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Angelus

Chris Salles


“As lágrimas e os suspiros estavam em mim congelados antes de

ouvir o canto dos anjos. Mas, ao sentir a compaixão que demonstravam por mim [...] o gelo em volta do meu coração derreteu, e a angústia se transformou em lágrimas que fluíram pelos meus olhos, e choro que escapou pela minha boca.” A Divina Comédia (Purgatório­Dante Alighieri)


­Capítulo um­ Nas profundezas do metrô

O céu era todo cinza. Nuvens densas e ameaçadoras agora mordiscavam os últimos andares dos edifícios de Manhattan. Chovia muito, como nunca tinha se visto antes. O departamento de metereologia não havia previsto tal dilúvio e o canal do tempo sequer havia mencionado a possibilidade de precipitação para hoje. “Bebam muita água e usem roupas leves” aconselhou o apresentador de um outro canal diante de um mapa polvilhado por minúsculos sóis, “Será um dos dias mais quentes do ano”. E de fato tinha tudo para ser. Graças à terrível onda de calor histórica que havia se instalado desde o começo de setembro, os termômetros naquela semana oscilavam sempre na casa dos quarenta graus. Esperava­se que qualquer outra coisa pudesse cair daquele céu azul, exceto chuva. Mas contrariando os sábios homens da ciência, ela veio. E devastadora. Eu me encontrava caminhando pela Rua Broadway, em direção ao metrô da estração Cathedral Parkway, quando senti os primeiros pingos grossos e frios salpicarem minha testa. Um clarão pode ser visto ao longe, mais precisamente ao sul da cidade, e o céu rugiu logo depois disso fazendo os vidros de algumas lojas próximos a


mim vibrarem intensamente. Ventava muito também, tanto que meus longos cabelos negros pareciam finíssimos chicotes açoitando meu rosto fino e pálido. Aquele com certeza não era o meu dia. E muito menos o dia de sol que eu esperava. Caminhando desajeitada devido a minha total inaptidão para lidar com tal condição climática, adiantei o passo na tentativa de chegar à estação do metrô antes que o dilúvio pudesse desaguar sobre minha cabeça. Mas já era tarde demais. Em uma questão de segundos as gotículas antes espaçadas tornaram­se cada vez mais freqüentes e intensas, até que o temporal arrasador se abateu sobre Manhattan afinal. Eu sabia que era algo tecnicamente impossível de ocorrer, mas tive a sensação de que toda a água do mundo caia naquele exato momento sobre mim. Apesar do calor, era uma chuva fria, poderosa, que gelava até alma e machucava a pele com suas gotas gigantescas. Senti o peso da roupa aumentar. Agora as meias cinza e a saia plissada do uniforme ridículo de minha escola pareciam mais escuras em relação ao tom que possuíam usualmente. Era incrível como que em tão pouco tempo eu havia ficado encharcada. Meus cabelos, antes revoltos, já não incomodavam mais, estavam colados ao meu crânio, ensopados como minha alma. Mesmo certa de que o fazia em vão, tirei minha mochila das costas e a acomodei sobre o peito na tentativa de protegê­la da chuva com o blazer do uniforme. Mas não havia nada de nobre em minhas


intenções. Eu estava pouco ligando para o material escolar, se quer saber. O real propósito daquilo tudo era impedir que a chuva maculasse meu Ipod e o exemplar raro de “Carrie, a estranha”, autografado por um ainda desconhecido Stephen King, livro esse que eu havia recém adquirido no Ebay depois de muito trabalho e horas insones acompanhando os lances na internet. Aliás, este livro era o principal responsável por eu me encontrar toda molhada daquele jeito em pleno lado oeste da cidade. Desafiando a tormenta que se avizinhava nos céus, eu havia resolvido voltar para a escola onde meu precioso exemplar do King jazia esquecido, por pura distração minha bem embaixo da carteira. Podia até parecer bobagem, mas eu não conseguiria dormir tranquila sabendo que o primeiro exemplar da primeira obra publicada pelo meu autor preferido encontrava­se abandonado em uma sala de aula qualquer, a mercê de um faxineiro qualquer, que o trataria apenas como mais um livro velho e sem valor. Não, eu não poderia deixar que isso acontecesse, por isso decidi voltar a Saint Vincent, ignorando o cheirinho de chuva que já se espalhava pela Rua Broadway. Se mamãe estivesse ao meu lado naquele momento, com certeza diria “Camillie minha filha, você é uma adolescente muito boba”, mas ela nunca seria capaz de imaginar o quanto aquele livro tinha sido desejado por mim. Eu havia trabalhado na pizzaria de minha família, em pleno fim de semana, para ver se conseguia alguns trocados. E


