ISSN 2596-2485
Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral V. 7, 2019
Escola de Comunicação Universidade Federal do Rio de Janeiro
Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral V. 7, 2019
Centro de Filosofia e Ciências Humanas Escola de Comunicação
Rio de Janeiro 2019
Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral V. 7, 2019
V. 7, 2019 Editoria e revisão Carmem Gadelha Felipe Valentim Capa e diagramação Gabriela Benevides (Bolsa Prêmio PROART/FCC) Orientação: Andréia Resende Produção Érika Neves Corpo editorial (Professores da Direção Teatral) Adriana Schneider, Alessandra Vannucci, Caio Riscado, Carmem Gadelha, Daniel Marques, Eleonora Fabião, Gabriela Lírio, Jacyan Castilho, José Henrique Moreira, Lívia Flores
C568 CICLORAMA - Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral. – vol 1 (2013) - . – Rio de Janeiro : UFRJ, Escola de Comunicação, 2013 V. Anual. A partir de 2018 passou a ser publicada em formato eletrônico. Disponível em: https://issuu.com/ciclorama ISSN 2318-6232 (versão impressa) ISSN 2596-2485 (versão on-line) 1. Artes cênicas - Periódicos. 2. Teatro - Produção e direção Periódicos. I. Gadelha, Carmem. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Comunicação. CDD: 792
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Editorial
— ABERTURAS 17
Os modos de produção dos coletivos da Rede Baixada em Cena Taís Sobrinho Trindade
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Cadê o Boi Tolo?: experiência nos blocos de rua do Rio de Janeiro Fernanda Arrabal
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Bonobando: a construção da identidade coletiva Hugo Bernardo Souza
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Onde está o Hélio?: um espetáculo do Coletivo Zume na Praça Tiradentes Isadora Giesta
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Teatro do oprimido e masculinidades Arnon Segal Hochman
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O corpo como caminho: a fisicalidade do ator como ferramenta para a construção da personagem Igor Capanema
65
Para pensar e fazer performance, corpo e cidade: pesquisando trabalhos de Lygia Pape dos anos 60 em 2019 Cecília Fonsêca de Carvalho
73
O corpo-objeto e a cenografia performativa Henrique S Bueno
— PASSAGENS 83
Como viver de arte neste país com a atual conjuntura política?: um exercício de escrita situada Érika Neves
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Da arte de estar em boa companhia Ribamar Ribeiro
101 Linhas: construção de “outros” possíveis na cidade Ian Calvet Marynower
111 Amor não recomendado: do processo à cena Raíza Cardoso 121 Memória e canibalismo no laboratório de criação e investigação da cena contemporânea Lucas Rodrigues de Souza
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Editorial
Que caminhos a arte indica, em tempos tão obscuros? De que modo artistas e pesquisadores podem resistir a tanta rarefação de criticidade, empatia e solidariedade, embora seja farta a produção de discursos e imagens? O conjunto de trabalhos organizados neste volume 7 de Ciclorama, ensaia, com frescor juvenil, algumas respostas, valendo-se de um tom intimista e pessoal, pois o sujeito da experiência problematiza o distanciamento do pesquisador para assumir inteiramente o artista que relata passos de sua pesquisa e inquietações. Pensar e fazer, fazer e pensar: são trajetórias imbricadas e simultâneas. O afeto aparece como força revolucionária. E a arte de produzir afetos caminha na contramão do que, constantemente, ameaça devorar-nos. As reflexões de Martha Nussbaum, publicadas com o título Not for profit: Why democracy needs the humanities (Princeton University Press, 2010), bem poderiam costurar os entre-caminhos e rastros deixados na colagem de pensamentos agrupados neste número de Ciclorama. Ressalte-se a importância das artes e das humanidades na explicitação de campos de disputa subjetiva, política, histórica. Daí emergem a crítica e a imaginação. O combate é ao neoliberalismo e à banalização. A pesquisa em artes assume seu papel na expressão de anseios e angústias diante do quadro acadêmico excludente, que apenas tateamos superar. Pode ser surpreendente verificar a contribuição dada a questões de minorias. São elas nosso grande desafio: dar às cotas algo além 9
do mero aumento do número de estudantes agora ingressos na vida universitária. Os últimos movimentos reivindicatórios nas ruas de todo o mundo mostram que não há silêncio frente ao lucro insaciavelmente concentrado; os cidadãos demonstram não querer ser reduzidos à previsibilidade e à eficiência; negam-se a ser variável do cálculo de resultados. Junto às subjetivações que emergem, uma arte política de novas feições. Uma arte que rasga os espaços, solta os corpos, escapa aos modelos históricos com os quais dialoga. Uma arte que busca, no tempo presente, a presença. São tempos de luta contra o aniquilamento. Os relatos aqui apresentados afirmam as artes no seu aspecto de fundamento: a poética produz o que não existe; com isto, ultrapassa a técnica e refaz a estética, porque não se limita a “saber fazer” nem se prende a normas de gestão do sensível. Então nos encontramos com uma ética dos possíveis. Ciclorama responde a estes tempos. Em 7 anos de vida, continuamos resistindo à escassez de recursos, ao projeto de desmonte da educação pública brasileira, à demonização das artes e dos artistas pela histeria fascista em ascensão. Chamamos atenção para alguns prefixos apostos à raiz verbal istere: ex-istir – manifestar-se, sair de, provir de, mostrar-se; in-(s)-istir – colocar-se sobre, ir ao encontro de; con-(s)istir – por-se, ser composto de. São todos modulações e modos de ser (sedere) e estar (stare). Todos expressam – forçam para fora de si e (se) mostram – o que somos (uma permanência) e estamos (porque não nos apegamos ao fixo). Insistimos em ser e nos assentar; consistimos porque nos colocamos juntos e junto a: compomos. Tudo isto afasta de nós o de-(s)istir – abster-se, renunciar a. Tudo isto nos separa de esse, porque, para sermos o que somos, não podemos dizer é: a Terceira Pessoa do singular, que não exige objeto nem executa planos, aquele que não 10
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existe, nem consiste. Contrariamos as Escrituras para nos tornar verbo de ligações mundanas. Há 7 edições colocamos em circulação, partilha de ideias e divulgação textos provenientes da Iniciação Científica do Curso de Direção Teatral da ECO/UFRJ (“Aberturas”). Somos uma revista da graduação, resultante das trocas construídas entre alunos-diretores e seus orientadores no Seminário de Pesquisa da Direção Teatral. Ressalte-se que o Seminário abriga iniciativas ligadas à Extensão. Mas temos também um aspecto híbrido de “herói sem caráter”; a segunda parte de Ciclorama (“Passagens”) volta-se, agora, para trabalhos com novas feições. Houve, ao longo do tempo, textos resultantes de disciplinas teóricas, entrevistas, rodas de conversa. Aos poucos, foi-se desenhando um espaço de relações interinstitucionais e de intercâmbio entre Graduação e Pós, incluindo programas de outras universidades. As edições online podem facilitar esta cena dividida em dois atos. Seguimos afinidades temáticas entre os diferentes interesses e abordagens, para organizar a sequência de trabalhos. Os modos de produção dos coletivos da Rede Baixada em Cena abre o espetáculo, trazendo as reflexões de Taís Trindade sobre as estratégias de produção utilizadas por coletivos da Baixada Fluminense, diante da situação crítica enfrentada pelos trabalhadores da cultura no Rio de Janeiro. Em seguida, Fernanda Arrabal e Hugo Bernardo trabalham suas abordagens sobre o coletivo: ela analisa a experiência dos blocos de rua no carnaval carioca; ele, a formação coletiva e a afirmação identitária do grupo teatral Bonobando. Isadora Giesta também se volta para o coletivo em suas reflexões, mas assume, como tema específico de investigação, o espetáculo-bloco de carnaval Onde está o Hélio? – do Coletivo Zume, para discutir maneiras de criar e produzir materialmente o trabalho teatral universitário, em um contexto políti11
co avesso à experimentação artística. Arnon Segal Hochman apresenta uma análise sobre as oficinas de “Teatro do Oprimido” e “Masculinidade” oferecidas pelo Laboratório de Estética e Política (LEP), na Escola de Comunicação da UFRJ. Este último é um exemplo de extensão universitária conjugada à prática da pesquisa. Estudos sobre o corpo são protagonistas, ainda nessas “Aberturas”, comparecendo com três enfoques e abordagens diferentes, mas dialogantes. Igor Capanema fala do ator como objeto central no processo de busca, descoberta e construção da personagem, a partir de seu acionamento em mecanismos de trabalho do próprio corpo. Cecília Carvalho se propõe refletir (e experimentar) as relações entre performance, corpo e cidade, tomando a obra de Lygia Pape como referência. Henrique S Bueno pensa aspectos relacionados ao corpo-objeto e à cenografia que se pode considerar performativa, promovendo diálogos com o seu experimento cênico Que todos los hombres se vayan a Irak, apresentado na Mostra Mais 2019 (disciplina Direção VI). O conjunto de textos reunidos em “Passagens” apresenta recortes de pesquisas desenvolvidas em Programas de Pós-Graduação da UFRJ, UERJ e UFF, além de um trabalho de Iniciação Científica realizado por um aluno da graduação em Antropologia da UFF. Érika Neves, produtora cultural da Escola de Comunicação da UFRJ e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC), abre a segunda parte da revista, refletindo, a partir de um exercício de escrita situada: Como viver de arte neste país com a atual conjuntura política?. Ribamar Ribeiro, diretor teatral e aluno do Programa de Pós-Graduação em Artes da UERJ (PPGARTE), discorre sobre as relações em sua companhia de teatro e a força criativa e produtiva dos integrantes. Ian Calvet é ex-aluno da graduação em Direção Teatral e atual mestrando do PPGAC. Seu texto busca respon12
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der à construção de outros possíveis na cidade, através do relato de uma prática performativa realizada em uma disciplina do Programa. Raíza Cardoso é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes (PPGCA-UFF). Ela apresenta o processo de construção do espetáculo Amor não recomendado, escrito e dirigido por sua orientadora, Martha de Mello Ribeiro. Encerrando a cena de “Passagens”, Lucas Rodrigues, aluno de graduação em Antropologia da Federal Fluminense, apresenta o recorte da pesquisa desenvolvida no Laboratório de Criação e Investigação da Cena Contemporânea, discutindo os conceitos de memória individual e poético-social. Este trabalho, embora proveniente de curso de graduação, aloca-se aqui por não ser participante de nosso Seminário de Direção Teatral. Chama atenção a predominância de relatos de experiências, tanto teatrais como performáticas, neste número da revista. Isto talvez aponte resultados de longos combates à dicotomia teoria/prática. Que não haja desprestígio de nenhum dos lados do binômio, pois o prejuízo seria de ambos. Afinal, dissemos acima, trata-se de artistas-pesquisadores.
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Imaginar – em muitos lugares diferentes, em estados os mais diversos, inclusive na fantasia e no devaneio – um futuro sem capitalismo talvez pudesse começar por sonhos do sono. Infundir no sono a ideia de uma interrupção radical, como a recusa do peso impiedoso do sono presente globalizado – um sono que, no nível mais prosaico da experiência cotidiana, pudesse esboçar os contornos de renovações e reinícios mais consequentes.
Jonathan Crary (24/7 Capitalismo tardio e os fins do sono).
— ABERTURAS
Os modos de produção dos coletivos da Rede Baixada em Cena Taís Sobrinho Trindade* Este artigo consiste na análise dos dados coletados na fase final da pesquisa “Arte e política em companhias teatrais”, especialmente sobre a Rede Baixada em Cena, a partir de entrevistas com três coletivos teatrais da rede: Cia. Cerne, Grupo Código e Trupe Investigativa Arroto Cênico. O objetivo desta investigação é compreender quais são os modos de produção utilizados por cada coletivo, diante da situação crítica enfrentada pelos trabalhadores da cultura da Baixada Fluminense, considerando que, historicamente, não costumam ser contemplados por ações do poder público e que, portanto, sempre precisaram criar outras vias para produzir seus espetáculos e outras atividades. Palavras-chave: modos de produção – coletivos teatrais – Rede Baixada em Cena
* Orientação: Adriana Schneider Alcure. Bolsa FAPERJ.
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Os modos de produção dos coletivos da Rede Baixada em Cena
Esta pesquisa, iniciada em 2017, vem observando a falta de investimentos do poder público em programas continuados e estruturais para as artes e a cultura. Interessam a esta investigação as respostas que os trabalhadores da cultura vêm dando a práticas políticas não democráticas, especialmente os modos autônomos inventados por eles para seguirem produzindo suas obras e as ações contra a arbitrariedade advinda dos detentores do poder. Considerando “teatro de grupo como um conceito que tem o próprio modo de produção como pressuposto” (MOREIRA, 2015, p. 290), os coletivos representam um dos caminhos possíveis para lidar com tais circunstâncias. Estas pequenas comunidades temporárias se formam, muitas vezes, para que seus integrantes consigam, juntos, encontrar formas de reunir recursos para materializar qualquer produção que desejem, sejam elas espetáculos, palestras, oficinas, festivais etc. A organização em grupo oferece alternativas diante da desvalorização do ofício teatral, especialmente em uma sociedade que impõe lógicas mercadológicas à arte. Picon-Vallin (2015, p. 175) afirma que a criação de um grupo “é de fato, para os jovens artistas, uma das únicas formas de resistir ao mercado do teatro que promove indivíduos escolhidos arbitrariamente; as chamadas ‘estrelas’, para melhor rejeitá-las em seguida”. Os diálogos com coletivos da Rede Baixada em Cena, entrevistados durante esta pesquisa, afirmam as reflexões supracitadas. A Cia. Cerne, sediada em São João de Meriti, no decorrer dos seis anos de existência, vem realizando um trabalho intenso de montagem e circulação de espetáculos, além da produção do Festival Cenáculo de Teatro. O grupo não conta com patrocínios. A maior parte da verba adquirida vem das apresentações de espetáculos, prêmios e cachês em festivais e editais culturais. Apesar do grupo estar conseguindo se manter neste momento, eles ainda identifi18
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cam uma instabilidade financeira, porque não sabem quando serão contemplados com um edital, ou quando aparecerão novas pautas em teatros e festivais. Recentemente, o grupo alcançou uma de suas metas: ter uma sede. Quando receberam o dinheiro que ganharam através do edital “SESI Novos Talentos”, não pagaram cachês aos membros do grupo, pagaram apenas à equipe convidada, pois decidiram investir no aluguel de algum espaço em São João de Meriti, onde fazem questão de permanecer, mesmo que somente um integrante resida no município. Para eles, é uma questão política, como afirma o diretor Vinicius Baião: A ideia é manter a sede na cidade, até pela carência de espaços culturais, pela ausência de atividades, tudo isso. Nós somos a única companhia da cidade. Tirando o SESC, não tem teatro. Agora reformaram um centro cultural que estava em obra durante cinco anos, mas que não funciona como centro cultural. É um aparato político.1
O plano é pagar um ano de aluguel com a verba do edital e gerar atividades na sede para criar um movimento cultural na região e para os ajudar a manter o espaço após o fim desse prazo. Como também foram contemplados com o edital “Rumos Itaú Cultural”, os integrantes estão trabalhando exclusivamente com a Cia. Cerne, sem necessidade de complementar suas rendas pessoais com outro emprego, com exceção do Baião, que é professor e continua dando aulas. Porém, este não é o panorama mais comum entre grupos de teatro. A Trupe Investigativa Arroto Cênico, de Nova Iguaçu, por exemplo, não dispõe de uma sede. Somente este ano, o 1
Entrevista concedida à autora, no Centro Cultural AMAR, em São João de Meriti, em maio de 2019.
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Os modos de produção dos coletivos da Rede Baixada em Cena
coletivo começou a ensaiar no município, embora tenha quatro anos de existência. Antes ensaiavam em Nilópolis, Mesquita ou São João de Meriti. A Trupe também não conta com patrocínio e já usou diversos métodos de captação para arrecadar dinheiro para montagem de espetáculos: mensalidades pagas pelos integrantes, festas, financiamento coletivo online e vendas de rifas e doces. Ademais, o grupo também circula por teatros e festivais e foi contemplado por alguns editais que geraram verba para eles. O Grupo Código está há mais tempo em atividade entre os três coletivos. O grupo é uma associação cultural sem fins lucrativos fundada pelos seus membros em 2007, dois anos após a criação da companhia de teatro. Até então, a instituição foi responsável por mais de dez projetos patrocinados por organismos de diversos setores, desde órgãos públicos através de leis de incentivo, até o de associações do terceiro setor realizados no Espaço Cultural Código, sua sede na cidade de Japeri. Já contaram com apoios, patrocínios e prêmios de fontes como: SESC, SESI, Associação Brazil Foundation, Ponto de Cultura, Petrobrás etc. Por isso, foram capazes de realizar montagens, circulações de espetáculos, oficinas e cineclubes para a comunidade, além da construção de uma biblioteca, entre outras atividades. Esses financiamentos foram frequentes até 2014. Daquele ano em diante, o grupo começou a apresentar certa dificuldade em manter o espaço funcionando, porque houve uma drástica diminuição de apoios, patrocínios e editais. Agora, para manter o Espaço Código em atividade, o grupo oferece eventos ao longo de todo o ano, cobrando um preço acessível ao público e aos alunos. Mesmo um grupo com vasta experiência, como o Grupo Código, está passando por uma escassez de recursos. Ainda assim, com todas as incertezas e contratempos, nenhum dos três 20
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coletivos interrompe suas produções. O Grupo Código não deixa de oferecer oficinas, porque as considera importantes para a comunidade, embora não sobre muito dinheiro para os integrantes, já que usam a maior parte para pagar as contas da sede. Os grupos entendem que não podem parar de trabalhar. O diretor Marcos Covask, membro da Trupe Investigativa Arroto Cênico, declara: A gente tem fome de fazer. E eu acho que a resistência se dá aí. A gente sempre produziu na dificuldade. Agora a gente ganhou um edital do Sesi de vinte e cinco mil, mas quando o grupo foi criado, a gente produziu sem ter nada. A gente produziu tirando da gente e produziu um trabalho de qualidade, um trabalho bacana, um trabalho digno.2
O diretor fez outra reflexão importante sobre a situação da cultura no Rio de Janeiro: “Quando tinham muitas ações de políticas públicas, elas não eram voltadas para a nossa região. Talvez um grupo de teatro do Rio de Janeiro esteja, nesse momento, mais afetado que a gente”3. Esta afirmação sugere que o que é identificado como crise nos grandes centros do Rio hoje, sempre foi a condição de regiões como a Baixada. E não existe perspectiva de mudança na relação entre o poder público e os agentes de cultura na Baixada. Os três grupos relataram dificuldades na comunicação com as secretarias municipais de cultura. Raramente conseguem apoio e, quando conseguem, não é o suficiente para um trabalho consistente e continuado. Integrantes do Código e do Arroto Cênico disseram que os funcionários das secretarias de seus municípios não ajudam os coletivos, mas pedem para tirar fotos 2
Entrevista concedida à autora, no SESC Nova Iguaçu, em agosto de 2019.
