A FORTALEZA DA EFÍGIE ESMALTADA

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A FORTALEZA DA EFÍGIE ESMALTADA Luiza Fabiana Neitzke de Carvalho RESUMO No cenário brasileiro, a tessitura sobre a arte funerária, mesmo lenta, felizmente tem avançado. A preocupação objectual dos pesquisadores e estudiosos parece despontar além dos esculpidos em mármore de Carrara e os volumosos bronzes. A estes últimos, cabem os méritos de maiores lutadores na consolidação memorial e perenidade, diante da dilapidação dos artefatos metálicos. Os bronzes foram em maior parte arrancados dos monumentos, e com eles, verdadeiras declarações históricas de nossas cidades e seus “vultos da pátria¨. E as fotografias memoriais? Até aqui foram pouco pensadas. De maneira geral, sempre temos o entendimento da foto tumular como um complemento do monumento num todo, mas ainda não a pensamos na forma de um componente independente. Nosso artigo propõem pensar a fotografia memorial como um artefato tão valioso quanto a unidade tumular em sua constituição completa, e analisar o que acarreta a perda de uma fotografia memorial para o entendimento deste conjunto: o jazigo, e por sua consequência, um monumento. PALAVRAS-CHAVE Arte Funerária; Cemitérios; Fotografia Memorial.

Arte Funerária Para iniciarmos uma reflexão em torno da fotografia presente nos monumentos funerários, devemos antes de tudo, entender o que é a arte funerária e qual a sua relevância em um grande contexto histórico, social e artístico. A arte funerária compreende um grande conjunto de artefatos produzidos em relação à morte ou ao contexto cemiterial, porém não se restringe apenas aos cemitérios, mas engloba também artefatos presentes nas pompas fúnebres. Desta forma podemos definir como arte funerária aqueles monumentos tumulares encontrados em cemitérios, possuidores de adornos menores (relevos, placas, molduras, crucifixos) ou de grandes esculturas, entendidas como celebrativas, alegóricas e religiosas. As artes funerárias foram produzidas em larga escala por artistas e artesãos atuantes nas marmorarias – estabelecimentos comerciais destinados a prover encomendas para monumentos, fachadismos, igrejas, cemitérios. Nas marmorarias funcionavam verdadeiros ateliês de criação e reprodução de esculturas.

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Os artistas poderiam criar obras únicas, aquelas que não são seriadas, ou ainda executar cópias de estátuas, por exemplo, a partir de modelos oferecidos em catálogos, onde os clientes escolhiam as imagens que lhes interessavam. São os objetos desta produção os monumentos tumulares em sua estrutura completa (o corpo do túmulo que geralmente serve de suporte para colocação da escultura); as esculturas em mármore ou arenito (anjos, pranteadoras, alegorias, cruzes, santos, estátuas dos falecidos em corpo inteiro, bustos, medalhões, florões, animais); e os relevos representando outros símbolos, como flores, ampulhetas, palmas, fitas, caveiras, cruzes, âncoras, e índices iconográficos (denotando uma profissão ou a atuação em sociedades religiosas e ideológicas). Tais artefatos poderiam ainda ser feitos em bronze. No sentido da arte funerária, podemos entender a produção de fotografias memoriais como um adorno menor, um acessório decorativo dos monumentos funerários. Porém as imagens dos falecidos em forma de fotografias são potencialmente mais que um mero adorno quando as pensamos como o indício da presença daquele para qual o túmulo foi erigido. Elas são a forma de evocar na memória o semblante do próprio falecido. Uma maneira de apresentar aos desconhecidos a face do morto quando em vida. E também uma espécie de assinatura do “proprietário” do jazigo. A arte funerária é uma forma de expressão artística complexa, com fases distintas, que podem ser identificadas de acordo com a presença de determinados índices iconográficos, materiais, tipologias tumulares e elementos de grandes estilos da história da arte. Os monumentos funerários estão nos cemitérios para marcar a existência de alguém de acordo com seu papel em vida. A própria construção tumular e seu adornamento são definidos a partir da maneira como o falecido deveria ser lembrado pelos vivos que ficaram ou como deveria ser conhecido pelas gerações futuras. Esta lembrança ou apresentação deve-se aos interesses sociais, políticos, religiosos, ideológicos e familiares. As fotografias tumulares acompanham esta proposta e podem ainda introduzir conhecimentos sobre a moda de uma época, sobre as profissões, pertencimento a um grupo, costumes mortuários. Sobre as fotografias, Barthes observa que elas “constituem o