isso era quase uma tortura. Não que eu tivesse algo contra pizzarias, só odiava servir mesas. Além do mais, as gorjetas nem eram tão boas assim, mas tendo em vista que minha mesada pertencia ao roll das piadas mais hilariantes da face da terra, ou eu encarava o trabalho de garçonete por dois dias ou ficava sem o livro. Perdi as contas de quantas vezes me queimei com as formas escaldantes onde se serviam as pizzas. Contudo, ao menos eu estava agora a caminho do metrô, com o meu exemplar raro bem guardadinho dentro da mochila e isso me fazia feliz. Mesmo que Deus tivesse mandado o próprio dilúvio se abater sobre Nova York só para estragar essa felicidade. Chateada com o todo poderoso e um pouco irada com os malditos homens do tempo – que definitivamente haviam perdido minha confiança­ comecei a correr na tentativa de vencer os pouquíssimos metros que ainda me separavam da estação do metrô. Apesar de eu ter em mente que quanto mais corresse, mais ficaria molhada, ignorei por completo esta informação e me pus a toda velocidade em direção ao metrô da Cathedral Parkway. Havia muitos guarda­chuvas quebrados rolando pelo chão e outros sendo arrastados pelas violentas rajadas de vento. As árvores da Rua Broadway agora pareciam curvar­se em reverência a magnitude do vendaval que tomava Manhattan. Meu blazer verde musgo já havia absorvido toda água que caíra sobre ele e eu sabia que mais cedo ou mais tarde, a umidade iria


atingir o interior da mochila também. Eu poderia sobreviver perfeitamente sem o livro de Trigonometria da escola, mas nunca sem meu Ipod e o livro do King. Isso é fato! Corri ainda mais, tanto quanto pude, até que cheguei afinal na intercessão da Broadway com a Rua 110. O caminho de minha escola até o metrô não era longo, mas a chuva intensa parecia ter desvirtuado a noções físicas de tempo e espaço. Desci então as escadas da estação com pressa, os degraus parecendo mini cascatas tamanha a quantidade de água que ainda caía dos céus. Caminhei com minhas sapatilhas molhadas até a plataforma do metrô onde outras pessoas – pelo visto seres tão crédulos na metereologia quanto eu ­ também se encontravam encharcados, apenas a espera do trem que as levaria para seus lares secos e quentinhos. Não precisando mais protegê­la, tirei a mochila debaixo do blazer e coloquei­a nas costas de novo. Ao me apoiar na parede coberta por pequeninos azulejos que formavam um belo mosaico com o nome da estação, torci uma meia de cada vez da melhor maneira que pude para que, sem o peso da água, elas voltassem a ser três quartos novamente. Só que ambas estavam tão frias e ensopadas que a gravidade não permitia a saída delas da altura de meus tornozelos. Vendo a situação lastimável de minhas roupas e cabelo, cheguei à conclusão de que se tivesse ficado mais um minuto sequer debaixo de toda a água que cai lá fora, com certeza eu teria desenvolvido