3
Idem.
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Os modos de produção dos coletivos da Rede Baixada em Cena
com eles em certos eventos, na tentativa de criar imagens positivas para o órgão, como se estivessem oferecendo algum suporte para os artistas locais, de fato. Então, os coletivos da Baixada encaram muitos obstáculos para se estabelecer e seguir trabalhando. É trabalhoso, inclusive, criar repercussão dentro de seus municípios de origem. A Cia. Cerne, por exemplo, só conseguiu apresentar um espetáculo em São João de Meriti três anos e meio após a criação do grupo. Se dentro da Baixada existem esses problemas, no Centro e na Zona Sul do Rio de Janeiro, a situação é mais complexa. Os aparelhos culturais dessas regiões não costumam abrir espaço para artistas do subúrbio, da periferia, das favelas, da Baixada Fluminense, enfim, o comum é que grupos renomados, que já costumam receber apoios, consigam se apresentar dentro do eixo Centro-Zona Sul. Esta situação ganhou outros desfechos com a criação da Rede Baixada em Cena. A rede é composta atualmente por dezoito companhias de nove das treze cidades da Baixada Fluminense: Duque de Caxias, Itaguaí, Japeri, Paracambi, Queimados, Nova Iguaçu, Mesquita, Nilópolis e São João de Meriti. Em 2017, a rede ganhou o Prêmio Shell de Teatro na categoria “inovação”, por uma ocupação no Teatro Glauce Rocha no mês de novembro de 2016. Com o prêmio, a visibilidade da rede aumentou e os grupos observam uma recepção ampliada em diversas regiões, incluindo a Baixada, o Centro e a Zona Sul do Rio. Os coletivos passaram a alcançar um maior número de pessoas e, assim, podem multiplicar suas histórias, narradas por eles mesmos, e alterar a lógica operante, que confere maior importância aos grandes centros em detrimento das outras regiões. Eles subvertem essa ideia fazendo o movimento contrário: A potência dos grupos periféricos aparece hoje ligada ao propósito de não se espelhar no centro culturalmente hegemônico, mas,
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pelo contrário, de investir na singularidade de seus componentes, na memória do seu território, na reflexão sobre os elementos históricos da cisão entre centro e periferia (TROTTA, p. 127, 2018).
Os coletivos entrevistados destacaram outras vantagens da rede: o intercâmbio entre os grupos, uma vez que é comum que integrantes de um coletivo participem dos espetáculos de outro grupo em diversas funções, a saber: atuação, direção, produção, dramaturgia, elaboração de projetos, programação visual etc.; valorização da mão de obra local, porque não precisam chamar pessoas da capital para trabalhar; troca de experiências entre grupos mais antigos e grupos mais recentes; formação de artistas e técnicos de teatro. Uma das propostas da rede é realizar uma mostra em cada semestre: uma no centro do Rio e outra na Baixada. Já foram realizadas 13 mostras, nos onze anos de existência da rede. Outra proposta é fazer oficinas todos os meses, ministradas pelos grupos que estiverem disponíveis. Esta é uma das maneiras de formar artistas e técnicos, medida de impacto significativo, considerando que há uma carência de cursos técnicos e superiores na região. Portanto, a relevância da Rede Baixada em Cena para o cenário cultural carioca é evidente, visto que fortalece o trabalho dos coletivos participantes, valoriza e movimenta a cultura e a economia dos territórios em que se situam os coletivos e as mostras, aumenta a possibilidade de diálogo com o poder público, além de inspirar artistas que têm contato com o trabalho da rede a criar seus próprios coletivos.
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BIBLIOGRAFIA MOREIRA, Carina Maria Guimarães. “A política do grupo: modos de produção como ato político”. In: Revista Sala Preta, n. 1, v. 15. São Paulo: USP, 2015. PICON-VALLIN, Beatrice. “Os novos coletivos. Teatro e utopia”. In: ARAÚJO, A.; AZEVEDO, J. F. P; TENDLAU, M. (org.). Próximo ato: teatro de grupo. São Paulo: Itaú Cultural, 2011. TROTTA, Rosyane. “Teatro periférico e universidade: sinais de uma epistemologia da margem no Rio de Janeiro”. In: Revista Moringa – Artes do Espetáculo, n. 2, v. 9. João Pessoa: UFPB, 2018.
Cadê o Boi Tolo?: experiência nos blocos de rua do Rio de Janeiro Fernanda Arrabal* Este artigo analisa a performatividade no carnaval de rua do Rio de Janeiro, a partir do conceito de “experiência”, proposto pelo professor de filosofia da educação Jorge Larrosa Bondía. Para isso, a pesquisa determina, como objeto de estudo, o bloco carioca Cordão do Boi Tolo, que surge de uma reunião espontânea de pessoas e defende o carnaval de rua como legítima e valiosa manifestação cultural. Pretende-se ainda, lançando mão dos conceitos de “multidão” (Paolo Virno, 2004) e “coreopolítica” (André Lepecki, 2013), investigar as estratégias poéticas e políticas desenvolvidas pelos blocos para combater as tentativas de cerceamento pelas autoridades. Palavras-chave: carnaval de rua – experiência – política
* Orientação: Eleonora Fabião. Bolsa PIBIAC/UFRJ.
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Cadê o Boi Tolo?: experiência nos blocos de rua do Rio de Janeiro
Carnaval Carioca – março de 2019. Às cinco da tarde, o bloco Boi Tolo chega ao final da Praia de Botafogo, depois de quase nove horas percorrendo as ruas. Do alto das pernas-de-pau, me viro e vejo, atrás dos músicos, uma multidão formada já pelo conjunto de todas as alas do Boi Tolo, que passaram o dia costurando o Centro da cidade à sua própria maneira. Brincantes, ambulantes, pernaltas, músicos. E, lá longe, o mar de gente parece se encontrar com a areia do trânsito. Sem saber onde começa um e termina outro, avisto carros e ônibus que se acoplam ao nosso cortejo. E não consigo mais saber se fomos nós que paramos o trânsito, ou se ele se juntou à nossa caminhada naquele momento. O início dos anos 2000 marca uma retomada do movimento tradicional dos blocos de rua do Rio de Janeiro. Segundo o pesquisador e professor Micael Herschmann (2013, p. 269), “[...] o Carnaval carioca chegou ao final do século 20 como uma celebração circunscrita ao desfile da escola de samba do sambódromo e a um punhado de bailes realizados em clubes”. A atmosfera de controle e repressão instaurada pela Ditadura e suas consequências sobre a população eram claras. Durante o período de redemocratização, entretanto, cresceu gradualmente o carnaval de rua, o desejo de retomada do espaço público, a valorização das manifestações populares. Com o passar dos anos, por conta do aumento significativo do número de foliões, alguns blocos passaram a divulgar mais de uma data e horário, a fim de reduzir a frequência. Em 2006, alguns jornais anunciaram, por exemplo, o desfile do famoso bloco Boitatá no domingo e outros na segunda-feira de carnaval. Por isso, domingo, já antes de 8 da manhã, a Praça XV estava lotada de pessoas fantasiadas que esperavam pelo Boitatá que, no entanto, não apareceu. Como conta Luis Otavio Almeida, folião presente no local: 26
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[...] um senhor com um reco-reco chegou perto de um ambulante que estava com um pandeiro, começaram a puxar uns sambas, foi juntando mais gente, o pessoal foi criando um movimento, pessoas começavam a ligar para outras pedindo para trazer instrumentos. [...] O pessoal foi batucando e tocando, deram aquela voltinha ali por dentro, Arco do Teles, ali por trás, Rua do Mercado e voltou para a Praça XV. [...] Uma menina, [...] pegou um papelão no chão e escreveu ‘Cordão do Boi Tolo’ com batom, prendeu em um tridente e veio como se fosse um estandarte”.1
Foi assim a primeira experiência do Cordão do Boi Tolo que, aliás, “tinha tudo para ter acabado ali”2. Porém, na mesma semana, foram criadas cinco comunidades em redes sociais referentes ao bloco, onde os foliões passaram a se organizar. No carnaval deste ano (2019), o Cordão do Boi Tolo aconteceu pela décima terceira vez. Segundo o professor de filosofia da educação Jorge Larrosa Bondía (2014, p. 18), a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. [...] A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. [...] Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara.
Apresentando os “princípios da experiência”, o autor diz “a experiência supõe, em primeiro lugar, um acontecimento ou, dito de outra forma, o passar de algo que não sou eu” (LAR-
1
Entrevista realizada com Luis Otavio Almeida, folião integrante do Cordão do Boi Tolo, em 29 de junho de 2019.
2
Idem.
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ROSA, 2006, p. 88)3. Logo, podemos compreender o Cordão do Boi Tolo como “acontecimento” que proporciona, desde sua gênese, experiências tocantes e diversas para multidões de foliões. E utilizo a palavra “multidão” retomando o conceito proposto pelo filósofo Paolo Virno, que distingue “multidão” de “povo”. Como esclarece: O “povo” é de natureza centrípeta, converge numa vontade geral, é a interface ou o reflexo do Estado; a “multidão” é plural, foge da unidade política, não firma pactos com o soberano, não porque não lhe relegue direitos, mas porque é reativa à obediência, porque tem inclinação para certas formas de democracia não-representativa (VIRNO, 2004, pp. 27-28).
Neste sentido, um conjunto de foliões como o Boi Tolo abriga diversidade, pluralidade e uma organização específica, baseada no momento e nos corpos presentes, no encontro e no brincar em sua forma mais espontânea. Características que, sugiro, se aproximam da noção de “multidão” e configuram também um importante princípio da experiência, segundo Larrosa (2006, p. 101): a articulação entre singularidade e pluralidade. De acordo com o autor: Se um experimento tem que ser homogêneo, quer dizer, tem que significar o mesmo para todos os que o leem, uma experiência é sempre singular, ou seja, para cada qual a sua. [...] No entanto, se a experiência é para cada qual a sua ou, em outras palavras, em
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No original: “La experiencia supone, en primer lugar, un acontecimento o, dicho de otro modo, el passar de algo que no soy yo” (tradução minha, grifo do autor).
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cada caso outra ou, em outras palavras, sempre singular, então a experiência é plural.4
Assim, interessa ressaltar aqui a experiência de multidão vivida por foliões nas ruas do Rio, a literalidade da vivência das singularidades e das pluralidades conjugadas ao longo dos dias de carnaval. Destaco, ainda, o encontro entre corpos humanos e máquinas de acordo com a imagem que abre este texto, um aspecto peculiar do bloco em questão. Por não possuir um trajeto predeterminado, é comum que os foliões do Boi Tolo interrompam o trânsito. Uma experiência de multidão extremamente peculiar que, de forma marcante, articula e tensiona dois componentes determinantes das ruas da grande cidade: carros e pessoas. * Depois de algum tempo carregando minhas pernas de pau, encontrei uma boiada com pernaltas e logo arranjei um lugar para subir. Os foliões abriam espaço respeitosamente, até eu ser acolhida pelo cordão humano que cercava os músicos e o abre-alas de pernas-de-pau. A Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro possui uma Comissão Especial com o objetivo de analisar a relação e as responsabilidades entre o poder público municipal e o carnaval. De acordo com o Relatório da Comissão, publicado em dezembro de 2017, foram assinados decretos em 2009 e 2013 pelo então Prefeito Eduardo Paes, visando a um plano de enquadramento e domínio da festa, através de sua regulamenta4
No original: “Si un experimento tiene que ser homogéneo, es decir, tiene que significar lo mismo para todos los que lo leen, una experiencia es siempre singular, es decir, para cada cual la suya. [...] Sin embargo, si la experiencia es para cada cual la suya o, lo que es lo mismo, en cada caso otra o, lo que es lo mismo, siempre singular, entonces la experiencia es plural” (tradução minha).
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Cadê o Boi Tolo?: experiência nos blocos de rua do Rio de Janeiro
ção e mercantilização. É interesse da Prefeitura que os blocos de rua façam parte de um conjunto de eventos de megaestrutura para promoção política e turística da cidade, sem preocupação com o desenvolvimento da manifestação cultural em si. A Desliga dos Blocos é um movimento aberto e defensor do carnaval livre que reúne vários blocos, inclusive o Boi Tolo, contra estratégias de mercantilização. Uma de suas reivindicações, por exemplo, é a não utilização de cordas separando artistas e foliões. A separação promove uma distinção que não condiz com a estético-política de blocos que recusam hierarquias. Entendendo que músicos e pernaltas precisam ter mobilidade garantida, a estratégia utilizada, e fundamental para a organização da multidão, é, pois, um cordão humano formado por um coletivo de pessoas de mãos dadas. Com o passar dos anos, o Boi Tolo vem ficando cada vez mais conhecido e precisou desenvolver estratégias para diminuir o número de foliões. A primeira medida foi sair de manhã cedo. Atualmente, divide-se em cerca de cinco grupos que partem de diversos pontos da cidade com estandartes de distintas cores – boiadas azul, verde, roxa, amarela... – e, geralmente, à noite, juntam-se em um só bloco. É muito comum, ao longo do dia, ver pessoas se comunicando e perguntando umas às outras: “Cadê o Boi Tolo?” Concluo este artigo com uma imagem que me foi descrita por Luis Otavio Almeida, em entrevista já citada. Trata-se da abertura do carnaval não oficial, um evento que reúne blocos em protesto às tentativas de controle do carnaval livre. Em 2016, os blocos ocupam a Praça da Cinelândia tocando, dançando e brincando. Com o pretexto de apreender mercadorias de um ambulante, a Guarda Municipal invade a festa e quebra o isopor do vendedor. Os foliões se revoltam com a atitude e começa a confusão. Balas de borracha e gás lacrimogêneo são utilizados para conter a multidão. 30
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Em “Coreopolícia e coreopolítica”, o teórico da dança e da performance André Lepecki (2013, p. 56), questiona: Como dançar uma dança que muda lugares mas que ao mesmo tempo sabe que um lugar é uma singularidade histórica, reverberando passados, presentes e futuros (políticos)? Como promover uma mobilidade outra que não reproduza a cinética do capital e das máquinas de guerra e policiais? Como coreografar uma dança que rache o chão liso da coreopolícia e que tache a sujeição dos sujeitos arregimentados pela coreopolícia? Dançar para rachar o chão do movimento, dançar no movimento rachado do chão, rachar a sujeição. Criar a rachadura no estado das coisas, e nas coisas do Estado.
Acredito que o Cordão Boi Tolo dança esta dança. O acontecimento político, coreográfico, performático, artístico que é o Boi Tolo propõe experiências livres, plurais e singulares. O Boi Tolo performa multidão. Sobre o chão histórico das repressões sofridas em distintos momentos da história de nossa cidade, ocupamos as ruas friccionando o chão liso do coreopoliciamento e criando novas rachaduras que abrem espaço para novos modelos coreopolíticos de cidade.
BIBLIOGRAFIA HERSCHMANN, M. “Apontamentos sobre o crescimento do Carnaval de rua no Rio de Janeiro no início do século 21”. In: Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, n. 2, v. 36. São Paulo: INTERCOM, 2013. http://portcom.intercom.org.br/revistas/index.php/revistaintercom/article/view/1792/1652 Acesso em 04/10/2019.
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Cadê o Boi Tolo?: experiência nos blocos de rua do Rio de Janeiro
LARROSA, Jorge. “Sobre la experiencia”. In: Aloma – Revista de Psicologia i Ciències de l'Educació i de l’Esport Blanquerna, n. 19. Barcelona: Universitat de Barcelona, 2006. https://www.raco.cat/index.php/Aloma/article/view/103367/154553 Acesso em 04/10/2019. ----. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. LEPECKI, André. “Coreopolítica e coreopolícia”. In: Ilha – Revista de Antropologia, n. 1, v. 13. Florianópolis: UFSC, 2013. https://pe.php/ilha/article/view/2175-8034.2011v13n1-2p41/23932 Acesso em 04/10/2019. Relatório da comissão especial com a finalidade de analisar a relação e as responsabilidades entre o poder público municipal e o carnaval. Rio de Janeiro, 2017. https://tarcisiomotta.com.br/2018/12/03/comissao-lanca-relatorio-anual-sobre-o-carnaval-carioca/ Acesso em 08/09/2019. VIRNO, Paolo. "Multidão e princípio de individuação". In: Lugar comum, n. 19/20. Rio de Janeiro: LATeC/UFRJ, 2004. http://uninomade.net/lugarcomum/19-20/ Acesso em 08/09/2019.
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Bonobando: a construção da identidade coletiva Hugo Bernardo Souza* O trabalho se propõe analisar o processo de construção da identidade, as experiências de criação artística e os modos de produção do Coletivo Bonobando. O coletivo é constituído por atores de diversos locais do Rio de Janeiro, em sua maioria jovens negros de territórios populares. Para o estudo da identidade, foram realizadas entrevistas individuais com os membros do coletivo, buscando entender significados partilhados, objetivos e a estrutura do grupo. O artigo analisa como diferentes vivências conseguem conversar num processo artístico. A pesquisa também investiga o histórico das políticas para as artes e a cultura, levando em consideração os graves impactos da crise em que nos encontramos. Palavras-chave: Coletivo Bonobando – Cidade correria – identidade artística
* Orientação: Adriana Schneider Alcure. Bolsa PIBIC/CNPq/UFRJ.
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Bonobando: a construção da identidade coletiva
O objetivo deste trabalho foi compreender a construção da identidade do Coletivo Bonobando. O coletivo é criado em 2014, durante um processo de residência artística desenvolvido na Arena Carioca Dicró, na Penha, financiado pelo edital de incentivo às artes da SMC – Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro. Inspirado pela metodologia utilizada no estudo da identidade coletiva do Grupo Galpão (MAYUMI, 2018), partiu-se do nível individual para entender significados coletivamente partilhados em relação à estrutura e aos objetivos do grupo. Para isso, foram realizadas entrevistas com os atores buscando relacionar pontos em comum entre os discursos individuais. O primeiro ponto em comum identificado é como os atores iniciaram sua experiência artística. Os atores do Bonobando tiveram seu primeiro contato com teatro, em média, aos 14 anos, em escolas da rede municipal ou em projetos sociais realizados por ONGs nas favelas onde residem. O desejo pela arte não cabia dentro da carga horária estipulada pela disciplina escolar e as oficinas realizadas nos projetos. Instigados pelo contato com o teatro, o desejo de continuar fez com que os jovens se reunissem fora desses espaços, possibilitando, assim, sua experiência teatral em grupo. Nessas configurações, está presente, em geral, a figura de um professor/diretor que conduz todo o processo de estudo e criação artística. Esses grupos não tinham fontes de financiamento e, consequentemente, não geravam renda para os artistas. O teatro, num primeiro momento, aparece como hobby, configurando-se como teatro amador que, por definição, é aquele exercido por puro gosto, sem remuneração. “Os grupos de teatro das favelas nascem, principalmente, do desejo dos jovens de estarem juntos e, artisticamente, construir algo que dê sentido as suas vidas” (SOUZA, 2018, p.32). Na carência de espaços teatrais em seus territórios, o exercício teatral era feito através de apresentações em espaços pú34
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blicos como ruas, praças, lajes, escolas e pequenos festivais. Essas produções não ocupavam os grandes teatros concentrados no eixo Centro-Zona Sul do Rio de Janeiro, uma vez que, historicamente, as produções artísticas e culturais populares sempre foram desqualificadas, como se fossem algo menor, nos nichos hegemônicos da arte. O processo de democratização da distribuição de recursos tornou possível que, em 2014, o Coletivo Bonobando fosse uma das iniciativas contempladas pelo edital de fomento à cultura da SMC e, assim, fosse viabilizada a residência artística para os atores. A partir deste momento, cria-se uma ideia de profissionalização do teatro no imaginário da maioria dos artistas do coletivo que, através do prêmio, tiveram sua primeira renda proveniente do trabalho artístico. Nas palavras de Járdila Baptista1, atriz e estudante de teatro da UNIRIO: “foi a primeira vez que consegui pagar contas com o dinheiro do meu trabalho, com o dinheiro que recebi para fazer teatro”. O Bonobando pode dar continuidade aos seus trabalhos no ano seguinte graças ao mesmo fomento. [...] a dependência da política pública por parte dos grupos teatrais não se apresenta como dado novo: já em 1993, o ator e produtor Chico Pelúcio, do Grupo Galpão, informava, no 3º Encontro Brasileiro de Teatro de Grupo, que mais de 60% dos custos de seu grupo provinham das instituições públicas. O que se apresenta como dado historicamente novo é a abertura inédita à produção periférica, com as mesmas exigências a que todos os projetos devem se submeter (TROTTA, 2018, p.126).
