal do “ jalapenó” no sanduíche. Depois, já de volta à mesa onde minha família estava, eu dei várias mordidas seguidas no meu lanche (é, eu tenho Magali feelings, aquela da revistinha mesmo, às vezes) e de repente comecei a sentir minha boca arder. E então ela ardeu mais, e mais, e absurdamente mais, e os meus olhos se encheram de água na mesma hora, e eu não sabia direito o que fazer pra parar aquela queimação horrorosa na língua, até que comecei a tossir, tossir, tossir... E fiquei nesse desespero durante uns cinco minutos, sentindo meu estômago revirar e arder como se o próprio fogo do inferno estivesse dentro dele. Aí foi a deixa perfeita pra minha família perturbada entrar em ação. A Ana sugeriu que eu tomasse refrigerante, minha mãe -achando que eu tinha engasgado- deu uns tapas estilo “rancapulmão” nas minhas costas, tia Vivian começou a orar alto por mim segurando minha garganta, a Alice disse pra eu tentar ficar acordada e não ir em direção à luz, caso desmaiasse, enquanto que o Vini tentava fazer a manobra de Heimilich comigo ainda sentada, me dando cada tranco no estômago que eu chegava a

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pular na cadeira. Foi simplesmente O CAOS, e é claro que nada daquilo adiantou. Só voltei ao normal mesmo quando... bem... Quando o Vini fez uma pressão um pouco mais forte no meu diafragma eu coloquei tudo, tudinho pra fora, inclusive o “jalapenó”. Que, de acordo com o que a Ana me disse mais tarde, era um tipo de pimenta das brabas. É, isso aí mesmo. PI-MEN-TA! Agora imagina só a cena tragicômica: eu, vermelha igual a um tomate, com os olhos inundados de água, cercada pelos malucos da minha família, sendo agarrada por trás pelo meu primo e despejando no chão limpinho da praça de alimentação parte do lanche que eu havia comido -graças a Deus ainda não estava usando meu aparelho- enquanto várias pessoas nas mesas ao nosso redor assistiam enojadas ao desenrolar (vergonhoso) da situação. Após mais esse mico me arrependi de novo de não possuir as tais habilidades ninjas. Seria tão útil nesse momento... Tudo o que eu precisaria fazer era só gritar “Raiáááá”, jogar uma bomba de pó no chão e depois desaparecer na fumaça branca. Pronto! Sem vexame, sem drama, sem pessoas me encarando com cara de nojo! Mas nããããão, a Babi vai fazer aulas de balé por que é bonitinho... É. Tá aí o resultado! Eu mortalmente envergonhada, com uma baita vontade de chorar e tendo que agüentar todo mundo olhando pra mim com cara de repulsa. Ótimo primeiro dia nos Estados Unidos, hein? U-hu! (sarcasmo pesado) E depois disso tudo, minha família veio pra cá, a loja de fábrica da Nike, e eu tratei de sumir da vista de qualquer pessoa

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que pudesse ter estado na praça de alimentação e apreciado meu momento “chafariz humano”. Nojento, eu sei, por isso nunca mais vou sair desse provador. Estou até cogitando a possibilidade de viver aqui, igual ao personagem do Tom Hanks, naquele filme “O terminal”, em que o cara ficou morando no aeroporto de Nova York durante anos e se escondendo do chefe da imigração que queria chutá-lo de lá. O único problema é que eu não tenho habilidade alguma com construção civil, logo não sei construir paredes e muitos menos chafarizes, caso eu precise de dinheiro pra me alimentar ou fazer alguma surpresa romântica pra alguém. Pelo menos tenho alguns dólares no bolso da calça e um pacote de jujubas que o Dani não quis. Já deve dar pra alguma coisa...

16:44- Ok. Eu parei de chorar e saí do provador... Mas estou superarrependida de ter feito isso! De ter saído do provador, quero dizer - chorar já está meio que virando costume. No fundo do meu coração eu ainda tinha esperanças de que o dia fosse melhorar um pouco depois de todos aqueles vexames, mas acabou que ele está terrivelmente arruinado agora. E mais uma vez por minha culpa... Se bem que a Alice também ajudou um pouco com a fissura dela pela marca Victoria’s Secret. Por que todos nós estávamos muito bem na loja da Nike, até ela ver uma placa do shopping dizendo que ali também tinha uma loja da tal Victoria’s e arrastar a família pra lá. Inclusive eu, que mal fazia idéia do outro fiasco que me esperava perto dali...

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“Deus abençoe a América!” foi o que minha irmã disse assim que entrou na loja da VS e se deparou com a infinidade de cremes e desodorantes corporais espalhados pelas gôndolas com cartazes escrito “75% de desconto” em cima. Depois disso as mulheres de minha família, que foram contaminadas pela euforia da Alice, se dispersaram pela loja. Vini e Dani eram os únicos que não pareciam muito à vontade lá. Se bem que o meu irmão se acostumou logo, já que ele colocou uma calcinha por cima do jeans dele, um sutiã vermelho na cabeça, amarrou um pano nas costas feito uma capa e ficou correndo à toda pela loja gritando “Eu sou o Capitão Calcinha!” Enquanto isso o Vini ficou olhando para três telões pendurados na parede da loja que passavam comerciais da Victoria’s Secret com belas mulheres de roupa íntima. “Não baba não ô ‘cabeça de cogumelo’, elas são muito areia pro seu caminhãozinho.”, a Ana disse pra ele enquanto carregava uma bolsa da loja já abarrotada de cremes e outros produtos. “Não preciso babar. Eu ainda vou namorar uma modelo da Victoria’s Secret.”, o Vini falou de brincadeira. A Ana então disse debochada pra ele “ir sonhando” e foi para outra parte da loja ver os sutiãs “levanta peito” que estavam em promoção. Se eu tivesse alguma coisa no lugar do busto eu compraria algum também, mas como sou desprovida de seios, me mandei para a seção de cremes, onde pelo menos não teria a auto-estima arrasada. Vini e eu ficamos circulando por aquela parte da loja, experimentando todos os tipos de hidratantes e essências que eles tinham pra vender, até que minha asma começou a atacar

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já que perfume, assim como mofo e poeira, são minhas kriptonitas. O Vini então achou melhor que a gente saísse da loja e ele, o Dani e eu resolvermos descansar um pouco na borda de uma fonte que ficava bem em frente à loja da Guess, pois estávamos muito cansados de tanto andar no shopping. Como fazia um baita calor, o Vini resolveu ir comprar sorvete pra nós três me deixando sozinha com o endiabrado do meu irmão. E foi aí que eu tive uma surpresa inacreditável... Enquanto o Dani enfiava a mão na água pra tentar roubar as moedinhas que as pessoas tinham jogado na fonte (não estou falando que essa criança é do mal?) e eu tentava normalizar a minha respiração, uma garotinha loira começou a chorar bem perto de mim. Ela devia ter uns quatro anos mais ou menos e estava sentadinha na fonte, sem nenhum adulto por perto, segurando uma boneca Minnie vestida de princesa. Parecia tão perdida, tão assustada que eu, mesmo com meu inglês terrível, achei que deveria tentar fazer alguma coisa pra ajudar. Perguntei toda gentil, com aquela voz de tia de creche, qual era o nome dela e sequei o seu rostinho lavado de lágrimas, mas a garota só balbuciou alguma coisa como “mmmbbbrother” e caiu no choro de novo. Eu - graças ao meu coração-mole - fiquei morrendo de dó da pobrezinha, mas sinceramente ainda não tinha idéia do que fazer com ela. Nisso alguém gritou: “Mandy!” e a menina deu um pulo da fonte e saiu correndo. Eu olhei pra trás instantaneamente, mas quando vi a pessoa que havia se agachado pra receber o abraço da garotinha, achei que eu estivesse tendo uma visão ou coisa assim.