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próprio material do saber etnológico” e que a partir delas podemos saber os costumes de uma época (2011, p.12). Fotografia memorial Podemos pensar que o monumento traz a carga ornamental. Esta pode ou não dizer diretamente algo a respeito do falecido: uma escultura feita por encomenda, referente ao morto ou uma escultura seriada (alegoria). Já na fotografia os dados do falecido são sempre uma referência direta. Nome, data de nascimento, data de falecimento e epitáfio funcionam juntos, e nesse conjunto de personalização do túmulo entra a fotografia como um importante recurso. Segundo RIGO: O estudo das fotos está diretamente relacionado à forma em que os familiares desejam se lembrar dos seus entes queridos. Assim como estas manifestações de lembranças e saudades são apresentadas nos epitáfios de forma escrita, a fotografia se apresenta de maneira visual. (p.217).

As fotografias encontradas nos túmulos são feitas em porcelana esmaltada, predominantemente em forma ovalada, mas com variações na forma redonda e raramente, em formato retangular. Os tamanhos são variados, mas existe uma ocorrência maior da fotografia mediana (aproximadamente 10x13cm). Já as fotografias grandes são incomuns. Quanto aos ateliers de sua produção, são raras as porcelanas assinadas. Em Porto Alegre, no Cemitério São José I, encontramos algumas fotografias memoriais assinadas, como por exemplo, a fotografia no Monumento Funerário da Família Petri e Fialho, onde consta a rubrica “Dotti & Bernini (Milano)”. Já no Cemitério São José II, encontramos a fotografia no Monumento Funerário da Família Stumpp, assinada como “Photo Ferrari”. As porcelanas trazem impressos os retratos dos falecidos, e são recorrentes em preto e branco ou em sépia nos monumentos funerários do final do século XIX até a década de 1940, quando a arte funerária apresenta seu definitivo declínio. Portanto podemos encontrar este tipo de adorno em monumentos de mármore e também de granito. Nos túmulos de chão, as fotografias podem aparecer na cabeceira ou sobre a campa do túmulo, principalmente quando o material pétreo predominante na

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construção é o granito. Já nos jazigos em mármore elas aparecem em lugares diferenciados, como na frente do túmulo, na base ou centro de uma cruz, e em outros adornos, como pergaminhos.

Fig.01: Porcelana “Dotti & Bernini (Milano)”.

Fig.02: Porcelana “Photo Ferrari”.

Sobre a produção da fotografia memorial, Maria Elizia Borges em seu artigo “A fotografia como ornamento e objeto de memória nos túmulos brasileiros” analisa a colocação deste tipo de adorno nos túmulos: Normalmente a marmoraria que construía o monumento sugeria a colocação da fotografia, conforme atesta o catálogo da Marmoraria Paulista De Bortolli & Bulgarelli de Ribeirão Preto, datado do inicio do

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século XX. Ele contém 41 ilustrações de túmulos, cada uma dispõe de maneira diversa o retrato de porcelana (BORGES, 2010:04).

