ENTRE A FORMA E A FICÇÃO: A IMAGEM FOTOGRÁFICA NA OBRA DE MÁRIO RÖHNELT Paula Trusz Arruda RESUMO Este artigo propõe um estudo a respeito do uso da imagem fotográfica na obra de Mário Röhnelt (Pelotas – 1950), principalmente durante sua produção durante os anos 1980, tomando como base o livro La fotografía entre las bellas artes y los medios de comunicación, de Jean-François Chevrier e El tercer umbral: Estatuto de las prácticas artísticas en la era del capitalismo cultural, de Jose Luis Brea. Dentre os aspectos a serem cercados nesta investigação, se inserem os questionamentos a respeito da autorreferencialidade, da possibilidade ficcional proporcionada pela imagem fotográfica, assim como a ideia de forma-quadro e os modos com que estas questões se relacionam com a produção artística de Röhnelt. PALAVRAS-CHAVE Autorreferencialidade; Forma-quadro; Fotografia; ficção; Mário Röhnelt. “O princípio do meu trabalho é sempre a fotografia, a reelaboração da imagem fotográfica.” (Mário Röhnelt)
Fig.01 e Fig.02 - Milton Kurtz. Imagens fotográficas mostrando o artista Mário Röhnelt. Pertencem ao arquivo particular de Röhnelt, 15 x 10 cm cada, 1978c
Parte I: Apresentação Começa-se com duas fotografias. Ambos os registros foram feitos por Milton Kurtz por volta de 1978. Uma imagem é resultado de uma tomada horizontal e a outra vertical. Há certo cuidado com a composição através da centralização da figura humana, a qual ocupa a maior parte do enquadramento. Estas imagens fazem parte
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do arquivo pessoal de Mário Röhnelt, e é ele mesmo, aliás, aquele que posa. Fazem parte de seu arquivo pessoal, mas não se encaixam naquele tipo de fotografiaregistro tão comum às famílias – registro de festividades, cerimônias, ritos de passagem e etc. –, afinal a figura, única e soberana, está de costas (e quase despida). Estas imagens são, antes de mais nada, um apoio visual. Quer dizer, quando Röhnelt as idealiza já possui certa estratégia de como vai utilizá-las, e a fotografia virá a resolver algumas questões, como a perspectiva e a proporção. Mas o registro é forte e resiste, e se mantém como material potente mesmo depois da obra feita. Por que então não utilizá-lo novamente?
Fig.3 - Dezesseis obras de Mário Röhnelt, produzidas entre os anos de 1978 e 1981. Todas foram realizadas a partir da utilização de duas imagens fotográficas (figuras 1 e 2)
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Este é o mote básico que serve de diretriz a muitas das obras realizadas por Röhnelt durante a década de 1980. A fotografia irá lhe servir como uma imagem resolvida1, e que poderá ser utilizada em quantos trabalhos for. Ao observarmos a totalidade de obras do citado período, vemos a recorrência com que certas imagens aparecem, em diferentes contextos e com tratamentos diferentes (grafite, lápis de cor, lápis de cera, tinta acrílica). Proponho, então, que observemos seis grupos de imagens, as quais foram selecionadas frente à produção de Röhnelt que interessa a esta reflexão. Esses agrupamentos foram reunidos de acordo com o seguinte critério: que tivessem um, ou pelo menos um, elemento em comum. As imagens que serão mostradas em conjunto não fazem parte de uma série definida pelo artista, sendo apenas um processo metodológico de trabalho para esta investigação. A partir desta breve apresentação podemos enveredar um pouco mais profundamente no citado critério de escolha. Os grupos eleitos são compostos pelas imagens que serviram de referência, bem como pelas obras em que estas aparecem. Uma imagem do próprio Röhnelt deitado sobre uma mesa irá aparecer em pelo menos duas obras. Assim como outra imagem, que enquadra uma mão e um copo, e que pode ser vista em mais de um trabalho. O que se deseja deixar claro, com isso, é a presença e a importância da imagem fotográfica no processo artístico do artista, a qual dá margem a esta recorrente repetição de elementos, a esta espécie de recorte e colagem de imagens através do desenho e da pintura. Estas repetições explicitam o uso da imagem fotográfica como referência, ainda mais se levarmos em consideração o tempo necessário para a realização de um desenho com este tipo de refinamento, o que eliminaria a possibilidade de trabalhar a partir de um modelo vivo. Parte II: A fotografia: uma breve contextualização O uso da imagem fotográfica para a realização de trabalhos artísticos não é recente. Ou melhor, o uso de um aparato mecânico que servisse como auxílio para a feitura de obras pictóricas não é um artifício recente. Basta que lembremos, por exemplo, 1
Informação dada pelo artista durante entrevista realizada por mim em 09 de junho de 2012.
