ISSN 2596-2485
Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral v.2, 2014
Escola de Comunicação Universidade Federal do Rio de Janeiro
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Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Filosofia e Ciências Humanas Escola de Comunicação
Rio de Janeiro 2014
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v.2, 2014 Editora Carmem Gadelha Revisão e editoração Felipe Valentim Produção Editorial Davi Palmeira (Bolsista Especial I – Edital Pró-Cultura e Esporte) Capa e diagramação João Carlos Guedes Supervisão geral de produção Érika Neves Professores da Direção Teatral Adriana Schneider, Alessandra Vannucci, Carmem Gadelha, Celina Sodré, Eduardo Vaccari, Eleonora Fabião, Gabriela Lírio, Jacyan Castilho, José Henrique Barbosa Moreira, Lauro Góes, Lívia Flores
Distribuição gratuita
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CICLORAMA – Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral. v.2, 2014 - . -- Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, 2013 - . v.: il. Anual. Editora: Carmem Gadelha. ISSN 2596-2485 1. Artes cênicas – Periódicos. 2. Teatro – Produção e direção Periódicos. I. Gadelha, Carmem. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Comunicação. CDD: 792
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Editorial Espaços: o labirinto do artista. Uma interpretação marginal Bruno Parisoto
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As cenas da multidão e a multidão na cena Bruno Marcos
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Metamorfoses de Fuller: cenas intermidiais Isabella Mourão Raposo
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Dramaturgia de imagens: o processo de criação da peça Três por Quatro Dominique Arantes
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Dispositivos de criação no processo Baleia – imagem, palavra e cidade Lívia Ataíde
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Banquete de corpos Júlio Castro
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(Auto) biografia: a escuta de si (do outro) na cena Gabriel Morais
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Sobre o ofício do olhar: a produção de comentários críticos a partir da experiência como espectador de espetáculos teatrais Alexandre Francisco da Silva
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Corpo múltiplo na Colônia Natã Ferreira Lamego
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Editorial
Agora, o Número 1. Ciclorama comemora seu primeiro aniversário; o Curso de Direção Teatral, o vigésimo. A “parede feita de infinito”, conforme definíamos no Editorial do Número “0”, reafirma a potência de invenção de corpos, espaços e tempos que tanto a revista quanto o dia-a-dia de estudantes e professores mobilizam para transformar dificuldades em possibilidades. Continuamos inquietos, buscando sinais de uma cena que não cessa de exigir percursos de pensamento; permanecemos expectantes, a cada ano vivendo o suspense de mais uma luta por recursos e orçamentos. Os jovens artistas-pesquisadores saem das refregas amadurecidos e capazes. Crescer dói. Ciclorama, à maneira de anais, continua a ter sua pauta dedicada ao Seminário da Direção Teatral. Nele se apresentam as pesquisas desenvolvidas nos projetos de Iniciação Científica. São bolsistas e não-bolsistas orientados por professores no registro de especulações cuja tônica é estabelecer o vai-e-vem entre teoria e prática. Nesta via de mão dupla, alguns trabalhos provêm diretamente de espetáculos realizados ou a realizar. Neste número, agrupam-se, num primeiro bloco, os textos que tratam do espaço construído
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EDITORIAL
no aqui-agora da cena e suas relações com o espectador; o espaço do agir e sua conexão com o tempo, circunscrevendo a espessura narrativa. Em seguida, desfilam as dramaturgias: seus processos de criação e os espaços de atrito entre o real e a ficção, as interseções entre linguagens. Finalmente, o corpo não deixa de fazer também sua figura. De fato, um personagem é privilegiado: o aluno-diretor, que afina e lapida o seu olhar de espectador e de artista. Notem-se as incursões por territórios do cinema, do romance, da dança, da performance, das artes plásticas, das ruas: cenas que se atravessam e deixam rastros de indagações sobre elas mesmas e a teatralidade. A revista tem a ambição de ser um lugar onde a pesquisa cumpra duplo papel: o de complementar a formação do artista-pesquisador em nível de graduação e o de propiciar a revelação de possíveis vocações acadêmicas. A propósito, mais uma data a comemorar: o da fundação do PPGAC – Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena, no ano passado.
Este número deu mais alguns passos significativos para fazer de Ciclorama um espaço apropriado pelos alunos: além do Bolsista Especial que viabilizou a produção, os textos foram editorados e revistos por outro estudante. Ganhamos em esmero.
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Que confuso labirinto é este, onde não pode a razão achar seu rumo? Calderón de la Barca
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Espaços: o labirinto do artista. Uma interpretação marginal
Bruno Parisoto*
A presente pesquisa tem por objetivo entender como os espaços urbanos constituem um lugar performativo que possibilita ao artista e ao espectador um momento de relação e comunicação com a arte e com as referências estéticas e sociais que constituem aquele ambiente marginal. E também poder percorrer alguns caminhos do labirinto no qual o artista está sujeito a entrar quando pensa no espaço e nas ramificações que suas provocações possam ter. Palavras-chave: Espaços – Performance – Marginal
* Orientação de Lívia Flores
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ESPAÇOS: O LABIRINTO DO ARTISTA. UMA INTERPRETAÇÃO MARGINAL
Comecei a me interessar por definições para a palavra espaço quando me deparei com um questionamento ainda não resolvido: qual é o lugar da arte? No dia 1 de fevereiro de 2014, peguei alguns quadros que havia pintado durante as férias para expô-los a fim de tentar vender algum. Fui ao bairro de Botafogo, na Zona Sul da Cidade do Rio de Janeiro e resolvi colocá-los ao lado de uns camelôs. Horas se passaram e apenas três pessoas deram atenção às obras. Uma delas, porque seu cachorro caminhava sobre elas; a segunda, porque sua filha perguntou o que era aquilo no chão e a mãe, ao visualizar, respondeu: “não é nada, não, minha filha.” A maior preocupação era com o “rapa”. Estava correndo o risco de perder todos os meus quadros, estando naquele lugar. Angustiado, desabafei com uma amiga sobre essa experiência. Ela disse que não obtive sucesso, pois estava no lugar errado para vender ou expor quadros. A partir daí, comecei a questionar: até que ponto os meus quadros poderiam ser considerados ilegais e apreendidos? Porque as pessoas não se interessavam pelos quadros naquele ambiente? Qual é o lugar da arte? Todas essas perguntas me estimularam a procurar entender o lugar da arte que está fora dos espaços convencionais, como galerias, museus, academias. Uma cidade é constituída de ambientes particulares, públicos e de transição. Por ora, o meu interesse é discutir o que constitui um espaço público, uma praça, uma avenida. Baseado no estudo do sociólogo francês Hen-
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ri Lefebvre (2000), procurei dividir o termo “espaço” em três categorias: memória, representação e vivência. Uma praça pode ser analisada a partir da sua área, dos prédios que a rodeiam, das formas de acesso, dos monumentos e momentos históricos, dos indivíduos que vivem nela ou que passam por ela no decorrer do dia. Ela também pode ser analisada pelo seu cheiro, pelas fotografias, lembranças, enfim, por diversas maneiras. Vamos analisar uma das divisões: o espaço individual da percepção das sensações vivenciadas na praça, como por exemplo, se venta, se é muito quente pela falta de árvores ou sombra, cheiros, sons que penetram... A segunda divisão seria a referência conceitual desse espaço: a arquitetura, os monumentos históricos, sua localização no mapa, enfim, tudo que a constitui materialmente como lugar público. Já a última divisão é onde há a incorporação dos significados a partir do que é vivenciado com as sensações. Como por exemplo, quando o fato de estar em uma praça arborizada, sem muitos sons de automóveis, traz um sentimento de paz, de segurança, diferente de estar no Largo da Carioca em pleno meio-dia. O espaço não é somente constituído por medidas e tamanhos; o que está localizado naquele lugar é também influenciado diretamente pelo que aconteceu com ele no passado, no presente e acontecerá no futuro. São todos esses elementos que fazem com que o indivíduo, após passar por esses lugares de transição (ruas, aveni-
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das, ônibus, metrô) e públicos (hospitais, escritórios, empresas, museus, escolas), ao chegar ao seu espaço privado, tenha a memória das sensações e da vivência que teve das pessoas que observou na praça, do frio do ar condicionado do metrô, do barulho do telefone tocando o tempo todo no escritório, do cheiro de um hospital; enfim, tudo representa o espaço para aquele indivíduo. Portanto, sendo o espaço um lugar de referência e de processos, posso caminhar a fim de entender onde a arte, no caso, a performance – considerando o ato da venda e exposição dos quadros como uma situação performática – se enquadra no meu estudo.
Provocador de ruídos Para tanto, será lançada a noção de espaço de performação, traduzido como aquele que insere o espectador na obra proposição, possibilitando a criação de uma estrutura relacional ou comunicacional. Ou seja, o espaço de ação do espectador ampliando a noção de performance como um procedimento que se prolonga também no participador (MELIM, 2008, p. 9).
Melim traz a análise para o espaço performativo. É evidente que esse é o lugar onde ocorre o encontro com o artista que provoca no cidadão o interesse pelo que ele quer dizer a partir de signos estéticos lançados durante o ato performático, como indumentária, adereços, gestos, palavras. No momento em que o cidadão se disponi-
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biliza a entender o que está na sua frente, ele é inserido em uma situação de diálogo. Esse é o momento inicial de relação dos indivíduos por meio da arte. Hoje, sou capaz de encontrar uma força muito potente na performance, que é a de proporcionar ao cidadão uma intensificação na relação entre corpo e espaço, em sua individualidade com a cidade. Corpos e espaços se modificam a todo momento. A ação da força performática pode ser relacionada à força de um terremoto, pois o terremoto é um fenômeno que ocorre na superfície da terra a partir de vibrações bruscas na placa tectônica; ele resulta de movimentos e deslocamentos, produzidos por gases, placas rochosas ou atividades vulcânicas. A causa dos movimentos é a liberação rápida de grandes quantidades de energia na fenda mais próxima. É a ocorrência de uma fratura na periferia dessas placas. O indivíduo é outro fenômeno que, em todos os momentos, se desloca, modifica e movimenta sua vida, interior e exteriormente. Há milhares de causas. Ele fratura diariamente seus desejos, suas raivas, suas angústias e seus prazeres. Ele quer provocar um terremoto. O artista é capaz de provocar no outro esses deslocamentos interiores, a fim de que essa energia seja liberada com maior ou menor velocidade. Ele interfere com sua arte no curso natural daquele que, diariamente, busca sismos em si mesmo.
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É bom lembrar que todo terremoto provoca ruídos. O artista é um provocador de ruídos, ele gosta de ver esses ruídos percorrerem espaços e corpos e ver o que suscita com isso. A performance se encaixa nessa relação, nesse “entre” dois corpos que ocupam espaços diferentes. Dois corpos não ocupam o mesmo espaço! O espectador é mais do que alguém que apenas observa: ele é produto, é território, é um caminho, diversos caminhos. É produtor. O performer pode estar no lugar de um provocador e não de um condensador de ruídos. Como exemplo, uma praça acolhe o artista – esse provocador de ruídos – e os cidadãos que usam esse espaço para caminhar, trabalhar, observar, fotografar ou saber da sua existência no mapa. É um ambiente público capaz de potencializar essas relações entre arte e vida. Os meus quadros em uma calçada grande, arborizada e repleta de edifícios compunham uma nova situação de diálogo com os transeuntes. A minha arte interferiu e gerou, mesmo que por segundos, uma comunicação entre quem passava por lá. Pode-se dizer que houve mediadores, como o cachorro e a criança, mas algo aconteceu ali. Entendo a importância desse diálogo entre o espaço, a obra, o artista, o transeunte e os territórios que são criados nesses encontros. Mas o que se produziu depois dessa vivência? Neste ponto, entra uma das questões que mais me bombardeiam enquanto artista: para onde vai o que se produz nesse encontro?
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O labirinto do artista O destino da performance sempre me intrigou, pois, depois de realizada, depois que o público deixa aquele espaço, a performance não existe mais. Existe na memória e existe como narrativa, porque as testemunhas contam para as outras pessoas que não assistiram à ação. É uma espécie de conhecimento narrativo. Ou existem fotografias, slides, gravações em vídeos, etc. Mas eu acho que essas apresentações nunca conseguem dar conta da performance propriamente dita, fica sempre faltando alguma coisa (ABRAMOVIC apud MELIM, 2008, p. 46).
Nessa citação, a performer Marina Abramovic trata do fato de que as apresentações performáticas não conseguem dar conta de tudo, sempre falta algo. Para mim, ficou claro que ela está se referindo ao que ocorre posteriormente ao evento: a apresentação, o ato em si não dá conta de conter e saber aonde se vai chegar. É talvez uma provocação enlouquecedora para artistas que tentam controlar algo que não está ao alcance. Quando um artista dá vida a uma obra, através do corpo ou de materiais como papel, tecido ou tela, o que sobra é o concreto, a experiência. Quem estava de fora, levou consigo o que vivenciou ali; se sentiu vontade de compartilhar, fez narrando ou recriando o que vivenciou. Voltando ao exemplo do terremoto, acredito que não podemos controlar onde ocorrerá o sismo, quantos ele irá atingir, o que se modificará. É a sina de alguém que provoca algo, sem saber o resultado que isso gera-
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rá: um labirinto que o artista está fadado a carregar toda vez que produz algo, instigando o ruído interior. Estar em um lugar produzindo, experimentando, é parar na frente de um labirinto e jogar matéria-prima bruta para que ela encontre a sua saída. Cada evento, cada território criado, cada conexão estabelecida com o outro, produz diversas interpretações. No caso da exposição de quadros ou qualquer outro ato em lugares públicos, eu interpreto como algo marginal. A palavra marginal é definida como algo que fica à margem, que segue o seu contorno de fora, à parte, na periferia. Já a palavra “periferia” é definida como uma linha que delimita qualquer corpo ou superfície. As placas tectônicas são formadas por grandes superfícies rochosas que possuem rachaduras, um contorno, uma linha que delimita seu tamanho, seu corpo. As ondas sísmicas ganham vida, saem do subterrâneo e modificam a superfície através da fenda entre uma placa e outra. Essa fenda é periférica, marginal, está seguindo o seu contorno. Assim, a arte é também algo que surge do marginal, da periferia, de uma rachadura ou fenda que possibilita esses abalos. Se não houvesse rachaduras entre as placas, não haveria a saída das ondas. Não haveria terremotos. Uma interpretação marginal, um espaço de relação e conexão com o outro, encontros poéticos e afetivos entre artistas e a cidade... Esses questionamentos me
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provocam, me levam a crer que o fato de não sabermos onde tudo isso vai dar, que significados serão gerados por nossas proposições artísticas, tudo isso está dentro de uma linha que eu chamo de labirinto. Afinal, não sabemos onde, nem quando uma fenda, uma rachadura, poderá ajudar a abalar e o que realmente será abalado. É um encontro entre o tudo e o nada.
