cap-03-angelus

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-Capítulo trêsAMIGOS

Meus olhos abriram-se tímidos, bem devagar. A luz da manhã já penetrava fraca pela janela do quarto quando me sentei na cama ainda um pouco sonolenta. Minha cabeça estava leve, sem qualquer resquício da enxaqueca perturbadora que havia me acometido no dia anterior. Além disso, eu não havia tido nenhum pesadelo ou mesmo um sonho que fosse, o que me propiciou uma ótima noite de sono. Ao olhar para os minúsculos ponteiros do relógio que se encontrava a minha direita, no criado mudo, constatei que havia acordado um tanto cedo para uma manhã de sábado. Meu abajur ficou aceso à noite toda, graças ao fato de eu ter dormido bem em meio a leitura de “Carrie a estranha”, então eu estiquei meu braço para desligá-lo antes que mamãe entrasse no quarto para pegar meu uniforme sujo da Saint Vincent e constatasse que eu havia gasto quase a madrugada inteira acordada. Ela nunca havia entendido minha preferência pelo silêncio da noite ao invés da agitação do dia, por isso sempre brigava comigo quando percebia que eu atravessara a madrugada em claro apenas lendo. Meu livro raro do King, o mais novo companheiro de noites insones até o momento, repousava perto de mim, envolto em um pequeno bolo de lençol gerado pelo mal dormir horrível que eu tinha. Com


uma certa preguiça, eu o peguei e pus em cima do criado mudo, ao lado do relógio despertador e da cartela agora vazia de Topiramato. Após anotar mentalmente que deveria comprar o remédio, me levantei da cama sem muita vontade e fui em direção à cozinha ainda de camisola. Queria aproveitar a última manhã em que poderia andar à vontade pela casa, já que a partir daquele dia em diante isso não seria possível, graças ao nosso novo hóspede do sexo masculino que circularia por ali. Quando entrei na cozinha pequenina de meu apartamento, vi mamãe sentada à mesa enquanto lia o Wall Street Journal, um hábito curioso que ela ainda cultivava mesmo depois de ter abandonado

a

faculdade

de

administração

devido

ao

meu

nascimento. Mais adiante, colada a pia da cozinha enquanto lavava a louça remanescente do jantar, estava Rosário Flores, nossa querida

e

deslumbrante

empregada

mexicana.

Absortas

respectivamente com os afazeres domésticos e o jornal, ambas não notaram minha presença, até que me sentei à mesa do café da manhã e as saudei. -Bom dia mãe. Buenos días Rosário. - eu disse enquanto sacudia a caixa de cereal na esperança de não encontrá-la vazia. - Oh, bom dia Millie.- minha mãe respondeu dobrando o jornal e colocando-o sobre a mesa. - Seu pai me disse que sua enxaqueca voltou. Você conseguiu dormir bem essa noite? -Como um verdadeiro anjo! A dor de cabeça passou assim que eu tomei o remédio.


-Hum. Que bom querida. Fico muito preocupada com essas suas crises constantes de enxaqueca. Principalmente quando elas vêm acompanhadas de desmaios. -Eu sei que você se preocupa mãe, mas não precisa. Eu estou bem, de verdade. Mas agora mudando de assunto, como foi a reuniãozinha com tia Hillary ontem? - perguntei enquanto me levantava para pegar uma garrafa de leite na geladeira. - Oh, o de sempre. Ela reclamou do mau comportamento de Alícia, sua prima, do valor absurdo que está gastando com a preparação da festa de dezesseis anos dela e, é claro, do quanto está insatisfeita com o marido. - Divórcio número cinco a caminho? – indaguei em tom de zombaria. - Provável. E conhecendo minha irmã como eu conheço aposto que ela já tem o marido número seis na mira. –mamãe disparou sarcástica. - E o papai? Cadê ele? – perguntei de repente, cortando o assunto depois de perceber a ausência do velho Félix à mesa. -Saiu não tem nem dez minutos. Foi à Nova Jersey pegar uma parte das coisas de nosso novo hóspede. Bem, acho que a essa altura você já deve estar sabendo sobre o novo hóspede, não é? A expressão que mamãe fez ao dizer isso me pareceu um tanto desaprovadora. Assim como ela havia sido contra o abrigo de Rosário e Nikhil em nossa casa, com certeza ela deveria ter batido o pé para a vinda desse garoto. Mas como papai tinha uma facilidade muito grande em convencê-la, aposto que ela não pode resistir por muito tempo aos apelos daqueles velhos olhos verdes italianos.