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da câmera obscura utilizada por Johannes Vermeer (1632 – 1675), ou do Claude’s glass (black mirror) de Claude Lorrain (1600 – 1682), ainda antes da fixação da imagem. Neste sentido, é possível aproximar, no campo local, a produção de Mário Röhnelt à de Milton Kurtz e Alfredo Nicolaiewsky2. Há várias questões afins entre as produções destes artistas, tal como o uso da imagem fotográfica. Vê-se que, como exemplificado nos exemplos acima (Vermeer e Lorrain), o aparato de visualização imagética, e, mais adiante, o de captura da imagem, esteve, desde seus primórdios, aliado à prática artística. Entretanto, este uso servia apenas como um apoio ao trabalho do artista. É interessante observar os desdobramentos da fotografia no campo artístico. Os estudos de André Rouillé e Jean-François Chevrier são bastante elucidativos neste sentido, pois reveem os caminhos trilhados pela fotografia e analisam a maneira com que, gradualmente, esta foi-se infiltrando no campo da arte, até chegarmos nos dias atuais, em que os meios “mecânicos” de captura de imagem, como a própria fotografia e novas mídias digitais, são amplamente utilizadas pelos artistas, sem que, por isso, ocorra qualquer objeção por parte do sistema artístico. O modo com que Röhnelt utiliza a fotografia para compor suas obras acabou fazendo com que muitos acabassem vendo ali certa relação com questões da arte pop. Poderíamos citar, a respeito destas aproximações, a utilização da imagem fotográfica (ou da lógica fotográfica) nas suas obras. A apropriação de imagens retiradas de mídias impressas, bem como o uso da figuração – basta lembrarmos que a década de 1980 assistiu ao retorno da pintura expressiva3, a qual teve como representante desta tendência, no Brasil, a chamada Geração 80.
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Aproximações entre as produções dos três artistas já foram realizadas por diversos teóricos, como Alexandre Santos, Niura Legramante Ribeiro, José Luiz Amaral, Maria Lucia Bastos Kern e Marcelo Guimarães Alves, por exemplo.
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Acchile Bonito Oliva foi um dos teóricos que se debruçou a respeito da tendência de retorno à pintura. Ver: CANONGIA, Ligia. Anos 80 embates de uma geração. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 2010.