BIBLIOGRAFIA BUREN, Daniel. “A função do ateliê”. In: Arte e Ensaios no 23. Rio de Janeiro, UFRJ, Programa de PósGraduação em Artes Visuais/ Escola Belas Artes, 2011. pp. 186-195. DUCHAMP, Marcel. O ato criador. Disponível em http://stoa.usp.br/cienciacultura/weblog/96938.html. Acessado em 16 de abril de 2014. HARVEY, David. O espaço como palavra-chave. Disponível em: http://www.uff.br/geographia/ojs/index.php/ geographia/article/view/551. Acessado em 25 de abril de 2014. LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris, Anthropos, 2000. Disponível em:http://www.mom.arq.ufmg. br/mom/arq_interface/1a_aula/A_producao_do_espaco.pdf. Acessado em 16 de abril de 2014. MELIM, Regina. Performance nas artes visuais. Rio de Janeiro, Zahar, 2008.
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As cenas da multidão e a multidão na cena
Bruno Marcos* O artigo descreve e analisa algumas intervenções no espaço público, durante as manifestações políticas de 2013. A estética aparece como importante canal de ruído e deslocamento de expectativas. A multidão se move a partir de alguns códigos, comunica-se através de determinados signos, promove representações, povoa imaginários e atua sobre os presentes. Surgem cenas, performances e toda sorte de ações, auto-intituladas ou não, artísticas. A motivação política é a base de observação e faz refletir sobre a potência dessas práticas: o corpo coletivo e suas dissidências; o imaginário de resistência; as conquistas no campo poético; a capacidade de adesão e propulsão das ações diretas. As perguntas não cessam: em que espaços a arte precisa ser definida? Quais os limites de determinação de sua conduta? De onde vem e o quanto importa a noção de autoria? De que modo o artista afeta e é afetado pela multidão? Palavras-chave: Artista – Cidade – Política * Bolsista PIBIC/UFRJ. Orientação de Lívia Flores
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AS CENAS DA MULTIDÃO E A MULTIDÃO NA CENA
Meu primeiro recorte analítico incide sobre a música, com destaque para a ação das fanfarras, a saber, grupos musicais formados basicamente por instrumentos de percussão e sopro que ganharam notoriedade com o movimento de revitalização do carnaval de rua. Divido as intervenções musicais em três categorias. A primeira age no corpo de um ato que comporta um número significativo de pessoas. Neste agrupamento, que geralmente segue em passeata para algum local pré-definido ou definido in loco, a música é um elemento fundamental por sua capacidade de mobilização de coros a partir daquele refrão que sintetiza os desejos dos presentes, por marcar os compassos de progressão com palmas e percussões corporais e por parodiar letras e melodias a seu bel-prazer. A atividade musical dá o tom das reivindicações por sua habilidade adesiva, pungente e irônica. Forja a criação de um espaço comum, de uma identidade coletiva, mesmo com todas as diferenças. A segunda diz respeito a ações individuais que atingem uma potência de confronto ante as estruturas opressoras ou hegemônicas. É uma conquista que mira o campo simbólico, que gera empatia e possível empoderamento de terceiros a partir de sua ação. Exemplificando: era Dia da Independência, pelo menos da que dizem que é. Nesse mesmo Sete de Setembro, é tradicionalmente realizado o grito dos excluídos, que se contrapõe ideologicamente ao desfile militar. Um vídeo viralizado nas redes sociais registra o momento em que um menino, trajando roupa de tal, porta um trompete em uma das mãos, uma máscara hospi-
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talar pendurada nas orelhas, uma camisa negra atrelada ao pescoço e uma mochila nos ombros. Dois policias pedem a identificação do rapaz e revistam brevemente sua mochila. A possível alegação para tal abordagem, segundo a legenda do vídeo, é o suposto mascaramento do rapaz através de sua blusa preta ou de sua máscara branca meio fajuta. O procedimento é realizado e, após a liberação, o menino saca seu trompete e toca a célebre canção de Pixinguinha: Carinhoso. Um momento de perplexidade – dessas pausas eternas – e a sequência dos presentes são uma salva contínua e empolgante de palmas; e o constrangimento evidente e indisfarçável dos policiais. Obviamente, essa ação não faz cosquinhas concretas no dorso da opressão, mas essa intervenção poética é força para todo aquele e toda aquela que dispõe o corpo para luta. Pixinguinha, que dizem ter sido santo, preconizou e imortalizou o sentido da caminhada: “Meu coração, não sei por que, bate feliz quando te vê e os meus olhos ficam sorrindo, e pelas ruas vão te seguindo”... Sigamos! A terceira opera nitidamente em consonância com as chamadas ações diretas. Neste aspecto, as fanfarras assumem uma função bem específica: tocar para reagrupar, tocar para que o foco de resistência não se dissipe, tocar para gerar força de enfrentamento. Os Siderais, fanfarra carioca, estão e estiveram presentes em diversas manifestações. Em uma delas, eu, de corpo presente, presenciei sua ação em total harmonia com essas diretrizes. Bombas cruzavam o ar, nuvens brancas esfumaçavam e intoxicavam pulmões, e a tropa de choque avançava com sua falange repressora. Mesmo assim, a música não cessava, os músicos não para-
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vam. É interessante perceber a capacidade do estímulo sonoro, como somos solicitados a aderir ou repelir uma determinada congregação a partir do som. Portanto, diante de um cenário nada convidativo, a música preenchia o espaço de modo decisivo: convocava os presentes a se reunirem e enfrentarem as tropas. Ali e em tantos outros casos, parecia não haver distinção entre ação artística e tática de resistência, era como se fosse um amálgama vigoroso que diluía as fronteiras entre arte e militância, combinando-as e provocando a reflexão de seu efeito em conjunto. Para dar sequência ao meu escopo analítico, abro aspas para Roberto Schwarz, que, a propósito das jornadas de junho, nos diz: O espírito crítico, que esteve fora de moda, para não dizer excluído de pauta, teve agora a oportunidade de renascer. A energia dos protestos recentes, cuja dimensão popular ainda sabemos pouco, suspendeu o véu e reequilibrou o jogo. Talvez ela devolva a nossa cultura o senso de realidade e o nervo crítico. Sem falar no humor, que nos seus momentos altos ela sempre teve (SCHWARZ, 2013).
Tão logo as manifestações ganharam adesão e repressão em quase par de igualdades, alguns manifestantes começaram a evocar figuras clássicas da ficção. E uma das que considero mais interessantes e instigantes foi o Batman. O morcego dos quadrinhos, do cinema e da televisão é esbelto, forte, belo e combate o crime com sua inteligência, perspicácia e também com o poder de seu capital. Obviamente que a aparição dessa figura no espaço públi-
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co contribuiu e segue contribuindo para esse imaginário de resistência, ela é justificada pela ação do aparelho repressivo encampado pelo Estado. Porém, a materialização desse herói escorrega um pouco no que sua simbologia projeta. Pergunto: saudar esse herói não seria saudar o modelo heroico burguês que defende o mundo dos criminosos e, através de sua astúcia meritocrática, restabelece a ordem e o progresso? É preciso clarificar muito bem essa ideia de crime e criminoso, para que os justiceiros e afins não ganhem força e “ibope” nessa disputa. Mas, tão rápida quanto a aparição simbólica no meio da multidão é a sua reapropriação. E, de fato, não tardou. Logo na sequência do Batman, eis que antropofagicamente surge: o Batman Pobre. Vamos a sua descrição: fazendo questão de desconstruir a figura mítica do morcego justiceiro, parodiando essa perfeição apolínea do super-herói. O nosso, talvez, anti-herói, ou mesmo como Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, veste uma sunga velha, com os cordões para fora, tem um corpo despreocupado com acepções de beleza, ostenta uma barriguinha marota e compõe coerentemente sua fantasia com paramentos improvisados e rotos. Aqui, além da riqueza de irrigação de nosso imaginário fabular, me parece haver uma confrontação de valores. O antagonismo estético proposto pelo Batman Pobre é uma afirmação de um determinado posicionamento político, é como se dissesse: não queremos um herói que nos defenda dos criminosos, porque sabemos muito bem quem são os criminosos estabelecidos por essa ordem – os pretos e os pobres; não temos a beleza como
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guia, porque essa beleza é modelada por aquilo que se tem e pela manutenção daqueles que a tem; afirmaremos nossa identidade justamente a partir daquilo que as vistas do bom-mocismo têm como menor e pejorativo. Formula-se, portanto, uma inversão de perspectivas, uma atribuição de valor a quem sempre foi marginalizado(a). Não sei se ouvi ou sonhei, mas ressoou por aí: “O Batman Pobre é meu herói”. Finalizando o reporte de análises imagéticas, volto a 20 de junho. Data histórica de nossa recente democracia por ter sido capaz de uma mobilização que, segundo aferições, beirava ou passava a casa de um milhão de pessoas. A passeata multifacetada tampou a Avenida Presidente Vargas e seguiu em direção ao prédio da Prefeitura na Cidade Nova, o “Piranhão”, a saber. Num breve instante de fagulha, sabe-se lá vindo de onde, o Estado utilizou seus tradicionais métodos de dispersão, incluindo o uso do famigerado “Caveirão”. O pavor do blindado é tamanho, que sua aparição é diretamente ligada à ideia de massacre. Além do combate físico, o “Caveirão” promove um terror psicológico, entrando nas favelas e periferias ditando ordens, humilhando moradores a partir de suas condições e cantando músicas que ferem qualquer pressuposto de direitos humanos. Ou seja, trata-se de um símbolo “perfeito” do aparelho repressor. Portanto, nada mais simbólico do que a produção de uma contra-imagem, de uma antítese a esse sólido blindado que derruba corpos pela cidade. Voltando ao dia do “um milhão nas ruas”, à medida que as tropas avançavam, uma resistência era forjada com tapumes e barricadas originárias do Terreirão do Samba, espreitada pela estátua de Zumbi dos Palmares.
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Nesse contexto, a câmera de um cinegrafista amador registra um jovem, no meio de seus pares, com o peito nu e a camisa ao rosto. Sua tática de enfrentamento é evocar corporalmente a capoeira em seus movimentos e ousadia. Subsequentemente, ele e os demais se engalfinham com o “Caveirão”, atirando pedras, barras de ferro, subindo e pulando contra o veículo em velocidade. Mesmo que momentaneamente, dá-se o recuo do blindado e os presentes comemoram em êxtase como se fosse uma vitória impensável. Uma catarse do impossível preconizada pela capoeira em sua dança-luta. Um mito, um corpo histórico. É interessante perceber como essa conceituação da capoeira revela uma característica fundante de sua composição: uma mistura de linguagens imbricadas e não dicotômicas. Luta é dança e dança é luta. Mas a produção histórica do discurso hegemônico faz questão de estancar essas duas ações e colocá-las em campos distintos. Não que de fato uma dança já não compreenda em si elementos e força suficiente para sua existência e luta; mas aqui, essa separação atende a um projeto político específico, que prevê a domesticação de nossos desejos e a suavização de nossa potência corporal. Nessa linha, são construídas as lendas de nossa morosidade política, de nossa passividade perene. Logo, no processo de desconstrução e desmistificação, a rua torna-se um grande questionador da história tida como oficial. Depois de passear por essas fricções urbanas, atento para o tanto que a busca pelas fendas e brechas das estruturas hegemônicas no campo artístico e social é um percurso possível para afirmação de valores que não estão coadunados
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AS CENAS DA MULTIDÃO E A MULTIDÃO NA CENA
com os modelos enfiados goela abaixo. E, nesse furacão que se revelou desde junho, cabe ao artista orbitar entre o epicentro e a borda, assumir o diálogo como conduta, perceber a multidão e também se perceber como parte dela.
BIBLIOGRAFIA: BENJAMIN, Walter. A Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. http://ideafixa.com/wpcontent uploads/2008/10/texto_wbenjamim_a_arte_na_era_da_reprodutibilidade_tecnica.pdf. Acessado em 08 de março de 2014. NEGRI, Antonio.“Para uma definição ontológica da multidão”. In Lugar comum. No19-20, pp.15-26. http://uninomade.net/wpcontent/files_mf/113003120823Para%20uma%20defini%C3%A7%C3%A3 20 ontol%C3%B3gica%20da%20multid%C3%A3o%20-%20Antonio%20Negri.pdf. Acessado em 03 de abril de 2014. SCHWARZ, Roberto. Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo, Boitempo Editorial/Carta Maior/Contra Capa, 2013.