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Por que era simplesmente o garoto do Ray-Ban! Quero dizer, o Théo, que eu tinha conhecido no avião. Dá pra acreditar?! Bom, no início nem eu acreditei, pra ser sincera. Só quando ele se aproximou de mim e tirou o Ray-Ban do rosto parecendo tão surpreso quanto eu, foi que eu percebi que era ele de fato. “Babi?! Esse mundo é mesmo muito pequeno!” o Théo disse sorrindo, enquanto segurava a menininha na mão esquerda e carregava um bando de sacolas da Victoria’s Secret na outra. Eu continuei sem reação ao que ele perguntou se eu tinha ido fazer compras. Respondi que sim e perguntei o mesmo e então ele respondeu brincando que: “As mulheres é que fazem compras, os homens só seguram as sacolas!” e depois me apresentou a garotinha. “Essa fujona aqui, que me deixou morrendo de preocupação, é minha irmãzinha americana, a Amanda. Só que eu só a chamo de Mandy. And this girl, Mandy.. .” ele disse apontando pra mim enquanto falava em inglês com a irmã “... is Bárbara. A friend of mine.” A garotinha, que mais parecia uma boneca, me cumprimentou com um “Hi” muito fofo e ficou me olhando durante um bom tempo, até que começou a puxar a camisa do irmão pra chamar a atenção dele, ao que o Théo se abaixou na mesma hora pra ver o que ela queria. “She’s beautiful”, ela disse bem baixinho. Théo olhou pra mim, deu um risinho e depois sussurrou no ouvido dela “I Know”. Tudo bem, eu posso ser uma negação em inglês, porém entendi o que eles disseram e, é claro, não concordei nem um pouco. Afinal, eu não sou bonita e tenho consciência disso. Quem aqueles dois queriam enganar? Ou será que eles tinham

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o dom de enxergar a beleza interior das pessoas, igual no filme “O amor é cego”? Aquele em que o Jack Black se apaixona pela Gwen... Gnyw... Gnwyet... Ah, aquela loira de nome difícil e mulher do vocalista do Coldplay! Enfim... Nesse meio tempo o Dani apareceu com as mãos cheias de moedinhas da fonte, mas despejou tudo no chão quando viu o Théo e ficou enchendo a paciência dele com a história do parque da tal baleia Orca. Meu irmão só parou de azucrinar o Théo quando eu apresentei a Mandy a ele, e mandei os dois brincarem de piquepega em volta da fonte. E então eu e o Théo ficamos conversando ali, e ele me perguntou se eu já sabia o meu endereço em Orlando. Eu disse cheia de vergonha que era “ Pineapple” alguma coisa, porque pra ser sincera eu só lembrava disso mesmo e olhe lá. “Road?” O Théo chutou “Pineapple Road?” Eu fiz com a cabeça que não. “Pineapple Drive? Pineapple Boulevard? Pinapple Street? Pineapple Trail?” o Théo insistiu, mas eu fui sacudindo a cabeça, até que ele se convenceu de que aquilo era inútil. “Bom, pelo menos você sabe como me achar.” ele disse, e eu fiquei pensando se deveria contar que o meu suor tinha apagado o número dele da minha mão. Sei lá, o Théo poderia pensar que aquilo era só uma forma educada de demonstrar que eu não queria papo com ele. Por que, vamos ser sinceros, se não tivesse acontecido comigo eu acharia uma desculpa muito esfarrapada o lance do suor. Se bem que, por outro lado, se eu não dissesse ao Théo sobre o que aconteceu com número dele, eu provavelmente não o veria nunca mais. Pois olhando o tamanho dessa cidade (eu vi um

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mapa de Orlando na casa de tia Vivian antes de vir pra cá) foi a maior sorte da gente ter se encontrado nesse shopping. Mas antes mesmo que eu pudesse me decidir entre contar ou não, o Théo puxou o Ipod dele e me perguntou se eu gostava de Coldplay. Eu disse que adorava e então ele me mostrou uma música nova deles, que tinha sido lançada ha pouco mais de três dias. Não gravei o nome dela, mas depois de escutar achei muito boa. Era uma baladinha gostosa de se ouvir, meio romântica... Depois que a música acabou, o Ipod dele começou a tocar outra que tinha um ritmo bem agitado, do tipo dessas músicas eletrônicas sem vocal nem letra, sabe? Mas era impossível de se ficar parado ouvindo ela. Eu perguntei ao Théo de quem era aquela música “Flying High”, mas ele simplesmente surtou quando eu disse isso e me pediu o Ipod de volta ficando vermelho que nem um pimentão. Eu não devolvi e perguntei por que ele estava tão sem graça e o Théo me contou que na verdade ele é que tinha feito aquela música. “Ah, eu estava meio sem nada pra fazer no Rio, então baixei na internet um programinha de edição, juntei uma batida aqui, outra ali... e deu nisso. Ficou uma droga, não é?” ele perguntou todo inseguro. Eu disse que não, que a música tinha ficado muito boa (o que era totalmente verdade) e que queria escutar mais, só que o Théo não acreditou e tentou pegar o Ipod da minha mão. Eu não deixei, e a gente começou uma verdadeira briguinha ridícula parecendo duas crianças bobas. Ele tentando pegar o Ipod de mim e eu tentando evitar que ele fizesse isso. No final nós dois já estávamos meio que rindo, como se estivéssemos

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brincando, quando o Théo finalmente conseguiu pegar o IPod. Eu revidei dando um tapinha na mão dele. Ok, tudo bem, foi um tapão descontrolado! O que fez o Ipod do Théo voar e cair advinha onde? Advinha? Exato! Na droga da fonte! Na hora o Théo não fez nada e nem eu. Ficamos parados, olhando o Ipod afundar na água fazendo “glub,glub,glub”, até chegar ao fundo da fonte. Depois disso, quando se recuperou do susto, o Théo correu pra tirar ele da água, mas o Ipod não estava funcionando. Nem mesmo ligar ele ligou, pra falar a verdade. E sério, tinha que ver a cara de desolação do garoto olhando pro Ipod encharcado. Deu pena. “Me... me desculpa. Juro que não fiz por querer. Olha, eu pago o concerto!”, eu disse completamente arrependida pela burrada que havia feito. “Acho que não tem jeito. A água vai oxidar o sistema.”, ele disse balançando a cabeça arrasado. “Bem, então eu compro outro pra você.” “Bárbara, eu não fiz backup nem de metade das coisas que eu tenho armazenado nesse Ipod.” Shiiiiiii. Quando alguém me chama de Bárbara, ao invés de só Babi, é porque está na hora de dar no pé pela saída de emergência... “Olha, esquece está bem? Não se preocupe com isso. É sério. Não se preocupe.”, o Théo disse meio que para encerrar o assunto. Eu ainda insisti que poderia pedir pra minha mãe pagar um novo, mas o Théo continuou falando pra eu esquecer aquilo. De repente o telefone dele começou a tocar e ele atendeu. A pessoa do outro lado da linha era uma garota, pelo que eu

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pude ouvir, e o Théo pediu licença e se afastou pra falar com ela. Talvez por que o Dani e a Mandy estavam fazendo muito barulho com a brincadeira do pique-pega, ou talvez porque ele não queria que eu ouvisse a conversa. Vai saber... Minutos depois o Théo voltou e chamou a Mandy dizendo: “Ok, princess. Time to go! Megan is waiting for us.” E ao se virar pra mim disse que precisava ir naquela hora, mas que tinha sido legal me encontrar (Não tenho dúvidas de que ele só falou isso por educação). Eu pedi desculpas mai uma vez pelo Ipod afogado -até porque eu estava com a consciência suuuuuuuperpesada- mas o Théo disse pra eu esquecer mesmo aquilo, me deu um beijinho no rosto e falou pro Dani que eles iam se ver logologo pra ir ao parque da tal baleia grande. E por fim foi embora, de mãos dadas com a Mandy e carregando um monte de sacolas da Victoria’s Secret. O Théo não parecia mesmo estar irritado, longe disso, só que eu tenho certeza de que ele me odeia agora. Tudo bem, ele não disse nada na minha cara, mas eu sei que a frase “Morra Babi, morra!” deve estar passando na cabeça dele neste exato momento, porque o que fiz foi terrível mesmo. Eu não passo de uma completa e total idiota! Essa é que a verdade! Será que o lápis que eu enfiei no nariz quando era criança atingiu meu cérebro e causou algum dano permanente? Por que ninguém com a capacidade cerebral intacta faria tanta besteira como eu fiz hoje! Não mesmo! Bom, pelo menos o Théo deve estar sendo consolado pela namorada dele agora. Digo, ele não falou que tinha uma, mas é só juntar as coisas. Afinal, que homem estaria carregando

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bolsas da Victória’s Secret se não fosse uma gentileza pra namorada? (como membro da nação feminina me recuso a acreditar que tal belo espécime tivesse comprado calcinhas e cremes pra uso próprio!) E a tal ligação que ele recebeu? Era uma voz de garota do outro lado da linha, aposto minha vida nisso! Então acho que o resultado dessa equação é mais do que óbvio, não é?