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Entrevista concedida a mim por Járdila Baptista em julho de 2019.
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Bonobando: a construção da identidade coletiva
Ainda no artigo cujo trecho acima foi extraído, a pesquisadora Rosyane Trotta problematiza a distribuição dos editais através da seleção de projetos, dizendo que este método privilegia quem tem o domínio da escrita de projetos. E complementa com o seguinte dado: “em um país com 50 milhões de pessoas que não sabem ler e outros tantos que não sabem escrever, já é por si só uma seleção”. Diante dos dados apresentados, continuo o raciocínio com o conceito de “territorialização da verba da cultura”, utilizado por Alexandre Damascena, que observa: Não adianta, por exemplo, o prefeito, o secretário de cultura organizar um edital que ele fale “olha, vou fazer um edital em que os melhores vão ganhar”. Historicamente, praticamente nenhum grupo da Zona Oeste ganhou verba dos editais do governo. Desses editais, noventa ou mais por cento disso daí ficam entre o Centro e Zona Sul. Então, eu defendo que o governo deveria pensar um jeito de equalizar isso pensando “olha, essa verba aqui é pra galera da Zona Oeste, ninguém coloca a mão. Essa verba aqui é pra galera da Zona Norte”. Como pensar isso?2
Em 2016, o Bonobando foi contemplado pelos editais “Territórios de Cultura” e “Ações Locais”, ambos da SMC, pensados, especialmente, para as regiões. Nestes editais, o coletivo produziu apresentações teatrais de grupos de outras periferias nas lajes da Vila Cruzeiro, na Penha; e realizou apresentações do espetáculo Cidade correria em escolas públicas ocupadas por alunos na Zona Norte da cidade. Aqueles editais tinham prêmios de valores muito inferiores 2
Trecho extraído da entrevista concedida por Alexandre Damascena, ator, professor de teatro e literatura, diretor dos grupos Cia do Invisível e Casa Verde, ao canal “Que Morram Os Artistas” em outubro de 2019, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=C1xHIU3FJBU Acesso em 15/10/2019.
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aos de editais feitos para toda a cidade, o que propõe uma discussão sobre fomento de baixo orçamento para as produções periféricas. Segundo Dyonne Boy, “o edital cai para um teto de R$8.000,00. Então, na verdade, você tá dizendo que aquela cultura periférica é uma espécie de ensaio para a arte, ela tá ainda numa espécie de laboratório”3. É necessário que sejam pensadas políticas públicas permanentes para estas regiões, valorizando-as, entendendo a produção artística da periferia como arte. Ainda no ano de 2016, ocorreu o chamado “calote do fomento”, onde a Prefeitura do Rio de Janeiro decidiu não pagar as verbas do Programa de Fomento às Artes. O Bonobando foi uma das muitas vítimas do calote. Nos anos seguintes até o presente ano, o desmonte das políticas de arte e cultura tomou proporções brutais. Quando perguntados sobre a possibilidade de viver do teatro, no cenário atual, os artistas do coletivo comentaram sobre as dificuldades. Lívia Laso, atriz e cantora, descreve da seguinte forma: A maior dificuldade é subsídio governamental. Porque é um direito e tá dentro das ementas do país: dinheiro e acesso à cultura. Mas com esse desmonte aí – e a cultura está sendo muito desmontada – tá muito difícil, tá bem complexo. Mas eu acho possível sobreviver na atual conjuntura do país, viver de arte, mas existem muitos desdobramentos. Acho que é preciso plantar muitos projetos e de várias formas, ter vários ofícios dentro do teatro. Mas não acho que seja fácil. Mas possível é, porque eu vejo gente fazendo. E uma observação é que, fazendo um recorte pro povo preto, vejo que esse momento faz brotar muita coi3
Trecho extraído da entrevista concedida por Dyonne Boy, artista, ativista e gestora do Jongo da Serrinha, ao canal “Que Morram Os Artistas” em outubro de 2019, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yvLaATISegI Acesso em 15/10/2019.
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sa. Esse é um momento de criação, de questionamento. Então, eu vejo uma cena rica.4
Um outro problema apontado é a dificuldade de produzir neste momento, o que seria a consequência de uma falta de agenda comum. Os artistas, no atual cenário cultural, não tendo renda vinda do teatro, nem suporte familiar, precisaram buscar outras alternativas para se manter. Sem dinheiro, os artistas não contemplados procuram outras formas de subsistência, muitas vezes recorrendo a áreas de atuação no mercado diferentes das suas, fora do campo da cultura. Por sua vez, a rotina de trabalhos paralelos dificulta o encontro dos coletivos, que passam a se encontrar esporadicamente, obedecendo às datas provenientes das poucas ofertas que aparecem para eles, o que impede o trabalho contínuo dos integrantes (SOBRINHO, 2017, p. 30).
Quando perguntado como o grupo vem se articulando, os atores pontuaram sobre a construção de uma rede forte de contatos e amigos no campo da arte. E que ela se deu através da relação com profissionais da academia. Essa conexão entre periferia e universidade tem sido um fator determinante para a continuidade dos trabalhos em tempos difíceis. Os integrantes comentaram também dos acordos que se estabelecem dentro dos pactos coletivos e como isso determina os modos de criação e produção. No caso específico do Bonobando, a opção pela criação coletiva determina a escolha por um fazer teatral em que, a todo momento, todas as vozes devem ser consideradas. Vanessa Rocha, atriz e estudante de teatro na UNIRIO, afirma que: 4
Entrevista concedida a mim por Lívia Laso em setembro de 2019.
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Eu só acredito no teatro de grupo. O fazer teatral é coletivo. Até mesmo um solo é coletivo. Não acredito que seja legal ou que funcione por muito tempo teatro mandado. Mandado que eu digo é alguém mandando. Um diretor, um local. E geralmente quando tem alguém pra mandar, a gente reduz a nossa fala. E a potência do Bonobando está justamente nessas falas. Tudo que a gente construiu veio da escuta coletiva de um desejo individual.5
Os artistas ressaltaram que a potência do Bonobando está na constituição do coletivo. Pontuaram que a riqueza do processo está em trazer todas essas diferentes vozes e vivências. Lívia define o Bonobando como “multiplicidade, reunião de pessoas de vários lugares da cidade. É uma interligação dessa cidade, ele liga vários pontos, várias narrativas, várias perspectivas”. A opção do Bonobando por trabalhar num processo radicalmente coletivo esbarra nos atores enquanto artistas autônomos. Quando perguntados sobre a horizontalidade do trabalho, os integrantes comentaram sobre o desafio do exercício individual. Marcelo Magano, ator do coletivo, atribui à dificuldade de constituir autonomia as experiências anteriores, onde havia uma figura centralizadora, e essa hierarquia de funções acaba sendo determinante para o tipo de arte que se quer construir. Em entrevista, Marcelo detalha: A gente veio de uma formação de aluno né? E pra fazer essa transição de aluno pra colega de trabalho é um processo que demora. Porque a ideia de ser um aluno, de ser alguém que recebia ordens e orientações ficou impregnada. Aí prejudica na horizontalidade. E também existem vários outros fatores. Somos gerações diferentes, somos pessoas mais novas com pessoas mais velhas, temos 5
Entrevista concedida a mim por Vanessa Rocha em agosto de 2019.
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Bonobando: a construção da identidade coletiva
pessoas que têm uma autonomia maior de circulação na cidade e de grana. Nossos diretores têm uma experiência maior com teatro, têm outro knowhow, outra visão da construção da arte. Então, é uma corda que se estica e se afrouxa.6
Numa sociedade como a nossa, que não funciona de forma horizontal, trazer essa responsabilidade, exercitar essa horizontalidade é uma das maiores riquezas do processo.
BIBLIOGRAFIA MAYUMI, Mariana. “A arte de (sobre)viver coletivamente: estudando a identidade do Grupo Galpão”. In: Revista Adm, n. 1, v. 48. São Paulo: Nicolau Reinhard, 2013. SOUZA, Hugo. “Resistência na correria do Coletivo Bonobando”. In: Ciclorama – Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral, n. 5, v. 6. Rio de Janeiro: UFRJ, 2018. https://issuu.com/ciclorama/docs/ciclorama_v6_2018_ issuu Acesso 15/10/2019. TRINDADE, Taís Sobrinho. “Arte e política em coletivos teatrais”. In: Ciclorama – Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral, n. 4, v. 5. Rio de Janeiro: UFRJ, 2017. https://issuu.com/ciclorama/docs/ciclorama_v5_2017_ issuu Acesso em 15/10/2019. TROTTA, Rosyane. “Teatro periférico e universidade: sinais de uma epistemologia da margem no Rio de Janeiro”. In: Revista Moringa – Artes do Espetáculo, n. 2, v. 9. João Pessoa: UFPB, 2018.
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Entrevista concedida a mim por Marcelo Magano em outubro de 2019.
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Onde está o Hélio?: um espetáculo do Coletivo Zume na Praça Tiradentes Isadora Giesta* O objetivo deste artigo é apresentar e refletir sobre o espetáculo-bloco de carnaval Onde está o Hélio? do Coletivo Zume, grupo teatral formado por estudantes do Curso de Direção Teatral da UFRJ. Com temporada de um mês em 2019, esse espetáculo itinerante começava na Praça Tiradentes e terminava no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Centro do Rio de Janeiro. A reflexão inclui teorias propostas pela arquiteta e urbanista Paola Jacques, pelo teórico da dança e da performance André Lepecki e pelo encenador Francis Wilker de Carvalho. Interessa discutir os modos de criação e produção desse trabalho teatral universitário que se entende como ato de resistência em um contexto político avesso à experimentação artística. Palavras-chave: coletivos teatrais – corpo-cidade – teatro na rua
* Orientação: Eleonora Fabião. Bolsa PIBIAC/UFRJ.
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Onde está o Hélio?: um espetáculo do Coletivo Zume na Praça Tiradentes
A pesquisa e o espetáculo: O Coletivo Zume, nascido no Curso de Direção Teatral da UFRJ, tem como membros: Beatriz Santa Rita, Cecília Hadassa, Priscila Manfredini, Reinaldo Machado, Taís Trindade, Wesley Calcanho e Isadora Giesta. Logo que se formou, no início de 2018, o grupo se inscreveu em diversos editais. Como resultado, fomos aprovados para participar da programação de 2019 do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica (CMAHO). E, apesar do edital não oferecer verba de produção, aceitamos o desafio de realizar uma temporada de um mês. As apresentações seriam em abril de 2019 e, assim, teríamos quase um ano para criar um espetáculo inédito. Inicialmente, a pesquisa do Zume tratava da questão da mobilidade na cidade. Entretanto, o encontro com a Praça Tiradentes, localizada no Centro do Rio e próxima ao CMAHO, redirecionou a pesquisa inteiramente. Quando pisamos na praça pela primeira vez, nos sentimos atravessados pela história e pelos fantasmas daquele lugar. André Lepecki, teórico da dança e da performance, a partir de uma reflexão da socióloga Avery Gordon sobre “matéria fantasma”, escreve: O que é uma matéria fantasma para Gordon? “Todos aqueles fins que ainda não terminaram”. Esses fins, ainda sem término ([...] o fim da colônia que não terminou com o fim do colonialismo [...]) prolongam a matéria da história para uma concretude espectral (a virtualidade concreta do fantasma) que faz o passado reverberar e atuar como contemporâneo do presente (LEPECKI, 2010, p. 15).
Passamos a estudar a Praça Tiradentes e as ruas ao redor. Descobrimos que estas homenageiam figuras históricas como, por exemplo, Gonçalves Lêdo, Pereira Passos, Maria Leopoldina e Dom Pedro I. Este, além de ter uma rua com seu nome, 42
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está representado em um monumento de 15,6 metros de altura, posicionado no centro da praça. Há ainda uma outra personagem histórica, não tão antiga como as outras, mas muito importante para o nosso enredo: o artista experimental Hélio Oiticica (1937-1980), que trouxe suas cores, visão artística, vibração carnavalesca e seus “Parangolés”, como veremos a seguir. A Praça Tiradentes, grosso modo, é um grande retângulo com quatro estátuas em seus vértices – a Justiça, a Liberdade, a União e a Fidelidade – e, no centro, o monumento equestre de Dom Pedro I. Nos entornos, podemos avistar muitos sobrados, dois teatros e uma edificação de 31 andares que destoa da paisagem. Quanto à circulação, os transeuntes optam por caminhar pelas sombras das árvores nas laterais; são poucos os pedestres que, de fato, a atravessam. A Tiradentes não é ocupada como espaço de encontro e lazer pela população ao longo do dia, não foi concebida para tal, ainda que suas bordas acomodem muitos moradores de rua. Conforme aponta o diretor teatral e professor Francis Wilker de Carvalho, em seu estudo sobre encenação no espaço urbano, há espaços que enriquecem e espaços que empobrecem a experiência pública. Quanto ao empobrecimento, aponta a “diminuição das condições para o pedestrianismo como mobilidade; as dimensões social e cultural sitiadas; um quase apagamento da função do espaço da cidade como lugar do encontro e fórum social” (CARVALHO, 2014, p. 58). Ou seja, a Praça Tiradentes não foi concebida para enriquecer a experiência pública do cidadão carioca e, justamente por isso, optamos por fazer teatro ali. Onde está o Hélio? começa em um extremo da praça – apresentamos as fantasias de cada ator do bloco e tipos que cruzam cotidianamente a praça, além do samba-enredo do espetáculo. Depois caminhamos em direção à parte traseira da estátua de Dom Pedro, destacando a anca do cavalo; alcançamos o outro 43
Onde está o Hélio?: um espetáculo do Coletivo Zume na Praça Tiradentes
lado da praça, onde as personagens históricas que nomeiam as ruas são introduzidas; acontece uma espécie de confronto com o D. Pedro I e um tal “prédio esquisito” de 31 andares. Nos deslocamos para a Rua Imperatriz Leopoldina – “Rua do Bar do Nanam”, como é conhecida a travessa que leva o nome da articuladora da Independência do Brasil, ela, sim, merecedora de uma estátua. A peça termina dentro do Centro Municipal de Artes. Confraternizamos com o público em uma pequena galeria onde expusemos trabalhos baseados em nossas experiências de deslocamento na cidade para chegar até ali. A ideia de encenar a peça como um bloco nasceu enquanto pesquisávamos sobre Oiticica e sua relação com o carnaval. Separamos as cenas em “alas”, nos propusemos a dançar e cantar um samba-enredo, entremeamos figuras históricas e tipos cotidianos, conduzimos o público dentro de uma corda (nosso cordão de isolamento) para atravessar os trilhos do VLT. Procuramos fazer com que o espectador se envolvesse como um brincante e, para isso, nossa equipe disponibilizava acessórios típicos e glitter, além de uma sombrinha. O processo criativo: Os ensaios de Onde está o Hélio? começaram em uma sala da Escola de Comunicação da UFRJ (ECo), mas logo nós ocupamos as ruas da faculdade. No primeiro ensaio pelas ruas do Campus da Praia Vermelha, recebemos duas tarefas de nossa diretora, Taís. A primeira tarefa foi desenvolver uma capa. A segunda foi elaborar frases para serem trocadas com o público nas ruas durante nosso percurso. Por exemplo, eu escolhi a seguinte pergunta: “O que você faria se não tivesse medo?”. Juntando um experimento de figurino e uma frase, Taís queria articular nossa caminhada performática e os “Parangolés” de Hélio Oiticica, que combinam volumes, textu44
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ras, cores e, por vezes, palavras também. Assim, nasceram os primeiros esboços de figurino-fantasia-parangolé e as nossas “personagens-base”, representações carnavalescas da personalidade de cada um dos atores que, ao longo da peça, também incorporavam as figuras históricas e os tipos cariocas mencionados. Em um segundo momento, fomos trabalhar na Praça Tiradentes. Nas primeiras idas, fizemos a prática de “deriva etnográfica”, elaborada pelo pesquisador e historiador Thiago Florêncio (2015). A prática consiste em uma caminhada silenciosa pelo local, durante a qual nos deixamos ser escolhidos por três objetos. Essa prática muito nos ajudou a habitar aquele espaço e a conhecer aquele lugar específico. Afinal, nossa peça foi montada de acordo com as particularidades da Praça Tiradentes. A historiadora da arte e curadora Miwon Kwon é referência em debates sobre as relações entre arte e cidade e, especialmente, sobre arte de lugar específico. O pensamento de Kwon traduz nosso modo de abordar e ocupar aquela praça, pois, como diz, “a arte site specific [...] tomou o ‘site’ como localidade real, realidade tangível, como a identidade composta por singular combinação de elementos físicos constitutivos” (KWON, apud CARVALHO, 2014, p. 95). O primeiro ensaio movendo nossos “Parangolés” na praça foi inesquecível. Lembro de me sentir desafiada por aquele espaço. Lembro de sentir alívio ao retornar à sala da ECo, pois não estava acostumada a atuar em espaços públicos. Nos ensaios realizados na sala da universidade, criávamos cenas que eram testadas no dia seguinte na praça. Em pouco tempo, estávamos ensaiando integralmente na praça, sentindo sua dinâmica, seus fluxos; nossos corpos na praça e a praça nos nossos corpos, criando assim uma corpografia na topografia urbana. A arquiteta, urbanista e professora Paola Berenstein Jacques articula assim o conceito de “corpografia”: 45
Onde está o Hélio?: um espetáculo do Coletivo Zume na Praça Tiradentes
Corpografia é um tipo de cartografia realizada pelo e no corpo, ou seja, a memória urbana inscrita no corpo, o registro de sua experiência da cidade, uma espécie de grafia urbana da própria cidade vivida, que fica inscrita, mas também configura o corpo de quem a experimenta ( JACQUES, 2008, s/p).