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Metamorfoses de Fuller: cenas intermidiais
Isabella Mourão Raposo*
Loïe Fuller (15 de janeiro de 1862 – 1 de janeiro de 1928) foi uma artista precursora da dança moderna e da iluminação elétrica no teatro. Nessa pesquisa, pretendo analisar suas performances, evidenciando seus aspectos mágicos e hipnóticos, relacionando-os com o teatro simbolista e a invenção do cinema; e também ressaltar as relações intermidiais e o entrecruzamento das artes. Palavras-chave: Primeiro cinema – Performance – Simbolismo.
* Bolsista PIBIC/UFRJ. Orientação de Gabriela Lírio
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METAMORFOSES DE FULLER: CENAS INTERMIDIAIS
Marie Louise Fuller (15 de janeiro de 1862 – 1 de janeiro de 1928), mais conhecida como Loïe Fuller, foi uma artista precursora da dança moderna e da iluminação elétrica no teatro. Ela influencia artistas contemporâneos com suas danças hipnóticas que reverberavam – há mais de um século atrás – questões relevantes aos dias atuais, como o entrecruzamento das artes, as relações intermidiais e as discussões sobre a performance. Fuller nasceu em Fullersburg, atual Hinsdale, nos Estados Unidos. Iniciou sua carreira artística como atriz de teatro infantil e, mais tarde, se tornou dançarina e coreógrafa, mergulhando em uma investigação e aprimoramento de técnicas de movimento. Logo se mudou para Paris em busca de novas oportunidades e inovações tecnológicas da época e lá passou a se relacionar com diversos artistas da Belle Époque – futuristas, simbolistas e artistas da Art Nouveau. Fuller ficou famosa com suas apresentações no Teatro Folies-Bergère e em diversos teatros de variedades em Paris. Fuller viveu em uma época de muitas novidades e invenções tecnológicas. A iluminação elétrica acabara de ser inventada, estreitando a relação entre arte e ciência, poucos anos depois foi a vez do cinema, e havia muitos movimentos artísticos acontecendo. A iluminação elétrica foi responsável por uma revolução no teatro, abrindo um leque de possibilidades: “a cena se abriu a novas experimentações de ilusão ótica, à realização de jogos de luz e sombra, permitindo aos atores descobrir, inclusive, novos modelos de deslocamento sobre o palco” (ISAACSSON, 2011, p. 10).
Em 1890, Fuller deu início à famosa Dança serpentina, espetáculo no qual sua dança é uma mistura de tecidos, luzes,
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corpos, movimentos e cores. Sua aparição era mágica e hipnotizante, as luzes multicoloridas em seu enorme t ecido translúcido com hastes de madeira que alongavam seus braços produziam um efeito impressionante. Ela transformou a skirt dance – uma dança muito popular na Europa do século XIX – em algo totalmente novo, deixando a plateia sem saber como nomear suas performances. Fuller modificou a dança, acrescentando mais tecido translúcido e adicionando novos efeitos de iluminação, criando imagens em movimento, feitas através de efeitos luminosos e projeções com lanterna mágica. A skirt dance foi uma dança muito popular na América e na Europa dentro do teatro burlesco e vaudeville na década de 1890, onde uma mulher dançava manipulando uma longa saia em um teatro escuro com luzes coloridas projetadas na saia. A dança se originou em Londres, como um tipo menos formal de balé com elementos da dança popular, misturando a dança clog, uma dança com sapateado, e a dança francesa can-can. A skirt dance ficou muito popular no Teatro Gaiety, em Londres, especialmente com as Gaiety Girls, um coro de meninas, sempre elegantes, que dançavam a skirt dance. A lanterna mágica foi a mais inventiva, duradoura e artística invenção que antedeceu o nascimento do cinema. Ela perdurou durante três séculos, exibindo imagens fixas, artificiais animadas em diversas partes do mundo. Muitos artesãos inventaram diversos modos de aperfeiçoar a ilusão do movimento – o que tanto interessava a toda pesquisa pré-cinematográfica da época. Os primeiros vestígios da verdadeira lanterna mágica foram em 1659, mas ela só foi batizada com esse nome em 1668. Antes dela havia outras
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lanternas, como a lanterna viva, mas não eram tão sofisticadas quanto a lanterna mágica. Nela, introduziam uma placa de cabeça para baixo, muitas vezes pintadas à mão, na frente de uma vela ou lâmpada a petróleo, e as imagens apareciam projetadas. Como descreve Laurent Mannoni, Trata-se de uma caixa óptica de madeira, folha de ferro, cobre ou cartão, de forma cúbica, esférica ou cilíndrica, que projeta sobre uma tela branca (tecido, parece caiada ou mesmo ouro branco, no século XVIII), numa sala escurecida, imagens pintadas sobre uma placa de vidro. Diabruras, cenas grotescas, eróticas, escatológicas, religiosas, históricas, científicas, políticas, satíricas: todos os assuntos foram abordados. A imagem é “fixa” ou “animada”, pois a placa comporta um sistema mecânico que permite dar movimento ao assunto representado. [...] Uma chaminé no teto da caixa dava vazão à fumaça. A disposição das lentes no tubo óptico variava de modelo para modelo, sobretudo no século XIX, mas geralmente consistia numa possante lente plano-convexa, semi-esférica, com a face plana voltada para a fonte de luz, fazendo convergir os raios luminosos para a placa de vidro pintada (MANNONI, 2003, p. 58).
A dançarina inventou novos aparatos de iluminação e utilizou figurinos com próteses de madeira que estendiam seus movimentos e a ocupação dos espaços, formando imagens abstratas que permitiam e ampliavam a imaginação do espectador – apareciam e desapareciam, se transformavam, voavam. Por um momento era flor, em outro era fogo, borboleta, serpente e até mesmo um fantasma. Fuller experimentava todas as tecnologias da época,
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estudava muito sobre iluminação e sempre tentava aprimorar suas técnicas e inventar novas formas de realizar os efeitos visuais em seus espetáculos. Ela tinha seu próprio laboratório onde realizava experiências químicas com sais fosforescentes, produzindo seus materiais para realizar os efeitos desejados em seu figurino. Entrou em contato com Thomas Edison, que acabava de inventar o fluoroscópio, um aparelho que captava imagens em movimento e produzia imagens que brilhavam (o atual raio x), e se interessou pelo efeito fluorescente e translúcido que o mesmo causava. Essas experiências culminaram em um novo espetáculo: A dança fosforescente (1896). A dançarina-cientista, além de fazer diversos experimentos químicos com gelatinas e sais para produzir efeitos luminosos em seu figurino, também o fazia para criar os slides de lanterna mágica, que também utilizava em uma de suas performances. Em 1896, em uma turnê pelos Estados Unidos, Fuller apresentou seus espetáculos Salomé e O firmamento, ambos utilizando a lanterna mágica, onde projetava imagens de mar, tempestade, lua e sangue. Ela também projetava imagens em seu tecido, em mais uma de suas metamorfoses: seu tecido era cenário e figurino ao mesmo tempo, se transformando em uma verdadeira tela em movimento. Apesar de utilizar bastante as projeções, Fuller as considerava apenas uma das muitas opções de efeitos visuais possíveis em suas apresentações e, mais tarde, passou a utilizá-las mais como cenário do que como figurino. Na mesma época da Dança serpentina, surgiam as fotografias animadas – Thomas Edison acabara de inventar o Kinetoscópio, o precursor do projetor cinematográfico, um aparelho através do
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qual o espectador assistia individualmente às imagens em movimento. Fuller se interessou profundamente pela descoberta e parecia tentar reproduzir essas imagens em seus espetáculos, indo para um caminho mais de abstração da forma, no que chama de “efeito caleidoscópio”. Fuller, uma artista visionária, já pensava e, de certo modo, fazia cinema antes mesmo dele existir, investigando as relações entre a luz, espaço, figurino e música, produzindo uma quantidade significativa de imagens em movimento – hipnóticas e fantasmagóricas. Não é à toa que uma das primeiras imagens cinematográficas do mundo, realizada pelos Irmãos Lumiére em 1896, foi a de sua Dança serpentina. Eles coloriram a película, frame a frame, para tentar reproduzir os efeitos luminosos no tecido. Na Dança do fogo, Fuller realizava inúmeros experimentos com a cor – luzes elétricas amarelas, verdes, azuis e laranjas, se aproximando de fato da figura do fogo, não só pelas cores, mas pela capacidade hipnótica da chama. Sua presença e ausência eram imanentes e, ao mesmo tempo, transcendentes entre a chama, a hipnose e a metamorfose. O movimento e as cores faziam com que ela se transformasse em muitas imagens distintas – além da própria música, que contribuía para o transe do espectador, mergulhado em sua dança mágica ao som da ópera de Wagner. Era não só um momento de liberdade e expressão de Fuller, como do público também – livre para interpretar, criar, imaginar e sentir. Adolphe Appia, pesquisando a inter-relação entre o par música/ iluminação, fortemente influenciado pela Gesamtkunstwerk wagneriana, transforma a concepção de cena teatral quando questiona o realismo ilusionista de telas pintadas que, segundo ele, oblitera a capacidade de imaginação do público. Além disso, nesta nova pro-
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posta, o corpo do ator adquire outra visibilidade, não mais se associando às pinturas em telas ao fundo mas, ao contrário, movendo-se livremente, inscrevendo novas trajetórias, através de experimentações de luz, estimuladas pela música (LÍRIO, 2011, p. 25).
A experiência da ausência e presença, visibilidade e invisibilidade, atraiu e impressionou os Simbolistas, porque trazia a ideia de abstração do corpo que eles tanto exploravam, além da construção espaço-temporal nada realista e naturalista de suas apresentações nada convencionais. “A proposta simbolista traz influências pictóricas importantes na conjugação da luz e da cor que, juntas, ocupam o espaço da cena; espaço do jogo e do sonho, espaço poético” (LÍRIO, 2011, p. 23).
As apresentações de Fuller não tinham um tempo cronológico e nem uma narrativa, seus movimentos eram perpétuos e faziam os espectadores imergirem naquela mistura dinâmica de muitos elementos visuais, sonoros e sensoriais, o que possibilitava a perda da noção do tempo. Essa ausência de uma narrativa era comum no início do cinema, o espetáculo era composto por um conjunto de “atrações” – as pessoas não iam ao cinema para assistir a um único filme com início, meio e fim, mas a inúmeras atrações distintas. Naquele contexto, a justaposição, simultaneidade e multiplicidade de experiências refletiam a própria ideia de modernidade, pois eram experiências difíceis de serem organizadas. As imagens abstratas que Fuller produzia com sua dança a afastavam de uma forma humana e a aproximava da ideia simbolista de abstração – os simbolistas muitas vezes utilizavam
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marionetes em suas peças, porque elas se parecem com o corpo humano mas não são humanas. Fuller conseguia fazer algo que o corpo humano, a princípio, não conseguiria: estar ausente e presente ao mesmo tempo e ter a capacidade de fazer o tempo parar. Ela ultrapassa os próprios limites do corpo, o transforma e realiza experiências imagéticas fortes e mágicas.
BIBLIOGRAFIA
ALBRIGHT, A. Traces of light: absence and presence in the work of Loie Fuller. Middleton, Wesleyan University Press, 2007. CHARNEY, L.; SCHWARTZ, V. R. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo, Cosac Naify, 2010. DA SILVA, A. F. O corpo artista no ambiente virtual imersão e interatividade em cibercenários interativos. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – São Paulo, Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2008. DE OLIVEIRA, B. Tradução Intersemiótica na elaboração da dramaturgia do ator: Pedagogia e Encenação. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – São Paulo, Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2012. ISAACSON, M. Cruzamentos históricos: teatro e tecnologias de imagem. Uberlândia, ArtCultura, 2011, v. 13, no 23, p. 10. KROTOZYNSKI, L. Coreografias emergentes em 2D: o que há entre a fluidez sonora e a intermitência da imagem? Dissertação (Mestrado em Meios e Processos Audiovisuais) – São Paulo, Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2013. LÍRIO, Gabriela. Teatro e cinema: uma perspectiva histórica. Uberlândia, ArtCultura, 2011, v. 13, no 23, pp. 23-34. MANNONI, Laurent. A grande arte da luz e da sombra: arqueologia do cinema. São Paulo, Unesp, 2003. PIMENTEL, L. El cuerpo híbrido en la danza: transformaciones en el lenguaje coreográfico a partir de las tecnologías digitales. Análisis Teórico y propuestas experimentales. Tese (Doutorado em Belas Artes) – Valência, Departamento de Escultura da Universidade Politecnica, 2008. PONSO, L. C. Formas de dançar o impossível: um salto do cinema de 1930 em direção à videodança. Dissertação (Mestrado em Estudos Contemporâneos das Artes) – Niterói, Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense, 2013. SIRIMARCO G. D. A teatralidade na danca do Grupo Primeiro Ato. Dissertacão (Mestrado em Comunicação e Artes) – São Paulo, Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2009. SPERLING, Jody. “Loie Fuller’s serpentine dance: a discussion of its origins in skirt dancing and a creative reconstruction”. In: Proceedings Society of Dance History Scholars Twenty- Second Annual Conference. Albuquerque, University of New Mexico, 1999.