Sacolas da Victoria’s Secret + voz sensual de garota do outro lado da linha + pressa em ir embora = namorada nervosa chamada Megan esperando! De qualquer jeito, com namorada ou não, eu ainda me sinto culpada pelo que fiz. E o meu dia ainda nem terminou apesar de todos os fiascos pelos quais já passei hoje. Argh. Ai, ai. Como eu queria estar no Brasil agora, onde as pessoas entendem o que eu digo e, o máximo de prejuízo material que eu causava aos outros, era vez ou outra, uma vidraça quebrada do nosso vizinho, o Seu Antônio, quando eu ia jogar futebol com o Dani no quintal dos fundos...

16:57- Só agora que reparei. Esqueci de pegar o número do Théo! Mas também, do que adiantaria? Depois do acidente com o Ipod ele não vai querer me ver nunca mais mesmo...

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05 de Junho (domingo) quarto de hóspedes 11:49- Por um tempo eu fiquei meio que com vergonha de pedir o notebook Vaio da Ana emprestado, mas acabei criando coragem pela Mari. Eu tinha que dar algum sinal de vida e dizer que tinha chegado bem em Orlando, se não ela com certeza iria colocar a polícia, o exército, a aeronáutica e todo o resto das forças armadas atrás de mim! Minha prima, apesar da gracinha de ter tirado aquela foto do meu mico no shopping, me emprestou o computador dela sem reclamar, disse que eu podia usar sempre quando eu quisesse, e ainda me garantiu que tinha apagado do telefone a tal foto comprometedora. Por que será que ela está sendo tão boazinha comigo, hein? Quando eu abri a minha página pessoal no site de recados que mais uso, vi que a Mari já tinha me deixado quase umas quinhentas mensagens! Essas são só algumas delas... Mari: Amiga, como foi o vôo? Já chegou aí? Dã. Que pergunta idiota a minha... A essa hora você ainda deve estar nos ares, né? Espero que vc tenha uma boa viagem. Ah, e não vomita no avião não, tá? Eu sei q vc morre de medo de qualquer coisa que fique á mais de 2 metros do chão, mas tenho certeza que vai correr tudo bem. Minha mãe está mandando um beijo enorme pra ti.

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Não se esquece dos meus creminhos da Victoria’s Secret! Bjim! Há 2 dias * Curtir * Comentar * 2 pessoas curtiram isto Camilinha: Hu-hu. Não se esquece do meu VS também! ; ) Luísa: Nuuuussa! Babi, está internacional agora! E não é do time de futebol que eu estou falando! QUE INVEJA DE VC! Mari: Hello, dona Bárbara! Seu avião pousou há um tempão que eu sei! Então não tem desculpa pra vc ainda não ter me mandado email nem nada. Como é a terra do Mickey? Bonita mesmo como o povo fala? Já esbarrou com o Nick ou o Brian dos Backstreet Boys por aí? E a sua prima Ana? Continua aquela chata que você me contava ou ela melhorou? E vc? Conheceu algum gatinho loiro americano? Aposto que já foi superpaquerada e não percebeu! Tu é meio distraída quando o assunto são meninos... Não se esquece de me escrever hein! : ) Há 1 dia* Curtir * Comentar 1 pessoa curtiu isto Douglas: As garotas daí dos “States” são mais bonitas que as daqui ????? Preciso saber! Saudade guria! Mari: Miga, minha mãe disse que vai fazer a torta alemã que você adora (aquela com crocante) pro almoço de domingo. Pena que você não está aqui pra devorar ela comigo! Mande notícias

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Babizita! Quero saber todas as novidades!Hj já é sábado e vc nem “tchum” pra mim! Aposto que conheceu um príncipe aí na terra dos contos de fada e já fugiu com ele pro Castelo da Cinderela! HAHAHAHA! Tá, agora é sério! Vou chorar de saudade. :*************************** Há 21 horas * Curtir * Comentar Cecília: Não se esquece dos pobres aqui não, hein. Babi sortuda! rs Mari: Babiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii. Kd vc mulher????????? Está se divertindo na Disney e já se esqueceu de mim, foi? Entra em contanto, manda email, sinal de fumaça, código Morse, qualquer coisa! Quero saber de vc. Não se esquece de me dar o telefone da casa da sua tia pra eu te ligar. Agora vou me despedindo do jeito americano: Kisses e mais Kisses. Miss You! Hahaha que inglês fail o meu... Há 15 horas* Curtir * Comentar Depois de ler todos os emails e recados de desespero da Mari, escrevi respondendo tudo que ela tinha me perguntado e até falei algumas coisas sobre Orlando. Nada muito longo, pois eu ainda estou tentando compreender essa cidade, mas o suficiente pra Mari e o resto dos meus amigos pararem de ficar me perguntando o tempo todo sobre isso aqui.

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O micasso no shopping envolvendo o Théo e tudo mais eu nem mencionei. Sei que a Mari teria uma palavra amiga pra me dizer, porque ela sempre tem (não é a toa que chamam ela de “Mari Thereza de Calcutá”), mas não quero falar sobre isso tão cedo. Na verdade eu queria era fingir que tudo isso não aconteceu. Não, melhor! Eu queria apagar da minha memória, igual ao Jim Carrey naquele filme “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, mas como não posso, fico só tentando evitar que aquelas cenas vergonhosas voltem a minha mente.

13:40- Até que enfim, uma boa notícia no meio desse pesadelo chamado Estados Unidos. A American Airlines achou minhas malas e as entregou agora a pouco, aqui na casa de tia Vivian. Ebaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa! Dei uma olhada rápida dentro delas e vi que não sumiu nadinha. Estava tudo intacto, desde meu MP3, aos DVDs infantis do Dani (que por sinal não sei por que estavam na minha mala, mas tenho certeza que isso foi obra da minha mãe!) até minha coleção de canetas em gel coloridas. Agora esse diário vai parecer um verdadeiro arco-íris com tantas cores! Pelo menos isso deve melhorar um pouco meu humor, já que eu ainda estou morrendo de vergonha pelos micos que paguei ontem e, principalmente, por ter afogado o Ipod do Théo. Oh, e por falar no Théo, só agora, lendo os outros registros do meu diário, eu fui reparar que tinha o endereço da rua de tia Vivian escrito aqui, bem no dia 5 de junho. É, o endereço estava nessa droga de diário o tempo todo e eu, como uma idiota, nem me dei conta disso!

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Só posso ter tido falta de oxigenação no cérebro quando nasci... Bom, por via das dúvidas, é melhor escrever o endereço certinho aqui. Vai que eu encontro o Théo e ele não está mais bravo comigo? Se bem que a probabilidade da gente se encontrar de novo é mínima (e ele não estar bravo comigo quase nula). Mas sonhar não custa nada... Quero dizer, eu estou fazendo isso pelo Dani que quer muito ver a tal baleia, tá? Só isso!

Pineapple Court, 502 Orlando 32835 Tel: 407 9823933

22:17- Sabe o que eu acho mais estranho nesse lugar? Você não ouve o barulho dos vizinhos. Melhor dizendo, você nem mesmo vê os vizinhos. Simplesmente parece que eles não existem! Ficam o tempo todo trancados dentro de casa e quando vão ao quintal dos fundos pra fazer um churrascão de domingo (como hoje) são tão discretos que você nem percebe que eles estão lá. Inclusive as crianças! Eu achei isso meio louco, afinal, lá em Estrela todo mundo da minha rua se conhecia. E quando as noites ficavam muito quentes no verão, as pessoas iam pra pracinha que tinha perto de casa e ficavam lá conversando até tarde. Mas aqui pelo visto não é assim. Todo mundo parece ser muito reservado e o povo se preocupa mesmo com a privacidade. Pra você ter uma idéia do quanto esses americanos são discretos, tia Vivian me contou que ainda não conhece os

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vizinhos de lado dela, sendo que ela mora nessa casa há três anos! Isso mesmo! TRÊS ANOS! Povinho estranho esse daqui... Oh, e quase ia me esquecendo. Mais cedo, depois do almoço, escapei de um acidente doméstico por um triz! Se não fosse o meu primo Vini, eu estaria igual ao capitão gancho agora, sem a mão! A única diferença é que a dele foi comida por um crocodilo enquanto que a minha teria sido arrancada por um réles triturador de lixo! Veja bem, eu não estava nem um pouco acostumada com essas “tecnologias” americanas e no Brasil a cozinha da gente não tinha isso. Então quando eu fui jogar o resto do almoço no triturador e uma colher caiu dentro dele travando a coisa toda, eu não vi perigo algum em tirar ela de lá com a mão. Por isso fui enfiando toda inocente os meus dedinhos no triturador pra tentar puxar a colher e, se não fosse meu primo Vini gritando “BABI, NÃO FAZ ISSO PELO AMOR DE DEUS!”, eu provavelmente estaria agora escrevendo nesse diário segurando a caneta com a boca. Ou, segundo a Ana, pedindo emprego na Disney pra participar da atração “Piratas do Caribe” ao lado do Jack Sparrow! É, ia ser uma graça mesmo eu com um tapa-olho e papagaio verde no ombro dizendo com aquela voz rouca: “Aye, aye, capitão!Vamos fazê-los andar na prancha!” Estou imensamente agradecida pelo o que o Vini fez. Devo minha vida a ele! Até mesmo disse pro meu primo que ele era o meu herói, mas o Vini ficou instantaneamente vermelho nas orelhas (indicativo de que ele está com vergonha ou então muita raiva) e pediu pra que eu parasse com isso, pois só tinha feito o que era certo. Depois se trancou no quarto dele pra ficar