Quanto aos modos de produção do projeto, lançamos uma campanha online de arrecadação de verba e alguns membros do coletivo contribuíram com seus próprios recursos. Contamos também com colaborações profissionais. Nosso colega de curso, Bernardo Pimentel, foi o produtor do espetáculo. Contactamos três músicos da escola-de-samba Acadêmicos do Cubango, que se disponibilizaram a gravar gratuitamente no estúdio da Central de Produção Multimídia (CPM-ECo). Victor Brito e Victor Solis participaram com o violão e com o cavaquinho, respectivamente; eles foram os outros músicos que colaboraram conosco. Eu cantei o samba e o coletivo fez o coro. Victor Oliver, também aluno da ECo, operou o programa de gravação e os equipamentos no estúdio. Vivemos em um país onde a produção cultural está relegada a segundo plano – como se a cultura fosse um artigo de luxo, um arremate, um detalhe – mas, colaborativamente, levantamos um espetáculo de teatro universitário. A temporada: A estreia aconteceu em 4 de abril de 2019. Começávamos sempre dando uma volta na praça, puxando um pequeno amplificador de rodinhas e chamando o público. Ao final das apresentações, nós sempre passávamos um chapéu para tentar, de alguma forma, fechar nossa contabilidade. Infelizmente, por dois dias de uma temporada com nove apresentações, não tivemos nenhum espectador. Como lidar com isso? 46
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Na primeira vez, entendemos que, por já estarmos arrumados e pelo momento político que pedia resistência, seria necessário fazer a peça. Só não contávamos que, na segunda metade da peça, uma senhora ficaria nos chamando de “Seus sem-público”. No segundo dia que não tivemos espectadores, preferimos nos poupar do desgaste físico e de situações como esta. Porém, a pergunta persiste: como lidar com isso? Um espetáculo apresentado na rua precisa de público “pré-convidado”? A permanência na rua, ao longo dos ensaios e das apresentações, nos trouxe muitos aprendizados. Descobrimos juntos maneiras de puxar o olhar para onde queríamos, com movimentos e gestos grandes e expressivos. Aprendemos que, na rua, a voz “se perde” e que é fundamental fazer um bom aquecimento vocal. Também aprendemos como a rua é sempre diferente, como ela está em constante modificação. As pessoas que assistiam reagiam de modos muito distintos, às vezes interagiam, outras vezes apenas observavam. Atualmente, o coletivo não está ensaiando, porém em 2020 pretendemos retomar nossos encontros e apresentações. E planejo dar sequência a esta pesquisa com a Professora Eleonora Fabião, estudando sobre teatro de rua e na rua, a começar pelo caso do Tá na Rua, grupo teatral carioca que investiga justamente as relações entre teatro e carnaval.
BIBLIOGRAFIA FLORÊNCIO, Thiago. “Banzar ao Atá: por uma deriva etnográfica”. In: RED – Revista de Ensaios Digitais, n. 1. Rio de Janeiro, 2015. http://revistared.com.br/artigo/65/banzar-ao-ata-por-uma-deriva-etnografica Acesso em 29/09/2019. JACQUES, Paola Berenstein. “Corpografias urbanas”. In: Revista Arquitextos, n. 093.7, ano 08. São Paulo: Vitruvius, 2008. https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.093/165 Acesso em: 29/09/2019.
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Onde está o Hélio?: um espetáculo do Coletivo Zume na Praça Tiradentes
LEPECKI, André. “Planos de composição”. In: Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010: criações e conexões. São Paulo: Itaú Cultural, 2010. https://issuu.com/itaucultural/docs/rumos_danca_criacoeseconexoes/16 Acesso em: 29/09/2019. WILKER DE CARVALHO, Francis. Teatro do concreto no concreto de Brasília: cartografias da encenação no espaço urbano. Dissertação de Mestrado em Artes Cênicas – Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2014.
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Teatro do oprimido e masculinidades Arnon Segal Hochman* O artigo apresenta uma análise sobre as oficinas de “Teatro do Oprimido” e “Masculinidade” que o Laboratório de Estética e Política (LEP) vem realizando a partir de 2019, projeto que propõe um novo caminho para a pesquisa teatral relacionada a gênero que vínhamos realizando. Partindo da metodologia desenvolvida durante os últimos dez anos no Laboratório Madalena (Teatro das Oprimidas) e do arsenal do Teatro do Oprimido de Boal, busca-se criar uma metodologia própria ao trabalho desse tema específico. Trata-se aqui de apresentar nossas propostas iniciais, as percepções decorrentes de sua aplicação e as perspectivas para o laboratório no futuro.
Palavras-chave: Teatro do Oprimido – masculinidades – gênero
* Orientação: Alessandra Vannucci. Bolsa PIBIAC/UFRJ.
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Teatro do oprimido e masculinidades
Em 2018 e 2019, o LEP desenvolveu sua pesquisa sobre gênero procurando um novo caminho, complementar ao que já havia sido construído pelos Laboratórios Madalenas – Teatro das Oprimidas, experiência iniciada pela nossa orientadora dez anos antes (2009), hoje de relevância internacional na definição de metodologias de luta contra a violência de gênero no Teatro do Oprimido. Os Laboratórios Madalenas foram criados por mulheres cisgênero para mulheres cisgênero, ou seja, identificadas com seu gênero biológico; e têm a sua importância, não só histórica, mas ainda atual. Nossa pesquisa no LEP não era uma negação da experiência anterior, mas a percepção de que, ao longo desta década, o feminismo e as discussões sobre gênero chegaram a novos lugares que não eram mais inteiramente abarcados por ela. A transexualidade, a não-binariedade, o corpo “desgenerificado” e as discussões sobre masculinidade eram alguns dos temas que ganhavam espaço e demandavam uma atualização das técnicas. Essa percepção emergiu coletivamente no LEP, em nossos seminários de leituras feministas que incluíram leituras no âmbito da teoria queer e a produção de reflexões sobre estas questões por grupos feministas militantes como, por exemplo, as Madalenas da Guatemala em suas atas de 2018. Buscamos criar uma metodologia que pudesse ampliar o alcance do Teatro do Oprimido para questões de gênero que surgiam das vivências, opiniões e insatisfações diversas que compunham nosso grupo. O laboratório que intitulamos “Desgêneros” (2018) teve êxitos diversos, mas a sua expansão em questões tão diversas entre si trouxe também limitações e, conforme analisávamos nossos resultados, ficava mais certo que precisávamos buscar técnicas mais focadas a cada uma dessas questões individualmente. O que eu trazia para essa tempestade mental de gênero, a questão específica que pessoalmente me movia, sempre tinha sido o lugar da masculinidade. É nesse contexto que surge a primeira oficina de 50
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“Teatro do Oprimido e Masculinidades”, tendo sido planejada no começo de 2019 e aplicada entre os meses de junho e julho. Antes de tratar da oficina, cabe dizer o que estamos querendo dizer e, principalmente, o que não estamos querendo dizer com “masculinidade”. Essa discussão vem ganhando uma nova forma e força nos últimos anos, na trilha aberta pela “quarta onda do feminismo”. A “quarta onda” vem sendo o movimento mais importante sobre gênero ao longo dos últimos quinze anos, impulsionada em grande parte pelo advento das redes sociais. As próprias condições que a consolidaram também foram essenciais para o tema da masculinidade, sobretudo nas redes. Essa nova forma da discussão sobre masculinidade parte de um lugar principalmente de responsabilização, de reconhecimento de privilégios, mas também de entendimento de que existem problemas específicos sofridos pelos homens. Esse entendimento não significa dizer que essas questões são equiparadas às questões das mulheres e, muito menos, que isso diminua de qualquer forma a causa feminista, mas o exato oposto. Alguns grupos vêm se reunindo no Rio de Janeiro como o Memoh, o Círculo de Homens da Praça XI e o curso “Entendendo as Masculinidades”. Essas iniciativas, no entanto, disputam a narrativa com outras muito perniciosas. É notável que alguns movimentos chamados masculinistas e, nos Estados Unidos de men's rights activists, são majoritariamente grupos de ódio, não só contra mulheres, mas também ódio racial, social e LGBTfobia. Assim, para diferenciar-se desses grupos, alguns termos têm surgido como “masculinidades não tóxicas” e “masculinidades contra-hegemônicas”. É neste campo político que nosso trabalho se insere. Entendemos que essas adições ao termo masculinidade já carreguem consigo uma carga valorativa que pode soar moralista e preferimos trabalhar simplesmente com “masculinidade”, mas sabendo da importância de deixar claro que o que fazemos se opõe às pautas e à forma de luta dos movimentos masculinistas. 51
Teatro do oprimido e masculinidades
Nossa primeira atividade dedicada exclusivamente à masculinidade, depois do fim de nossas oficinas de gênero e de nosso ciclo de leituras feministas, foi uma aula aberta com Caio Cesar, professor, escritor e pesquisador no campo das masculinidades. O evento, realizado no dia 23 de maio, uma quinta à noite, no Campus da Praia Vermelha, atraiu mais de quarenta pessoas. Mais de trinta eram mulheres e Caio começou a aula notando o fato e dizendo ter o sonho de participar de algum evento aberto sobre masculinidades em que a presença seja majoritariamente masculina. A conversa levantou diversas questões importantes que foram trabalhadas nos encontros da oficina; e serviu como uma forma de divulgação, sem contar, obviamente, os méritos do evento em si. Tivemos então três encontros dedicados à oficina de Teatro do Oprimido e Masculinidades. Neles compareceram intermitentemente oito homens, sem contar minha presença enquanto “coringa”. As técnicas usadas tiveram três fontes principais. Primeiramente, o livro Jogos para atores e não atores, do próprio Boal, algumas vezes utilizando os jogos na forma original como aparecem no livro e em outras sendo adaptados para que se adequassem melhor ao tema específico desta oficina. Em segundo lugar, técnicas do Laboratório Madalenas e das nossas oficinas de gênero anteriores. Agrupo essas duas, apesar de terem origens tão distintas, por ter tido contato com todas elas através das nossas oficinas e não saber dizer com precisão quais já existiam ou não, quais haviam sido adaptadas etc. Por fim, técnicas criadas exclusivamente para a oficina. Algumas das técnicas me permitiram diagnosticar caminhos interessantes para que, então, entre um dia e outro da oficina, pudesse pensar em como inserir esta percepção à metodologia. Foi o caso, por exemplo, do “Toré” que, em determinado momento, tem os participantes de olhos fechados andando para um centro comum até se encontrarem com seus 52
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corpos. Já havia visto o exercício algumas vezes com grupos mistos de homens e mulheres. O que me chamou a atenção com o grupo exclusivamente masculino é que ao se encostarem se afastavam imediatamente, não deixando que o contato acontecesse. Assim, um dos dias da oficina foi dedicado exclusivamente a pensar as relações espaciais que envolvem a masculinidade. Boal diz que a mudança praticada no teatro não muda a realidade, mas pode ser um ensaio para uma realidade possível. Partindo dessa ideia, surgiu um jogo simples que chamamos de “Ensaio da Fala”. Em duplas, um era escolhido para começar e pensava em algo que nunca disse a alguém. O outro, informado de quem ele seria (pai, filho, amigo...), somente escutava e reagia de forma positiva ao final. Então o não-dito era dito. O exercício trata de uma questão que aparece muito quando se fala das opressões da masculinidade: o apagamento emocional. As falas foram as mais diversas, tendo me marcado particularmente duas em lados opostos do espectro. Um dos participantes disse “eu te amo” para seu pai, revelando depois que nunca havia dito isso. Outro, para seus amigos disse: “isso me incomoda”. Na conversa que se seguiu, falamos sobre fragilidade. Sobre a noção disseminada dentro do que deve ser a masculinidade que diz que falar essas coisas é um sinal de fraqueza. Ao perguntar se as reações de acolhimento após ouvir as falas eram possíveis ou simplesmente mágicas, a maioria delas era vista como possível caso aquilo fosse dito de verdade. Ressalta-se, como também foi feito durante a oficina, que o objetivo desse exercício não é terapêutico. Não se resolvem ali os problemas, mas se estudam as reações possíveis do mundo às diferentes formas com que podemos agir. Técnicas abertas, em que os próprios participantes criavam as cenas, permitiam ver a diversidade das questões que a masculinidade trazia para o grupo. Em um exercício, moldamos o 53
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“ideal do macho”. Os movimentos ganhavam velocidade e intensidade, quadris perdiam o rebolado, sorrisos desapareciam e intenções mudavam. Trabalhamos com questões que nos pareciam permear a masculinidade de forma literal ou simbólica, chegando mesmo à paródia e ao estereótipo. Estes elementos não foram eliminados, mas discutidos como tal quando surgiam, sendo perguntado como o que revelávamos através dos exercícios era visto pelo grupo, qual sua relação com a realidade. Em outras técnicas surgiram temas diversos como sexo, prazer, adoção, paternidade, “saída do armário”, amor, ódio ao pai, divórcio, homicídio, brigas familiares e racismo. O “Grande jogo do poder”, outro clássico do arsenal do TO, faz parte de uma sequência de jogos dedicados a pensar o espaço como forma de exercício de poder. Partindo dele, resolvi pensar em algo que também discutisse um espaço tipicamente masculino, os mictórios. É uma espécie de regra social internalizada pelos homens que deve haver sempre um mictório livre separando dois em uso. A pergunta motivadora do jogo se transformou então de “como criar o espaço com maior/menor poder possível” para “como criar o espaço com maior/menor desconforto possível”. Três cadeiras representavam mictórios, uma mesa era uma bancada e todos esses elementos podiam ser rearranjados no espaço para pôr em discussão, materializada teatralmente, o desconforto dos mictórios. Após montar os mictórios, nos colocávamos em cena, descobrindo onde e como naquela arquitetura nos sentíamos mais ou menos desconfortáveis. Assim, o assunto se transforma de algo naturalizado para algo percebido, então pensado e discutido teatralmente para enfim poder, verbalmente, ser expandido para outras questões. Mesmo algo trivial como as regras sociais dos mictórios nos permitem discutir questões mais profundas, questões que revelam por que nos comportamos assim e quais são as alternativas viáveis. 54
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Estes são apenas alguns exemplos dentre diversos que poderiam ser tirados da oficina; uma das experiências do LEP na sua tentativa de impulsionar o Teatro do Oprimido para novos campos, adaptando suas metodologias às necessidades que surgem com o território a ser explorado. A oficina de Teatro do Oprimido e Masculinidades continua e esperamos que as descobertas sigam sendo cada vez mais relevantes.
BIBLIOGRAFIA ARONOVICH, L. “O Masculinismo como ele é”. In: Escreva Lola Escreva. http://escrevalolaescreva.blogspot. com/2012/05/o-masculinismo-como-ele-e.html Acesso em: 10/10/2019. BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido: e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. BOAL, Augusto. Jogos para atores e não atores. São Paulo: Cosac Naify, 2015. CONFORT, M. “Você sabe o que é masculinidade tóxica?”. In: Geledés. https://www.geledes.org.br/voce-sabe-o-que-e-masculinidade-toxica/ Acesso em: 10/10/2019. Portal Memoh. http://memoh.com.br/ Acesso em 10/10/2019. VANNUCCI, Alessandra. Legados do Augusto Boal e novas formas de militância nas práticas artísticas contemporâneas. Projeto de curso de extensão. CNPq, chamada Nº 25/2015, Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas, UFRJ, 2015. VIEIRA, João. “Violência sem fim: homens apertam o gatilho, mas também são mortos pela masculinidade tóxica”. In: Hypeness. https://www.hypeness.com.br/2018/09/violencia-sem-fim-homens-apertam-o-gatilho-mas-tambem-sao-mortos-pela-masculinidade-toxica/ Acesso em: 10/10/2019.
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O corpo como caminho: a fisicalidade do ator como ferramenta para a construção da personagem Igor Capanema* O artigo aqui apresentado surge a partir da necessidade de colocar o corpo do ator como objeto central no processo de busca, descobrimento e construção da personagem, a partir de seu acionamento através de mecanismos de trabalho deste corpo. Chamo de preparação corporal, o que, além de construir a personagem através da fisicalidade, possa também criar caminhos para que se conheça este corpo, influenciando na criação de um repertório corporal e de movimento que auxilie no trabalho de interpretação. Palavras-chave: preparação corporal – fisicalidade – ator
*Orientação: Jacyan Castilho. Bolsa PIBIAC/UFRJ.