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Dramaturgia de imagens: processo de criação da peça três por quatro
Dominique Arantes* Este breve artigo pretende expor o processo de criação da peça Três por quatro, do Grupo Barka, discutindo a imagem e outros artifícios cênicos como potencial dramatúrgico na encenação teatral. Propõe-se nesse texto uma relação entre o processo de criação e o conceito de “espectador emancipado”, de Jacques Rancière e as questões exposta por Barthes em A morte do autor. Palavras-chave: Imagem – Presença – Dramaturgia
* Bolsista PIBIC/UFRJ. Orientação de Lívia Flores
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DRAMATURGIA DE IMAGENS: PROCESSO DE CRIAÇÃO DA PEÇA TRÊS POR QUATRO
Uma investigação sobre a imagem como forma de dramaturgia iniciada por mim em 2011, com o experimento teatral Por trás do acaso vivem os insetos, foi desencadeadora da atual pesquisa de Iniciação Científica Imagens dramatúrgicas. Um de seus resultados práticos foi a peça teatral Três por quatro, com dramaturgia minha e direção de Rúbia Rodrigues, estreada na Mostra Fringe do Festival de Curitiba de 2014 1. A peça Três por quatro expõe cinco personagens diante de uma situação ficcional e se revela como metáfora hiperbólica de nossa sociedade: diante de uma epidemia que toma a cidade, o governo isola os cidadãos sãos em um pequeno espaço, com o pretexto de salvar-lhes a vida. Desses personagens, é tirado o direito de escolha e eles se vêem engolidos por algo que é superior a eles e não lhes dá outra opção que não seja executar o dia-a-dia, anulando, aos poucos, o sujeito existente em cada um. Diante da sinopse escolhida, na qual um órgão superior se sobrepõe ao direito de escolha individual, iniciamos uma investigação em busca de uma estética que abrisse espaço para que o espectador pudesse ter autoria junto ao trabalho apresentado. Assim, Três por quatro se construiu já com a intenção de ser fissurado, cavado, contrastado. Nosso trabalho se inicia com o intuito de fabricar superfície de escrita, buscando assim a “eman1 A elaboração da peça começou na disciplina de Direção VI, cujos resultados foram apresentados ao público na Mostra Mais 2013.
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cipação do espectador” (RANCIÈRE, 2008)2. Para tanto, foi essencial o diálogo constante entre diretora e dramaturga. Lado a lado, foi-se investigando uma dramaturgia e uma encenação que se cruzassem, não no sentido de uma estar a serviço da outra, mas de ambas caminharem para servir à peça, ou seja, o jogo entre essas duas escritas sempre foi o de uma negociação de hierarquias a fim do que se intencionava gerar. Perguntamo-nos: como escrever para além das palavras? Desde seu início, a criação dramatúrgica de Três por quatro nasceu com desejo de ser tessitura e se fez pelo trânsito entre diálogos textuais e proposições imagéticas. Logo, o que temos – e seguimos investigando – é o cruzamento entre imagens e palavra. Se, por um lado, a palavra nesta dramaturgia se coloca como algo pontual que inaugura e expõe as relações, conflitos e desejos de forma clara, por outro lado, as proposições imagéticas assumem um papel importante para compartilhar com o público o percurso daqueles personagens, fazê-lo duvidar, tirar-lhe as certezas, trazê-lo junto à peça para que o acontecimento teatral se construa. A ficção não tem a duração dos 60 minutos da encenação, evidenciando-se como um período longo inde2
Jacques Rancière trata da relação artista-espectador, fazendo uma analogia à relação mestre-aluno, enfatizando a necessidade do mestre não ser ‘embrutecedor’: “O aluno do mestre ignorante aprende o que o mestre não sabe, já que o mestre fala para ele procurar alguma coisa e recontar tudo o que ele descobriu no caminho, enquanto o mestre verifica se ele está realmente procurando”.
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finido de semanas ou meses. Para dar conta desse tempo ficcional não real, a peça acontece pela justaposição de acontecimentos sem que cada ator/personagem tenha seu percurso individual, gerando uma cena que se inscreve com base em camadas de acontecimentos em tempos diferentes. O espectador está diante de cinco dramaturgias individuais que se encontram, se desdobram, se atravessam e se desligam, seguindo caminhos particulares. Poucos são os momentos em que todos estão presentes no mesmo tempo ficcional; em geral, cada cena é tecida por, no mínimo, dois acontecimentos. Em consonância com a proposta dramatúrgica, a encenação lançou mão de um mecanismo-base que nomeamos “descolamento temporal”, no qual os tempos se cruzam, se interpenetram e se interrompem a fim de conduzir a ficção. Isto acontece quando um (ou mais) ator/ personagem se desconecta do tempo da cena “em primeiro plano” e inaugura a cena seguinte, num novo tempo, independente da anterior ter ou não findado. O “descolamento temporal” pode ser instaurado por um único ator, ou por duplas ou por trios, fundando um novo tempo, ou dois ou três tempos diferentes. A partir deste mecanismo, guiados pela diretora, os atores construíram os percursos de seus personagens ao longo da ficção, isto é, a dramaturgia de cada um no espaço cênico. Assim, em Três por quatro, há cinco dramaturgias – cinco presenças, cinco percursos, cinco trajetórias – o que permite uma escrita permanente dessas presenças no quadro cênico, onde tudo está se escrevendo a todo instante, até mesmo a própria paragem se torna escritura.
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Etapas da construção O processo concomitante de criação de texto e encenação se deu através de três etapas. O primeiro passo dado foi expor aos atores a sinopse da peça, os personagens e os mecanismos-base da encenação. Num primeiro momento, em sala de ensaio, a diretora optou pelo treinamento da técnica de viewpoints – técnica desenvolvida por Anne Bogart que possibilita criar acontecimentos no palco a partir das relações entre tempo, movimento e espaço – através de jogos que fomentassem um estado de atenção nos atores e lhes dessem o poder de autoria dentro do processo. Em seguida, foi entregue a todos um roteiro contendo prólogo, epílogo e um evento ligado a cada uma das oito cenas. A partir de então, o roteiro foi utilizado e investigado através de treinamentos de viewpoints, criação de composições e improvisação de situações. Neste instante, diante do roteiro e com o olhar sobre a arquitetura (espaço e corpos no espaço), os atores criaram os primeiros percursos de seus personagens. Assim, grande parte da trajetória dos personagens no espaço foi criada antes mesmo do texto chegar às bocas dos atores. Um passo importante enquanto dramaturga foi entender a estética da escrita. A opção foi trabalhar a partir da ideia de uma dramaturgia composta por fragmentos em que as cenas não se sucedem a partir de uma lógica de encadeamento; elas se inauguram e se desfazem, à medida que a cena seguinte se instaura, sem pressupor justificativa. No entanto, estas cenas – e é importante ratificar que quan-
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do escrevo “cena”, refiro-me tanto àquelas talhadas por palavras, quanto às que se inscrevem por imagens – apesar de não necessitarem de pretexto para acontecer, são pedaços de um todo que têm relação entre si. Não há aleatoriedade nessas escolhas, os fragmentos expõem acontecimentos essenciais àquela ficção, deixando o trabalho criar a lógica dos sentidos, preencher as brechas, fazer as relações com o espectador. Assim, pode-se dizer que se trata de escrita metonímica que revela partes do todo, fincando-se como fragmentos que criam elos.
Cena II - Fobia através do tempo 2.1 Iara agarra-se à planta na tentativa de se acalmar e atravessa o espaço com a mesma em seu colo. 2.2 Danilo para o espaço vazio. Eu queria dizer muitas coisas. Não muitas. Só coisas. Às vezes é difícil dizer. Mentira. Às vezes ninguém escuta. Várias vezes. Todas as vezes. Eu prefiro falar com o ar. A palavra flui mais. É mais bonito. Eu sou esse cara. Com essa cara, com esse corpo. Enfim, é tudo gente. Cara, corpo, olho, braço e mais e mais e mais e mais nada depois. [...] Eu não quero saber quem tem a razão, quem tem a verdade. Eu não quero. Eu não quero disputar vaidade. Olha que bobeira! [...] Pronto falei. Tava entalado. Tava arranhado. Arranhando a garganta. Que bobeira isso tudo. Que merda! O mundo tá morrendo. Tudo implodindo: Casa, prédio, carro, gente. Gente implodindo? Eu nunca vi isso. Quando foi que a gente deixou isso acontecer? (...) Eu pre-
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firo quando está escuro, dá para ver o céu. Chega. Alguns dias, semanas, meses. E tudo vai ficar certo. Só não posso me perder de mim. 2.3 Diana torna a contar os dias separando as colheres. Como se pode ver no exemplo acima, o segundo ponto importante desta dramaturgia, que diz respeito à constituição da mesma, foi dividi-la em partes: cenas e subcenas. A estrutura dramatúrgica de Três por quatro se faz através de um prólogo, oito cenas, trinta e sete subcenas e um epílogo. Três semanas após o início do processo, duas após a entrega do roteiro, as quatro primeiras cenas foram escritas e testadas junto aos percursos já construídos – adaptados a partir das novas relações que a chegada da dramaturgia gerou – pelo jogo “descolamento do tempo”. Logo foi criada uma primeira versão dessas cenas em sala de ensaio, que seguiu sendo experimentada a partir de propostas da direção, dos atores e da dramaturga. Cerca de um mês antes da estreia, as demais cenas chegaram à sala de ensaio. A construção da encenação, com os atores já dominando o jogo cênico, se deu em constante diálogo entre atores, diretora e dramaturga. Assim, a encenação foi se escrevendo até que se chegasse à forma apresentada em sua estreia. O que se buscou a todo momento em Três por quatro foi possibilitar leituras, ao invés de fechar sentidos. Cada cena, cada acontecimento, possuiu pelo menos outra cena,
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outro acontecimento justaposto. Ou seja, o quadro é composto por outros pequenos quadros, que, ao invés de dar ao espectador um único sentido fechado, necessita que o mesmo faça costuras e conexões, selecionando seu olhar que passeia sobre a cena. Talvez a “emancipação” do espectador aqui esteja relacionada a essa necessidade de ele ser um editor do espetáculo, selecionando e relacionando os acontecimentos. Acreditando-se que “o espaço de escritura deve ser percorrido e não penetrado; a escritura propõe sentido sem parar” (BARTHES, 2004, p. 63), pois [...] um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a “mensagem” do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, oriundas dos mil focos da cultura (BARTHES, idem, p. 62).
Para que o espectador possa estar diante de uma multiplicidade de escritas, foram necessários outros artifícios cênicos – o cenário e a iluminação – assumidos como dramaturgias para criar um espetáculo tecido por camadas. O cenário de Bia Kaysel, representando o espaço higienizado, é constituído por piso branco e baldes metálicos pendurados simetricamente nos grids, representando os ‘buracos’ propostos pelo texto de onde saem e entram objetos e comidas. O cenário, assim como os personagens, se transforma, tornando-se um espaço desorganizado e ca-
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ótico, com os baldes caídos, colheres por toda parte, terra e comida. Já a iluminação de Lívia Ataíde se assume dramatúrgica à medida que os recortes de luz são responsáveis por revelar ou ocultar os acontecimentos, isolando ou agregando os mesmos. Visto isso, a tentativa desta peça é que o espectador possa fluir entre certezas e experiência sensível, acreditando que ele escreve justamente no espaço “entre”, no encontro das escritas, nas fissuras, naquilo que explode o sentido, nas negociações entre presenças, imagens e palavra.
BIBLIOGRAFIA BARTHES, Roland. “A morte do autor”. In: O Rumor da Língua. São Paulo, Martins Fontes, 2004, pp. 57-75. RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Tradução: Daniele Ávila. Disponível em: http://www.questaodecritica.com.br/2008/05/o-espectador-emancipado. Acessado em 09 de Maio de 2014.
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Dispositivos de criação no processo baleia – imagem, palavra e cidade
Lívia Ataíde* O artigo apresenta as investigações realizadas no processo de criação da peça Baleia, analisando a presença do audiovisual e de outros dispositivos responsáveis por sua construção cênica e dramatúrgica. Busca, ainda, refletir sobre a poética da cena no que diz respeito à construção de palavra, cidade e imagem. Palavras-chave: Audiovisual – Dramaturgia – Palavra
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DISPOSITIVOS DE CRIAÇÃO NO PROCESSO BALEIA – IMAGEM, PALAVRA E CIDADE
O mar. É aquele composto de água e sal, movimento de ir e voltar, buscar e devolver. E nunca ser o mesmo. O sol é aquele que, por mais severo, sabe se retirar diariamente pra dar espaço às estrelas. O sertão é o que cada um carrega na sola dos pés. A palavra é aquilo que dá forma ao desejo de não ser só. Ter palavra não significa ter voz. Eles conhecem as palavras, mas não sabem dar nome às coisas. Estrangeiros no próprio idioma, buscam espaço. ...com a continuação de noites e dias o homem terminara por esquecer o motivo pelo qual quisera encontrar o mar. Quem sabe, talvez não fosse por nenhum motivo de ordem prática. Talvez fosse apenas para que, chegando finalmente ao mar, num instante de obscura beleza, ali ele tivesse chegado (LISPECTOR, 1995, p. 21).
Partindo da temática do retirante, tão presente nas representações do Nordeste pelo cinema brasileiro, começamos a pensar a experiência de deslocamento para um espaço onde, embora encontremos um novo idioma, temos de reaprender a nos comunicar. A cidade grande se torna objeto de pesquisa cênica: é do embate do grupo com esse lugar que nasce a crítica. Utilizamo-nos desse contraponto sertão-cidade para abordar o tema comunicação. Era necessário colocar esses dois personagens nesse espaço de origem para melhor tecer a crítica às dinâmicas contemporâneas de relação. Começamos colecionando temas que encontrávamos em comum nas representações cinematográficas. Utili-
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zando músicas e três objetos – uma cabeça de boi feita de arame, um guarda-chuva quebrado e um pedaço de malha – como dispositivos iniciais de criação, começamos a improvisar a relação entre esses dois personagens, propostos pelos atores Davi Palmeira e Luiza Rangel. A partir do que surgia, iniciou-se a produção do primeiro material dramatúrgico. Maria e João começavam a aparecer e ficava clara a caminhada desses dois – criamos um universo que refletia um cordel, mas se mostrava mais amplo, mais próximo do sonho ou da infância. Sentimos a necessidade de um contato mais próximo com o cinema, através de uma filmografia que se estendia desde o Cinema Novo ao contemporâneo: Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Karim Aïnouz, Marcelo Gomes são alguns dos artistas que permearam nossa criação através de suas obras. Além disso, era preciso dar sentido a uma pesquisa que visava ao entrecruzamento das linguagens teatral e cinematográfica. A forma que encontramos de fazer isso acontecer foi levar o cinema para o ensaio em forma de projeção: os improvisos agora seriam realizados com essa nova presença. Foi muito importante a consciência de que a pesquisa não teria sentido sem a inserção do audiovisual desde o início do processo. A entrada dessa nova presença, quase um novo ator, trouxe diferentes formas aos improvisos. Nesse momento, o material dramatúrgico teve de ser posto de lado para dar lugar a uma experimentação intensa de um novo jogo descoberto. A imagem alterava e era alterada, criando um novo estado para a cena e para o corpo.