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jogando Silent Hill no Playstation, e só saiu de lá agora a pouco, pra detonar um pacote de Cheetos tamanho família e o resto da pizza do Domino’s que a gente comeu ontem no jantar . Mas nem falou comigo na cozinha. O que é bem normal, já que ele sempre foi de poucas palavras mesmo... A Ana deu uma passada agorinha no meu quarto, antes de ir na casa da melhor amiga dela, e disse que amanhã o Vini vai levar a gente pra conhecer a loja de tia Vivian e de quebra a Olympia High, minha nova escola, pois é tudo pertinho daqui. Falando sério agora, eu não sei se estou preparada pra isso. Quero dizer, tudo bem, não vai haver nenhum aluno lá nem nada, pois a escola está em recesso devido às férias, mas a questão é que eu fico nervosa só de imaginar que daqui a três meses eu vou estar em uma sala de aula americana. Ain gente, eu não sei inglês direito! Como é que eu vou fazer amigos? Como é que eu vou entender os professores? Como é que eu vou fazer PROVAS em outra língua?! E mais, será que os meus novos colegas vão implicar comigo do mesmo jeito que faziam os da minha antiga escola no Brasil? Eu não sei e pra ser sincera estou com muito medo mesmo de descobrir. Bem, mas de qualquer jeito acho melhor apagar a luz do abajur e tentar dormir agora. O Dani já se remexeu umas dez vezes na cama da mamãe, por causa da claridade, e eu não quero acordar o moleque. Além disso, eu tenho que estar bem disposta pra encarar a visita a minha nova escola amanhã. Então já vou indo. Mas antes, acho melhor enfiar uma de minhas meias na boca da Alice pra ver se ela para de roncar ao meu lado igual a cria de uma porca com uma brincadeira.

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Vou te dizer, minha irmã pode até pode ser bonita, mas ô guria barulhenta dormindo!

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06 de junho (segunda-feira) estacionamento da loja da tia Vivian

12:10- Eu devia ter previsto que esse dia não iria ser bom. Quero dizer, eu já havia tido meio que uma amostra do quanto horroroso ele ia ser quando minha mãe acordou às cinco da manhã gritando “Socorro! Estou tendo uma hemorragia cerebral. Estou tendo uma hemorragia cerebral!”. Tia Vivian conseguiu acalmá-la explicando que aquilo era apenas um sangramento em um vasinho no nariz, e que tinha ocorrido graças a diferença do nível de umidade de Orlando em relação a do Brasil, mas inevitavelmente o dia já havia começado ruim e o que aconteceria mais tarde só veio me mostrar que tudo sempre pode piorar. Depois de todo mundo ter tomado café, Vini pegou o carro dele pra nos levar a Olympia High. Durante o caminho até a escola, eu confesso que ainda observava tudo com um “olhar” de novidade, mas pra ser bem sincera, de medo também. Pela janela do Honda Civic do Vinícius eu assistia Orlando passar devagarzinho (carros de marcas que eu não conhecia, pessoas com roupas super diferentes, plantas de espécies que eu nunca tinha visto antes) e me sentia brutalmente estranha àquilo tudo. Era como se eu fosse a única coisa fora do lugar naquela cidade perfeita, como se ela olhasse pra mim de volta e ficasse

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gritando: Você não faz parte daqui, garota! Vá embora! Volte para o Brasil que é o seu lugar! Acho que eu nunca senti uma sensação tão estranha assim na vida... Antes de entrar na Olympia High, é verdade que fiquei com um pouco de medo de encarar a escola, mas quando chegamos lá de qualquer maneira não podemos ficar muito tempo porque, como ela estava em recesso devido ás férias de verão, havia poucos funcionários ali e nenhum gostou muito de nos ver zanzando pelas dependências da escola. Mesmo o Vini explicando que ele estudava lá e apenas queria apresentar o colégio a uma nova aluna. Além do estacionamento imenso na frente da Olympia High (que por sinal era imensa também), só vimos os campos onde acontece a educação física e algumas partes dentro da escola, menos é claro as salas de aula, biblioteca, refeitórios e afins porque os funcionários realmente ficaram desconfiados com o nosso pequeno bando e estavam prestes a chamar a polícia quando decidimos ir embora. Esse povo americano é muito desconfiado... Depois de quase sermos confundidos com delinquentes juvenis na Olympia High School, fomos até a loja de tia Vivian na Rua Hiawassee, distante apenas alguns quilômetros da nossa escola. A Tinturaria de Tia Vivian ficava em uma galeria de lojas com estacionamento na frente, aliás, tudo aqui em Orlando tem estacionamento. Oh, e quase não existem prédios nessa área, o que por um lado é bom, já que eu odeio muito concreto junto. Tia Vivian tinha uns seis empregados na loja e eles foram muito simpáticos quando fomos apresentados. A maioria do

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grupo era americana e mexicana, mas também tinha uma brasileira muito simpática, a Carla, que era de Feira de Santana na Bahia, e ainda não tinha perdido o sotaque, nem a mania de falar “Meu rei”. O Dani ficou esquadrinhando a loja estranhamente quieto, até que achou um taco de baseball e uma bola jogados em uma parte da tinturaria. A Carla disse que um cliente tinha esquecido aquelas coisas na loja e nunca apareceu pra pegar de volta. Vini então decidiu levar o Dani para trás da Tinturaria, onde havia também um mini estacionamento para carga e descarga, com a intenção de ensinar meu irmão um esporte verdadeiramente americano, pois a gente só estava acostumado com futebol e vôlei em nosso país. Vou lhe dizer, eu fiquei imensamente preocupada com o fato do Dani estar de posse de uma bola mega pesada de baseball porque, cá entre nós, aquilo viraria fácil uma arma letal nas mãos diabólicas daquela criança, mas não foi ele quem estragou tudo. Fui eu e mais uma vez! Isso porque depois que o Dani não conseguiu arremessar nenhuma bola forte o suficiente para o Vini rebater, meu primo teve a brilhante idéia de me chamar pra jogar. Eu confesso que na primeira vez que arremessei a bola não fiz com muita vontade e ela nem mesmo foi mais longe que a do Dani, mas então, tomada pela raiva da Alice ter rido de mim e dito que eu não tinha forças porque eu não passava de uma ogra fracote, eu simplesmente lancei a bola o mais forte que pude. Bem, você tem cinco segundos para adivinhar o que aconteceu... 1, 2, 3, 4, 5 pééééééé. Tempo esgotado!

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Eu vou te dizer então o que aconteceu: aquela maldita bola (que deve pesar no mínimo uns três quilos) foi direto, e com toda força, bem em cheio na lanterna traseira do carro do Vini. A cena foi realmente ridícula porque eu não sabia o que fazer. Lá estava eu de boca aberta, parecendo ter sido congelada enquanto o alarme do carro do Vini apitava feito louco fazendo pí-pí-pí-pí, já que eu o havia feito disparar no momento que estraçalhei a lanterna com a tal bola de baseball. O Vini fez uma cara de desolação, muito parecida com a do Théo que eu tinha visto no dia anterior, mas não brigou comigo nem nada (como o Théo também não tinha feito). É claro que eu pedi milhões de desculpas a ele, só que isso não ia trazer a lanterna de volta, então meu primo partiu na mesma hora para levar o carro no concerto. Segundo a Ana, aqui em Orlando a polícia não perdoa se você estiver com uma lanterninha quebrada e multa mesmo. Logo o Vini não poderia correr esse risco. Também era só o que faltava! Meu primo levar uma multa por minha causa! Na boa, eu queria entender como eu consigo ser tão desastrada! Porque vamos combinar, desde que cheguei em Orlando eu não tenho dado uma bola dentro (só em lanternas de carro, pelo visto!). Até a Ana, que se mostrou super legal comigo (com exceção daquele dia no shopping), disse que eu sou a rainha dos “clumsy moments” e, pra ser sincera, ela não está errada, vide os vexames no shopping, o acidente com o Ipod do Théo e agora com a lanterna do carro do meu primo. Se bem que o que mais me preocupa é o que o Vini está pensando nesse exato momento. Eu de verdade não o culpo se ele estiver me odiando agora, porque já lhe dei um prejuízo

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enorme, mas sinceramente eu não queria que meu primo ficasse com raiva de mim apesar de eu ser um tremendo gato preto na vida dele. Eu gosto do Vini, quero dizer, não do jeito afetivo que costumava há anos atrás, mas meu coração estranhamente dói só de pensar que meu primo vai ficar irado comigo quando receber a nota da loja de peças de carro. Eu devo ser mesmo uma experiência que deu errado, até porque não a outra explicação para o meu grau elevado de demência. Eu realmente e totalmente me O-D-E-I-O! Argh!