guelras! Mas agora, protegida pelas profundezas do metrô nada mais me atingiria... Eu estava segura. Gélida e encharcada, é verdade, mas segura. Sentadas em um banco perto de mim, duas mulheres conversavam sobre a mudança repentina do tempo. A mais nova cuspia teorias ecológicas e atribuía o dilúvio ao aquecimento global enquanto a mais velha apenas revoltava­se contra a ineficiência da previsão metereológica para aquele dia. Era uma conversa chata, entre pessoas chatas, e a demora do metrô me fazia ter de ficar ali ouvindo­as. Nesse meio tempo, um mendigo entrou na estação e caminhou até bem próximo de onde eu estava. Não fazia idéia de como ele havia parado ali, se tinha comprado um ticket por ele mesmo ou pedido a alguma pessoa, mas era óbvio pelos seus farrapos úmidos que o temporal havia encontrado ele também. As duas mulheres que conversavam pararam de falar instantaneamente quando o viram. Nenhum comentário sobre aquele velho homem saiu de suas bocas, mas nem era preciso. Toda a repulsa que sentiam podia ser vista naqueles dois pares de olhos. Elas não conseguiam perceber que ele era apenas mais uma vítima que havia sido mastigada e depois cuspida pelo sistema. Com sua longa barba branca e trajando algo tão sujo que talvez um dia já tenha sido considerado uma roupa, ele passou por nós ignorando os olhares preconceituosos e prostrou­se bem no meio da estação, ereto e rígido, semelhante às pilastras de concreto e


azulejos brancos que davam sustentação ao teto do metrô. Apesar de sua camisa ter grandes furos e a inscrição na sua fronte parecer um tanto apagada, ainda consegui distinguir o que nela estava escrito. Era “I Love NY”. Claro que parte de minha dedução devia­se as iniciais de Nova York e ao desenho do coração ainda estarem levemente visíveis na camisa, mas a questão central daquilo tudo era que enquanto ele ostentava um ícone tão global de amor a cidade, mesmo que tivesse apenas ganho a camiseta de alguém, ironicamente a cidade não o amava. Enquanto eu divagava a respeito de como o mundo podia ser tão injusto, o velho mendigo ergueu suas mãos sujas em direção ao teto do metrô. Esqueci minhas críticas sociais por um momento e olhei para ele com atenção. Na verdade, boa parte das pessoas que estavam na plataforma começou a encará­lo cheios de curiosidade. O mendigo respirou fundo enquanto fitava o chão do metrô e só depois apontou a cabeça para a mesma direção em que seus braços se encontravam. Depois de alguns segundos em silêncio, ele se manifestou. ­É chegada à hora. Eles estão vindo. Sei que estão. ­ berrou a plenos pulmões­ São eles, os moradores do outro lado, e alguns já estão entre nós! Já estão entre nós! Naquele momento as luzes da estação piscaram e um vento frio, originado de lugar algum, varreu os muitos papéis que se encontravam jogados pelo chão. Algumas pessoas ficaram


chocadas, não pela mensagem profética, afinal Manhattan possuía tantos pseudo­profetas de esquina quanto carroçinhas de cachorro quente, mas sim porque os olhos daquele homem reviravam­se em suas órbitas, como se ele estivesse tendo um ataque de loucura ou qualquer coisa do tipo. Não tive medo. No entanto seria impossível para eu agüentar mais do que cinco minutos que fosse ouvindo aquelas frases sem sentido repetidas aos berros. Afinal quem estava vindo? Os E.T.s? Jesus Cristo e os Apóstolos? Os Beatles? Ou os médicos do sanatório de onde aquele mendigo provavelmente tinha saído? Por sorte o farol do trem começou a surgir em meio ao obscuro túnel do metrô e eu agradeci a Deus por ele ter enfim ouvido minhas preces. Quando as portas do vagão se abriram, a maioria das pessoas já se aglomerava diante delas, ansiosas para o embarque. Fui uma das últimas a entrar na composição. Os gritos do mendigo ainda ecoavam pela plataforma quando me sentei no único lugar disponível dentro do trem. E foi aí que o pseudo­vidente começou a me encarar pela janela. Ele ainda se encontrava na mesma posição desde que havia chegado à plataforma: ereto, rígido, com os braços em riste, mas dessa vez olhava direto para mim. ­Eles estão vindo, eles já estão entre nós! – o mendigo repetia em transe, como se a frase fosse um mantra. ­ Eles estão vindo, eles já estão entre nós...