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DISPOSITIVOS DE CRIAÇÃO NO PROCESSO BALEIA – IMAGEM, PALAVRA E CIDADE
O processo de criação do ator diferencia-se quando o dispositivo é usado na sala de ensaio. O dispositivo é processo e não simples recurso para criação; ele não é autônomo e não pode ser analisado isoladamente, não se dissociando do que se cria. Nesse sentido, o corpo do ator é também dispositivo e suas ações surgem na interação com as imagens projetadas. Um corpo-imagem que nasce do encontro entre o virtual e o real, como um amálgama (LÍRIO, 2013, p. 97).
Aquele material, tão forte como representação do Nordeste, se atualizava na medida em que novas leituras e novos recortes eram feitos. Compusemos uma cena de poucos minutos que condensava a pesquisa em uma breve dramaturgia, criada a partir da edição das cenas. Esse recorte impulsionou a escritura de mais material dramatúrgico – viramos, finalmente, “Baleia”. Gabriela Lírio, em seu artigo Poéticas cênicas em espetáculos intermediais: imagem e presença, utiliza três categorias de imagem: imagem-paisagem, imagem-referência e imagem-dialógica. Essa divisão auxilia o mapeamento das relações com o audiovisual e, no nosso caso, seria possível analisar o trabalho dentro de cada uma delas. Destaco: A terceira categoria que me interessa investigar refere-se à imagem-dialógica que, de certa forma, abarca as duas anteriores – a imagem-paisagem e a imagem-referência – porque compreende a interrelação do artista com as imagens projetadas na cena, o campo de diálogo estabelecido, suas imbricações, descontinuidades, contaminações e permanências (LÍRIO, idem, p. 99).
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A cena inicial de Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, projetada na parede ao fundo e sobre o corpo dos atores, poderia ser identificada como imagem-paisagem, pois essa presença acrescentava ao espaço cênico plano de fundo preenchido de informações visuais, que transformavam o espaço onde eram realizadas as ações. É imagem-referência quando faz ligação concreta com o Cinema Novo, colocando o documental em cena, através de imagens de fácil reconhecimento do público. Em seguida, os atores explorariam a imagem-dialógica, criando um campo crítico, questionador, onde parecia ser possível entrar na cena, interagir diretamente com aquela narrativa, fazendo com que esta parecesse responder ao que acontece no palco, provocada pelo inteligente jogo descoberto pelos atores. Quando voltamos a nos confrontar com a dramaturgia, o audiovisual, enquanto presença concreta, projetada na cena, perdeu sentido. E foi na sua retirada que percebemos que o jogo entre os atores e a construção cênica estavam totalmente carregados daquela presença, daquele invisível. Foi a nossa mais importante descoberta: uma ferramenta de criação totalmente nova (para nós), que proporcionou criar corpo, cena e dramaturgia. Tudo era resposta àquele dispositivo de criação: o texto, o jogo, as relações, os estados. A presença da projeção duplicava o espaço e as possibilidades de entrada nele e o que foi criado sobre essa espacialidade se mantém, mesmo sem o recurso. Começamos um novo processo de edição – as imagens dos improvisos eram selecionadas, recortadas e, num processo de montagem em sala de ensaio, compusemos o primeiro ato.
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O cinema invade o olhar. Acostumados aos cortes, câmeras lentas, closes e flashbacks, tentamos adequar a vida a esses recursos, aproximar o futuro através de lapsos de tempo. Segundo ato. Chegar à cidade, ou – arrisco – à nossa vida adulta. Era necessária nova pesquisa de corpo, imagem e relação. Em cena, já não mais Maria e João e sim duplos: atores e personagens. O texto, lido por mim, de dentro da plateia, agora entrava em cena, através da fala dos atores. O audiovisual retorna, fazendo voltar o pensamento sobre dispositivo e suporte (palavras essenciais à pesquisa): a cena pede uma presença descentralizada, que escorrega, sobra em objetos e atores. A realização de ações no espaço externo, unida às experimentações em sala de ensaio, acabou por produzir novas dramaturgias, escritas por todos os integrantes, bem como um vasto material criativo para a composição das cenas (feita, novamente, através de um processo de edição e montagem). Surge aí o segundo objeto de análise deste artigo – o trabalho com a palavra. “O chão cinza riscado de branco parecia querer dizer algo que João não entendia muito bem. A cidade possuía um novo idioma.” (ATAÍDE, 2013). Pensamos a cidade-destino dos personagens como um lugar de novos signos: para ler a cidade é necessário aprender um novo idioma. Isso nos leva a repensar a ideia de comunicação. Uma série de jogos foi realizada com o objetivo de repensar a palavra, a fala, a voz.
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[...] a palavra faz ver, pela narração e pela descrição, um visível não presente. Em segundo lugar, ela dá a ver o que não pertence ao visível, reforçando, atenuando ou dissimulando a expressão de uma idéia, fazendo experimentar a força ou a contenção de um sentimento (RANCIÈRE, 2012, p.21).
Com fones nos ouvidos, onde eram reproduzidas músicas em volume alto, os atores deviam falar o texto da peça, previamente memorizado. Bloquear a audição crítica dos atores trazia uma dificuldade interessante que alterava a sonoridade do texto falado, desestruturando-o. Os mesmos fones tocavam gravações em russo ou alemão. Os atores deveriam simultaneamente reproduzir o que ouviam. A tentativa era de separar semântica e sentido. Contar o segundo ato em um alemão inventado obrigava-os a apreender com muito mais precisão os sentidos que deveríamos comunicar. Eugênio Barba, em seu livro Queimar a casa: as origens de um diretor, reflete a tensão entre comunicação semântica e comunicação vocal, quando discorre sobre dramaturgia sonora, contando suas experiências com plateias que não dominavam o idioma falado em cena. Quando falamos, há dois níveis de informação que interagem simultaneamente: aquele do significado das palavras (comunicação semântica) e aquele das particularidades sonoras: entonações, volume, intensidade, musicalidade, coloração, dinamismos (comunicação vocal). Os linguistas afirmam que a comunicação acontece principalmente através das variações sonoras do discurso e das reações físicas que a acompanham, e somente em parte através do componente semântico (BARBA, 2010, p. 78).
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Peter Brook contava com atores de diferentes nacionalidades e muitos não conheciam os outros idiomas ali presentes. O diretor soube utilizar-se disso para a criação dos espetáculos. Diversas práticas, narradas por Yoshi Oida em seu livro O ator errante, foram de enorme importância para reflexão em nosso processo. Não chegamos a criar um bashta hondo, dialeto criado pelos atores em processo com Brook, mas pudemos entender na prática as tensões entre fala e comunicação. Nosso objetivo principal no segundo ato de Baleia é jogar com a palavra, com a linguagem, colocando-a a serviço de uma comunicação que não depende somente da semântica, mas principalmente dos sentidos dados, da poética, encontrando novos caminhos para a comunicação. Deleuze, em seu livro Crítica e clínica, fala de uma linguagem que gagueja e assim é levada ao seu limite: Quando a língua está tão tensionada a ponto de gaguejar ou de murmurar, balbuciar…, a linguagem inteira atinge o limite que desenha o seu fora e se confronta com o silêncio. Quando a língua está assim tensionada, a linguagem sofre uma pressão que a devolve ao silêncio. O estilo – a língua estrangeira na língua – é composto por essas duas operações, ou seria preciso falar de não-estilo, como Proust, dos “elementos de um estilo por vir que não existe”? O estilo é a economia da língua. Face a face, ou face e costas, fazer a língua gaguejar e ao mesmo tempo levar a língua ao seu limite, ao seu fora, ao seu silêncio (DELEUZE, 1997, p. 128).
Voltar à cidade é sentir a angústia do passado lembrando que tempo existe. Algumas coisas se modificam, como a
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velha casa de esquina fechada que antes abrigara um bar, a alegria das crianças para comprar balas as mais diversas e jogar nas máquinas de jogos de azar, onde insistentemente perdíamos nossas moedas em troca de uma diversão banal. Outras coisas permanecem em um ciclo – voltamos e elas estão ali. São, com certeza, as mais difíceis, pois são elas que, quando somem, causam maior dor. Assim é a infância: os verões, sempre os mesmos, dão uma impressão de eternidade que deveria ser proibida.
BIBLIOGRAFIA ATAÍDE, Lívia. Baleia. Mimeo, 2013. BARBA, Eugênio. “Dramaturgia sonora”. In: Queimar a casa: origens de um diretor. São Paulo, Perspectiva, 2010. DELEUZE, Gilles. “Gaguejou...”. In: Crítica e clínica. São Paulo, Ed. 34, 1997. LÍRIO, Gabriela. Poéticas cênicas em espetáculos intermediais: imagem e presença. Disponível em: http://www.seer.unirio.br/index.php/opercevejoonline/article/view/3772. Acesso em: 05 de Junho de 2014. LISPECTOR, Clarice. A maçã no escuro. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995. RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro, Contraponto, 2012.
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Banquete de corpos
Julio Castro*
O artigo analisa as relações entre comicidade, horror e violência no espetáculo Noite dos mortos à luz de Bakhtin, Propp, Bergson e Carrol. Partindo das imagens grotescas de banquete, morte, procriação e festividade, o termo splatstick – que trata de um corpo violentado por si ou por outro, que esguicha sangue e vísceras para fazer rir – é analisado através da “teoria do pensamento”, que fala que toda ficção é um pensamento engendrado. Para isso, o artigo investiga o corpo e seus desvios morais e comportamentais na tentativa de compreender como a violência extrema e o asqueroso podem ser compreendidos como objetos que falam de uma sociedade ambiguamente niilista e carnavalesca. Palavras-chave: Noite dos mortos – Splatstick – Corpo
* Bolsista PIBIAC/UFRJ. Orientação de Adriana Schneider
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BANQUETE DE CORPOS
Meu objetivo com esse artigo é refletir teoricamente sobre meu projeto final no curso de Direção Teatral da UFRJ, cujo trabalho foi um espetáculo chamado Noite dos mortos, que possui em sua cena final dois elementos da imagem grotesca citados por Bakhtin: o alimento e os órgãos do corpo. Este autor afirma que [...] a verdadeira natureza [do grotesco] é a expressão da plenitude contraditória e dual da vida, que contém negação e destruição (morte do antigo) consideradas como uma fase indispensável, inseparável da afirmação do nascimento de algo novo e melhor (BAKHTIN, 2008, pp. 53-54).
Os dois elementos da imagem grotesca citados acima adquirem, dessa forma, um caráter positivo. Em Noite dos mortos, temos dois tipos evidentes de destruição que, em si, não deixam de ser negação. Um primeiro tipo, mais narrativo e menos demonstrativo, é a destruição de instâncias da sociedade: o casal de irmãos, a família nuclear que possui um filho enfermo, uma travesti e um zelador de cemitério. Os meios de comunicação também mostram que não só essas personagens, mas toda a sociedade global está sendo atingida por esse violento flagelo. Como todos (ou a grande maioria) sabem, o mundo está sendo consumido. O segundo tipo envolve a destruição explícita dos corpos que ocorre no fim do espetáculo. O espetáculo se encerra de maneira não positiva. Não traz em si a “afirmação do nascimento de algo novo e melhor”. A multidão, que se alimenta da própria humanidade, procria como uma doença contagiosa da morte. São
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mortos-vivos. Dessa forma, materializam-se como signos da morte e da vida. Mas para a plateia há algo de excitante. Algo relativo ao caráter positivo escapa ao olhar e às reações da plateia que, ao mesmo tempo, se sente provocada e ri. A violência explícita e visceral é completamente desejada. Por quê? Parte da resposta pode estar na própria negação. Nega-se a sociedade e o corpo. Em Noite dos mortos, o “baixo” que devora e procria é representado iconicamente pelo morto-vivo. O ato de devorar no final do espetáculo ganha uma dimensão festiva, no qual o “baixo” literalmente devora e procria morte, mas também procria a vida. Ousando um pouco mais, dá vida à própria morte, unindo uma à outra em uma imagem decadente. O riso, nesse sentido, “diz respeito à totalidade do processo vital, os dois pólos [vida-morte] e as tonalidades triunfantes do nascimento e da renovação ressoam” (BAKHTIN, idem, p. 54). O que se nega, então, é a vida conhecida e vivida por todos os viventes e se anima a própria morte em um ato festivo que resvala quase que para um niilismo medonho, ou vice-versa. A violência que é gerada ali comporta tanto o riso quanto a seriedade. A violência é séria, mas o festivo entra no campo do risível. O que me leva aos movimentos de horror e comicidade do splatstick. Esse termo surge na mistura de outros dois. O splatter designa uma forma de violência explícita e extrema sobre o corpo. O slapstick é
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o equivalente a “comédia de pancadaria”, “comédia física” ou “pastelão”. Apesar de o splatstick conter uma aguçada percepção do terror do corpo, ele convidava os espectadores a rir ou vomitar. Nesses filmes, o corpo humano torna-se um objeto do ridículo em vez da abjeção, uma máquina problemática que não parece perceber o quão nojenta sua massa de fluidos internos e matéria vermelha realmente é. Enquanto sangue e pus tomam o lugar de sifões de soda e tortas de creme, os espectadores riem e gritam (e possivelmente vomitam) simultaneamente (RUSSEL, 2010, p. 184).