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Certa vez, em uma entrevista com o artista, o questionei a respeito de uma informação dada por ele a Alexandre Santos4, e que dizia que “o uso de imagens de segunda mão, retirado de jornais e revistas, principalmente, passava por um processo subjetivo de ressignificação”. Na ocasião, Röhnelt comentava a respeito das obras de Milton Kurtz, embora a mesma informação possa servir para analisarmos sua própria produção: Eu creio que quando eu falei isso para o Alexandre [Santos] eu estava tentando estabelecer uma diferença entre aquilo que seria um programa intelectual dos artistas pop em relação a nós. Porque nosso trabalho era mais subjetivo que o programa dos artistas pop. A pop comentava mais a sociedade industrial, do material impresso, do cinema. O programa que foi construído para analisar os artistas pop era um programa friamente intelectual e nosso trabalho, apesar de ter relações com a pop, era mas intimista, nao era tão intelectualizado.5
E complementa dizendo que A nossa história pessoal, subjetiva está envolvida no nosso trabalho, e eu não vejo tanto isso na pop dos Estados Unidos. Se tu pegares um Claes Oldenburg, Andy Warhol, são obras de caráter mais universal. Elas são comentários e produto de uma sociedade industrial. Nós não estávamos pensando nisto. Em parte porque o nosso ambiente cultural não admite muitos pensamentos universalistas. E a época era de recolhimento pessoal introspectivo. Isso é uma das questões. Agora, eu durante muito tempo, rechacei a ideia de que nosso trabalho fosse pop, hoje acho que dá pra fazer uma leitura. O que eu não aceitava era que nosso trabalho fosse analisado a partir de um programa intelectual. Não, nunca houve um programa intelectual pra se fazer o que se fez. Por isso que eu rechaçava essa ideia. Mas se formos ver o tipo de influência que esse tipo de trabalho tece, aí não vejo problema. O princípio das cores chapadas, material chapado, utilização de fotografias.6
Ou seja, as aproximações possíveis seriam de outra ordem, que não a conceitual. Quer dizer, por trás da arte pop está um questionamento irônico a respeito dos próprios processos da arte, utilizando-se, para isso, de meios que discutam, por exemplo, a unicidade da obra de arte, tão em voga durante os anos 1950 4
Depoimento de Mário Röhnelt concedido a Alexandre Santos em março de 2011. Presente em: SANTOS, Alexandre. Imagem fotográfica e ambiguidade narrativa na obra de Milton Kurtz. In: CARVALHO, Ana Maria Albani de; SANTOS, Alexandre (orgs.). Imagens: Arte e Cultura. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012
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Informação concedida por Mário Röhnelt em entrevista feita por mim em março de 2013.
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Idem, 2013.
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principalmente a partir da hegemonia da arte estadunidense, a qual estava ancorada nos princípios greenberguianos. Haveria, então, relações possíveis: a apropriação da imagem fotográfica, a figuração, os planos de cor chapadas (sem a marca do gesto). Entretanto, como o próprio Röhnelt destaca, há algo da esfera do íntimo, da subjetividade do artista, que atravessa sua produção, algo que iria contra ao que ele chama de impessoalidade da arte pop. Obviamente, a diferença contextual entre um momento e outro acarreta certas mudanças. E seria, inclusive, problemático tentarmos uma classificação estanque a respeito da produção de Röhnelt, visto que atualmente vivemos um período em que se torna praticamente inviável buscarmos classificações e separações, o momento é mais plural.
Fig.4 - Mário Röhnelt. Sem título. 50 x 70 cm. Grafite sobre papel. Coleção do artista
Na figura 4, por exemplo, quatro objetos estão colocados lado a lado, enquanto que um homem, em uma escala muito maior, os observa. Os objetos são representações de obras de arte: estátuas que lembram aquelas realizadas durante o período da Grécia Arcaica, um vaso semelhante aos realizados pela antiga civilização Cita, a obra Garrafas com Rolhas (1975), de Waltércio Caldas, e uma estatueta Art Déco. Há essa manobra irônica em colocar estas representações de obras de arte consagradas em uma escala menor, lado a lado, como pequenos objetos decorativos sobre uma superfície (uma mesa? Um balcão?). O homem apenas as observa, quase como se estivesse encenando o próprio exercício de revisitação da
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história da arte, marcado pelas apropriações, citações, colagens, justaposições – recursos tão comuns de diversos artistas nos anos 1980. É como se Röhnelt nos dissesse que agora nos resta observá-las, usá-las, servir-se das
obras. Rever,
repaginar, reutilizar, seria um modo de o artista se perguntar afinal, o que resta para fazer de novo agora, no seu tempo? Parte III: A ficção e o processo de subjetivação Röhnelt nasceu em Pelotas, em 1950. Ingressou no campo artístico no fim da década de 1970, impulsionado por sua participação como um dos membros fundadores do coletivo de desenho KVHR7. Boa parte de sua produção artística é realizada através do desenho e da pintura. Entretanto, a fotografia, como já foi dito, é um elemento importante no seu processo de constituição das obras, servindo-lhe, principalmente, como imagem referencial. O próprio artista comenta: o que eu procurava na fotografia era uma certa qualidade realista. E também um padrão de qualidade ao trabalho. Porque a fotografia resolve as três dimensões do mundo em um plano bidimensional. É uma solução para as imagens do mundo extremamente eficiente8.