-É, sei sim. Ele me falou sobre o tal garoto ontem, assim que eu cheguei da escola. – confirmei enquanto me dirigia ao armário da cozinha a procura de uma colher. - A pizzaria estava fechada, então nós conversamos sobre isso no salão. A propósito mãe, porque a pizzaria estava fechada em plena sexta à tarde?! -Querida, pra ser bem sincera, não faço idéia. Seu pai tem estado muito

estranho

ultimamente.

Anda

pensativo

pelos

cantos

parecendo preocupado... Juro que em alguns momentos cheguei a pensar que tudo isso tinha haver com a vinda desse tal Evan. Sei que pode parecer loucura, mas cheguei a cogitar a possibilidade do menino ser filho bastardo de seu pai, daquele tipo que só se descobre quando o garoto já tem barba na cara e aí quer se recuperar o tempo perdido trazendo-o pro círculo de convivência familiar do pai. Mas essa idéia absurda saiu tão rápido de minha mente quanto entrou. Eu sei que seu pai me ama e sempre me amou demais para fazer qualquer coisa desse tipo, como ter uma amante ou um filho fora do casamento. Além do mais, eu conheci os pais do garoto e isso me tranquilizou bastante. Ao ouvir as palavras de mamãe quase cuspi nela todo o leite e sucrilhos que havia enfiado na boca. -Você os conheceu?! Mas quando foi isso? -Bem, eu acho que deve ter umas duas ou três semanas... -Duas ou três semanas?! E porque você não comentou nada comigo?! - eu indaguei parecendo desnorteada. Na verdade eu estava extremamente indignada naquele momento. Talvez todo mundo, até mesmo nossos empregados da Pizzaria, já soubessem da


vinda desse garoto pra cá e eu, pelo visto, havia sido a ultima a ser notificada. Quanta consideração familiar, não acha? -Porque todo esse escândalo Camillie? Evan é só mais um desses meninos nerds que vivem o tempo todo enfurnados no quarto apenas estudando. Não seja tão dramática... -Então você o viu?! – eu perguntei estranhamente exaltada deixando a colher repleta de leite escapar de meus dedos e cair no chão reluzente da cozinha. Naquele exato momento senti meu estômago embrulhar, como se tudo que eu havia ingerido tivesse ganhado vida de súbito e quisesse sair a qualquer custo de dentro de mim. Ao invés de responder a pergunta, mamãe fez menção de que iria se levantar -provavelmente para dar um jeito na sujeira que eu sem querer havia feito- mas Rosário adiantou-se e veio correndo até nossa mesa, ajoelhando-se logo em seguida no chão para limpar a minúscula poça de leite e sucrilhos. Foram poucos segundos que se sucederam entre a queda da colher e o esboço de reação de mamãe, no entanto suficientes para incendiar ainda mais a curiosidade que subitamente havia começado a arder como uma chama dentro de mim. -Não filha. Não o vi. Mas tenho certeza que é um bom menino. Talvez vocês até se tornem amigos. – minha mãe respondeu sorrindo enquanto sentava-se de novo. Apesar da vontade quase que esmagadora de rir, tive de me conter para não dar uma sonora gargalhada naquele momento. Era incrível como meus pais ainda acreditavam que eu poderia arranjar amigos. Aparentemente meus dezesseis anos de solidão e esquisitice