Até que ele deixou os braços caírem ao longo do corpo, talvez por puro cansaço, e começou a caminhar lentamente em direção ao vagão onde eu estava. ­Mas eles não estão atrás de mim, não, não estão. Eles querem você, só você. Oh sim, eles querem você. Porque é necessário o toque da morte para que os outros se levantem. – sussurrou ele com seus olhos castanhos fixos em mim. Não sei por qual motivo, mas aquela cena bizarra começou a me assustar. Eu não era do tipo de garota que temia qualquer coisa, na verdade eu era até bem corajosa. Só que o ar insano daquele velho pedinte não me inspirava confiança e, além disso, ele estava vindo bem na minha direção, com seu tom de voz aumentando a cada passo arrastado e os punhos cerrados com toda a força. Ok, agora eu sabia por que estava alarmada. Parecia que o mendigo iria me atacar! ­Eles querem você, querem você menina! – repetia para mim. Prestes a pisar na faixa amarela de segurança que a plataforma exibia e sua entrada no vagão parecendo algo iminente, as portas do metrô se fecharam para o meu alívio, me poupando de ter de aplicar um chute bem na parte mais sensível da anatomia daquele mendigo, coisa que eu estava planejando fazer caso ele ousasse encostar um dedo sequer em mim. O trem então começou a ganhar um pouco de velocidade e se arrastar pela estação, mas o mendigo ainda assim não desistiu.


Correndo ao lado da janela conforme o vagão se movimentava, ele golpeou o vidro várias vezes com os próprios punhos. ­Eles querem você! – berrou de novo, fazendo sua voz grave se misturar ao barulho gerado pela aceleração do trem. ­ Querem você... Camillie! Mas ele não pôde continuar com aquilo por muito tempo. A velocidade do vagão aumentou exponencialmente e, antes mesmo que eu pudesse perceber, já estávamos dentro de um túnel sombrio, nos dirigindo a estação seguinte. Sentada, com meu cabelo ainda gotejante e tentando normalizar a acelerada respiração de meu peito, me peguei pensando em tudo que aquele alucinado havia dito. É claro que não acreditava em baboseiras ditas por pseudo­profetas, eu era cética demais pra isso, mas o incrível, ou melhor dizendo, o aterrorizante de tudo aquilo é que tive a impressão de ter ouvido meu nome ser proferido pelo mendigo. Apenas uma vez, é verdade, no entanto eu poderia jurar que ele havia mencionado o nome “Camillie” em meio a seu ataque de loucura. Mas não, isso era impossível. Como poderia aquele sem teto me conhecer sem que eu o conhecesse? Ter escolhido um nome ao acaso também soava tão improvável quanto. Camillie não era algo que se podia chamar de nome comum. Ashley, Megan, Lily... Esses sim você ouvia a toda hora, já o meu não. De fato ele não era exótico, mas também não era tão usual assim.


Então a única explicação plausível para aquele estranho episódio era, no final das contas, a mais simples de todas: eu tinha ouvido errado! Talvez a combinação entre o ruído alto do trem em movimento, mais minha audição arruinada por anos de Ipod no volume máximo fosse a real responsável por aquela ilusão sonora. Não havia outra explicação e era naquela que eu deveria acreditar. Meus sentidos haviam me enganado, só isso... Depois do estranho evento com o mendigo, não tardou muito e o trem chegou à Columbus Circle, a estação de transferência para as outras linhas do metrô. Como eu morava no Village, me dirigi até o outro andar onde poderia pegar a linha A e seguir direto para casa, sem mais delongas. Ao chegar à plataforma, ainda um pouco irada com minhas roupas que se recusavam a secar, logo avistei um uniforme verde musgo da Saint Vincet em meio às pessoas que se aglomeravam na estação. Dentro daquele blazer e saia plissada xadrez ridícula havia uma garota ruiva, baixa, muito magra. Seu rosto comprido e queixo reto já me eram familiares. Ela estava presente em quase todas as matérias que eu fazia na escola e, além do mais, morava no Village também, o que acabava por fazer com que sempre nos esbarrássemos nas estações do metrô. No entanto, apesar de todas essas coincidências, não éramos amigas. Ela nem mesmo deveria saber como eu me chamava, apesar do sobrenome italiano “Angelus” não ser tão fácil de se esquecer, dado os inúmeros e normais McCallister, McDougal e