Como eu dissera no artigo O splatstick em Re-Animator (CASTRO, 2013), o fato de a plateia encontrar comicidade na violência depende de sua sensibilidade – alguns podem sentir nojo e medo, enquanto outros podem rir, mesmo com asco. Por esse motivo, minha hipótese foi de que no splatstick não havia alternância entre horrífico e cômico, mas que as duas apreensões estéticas se sobrepõem. O corpo em sofrimento e os fluidos não são esquecidos pelo espectador: concomitante ao medo e ao asco está a comicidade. O splatstick mostra o quão profundamente mecânica é a organização corporal, extrapolando-a com jogos cômicos. O splatstick também atinge diretamente nossa moral e nossas crenças. O corpo é violentado, porém nos faz rir. É quase como uma punição da própria vida. Propp (1992) diz que “o maior inimigo do riso é a emoção. [...] Portanto, o cômico exige algo como certa
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anestesia momentânea do coração para produzir todo o seu efeito” (pp. 12-13). De fato, na alternância entre horror e comicidade, é necessário que aquele que ri de um ato violento se desfaça de uma emoção de piedade ou de medo. Nöel Carrol (2004) pressupõe, em seu livro The philosophy of horror, que a art-horror é uma emoção induzida por narrativas e imagens de horror. Também presume que art-horror é um estado ocorrente, ou seja, que surge e se esvai. Declara que, para que uma emoção seja ocorrente, estados físicos são envolvidos, como uma agitação ou sensação, mas que um estado emocional não é identificado, sendo associado a uma única agitação ou sensação, ou mesmo a um agrupamento dessas. Emoções também estão associadas a crenças e pensamentos que envolvem objetos e situações. Um estado emocional ocorrente surge, então, quando algum estado físico, digamos, anormal, seja uma sensação ou uma agitação, é causado pela construção cognitiva de um sujeito e pela avaliação de sua situação em relação a um objeto ou da situação desse próprio objeto, o que podemos chamar de “teoria cognitiva/ avaliativa”. Ainda segundo Carrol (2004), para que uma emoção surja, não é necessária a crença na existência de um dado objeto ou situação. A art-horror, por exemplo, não é uma emoção fingida, mas genuína. Segundo sua teoria do pensamento, ela é gerada ao entreter o pensamento com algo terrível. Podemos nos amedrontar, por exemplo, pensando em algo extremamente desagradável. Mas
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não é o evento em si que é desagradável, já que não o vivemos, mas o conteúdo, a sensação, a ideia. Se não se acredita no que está sendo visto, não há motivos para temer de forma a evitar completamente um filme ou um livro. E se podemos nos amedrontar por algo que simplesmente pensamos, podemos nos amedrontar por pensamentos que são engendrados. Dessa forma, é possível que alguns riam de uma situação fictícia calamitosa ou funesta, já que não se acredita na existência daquilo. A morte é risível naquele momento, assim como o nojento, a deformação da matéria e a violência. O espectador se permite rir de algo que é moralmente suspeito de rir na vida real. Aquele que ri se desfaz de qualquer emoção de piedade ou medo. Provavelmente, é na forma que encontraremos a grande comicidade do corpo humano. O que o splatstick faz é ridicularizar o corpo animando suas partes. Bergson (1980) diz que, [...] automatismo, rigidez, hábito adquirido e conservado, são os traços pelos quais uma fisionomia nos causa riso. Mas esse efeito ganha intensidade quando podemos atribuir a esses caracteres uma causa profunda, e relacioná-los a certo desvio fundamental da pessoa, como se a alma se tivesse deixado fascinar, hipnotizar, pela materialidade de uma ação simples (pp. 21-22).
O monstruoso e o violento ganham comicidade exa-
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tamente pelos desvios inerentes a eles, por exemplo, um morto-vivo, que não tendo vontade, não tem controle sobre o próprio corpo, mas é controlado por uma vontade animalesca (interstício entre morte e vida; raciocínio e impulso; humanidade e animalidade); ou um corpo mutilado que é animado ou revelado. Assim como em Carrol (2004) o monstruoso e o violento desafiam aquilo que é “culturalmente estabelecido”, em Bergson a “moral” é desafiada. Suponhamos que, em vez de participar da leveza do princípio que o anima, o corpo não passe a nosso ver de um envoltório pesado e embaraçante, lastro incômodo que retém na terra uma alma ansiosa de elevar-se do chão. Nesse caso, o corpo se converterá para a alma no que a roupa era há pouco para o próprio corpo, isto é, certa matéria inerte imposta a uma energia viva. [...] É cômico todo incidente que chame nossa atenção para o físico de uma pessoa estando em causa o moral (BERGSON, 1980, p. 32).
Pode-se, então, dizer sobre o splatstick: o corpo é um envoltório pesado e embaraçante, que retém em conjunto a vida, a morte e o animalesco. O corpo é uma matéria inerte imposta a essa tríade e, subvertendo o culturalmente estabelecido, agride moral e fisicamente toda a humanidade, mesmo a própria humanidade. Para Propp (1992), “o exagero é cômico apenas quando desnuda um defeito” (p. 88). O defeito para o splatstick é o automatismo do próprio corpo e ele revela esse defeito, literalmente, desnudando o corpo da pele e da carne com o máximo de exagero. Assim, o splatstick “sugere um absurdo universo que pode não ter um deus, mas parece
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ter sua lógica cômica interna. A existência física é colorida com ignomínia cômica” (RUSSEL, idem, p. 85). Destruindo o corpo, toda uma sociedade é devastada. Corpo e socius não estão separados, quando se nega um, nega-se o outro. Em Noite dos mortos, todas as camadas são arruinadas por “nós mesmos”. E no suporte teatral essa aproximação com os monstros fica ainda mais nítida, principalmente quando eles são literalmente os amigos, vizinhos e familiares. A vontade de fazer parte do jogo se mistura com o asco ao sangue grudento. Fazer parte do jogo significa poder ser voraz e ser destrutivo. Os corpos dos atores-personagens se tornam caixas-surpresas que repetem imagens banalizadas na ficção e na realidade. Aquele que ri, ou festeja, ou deseja tais imagens na ficção o faz por um niilismo às avessas. No desencontro com um sublime, encontra-se, na decadência da carne e na perda do controle social, um ato carnavalesco, bacante. O corpo abjeto se torna entidade destrutiva e destruidora, engolindo e regurgitando. O homem contemporâneo se assegura materialmente naquilo que deseja destruir e o espectador em um splatstick é levado a um extremo entre o desejo de segurança (medo) e o de destruição (riso). Talvez um espectador de Noite dos mortos exprima um riso nervoso, enquanto suas crenças se debatem desde a destruição imaginária dos corpos das personagens até a possibilidade de um dos zumbis sujar sua roupa. Diversas situações são avaliadas pelo espectador nesse tensionamento de corpos na fronteira palco-plateia,
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não apenas no nível ficcional, mas no real também. Em Noite dos mortos, há um desejo de que o horror esteja sempre presente, desde a morte mais funesta até a possibilidade de uma mancha de sangue falso na roupa. E como não é possível fugir do horror, só resta festejar com ele.
BIBLIOGRAFIA BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo, Hucitec; Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2008. BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1980. CARROL, Noel. The philosophy of horror: or, paradoxes of the heart. New York; London, Taylor & Francis e-Library, 2004. CASTRO, Julio. “O splatstick em Re-Animator”. Ciclorama, Rio de Janeiro, 2013, ECO/UFRJ, no 0, pp. 21-26. PROPP, Vladimir I. Comicidade e Riso. São Paulo, Editora Ática, 1992. RUSSEL, Jamie. Zumbis: o livro dos mortos. São Paulo, Leya Cult, 2010.
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(Auto)biografia: a escrita de si (do outro) na cena
Gabriel Morais*
Este artigo objetiva discutir o conceito de autobiografia no teatro contemporâneo. Pretende-se apontar ainda possíveis relações da utilização da escrita de si na construção da cena teatral, observando os atritos entre o real e a ficção, as estratégias de construção narrativa, os mecanismos da memória e o lugar do espectador. Palavras-chave: Autobiografia – Narrativa – Memória
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Orientação de Gabriela Lírio
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(AUTO)BIOGRAFIA: A ESCRITA DE SI (DO OUTRO) NA CENA
O interesse pela autobiografia na cena contemporânea surgiu durante o evento Diálogos sobre teatro documentário, idealizado e realizado por Davi Giordano e pelo Grupo Garimpo, no qual estiveram presentes artistas que pesquisam o uso do autobiográfico e de documentos “não-ficcionais” na cena. Entre eles, estava a pesquisadora argentina Pamela Brownell, que falou sobre o trabalho da diretora, também argentina, Vivi Tellas e sobre o desenvolvimento do seu projeto estético, chamado “Biodrama”. O biodrama é uma biografia cênica. Nesta pesquisa, a diretora trabalha com não-atores, utilizando-se da história da vida real deles para a construção da cena. O que atrai neste trabalho é que Vivi Tellas procura sempre modificar as histórias. Não interessa à diretora manter as coisas como estão. Existe um tensionamento entre autobiografia e biografia muito potente. Para Brownell, o trabalho de construção da peça a partir dos relatos de vida está muito mais próximo de um trabalho biográfico do que autobiográfico. As intérpretes participam do processo narrando suas histórias e existe aí um princípio de construção, mas logo este material vai se transformando completamente em função do olhar exclusivo da diretora (BROWNELL, 2013).
Este tensionamento foi importante para a pesquisa, pois gerou questões a respeito da importância e do lugar do diretor dentro da construção das cenas autobiográficas. A partir deste momento, questões passaram a surgir: qual a potência do aparecimento do real dentro da cena? De que forma o diretor deve estar atento às
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estratégias utilizadas pelo ator ao contar a sua história? Como se dão as apropriações, articulações, edições que vão construir a cena autobiográfica? Quais as relações que se estabelecem entre diretor e atores, entre aquele que olha e escuta e aqueles que são “donos da história”? Mas, antes de responder tais questões, é preciso construir um entendimento acerca da noção de autobiografia. Para Duque-Estrada, talvez a maneira mais apropriada de abordar o tema da autobiografia seja afirmando positivamente aquilo que ela não é e não pode ser, afirmando a sua impossibilidade de cumprir a sua mais profunda promessa: apresentar a verdade de uma vida reunida numa narrativa (DUQUE-ESTRADA, 2009, p.17).
Apesar de permanecer num lugar marginal na tradição da grande literatura, a autobiografia sempre foi uma instituição solidamente estabelecida a partir de concepções que se mantiveram imperturbadas durante mais de dois séculos, mas que perdeu a legitimidade depois de um determinado momento, tornando-se desacreditada. A ideia de um sujeito único e auto-idêntico e a crença numa exterioridade entre o eu e a linguagem, que serviria apenas como representação de experiências vividas, são concepções que não se sustentaram devido ao advento de um novo pensamento crítico. Uma transformação que se deu com uma descontinuidade radical dos princípios e fundamentos que vigoravam na sociedade. A linguagem torna-se objeto de estudo.
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(AUTO)BIOGRAFIA: A ESCRITA DE SI (DO OUTRO) NA CENA
A representação perde o privilégio concedido a ela e também entra em crise. De acordo com Duque-Estrada, percebe-se que o sujeito nunca esteve presente a si mesmo, que a relação a si é sempre uma relação heterogênea, a atualidade da autobiografia, a questão autobiográfica, se reconfigura de um tal modo que, ou bem ela se mostra como uma questão obsoleta na perspectiva do pensamento orientado por critérios de verdade e objetividade, ou bem ela exige um novo modo de pensar que possa responder a sua radical atualidade (DUQUE-ESTRADA, idem, p.15).
Sob essa nova perspectiva, nenhuma narrativa biográfica pode ser considerada como operadora do elo final, o marco zero, capaz de representar a identificação total. Para Leonor Arfuch, “nesse entrecruzamento de perspectivas, a narração de uma vida, longe de vir a ‘representar’ algo já existente, impõe sua forma (e seu sentido) à vida mesma” (ARFUCH, 2010, p. 30). A autobiografia como história de uma vida é, portanto, a reconfiguração de histórias divergentes, superpostas, das quais nenhuma poderá aspirar a maior representatividade. Arfuch chama a atenção ainda para o fato de que não é o conteúdo do relato e sua veracidade o que importa, mas sim as estratégias utilizadas na construção da subjetividade e da narrativa. O suporte em que se dará essa narração molda e impõe sobre a narrativa uma for-
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ma de narrar. São os limites da página para um texto, o enquadramento de uma câmera, o espaço da cena. É a linguagem do suporte, do meio utilizado para a narrativa. Sendo assim, narrar é sempre dar ordem a algo que é caótico: a vida. Ela não pode ser deslocada de seu caráter configurativo, nem de sua intencionalidade. A cada narração, uma nova autobiografia se constrói. Se a narrativa autobiográfica não comporta mais falar de um “eu” idêntico a si mesmo, ela vai se referir sempre a um “outro eu”. A autobiografia consiste, portanto, num contar-se a si mesmo, sem a identidade do “eu” consigo mesmo. No relato, o “eu” atual está de frente com outro “eu”. Existe uma distância temporal, entre o momento da narração (tempo atual) e a vivência (tempo passado). Além disso, existe um distanciamento que permite um estranhamento do enunciador quanto a sua própria história, permitindo realizar uma confrontação rememorativa sobre o que era e o que chegou a ser. Não há, portanto, coincidência entre narrador e personagem. A importância do enunciatário também é fundamental de se levar em conta quando pensamos em relatos autobiográficos. Primeiramente, porque as escolhas narrativas se modificam sempre que se altera o receptor. Isto porque a identificação e, consequentemente, a identidade narrativa se dá sempre em relação ao olhar do outro. O narrador leva em consideração este outro, suas possíveis expectativas em relação ao que será dito, o grau de intimidade. O narrador opera as seguintes perguntas: “para quem estou atuando este papel?”.