não foram suficientes para mostrar a eles que eu era uma criatura geneticamente incapaz de viver em sociedade. Que meu destino era a dura e amarga solidão! Bem, eu acho que esse é o prêmio que se ganha quando Deus te escolhe pra ser sua piada pessoal... Em meio a esta conversa elucidativa com mamãe onde descobri o quanto minha opinião era irrelevante para meus pais, uma voz roufenha e inconfundível devido ao seu sotaque ecoou pelo andar térreo onde funcionava a pizzaria. -Senhora Angelus posso subir? – perguntou Nikhil Manjali, nosso entregador de pizzas. Pela proximidade do som ele de certo esperava a resposta ao pé da escada que fazia a ligação entre a loja e nosso apartamento. -Espere um pouco no restaurante! – mamãe gritou virando sua cabeça na direção da escada. -O que Nikhil está fazendo aqui tão cedo, mãe? - eu indaguei curiosa esquecendo-me por hora da ira que sentia por ter sido a última a ser notificada sobre a vinda do tal garoto. -Oh, nada demais querida. Ele apenas veio montar uma cama naquela saleta minúscula que seu pai faz de escritório. È verdade que aquilo parece mais um closet do que um cômodo, mas vamos ter de acomodar Evan lá mesmo, já que não temos quarto de hóspedes. -Tomara que ele tenha nanismo ou vocação pra atum enlatado. Porque só assim vai conseguir dormir naquela caixa de fósforos! – eu disparei sarcástica. -Tenho certeza que Evan não irá reclamar. Adam me assegurou que seu filho é um bom garoto.


-Arã, claro... Os pais do Jack estripador também diziam isso. – ironizei bem baixinho, enquanto voltava meus olhos para o prato cheio de leite e sucrilhos a minha frente. Eu ainda não havia me acostumado com a idéia de que teria de conviver com um total desconhecido em minha casa, embora sua chegada fosse ocorrer em menos de algumas horas. Ao pensar nisso meu estômago embrulhou de novo e em vez de aproveitar meu café da manhã, empurrei o prato de sucrilhos para o centro da mesa, me encostando sem qualquer ânimo na cadeira. -O que foi Millie? O leite está estragado? – mamãe perguntou inclinando-se na mesa para tentar cheirar o prato de sucrilhos. -Não. Eu só perdi a fome de repente. Mais tarde eu como alguma coisa. - Está mesmo se sentindo bem minha filha? – minha mãe perguntou voltando novamente a se preocupar. -Claro. Só estou sem vontade mesmo... Ainda que um pouco desconfiada devido a minha súbita falta de apetite, mamãe pegou meu prato e levou-o até a pia onde Rosário agora apenas lavava alguns pratos que haviam sido sujos no café da manhã. Ao voltar à mesa, minha mãe sentou-se com toda a calma e me encarou com o olhar que sempre fazia quando tinha de me comunicar algo que eu provavelmente relutaria ou não iria gostar. Era incrível -e aterrorizante ao mesmo tempo- como ela me conhecia como a palma de sua mão. -Oh, esqueci de lhe dizer Camillie. Você não vai conosco hoje a feira da Praça Union. -Não?! – Mas por que, mãe?!- eu retruquei indignada.


-Querida, Félix e eu andamos muito preocupados com essas suas crises frequentes de enxaqueca e, além disso, você também tem apresentado esses desmaios que há muito tempo não aconteciam. Se formos à feira tenho certeza de que você não vai se contentar em apenas ficar ao nosso lado nos vendo escolher legumes para o restaurante ou negociando com os fazendeiros. Como sempre você vai dizer que está entediada, arranjar alguma desculpa e correr sozinha para a livraria que tem nos arredores da Praça. Sei que pode parecer exagero de nossa parte, mas nós tememos que você desfaleça em plena rua ou quem sabe... Bem... Aconteça algo muito pior e nós não estejamos por perto... O rosto de mamãe agora se contorcia de dor como se ela realmente estivesse tendo a visão do meu corpo jazendo no chão frio em alguma Rua de Manhattan. Eu sabia que ela estava exagerando, porque minha mãe sempre foi a rainha do drama e tanto ela quanto meu pai eram uma dupla de super protetores que, se pudessem, me colocariam em uma redoma de vidro para me proteger, mas eu tinha de concordar que meus desmaios não eram nem um pouco normais. Nem mesmo os melhores e mais caros médicos de Manhattan pagos por minha tia Hillary- conseguiram diagnosticar porque eles ocorriam. Eu já havia feito uma série de tomografias e diversos outros exames complicadíssimos em meu cérebro, mas nada de diferente era descoberto. Todo o dinheiro gasto havia apenas servido pra eu ter dúzias de fotos repetidas do meu lobo frontal. Mais nada.