P.S.: pedir o notebook da Ana emprestado de novo quando chegar em casa pra pesquisar o maldito preço da lanterna na internet. Dependendo de quanto for mamãe pode até pagar o conserto. Pelo menos é isso que eu espero.

Ainda 06 de Junho (closet do quarto de hóspedes)

18:10- Procurei mais ou menos na internet quanto custaria uma lanterna. A Alice teve que me ajudar, pois eu queria saber o preço das lojas de peças daqui de Orlando e o meu inglês, como todo mundo já sabe, não passa do nível “imbecil intermediário”. Depois de muita pesquisa eu tive duas notícias: uma boa e a outra ruim.

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A boa é que eu era a milésima visitante do site e tinha que clicar na caixinha pop-up brilhante que apareceu na tela para eu levar meu prêmio! Há-há-há! Será que esses caras da internet acham que alguém ainda cai nessa? Agora a notícia ruim (e verdadeira) é que eu devo muito ao Vini, mas muito messsssmo! E nem a minha mãe pode pagar pelo conserto da lanterna porque vai sair muito caro e a gente não está podendo gastar dinheiro assim. Já que ela vendeu nosso carro antes da viagem pra bancar nossa estadia aqui até que conseguisse um emprego e nós já usamos parte do dinheiro só pagando as passagens de avião pra cá. Em outras palavras, estou ferrada e lisa feito coco! Aposto o que você quiser que o Vinícius está arrependido de ter salvo meus dedinhos do triturador de lixo, ou melhor, aposto que ele está se perguntando por que não enfiou minha cabeça logo de uma vez dentro daquela coisa quando teve chance. Pelo menos assim ele estaria livrando a humanidade da catástrofe que eu sou. Sinceramente acho que deveriam colocar meu nome num furacão. Se encaixa direitinho, até porque nós dois viramos tudo de cabeça pra baixo e deixamos um rastro de destruição por onde passamos! Furacão Bárbara. Soa até legal... 18:16- A Ana pegou meu diário que estava jogado em cima da minha cama e leu o que eu acabei de escrever nele (acho que ela ainda não entendeu que isso aqui é território proibido para todas as pessoas desse planeta!)

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Segundo minha prima, já nomearam um furacão de Bárbara uma vez. Só que esse era de magnitude F5 e passou bem perto de Miami. Ela disse também que a Flórida é a terra dos furacões. No verão vira e mexe tem um passando pela costa e deixando o estado inteiro em alerta. Ah, tá... O quê???????????????????????????????????????? ONDE É QUE EU VIM PARAR MEU DEUS?

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07 de junho (terça-feira) casa de tia Vivian

11:58- Eu estou morta de cansaço e com o pé doloridíssimo, mas ainda sem qualquer ânimo pra dormir. Acho que desenvolvi um certo tipo de insônia desde que cheguei em Orlando. Porque dificilmente tenho pego no sono antes das duas da manhã. Também, com tanta novidade dia após dia é meio difícil dormir. Eu fico repassando mentalmente tudo o que aconteceu comigo e de repente puf! O sono vai embora. Mas como agora estou muito bem acordada, ainda que cansada, é verdade, preciso contar todos os detalhes dessa noite. O Mark, meu primo americano, ligou pra cá lá pelas sete chamando a gente pra sair com uns amigos dele. A Ana por sua vez ligou para as amigas e marcou um encontro com elas no mesmo lugar que o Vini e o Mark iriam, mais para aproveitar a carona é verdade, pois ela ainda não tem idade pra dirigir o carro de tia Vivian. A Alice meio que se convidou pra ir com o grupo e o Vini, sempre muito legal, não conseguiu dizer não pra ela. Então todas nós corremos rapidamente para nossos quartos para nos arrumarmos. No meu caso eu ia apenas trocar de roupa já que eu sei que nada pode melhorar minha aparência, mas a Ana não permitiu que eu fosse com meu jeans e a blusa que eu havia comprado na liquidação da loja da Nike.

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Ela me forçou a usar um vestido preto (a única roupa dela que cabia em mim já que eu sou tamanho 38 e ela 36) além de um par de sandálias pretas que era um número menor que o meu pé e tinha um salto de no mínimo 3 centímetros! “Eu não vou sair com isso...”, disse tentando me equilibrar em cima da sandália, “... esse salto enorme está me dando até vertigem.” Mas a Ana mandou eu ficar quieta, parar de banca a “Drama Queen” e começou a me maquiar. É claro que ela não fez nada gritante no meu rosto, até porque eu disse que não queria ficar parecendo o coringa do Batman, então minha maquiagem ficou resumida a máscara nos cílios, blush bem clarinho e gloss. O que levou mais tempo mesmo foi a escova que ela fez no meu cabelo e a pintura nas minhas unhas, mesmo eu insistindo que meus cotocos não precisavam de base fortalecedora naquele momento. Quando nós aparecemos no jardim, depois do Vini já ter buzinado umas duzentas vezes, mamãe -que estava do lado de fora com tia Vivian olhando a vizinhança- meu deu um sermão sobre comportamento como se eu fosse a própria bad girl saindo pra aprontar e me instituiu 12:00 como horário de regresso. Isso mesmo. MEIA-NOITE! Um absurdo!!!!! Afinal, eu não sou mais criança e muito menos a Cinderela, só que infelizmente não consigo confrontar minha mãe nessas horas. Além disso, ela nunca vai mudar, já que foi criada em bases tão rígidas e conservadoras. Em outras palavras, muito obrigada vovô Henkels, o senhor criou um monstro e agora quem se ferra sou eu! Mas deixa isso pra lá, não vai adiantar nada mesmo eu ficar me queixando aqui...

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Assim que entrei na mini-van de tia Vivian (o carro do Vini ainda está no concerto) e me sentei no banco do carona, meu primo parou na mesma hora de mexer no som e olhou pra mim espantado, como se estivesse nascendo um terceiro olho na minha testa ou eu fosse um ET que tinha acabado de descer da nave mãe. “Gostou maninho?”, a Ana perguntou do banco de trás. Eu sinceramente não entendi a pergunta dela. Afinal, pela cara do meu primo eu devia estar horrorosa. “Babi não é sua boneca Barbie pra você fazer o que quiser com ela.”, o Vini disse voltando ao normal e colocando o cinto. Sério, aquilo só não foi um banho de água fria completo porque eu já meio que esperava que ele dissesse o quanto eu estava estranha naquela produção toda. Mas mesmo assim a reação de meu primo foi tão negativa (e parte dela provavelmente motivada pelo ressentimento com o prejuízo da lanterna quebrada), que eu me encolhi magoada no banco do carro e fiquei quietinha até chegarmos ao Bar onde encontraríamos o Mark. O Miller’s Ale House, como o letreiro dizia, tinha um estilo bem legal de pub. Além de muitas mesas com banquinhos altos, também possuía duas de sinuca, algumas máquinas de fliperamas em um canto do bar e televisores enormes espalhados pelo ambiente, por onde um bando de americanos assistia a uma partida de basquete. Mesmo gostando do “jeitão” do Ale House eu estranhei um pouco aquilo tudo. Nunca tinha entrado em lugares daquele tipo antes. Na verdade, o máximo que eu cheguei disso foi quando mamãe foi visitar a prima dela em Porto Alegre e acabou me levando num restaurante Outback pra comemorar antecipadamente meu

