A IMAGEM FOTOGRÁFICA ENQUANTO EXPERIÊNCIA

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A IMAGEM FOTOGRÁFICA ENQUANTO EXPERIÊNCIA. Luciano Coronet Laner RESUMO Apresenta a pesquisa em artes visuais A caixa preta como caixa cênica, pesquisa em andamento no PPGAVI-UFRGS, e aponta questões formais e conceituais entorno da instalação Canto, realizada como parte da pesquisa. PALAVRAS-CHAVE Fotografia; Instalação; Pinhole.

A fotografia representa, para mim, enquanto artista, um desejo de produção de imagens, imagens capturadas do mundo. É uma forma de apropriação dos afetos do mundo tangível, uma maneira de se apontar para as coisas do mundo e de se produzir ficções a partir delas. É também uma forma de ressignificação desse mesmo mundo, uma maneira de fazer do mundo outra coisa, fazê-lo como imagem. Diante da vida, o trabalho com fotografia é uma forma de criar um estado de arte que rompe com o tempo burocrático e estabelece uma conduta de exceção na existência cotidiana. É ainda uma maneira de estabelecer relação com a cultura, especialmente com a cultura das imagens, com a experiência cultural da imagem enquanto forma de visualidade autônoma. Ao visar à galeria como o lugar de compartilhamento dos afetos do mundo convertidos em cenas, lugar onde a fotografia é dada à relação, é inevitável que se reflita e se tome posição diante da tradição do olhar instituída pelo quadro e pelo cubo branco. Conforme aponta Jean-François Chevrier (2003), a herança cultural da visão naturalista empreendida pela fotografia nos coloca uma concepção de imagem e também uma concepção de mundo visual como imagem, como quadro. O autor acrescenta ainda que “ao passar da imagem ao quadro, a fotografia se converteu em uma coisa em si mesma, um objeto, um artefato” (CHEVRIER, 2003). Esse artefato implica uma série de convenções acerca da relação da imagem com o espaço e com o espectador, sobre as quais o autor destaca ainda que “o quadro impõe ao espectador um ponto de vista único, impõe uma experiência de

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confrontação que acentua ou revela a estabilidade do corpo imóvel no espaço, detido em um momento de estacionamento (CHEVRIER, 2003)”. Assim, a respeito das imagens fotográficas e suas formas habituais de exposição, me pergunto: como superar o lugar de convenção da imagem fotográfica no espaço expositivo e a sua condição de campo visual apartado do mundo fenomenológico? Como situar a imagem fotográfica no espaço topológico enquanto uma experiência que engaja um espectador ativo? É possível transformar as relações da imagem fotográfica com o espaço de exibição e, consequentemente, a forma como elas se dão à recepção e como o espectador se relaciona com elas? A Caixa Preta como Caixa Cênica busca na fotografia pinhole e na espacialização das imagens a estratégia para a ampliação do sentido da fotografia para além da condição de plano, imagens tipo-folheto, como define Flusser (2009), para além dos limites da forma-quadro, como designa Chevrier (2003). Quer, assim, produzir a imersão do olhar, buscando construir uma imagem que poderá ser apreendida a partir das dinâmicas do corpo. Busca-se empreender outra forma de visualidade, que considere a realização de imagens enquanto corpos espaciais capazes de se apresentarem e de serem percebidos enquanto presenças específicas - situações imagem-corpo-espaço, que solicitam uma atitude ativa do espectador para a apreensão dos significantes e para da narrativa espaço-temporal dada como experiência: imagem-ativa-corpo-ativa-espaço-ativa-tempo-narrAtiva. Ao passo que se relaciona com as noções e com as heranças da forma-quadro e da imagem espetáculo, a pesquisa visa à superação do quadro e dos seus limites físicos como mediadores da relação entre imagem, espaço e sujeito, principalmente no que diz respeito às relações entre o espaço fotográfico, “essa articulação entre espaço representado e espaço de representação (DUBOIS, 1993, p. 209.)”, e o espaço topológico do sujeito que olha. Trata-se de superar alguns dos limites das relações entre imagem, espaço, tempo e corpo determinadas pela forma-quadro em busca de uma imagem que proporcione uma experiência visual e espacial. Busca-se, assim, pensar a fotografia não como finalidade em si mesma, mas como imagem capaz de criar situações espaciais próprias para a experiência visual e