- Eu sei que vocês se preocupam mãe, mas eu estou me sentindo muito bem. De verdade. Nada vai acontecer comigo, tenho certeza. – eu disse me levantando da mesa e depois abraçando ela pelo pescoço como uma mera criança de cinco anos de idade. Eu sabia que isso era jogo sujo, mas eu estava disposta a usar a boa e velha “manha” para fazer com que mamãe mudasse de idéia. Afinal, eu queria muito ir à “Barnes and Noble” saber se algum novo livro de terror havia sido lançado. Mais do que passar o tempo, isso já havia se tornado um ritual que eu fazia todos os sábados pela manhã, graças a minha vida social ser tão agitada quanto a de uma esponja calcária... -Não minha querida. Hoje você vai ficar em casa com Nikhil. mamãe decretou colocando uma mexa de meu cabelo atrás da orelha. -É mais seguro assim. Lembre-se que o que nós fazemos é sempre para o seu bem. Agora vá, vá se trocar para que Nik possa subir. Eu também estou indo fazer isso agora mesmo, pois Rosário e eu já estamos mais do que atrasadas para a feira na Praça Union. Seu pai não está aqui, mas deixou ordens expressas do que nós temos de comprar para pizzaria. Você sabe que ele só gosta de fazer as pizzas com ingredienti tutti freschi. -Oh madonna mia, claro que sei mamma. – eu brinquei esboçando um leve sorriso, enquanto me desvencilhava dela e utilizava meu restrito vocabulário Italiano. Infelizmente a língua materna de meu pai não era tão fácil pra mim. Depois de sair frustrada da cozinha por não ter conseguido fazer mamãe mudar de idéia quanto à minha estadia em casa em pleno sábado de manhã, voltei ao quarto e vasculhei todo o meu restrito


closet à procura de alguma roupa que me deixasse no mínimo apresentável, até porque eu sabia que nenhuma conseguiria operar o milagre de me deixar bonita. Não. Isso sem dúvida era exigir demais de alguns metros de tecido. Apenas apresentável já estaria bom. Até porque eu iria ficar trancafiada em casa, com meu entregador de pizzas indiano que era quase um irmão pra mim e eu com certeza não precisava ficar bonita para isso. Vesti-me então com uma calça jeans preta da Calvin Klein dada por tia Hillary em meu último aniversário e uma camisa branca com listras pretas de manga três quartos que eu adorava, mas que ao contrário da calça, havia sido comprada em uma simples feirinha meses atrás. Penteei meus longos e fartos cabelos negros desembaraçando-os calmamente mecha por mecha e, no momento em que me preparava para prendê-los em um rabo de cavalo, mamãe enfiou a cabeça pela fresta da porta de meu quarto para se despedir. Assim que ela e Rosário partiram rumo à Praça Union o apartamento mergulhou em um profundo silêncio. Apenas o tic-tac quase imperceptível dos ponteiros do relógio quebrava a monotonia do lugar. Ainda chateada por minha ida a livraria “Barnes and Noble” ter sido vetada por mamãe, fui até minha escrivaninha e me sentei diante do computador, ligando-o para dar uma passada na internet com o intuito de apenas matar um pouco de tempo. Como minha página inicial da internet era o site do “New York Times”- já que papai achava que eu deveria começar o dia lendo algo útil e educativo- passei os olhos despreocupadamente sobre a macabra manchete que o jornal exibia em destaque:


“Roubo de corpos em necrotério ainda é mistério para polícia de Manhattan” Mesmo pressentindo que aquilo nada mais era do que uma notícia sensacionalista e barata, ainda assim fiquei um tanto curiosa e resolvi clicar no link que me levaria até a página onde se encontrava a matéria completa. No entanto, antes mesmo que eu pudesse ler o texto que brilhava na tela de meu notebook, batidas secas soaram na porta e desviaram minha atenção. -Millie, por um acaso você sabe onde estão as ferramentas do senhor Félix? – Nikhil perguntou do outro lado da porta. Apesar de ter ficado um pouco curiosa com a manchete bizarra sobre o roubo de corpos, decidi desligar o computador e ajudar Nikhil na empreitada que o pobre coitado havia sido incumbido. -Namaste pra você também Nik. –eu o saudei ironicamente ao abrir a porta do quarto. - A caixa de ferramentas está na cozinha. Bem no armário debaixo da pia. Você vai encontrá-la fácil, fácil. Ela é preta e tem umas alças cor de laranja. Nikhil então foi prontamente até o local onde indiquei e, ao voltar já com a grande e pesada caixa nas mãos, nós dois nos dirigimos juntos à sala minúscula que agora serviria de quarto para o novo hóspede. Ao entrar onde dias antes era o escritório de papai, vi que algumas coisas haviam sido modificadas ali naquela semana. As cortinas antes velhas e de cor verde musgo agora eram novas e


apresentavam uma bonita cor azul celeste. A mesa onde mamãe fazia a contabilidade da Pizzaria já não se encontrava mais lá e, em seu lugar, vários pedaços de madeira de uma cama desmontada jaziam no chão só à espera de Nikhil para reuni-las. O próprio cheiro do escritório também estava diferente, se antes exalava um forte odor de mofo, agora cheirava a lavanda e produtos de limpeza. - É. Parece que finalmente nós vamos conhecer esse tal Evan. – Nik comentou com um certo timbre de empolgação na voz enquanto colocava a caixa de ferramentas no chão. Apenas dei de ombros. Afinal, porque eu deveria estar entusiasmada para conhecer um estranho que apareceu de repente em nossas vidas e que do dia pra noite iria tirar minha privacidade? Não havia lógica alguma nisso! -Millie, é impressão minha ou você não está nem um pouco animada com a idéia desse garoto vir pra cá? – Nik quis saber enquanto

abria

a

caixa

de

ferramentas.

Pelo

visto

meu

descontentamento com estadia do tal Evan estava estampado em minha face. -E por um acaso eu deveria ficar feliz? –repliquei de forma irônica. -Bem, sim. Já que é a chance de você finalmente fazer um amigo. -E quem disse que eu não tenho amigos, Nik?! -Os virtuais do Facebook e do Myspace não contam! -Ah, é! E você e a Rosário? -Ah Millie, eu estou me referindo à amigos da sua idade. Adolescentes! Apesar de Rosário e eu sermos jovens, ainda assim


nós somos de uma geração diferente da sua. A vinda desse garoto pra cá é a oportunidade de você se socializar com alguém que tenha interesses comuns aos seus, que fale a mesma “língua” que você fala. Entende o que quero dizer? Não. Eu não entendia. -Me diz uma coisa Nik, esse discursinho sobre socialização foi bolado quando você estava numa crise de abstinência de carne de vaca ou você tem andado fazendo cursinho de psicologia à distância entre uma entrega de pizza e outra? Embora eu tivesse ironizado a preocupação de Nikhil, ele não pareceu ofender-se nem um pouco com aquilo, pelo contrário, sorriu como se eu tivesse dito algo muito divertido. Talvez porque ao contrário das outras pessoas, ele me conhecia há muitos anos e havia aprendido a não levar meu sarcasmo a sério. -Camillie, não é preciso ser um gênio para perceber que você tem sérios problemas em se relacionar com pessoas da sua idade. Isso é mais do que notório, até pra mim que sou um mero entregador de pizzas. É como se a palavra anti-social estivesse tatuada na sua testa com tinta vermelha. Você consegue repelir as pessoas antes mesmo que elas possam se aproximar! Ao ouvir aquelas palavras de Nik minha mandíbula trincou-se imediatamente de raiva. Uma série de comentários sarcásticos giraram como um redemoinho em minha cabeça, mas ao invés de uma resposta ácida, o que seria normal de minha parte, minha reação foi apenas encolher meus ombros e contemplar fixamente o chão de linóleo da pequena saleta.