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Antes de mais nada, é necessário caracterizarmos o trabalho físico como sendo as tentativas de identificar no corpo os seus limites e ultrapassá-los. Tal identificação pode ser uma autoidentificação, realizada a partir das próprias percepções do ator sobre seu corpo, ou pelo sujeito que conduz a experimentação, em algum momento do processo de criação. A partir do momento em que colocamos o corpo como objeto central do trabalho, isto é, como nosso ponto de atenção, partimos para a fase em que entendemos o funcionamento deste corpo, para que assim consigamos perceber sua contribuição para o processo de construção de uma determinada personagem, seja ela qual for, em algum contexto aleatório. De início, partimos da premissa de perceber este corpo do atuante em sua totalidade. A dicotomia que tende a instaurar o corpo versus mente não encontra lugar nesta investigação, já que se entende o corpo aqui como algo pensante, que sente, fala, cai, chora, ri. Um corpo que está em constante processo de ação. Tais ações podem, em certo momento, possuir caráter mecanizado. Porém, tal mecanismo é apenas ferramenta para o despertar de outras ações ou para o descobrimento de novas formas de experimentar este corpo no espaço. Assim, o físico e o emocional caminham juntos. É importante entender o corpo, portanto, a partir de uma noção de fragmentação, um corpo não-monolítico, em que todas as partes estão em pleno processo de comunicação. Um bloco de sensações, “um composto de perceptos e afectos” (DELEUZE & GUATARRI, 1992, p.213). Sendo assim, a partir do instante em que percebermos o corpo como mídia de si mesmo, passamos a enxergar os músculos, tendões, articulações, nervos, órgãos, tecidos, isto é, tudo que compõe a fisiologia deste corpo, “todo ser do ator” (STANISLAVSKI, 2016, p.256) como fonte de afetos, entendendo que a personagem deve ser procurada no próprio corpo do ator, a par58
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tir do acionamento de sua fisicalidade. É um processo de perceber a infinidade de outros corpos dentro de um, que se transforma. “Um ator é seu próprio corpo” (AZEVEDO, 2002, p.136). A partir disso, se torna necessário pensar a construção de determinada personagem a partir do próprio corpo, compreendendo corporalmente quais são as suas necessidades. E, para que isso ocorra, o trabalho físico, que aqui chamo de um trabalho de preparação corporal, consciente e claro quanto aos encaminhamentos, se faz necessário para a identificação de problemas recorrentes que impedem o ator de utilizar de sua própria fisicalidade no limite máximo de sua potência e em prol da personagem. Alguns destes problemas são identificados por Sônia Machado de Azevedo (2002) em O papel do corpo no corpo do ator: como exemplo, a mobilidade excessiva, ou o uso demasiado de energia muscular ou a falta de conhecimento das partes do corpo, sendo que este último corrobora a noção de corpo fragmentado. O que se propõe através da preparação corporal não é somente encontrar caminhos para a resolução destes problemas e para que a fisicalidade do ator seja, assim, uma ferramenta para a construção da personagem, mas que seja também um trabalho efetivo de reeducação corporal, uma “quebra de hábitos” (AZEVEDO, 2002, p. 143), a partir de um treino e de uma construção de um repertório pessoal de treinamento físico; a partir, também, de uma autopesquisa, com motivações individuais, influenciando para o aumento do repertório gestual do ator. É um mergulho no seu próprio corpo, nas suas motivações internas, que podem ser acionadas através da sua própria fisicalidade. “Se não se encontrar a si mesmo num papel, acabará matando a personagem imaginária, pois a terá privado de sentimentos vivos” (STANISLAVSKI, 2016, p. 258). 59
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É, assim, um desenvolvimento de uma técnica incorporada a partir de um treino constante, proporcionada pelo trabalho de preparação corporal, colocando o corpo como um instrumento do ator, para que este ator possa responder a questões do tipo: “como desenvolver minha economia gestual?” ou “quando a tensão muscular empregada em determinado músculo é realmente necessária e como (ou se) tal tensão pode ajudar para encontrar caminhos para a personagem?”. “Trata-se então de levar o ator (se acreditamos que ele é ou pode vir a ser um criador, a vivenciar a experiência criadora, tendo como material seu corpo” (AZEVEDO, idem, p.145). O trabalho físico, contudo, deve respeitar o tempo natural do próprio corpo. Assim como o corpo possui seu tempo, as ações vindas dele, ativadas por sua própria fisicalidade, também. “Todas essas pequenas ações físicas requerem uma certa dose de atenção e tempo” (STANISLAVSKI, idem, p.259). O que se pretende é desenvolver a capacidade do ator de pensar com sua própria fisicalidade e encontrar nela mecanismos de produção criativa, e que possam ser acionados por ele a qualquer instante do processo de busca e construção da personagem. O ator precisa conhecer seu corpo e os caminhos nele traçados que o auxiliem nesta jornada. Um processo de pensar corporalmente e com o próprio corpo, um pensar por movimentos (ou no movimento). Interior versus exterior Neste processo de entendimento dos mecanismos que acionam a fisicalidade para a busca da personagem, é de suma importância entender as trocas existentes entre o interior e o exterior deste corpo e seus funcionamentos. Sendo assim, estabelecemos como ponto de partida a existência de um movimen60
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to que é interno ao corpo (que podemos chamar de impulso), e como consequência, um movimento exterior. Tal impulso interno é caracterizado por Laban1 como “esforço” (efforts), a origem dos movimentos. Quando o ator conhece esse esforço, ele consegue manipular suas qualidades a partir da necessidade do trabalho. O esforço, assim, serve como uma fonte de dramaticidade. As dramaturgias do corpo, portanto, não nascem prontas, mas são criadas a partir de mecanismos de ação. Sendo assim, as trocas entre o impulso interno e a parte externa do corpo, isto é, aquela que pode ser vista, sendo submetida a juízos de valor, que cria formas estéticas e constrói imagens, são entendidas como constantes e presentes no processo de ativação desta fisicalidade. Ou seja, entender que a fisicalidade, aprimorada pelo trabalho físico de preparação corporal, para que seja aplicada em um processo de construção da personagem, pode influenciar em toda fisiologia do corpo. Entendendo que, se as emoções causam sensações corporais, o inverso também é possível, já que a relação entre o dentro e o fora é constante. “O interior se reflete exteriormente e o exterior provoca uma reação interior adequada quando são utilizados certos gestos e posturas” (AZEVEDO, 2002, p.145).
Practice-based research No decorrer da pesquisa, reiterando sempre que o corpo do ator é protagonista no processo investigativo, viu-se a necessidade de expandir a discussão para além do corpo teóri1
Rudolf von Laban (1879-1958), bailarino, coreógrafo, professor e pesquisador, conhecido por ter desenvolvido a Kinetography Laban ou Labanotation, um sistema de notação de movimentos. Para Laban, os movimentos nascem com um propósito e podem ser analisados a partir desta finalidade geradora.
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co e centrar, de fato, no corpo artista. Para isso, é utilizado como metodologia de pesquisa a Practice-based research (CANDY, 2006), na qual o artefato criativo, seja ele de qual natureza for, ocupa lugar central de investigação, em que o conhecimento vem através da prática. Brad Haseman, no artigo A manifesto for performative research (2016), apresenta a demanda crescente e as dificuldades encontradas por pesquisadores em Arte para encontrar metodologias de pesquisa adequadas o suficiente para seus trabalhos, fugindo do paradigma de pesquisas quantitativas e qualitativas instaurado ao longo dos anos. Em resposta a isso, a Pratice-based research surge como uma possibilidade para que tais pesquisadores tenham suas pesquisas conduzidas pela prática. Neste sentido, a remontagem do monólogo Enquanto olhava o mar, escrito por Rafael Coutinho, assume o protagonismo da pesquisa. Os conceitos aqui abordados a respeito do uso da fisicalidade do ator, estimulada e aprimorada pelo trabalho físico, isto é, a preparação corporal, são colocados na prática a partir do corpo da atriz que está em cena interpretando o monólogo. O objetivo é perceber de qual (ou de quais) maneiras o corpo atuante consegue encontrar caminhos para a construção da personagem utilizando-se primordialmente da sua própria anatomia, quando estimulada com diferentes propostas, como variações de qualidade e ritmo, por exemplo; ou levados a estados específicos, como o cansaço proporcionado pela repetição de uma mesma ação. O que se espera é perceber como o corpo da atriz, sua fisicalidade, consegue despertar as emoções necessárias exigidas por determinada personagem, quando colocado como central no processo de pesquisa. A partir disso, pretende-se também que tal processo de descoberta da própria fisicalidade ofereça subsídios para a criação 62
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de um repertório pessoal de trabalho para a atriz, tendo o seu corpo como fonte central. O treino físico proposto aqui pela preparação corporal tem, portanto, o intuito de provocar uma reeducação deste corpo e sua utilização para a criação da personagem, pensando teoricamente, mas também aplicando na prática, gerando resultados vindos diretamente do corpo. Trazer a prática para o centro da pesquisa vai contra uma tradição de produção de conhecimento, mas busca reafirmar uma forma alternativa (ou, senão, própria) de pensar o conhecimento artístico, entendendo quais são as demandas específicas do campo da Arte e entender como podemos visualizar para fora do papel o que é discutido aqui. Centrar no corpo o que é do corpo.
BIBLIOGRAFIA: AZEVEDO, Sônia Machado de. O papel do corpo no corpo do ator. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002. CANDY, Linda. “Practice-based research: a guide”. In: Creativity & Cognition Studios, v. 1. University of Technology, Sydney: CCS Report, 2006. DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. O que é filosofia? São Paulo: Editora 34, 1992. HASEMAN, Brad. “A manifesto for performative research”. In: Media International Australia incorporating Culture and Policy / Practice-led research, n. 118. Australia, 2006. STANISLAVISKI, Constantin. A criação de um papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
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Para pensar e fazer performance, corpo e cidade: pesquisando trabalhos de Lygia Pape dos anos 60 em 2019
Cecília Fonsêca de Carvalho* A presente pesquisa se propõe analisar três obras da artista brasileira Lygia Pape, desenvolvidas em 1968, na cidade do Rio de Janeiro. São elas: Ovo, Divisor e Roda dos prazeres, ações que privilegiam a experiência do/a espectador/a para a criação de sensibilidades e afetos singulares que possibilitam novas relações não apenas entre corpo e meio, mas também entre arte e vida. Uma pergunta central é: como as obras de Pape podem, cinquenta anos mais tarde, seguir inspirando novos modos de relação e configurações do corpo na cidade? Com o suporte de pensadores como André Lepecki e Hélio Oiticica, tomo para mim a responsabilidade de analisar as propostas de Pape, em busca de modos de ação artística condizentes com o contexto político contemporâneo. Palavras-chave: Lygia Pape – performance – cidade
* Orientação: Eleonora Fabião. Bolsa PIBIAC/UFRJ.
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Para pensar e fazer performance, corpo e cidade: pesquisando trabalhos de Lygia Pape dos anos 60 em 2019
Encontrei Lygia Pape (1927-2004) pela primeira vez em uma fotografia: ela, na praia, rasgava a membrana de seu Ovo. Junto com artistas como Hélio Oiticica e Lygia Clark, Pape abriu espaço para a arte contemporânea brasileira. Trabalhou com vários meios – escultura, gravura, cinema – e deixou um legado de obras icônicas como Balé neoconcreto I (1958), Livro da criação (1959), Divisor (1968) e Tteia 1C (2002). De acordo com o crítico e curador Márcio Doctors, a potência de sua prática artística está em sua poética única. Escreve: Lygia Pape é a corporificação, enquanto artista, dessa prática corajosamente mutante que não se deixa capturar por sentido algum. Sua identidade artística é constituída de mudança e construída na mudança; é em processo. Inventa novas formas para cada nova experiência ou situação. Executa um exercício radical de poética, que é o de descobrir nos limites das coisas (do material e do não-material) sua contundência expressiva (DOCTORS, 1989, p. 138).
Artista sensível ao movimento dos corpos e aos campos relacionais, elaborou a ideia de “espaços imantados”, espaços que se formam e se desfazem incessantemente em praças ou ruas, como um grupo em torno de uma roda de capoeira, de um camelô ou de um performer. A imantação é a qualidade que une magneticamente quem age e quem observa. No Brasil, os anos 60 foram marcados pela instauração de uma ditadura militar no país (1964). O auge desse processo se deu em 1968, com a promulgação do AI-5, ato institucional que fechou o Congresso Nacional e intensificou a repressão e a perseguição política. Neste contexto, Lygia Pape aposta em obras coletivas e marcadamente sensoriais, põe em xeque o adestramento dos corpos e pergunta-se sobre seu papel como artista. Escrevo este texto em 2019 e identi66
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fico, com pesar no peito, os mesmos perigos, a repressão e o cerceamento de comportamentos plurais em meu tempo. Em 1968, no evento “Apocalipopótese”, realizado nos jardins do MAM, Pape estreia seu Ovo. A obra consiste em três estruturas cúbicas montadas com hastes de madeira e envolvidas em plástico (azul, branco e vermelho). O espectador adentra o cubo pela abertura em uma das faces e rasga outra com um estilete, rompendo assim a membrana do Ovo. Hélio Oiticica, amigo de Pape, entende o trabalho como uma “performance-limite”, visto que “cria no centro do problema dentro-fora [...] uma desintegração que o faz explodir em N possibilidades sem concentrar em nenhuma especificamente” (OITICICA, 2000, p.300). A “poética do limite” da artista borra a noção entre público e privado. Articulando a quebra (i)material de tais fronteiras, o Ovo é quadrado e não acolhe o corpo em sua totalidade. Como propõe Oiticica, é uma passagem, existe para ser rompido. Também de 1968, a obra Roda dos prazeres consiste em um círculo formado por 16 bacias que contêm líquidos coloridos e um conta-gotas para degustá-los. Como explica Vanessa Machado, há neste trabalho uma ambivalência de sentidos, pois “a cor que encantara os olhos poderia (ou não) ser terrivelmente aversiva ao paladar: um amarelo brilhante seria capaz de dissimular um amargor horrível” (MACHADO, 2008, p. 120). Em entrevista para a Folha de São Paulo (2001), Pape chega a afirmar que gostaria de ter colocado veneno na cor vermelha, porém desistiu. Importante lembrar que a primeira versão de Roda foi feita com bacias de plástico, enquanto, em outras versões apresentadas após a morte da artista, os potes eram de porcelana. Entendo que Pape estava interessada em exaltar a ação e não os materiais da obra. Diz: “acho que cheguei ao limite da obra não-comercial, uma obra que qualquer pessoa poderia repetir em casa” (PAPE, apud MACHADO, 2008, p. 122). 67
Para pensar e fazer performance, corpo e cidade: pesquisando trabalhos de Lygia Pape dos anos 60 em 2019
Já Divisor é uma experiência baseada na utilização de um grande tecido branco em formato quadrado (30m²) com fendas regulares, onde os participantes colocam a cabeça. A obra cria, ao mesmo tempo, um corpo coletivo e repartido: o tecido une e separa os corpos de todos os participantes; e separa as cabeças dos corpos de cada um. O dispositivo aproxima, afasta, liga e divide simultaneamente. Pape comenta sobre o Divisor: Há também a separação, um corpo por baixo, solto, e a inquieta cabeça no topo: cabeças-cabeças-cabeças como pontos indo para cima e para baixo, como um olhar curioso: retinal. Um escolhe uma rachadura, uma fissura, uma ranhura no espaço, um corte no ar, um rápido movimento do corpo e um preenche o vão como o barulho dos pássaros (PAPE, 2011, p. 244, tradução minha)1.
Nesta experiência, só existirá movimento se houver o consenso da maioria, que, unida, definirá os termos de sua locomoção. E, mais uma vez, a experiência é o motor da obra de Pape. As três obras mencionadas, trabalhos em que Pape convida o espectador a ser um participante-vivente, podem ser articuladas com o conceito de “anti-arte” proposto por Oiticica. Escreve Oiticica: Não se trata mais de impor um acervo de ideias e estruturas acabadas ao espectador, mas de procurar a descentralização da “arte”, pelo deslocamento do que se designa como arte, do campo intelectual racional, para o da proposição criativa vivencial; dar ao homem, ao indivíduo de hoje, a possibilidade de “experimentar a criação”, de descobrir pela participação de diversas 1
“There is also the severing, a body underneath, slackened, and the restless head on top: heads-heads-heads like dots going up and down, like curious directions of the gaze: retinal. One picks a crack, a fissure, a groove in space, a cut in the air, a swift body stroke and one fills the open span like a bird’s cry.”
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ordens, algo que para ele possua significado (OITICICA, apud MACHADO, 2010, p.118).
Desde o início da pesquisa, o mar me chamou atenção no trabalho de Pape. O elemento está presente em registros fotográficos das três obras analisadas: ovos foram quebrados na praia (Ovo), Pape aparece degustando a Roda de costas para o mar; e Divisor lembra o mar como um corpo que nos une em sua imensidão. Com inspiração nessas imagens e na obra intitulada No início era tudo água – quadrado de papel (30,5cm²) tingido com guache azul, parte do Livro da criação (1959) – criei o programa performativo2 Embaixo dessa rua passa o mar. Um grupo de 4 pessoas vestidas de azul caminha de costas por diferentes trajetos relativos ao mar na cidade do Rio de Janeiro. O grupo deve se organizar no formato de um quadrado coeso e percorrer os trajetos com a ajuda de um guia. A ação deve ser realizada na preia-mar, momento em que o mar é mais receptivo. A ação foi realizada em 28/08/2019, às 14h. O trajeto escolhido foi da Praça Mauá até a Praça XV. Eu e mais três colaboradoras ( Júlia Helena, Isadora Giesta e Priscila Manfredini) andamos de costas, fluindo com a maré. O Rio de Janeiro nasceu do porto e se estruturou como cidade por meio de vários aterros, sufocando o mar. Assim, o trajeto escolhido para a ação, outrora, já foi todo mar. Andar de costas até o mar é encarar, de forma atenta e reflexiva, a história da cidade aterrada, e abrir espaço em direção a outras possibilidades de fazer cidade. Como moradora do Rio, sinto o chamado do mar constan-
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O conceito de “programa performativo” foi cunhado por Eleonora Fabião, orientadora da presente pesquisa. Para mais informações ver: <https://www. cocen.unicamp.br/revistadigital/index.php/lume/article/view/276>. Acesso em 08/09/2019.
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Para pensar e fazer performance, corpo e cidade: pesquisando trabalhos de Lygia Pape dos anos 60 em 2019
temente. Ele está aqui: por baixo, resistindo, agindo como materialidade e sensação. Durante a ação, lidamos com a vulnerabilidade de andar para trás e sentir a multidão avançando, enquanto caminhávamos no contrafluxo. Além disso, o corpo virou uma onda balançante, oscilando para frente e para trás, sempre que parávamos. Os passantes se dividiam entre olhares curiosos, palavras de apoio e deboches. No texto “Coreopolítica e coreopolícia”, o teórico da dança e da performance André Lepecki expande o significado de coreografia para as relações humanas vivenciadas nas ruas das cidades; e a relaciona diretamente com questões sócio-políticas. Utilizando o conceito de “política do chão”, formulado por Paul Carter, Lepecki propõe que: a política do chão não é mais do que isto: um atentar agudo às particularidades físicas de todos os elementos de uma situação, sabendo que essas particularidades se coformatam num plano de composição entre corpo e chão chamado história. Ou seja, no nosso caso, uma política coreográfica do chão atentaria à maneira como coreografias determinam os modos como danças fincam seus pés nos chãos que as sustentam; e como diferentes chãos sustentam diferentes danças transformando-as, mas também se transformando no processo (LEPECKI, 2012, p. 47).
O chão onde aconteceram os trabalhos de Pape analisados, nós já sabemos: o chão do medo e da morte que sustenta uma ditadura militar. Acredito que a pergunta crucial é, na verdade, qual chão Pape se propunha criar ao elaborar suas “danças”. Ao realizar trabalhos que proporcionam experiências sensíveis, desejou um chão que privilegiasse a vitalidade e a coletividade. E, de minha parte, ao me inspirar nos “espaços imantados” e na obra de Pape para pensar uma ação, bus70
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co criar condições para que brote um chão que celebre a vida. Para que o mar escorra pelos chãos duros dessa cidade. Termino este texto com um chamado: que nos mantenhamos “intrinsecamente anarquistas”, como disse Pape (1998, p.74), e radicalmente responsáveis pela vida cidadã. Em frente e sempre com afeto, caminhamos (de costas só se for em direção ao mar).
BIBLIOGRAFIA CYPRIANO, Fábio. “A biblioteca de Lygia Pape”. In: Folha de São Paulo, 21/04/2001. https://www1.folha.uol. com.br/fsp/ilustrad/fq2104200113.htm Acesso em: 08/09/2019. DOCTORS, Márcio. “Lygia Pape”. In: Galeria – Revista de Arte, n. 16. São Paulo: Área Editorial Ltda, 1989. FABIÃO, Eleonora. “Programa performativo: o corpo-em-experiência”. In: ILINX – Revista do LUME, v. 4. Campinas-SP, 2013. https://www.cocen.unicamp.br/revistadigital/index.php/lume/article/view/276 Acesso em: 08/09/2019. LEPECKI, Andre. “Coreopolítica e coreopolícia”. In: Ilha – Revista de Antropologia, n. 1, v. 13. Florianópolis: UFSC, 2011. https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/2175-8034.2011v13n1-2p41/23932 Acesso em: 08/09/2019. MACHADO, Vanessa Rosa. “Lygia Pape, arte e urbanidade”. In: JACQUES, P. B.; BRITTO, F. D. (orgs). Corpocidade – Debates em estética urbana 1. Salvador: Editora UFBA, 2008. ----. Lygia Pape: espaços de ruptura. Dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo – Universidade de São Paulo, 2010. MATTAR, Denise. Lygia Pape: intrinsecamente anarquista. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. OITICICA, Hélio. “Pape: ovo”. In: PAPE, Lygia. Gávea de Tocaia. São Paulo: Cosac e Naify, 2000. PAPE, Lygia. LYGIA PAPE: Magnetized space. Madrid: 2011. Catálogo de exposição. Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia.