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aniversário de quatorze anos. Fora esse evento isolado, era McDonald’s vez ou outra e olhe lá! Assim que entramos no pub as amigas de Ana acenaram pra gente. Elas estavam sentadas próximas as mesas de sinuca e só a alguns passos de distância do Mark e dos amigos dele. Na mesma hora nosso pequeno grupo se dividiu. Ana e eu fomos falar com as meninas, enquanto os mais velhos (Vini e Alice) foram ficar com nosso primo Mark. Eu e Ana demos um tchauzinho de longe pra ele, tentando não sermos indelicadas e então minha prima me apresentou as amigas dela. A maioria era brasileira ou havia nascido nos Estados Unidos, mas eram filhas de brasileiros. Só duas garotas chamadas Brittany e Jennifer eram americanas natas, mas todas sem exceção estudavam na Olympia High. A morena Luana, que era de São Paulo, foi a primeira a puxar assunto comigo. “Ana disse que você chegou essa semana, né? O que é que está achando de Orlando?”. Ela perguntou com seu sotaque paulista. Eu inevitavelmente respondi o mesmo que disse ao Vini no dia do churrasco de boas vindas, embora não estivesse deprimida hoje como estava naquele dia. Então a Carol, uma das nascidas na Flórida, e que estava sentada à minha frente disse: “Ai meu deus, ele voltou!” enquanto cutucava a Ana, e as duas começaram a olhar fixamente pra alguma coisa atrás de mim. Como todas as outras garotas da mesa se viraram curiosas pra descobrir o que as duas estavam olhando tanto, eu também fiz o mesmo que elas. E, na hora que eu dei aquela olhadela pra trás, simplesmente não acreditei em quem estava caminhando no corredor do

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restaurante, meio distraídão, girando uma chave de carro no dedo indicador. Era ninguém mais, ninguém menos que o... Théo!!!!!! Acho até que esqueci de respirar naquele momento, ou talvez fosse apenas minha velha asma começando a atacar de novo. Não tenho certeza... Só sei que o Théo estava muito lindo, usando um boné vermelho escrito “Tampa Bay Buccanneers”, além de um jeans comum e regata preta, por baixo de uma blusa xadrez azul que estava aberta. Não sou expert nem nada no guarda roupa dos meninos americanos, mas posso dizer que aquele estilinho de roupa dele não era nem um pouco brasileiro. O Théo continuou se aproximando de nossa mesa, sem ainda ter percebido o bando de garotas que olhava fixamente pra ele e até acenou para o fundo do bar onde uns garotos jogavam sinuca. Eu achei que ele não ia me enxergar ali, no meio de tanta gente, mas no exato minuto em que o Théo passava pela nossa mesa, ele olhou pra mim de relance, voltou o rosto pro fundo do bar como se não tivesse me visto e, num centésimo de segundo depois, virou a cabeça pra mim de novo com os olhos cheios de espanto. “Babi!” ele disse parando de repente. Eu sorri e disse apenas um “oi” meio encabulado pra ele. Afinal, eu não sabia se aquele olhar de surpresa do Théo era do tipo “Que legal! Você por aqui!” ou do tipo “Corram todos! A afogadora de Ipods está na área!”. Talvez ele só estivesse sendo educado (como sempre, aliás), mas o Théo perguntou o que eu estava fazendo ali no Ale House e eu expliquei que tinha vindo com minha prima encontrar as amigas dela. Com essa pequena “deixa”, a Carol

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logo se intrometeu na nossa conversa estendendo a mão pra cumprimentar o Théo, e eu acabei obrigada a apresentar todas as meninas a ele. Tive que fazer um esforço danado pra lembrar bem rápido o nome de algumas delas, é verdade. Só que o mais engraçado de tudo foi no momento em que apresentei o Théo, ou melhor dizendo, quando eu tentei apresentá-lo. Porque eu só disse “Meninas esse é o...” ao que elas completaram imediatamente, pronunciando o nome dele de uma forma engraçada, do mesmo jeito que se fala a palavra “tio” em português. Eu fiquei pasma com aquilo e o Théo mais ainda, tanto que perguntou de onde elas o conheciam. Minha prima Ana se adiantou e disse que ela e as amigas estudaram na mesma escola que ele, uma tal de Gotha Middle School. O Théo pediu desculpas por não lembrar delas (embora elas lembrassem muito bem dele, pelo visto!) e antes de ir ao encontro dos seus amigos americanos que estavam jogando sinuca no fundo do bar, ele disse que voltaria pra falar comigo. Nem bem o menino saiu, a Ana e as gurias me perguntaram se eu era amiga do Théo e só ficaram satisfeitas quando eu contei Tim-Tim por Tim-Tim do jeito que a gente se conheceu na viagem do Brasil pra Orlando (não mencionei o fiasco no shopping, é claro! Só minha irmã sabe dessa história tenebrosa e isso por que eu queria escrever certinho as coisas que o Théo tinha falado em inglês com a irmã dele, então tive que contar pra Alice). As meninas ainda ficaram um tempo falando o quanto o Théo foi fofo por ter me dado chocolate e emprestado o finado Ipod dele, até que uma das garçonetes do Ale House trouxe uma rodada de refrigerante e asinhas de frango interrompendo

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nossa conversa. Passada a sessão comilança e eu ter bebido litros de refrigerante por causa das asinhas super apimentadas (não tanto quanto o jalapenó daquele dia, mas ainda suficientemente forte pra eu cuspir fogo igual a um dragão e ainda soluçar fumacinha), as meninas mudaram de assunto e começaram a falar em inglês pra não deixarem a Brittany e a Jennifer alheias a conversa. O que acabou me fazendo “boiar” durante um bom tempo enquanto elas fofocavam. Por isso minha atenção acabou se desviando para as mesas de sinuca no fundo do bar. O Théo estava apoiado em uma delas, com um taco nas mãos enquanto conversava com uma loira linda, o que me deixou meio inquieta, não sei por quê. Eu tentei não ficar olhando diretamente praquela mesa de sinuca, mas era meio difícil, porque de onde eu estava podia ter uma visão privilegiada do Théo, já que ele se encontrava bem de frente pra mim. Decidi encarar alguma daquelas televisões de plasma só pra desviar o olhar, mas jogos de basquete decididamente não me atraem, então eu acabei voltando minha atenção pra mesa de sinuca e, dessa vez, meus olhos e os do Théo se cruzaram. Ele riu pra mim, mas a garota com a qual ele estava conversando começou a estalar os dedos diante do rosto dele e então o Théo voltou a encará-la na mesma hora, ainda que parecendo meio zangado. Pelo jeito que ela exigia a atenção dele, era óbvio que aquela garota só podia ser a namorada misteriosa do Théo. A tal Megan que falou com ele pelo telefone no shopping. Cheguei a essa conclusão porque ela era estupidamente linda e os dois, tenho de admitir, meio que combinavam. Apesar do cabelo do

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Théo ser todo preto e o dela um loiro quase branco, eles tinham os mesmos olhos cor azul piscina e narizes arrebitados iguaizinhos. Pareciam até aqueles casais perfeitos de filme romântico adolescente: o garoto popular e a líder de torcida. Só que o engraçado disso tudo é que mesmo estando com a namorada bem ali, sempre que eu resolvia olhar pro Théo eu o pegava olhando pra mim! É claro que na hora que isso acontecia nós desviávamos nossos olhos bem rapidinho pra outro lugar. Eu até lançava aquele típico olhar furtivo, usando minha visão periférica do tipo estou-te-vendo-mas-você-nãosabe, e peguei o Théo me encarando várias vezes. Será que eu estava com carne de frango no dente e ele de alguma forma queria me avisar, mas estava sem coragem de fazer isso? Acho que sim. Afinal, cá entre nós, porque ele iria ficar olhando logo pra mim se diante dele tinha uma garota maravilhosa que parecia a última estrela adolescente do Disney Channel? Oh, mas isso não foi o mais estranho da noite. Não mesmo. Vou te dizer o que me deixou completamente abismada até agora. Começou quando uma música antiga da Rihanna “ Hate that I Love you” tocava nos alto-falantes do bar, quebrando toda a sequência de hip-hop’s e pop’s agitados que haviam tocado a noite toda. Eu meio que fiquei absorta pelo ritmo calmo daquela música e só percebi que o meu primo Vini não estava mais na mesa dele tempos depois. A Ana, que tinha acabado de voltar do banheiro junto com a Britt, explicou que o irmão tinha ido pegar um amigo num bar perto dali, mas que estaria de volta em pouco tempo pra me levar em casa.