-Eu não sou assim. –sussurrei melancólica em uma tentativa de convencer mais a mim mesma do que a Nik. Mas eu não havia sido bem sucedida nisso. Porque no fundo, no fundo, eu sabia que aquele simples entregador de pizzas tinha toda a razão. Há anos eu vinha me auto-sabotando no que se referia ao convívio social e, por conseqüência disso, as pessoas começaram a me excluir. A verdade é que eu tomava tais atitudes inconscientemente, motivada pela sensação de deslocamento que sentia quando me comparava as outras pessoas. Por algum motivo eu e o resto do mundo parecíamos estar numa eterna relação de descompasso, como se eu fosse uma nota fora do tom em uma música. Eu me achava diferente, estranha, e para não correr o risco de ser rejeitada por conta disso, afastava as pessoas antes mesmo que elas pudessem se aproximar. Não dizem que o melhor ataque é a defesa? Pois, é, eu levava isso a sério! Os únicos com os quais me sentia perfeitamente à vontade eram meus pais e meus empregados Nikhil e Rosário. Os dois primeiros, claro, porque eram meus progenitores e os dois últimos pelo fato de que, sendo estrangeiros, entendiam mais do que qualquer um como era se sentir diferente. - Millie. - Nikhil evocou meu nome em tom duro, cortando meus pensamentos. Agora ele havia ficado estranhamente sério e deixado a montagem da cama de lado. -Eu sei que você é uma garota maravilhosa por dentro. Mas só cabe a você mesma permitir que as pessoas descubram isso. Só cabe a você “abaixar a guarda”. Entende?


Sem muita animação balancei afirmativamente a cabeça e esbocei um meio-sorriso para Nik. - Ok. Você tem razão. – eu admiti vencida. - Mas não queira que eu seja simpática com esse tal de Evan. Eu ainda não “engoli” a história desse garoto se instalar aqui da noite pro dia! Parecendo ter sido pego de surpresa pelo que eu disse Nikhil pigarreou e cruzou os braços de forma defensiva. Seu rosto agora exibia uma expressão um tanto confusa. -O que é que você está querendo dizer com isso, Camillie?! - Por enquanto nada. - eu decretei enigmática. –Mas pode ter certeza que eu vou descobrir a verdade sobre a estranha vinda desse Evan pra cá. -Ver...Ver...Verdade? Como assim? – Nik gaguejou desviando seus olhos dos meus e voltando à montagem da cama logo em seguida. -Bem, se esse garoto de Jersey for filho bastardo do meu pai eu vou descobrir!- categorizei com uma certa arrogância. Aquela idéia levantada por mamãe parecia um tanto absurda, mas não devia ser desprezada. No mesmo instante o semblante de Nik abriu-se e a enorme rusga de preocupação que havia em sua testa desapareceu. Como se eu tivesse dito uma piada ou algo totalmente idiota, ele voltou seu olhos na minha direção e irrompeu em uma sonora gargalhada. -O novo hóspede, filho bastardo de seu pai? O senhor Félix? Essa foi boa Camillie... -Pode rir o quanto quiser Nik, mas minha teoria é plausível! – exclamei presunçosa enquanto cruzava os braços e amarrava a cara diante da expressão incrédula que o entregador de pizzas fazia.


-Ah, garota boba. Existem muito mais coisas entre o céu e a terra do que julga a sua vã filosofia... - O que você está querendo insinuar com isso, Nik? - eu questionei encarando-o novamente. – Você sabe de algo que eu não sei? -Claro que não! - ele categorizou enquanto ia até a caixa de ferramentas. - Por que em vez de pensar bobagens você não pega aquele livro do Steve Kim e se distrai um pouco enquanto seu pai não chega com o novo hóspede? -O nome do autor é Stephen King! – eu emendei na mesma hora. – Mas quer saber? Eu vou agora mesmo fazer isso. Uma boa montagem entediante de cama pra você! E dizendo esta última frase da forma mais sarcástica possível, sai do pequeno escritório, agora oficialmente o quarto do tal Evan, e caminhei até o meu, onde me joguei na cama para começar a ler confortavelmente mais um capítulo de “Carrie a estranha”. Era a melhor coisa a se fazer para passar o tempo. Bem, era... Até Nik começar a martelar e eu ter a brilhante idéia que quase custaria minha vida.


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