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(AUTO)BIOGRAFIA: A ESCRITA DE SI (DO OUTRO) NA CENA
Impossível pensar uma narrativa autobiográfica sem se questionar “quem fala?” e “para quem se fala?”. Toda construção identitária se faz a partir dessa relação dialógica e relacional. No espetáculo Duo sobre desvios1, criação dos artistas Cadu Cinelli e Fabrício Moser, em determinado momento, o espectador era convidado a narrar suas histórias sobre o abandono. O lugar do espectador é deslocado e ele aparece também como criador dessa narrativa autobiográfica. Seja por condicionar o relato do narrador, gerar expectativas, relações de espelhamento e identificação, como também por, ele mesmo, configurar suas próprias narrativas autobiográficas. O olhar do espectador é um olhar autobiográfico. Além disso, um relato autobiográfico é sempre marcado pela memória, com suas lembranças, lapsos, retornos, o que se lembra, o que se esquece e o que se omite. Memória que está intimamente relacionada com aspectos sensoriais, cheiros, sons, percepções táteis, imagens visuais. Memória que se constrói de modo inseparável da imaginação e também da atualidade da narração. Para Eleonora Fabião, ao falar da experiência do corpo cênico, “imaginar implica memória, rememorar implica imaginação e ambos os movimentos se realizam na atualidade fenomenológica do fato cênico” (FABIÃO, 2010, p. 323). Essa experiência parece também acon1 Durante a pesquisa, realizou-se entrevista com Cadu Cinelli e Fabrício Moser, atores-criadores do espetáculo Duo sobre desvios, em cartaz no Centro Coreográfico da Tijuca. A montagem tinha como tema de pesquisa a seguinte questão: “como celebrar o abandono?”.
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tecer no processo de narração autobiográfica, no qual é impossível desentrelaçar as referências mnemônicas, imaginárias e do contexto atual. Essa relação entre ordem e caos, real e ficcional, memória, imaginação e atual, experiências sensoriais, parece ser um campo potente para se investigar no processo de construção cênica com a autobiografia. Para Erika Fischer-Lichte, quaisquer que sejam os lugares e os momentos nos quais o teatro acontece, ele sempre se caracteriza por uma tensão entre realidade e ficção, entre o real e o fictício. Pois é sempre em espaços reais e num tempo real que se passam as representações e são sempre corpos reais que se deslocam nestes espaços reais. Dito isso, o espaço real, a cena, pode simbolizar diversos espaços ficcionais; o tempo real que dura o espetáculo não é idêntico ao tempo da peça e o corpo real de cada ator representa em geral um outro: uma figura dramática, um personagem (FISCHER-LITCHTE, 2013, p. 14).
São vários os mecanismos utilizados para confrontar a representação, tais como cartas, depoimentos, testemunhos pessoais e entrevistas. Além disso, a utilização de vídeos, fotografias e outros dados não ficcionais conferem status de verdade, legitimando como real o que se passa na cena. Temos a presença do real a partir do efeito de real. Efeito já que por mais que seja digno de ser chamado de real, ainda é teatral. Como lembram André Carrera e Ana Maria de Bulhões-Carvalho, 73 Ciclorama 1 C.indd 73
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essa é sua condição, sempre contraditória e ambígua. Trata-se de uma cena testemunhada no teatro, e por mais realidade que dê a observar, essa realidade está, desde o início, comprometida pelas circunstâncias de sua irrupção: ela se dá num espaço de convenções pré-estabelecidas. O simples fato de estar ocorrendo ali, naquele lugar denominado ‘espaço teatral’, compromete e determina a natureza daquele real (BULHÕES-CARVALHO; CARRERA, 2013, pp. 35-6).
Por fim, o atrito entre o real e o ficcional parece se intensificar quando a experiência na cena opta por tensionar essa relação. Surge, portanto, a possibilidade de brincar com os próprios mecanismos de legitimação do real. O espaço teatral se apresenta, portanto, como possível laboratório de subjetividades, no qual, mais do que a verdade do relato, interessa como se dão as estratégias dessa narrativa. BIBLIOGRAFIA ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2010 BROWNELL, Pamela. “Dramaturgia das (auto)biografias no teatro documentário de Vivi Tellas: O processo de construção de Mulheres Guias” In: Revista Questão de Crítica (http://www.questaodecritica.com.br/2013/12/ dramaturgia-das-autobiografias-no-teatro-documentario-de-vivi-tellas/) Acesso: 11 de maio de 2014. CARRERA, André; BULHÕES-CARVALHO, Ana Maria de. “Entre mostrar e vivenciar: cenas do teatro do real”. In: Revista Sala Preta, São Paulo, 2013, v. 13, no 2, pp. 33-44. DUQUE-ESTRADA, Elizabeth Muylaert. Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si. Rio de Janeiro, NAU / Editora PUC-Rio, 2009. FABIÃO, Eleonora. “Corpo cênico, estado cênico”. In: Revista Contrapontos – Eletrônica. 2010, v. 10, no. 3, p. 321-326. FISCHER-LICHTE, Erika. “Realidade e ficção no teatro contemporâneo”. In: Revista Sala Preta, São Paulo, 2013, v. 13, no 2, p. 14-32. LÍRIO, Gabriela. Autobiografia na cena contemporânea: tensionamentos entre o real e o ficcional ( no prelo). SOLER, Marcelo. Teatro documentário: a pedagogia da não ficção. São Paulo, HUCITEC, 2010.
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Sobre o ofício de olhar: a produção de comentários críticos a partir da experiência como espectador de espetáculos teatrais Alexandre Francisco da Silva*
Este artigo trata da experiência de treinamento do olhar que a pesquisa Introdução ao teatro: a composição de um curso, sob orientação da Professora Eleonora Fabião, tem me proporcionado. Sigo a sugestão de Jerzy Grotowski, quando diz que o diretor teatral é um “espectador de profissão” e me empenho em escrever um comentário crítico sobre um espetáculo a que assisti: Conselho de classe, da Cia. dos Atores, dirigido por Bel Garcia e Susana Ribeiro. Aqui estão em jogo: a análise de escolhas cênicas, a articulação entre teoria e prática e a recepção crítica e sensível do fenômeno teatral. Palavras-chave: Teatro – Recepção – Ruído
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Bolsista CAPES/JTCIC. Orientação de Eleonora Fabião
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SOBRE O OFÍCIO DE OLHAR: A PRODUÇÃO DE COMENTÁRIOS CRÍTICOS A PARTIR DA EXPERIÊNCIA COMO ESPECTADOR DE ESPETÁCULOS TEATRAIS
Começo com as palavras de Jerzy Grotowski para falar de como a experiência da pesquisa Introdução ao teatro: a composição de um curso — cujo objetivo é a criação de ementa, bibliografia e planos de aula de uma disciplina de graduação voltada para a introdução ao teatro — tem treinado meu olhar. Destaco, especificamente, uma das práticas desta pesquisa orientada pela Professora Eleonora Fabião: assistir a espetáculos teatrais na cidade do Rio de Janeiro e escrever comentários críticos sobre eles. Tal prática visa a potencializar e aprimorar minha capacidade de articulação e sensibilidade como espectador teatral, aluno-diretor e artista-pesquisador. Ao longo desta pesquisa, venho me interessando, sobretudo, por analisar as escolhas artísticas que definem os espetáculos. Pois, mais importante do que atentar para o que se gosta ou não em cena, é analisar escolhas e metodologias — identificar o que está sendo proposto, de que modos de operação e escolhas estéticas a direção, os atores e os demais integrantes do grupo de criação se valem. Penso que este tipo de abordagem tira o ranço de análise valorativa e o tom de guia de consumo que, por vezes, define a crítica teatral. Interessa a articulação entre teoria e prática, a possibilidade de reflexão e reexperimentação a partir da escrita sobre um espetáculo teatral. Articular, refletir e reexperimentar o teatro através da escrita de comentários críticos é fundamental para o desenvolvimento da produção cênica. Uma boa análise crítica é um trabalho de oxigenação. Ao falar sobre o que julga ser um bom crítico, Peter Brook propõe que
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o crítico vital é aquele que já formulou claramente, para si próprio, o que o teatro poderia ser — e que é ousado o bastante para pôr em questão essa sua fórmula, toda vez que participa de um acontecimento teatral (BROOK, 1970, p. 17).
Importante ressaltar aqui o não endeusamento do crítico. Assim como percebo, o “crítico vital” propõe questões e, como os demais mortais, não possui todas as respostas. Como enfatiza Brook, trata-se de um espectador especialmente preparado e disponível para o encontro com o fenômeno teatral. Escolho, então, o espetáculo Conselho de classe da Cia. dos Atores — texto de Jô Bilac, direção de Bel Garcia e Susana Ribeiro, a que assisti em fevereiro de 2014 no Galpão Gamboa, Rio de Janeiro — para desenvolver este exercício de escrita crítica. Tomo como referências: 1) meu processo de formação como aluno-diretor interessado em analisar as opções estéticas que definem um espetáculo; 2) o interesse como artista-pesquisador em formas de ver-escutar-cheirar-rememorar teatro e reexperimentar a cena através da escrita. Em Conselho de classe, os ruídos em meio aos silêncios e às falas constituem um dos elementos que mais me chamam atenção — uma dramaturgia sonora bem estruturada que concretiza atmosferas, desenha relações e faz perceber o invisível. A primeira cena já é ruidosa. Uma vez cessado o barulho de entrada e acomodação do público no espaço do Galpão Gamboa, percebemos, pela audição e pela visão, que estamos diante da quadra de esportes de uma escola. Neste cenário, minuciosa-
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mente realista, inclusive com tamanho muito próximo ao das quadras por aí, encontramos elementos que evocam memórias escolares: armários com desenhos e nomes escritos, cadeiras de diferentes tipos, trave sem rede, bolas espalhadas, um bebedouro, uma mesa com papéis, pastas e, por fora da rede que protege a quadra, do lado esquerdo, tábuas pintadas com desenhos supercoloridos ao longo de um corredor que serve de entrada e saída para os personagens. É este o cenário, da cenógrafa Aurora dos Campos, que percebo quando chego. E lá já se encontra um ator, Cesar Augusto. E, de saída, já escuto um ruído: o som de um pátio de escola com vozes e gritos de crianças. Ouve-se também uma voz que fala da educação, da sua importância para o desenvolvimento de qualquer nação, e de como isso se dá no Brasil. Com esta citação de Darcy Ribeiro, fica claro que Conselho de classe será uma reflexão sobre educação em nosso país. O personagem de César Augusto está à espera de outros professores para um conselho de classe. Porém, só aparecem para a reunião mais três professoras e o novo diretor. Os temas discutidos neste encontro vão desde o afastamento da última diretora da escola, ferida durante uma manifestação de alunos, até o fato de uma das professoras monopolizar o uso da quadra de esportes. O dramaturgo Jô Bilac, para tratar de um tema difícil e amplo, escolhe dar contornos muito humanos para seus personagens e as situações. Não cria educadores estereotípicos que reproduzam discursos já gastos sobre o descaso do poder público, as péssimas condições de trabalho ou o despreparo de professores e alunos diante do desafio de educar em tempos de mídias digitais e redes sociais. É claro que todas estas questões ficam evidentes ao longo da ação, mas Jô
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Bilac ressalta banalidades, picuinhas e trivialidades vividas cotidianamente por esses educadores. Discussões do dia-a-dia se misturam com reflexões sobre modos potentes de pensar e fazer educação aqui e agora. A peça acaba por revelar como as micro-escolhas que fazemos refletem algo maior, como comportamentos cotidianos determinam políticas sociais, culturais e educacionais. Ao longo de Conselho de classe fica evidente como a questão da educação é múltipla, visto que os ruídos de cada um dos personagens são extremamente diferentes. Fica claro também que é mais importante tratar a educação não como algo que está separado das minhas ações e escolhas, mas como algo que depende da minha postura, do meu posicionamento. E que discussões e decisões, diante de múltiplos caminhos possíveis, requerem escuta. Penso, novamente, nos ruídos que parecem deixar-nos numa surdez cega no trato com a educação. A direção opta por um elenco inteiramente masculino para interpretar as quatro professoras e o diretor substituto. É uma escolha que se mostra muito interessante, já que não estamos diante de atores homens recorrendo à afetação ou a composições que evidenciam características ilustrativas de feminilidade. São homens, vestindo roupas de homens, falando com seus “habituais” registros vocais e movimentando-se como, geralmente, se movimentam os homens. Apesar disso, é muito contundente a presentificação da feminilidade sem que os atuantes recorram a caminhos óbvios. O elenco evidencia os ruídos que emergem dos embates, torna sensível o calor que faz suarem os cor-
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pos, cria uma atmosfera de cansaço, do não querer estar ali. O elenco está na quadra e os espectadores estão sentados em cadeiras numa das laterais maiores da quadra-cenário, mas a sensação que tenho é que durante a encenação “o lugar onde estou é um fluxo”. A encenação me move entre a minha antiga escola e a imaginação-visão de uma escola que ainda não conheço. Fico em deslocamento entre o reconhecimento de minhas professoras do primário e o desconhecimento de professoras homens à minha frente. Eu falava dos ruídos que o espetáculo produz e escuta. Ressalto a orquestração de ruídos e silêncios na trilha original de Felipe Storino. Também o modo como Suzana Ribeiro e Bel Garcia imprimem justa limpeza ao espetáculo que poderá então ser sujado e sujar-se com ruídos. As diretoras propõem ruidosas interferências nos diálogos e relações e privilegiam uma atuação onde a escuta é componente central. Há interferências externas — como os telefones que tocam no meio das conversas ou os mosquitos que azucrinam com seus zumbidos —, mas também atores na escuta de seus próprios ruídos e silêncios. Marcelo Olinto, que compõe seu personagem a partir de um andar desacelerado, pesadamente fluido, muito orgânico e uma fala flutuante, parece passear pelas sensações escutando seus barulhos internos, escutando aquela experiência. Os barulhos pelos quais Thierry Trémouroux parece se contaminar são os da multidão. Estão ali seu sotaque particular, sua fala urgente de alguém que precisa mostrar ao outro o que é preciso ver. São potentes as cenas em que sua personagem, tia Mabel, lê os poemas de seus alunos; e também a cena em que lê a carta que enviou à Secretaria de Edu-
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cação solicitando uma nova diretora, momento em que se transforma em manifestante, se mascara e ergue um spray. Há também uma composição que parece ignorar o silêncio ou supervalorizá-lo: a professora de Leonardo Netto é inflexível, é surda ao outro, está imersa num super-ruído que ignora as músicas que ela própria não canta. Já o que a tia Célia Patrícia de César Augusto parece escutar é um ruído à frente, a busca por melhores condições para o desenvolvimento de seu ofício e os barulhos das múltiplas tarefas de uma professora que é sacoleira. Paulo Verlings, atuando o diretor substituto, mobiliza os sentidos para perceber e tentar compreender o ambiente novo no qual foi recentemente jogado; seu personagem experimenta instabilidade, mas age de forma contundente para se impor e sobreviver. Num dado momento do espetáculo, uma tartaruga é colocada sobre uma das cadeiras. Ela permanece lá, imóvel, silenciosa, ninguém a percebe. Esse signo ainda reverbera fazendo barulho dentro de mim. Da imperceptibilidade de uma tartaruga num conselho de classe. Da surdez que cega. Da lentidão que uma cadeira pode encerrar. E, também, da tarefa sempre desafiadora de se por disponível frente a um ruidoso espetáculo teatral.