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corporal do espectador. O ato da recepção visa o corpo como lugar privilegiado da experiência relacional com os dispositivos de exibição das imagens fotográficas. O espectador de A Caixa Preta como Caixa Cênica não é mais um espectador meramente contemplativo. Ele é convocado ao movimento, tornando-se o sujeito ativador da narrativa espaço-temporal proposta pela conformação das imagens em dispositivos espaciais. Da imobilidade do corpo, o sujeito necessitará mover-se para ativar os movimentos virtuais da imagem, que se dão no deslocamento do olhar e consequentemente do corpo. A imagem torna-se, então, um lugar: não mais uma tentativa de ter a experiência da imagem, mas de ver a imagem como uma experiência. Experiência essa, que envolve a percepção espacial do observador, bem como engaja o seu olhar e convoca o corpo ao movimento para apreensão dos significantes, cabendo-lhe, então, não só o exercício de contemplação e de semiose, mas a ação de ativar o tempo e o movimento latentes nas imagens fotográficas especializadas a partir das dinâmicas do corpo no espaço. Para se obter tal fotografia, é necessário pensar a configuração do espaço interior da câmera ao modo da arquitetura, ou seja, como um espaço interior. A configuração desse espaço interior define os parâmetros para a fotografia acontecer. Estabelece a forma da fotografia. Das formas e da geometria das câmeras se produzem imagens com distorções de perspectiva, resultado da projeção da imagem no volume interno das câmeras e da disposição das superfícies sensíveis no seu interior. Essa relação entre a imagem e o corpo das câmeras possibilita a construção de dispositivos de olhar com formas análogas às das câmeras, que podem ser materializados no espaço expositivo em escala objetual ou arquitetônica, situando-se, assim, como imagens-caixas ou como imagens-instalações. Os dispositivos trabalham para operar deslocamentos nas relações entre imagem, espaço e tempo, e, observador e corpo (o corpo da imagem, o corpo do observador). Na relação com a caixa preta, por necessidade decorrente da intenção de se produzir dispositivos de olhar capazes de encenar imagens espacializadas, busca-se

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na construção câmeras fotográficas uma forma de se superar as posições de fotógrafo - pessoa que procura inserir informações imprevistas pelo programa no aparelho fotográfico - e de funcionário - pessoa que brinca com aparelho e age em função dele -, atingindo a posição de programador. Se, como diz Flusser, caixas pretas são “aparelhos que brincam de pensar (FLUSSER, 2009)”, então tornar-se programador é engendrar-lhe o pensamento, inscrever-lhe o conceito. Assim, a construção de câmeras torna-se uma forma de clarear a caixa preta e compreenderlhe as entranhas para romper com a programação pré-estabelecida e ser capaz de inscrever-lhe os parâmetros de funcionamento para que ela produza o que é a intenção do artista e não apenas estereotipias. Assim, os dispositivos de ver buscam configurar-se como um modelo de visualidade dinâmica. Buscam uma “ordenação de formas e matérias em que mostrar é concebido como montar cenas que se exibem em caixas-tela que lhes dão corpo (DUBOIS, 2004)”. Pode-se entender os dispositivos de olhar como caixas cênicas nas quais as situações e cenas são narradas. Dessa forma, também o ato de recepção e de contemplação da imagem fotográfica serão modificados, incluindo agora também o outro como sujeito do ato fotográfico. Dispositivos, então, seriam máquinas capazes de transmutar o tempo num espaço, de proporcionar corporalmente o desenrolar do ato de olhar. São os dispositivos, o espaço metafórico, ou lugares que criam um estado de superpercepção. A instalação fotográfica Canto Canto é uma instalação fotográfica site-specific realizada como parte da pesquisa e desenvolvida para relacionar-se com uma situação encontrada no contexto da galeria Mamute. Ao situar uma imagem fotográfica sobre a pele do espaço interno de uma arquitetura, fazendo-a aderir à superfície das paredes que constituem o canto, coloca-se a imagem em uma situação de continuidade e de dependência com relação à arquitetura, onde o sentido da imagem está relacionado com a conformação espacial que assume.

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A imagem sobre o canto da arquitetura apresenta-se como uma continuidade em relação ao espaço do mundo e depende desse para ter um significado. O próprio espaço arquitetônico é assim ressignificado e é, por sua vez, convertido no dispositivo de exibição da imagem, sendo o espaço da sala de exposição reivindicado como campo de ação da imagem, onde se inclui o espectador – seu olhar, seu corpo. O trabalho abarca o espaço expositivo, costituindo-se como uma instalação sitespecific que inclui no seu campo de ação o ponto de vista e o movimento do espectador como elementos fundamentais dos acontecimentos que provoca. O ponto de vista do espectador e o seu movimento constituem ações que colocam os acontecimentos e as descobertas do trabalho em andamento.

Fig.01 – À esquerda, fotografia original planificada. À direita, instalação “Canto” na Galeria Mamute.

Como instalação, a fotografia coloca-se em continuidade ao espaço topológico “espaço referencial do sujeito que olha no momento em que examina uma foto e na relação que mantém com o espaço da mesma (DUBOIS, 2004)”-, criando uma situação de transbordamento da imagem fotográfica que incorpora o espaço de entorno ao dispositivo e transfigura-o em espaço de representação metafórico ou ficcional, espaço esse no qual se encontram observador e imagem em um só tempo e lugar – o cubo branco como o novo fora de quadro do recorte fotográfico.