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O corpo-objeto e a cenografia performativa Henrique S Bueno* O presente trabalho dá continuidade à pesquisa sobre a tragicidade a partir da ênfase numa expressão barroca nas artes contemporâneas (iniciada em O barroco e o contemporâneo: considerações sobre o trágico, Ciclorama, nº 5). Entendo que a cenografia contemporânea deixou de atuar exclusivamente como aspecto da representação e de dar suporte à fábula: atua agora também como sujeito performativo no espetáculo. Assim, tem-se a seguinte questão: é possível entender um corpo que deixe de figurar um sujeito humano e passe a funcionar apenas como objeto cênico? Na encenação de Que todos los hombres se vayan a Irak, realizada por mim na Mostra Mais 2019 (UFRJ), parte-se justamente de um corpo e um celular utilizados em cena para investigar tal questão. Palavras-chave: cenografia performativa – contemporaneidade – virtualidade
* Orientação: Carmem Gadelha. Bolsa PIBIC.
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As tecnologias de comunicação em rede alteraram completamente nossas percepções de ausência e presença. Na era da virtualidade, o corpo1 deixou de ser espaço privilegiado de subjetivação e individuação e se tornou mais uma dentre várias interfaces2. Através dos perfis de informação nas redes sociais, nossos corpos vêm experimentando um processo de desmaterialização dado através da profusão de imagens que produzimos de nós mesmos e da possibilidade trazida pelo virtual de nos conectarmos a espaços e pessoas absolutamente inalcançáveis para as nossas dimensões carnais. Partindo dessas premissas, a presente pesquisa propõe continuar a investigação da ênfase de uma expressão barroca na cena contemporânea (iniciada em O barroco e o contemporâneo: considerações sobre o trágico) a partir da perspectiva do corpo como possibilidade cenográfica. Os termos forma e conteúdo “colam-se” um ao outro com o mesmo grau de relevância nos materiais de composição da obra de arte contemporânea; eles fazem surgir um sentido autorreferencial no qual os materiais apresentam-se como alegorias de si; vestem-se de personagens: “A personificação alegórica sempre nos iludiu sobre este ponto: a sua função não é a de personificar o mundo das coisas, mas a de dar forma mais imponente às coisas, vestindo-as de personagens” (BENJAMIN, 1984, p. 199). Com isso, a cenografia assume um ponto-chave na cena contemporânea, uma vez que ela deixa de operar exclusiva1
De acordo com a perspectiva bergsoniana, temos o corpo como memória e linguagem e a carne é seu suporte material, embora seja inalcançável a delimitação de uma fronteira clara entre um e outro (BERGSON, 1999).
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É pertinente pensar este termo a partir da perspectiva trazida por Pierre Lévy em Cibercultura: “Usamos aqui o termo ‘interfaces’ para todos os aparatos materiais que permitem a interação entre o universo da informação digital e o mundo ordinário” (LÉVY, 2018, p. 37).
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mente dentro de uma lógica de representação que dê suporte e contexto à fábula. Os objetos cenográficos assumem dimensões alegóricas e passam a ter sua presença intensificada, intervindo diretamente na cena e impulsionando todo agir. Em Que todos los hombres se vayan a Irak, montagem dirigida por mim na disciplina de Direção VI, do Curso de Direção Teatral da UFRJ, o viés performativo da cenografia é apontado a partir de dois elementos: um corpo (sem impulso de agir) e um telefone celular ligado em transmissão ao vivo pelo Instagram. O texto de Nicolás Lange é atravessado pela questão da tecnologia nas relações sociais. Nós nos tornamos, também, perfis de informação. É possível existir sem corpo? Colocando em foco as composições e os fluxos subjetivos na era dos perfis de redes sociais, a dramaturgia apresenta cenas independentes. À velocidade do virtual, é preciso dizer mais em cada vez menos tempo: “meu rosto estampado na capa de um jornal” é a frase que direciona as figuras surgidas ao longo da dramaturgia. Em cena, três mulheres, um corpo e um celular. Cada uma representa (i) a projeção de uma imagem utópica, (ii) o desejo de construção dessa imagem e (iii) o fracasso em construí-la. O celular em transmissão e o quarto corpo se colocam como dois polos opostos, destacando, respectivamente, a relevância que damos às imagens produzidas no mundo virtual e um quase desprezo de nossa presença carnal como possibilidade para criar conexões (uma corporalidade que não se conecta e não se afeta pelo que está ao seu redor). Ao optar por utilizar um corpo quase destituído de autonomia na cena da peça, a problemática da cenografia performativa é apontada por um outro viés: é possível pensar um corpo que performe não mais como sujeito da ação, mas como objeto? Trata-se de um corpo que exibe ostensivamente sua condição de marionete operada pela “máquina cênica”. 75
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Retomando Benjamin, vemos que, se o objeto cenográfico, na contemporaneidade, tende a assumir consistência alegórica, o mesmo acontece com o corpo. Manipulado pelas atrizes que o rodeiam, ele interfere diretamente na atuação delas e opera em trânsito entre objeto e sujeito, numa composição alegórica que inclui o celular. Há uma permanente volta desse performer a uma posição de sujeito que intervém na dinâmica cênica e impulsiona o agir dos demais. Conforme aponta Veltrusky, é preciso assumir que, no palco, as posições de sujeito e objeto são oscilantes: a existência do sujeito no teatro depende da participação de algum componente na ação, e não de sua autenticidade real, de modo que mesmo um objeto sem vida pode ser percebido como sujeito performativo, e um ser humano vivo pode ser percebido como um elemento completamente sem pulsão (VELTRUSKY, 1964, p. 83).
No mesmo sentido, opera o celular em transmissão ao vivo. As atrizes manipulam o telefone com o propósito de construir imagens de si e daquilo que está sendo encenado. As imagens transitam, portanto, entre a autoimagem (nos momentos em que elas filmam a si próprias) e a imagem do outro (nos momentos em que filmam umas às outras e ao corpo-objeto). Esse mecanismo surge como dispositivo de construção direta daquilo que é estabelecido cenicamente. A interação, que costuma acontecer exclusivamente entre aqueles que estão presentes na sala de espetáculos, expande-se: as imagens ali geradas (um “outro” deles mesmos) são também transmitidas para fora da sala. O discurso adota mais uma possibilidade de direcionamento, criando zonas de interseção e problematização das noções de presença e ausência. As imagens são alegorias que escapam porque não se projetam na sala. Elas estabelecem um 76
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abismo “quase material” entre o virtual e o atual3. Mesmo assim, não há dicotomia interior/exterior. Na tese O espaço encena, Eduardo Andrade (2019, p. 187) destaca: “as coisas e objetos adquirem uma ‘potência de atividade’, tornando-se portadores ou propulsores da ação”. Evidentemente, todo dispositivo “age”. Porém, convenhamos: essa “potência de atividade” permite aos objetos se colocarem na condição de “sujeito performativo”, sem que se estabeleça, necessariamente, uma ação (conforme a entendemos enquanto enredo dramático). Em Que todos los hombres, temos que, mesmo entendendo um corpo performando como objeto, ele não foge à possibilidade de assumir também a posição de sujeito. Quando manipulado pelas atrizes em cena, ele re-age a elas. Com isso, a investigação sobre a ênfase da expressão barroca no contemporâneo é reforçada, também, pelo viés da justaposição. Artur Danto (2006), em Após o fim da arte, argumenta que uma das marcas históricas do presente é justamente a inaplicabilidade de uma narrativa-mestra. Esse corpo-carne que opera em trânsito entre sujeito performativo e objeto não assume uma narrativa em detrimento de outra: ele é uma e outra. Da mesma forma, o aparelho celular em cena. Multiplicam-se as possibilidades de presença desses corpos para além do espaço atual. A alternativa do virtual dá às atrizes uma sensação de controle sobre a imagem que constroem de si e dos outros em cena, de forma que fogem a uma suposta densidade dramatúrgica para operar na superfície de suas imagens (planejando seus melhores ângulos e tentando manter-se dentro de um determinado padrão de beleza). 3
Aqui e em outros momentos do texto, “atualidade” é utilizado como oposição à “virtualidade”, não pretendendo uma delimitação de contexto temporal dentro de uma linha histórica.
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Assim é, também, no mundo contemporâneo. Os diversos perfis de informação inventam narrativas de “si”. Essas narrativas e máscaras se articulam com a realidade, suspendendo a dicotomia verdadeiro/falso. Corpo atual e corpos virtuais colocam-se quase em pé de igualdade. A dimensão do humano já não pode ser compreendida exclusivamente a partir de sua origem ou qualquer essencialidade, de forma que abarca também diversas outras “narrativas de si” e permite a compreensão do corpo enquanto objeto (ainda que essa narrativa nunca se imponha como única e nem se sobreponha a outras): a maior mudança que ganha terreno em nosso mundo é, provavelmente, a tendência do ser vivo para a reificação, e ao mesmo tempo a recíproca animação do mecânico. Já não temos categorias puras do ser vivo e do ser inanimado. [...] Estou falando de nosso mundo real e não do mundo da ficção quando digo: Um dia teremos milhões de entidades híbridas [...]. Vamos ter de quebrar a cabeça para defini-las verbalmente como ‘homem’ versus ‘máquina’. A questão do real é e será: A entidade compósita comporta-se de modo humano? [...] O ‘homem’ ou o ‘ser humano’ são termos que devemos compreender e usar corretamente, mas eles não se referem à origem ou a qualquer ontologia e sim ao modo de ser no mundo [...] (DICK, Philip K. apud SANTOS, L. Garcia, 2011, pp. 237-238).
Portanto, se a contemporaneidade produz uma ênfase na expressão barroca nas artes, isso se dá como uma manifestação do mundo em que vivemos. Presenciamos a fragmentação do sujeito pensante em sua base. O sistema cognitivo do homem contemporâneo é composto por uma multiplicidade de “partes de todos os tamanhos e todos os tipos” (LÉVY, 2016, p. 137). E essa experiência do humano corrobora ainda mais a percepção de que somos seres proteiformes, sempre incompletos. Operamos 78
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em uma lógica de simulacros realizando uma reprodução desordenada de formas e imagens que se contradizem, mas também se sobrepõem e justapõem. Festa dionisíaca (trágica) das individuações e desindividuações.
BIBLIOGRAFIA ANDRADE, Eduardo. O espaço encena. Tese de Doutorado em Artes Cênicas – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2019. BENJAMIN, Walter. O drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999. DANTO, Artur. Após o fim da arte. São Paulo: EDUSP, 2006. GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. São Paulo: Record, 2001. LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. São Paulo: Editora 34, 2016. ----. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 2018. NIETZSCHE. A origem da tragédia. Lisboa: Guimarães Ed, 1982. SANTOS, L. Garcia. Politizar as novas tecnologias. São Paulo: Editora 34, 2011.
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â&#x20AC;&#x201D; PASSAGENS
Como viver de arte neste país com a atual conjuntura política?: um exercício de escrita situada* Érika Neves Lima de Souza** Os procedimentos de escrita situada são aqueles feitos a partir do contato com uma proposição, uma performação, com corpos, sensações, diálogos, com a fisicalidade do ato de escrever, pela atenção ao entorno. Pressupõem uma relação, diferentemente daquela escrita em frente à tela/papel em branco que aguarda inspiração mental. Kenneth Goldsmith considera que a operação de criação do século XXI deve ser uma atitude sustentável: o artista tem que ser um bom editor para recortar, colar e montar as informações, reaproveitando o que já existe para novas elaborações, o que chama de escrita não-criativa ou escrita recriativa. Apresento aqui reflexões e textos construídos a partir destes procedimentos, incluindo possíveis respostas ou novas questões sobre como viver de arte neste país atualmente. Palavras-chave: escrita situada – construção textual – viver de arte ** Artigo elaborado a partir do trabalho final da disciplina “Tópicos Especiais III – Procedimentos de escrita situada: deslocamentos entre o espaço e a página”, ministrada pela Professora Luiza Leite em 2018/2, no PPGAC-UFRJ. O texto foi modificado para publicação. ** Produtora Cultural da UFRJ e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC), da Escola de Comunicação da UFRJ. Orientação: Daniel Marques da Silva.
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Como viver de arte neste país com a atual conjuntura política?: um exercício de escrita situada
Escrita situada e não-criativa Os procedimentos de escrita situada são aqueles feitos a partir do contato com algo: com uma questão, com uma proposição, com corpos, com sensações, com diálogos, com espaços, com a fisicalidade do ato de escrever, pela atenção ao entorno, com uma performação – ou seja, pressupõem uma relação, diferentemente daquela escrita em frente à tela/papel em branco1 que aguarda a inspiração mental (quase psicográfica) para fluir. Kenneth Goldsmith, poeta e crítico americano, considera que a operação de criação do século XXI deve ser uma espécie de atitude sustentável2, contrapondo-se ao paradigma da originalidade: já existe muita coisa/história escrita3 e o artista tem que ser um bom editor para recortar, colar e montar as informações, reaproveitando o que já existe para novas
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“Numa rádio pública, há alguns anos, o poeta Derek Walcott confessou que se sentia aterrorizado pela página em branco — o terror de alguém que se pergunta se será capaz de voltar a escrever, se poderá produzir mais um bom poema. O entrevistador riu, surpreso de que até mesmo um ganhador do prêmio Nobel sinta tal terror. Walcott insistiu: ‘O poeta que diz o contrário mente’”. (KWAME DAWES apud GALELLI, 2017, p. 7).
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É a mesma ideia de sustentabilidade ambiental, com uso racional dos recursos naturais e reaproveitamento de tudo que for possível, para gerar menos descarte, poluição, excessos e desgaste da natureza. “A linguagem reciclada é politicamente e ecologicamente sustentável, promovendo a reutilização e o recondicionamento em oposição à manufatura e ao consumo do novo. Assim, contrapõe ao consumo global, capitalista e desenfreado, pois admite que a linguagem não pode ser possuída, que é um recurso partilhado e in finitamente abundante. O ecossistema digital, com seus processos replicativos e miméticos, produz recursos ilimitados — muito nunca é suficiente” (GOLDSMITH, 2017, p. 23).
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“A escrita, frente a uma quantidade sem precedentes de texto digital disponível, precisa redefinir-se para se adaptar a um novo ambiente de abundância textual” (GOLDSMITH, 2016, p. 18).
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elaborações, o que chama de escrita não-criativa4 ou escrita recriativa, destacado em Beiguelman (2011, p. 37) como proposta de “uma abordagem democrática e libertária para a criação literária”. Por que agora tantos escritores exploram estratégias de cópia e apropriação? É simples: o computador nos encoraja a imitar o seu funcionamento. Se os atos de cortar e colar foram incorporados ao processo de escrita, seríamos loucos em imaginar que os escritores não iriam explorar e tirar partido dessas funções, de forma que nem quem as criou tinha intenção (GOLDSMITH, 2016, p. 18).
Mas, embora se assemelhem a procedimentos mecânicos, os movimentos construtivos do artista “não-criativo” estão permeados de escolhas subjetivas. Quando, da área de transferência, eu despejo em meu trabalho uma quantidade de linguagem vinda de algum lugar e ajeito sua formatação e tipo de letra para parecer que sempre esteve ali, então, de repente, parece que tudo é meu (GOLDSMITH, 2016, p. 19).
O autor também compara a forma com que se manipulava um texto datilografado impresso (o enorme trabalho manual envolvido) à imensa facilidade atual de se realizar cópias e apropriações com o meio digital. “Ficou claro que a escrita do futuro tem mais a ver com mudar as coisas de lugar do que com criar novos conteúdos” (GOLDSMITH, apud MARTÍ, 2011). 4
Seu livro Uncreative writing: managing language in the digital age está disponível em: http://www.transart.org/events-2016/files/2016/05/Goldsmith.pdf (acesso em 02 fev. 2019), mas não localizei versão em português.
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Como viver de arte neste país com a atual conjuntura política?: um exercício de escrita situada
Como viver de arte? Na última aula da disciplina “Tópicos Especiais III – Procedimentos de escrita situada: deslocamentos entre o espaço e a página” (semestre de 2018/2), a professora Luiza Leite nos mostrou uma mensagem de áudio gravada pelo taxista que a trouxera à UFRJ naquele dia: Alô, vocês, estudantes do grupo Sintonia Cromática5, vai uma pergunta: como viver de arte neste país com a atual conjuntura política? Primeira pergunta. E depois, a proposta é se reinventar, deixarmos de ser pessimistas e sermos mais criativos. Com verba ou sem verba. É a hora dessa nova geração mostrar pra que veio! (sic) (grifos meus).
Essa questão me remeteu ao meu objeto de pesquisa no mestrado do PPGAC6, os coletivos oriundos do Curso de Direção Teatral da UFRJ, que tenham surgido a partir de alguma montagem acadêmica e/ou de alguma pesquisa desenvolvida no curso e que seguiram em atividade pós-Universidade. Pretendo investigar quais as estratégias de produção e circulação de suas criações diante de um contexto cada vez mais difícil para se produzir arte e cultura no Brasil. A partir do que o taxista nos instigou, e que tangencia meu objeto de pesquisa, busquei responder à pergunta “como viver de arte neste país com a atual conjuntura política?” de duas maneiras, que trabalharam com o acaso e com a participação do outro: 1) através de uma caminhada pelo Centro do Rio, coletando frases que estivessem escritas em muros, pa5
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Nome do grupo da turma no Whatsapp, inspirado na casual sintonia de cores das roupas/acessórios com que íamos para as aulas. Previsão de defesa para março de 2020.