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O detalhe, é que isso havia sido a mais de meia hora e não havia nem sinal do meu primo no bar! E o pior, o relógio estava se aproximando da meia-noite! Minha mãe ia me dar uma bronca se eu chegasse em casa depois do horário combinado, eu tinha certeza disso. Mas nem tive tempo de pensar muito no castigo doloroso que me esperava, pois o Théo deixou os amigos na mesa de sinuca (e a loira linda que tinha alugado ele durante um tempão) pra vir finalmente falar comigo. “Desculpe pela demora.” Ele disse sorrindo e depois apontou pro espaço vazio ao lado do meu. “Posso sentar aqui?” Eu fiz com a cabeça que sim. “E aí? Já se adaptou a sua nova vida em Orlando?” ele perguntou puxando assunto. “Quase... Quero dizer, mais ou menos... Ok. Na verdade, nem um pouco.” eu disse suspirando. Me deu uma vontadezinha de chorar ao pensar nisso, mas segurei. “Não se preocupa, não. Você só está aqui faz cinco dias. Com o tempo se acostuma, acredite em mim. Até porque de readaptação eu entendo bem demais!” ele respondeu rindo, provavelmente lembrando da vida quase “cigana” que levava. Eu sorri em resposta e então olhei apreensiva pro relógio no pulso dele. Quase surtei quando vi que já faltavam vinte minutos pra meia noite. Ai-Meu-Deus!!!!!!!!!!!!!!! O Théo percebeu que tinha alguma coisa errada comigo e perguntou o que houve. Eu contei toda a história e ele a princípio riu (não o culpo, eu também riria), depois se ofereceu gentilmente pra me levar em casa. De cara é claro que eu não aceitei. Primeiro porque eu não conhecia ele direito e segundo porque me lembrei do que ele

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falou sobre ter feito o trajeto Miami-Orlando em um tempo bem menor do que normalmente se leva, o que significava que ele veio correndo (pra não dizer voando!). Mas a Ana e as meninas ficaram insistindo tanto pra eu aceitar e meia noite estava tão perto agora que eu não tive escolha a não ser ir com o Théo. Quando nós estávamos saindo do bar, vi que a loira Barbie ficou olhando pra gente com cara feia. Senti uma imensa vontade de dar língua pra ela, mas não fiz isso. Óbvio! No estacionamento o Théo demorou um tempinho procurando o carro dele, até que parou diante de uma coisa enorme e preta. Eu não reconheci a marca daquilo, até ler na parte traseira o nome dele. Era algo como Land Rover LRX. E tenho que dizer, nunca tinha visto um carro tão grande na minha vida! É sério! Dava pra fazer uma festa lá dentro e convidar toda a minha família. Tá, tudo bem, isso foi exagero, mas o carro era grande mesmo (aliás, tem muitos automóveis aqui em Orlando que são enormes!) Ok, mas voltando ao Théo, ele abriu a porta do Land Rover pra mim e eu, ainda meio abismada com o tamanho daquilo, entrei no automóvel dizendo pro Théo que ele tinha um carro muito legal. O Théo entrou também, agradeceu explicando que na verdade o Land Rover foi uma tentativa do pai fazer com que ele ficasse em Orlando em tempo integral (que inveja, minha mãe tenta me comprar com meras canetas coloridas!) e então o Théo se esticou pra pegar alguma coisa no porta-luvas. Foi aí que eu o vi mexendo no Ray-Ban. Na hora não consegui me conter. “Você só pode estar de brincadeira! Vai usar óculos escuros pra dirigir a noite?” Ele riu.

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“Não. O Ray-Ban é apenas pra sol... ou emergências”. Ele disse enquanto remexia o porta-luvas a procura de outra coisa. Eu fiz cara de quem não tinha entendido e o Théo estendeu os óculos escuros dele pra que eu botasse, pois só assim eu “veria” o que ele quis dizer com “emergências”. Na mesma hora que eu coloquei o Ray-Ban não consegui enxergar absolutamente nada. O mundo parecia um grande borrão confuso e meus olhos até doeram um pouco. “Esses óculos têm grau!” eu gritei tirando logo o Ray-Ban do rosto. “É. E eles me salvaram quando eu fui pro Brasil e esqueci meus óculos de nerd aqui em Orlando.” ele disse enquanto tirava outro par de óculos do porta-luvas. Só que esse era um daqueles bem comuns, de grau, com hastes pretas. “Você tem problema de visão?!” eu perguntei abismada. “Três horríveis graus de miopia.” Ele respondeu meio que envergonhado colocando os tais óculos “de nerd”. “Eu tive de ficar andando com Ray-Ban pra cima e pra baixo no Rio, até mesmo de noite. Foi vergonhoso, mas era isso ou não enxergar nada de longe.” Ele disse arrancando com o carro afinal. Ao ouvir aquilo eu imediatamente comecei a me remoer de remorso por ter julgado o Théo do jeito que fiz no aeroporto lá no Rio. Eu havia chamado o garoto de “exibido” quando na verdade ele era apenas míope! Que vergonha! Aposto que o meu nome está na lista VIP do Inferno! Eu devo ser mesmo uma pessoa horrível... Mas em compensação, o Théo, que é uma ótima pessoa, me levou até em casa direitinho, sem correr nem nada, me

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deixando no jardim de Tia Vivian exatamente dez pra meia noite. Eu agradeci a ele várias vezes pela carona, dei tchau antes mesmo que ele pudesse pensar em abrir a porta pra mim e fui me dirigindo a entrada da casa (revoltada pelo fato de minha mãe ser uma fascista e minha vida uma piada adolescente) quando o Théo saiu do carro e me chamou. “O passeio pro Sea World ainda está de pé, certo?” ele perguntou se apoiando no teto do Land Rover. “Sea o quê?” eu rebati, já que eu não tinha entendido nadinha. “O parque marinho da baleia que eu comentei com o seu irmãozinho.” Oh, então esse era o nome do tal lugar... “Ah... Está de pé sim.” eu respondi. O Théo me deu um sorriso enorme, disse que a gente se veria em breve e já ia entrar no carro quando chamou meu nome de novo. “Sabe o que é engraçado?” ele disse tirando os óculos. “Eu tenho tentado te achar no Orkut, no Facebook, no Buzz, no Twitter e tudo que é rede social possível e de repente te encontro em pleno Ale House e ainda descubro que você mora a apenas cinco minutos de carro da minha casa.” “Que coincidência, não é?” eu disse meio que rindo. “Não. Eu não acredito muito em coincidências.” o Théo afirmou e depois de se despedir de mim dizendo “Durma bem, Cinderela. Sweet dreams.” entrou no carro, saindo rapidamente da Pineapple Court. E neste exato momento, a Alice, a Ana, o Vini, o Mark, o Théo e a namorada dele devem estar se divertindo no Ale

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House enquanto eu estou aqui, debaixo dos lençóis, escrevendo neste diário e vendo meu irmãozinho vestido com o pijama do Bob Esponja se remexer freneticamente ao lado da minha mãe na cama por causa de um pesadelo. Acho que não preciso repetir o quanto esse mundo é injusto, preciso?

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08 de Junho (quarta-feira) casa de Tia Vivian. 13:40-Hoje de manhã bem cedo eu fui ao mercado com o Vini pra gente comprar algumas coisas que começaram a faltar em casa (também com um aumento recente da população de moradores desse lugar, não me admira que a dispensa fique vazia rapidinho). A gente já tinha enchido o carrinho de compras com coisas de extrema necessidade (leia-se saco de Doritos, batata Lays, biscoito Oreo, barras de chocolate Sneackers..) e passado na padaria do Wal-Mart, quando o Vini fez a pergunta que eu tanto temia ultimamente. Não, graças ao bom Deus, não tinha nada haver com o antigo tópico Babi-amava-Vini, porque se ele tivesse mencionado isso eu teria entrado em combustão espontânea com certeza. Na verdade o assunto foi outro... “Que amigo da Ana te trouxe pra casa ontem?” ele quis saber enquanto tirava as coisas do carrinho de compras e colocava em cima do caixa. Eu congelei. A Ana tinha inventado uma mentira pro Vini, sabe-se lá Deus porque, e tinha dito que ontem, como ele estava demorando muito pra voltar, pediu pra um amigo dela me levar em casa. Só que ela disse assim mesmo: um amigo. Não especificou nome nem nada! E agora? O que eu iria fazer? Contar a verdade ou continuar com a mentira?