Referente aos túmulos de chão, as fotografias memoriais aparecem mais em monumentos de porte médio do que dimensões monumentais, onde predominam as esculturas. Nos jazigos de parede, as fotografias memoriais são predominantes e assumem aqui papel central na ornamentação e caracterização deste tipo de unidade tumular mais simples. Se nos jazigos de chão, as fotografias são complementares na personalização do conjunto da obra, nas unidades de parede, elas são decisivas. Nas catacumbas do início do século XX, executadas em mármore branco e ou mármore cinza, apareciam ainda os índices iconográficos presentes em grandes túmulos. Nesses casos, eram executados em relevos de mármore: flores, âncoras, cruzes, pombas, caveiras, ampulhetas. Aqui a fotografia coexistia com outros elementos iconográficos na própria lápide. A moldura da foto poderia ser marmórea, bem como a identificação e os dados sobre o falecido. Sobre o branco pétreo, os semblantes acromáticos se destacavam nas porcelanas ovaladas.

Fig.03: Monumento funerário do Sr. Villa Lobos. Cemitério de Pelotas. Relevos de flor de papoula.

Depois, já a partir de 1930 em diante, o uso do granito incorporou o bronze como forma de adornar o túmulo, e a fotografia vai aparecer emoldurada em belos portaretratos feitos com o metal. A identificação do morto também passa a ser feita em

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bronze. Adornando a catacumba, muitas vezes foram usados relevos de bastões de louros, flores, pergaminhos. Tudo em bronze. Atualmente com o crescimento do vandalismo e do abandono dos cemitérios, dos bronzes restaram apenas suas marcas verdes deixadas pela lacuna da subtração nos monumentos de grande porte e principalmente nas unidades de parede ou gavetas, como são chamadas popularmente.

Fig.04: Monumento funerário do escritor Salis Goulart. Cemitério de Pelotas. Roubo de bronze.

O problema da conservação e a perda da informação: Em relação à perda da informação das sepulturas, podemos observar que com a grande quantidade de roubo de bronze, muitas fotografias foram extraviadas, ao arrancarem as molduras que as arrematavam nas lápides. Os caracteres com as informações dos falecidos, também retirados um a um, tornaram muitos monumentos impossíveis de ser identificados, salvo se houver algum registro por parte das administrações de cemitérios onde ocorre este problema. A principal consequência é a despersonalização do jazigo, principalmente quando é o caso das unidades de parede, onde como já analisamos, a fotografia ocupa papel central. Nos monumentos de grande ou médio porte, quando ocorre a perda da fotografia, fica ainda a carga escultórica ou a própria arquitetura do monumento. Nas unidades de parede fica apenas uma placa pétrea, perfurada e esvaziada.

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Com a procura e a oferta de novas tipologias de jazigos e também das imagens, as fotografias memoriais coloridas se disseminam nas décadas de 1970 e 1980, em diversos tamanhos, nos túmulos de parede. Hoje em dia é comum verificarmos um tipo de impressão que cobre a frente inteira do monumento funerário com a efígie do falecido. Esses processos mais modernos das imagens são um tipo de impressão mais rápida e industrializada, ao contrário da foto tradicional: (...) o procedimento usado na feitura da fotografia de porcelana era até então muito artesanal e moroso. De posse da fotografia selecionada pelos familiares do falecido, cabe ao fotografo fazer um “negativo especial da foto. Procurava-se ressaltar as melhores características da pessoa; aplicá-lo na porcelana; efetuar os retoques com tintas e pinceis especiais. Para isso é necessário levar a porcelana ao forno para a fundição da foto - o calor intenso destrói a substancia gelatinosa deixando a imagem intacta e por ultimo sobrepor uma película protetora em toda a peça. Os metais utilizados dentro deste processo químico resistem fortemente á ação do calor e da luz do sol” (PASCOALIN, 1995 in BORGES, 2010:05).

Outra questão que devemos ter em mente é a persistência dessas imagens impressas nas porcelanas. Muitas possuem mais de 100 anos e resistem bravamente as intempéries, ao contrário de muitos objetos produzidos em materiais mais perenes, como o bronze que sempre é visado no momento do roubo. O risco mais comum que sofrem estas porcelanas são os craquelamentos ou fraturas, geralmente ao sofrerem golpes de impacto.