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redes, cartazes, no asfalto e que me saltassem como respostas ou como novas instigações; 2) através da Internet, perguntando a grupos de alunos da Direção Teatral, da Escola de Belas Artes e a amigos da área de produção cultural como responderiam a essa pergunta. A seguir, estão os textos construídos a partir de trechos das respostas, montados num procedimento manual de recortar, editar e colar: editados e rearranjados por meio da descontextualização e recontextualização, tendo em mente que os procedimentos de escrita situada não são feitos de forma aleatória, mas numa composição que nos ajuda a pensar, que nos trazem mensagens dentro das mensagens e impulsionam mais reflexões. “Mesmo destacados de suas circunstâncias originais, os artefatos não são destituídos de significado; em vez disso, adquirem novos significados, situados em novos quadros” (GOLDSMITH, 2017, p. 21). Possíveis respostas ou novas questões? – O que diz a rua
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Como viver de arte neste país com a atual conjuntura política?: um exercício de escrita situada
Fonte: elaborado pela autora (2019)
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Possíveis respostas ou novas questões? – O que dizem as pessoas
Fonte: elaborado pela autora (2019)
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Reflexo(õe)s [...] nunca antes a linguagem teve tanta materialidade – fluidez, plasticidade, maleabilidade – implorando para ser manipulada de forma ativa pelo escritor. Antes da linguagem digital, palavras eram quase sempre encontradas presas na página. O quão é diferente hoje, quando a linguagem digitalizada pode ser despejada em qualquer recipiente concebível. [...] as possibilidades são infinitas (GOLDSMITH, 2016, pp. 19-20; grifos meus).
Considero a escrita situada uma escrita performativa, por envolver proposições, relações e edições. Embora não seja exatamente considerado um procedimento acadêmico, mas uma elaboração poética, a construção dos textos acabou por gerar novas instigações e que certamente possuem relação com as questões enfrentadas pelos profissionais da arte e da cultura. “O cenário do ‘recortar-e-colar’ lida de novo e de novo com o fato de encontrarmos e adotarmos estratégias digitais ativadas em rede que alteram ainda mais nosso relacionamento com as palavras” (GOLDSMITH, 2016, p. 19). A arte expande a linguagem e os mecanismos de comunicação/difusão de informações, cada vez mais digitalizados, têm influenciado cotidianamente nossa escrita. Ainda segundo Goldsmith (2017, p. 23), editar é movimento. Movimentar ideias e possíveis respostas (ou novas questões) significa tentar sair da inércia, despertar a criticidade, abrir caminhos nesse contexto nebuloso que por vezes nos venda os olhos e nos traz estagnação e desânimo. Neste mesmo sentido, Lepecki (2011, p. 49) aponta para a importância de um exercício cotidiano de desvelar, revelar e friccionar as tramas desse próprio cotidiano, por promover ações no intuito de “refazer o espaço de circulação numa coreopolítica que afirme um movimento para uma outra vida, mais ale90
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gre, potente, humanizada e menos reprodutora de uma cinética insuportavelmente cansativa [...]”. O performer Pope.L (apud FABIÃO, 2013, p. 2) afirma que “artistas não fazem arte, eles fazem conversas. Eles fazem coisas acontecerem. Eles modificam o mundo”. Assim, entendo que uma possível resposta a “como viver de arte?” certamente envolve a questão das relações, das trocas, dos afetos e dos diálogos, de coletivamente se construir caminhos dentro dessa conjuntura de novas formas de comunicação e linguagem. Que nos transbordemos e que cada vez mais nossas presenças ressignifiquem umas às outras. “Sabemos que é possível ter uma mudança social não violenta, pela simples razão de que temos mudanças sem violência na arte” (CAGE, apud GALELLI, 2017, p. 9).
BIBLIOGRAFIA BEIGUELMAN, Giselle. “Copiar é preciso. Inventar não é preciso”. In: Revista Select, 27/09/2011. [Entrevista com Kenneth Goldsmith] http://desvirtual.com/text/copiar_eh_preciso.pdf e https://www.select.art.br/copiar-e-preciso-inventar-nao-e-preciso/. Acesso em 02/02/2019. FABIÃO, Eleonora. “Programa performativo: O corpo-em-experiência”. In: Revista do LUME – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais, n. 4. São Paulo: UNICAMP, 2013. GALELLI, Patrícia. “Processos infalíveis: Goldsmith recortado”. In: Hay en portugués? n. 7. Florianópolis: par(ent)esis, 2017. GOLDSMITH, Kenneth. “Contra tradução: o deslocamento é a nova tradução”. In: Hay en portugués? n. 7. Florianópolis: par(ent)esis, 2017. ----. “Por que a escrita conceitual? Por que agora?” In: Hay en portugués? n. 6. Florianópolis: par(ent)esis, 2016. LEPECKI, André. “Coreopolítica e coreopolícia”. In: Ilha – Revista de Antropologia, n. 1, v. 13. Florianópolis: UFSC, 2011. https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/2175-8034.2011v13n1-2p41/23932. Acesso em 28 mar. 2018. MARTÍ, Silas. “Literatura será feita a partir de cópias, diz fundador do site UbuWeb”. In: Folha de São Paulo, 24/11/2011. [Entrevista com Kenneth Goldsmith] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2011/11/1011131-literatura-sera-feita-a-partir-de-copias-diz-fundador-do-site-ubuweb.shtml. Acesso em 02/02/2019.
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Da arte de estar em boa companhia Ribamar Ribeiro* O presente artigo traz a perspectiva do trabalho de companhia, a criação em grupo e as características desta forma de produção. Toma-se, como partida, o processo de montagem do espetáculo Ariano - o cavaleiro sertanejo, desenvolvido pela companhia teatral Os Ciclomáticos. O espetáculo estreou em junho de 2018, no SESC Tijuca; tem autoria e direção de Ribamar Ribeiro. O texto propõe reflexões sobre como se estabelece esta relação de companhia de teatro e a força criativa e produtiva de seus integrantes. Palavras-chave: companhia de teatro – criação – Os Ciclomáticos
** Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Orientação: Nanci de Freitas. Bolsa CAPES.
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Da arte de estar em boa companhia
Os Ciclomáticos, Companhia de Teatro Os Ciclomáticos é uma companhia com estilo diversificado em termos de linguagem teatral, pois personifica as propostas de encenação idealizadas em cada projeto, com a missão de promover arte teatral criativa e diversificada. Os espetáculos teatrais e ações de formação artística são construídos de forma coletiva. Com 23 anos de existência, 12 espetáculos em repertório, inúmeras temporadas (muitas realizadas nos teatros João Caetano, Carlos Gomes, Dulcina, Glauce Rocha), participações em festivais de teatro nacionais e internacionais (incluindo o Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, na abertura oficial, com o espetáculo Casa grande e senzala – manifesto musical brasileiro, em 2015), conquistou diversos prêmios (mais de 200) e indicações em todas as categorias, solidificando-se não só na cena teatral carioca, mas também nacional. Além de se apresentar em todas as regiões brasileiras, já se apresentou em países como Alemanha, Peru e França. A Companhia desenvolveu o híbrido como uma linguagem própria, através da dramaturgia cênica, revisitando autores de expressão mundial, tais como Federico Garcia Lorca, Sófocles, Nelson Rodrigues, Jean Genet, Jorge Amado. Aposta-se na contemporaneidade da encenação, da escrita e na individualidade de cada integrante da Companhia, formando os multiartistas. De 2012 a 2015, a Companhia administrou o Teatro Municipal Ziembinski, que se localiza na Tijuca, com o projeto de residência artística “Os Ciclomáticos – história e vivência cênica”, que promoveu espetáculos, cursos e atividades de artes em geral à comunidade carioca. Hoje, a Companhia Espaço das Artes – Os Ciclomáticos possui sede própria, localizada na Rua de Santana, Centro, Rio de Janeiro. 94
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O legado de companhia Como se estabelece uma companhia? O que permite a sua longevidade? Em que momento se dá o ponto de virada para sua profissionalização? A construção de uma companhia e sua solidificação, no que concerne a sua manutenção e à linguagem estética, está diretamente ligada ao desejo de continuidade dos integrantes que a compõem. Esta relação estabelecida se estrutura a partir da forte relação dos seus integrantes e a arte que eles defendem. Quando este pensamento se torna claro para quem está envolvido diretamente nos projetos e no cotidiano da companhia, o andamento do grupo se concretiza com muito mais legitimação. Muitos acontecimentos favorecem a criação de um grupo para que este se torne uma Companhia; dentre eles, pode-se destacar a forte relação de parceria e companheirismo, a conexão de um mesmo ideal de coletivo e, principalmente, o comprometimento com as propostas estabelecidas e seus desdobramentos. Este arcabouço de possibilidades contribui para o sucesso ou fracasso de uma legitimação do trabalho de uma companhia. No livro Arte popular y sociedade en America Latina, Nestor Garcia Canclini (1977) trata de questões acerca da relação do teatro com o povo, mas também de que maneira este mesmo povo se apropria dos meios de produção para executar o seu teatro. E este debate também está muito relacionado ao estabelecimento de companhias, porque não basta apenas montar o espetáculo, mas também pensar em como reverberar esta obra e suas ações, sejam elas técnicas, pedagógicas ou criativas. Os Ciclomáticos possuem este olhar, pois, além de serem artistas artesãos e criadores de espetáculos para que façam parte de seu repertório, eles também se colocam como educadores e multiplicadores de suas ações artísticas através de projetos como “Os Ciclomáticos DNA”. Abrir este paradigma sobre o conceito de Companhia é fundamental para entendermos esta rede de relações en95
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tre a criação do espetáculo, o processo e seus integrantes. Este quadro anteposto reverbera a linha de pensamento do grupo e, consequentemente, seu modus operandi. Atualmente a companhia possui 11 integrantes fixos (a companhia era composta por 12 integrantes, porém, em fevereiro de 2019, faleceu o figurinista e visagista da companhia, André Vital) com funções diversificadas de acordo com a linha de interesse, pesquisa e aptidão. Na Companhia, eu exerço a função de Diretor Artístico desde 2000, tendo dirigido a maioria dos espetáculos até agora produzidos. O início do processo do espetáculo Ariano – o cavaleiro sertanejo Em 2018, recebi o convite do Sesc-Rio para a montagem de um espetáculo em homenagem ao autor e dramaturgo Ariano Suassuna, a se realizar no mês de seu aniversário. Este grande desafio se tornaria a nova montagem de Os Ciclomáticos: o novo trabalho intitulado Ariano – o cavaleiro sertanejo. Naquele ano, a companhia completou 22 anos de história e carreira. Diante de tantas comemorações, era necessário fazer um trabalho à altura do grande autor e da companhia. Porém, ainda havia ainda outro desafio. O convite ocorreu no final de abril e todo o processo de criação, montagem e estreia teria em torno de 35 dias. No primeiro momento, foi fundamental exercer esta liderança criativa como diretor artístico da companhia de forma objetiva. Convoquei uma reunião com os integrantes e coloquei a postos todas as questões referentes à montagem, incluindo qual seria a visão artística acerca da obra, lembrando que não havia ainda texto ou roteiro que norteasse a montagem, já que se tratava de uma obra inédita. A criação de um espetáculo é semelhante a um conjunto de peças soltas sem sentido e que precisam de um caminho para 96
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que possam determinar um conceito; as pontas estão soltas, as ideias estão nebulosas e é necessário que se permita uma dose de loucura e lançamento no abismo para que um caminho seja definido. Para que tudo ocorresse de forma organizada, elaborei um plano de ensaio em que determinei o levantamento de cenas, a criação do desenho cênico, a direção dos atores, o tempo cênico e a encenação geral. A partir deste primeiro contato, foi montado um cronograma intenso tanto de criação quanto de execução. Este momento foi crucial para que a realização da montagem obtivesse êxito e resultado. Os ensaios se iniciaram no dia posterior à reunião. Os artistas envolvidos foram divididos em equipes para que os processos andassem. Os atores Carla Meirelles, Fabíola Rodrigues, Getulio Nascimento, Júlio Cesar Ferreira, Nivea Nascimento e Renato Neves, o figurinista e visagista André Vital, o cenógrafo Cachalote Mattos, o iluminador Mauro Carvalho e a preparadora vocal Juliana Santos, todos foram envolvidos diretamente neste processo. E, como na companhia, trabalhamos com o conceito de “multiartistas”, todos agiram como colaboradores em outras etapas dos processos de acordo com suas aptidões. Então, neste sentido, posso ser ator da companhia também colaborando na criação de figurinos, por exemplo. Esta formatação de trabalho intensifica e agiliza o processo de criação, além do que aproxima o artista da obra como um todo, pois a minha contribuição estará de forma concreta e visível na realização. As etapas de criação se deram com a elaboração do texto por mim durante o dia e, logo após, as escritas das primeiras páginas, isso era repassado para os compositores das músicas e trilhas. O texto em si apareceu a partir de entrevistas de Ariano Suassuna, de seus espetáculos-aula e de seus poemas. O objetivo é que o espetáculo possuísse a textura e gramatura de Ariano Suassuna, que remetesse a sua escrita, abrindo um canal com este olhar contemporâneo. No que concerne à escrita do texto, 97
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muitas inserções eram anexadas a partir da criação da cena juntamente com os atores formatando, assim, o texto cênico. Cada ator já iniciava a sua construção a partir de personas que se estabeleceram logo na construção da dramaturgia e isso foi trazendo para cada um deles uma identificação do arquétipo. O ator e a coletividade em que ele se insere participam da elaboração do texto. A partir de então, não é mais difícil imaginar uma outra prática, que excluiria a necessidade de recorrer a um texto-pretexto, a um texto anteriormente construído. De então em diante, é o conjunto de todos os que representam o texto que se constitui no seu autor coletivo (ROUBINE, 1982, pp. 66-7).
Muito próximo dos tipos de Commedia Dell´Arte, juntamente com os atores, determinaram-se os arquétipos de cada persona e o texto também se tornou uma espécie de canovaccio (roteiro utilizado neste período para o desenvolvimento das ações cênicas). Os ensaios começaram imediatamente, cada inserção de cena escrita durante o dia já se tornava o elemento para o desenho cênico que ocorria à noite. O texto foi-se moldando de forma mais clara e sendo construído em duas etapas: os personagens que estão à procura do autor Ariano Suassuna e narrando suas façanhas e peripécias; e, no segundo momento, a criação de histórias que emolduravam estes acontecimentos denominados estações. Esta formatação em estações se aproxima do mistério medieval. O mistério medieval é essencialmente épico, e apresenta, portanto, ao espectador tudo o que aconteceu, com todos os pormenores, sem seleção das cenas essenciais e sem o recurso de que alguém conta o que aconteceu em outro lugar. “Via-se tudo” (ROSENFELD, 1993, p.87).
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A proposta de direção A direção se propõe fazer um paralelo das configurações das farsas medievais com as manifestações populares nordestinas. Este encontro está pressuposto na pesquisa corporal, além de vocal; e da interpretação grandiosa desse período. O intuito é buscar estes elementos dentro do espaço cênico com objetos de cena que permitam o desenvolvimento da trama e das histórias que a compõem. O espetáculo é dividido em 6 estações: 1. O nascimento: apresentação do menino iluminado para o mundo; 2. A morte do pai: a injustiça combatida pelo pai termina de forma derradeira; 3. Mãe do Céu: no momento de aperto, “valei-me, Nossa Senhora!”; 4. Alma gêmea: o encontro do amor; 5. A moça Caetana: a sedução de Caetana para o fim do caminho; 6. A revelação: O que fazer agora, após os acontecimentos vividos? A imersão teatral foi de extrema importância para que o processo de criação tivesse dinamismo e fosse produtivo. Devo salientar que já possuíamos um pequeno repertório de pesquisa acerca da obra e vida de Ariano Suassuna antes, devido a diversos projetos realizados nesta área de investigação, incluindo a montagem do espetáculo Viva Suassuna com professores de artes cênicas do município do Rio de Janeiro em 2012. No documentário sobre Pina Bausch, um dos atores bailarinos relata que Pina conseguia retirar deles o que havia de mais profundo, devido ao conhecimento que ela, como diretora, tinha de cada um deles, o conhecimento de seus corpos e de suas almas. Essa imagem concretiza esta simbiose entre o diretor e 99
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seus atores. Esta relação, quando é estabelecida com respeito, afeto e escuta, permite que o desenvolvimento do trabalho artístico se torne mais intenso e aprofundado. Neste projeto de criação, vivemos de forma acentuada: a direção tendo que orientar os trabalhos, os atores em vívido estado de criação e a equipe técnica em profusão imaginativa. O projeto só obteve êxito devido à aposta de seus integrantes, como relatado em entrevistas: não há como criar sem companheiros que acreditem no mesmo ideal e compartilhem da mesma caminhada. A trajetória de um grupo com uma história de 23 anos diante de todas as vicissitudes pode ser considerada como um ato político, de resistência, sobrevivência e, principalmente, de legítimo amor e dedicação ao teatro.
BIBLIOGRAFIA CANCLINI, Nestor Garcia. Arte popular y sociedad en America Latina. México: Editorial Grijalbo, 1977. ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2008. ----. Prismas do teatro. São Paulo: Perspesctiva; Edusp; Editora da UNICAMP, 1993. ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral 1880-1980. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
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Linhas: construção de “outros” possíveis na cidade Ian Calvet Marynower* Este artigo visa a refletir sobre a relação entre corpo e cidade a partir de uma ação performativa realizada por mim em 2018, na cidade do Rio de Janeiro, intitulada Linhas. Ocorrida em três locais distintos, a ação trata da construção de uma teia de barbante que atravessa vastas áreas destes espaços. Fios vermelhos e azuis são presos em postes, árvores, pilastras; são esticados, cruzados uns com os outros e formam uma rede de múltiplas ramificações. Diante desta cama-de-gato, os pedestres interrompem seus fluxos e se colocam em outro ritmo, gerador de afetos imprevisíveis. Para ampliar a discussão, introduzo reflexões dos teóricos André Lepecki e Ericson Pires. Como produzir outras epistemologias, outros modos de ocupação, enfim, outros possíveis em nossas cidades? Palavras-chave: performance – cidade – política
* Orientação: Eleonora Fabião. Bolsa CAPES.