outros Mc’s que representavam quase um terço de minha turma na Saint Vincent. Ela talvez não fizesse idéia de quem eu era, mas eu sabia seu nome. Por que Jordan Mitchells e eu éramos de certa forma parecidas, a nível de personalidade é claro. Vivíamos reclusas em nossas bolhas pessoais e não fazíamos parte de nenhum grupinho da turma. Líderes de torcida? Nerds? Atletas? Pessoal do grêmio estudantil? Não, não pertencíamos a nada mesmo. Passávamos a maior parte do tempo isoladas, em contato apenas com nossos próprios pensamentos, mas isso também não nos tornava mais próximas. Era como se a falta de interação com os outros alunos da turma fosse algo que desejássemos e não resultado da exclusão social que eles nos impunham. Nós duas havíamos transformado a dor de não fazer parte de nada, na virtude ­ mentirosa ­ de apenas não querermos estar inclusas. Talvez por que houvesse algum resquício de dignidade nisso. Em meio à pequena multidão que se amontoava na plataforma, Jordan virou seu rosto na minha direção. Ela havia me reconhecido com certeza, mas não me cumprimentou, coisa que eu de certa forma já esperava. Dando as costas para mim, ela penetrou no vagão que havia acabado de chegar à plataforma do metrô e, balançando seu rabo de cavalo ruivo, correu para se acomodar em um banco antes que uma mulher gorda o fizesse. Como eu também não estava disposta a ir em pé até o Village ­já me bastava estar ensopada dos pés à


cabeça­ me infiltrei por entre as pessoas valendo­me de minha estatura medíocre e ainda consegui um lugar que ficava, por coincidência, dois assentos depois de onde Jordan havia se sentado. Já acomodada, joguei minha cabeça para trás encostando minha nuca na parede do trem na ingênua tentativa de descansar. O episódio com o mendigo ainda atordoava um pouco meu pensamento, mas tudo o que eu queria agora era esquecer que eu estava dentro de um vagão lotado com um bando de gente mal humorada, que não sabia fazer outra coisa a não ser reclamar do tempo. Enquanto isso, dois bancos depois de mim, Jordan havia aberto o zíper de sua mochila com uma violência absurda tirando logo em seguida de seu interior o fichário que usava na escola. Ao escancará­ lo, arrancou uma folha de papel, a qual apoiou de qualquer jeito sobre os joelhos, e começou a esboçar um desenho com traços fortes e marcantes. Parecia furiosa, as narinas dilatando­se conforme sua mão esquerda riscava o papel de alto a baixo quase rasgando­o. Ao contrário das pessoas a nossa volta não fiquei impressionada com a cena. Já tinha visto Jordan fazer aquilo outras vezes e, mesmo diante da impetuosidade quase insana que ela exibia agora enquanto manuseava sua lapiseira, eu sabia que no final das contas tudo aquilo iria resultar em um misterioso desenho que ninguém nunca veria. Já que minutos depois ela o rasgaria como de costume, sem demonstrar qualquer apreço pelo o que havia feito. Cara, Jordan


era mesmo esquisita, mais até do que eu, se é que isso podia ser possível... Tentando esquecer as atitudes bizarras de minha colega de turma e procurando descansar um pouco enquanto o trem se dirigia ao Village, inclinei ainda mais minha cabeça cerrando meus olhos logo em seguida. Eu não estava com sono, não queria dormir, apenas relaxar durante algum tempo antes que meu cérebro começasse a produzir as enxaquecas horríveis que eu tinha desde criança quando ficava muito estressada. No entanto, em poucos minutos com os olhos fechados senti um leve torpor espalhar­se pelo meu corpo e, no instante seguinte, eu já estava completamente letárgica, mole e indefesa feito um bebê no banco do metrô. E então como se tivessem passado anos ou eras desde que eu havia adormecido naquele trem, meus olhos se abriram devagar, reticentes a enfrentar a claridade das luzes artificiais do vagão. Mas ao contrário do que eu supunha, não havia luzes, nem metrô ou mesmo Jordan ali. Eu me encontrava agora em um pequeno terraço, cercado por grades pretas de ferro e intercaladas por pequenas vigas maciças de concreto. Sob minha cabeça estendia­se um céu cheio de estrelas, ofuscado apenas por uma grande lua cheia que deitava seus raios leitosos sobre aquela imensa abóboda escura. A saia plissada e o blazer verde musgo da Saint Vincent não estavam mais em meu corpo, ao invés disso, havia um belíssimo vestido branco de rendas e tuli, que se derramava com graciosidade