No entanto, cabe analisarmos especificamente os modos com que a fotografia está atravessada na obra de Röhnelt. Primeiro, este aspecto de resolução da imagem, a qual evitaria o uso de um modelo vivo. Junto a isso, cabe destacar o espaço para a autorreferencialidade que a fotografia enseja. Röhnelt se fotografa (ou se deixa fotografar), registra seus objetos cotidianos, seus amigos, seu círculo afetivo. Mesmo quando utiliza imagens de meios impressos, as escolhe em relação ao que pensa estar mais de acordo com o seu universo particular. Além disso, a fotografia também se relaciona com a repetição. As duas imagens comentadas no início deste texto, por exemplo, dão origem a dezesseis trabalhos diferentes, conforme já foi dito, e em cada um há um tratamento diferenciado. A aproximação com o texto Fábricas de identidad (retóricas del autorretrato), de autoria de José Luis Brea, pode vir a ajudar a desenvolver certas questões recorrentes nas obras de Mário Röhnelt. 7
O coletivo KVHR era formado por Milton Kurtz, Julio Viega e Renato Hauser, além de Mário Röhnelt, e esteve ativo entre os anos de 1978 e 1980, em Porto Alegre.
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Informação concedida por Mário Röhnelt em entrevista feita por mim em junho de 2012.
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Logo no início do texto, Brea traz duas citações, uma de Judith Butler e outra de Stuart Hall. Ambas são primordiais para as ideias que são desenvolvidas a seguir, e como não cabe repetí-las aqui, posso ao menos propor uma aproximação. No que concerne a Butler, a ideia de identidade como um efeito, de algo que é gerado, precisa ser revista, para assim abrir capacidades de ação que não poderiam existir através do pensamento de identidades estanques e fixas. A seguir, sobre Hall, o autor vai comentar que o processo de construção subjetiva do sujeito se dá através do que e como ele vê, ou seja, como seu campo de visão é construído. Ele ainda comenta que o significado das imagens não é de forma alguma estável e unívoco através do tempo e das culturas, e que o sujeito não é uma entidade, mas algo que é produzido através de um complexo e não-finalizado processo, o qual é social e psíquico. Ambas as citações discutem sobre o processo de formação do sujeito, Butler comentando sobre a não-estabilidade da identidade e Hall sobre a influência da imagem e do ato de ver neste processo. Para Brea, assim como para mim, os dois pensamentos são vistos como o mesmo lado da moeda, no qual interessa pensar este processo como uma via de mão dupla entre produto e produtor, pensando sobre as interferências entre o ver e o visto. Volto agora às obras de Röhnelt. De acordo com o discorrido, temos que a construção do sujeito se dá através de um complexo processo, incluindo nisto o ato da visão (bem como o ato da fala), como Brea comenta quando diz que da mesma forma que toda uma tradição disciplinar - a da crítica linguística - mostrou como é no curso dos atos de fala que tem lugar o pôr-se do sujeito - em processo - é preciso começar a realizar o mesmo trabalho crítico no âmbito da imagem: mostrar como também nos atos visuais e no curso de suas realizações - no desenvolvimento efetivo das retóricas do visual - se cumpre também (...) um efeito similar de posição, de constituição efetiva do sujeitoem-processo precisamente em seus atos de visão (no ver e ser visto). (BREA, 2004, p. 83)
E completa dizendo que “(...) sujeito não é outra coisa que o efeito por excelência (...) dos atos de representação, (...) de sua participação nas redes de intercâmbio da imagem, da visualidade”. (BREA, 2004, p. 83). No caso de Röhnelt, esse processo inclui a construção de suas obras e a autorreferencialidade, através do paradoxo
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entre produtor e produto, no qual um produz o outro. Como o próprio artista comenta: Eu fazia uma associação simbólica do artista ser sua própria obra, que na verdade é o que acontece, tu faz o que tu é. Tuas escolhas. E à medida que tu transformas essas escolhas tu transformas a ti mesmo. Então eu fazia essa associação e era meu próprio modelo, numa espécie de metáfora do artista como obra, era isso: eu me associava intimamente à minha obra através da minha figura.9