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Ativado pelos dispositivo de exibição da imagem fotográfica, que articula o espaço de representação com o espaço topológico onde se situa o sujeito no momento em que olha, capturado pelas distorções de anamorfoses presentes nas imagens fotográficas, o espectador não é mais um espectador contemplativo limitado a uma relação de confrontação com a imagem. Ele é convocado ao movimento, tornandose um sujeito ativo que, por sua vez, é o ativador da narrativa espaço-temporal proposta pela conformação das imagens em dispositivos espaciais. Da imobilidade do corpo, o sujeito agora necessita mover-se para ativar os movimentos virtuais da imagem, que se dão no deslocamento do olhar e consequentemente do corpo. A imagem é, então, libertada do seu estado de congelamento temporal para ser apreendida enquanto experiência de duração temporal e de deslocamento espacial. Trata-se de, uma vez mais, repensar e agir sobre o cubo branco, a fim de reconfigurar-lhe, tendo a imagem fotográfica e os dispositivos de olhar como meios para estabelecer uma relação com espectador, relação essa que se desenrola no tempo.

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______________. Movimentos Improváveis: o efeito cinema na arte contemporânea. Catálogo da exposição. Rio de Janeiro : BB, 2003. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta : ensaios pra uma futura filosofia da fotografia; [tradução do autor]. – Rio de Janeiro : Sinergia RelumeDumará, 2009. – (Conexões; 14). FRIZOT,Michel. “Fotografia”, um destino cultural. In: SANTOS, Alexandre; CARVALHO, Ana Maria Albani de. Imagens: arte e cultura – Porto Alegre : Editora da UFRGS, 2012. GONZÁLEZ FLORES, Laura. Fotografia e pintura: dois meios diferentes? – São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2011. – (Coleção Arte&Fotografia) KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998. MACHADO, Arlindo. A fotografia como expressão do conceito. Revista Eletrônica Studium, n. 2, 2000. Disponível em: www.studium.iar.unicamp.br. Acesso em: 15 jan. 2013. RENNER, Eric. Pinhole Photography: From Historic Technique to Digital Application. Focal Press, 4edition, 2008. ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. – São Paulo : Editora Senac São Paulo, 2009. SANTOS, Alexandre et. Santos e Maria Ivone dos Santos, Org. A fotografia nos processos artísticos contemporâneos.– Porto Alegre : Unidade Editorial da Secretaria Municipal da Cultura : Editora UFRGS, 2004 WENDERS, Wim. Tirar fotos. In: Zum – revista semestral de fotografia. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n. 4, abr. 2013. ZEVI, Bruno. Saber ver a arquitetura – São Paulo : Martins Fontes, 1992.

Luciano Coronet Laner Canoas/RS, 1975. Graduou-se em Artes Visuais no Instituto de Artes UFRGS (2007). É mestrando em Poéticas Visuais pelo Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes da UFRGS (2012). Realizou as exposições individuais “Imagens Dinâmicas” (2007) no SESC/RS e “Janela para o Céu – situação Abyssos” (2009) na Sala da Fonte e no Paço Municipal de Porto Alegre, exposição indicada ao IV Prêmio Açorianos de Artes Plásticas nas categorias Destaque em Fotografia e Artista Revelação. Juntamente com o artista Rafa Éis, apresentou a exposição “(V) e (F) – sobre a efetivação de relações impossíveis”, seleciona pelo edital da Galeria ECARTA e apresentada em Porto Alegre (2013), indicada ao VIII Prêmio Açorianos de Artes Plásticas na categoria Destaque em Desenho. Participou de diversas exposições coletivas na capital gaúcha, destacando-se “Poéticas em Devir”, com curadoria de Sandra Rey, apresentada na Galeria Mamute, em Porto Alegre (2013). Participou da exposição coletiva promovida pelo COLECTIVO ESPACIO COMÚN DE MÉXICO, realizada na Galería Leopoldo Carpinteyro Del Instituto Mexicano Norteamericano De Relaciones Culturales dentro das atividades referentes ao Dia Internacional da Fotografia Estenopeica (2012). Atua como arte-educador desde 2003. Integrou a equipe do Projeto Pedagógico da 6ª Bienal do Mercosul, contemplado com o Prêmio Cultura Viva – MinC, onde foi um dos coordenadores do Espaço Educativo (2007). Integrou a equipe de educadores do Santander Cultural (2005-7). Coordenou o Programa Educativo da Fundação Iberê Camargo (2008-10) e a Ação Educativa do Projeto Séculos Indígenas no Brasil (2012). Atualmente desenvolve o projeto Marés, que integra o Redes de Formação da 9ª Bienal do Mercosul, programa dirigido a professores, juntamente com os artistas e educadores Rafael Silveira e Letícia Bertagna.

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