sobre minha pele. Meus cabelos se sacudiam freneticamente ao sabor do vento forte que gemia a minha volta e fazia meu corpo tremer devido ao frio quase que insuportável que fazia naquele lugar. Eu ainda não sabia exatamente onde estava, mas deduzi pelas lunetas de observação posicionadas perto das grades que devia ser o deck de algum famoso prédio de Manhattan, onde visitantes e turistas iam tirar fotos ou apenas aproveitar a vista maravilhosa da cidade. Sem entender como eu havia parado ali, me encaminhei até a grade de proteção do edifício e, ao olhar por cima dela, pude ver um outro deck de observação mais abaixo de mim, além de um denso mar de prédios iluminados se estendendo a minha frente. Por alguns instantes fiquei apenas apoiada sobre a grade, inalando o ar transparente da noite e admirando a brilhante cidade que estava ao meu redor. Daquele pequeno Deck ela parecia tão tranquila e tão silenciosa que era incrível afirmar que aquela enorme selva muda de pedra tratava­se mesmo da agitada Manhattan. Barulho de pessoas, carros, sirenes de ambulâncias... Nenhum desses sons parecia forte o suficiente para alcançar o topo daquele edifício. Estranhamente a única coisa que eu conseguia ouvir era o badalar de sinos ao longe, com certeza vindo de alguma igreja que ficava pelas redondezas. Na imponência do prédio onde eu estava a cidade parecia em paz, como se estivesse adormecida... De repente uma estranha sensação percorreu meu corpo tal qual uma descarga elétrica e o horizonte até então iluminado por pequenos pontos difusos de luz foi tomado por uma vasta escuridão.


Na mesma hora as luzes dos prédios ao sul da ilha começaram a se apagar e, como num efeito dominó, todos os demais edifícios próximos onde eu estava foram se apagando também, um após o outro, até que em poucos segundos toda a Manhattan ficou as escuras, tendo apenas a luz da lua como iluminação. Meu corpo tremeu graças a um calafrio originado em minha espinha e todos os pêlos de meu braço eriçaram­se. Havia uma movimentação ao longe, a qual não percebi a princípio o que era, mas bastou que eu fixasse bem meus olhos no horizonte para ver um denso nevoeiro rumando em direção a cidade. Ele veio deslizando rapidamente pelo sul da ilha, cobrindo tudo com seu manto branco e engolindo de forma silenciosa os imponentes prédios que se erguiam a alguns quilômetros de mim. Não demorou muito para que o famoso edifício Empire State desaparecesse diante de meus olhos envolto naquele véu esbranquiçado. Os sinos de uma igreja começaram a badalar de novo, só que em um ritmo muito mais arrastado do que eu ouvi antes. Parecia uma sinfonia melancólica se espalhando em meio à vaga, um gemido de adeus talvez... O misterioso nevoeiro aproximou­se numa velocidade absurda e, movida por um estranho medo que tomou meu corpo, dei alguns passos pra trás conforme a densa cortina branca começava a envolver o terraço do prédio onde eu estava. Fui engolida pela neblina num piscar de olhos. Quando girei ao meu redor, percebi que nada mais podia ser visto a menos de cinquenta centímetros de distância. Repentinamente, cruzando a