Entretanto, através da autorreferência, Röhnelt não apenas produz a sua própria subjetividade, como também cria uma subjetividade “à vista”, a qual seria construída pelo espectador e projetada no artista. Neste caso, além de a imagem funcionar como uma imagem de significado instável, e que fará parte do universo imagético e simbólico, algo mais é acrescido. Algo que se pretende parte de um universo íntimo e referente daquele que a produziu. Brea comenta ainda sobre a estratégia enunciativa do relato autobiográfico, o qual estaria necessariamente ligado à escrita e à linguagem, e que produziria em seu espaço um intenso efeito de sujeito. Neste caso, o enunciado que dito na autobiografia fala justamente daquele que produz o próprio enunciado, em uma tentativa de fazer coincidir, buscando um efeito de verdade. O paradigma, assim, é o de que o texto autobiográfico é produto ao mesmo tempo em que é produtor do sujeito-escrevedor (BREA, 2006). Neste processo há a abertura de um espaço, então, para pensarmos sobre uma possível produção ficcionalizada do sujeitocriador. Pensando no caso de Röhnelt, das duas imagens que lhe servem de base, vários trabalhos são realizados. Destes, há algum que seja o “correto”? Que se possa dizer que englobe os outros? É evidente que não, cada um possui seu próprio enunciado, independentemente dos outros. O que se poderia dizer, é que, quando colocados juntos, embora não sejam uma série, criam um discurso específico, uma certa unidade, uma espécie de narrativa. Mas, antes de seguir, talvez tenhseja necessário percorrer brevemente a respeito de algumas questões que correm paralelas, e que merecem certo destaque.
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Depoimento dado a mim durante entrevista realizada em 06 de março de 2013.
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É difícil afirmar se, quando da escrita, Brea se referia aos conceitos foucaultianos de enunciado e discurso. Entretanto, pela forma que os emprega, esta aproximação se torna possível. Indo então aos escritos de Foucault e, mais precisamente, ao livro Arqueologia do Saber (1966), vemos que o discurso seria histórico - fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos de sua temporalidade, e não de seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo. (FOUCAULT, 2008, p. 133)
Assim, não seria possível deslocarmos um discurso de sua temporalidade, do seu entorno social e político, uma vez que sua construção apenas teria sido possível graças a estes vetores especificamente, os quais serviriam como baliza de regulação. E complementa dizendo que o discurso é (...) ora domínio geral de todos os enunciados, ora grupo individualizável de enunciados, ora prática regulamentada dando conta de um certo número de enunciados. (FOUCAULT, 2008, p.90). Giacomoni e Vargas desenvolvendo em um artigo sobre o livro Arqueologia, dizem que o discurso é (...) uma forma de fazer história que eleva tudo aquilo que as pessoas disseram e dizem ao estatuto de acontecimento. O que foi dito instaura uma realidade discursiva; e sendo o ser humano um ser discursivo, criado ele mesmo pela linguagem, a Arqueologia é o método para desvendar como o homem constrói sua própria existência. Nesta lógica, os sujeitos e objetos não existem a priori, são construídos discursivamente sobre o que se fala sobre eles. O corpo, por exemplo, só passou a existir a partir das modificações discursivas da passagem da Idade Média para a modernidade. Com o desenvolvimento da patologia, o corpo passa a ser percebido como um conjunto de órgãos, e a Medicina passa a discursivizá-lo, ou seja, a formular práticas e efetuar dizeres sobre ele. (GIACOMONI; VARGAS, 2010, p.122)
Talvez estas afirmações não tenham ainda esclarecido o que Foucault chama de discurso, e se faz pertinente, então, observar o que o filósofo denomina enunciado: À primeira vista, o enunciado aparece como um elemento último, indecomponível, suscetível de ser isolado em si mesmo e capaz de entrar em um jogo de relações com outros elementos semelhantes a ele; como um ponto sem superfície mas que pode ser demarcado em planos de repartição e em formas específicas de grupamentos; como um grão que aparece na superfície de um tecido de que é o