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Tic-Tac, Tic-Tac. Vamos lá, Babi! Pensa rápido! Tic-Tac. Tic-Tac! “Ah, não lembro o nome agora. Era um loirinho bem simpático.” eu disse na maior cara lavada, cuspindo a primeira coisa que me veio a cabeça. “Engraçado. Eu achava que todos os amigos da Ana ainda não tinham carteira.” O Vini rebateu. “É, ele não tinha mesmo. Tirou faz pouco tempo”. Eu disse colocando o saco de pão em cima do caixa. Meu Deus! Como é que eu consegui me transformar numa metralhadora de mentiras assim tão rápido? Danação eterna no inferno, aí vou eu! “Não sabia que a Ana tinha amigos mais velhos. Pra mim eram todos pirralhos que estudavam com ela.” meu primo disse me encarando. Eu fiquei paralisada. Afinal, eu já tinha ido longe demais com aquilo e não era tão criativa assim pra continuar com a encenação. Por sorte a operadora de caixa do Wal-Mart perguntou alguma coisa pro Vini e ele se virou pra responder, me livrando da tremenda “saia justa” que a Ana tinha me enfiado. Foi então que eu aproveitei pra mudar o assunto. Expertamente perguntei ao Vini o que a mulher tinha dito e meu primo explicou que ela só queria saber quantos pães tinha no saco que a gente pegou na padaria. Eu achei aquilo super estranho, porque ela não conferiu o saco nem nada pra ver se o Vini estava mentindo, mas meu primo disse que aqui as pessoas são assim mesmo. Elas

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realmente acreditam umas nas outras. Às vezes “dar” a sua palavra já é o suficiente pros americanos. “Isso só não funciona no Brasil...” o Vini afirmou “...porque lá a maioria das pessoas tem a mania de dar uma de esperto, querer levar vantagem em tudo. Minha mãe disse que isso tem até nome. Se chama “lei de Gérson”. Você conhece a lei de Gérson, Babi?” “Não...” Eu respondi meio pensativa “... só a ‘lei de’ Gaga”. Hã? Hã? Entendeu o trocadilho? Entendeu? Lei de Gérson... Lady Gaga... Não. Pela cara do meu primo ele não tinha entendido. Enfim. Pelo menos isso fez o Vini esquecer o assunto sobre o tal amigo misterioso da Ana e não me perguntar mais nada depois, nem mesmo quando a gente estava no carro voltando pra casa. Agora, o que eu não entendo é por que minha prima mentiu pro Vini. Será que além de caladão ele é do tipo ciumento e superprotetor também? Vou perguntar pra ela assim que ela voltar da casa da Carol. 19:20- Nem sinal de vida da Ana. E o Théo ainda não ligou pra marcar o passeio pro Sea World. Não que eu esteja esperando ou coisa assim. Só... sabe... Achei que ele ia ligar... 20:37- Finalmente desinfetei meu aparelho! Agora é só usar aquela maldita aranha de acrílico... ou não! Estou pensando seriamente em aposentá-lo precocemente!

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23:12- E ainda nada da Ana. Acho que ela vai ficar na casa da amiga. Vou dormir. P.S.: O único telefonema que recebemos a noite toda foi o de tia Vera querendo saber como a gente estava aqui nos Estados Unidos. Minha mãe achou estranho o jeito que eu fui correndo pra atender. Eu só não queria que a pessoa ficasse muito tempo esperando na linha, ora!Tem algum mal nisso? Imagina se fosse a Mari?

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09 de Junho (quinta-feira) casa de tia Vivian 09:58- Hoje minha irmã resolveu me ajudar um pouco com a língua inglesa. Na verdade ela só usou isso como desculpa pra fugir do Dani que queria ficar jogando “Uno” com ela, mesmo ele não sabendo as regras direito e ainda sempre se achando o ganhador no final – experimente só dizer pro guri que ele perdeu pra ver o que te acontece! A Alice achou que seria legal me mostrar algumas frases que podiam ser úteis no dia-a-dia. Então aqui estão elas:

I’m so sorry. It was an accident. Tradução: Me desculpe. Foi um acidente. (o-ho-ho essa eu vou usar com certeza!) No problem! Tradução: Sem problema! (dã, essa eu já sabia) Nice to meet you. Tradução: Prazer em conhecê-lo. (idem acima) You’re welcome. Tradução: De nada. Sorry, I don’t understand.

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Tradução: Desculpe, não entendo. (outra que vai ser uma ‘mão na roda’!)

My feet stink and I smell like a monkey. Tradução: Você sabe onde fica o banheiro? Opa. Espere aí! “Monkey” não é “macaco” em português? Quando é que um símio teria alguma coisa haver com banheiros? Será que é algum tipo de expressão? 10:07- Está vendo? É isso que dá ouvir a irmã mais velha! O Vini me explicou o real sentido da última frase. Segundo ele eu acabei de dizer que “Tenho chulé e cheiro igual a um macaco”! Rá! Essas maldades são bem a cara da Alice mesmo! Mas vai ter volta maninha. Uma hora você vai ter que dormir e aí... Muáhaha! (pequena-esfregada-de-mão-no-estilo-vilão-sádico) 11:33-Minha prima chegou em casa a alguns minutinhos atrás e quando eu perguntei porque ela tinha mentido pro Vini, a Ana só disse que era pra facilitar as coisas. Ahn? Tipo, facilitar o quê?????????? Ela estranhamente não disse. Só riu pra mim e fechou a porta do quarto na minha cara, pois queria se trocar. Eu hein! Será que o sol quente da Flórida fritou os miolos da minha prima? Garota doida...

23:59- E o Théo não ligou hoje também. Pena...

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10 de Junho-Sexta-feira (sala de tia Vivian. 02:34- É madrugada ainda, mas eu não consigo dormir. Fiquei rolando um tempão na cama e agora a pouco fui na cozinha beber água. Quando passei pela sala, reparei que o Vini tinha deixado o notebook dele bem em cima da mesa de jantar. Como eu estava meio sem sono decidi usar ele um pouquinho pra ver se havia algum recado novo da Mari. Sei que eu não tinha pedido permissão ao Vini nem nada, mas naquela hora ele já devia estar no quarto sono e de qualquer maneira tenho certeza que se eu tivesse pedido ele teria deixado eu usar o “note” dele. Tomando todo o cuidado pra não fazer barulho, liguei o computador, entrei na internet e fui logo ver a minha página de recados. A Mari, como sempre, tinha deixado dúzias deles dizendo que estava sentindo minha falta (e me contando algumas fofocas também), mas o que realmente mexeu comigo foi ver os recados que os meus amigos e colegas de turma tinham deixado um pros outros: Roberta: Galera, estamos querendo marcar cineminha pra esse sábado. Tá passando um filme tri legal do Adam Sandler no Unicshopping. Quem quer ir? Há 06 horas *Curtir * Comentar

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Camilinha: Eu e o Felipe estamos dentro! Isabella: Se for comédia vou sim! Quais são os horários das sessões? Douglas: A gente se encontra onde? Lá em Lajeado mesmo, em frente ao cinema? Luisa: Já estou lá! Isso se alguma alma caridosa me der carona né... Mari: Vou também. Preciso rir um pouco. Quer ir comigo Lú? Minha mãe leva a gente de carro. Bia: Povo do cinema. Domingo vamos num rodízio de pizzas? Há 4horas* Curtir * Comentar Douglas: V6’s querem me quebrar financeiramente nesse fds, mas tudo bem. Onde, como e quanto $$$$$$? Isabella: Estou de dieta, mas vou sim. Sempre tem umas opções de saladinhas nesses lugares... Cecília: Tu vai num rodízio pra comer folha, Bela? Vamos ser felizes no catupiry que é muito melhor! ^^ Nando: Vamos sim. Definam o lugar logo, plz! Mari: Pipoca, pizza... Vou virar uma bola, mas vou! Camilinha: Abriu uma Pizzaria muito boa em Lajeado, perto do shopping, mas se vcs quiserem ficar por aki. Tudo bem.

Pode parecer estranho, mas eu fiquei com certa inveja da animação da minha antiga turma marcando pra sair no fim de semana. Porque será que doía tanto ver os meus amigos

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levando normalmente a vida deles sem mim? Como se eu não existisse mais? Era tão estranho, tão anormal, tão... tão... angustiante! Por mais que eu soubesse que isso um dia iria acontecer, de alguma forma eu me senti passada pra trás. Ou melhor dizendo, esquecida. Porque era isso que eles tinham começado a fazer: esquecer de mim! Ninguém soltou um réles comentário do tipo: “Ah, que pena que a Babi não pode ir com a gente!” ou “Queria que a Babi estivesse aqui”. Não! Nada! Zero! Bárbara se foi e agora é vida que segue! Até a Mari, que parecia estar sentindo absurdamente minha falta, já estava arranjando programas pro fim de semana e eu nunca mais vou poder fazer parte deles de novo, por mais que queira. Fiquei tão chocada com essa constatação, que nem mesmo tive estômago pra ver o resto das mensagens. Desliguei imediatamente o computador com os olhos cheios de lágrimas e corri pro quarto pra pegar esse diário. Mas eu não quero e não vou chorar por causa do que eu acabei de ver! Só preciso botar pra fora toda essa frustração de estar nessa terra estranha chamada Estados Unidos. Só isso... Tenho certeza de que vai ser o suficiente pra eu melhorar.

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