pesada bruma que se espalhava pelo ar, alguém gritou e fez meu coração dar um salto. ­Millie! Millie! – uma voz maravilhosa berrou meu apelido. Eu olhei para todos os lados tentando encontrar a pessoa que me chamava, até que vi a poucos metros de mim uma sombra negra vagamente destacada em meio a toda aquela nuvem branca. Sem pensar corri até a tal figura e quando a fitei bem de perto meu sangue gelou­se dentro das veias. Apesar de eu não conseguir ver seu rosto, já que a pessoa usava um capuz escuro cobrindo mais da metade de sua face, senti minhas estranhas serem tomadas por uma estranha agonia. Dei um passo pra trás, recuando assustada, ao que a pessoa desconhecida começou a caminhar em minha direção. ­Foi o amor que trouxe seu protetor aqui, mas nem mesmo ele poderá salvar sua alma Camillie. – o homem disse com voz de trovão, enquanto tirava uma reluzente espada de dentro da capa. ­ Sua despedida desse mundo é apenas uma questão de tempo. Não tente lutar contra o destino. Ao som daquelas palavras ameaçadoras eu continuei recuando, andando de costas e, quando me virei para fugir, o homem me agarrou por trás colocando o gume afiado de sua espada sob meu pescoço, o que fez meu coração bater de forma enlouquecida. Um cheiro horrível de podridão penetrou meu nariz conforme o homem roçava seu rosto em meus cabelos e, meio que embriagada pelo medo, eu não consegui tomar nenhuma atitude para me desvencilhar


dele. As lições de defesa que aprendi nas aulas de Krav­magá pareciam inúteis naquele momento. O vento uivou, só que bem mais forte dessa vez e começou a soprar em rajadas violentas. Senti algumas gotículas frias de chuva salpicarem minha face. ­Adeus Angelus. Vejo você no inferno. – o desconhecido sentenciou em meu ouvido, apertando a lâmina de sua espada contra minha pequena jugular. No mesmo instante senti algo afiado lacerar a carne de meu pescoço e, logo em seguida, um líquido quente começar a escorrer pelo ferimento. Em meio a um suspiro de agonia meus olhos se abriram de forma abrupta. A claridade promovida pela luz do metrô inundou minhas orbitas oculares e eu meio que dei um solavanco no assento do trem devido ao susto. Automaticamente levei minhas mãos até o pescoço procurando pelo corte que tinha sofrido, mas ao invés disso, encontrei apenas as três pintas esquisitas e simétricas que eu possuía no lado esquerdo, alguns centímetros abaixo do maxilar. Foi aí então que me dei conta de que tudo aquilo não havia passado de um pesadelo horrível e sem sentido, formulado por um cérebro que estava acostumado demais com as histórias de terror contidas nos livros do Stephen King, e que provavelmente havia ficado impressionado com a atitude bizarra do mendigo na estação da Cathedral Parkway.


Ao meu redor ainda encontravam­se muitas pessoas dentro do vagão do metrô, inclusive Jordan, o que significava para meu alívio que o trem ainda não havia chegado à estação do bairro Village. Sentada a dois bancos depois de mim Jordan continuava debruçada sobre seu colo, desenhando de forma frenética enquanto exibia uma postura tão ruim que a ponta de seu nariz quase tocava a folha de caderno onde um grande desenho já se encontrava delineado. Não pude ver do que se tratava devido à distância que me separava dela, mas também minha curiosidade não persistiu por muito tempo. Eu ainda estava um pouco zonza devido ao pesadelo medonho que havia tido e, além disso, uma dor lancinante começava a tomar minha cabeça agora. A maldita enxaqueca que me assolava desde criança parecia querer voltar com força total naquela tarde, depois de semanas ausente. E o pior de tudo é que eu não podia fazer nada para contê­ la, já que havia esquecido a cartela de meu remédio Topiramato em casa, bem no criado mudo ao lado de minha cama. Por sorte não demorou muito e as luzes da plataforma onde eu deveria descer brilharam pela janela do metrô. Juntando­me a as pessoas que já haviam se levantado me coloquei em frente à porta do vagão e esperei até que a velocidade do trem diminuísse. Ao descer ainda um pouco desnorteada na estação da Rua West 4th minha dor de cabeça aumentou de uma forma absurda e, por alguns segundos, eu pensei que iria desmaiar devido à intensidade das pontadas que sentia, mas não foi isso que aconteceu.


Graças a Deus eu estava a poucos minutos de casa. Só que infelizmente eu não fazia idéia de que lá, ao invés do aguardado descanso que eu queria, havia uma notícia surpreendente a minha espera.


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