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elemento constituinte; como um átomo do discurso. (FOUCAULT, p. 90)
Obviamente, trazer apenas estas referências a esta discussão não dá conta da complexidade do pensamento foucaultiano a respeito destas questões. Entretanto, acredito que sirvam pra elucidar, mesmo que de maneira breve, a utilização destas palavras neste texto. Mas volto, novamente, a Röhnelt. O artista cria diferentes possibilidades discursivas sobre sua existência ao fotografar o próprio corpo, ao registrar seus objetos cotidianos e ao separar imagens fotográficas advindas da mídia. No entanto, assim como uma mesma frase em contextos diferentes cria enunciados diferentes, cada imagem produzida pelo artista e reutilizada em obras diferentes também resulta em enunciados diferentes. Esta talvez seja uma das questões mais importantes em relação à produção de Röhnelt. Ao utilizar desta manobra, o artista expõe o jogo que realiza entre as imagens, e o quanto que a aproximação de figuras oriundas de diferentes origens é importante para o contexto, bem como em relação aos elementos que fazem parte da obra. Com esta estratégia, o artista cria uma espécie de memória ficcionalizada, a qual serviria também como uma eterna construção e reconstrução identitária. Ou melhor, como uma forma de explorar a maleabilidade do sujeito, as diferenças de humores e de sensibilidades. É como se pudéssemos pensar que Röhnelt está mostrando que ele não é apenas um, mas vários, ou melhor, que é este sujeito-emprocesso do qual nos chamou a atenção Brea. "(...) o espaço do autorretrato se abre como território de alteridade, de constituição em ato, em puro processo do eu como fabricado e portanto como homologado a qualquer que seja, ao eu que é 'ninguém e todos', ao sujeito multitude [da multidão]" (BREA, 2006, p.86). Neste aspecto, Röhnelt estaria inclusive pondo em dúvida certa crença na veracidade da imagem fotográfica. No livro La fotografía entre las bellas artes y los medios de comunicación, Chevrier traz uma citação de Maurice Blanchot, na qual este comenta sobre o romance O homem sem qualidades, de Robert Musil: um homem qualquer e, mais profundamente, o homem sem essência que não aceita cristalizar-se em um caráter
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nem fixar-se em uma personalidade estável. Röhnelt também não se deixa cristalizar. Uma mesma imagem está tanto aqui quanto acolá, colocada em contextos diferentes produzindo enunciados diferentes. Parte IV: A fotografia e a forma-quadro Outro aspecto importante a ser levado em consideração ao reservarmos um olhar mais atento às obras de Röhnelt – assim como seria possível tratarmos de outros artistas do período – seria a ideia de forma-quadro, tal como é desenvolvida por Chevrier. Segundo ele, A restauração da forma-quadro (a qual, recordemos, opunha-se largamente à arte dos anos sessenta e setenta) tem como primeira finalidade voltar a encontrar essa distância da imagem-objeto constitutiva da experiência de confrontação, mas sem que isso implique qualquer nostalgia da pintura, nem vontade propriamente “reacionária”. (CHEVRIER, 2007, p. 156)
Este aspecto é importante se levarmos em consideração que Röhnelt é um artista que desenvolveu sua produção amplamente ancorada no desenho (enveredando-se, com o passar do tempo, na pintura e na manipulação digital da imagem, principalmente), mesmo após um período em que a tônica se dava em propostas mais conceituais, as quais seguiam a tendência da desmaterialização do objeto artístico. É importante lembrar, entretanto, que na década de 1980 emergiu uma tendência entre artistas de diversas partes do mundo de retorno à pintura, o que estaria em confluência, justamente, desse pensamento de retomada pensado por Chevrier. A forma-quadro teria como características a autonomia do suporte - como em relação