Fig.05: Fotografia memorial com mais de 100 anos e que aparece intacta.

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Fig.06: Fotografia com fraturas devido ao golpe de impacto.

Conclusão Além da escultura do morto a foto é a única que mais e diretamente representa o falecido. Nas imagens eles aparecem elegantes, de pose decidida e comunicam valores sociais que transmitem confiança, dignidade, respeito e forte influência social. Tudo relacionado aos papéis vitais, condizentes com suas respectivas épocas. A fotografia é responsável por transmitir a personalização, distinção, pertencimento, identidade e reavivar a memória. Além destes valores, a afetividade é o sentimento que mais mobiliza a decisão de se colocar a imagem do próprio morto no seu túmulo. Funciona mesmo como uma forma de apaziguar a saudade ou confortar diante da perda e do momento do luto (BORGES, 2010). Paradoxalmente, ao contrário da pedra e do metal, materiais que mais tem sofrido com a descaracterização nos acervos de arte funerária, a fotografia em porcelana um material que entendemos como frágil - tem sobrevivido nos cemitérios, pois aparentemente não há interesse em se roubar uma fotografia. Salvo os exemplos em que elas se perdem ao serem retiradas das molduras.

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Por meio das fotografias memoriais, muitas vezes podemos vir a conhecer o semblante de pessoas que nos são queridas ou as quais nutrimos a curiosidade de ver a face. Nos monumentos funerários, estas imagens podem simbolizar muito mais do que todos os valores que já elencamos aqui em nosso escrito, mas também o momento em que estamos diante da nossa própria história e do nosso conhecimento, quando vemos nossos antepassadosi. De alguns destes não restam outras fotos que não as que encontramos nos túmulos. Resistindo a perda, o roubo, o esquecimento, a intempérie e a inexorabilidade do tempo, estas imagens resistem e confirmam a espantosa durabilidade que as conserva e as resignifica, comprovando a verdadeira fortaleza destas efígies esmaltadas.

REFERÊNCIAS BARTHES, ROLAND. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010. BELLOMO, Harry Rodrigues (org.). Cemitérios do Rio Grande do sul – Arte, Sociedade, Ideologia. Porto Alegre: Edipuc RS, 2000. BORGES, Maria Elizia. A fotografia como ornamento e objeto de memória nos túmulos brasileiros. IV Encontro da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais. Piracicaba: ABEC, 2010. BORGES, Maria Elizia. Arte Funerária no Brasil (1890-1930). Ofício de marmoristas italianos em Ribeirão Preto. Belo Horizonte: C/Arte, 2002. FONTCUBERTA, JOAN. Fotografo, logo existo. In: A câmera de Pandora – a fotografia depois da fotografia. São Paulo: Editora G. Gilli, 2012. RIGO, Kate Fabiani. Fotografias Cemiteriais. In: BELLOMO, Harry Rodrigues Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte, sociedade, ideologia. Porto Alegre: EDIPUC, 2008.

Luiza Fabiana Neitzke de Carvalho Professora do Curso de Bacharelado em Conservação e Restauro de Bens Móveis e Integrados (ICH/UFPel). Doutoranda em História, Teoria e Crítica de Arte (PPGAV/UFRGS). Coordenadora do Projeto de Pesquisa Marmorabilia – Inventário de Cemitérios do RS (CR - ICH/UFPel). Membro da ABEC – Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais e da Red Iberoamericana de Cementerios Patrimoniales. Realiza visitas guiadas em cemitérios pelo Programa Viva o Centro a Pé da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Contato: marmorabilia@gmail.com

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Podemos pensar aqui no texto Fotografo, logo existo de Joan Fontcuberta, onde o autor conta a sua história pessoal e de seus pais a partir da fotografia do seu pai. (FONTCUBERTA,2012, pp.1925).

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