BIBLIOGRAFIA BROOK, Peter. O teatro e seu espaço. Petrópolis, Vozes, 1970. GROTOWSKI, Jerzy. “O diretor como espectador de profissão”. In: FLASZEN, Ludik; MOLINARI, Renata e POLLASTRELLI, Carla (orgs.). O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969. São Paulo, Perspectiva, 2010.
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Corpo múltiplo na colônia Natã Ferreira Lamego
Este artigo trata de um corpo múltiplo no traçar de uma brasilidade paradoxal. Para tanto, têm-se, como suportes, conceitos de colonização e alegoria, numa análise do corpo-prosa cômico e trágico de Macunaíma, escrito por Mario de Andrade em 1928. A hipótese é que o confronto modernista com ideais românticos possui ressonâncias significativas e serve de base para pensar uma cena periférica e desregrada hoje. Palavras-chave: Brasilidade - Tragicidade - Corpo
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CORPO MÚLTIPLO NA COLÔNIA
Em Corpo colonizado, André Lepecki cita Derrida para desenhar uma ideia de colonialismo como forma de estrutura social e de pensamento, uma ‘escritura’ insidiosa e ágil predicada em meios de ‘leitura’, discriminação e opressão de certos fenótipos humanos, sobre os quais fantasias de sadismo e controle são operadas (LEPECKI, 2003).
O filósofo trata o colonialismo como condição histórica presente e Lepecki, por conseguinte, desconstrói o paradigma da pós-colonialidade, no qual o Ocidente celebra a cultura do “ontem colonizado”. Penso nos “rolezinhos”, que dão a ver um colonialismo em ação no Brasil: jovens da periferia em cidades como São Paulo e Porto Alegre reúnem-se em shopping centers, trajando roupas de marca, em bandos e com hora marcada. Eles ocupam os espaços privados com seus melhores trajes para serem vistos e aceitos. Os primeiros movimentos, como o que causou o boom no Shopping Tatuapé (São Paulo), não se pretendiam atos de resistência ao sistema capitalista e opressor. Ao contrário, buscavam inclusão social através da sua forma alegre (e lúdica) de passar o tempo num ambiente valorizado pelos desejos de consumo. No entanto, sua presença causou desconforto na classe média e nas elites frequentadoras dos centros comerciais. Apesar de vestirem-se com marcas do mercado hegemônico, os corpos desses jovens ainda precisam ser domados e disciplinados aos olhos de quem ocupa o território do consumo. Os “rolezinhos” incomodam porque não se inserem completamente no sistema de valores ocidentais, isto é, eles escapam aos
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“bons modos”, “bons costumes” e “bom senso”. Causam desconforto e medo em transeuntes e lojistas. A classe média e as elites reconhecem, nesses corpos coletivos, o Outro. E o Outro precisa ocupar um território diferente, ou ser colonizado – destituído de sua carga de diferença. No pensamento de Walter Benjamin (1984), alegoria é o processo de dar forma a um discurso, transformar uma ideia em corpo. A morte é o meio (e ideia) pelo qual ela opera: arranca-se de uma imagem o seu sentido original (matando-a) para obrigá-la a significar outra coisa. Trata-se de um movimento escatológico – morrer para nascer de novo. E nas empreitadas de evangelização, figuras alegóricas foram amplamente utilizadas pela Igreja. Veja-se o Diabo: a personificação do Mal, do Desconhecido, do Outro. Esse Outro está sempre a mudar de endereço e forma, sempre a ser representado por um novo corpo. Consequentemente, ele é o Sem-Forma: figura que não pode ser apreendida em uma unidade, mas entendida em um corpo múltiplo; espécie de “significante flutuante” [...] algo que no campo dos signos se mantém disponível sem um ponto de fixação no significado. [...] todo o campo da diferença ou do afastamento dos princípios cristãos, fosse na ordem da natureza, nas das outras e diferentes realidades étnicas, quanto no próprio princípio de movimento social e individual, é atravessado pelo sentido aberto ou extenso desta figura. Ou seja, o corpo diferente ou monstruoso [...] (TUCHERMAN apud GADELHA, 2013, p. 36).
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CORPO MÚLTIPLO NA COLÔNIA
No século XIII, por exemplo, a barba e a pele escura são apreensões de um fenótipo árabe, inimigo da Igreja. O Outro, o Desconhecido, é o Sem-Corpo, porque ganha corpos sem referência à Ordem, abalando-a. Séculos depois, esse Outro vai ser traçado por novos contornos: no contexto do Descobrimento do Brasil, o homem Europeu se deparou com o índio americano. Dentre a pluralidade cultural nativa, costumes como a antropofagia, a nudez e o culto a diversos deuses iam de encontro ao sistema de valores e de imagens cristão. Assim, tanto a catequese de Anchieta como Os sermões de Antônio Vieira esforçar-se-ão (sem alcançar seus propósitos imediatos) por moldar os corpos da colônia portuguesa. O homem branco vai formular o paradigma do selvagem a partir de um olhar interrogativo sobre si, “o civilizado” (GADELHA, idem). Modernismo brasileiro, 1928: os românticos haviam produzido um índio comportado, segundo os padrões europeus. A Iracema de José de Alencar, por exemplo, é uma índia que inicialmente busca preservar a sua virgindade (encontro com dogmas cristãos). Fenótipo do dominado que dança conforme o dominante. O ideal de identidade nacional edificado pela moral do dominador pretende domesticar as infinitas etnias e culturas do território brasileiro. Para subverter essa brasilidade comportada e subserviente (ou desmoralizar-lhe o projeto), Mario de Andrade escreve um herói nacional “sem nenhum caráter”. Um índio-preto que não se deixa apreender por nenhum sistema de códigos. Macunaíma não é o índio comportado. Tampouco é índio. Ao mergulhar numa cova encantada no meio de um rio, fica branco e de olhos azuis. Ele é branco,
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índio e preto, ao mesmo tempo em que não é nenhum. Diálogo direto com a fábula das três raças, produzida por uma ideia de democracia racial cunhada no Romantismo. O preguiçoso (segundo os padrões de uma economia e uma cultura de acumulação de capital) não é imune à cultura dominante; ele é a figura do dominador e do dominado ao mesmo tempo. Macunaíma é malandro, trapaceiro; perverte as regras (adotando-as e recusando-as) em todos os espaços que frequenta, sem se deixar capturar. Mario de Andrade desenvolve uma brasilidade na figura de um verdadeiro diabrete (energia infantil, zombeteira, produtora de caos) que assume diversos devires corporais; um corpo múltiplo que é como um desfile de alegorias, sempre a transformar-se num novo. A façanha se dá dentro de um sistema de imagens do universo popular. Lembro do episódio da cotia: Contou como enganara o Currupira e deu uma grande gargalhada. A cotia olhou pra ele e resmungou: — Culumi faz isso não, meu neto, culumi faz isso não... Vou te igualar o corpo com o bestunto. Então pegou na gamela cheia de caldo envenenado de aipim e jogou a lavagem no piá. Macunaíma fastou sarapantado mas só conseguiu livrar a cabeça, todo o resto do corpo se molhou. O herói deu um espirro e botou corpo. Foi desempenando crescendo fortificando e ficou do tamanho dum home taludo. Porém a cabeça não molhada ficou pra sempre rombuda e com carinha enjoativa de piá. (ANDRADE, 1988, p. 11)
Note-se a maneira de escrever do autor, que descoloniza a escrita, foge (e retorna) à norma padrão e firma uma mu-
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sicalidade do falar. A leitura do romance exige que se abra mão da rigidez gramatical para inaugurar um novo português, brincadeira com oralidades e desdém para com a norma-padrão. Em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, Bakhtin (1993) define o realismo grotesco como um sistema de imagens da cultura cômica popular, inscrito em uma concepção cômica do mundo, única e verdadeira. A essa estética grotesca, ligam-se imagens que remetem à incompletude, ao transitório, à fertilidade, ao crescimento, à superabundância e ao excesso. Bakhtin define uma das tendências fundamentais da imagem grotesca como o corpo que exibe dois corpos em um. O zombeteiro Macunaíma se revela aí paradoxalmente: ele é criança e adulto. Há nele um encontro entre um sistema de imagens imemorial (popular, carnavalesco, pagão) e um ethos cristão. Um corpo grotesco inicialmente índio-preto, criança-adulto, que mergulha numa cova encantada no meio de um rio, no formato do pezão de Sumé, “do tempo que andava pregando o evangelho de Jesus pra indiada brasileira.” (ANDRADE, idem, p.25) Fica branco dos olhos azuis. Passa a ser índio e preto e branco e criança e adulto, ao mesmo tempo em que não é nenhum. Brasilidade construída no Sem-Forma que assume todas as formas. Evoco a filosofia de Deleuze e Guattari (1993) para tensionar a operação do “e” com a operação do “ou”. Nesse corpo, a composição não é de elementos que se excluam, mas convivem no conflito de sua produção e potência. Assim como o transitar entre a norma-padrão e registros falados no texto de
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Mario destitui a norma-padrão da sua dominância, o transitar de Macunaíma entre todos esses corpos descoloniza o brasileiro. Mario de Andrade constrói seu herói numa linguagem cômica, debochada e brincante. Mas não se pode ignorar o aspecto trágico desse corpo: inapreensível, visto que não possui forma única, produzido pelo conflito de fenótipos e culturas graças à operação aditiva e inclusiva do “e”. Os horrores exercidos pela colonização que compõem as identidades brasileiras são transformados em riso. Trata-se de um lugar de ruptura: ruptura grotesca com o acabamento clássico, ruptura com as operações de exclusão (“ou”), ruptura com o modelo de homem ocidental, ruptura com a concepção romântica de identidade nacional, ruptura com o corpo colonizado, ruptura com a unidade de corpo. O que aproxima Macunaíma dos “rolezinhos” é ser esse Outro brincante e desregrado que resiste (mesmo sem querer) às vestimentas corporais de dominância às quais, ao mesmo tempo, adere. Ambos os “estares” são atos políticos radicais: transitam por territórios do corpo colonizado e revelam (produzem) a diferença. O herói e os rituais habitam paradoxos: serem jocosos e trágicos, colonizadores, colonizados e descolonizados. Quando lançado em 1928, Macunaíma punha em xeque ideais herdados do Romantismo. Hoje, ainda é fundamental no confronto do paradigma pós-colonial e na afirmação de uma brasilidade produzida pela diferença. Tem mais não.
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BIBLIOGRAFIA ANDRADE, Mário de. Macunaíma. Editorial CSIC-CSIC Press, 1988. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo, HUCITEC; Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1993. BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo, Brasiliense, 1984. DELEUZE, Gilles; FÉLIX. Mil Platôs. V. 1. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1993. GADELHA, Carmem. Corpo, espaço, tempo: indagações sobre poética do teatro. Rio de Janeiro, Aretê, 2013. LEPECKI, André. “O corpo colonizado.” Gesto–Revista do Centro Coreográfico (2003): 7-11.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Reitor Carlos Antônio Levi da Conceição Pró-Reitora de Graduação Angela Rocha dos Santos Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Débora Foguel Pró-Reitor de Extensão Pablo Cesar Benetti CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Decana Lilia Guimarães Pougy Coordenação de Integração Acadêmica de Pós-Graduação Mohamed Al-Hajji Coordenação de Integração Acadêmica de Graduação João Batista Ferreira ESCOLA DE COMUNICAÇÃO Diretor Amaury Fernandes da Silva Jr. Vice-Direção Cristina Rego Monteiro da Luz Direção-Adjunta de Graduação Isabel Siqueira Travancas Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Ana Paula Goulart Ribeiro Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena Gabriela Lírio Gurgel Monteiro Coordenação de Direção Teatral Lívia Flores Lopes
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Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral Ano 2, Número 1
1 ISSN 2596-2485
Escola de Comunicação Universidade Federal do Rio de Janeiro
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