a um afresco, por exemplo -, a delimitação - através do quadro - e a experiência de confrontação proposta ao espectador - devido à frontalidade (CHEVRIER, 2007). Quando Chevrier traz a ideia de forma-quadro, ele não está buscando um retorno nostálgico à pintura, mas sim pensando em uma reativação do pensamento fragmentário, do aberto e da contradição (CHEVRIER, 2007). Aspectos estes que iriam na contramão da utopia de uma ordem completa e sistemática. Obviamente, ao se servir do desenho e da pintura como meios para realização de suas obras, Röhnelt se aproxima da ideia de forma-quadro. Mas talvez seja interessante, neste
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ponto, se ater à ideia de pensamento fragmentário, aberto e contraditório. A metáfora da pintura como uma janela para um outro espaço ou tempo pode ser um princípio de aproximação a esta ideia. No caso das obras de Röhnelt, a imagem resultante e autônoma não seria apenas uma janela, mas também uma série de enquadramentos fotográficos sobrepostos e retrabalhados através do desenho e da pintura. Desta forma, poderíamos dizer que o próprio processo de construção das obras abre margem para a discussão da forma-quadro. Ainda mais se pensarmos que em alguns trabalhos este enquadramento fotográfico fica bastante evidente – basta que nos lembremos da figura 4, comentada anteriormente, e que possui um recorte bastante fotográfico, se observamos que apenas uma pequena parte do corpo fica aparente. Por fim, talvez seja válido ainda trazer uma citação de Chevrier, quando este comenta a respeito das produções de Richter e Warhol, fazendo com que nos lembremos do trabalho de Röhnelt: Como esquecer de Warhol ou Richter? Não copiavam fotografias. Não eram tempos de cópia. Assimilaram a reprodução, transformaram a pintura em uma técnica de reprodução. Se apropriaram das fotografias para fazer com elas pinturas (quadros pintados), do mesmo modo que se faz uma cópia fotográfica.” (CHEVRIER, 2007, p. 36 e 37)
Esta citação, colocada no fim deste artigo, não encerra de modo algum as relações possíveis entre a imagem fotográfica e a obra de Röhnelt. Pelo contrário, alarga o escopo de trabalho, principalmente no que concerne ao pensamento a respeito da pintura transformada em uma técnica de reprodução. A intenção, então, é que ela sirva como um disparador para a continuação do estudo aqui desenvolvido.
REFERÊNCIAS BREA, Jose Luis. El tercer umbral. Estatuto de las prácticas artísticas en la era del capitalismo cultural. Murcia: Editorial CENDEAC, 2004. _____ Un Ruido Secreto. El arte en la era póstuma de la cultura. Murcia: Editorial Mestizo A.C., Colección Palabras de Arte, 1996. CANONGIA, Ligia. Anos 80 embates de uma geração. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 2010.
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CHEVRIER, Jean-François. La fotografía entre las bellas artes y los medios de comunicación. Editorial Gustavo Gili: Barcelona, 2007 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008 GIACOMINI, Marcello Paniz; VARGAS, Anderson Zalewski. Foucault, a Arqueologia do Saber e a Formação Discursiva. Veredas on line – Análise do Discurso – 2/2010, p. 119-129 – PPG Linguística/UFJF – Juiz de Fora - ISSN 1982-2243 ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. São Paulo: Ed. SENAC, 2009 SANTOS, Alexandre. Imagem fotográfica e ambiguidade narrativa na obra de Milton Kurtz. In: SANTOS, Alexandre; CARVALHO, Ana Maria Albani de (orgs.). Imagens: Arte e Cultura. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012
Paula Trusz Arruda Bacharel em Artes Visuais pela UFRGS, atualmente é mestranda junto ao PPGAV-UFRGS, com ênfase em História, Teoria e Critica de arte. Desenvolve em sua pesquisa de mestrado um estudo sobre a produção do artista Mário Röhnelt, com foco na imagem fotográfica, nas questões autorreferenciais e os entrelaçamentos entre os conceitos de gênero e sexualidade. Participa do grupo de pesquisa A fotografia na arte contemporânea: diferença e micro-narrativas, com orientação do Prof. Dr. Alexandre Santos.
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