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A cidade é um espaço cerzido, um novelo de lã muito embolado, uma teia: a linha de uma avenida central que se junta à linha vertical de um prédio alto que almeja chegar no azul do céu que se junta à linha de eletricidade que tende a ser mais organizada nas áreas nobres e mais embolada nas áreas mais pobres que se junta à linha de um avião que se desloca no ar... André Lepecki, teórico da dança e da performance, em Coreopolítica e coreopolícia, fala do espaço urbano como constituído por “tangíveis imóveis de acordo com a estrutura incorporal da lei” (LEPECKI, 2011, p.48). Prossegue seu argumento, afirmando que a urbe “seria o suporte material necessário para conter a efemeridade, a precariedade, o deslimite e a imprevisibilidade ontológica da política, ou seja, do agir que tem como produto apenas o agir” (idem, ibidem). O espaço urbano se apresenta como uma malha de “contenção” com sulcos e muros, com canalizações e barreiras. Através da lei – estrutura incorpórea, porém, rígida – o Estado se previne procurando controlar qualquer tipo de imprevisibilidade: as leis selecionam, controlam, limitam. Sendo assim, o Estado coloca-se como mediador entre os concidadãos, estabelecendo, através das suas leis, padrões de bom senso e respeito mútuo – fundamentais para a vida em sociedade. Contudo, é nesta função mediadora que, em muitos casos, o Estado se excede e age de modo arbitrário, com ações repressivas e demonstrações violentas de poder. O desafio está colocado: em face a este modo de operação do Estado – das linhas de controle necessárias para a vida em comunidade mas, muitas vezes também desnecessárias e arbitrárias, as tantas linhas policialescas e estrias normativas –, como o corpo performativo pode agir a fim de desarticular o rígido, de abrir espaços de liberações, promover rachaduras no concreto? Foi pensando nesta questão que, no ano de 2018, me propus construir emaranhados de linhas de barbante pela cidade do Rio de Janeiro. A ação, intitulada Linhas, foi idealizada por mim ao 102
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longo da disciplina “Performance no Museu: (Auto)biografia e intermidialidade”, ministrada pela Professora Doutora Gabriela Lírio, dentro do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da UFRJ. Eu e meus/minhas companheiros/as de trabalho, graduandos/as de diferentes cursos de artes, nos propusemos construir teias de barbantes que atravessavam vastas áreas de um espaço. Foram três ações em diferentes locais do Centro da cidade: Praça Tiradentes, Largo da Carioca e nos pilotis do Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR). As pedras portuguesas – brancas e pretas, as estátuas, os postes e os bancos cor chumbo esverdeado – tudo foi rabiscado pelo crescente desenrolar de fios azuis e vermelhos. Costuramos o vazio do espaço como “seres-agulha”: atravessamos a linha reta, fizemos curvas, cruzamos a linha vermelha com a azul, passamos por cima, por baixo, pelo lado, agachados, fizemos alguns nós... Fomos “seres-agulha”. E a teia, conforme o tempo da ação avançava, ficava cada vez mais densa, embrenhada e extensa. Durante a ação, alguns rolos de barbante ficavam no chão, na expectativa de que qualquer pessoa pudesse compartilhar conosco a experiência de desenrolar as linhas no espaço. Na Praça Tiradentes e no MAR, conseguimos recrutar um número alto de “agulhadores” – em média 8 a 10 participantes contribuíram, uns mais, outros menos – na construção da teia. No Largo da Carioca, a ação foi feita apenas por mim e mais uma pessoa – Júlia Ribeiro, graduanda do Curso de Belas Artes da UFRJ. Em tese, a performance só terminaria quando todos os rolos de barbantes fossem completamente desenrolados. Isso aconteceu, de fato, no MAR, onde a ação durou três horas e meia. Porém, na Praça Tiradentes, uma chuva torrencial interrompeu a ação; no Largo da Carioca, a ação foi paralisada pela guarda local “Centro Presente”, como detalharei adiante. Construir um emaranhado dentro do próprio emaranhado urbano fez com que a ação transitasse entre dois extremos: por 103
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um lado, trançar os barbantes tinha um potencial desarticulador das linhas da própria cidade, construindo espaços temporários de acolhimento que desobedeciam às imposições geométricas de condução de fluxo na área urbana. Nesse sentido, a instalação funcionava como uma membrana que abraçava os transeuntes que caiam na teia. Por outro lado, as linhas reiteravam os percalços da cidade; a teia tornava-se barreira, mais um obstáculo hostil, mais uma impossibilidade, mais um impedimento em meio a tantos outros. “O que é isso?” – um homem maltrapilho me questiona ao ver a imensa teia. “O que o senhor acha que é?” – eu questiono de volta. “Por que fios?”; “Você acha que poderia ser diferente?”; “Mas me fala, qual é a ideologia de vocês?”; eu olho e, incerto, respondo: “Eu não sei qual é a ideologia. Qual é a do senhor?”. Certeiro, ele responde: “Estudar!”. Para não deixar morrer o assunto, falo que estou estudando as linhas, as fronteiras, os limites. Ele me interrompe: “Ah! Fronteira. Aquilo que tá dentro e fora? É isso? Ideologia do dentro e fora?”. Silêncio. “Estou começando a entender estes fios!”. Ele sorri e me abraça. A teia, neste caso, foi um convite, um contorno, produziu intimidade entre nós e o homem maltrapilho. Se não fossem as linhas, será que iríamos nos dar bom dia? Foi no esforço de assimilar a peculiaridade daquela ação que o homem compreendeu rapidamente a ideia de fronteira, introduzindo em nossa conversa as palavras “dentro” e “fora”. Ora, um morador de rua costuma estar sempre fora e de fora. Será que as linhas, de alguma forma, possibilitavam a este senhor um espaço “dentro”? De todo modo, foi neste jogo de questionamentos recíprocos, de incógnitas que geram mais incógnitas sem nenhuma pretensão de afirmar nada, que rascunhamos, com muitas mãos unidas, reais possíveis e impossíveis. E, em extremo oposto ao acolhimento, a teia se apresentava também como uma imposição ao corpo em travessia, um gran104
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de obstáculo que exigia uma coreografia específica para quem ousasse atravessá-lo. A teia provocava movimentação assimétrica, impunha constantes subidas e descidas. Planos altos, médios e baixos eram percorridos por corpos em equilíbrio precário. Os deslocamentos eram sempre sinuosos. As linhas exigiam que agíssemos com cautela e perspicácia para escolher o melhor lugar por onde passar. Quebra no ritmo da caminhada, desaceleração. Necessidade de levantar mais as pernas, de utilizar mais os braços, de articular mais a coluna vertebral, de afinar o olhar para identificar as possíveis armadilhas da teia. Um corpo em travessia deve estar sempre em estado de atenção. Para muitos/as dos/as passantes, essa travessia não se apresentava como um convite, mas uma imposição: ou atravessava-se a teia ou seria necessário dar uma volta muito maior para chegar ao lugar de destino. Isso aconteceu, sobretudo, no Largo da Carioca e na Praça Tiradentes, locais com grande fluxo de pedestres. Nos pilotis do MAR, por tratar-se de um espaço especificamente destinado à arte, a teia era vista como uma obra exposta e eu, visto como um artista. Além disso, havia um forte desejo contemplativo por parte do público e, também, extrema curiosidade acerca dos conceitos que fundamentavam aquela ação. Diferentemente, no ambiente da rua, a teia era um grande problema; ao ver uma mulher grávida mudando a sua rota, um velhinho preso na rede de linhas, um trabalhador que carregava um saco pesado dando meia volta, ao ver que estávamos violando o território de alguns moradores de rua, minha vontade foi de acabar com a ação imediatamente. Percebi que, conforme a teia se espalhava, o espaço público ficava cada vez mais vazio, as pessoas deixavam de passar. A performance espelhava instrumentos do Estado, reproduzia alguns de seus modos de operação: as nossas linhas de barbante agiam como tapumes da Prefeitura impedindo o acesso, como grades de uma praça que fecha a sua entrada a partir de uma de105
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terminada hora, como muros que selecionam a entrada de banhistas em praias ditas privadas. De repente, no Largo da Carioca, um grupo de seis guardas do Centro Presente – uma operação permanente de policiamento local – se aproximou da teia, afirmando enfaticamente: “Recebemos uma série de reclamações de vocês. Vocês precisam parar com isso e retirar os fios, imediatamente!”. O discurso imperativo me paralisa. Eu peço calma, afirmo que estou disposto a retirar as linhas de barbante, mas que, antes disso, gostaria de compreender melhor os motivos desta necessidade. “Vocês estão violando o direito de ir e vir das pessoas!” – afirmou o guarda. Eu, cuidadosamente, retruco: “Mas vocês também não estão violando o direito de ir e vir das pessoas, quando fecham uma parte do Largo da Carioca com grades, carros policiais e cadeiras?” (eu disse isso me referindo à base da guarda Centro Presente, que fecha uma parte da Carioca e impede a circulação de pedestres). Surpreso, o guarda afirmou: “Mas nós somos a polícia e lá é a nossa base, o nosso lugar de trabalho”. Imediatamente, retruco: “E nós somos artistas, experimentadores, universitários e aqui é o nosso lugar de trabalho! Estamos no mesmo nível”. Este diálogo renova a razão da presença da teia; ela se torna a protagonista de um combate: do lado de cá, o emaranhado de barbante – desafetos, afetos, corpos subindo e descendo, teia se estendendo... Do lado de lá, a linha policialesca – grades de metal pesadas, carros parados, guardas com cassetetes e pistolas de choque nos bolsos. Duas bases, frente a frente, uma linha fronteiriça, um campo de batalha. Fazendo um cálculo a partir de um mapa na Internet, pude constatar que o território-teia ocupou, aproximadamente, uma área de 402,80m2; enquanto a área tomada pelo Centro Presente é de aproximadamente 405,47 m2. Para além destes dois territórios em confronto, se instaura também um campo simbólico que disputa a legitimidade de es106
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tar ali e, mais do que isso, de existir. O policial tinha o intuito de questionar a razão daquela teia, acusando-a de não ser funcional dentro do sistema-cidade. Eu tentava apenas desarmar suas certezas, fragilizando a fundação daquela estranha base de vigilância no meio da praça pública. Diante da urgência policial em enquadrar aquela complexa teia de barbante, percebi a característica incapturável daquela ação performativa. O trabalho era não me deixar ser cooptado – não por resistência física ou por insubordinações às ordens, mas pela potência mutável e criativa da própria ação. Para não desacatar a autoridade e colocar em risco minha Pessoa Física diante das leis do Estado, descobri que a teia poderia, sim, abandonar aquele espaço, sem que eu precisasse aniquilá-la: a teia poderia habitar o meu corpo. Foi neste momento que comecei a me enrolar nas linhas. Destruí a teia no território da Carioca e, imediatamente, a reconstruí no (terreno do) meu próprio corpo. Puxo as linhas com força e elas se rompem, vou enrolando-as no meu quadril, no meu pulso, no meu tórax... As linhas comprimem a minha pele. Em alguns momentos, inclino meu corpo para a frente e fico suspenso no ar, a teia impede a minha queda. As linhas juntam as minhas pernas – dificuldade de caminhar. Apago os rabiscos no espaço rabiscando o meu corpo; é uma transposição do suporte: da cidade para a pele. Em 15 minutos, tal transposição foi realizada por completo. Os policiais ficaram sem função e foram embora. Agora, o meu corpo e o da minha parceira nesta ação, Júlia Ribeiro, é teia. A ação Linhas se metamorfoseou, escapou à investida policial e reafirmou sua exterioridade diante dos mecanismos de controle do Estado, ou seja, a sua propriedade de ser sempre “outra”, de sempre escapar às imposições coreopoliciais. De modo geral, penso o artista como aquele que deve sempre efetuar o agenciamento entre o Estado e as possíveis estratégias de fuga, entre o fixo e o fluxo, entre o estrato e sua desestratificação. 107
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Não se trata da negação de um em benefício de outro, mas de modos de preservar o movimento, de não deixar o estrato do Estado se solidificar a ponto de impedir a fuga e, neste ato de fugir, saber que o estrato sempre retornará. A polícia sempre virá nos vigiar, o Estado sempre irá nos punir e o jogo de escapar nunca deixará de ser jogado. Ericson Pires, em Cidade ocupada, fala de atos de traição: [...] pensar a traição realizada como sedição, como ação de resistência, como sabotagem, como instrumento na luta contra aquele que ocupa, como esforço para explicitar o regime de ocupação em que se vive. Todo território ocupado deve se desterritorializar, fazer girar seu eixo, perder o norte, produzir ruído. Essa é a traição do nômade (PIRES, 2007, p.45).
A transição do suporte da teia, a passagem do espaço para a pele, fez o território-teia girar o seu eixo e, assim, reinventar-se e tornar-se incapturável. A ação performativa traiu o que se esperava dela, traiu o seu fim; e assim, resistiu, sabotou a própria advertência dos guardas que viram a teia sendo “desfeita”. Fato é que os policiais não tinham mais motivos para reclamar da ação, ela pode continuar e foram eles que tiveram de ir embora. Fato é, também, que eles não poderiam pegar a sua base de vigilância e colocar no corpo, mas nós podíamos fazer isso com a nossa base. Eu e minha parceira caminhávamos embrenhados na teia, circulando pelo Largo da Carioca. Traímos o fixo e começamos a caminhar. A teia na pele era muito mais ágil e, atada como estava, podia chegar a outros lugares. Do fixo para o móvel; desterritorialização de território para re-territorialização do corpo; corpo como território móvel; sempre em vias de ser outro, sempre em fuga; sempre escapa, sempre fura, reverbera, pulsa e vive. Escapando do sedentarismo, nos tornamos travessia. 108
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BIBLIOGRAFIA DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs. São Paulo: Editora 34, 1997, v. 5. LEPECKI, André. “Coreopolítica e coreopolícia”. In: Ilha – Revista de antropologia, n. 1, v. 13. Florianópolis: UFSC, 2013. PIRES, Ericson. Cidade ocupada. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2007. SANTOS, Boaventura de Souza. “Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes”. In: SANTOS, B. S. & MENEZES, M. P. (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
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Amor não recomendado: do processo à cena Raíza Cardoso* O trabalho a seguir consiste em uma apresentação do processo artístico mais recente do Laboratório de Criação e Investigação da Cena Contemporânea, o espetáculo Amor não recomendado, escrito e dirigido por Martha Ribeiro. O projeto tem, como guia, pensar filosoficamente o amor e seus caminhos. Assim como aprofundar o processo de criação e de afetação dos atores envolvidos, através de fragmentos de relatos de suas experiências. Palavras-chave: afetos – experiência – laboratório
* Mestranda no Programa de Pós-Graduação Estudos Contemporâneos das Artes (PPGCA) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Orientação: Martha de Mello Ribeiro.
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Estudar a cena contemporânea a partir de pensamentos filosóficos sobre o amor e a sua escassez. Foi este o desejo que impulsionou o novo trabalho do Laboratório de Criação e Investigação da Cena Contemporânea nos anos de 2018-2019. O grupo de pesquisa teatral da Universidade Federal Fluminense, criado e dirigido por Martha Ribeiro, teve, como ponto de partida, a leitura de O banquete de Platão, onde filósofos se reúnem em um encontro regado a vinho, frutas e elogios ao amor. O trabalho conta com um elenco de sete atores residentes que estiveram em processo entre junho de 2018 e março de 2019. Um ponto inicial do processo criativo foi trabalhar a abertura dos canais afetivos do performer, através da respiração e busca da conscientização de seus gestos, permitindo a permanente atualização dos corpos. Este training respiratório, responsável por esculpir afetos, abre as portas para a construção e descobrimento de novas subjetividades, tanto no gesto teatral do performer, quanto na sua relação com o mundo. A partir da imersão nos laboratórios que partiam da temática proposta em O banquete e dos afetos experienciados pelo corpo e pela subjetividade dos performers, Martha Ribeiro escreveu e dirigiu o espetáculo, a partir de hipóteses a respeito do amor, cujo caminho vamos destrinchar, do processo de criação à cena. Amor e desvio “Para amar é preciso não pensar. Para amar é preciso perder um pouco de si mesmo, se dissolver na paisagem” (RIBEIRO, 2018, no prelo). A hipótese que abre o banquete se apresenta em uma forma de convite ao sujeito, para que este abdique de seu intelecto. Para adentrar a temática do amor que a peça propõe, os atores foram convocados a abrir mão de quaisquer julgamentos e se esvaziar da necessidade de compreensão. Já que o amor não recomendado, trabalhado pelo viés filosófico, trans112
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borda quaisquer moldes que a compreensão ou intelectualização estabeleça. A personagem central trazida para trabalhar esta hipótese é Julieta. A personagem shakespeariana, chamada de “J”, dá as costas para a lei da sua família ao escolher viver um amor não recomendado e se divide entre três atrizes que trabalham em cima da mesa do banquete, transformada em um tabuleiro. E, como num jogo de xadrez, elas se movimentam, pulando de casa em casa, se colocando em risco no abismo que se forma a partir da distância entre os cubos. O amor, enquanto experiência, exige que o corpo se exponha para que a matéria se torne uma superfície sensível, onde coisas aconteçam e provoquem sensações. O sujeito de experiência, segundo Larossa (2017), é aquele que está em risco, desprovido do controle da cognição. A informação, no pensamento do autor, é o que impossibilita a experiência sensível. Na dramaturgia do espetáculo, J fala do seu amor como um desvio, como algo desprovido de ambição, logo também desprovido de fracasso. A personagem compartilha a sua experiência com o amor que é livre das amarras do pensamento, se denominando como uma carne solta, pendurada, que desobedece. Tendo o pensamento como principal inimigo na busca pelo amor, ela escolhe amar ao invés de pensar. Esta mesma escolha é o que parece guiar os elementos estéticos presentes na peça. No primeiro momento de formação do banquete, um dos personagens marginais derrama maçãs sobre a mesa, símbolo do desvio, da tentação, o fruto proibido que representa o primeiro sinal de desobediência do ser humano. Amor e ódio Não fiques, portanto, forçando o que não é belo a ser feio, nem o que não é bom a ser mau. Assim também o Amor, porque tu mesmo admites que não é bom nem belo, nem por isso vás imaginar
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que ele deve ser feio e mau, mas sim algo que está, dizia ela, entre esses dois extremos (PLATÃO, O banquete).
Depois de abdicar do intelecto, também se abdica do julgamento de dividir o certo do errado, o bom do mau. O trabalho proposto, neste processo, consistia em amalgamar esses dois polos, de forma que, na segunda hipótese, é explorada a relação conflituosa dada pelo embaralhamento do amor e do ódio. Nesta perspectiva, o amor é apresentado como uma guerra. A hipótese é narrada enquanto dois personagens se engalfinham em uma briga de amor. As palavras proferidas pela narradora se misturam com os sons, ora de dor, ora de prazer, que ecoam dos corpos dos dois performers. Golpes se misturam aos beijos, que se misturam às mordidas e aos tapas. Dois corpos que, como amor e ódio, buscam se fundir um ao outro na sua fome por unidade. O embrião da cena que compôs a segunda hipótese sobre o amor foi desenvolvido afetivamente no trabalho da diretora com os atores. Nos laboratórios, os estados emocionais eram ativados e experimentados nos encontros a partir de exercícios específicos, que mais tarde eram chamados de “fluxos”, pois o seu desenvolvimento no corpo dos atores desencadeou uma coreografia, mais precisamente uma paisagem ótico-sonora composta por esses afetos, corpos e musicalidade. Para a escrita deste artigo, alguns atores compartilharam seus diários-de-bordo da semana em que esta hipótese foi trabalhada. 01 de outubro de 2018 Labirinto: para a criação da cena da briga, no Labirinto (hipótese 2). Inicialmente foi pensado em criar uma partitura onde os atores, eu e R. [...] deveríamos nos focar em encontrar o que a diretora chama de “palavras-vagalume”. As seguintes palavras apontadas foram: arrancar, fundir, rolamento pernas entrelaçadas (Fragmento retirado de diário de bordo, 2018).
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3 de outubro de 2018 Labirinto: olhos vendados, começou comigo querendo me encontrar com alguém. Alguém onde eu encontraria algo. Algo que iria me acolher e me dar respostas. Mas que eu já não tinha tanta certeza se era uma memória ou uma ficção. Então: dúvida; e por causa da música eu sentia muito medo, mas repetia para mim mesma “não posso parar de jeito nenhum!”. Depois que, na escuridão, me encontrei com o corpo do T. senti um alívio. O abraço era bom, mas me lembrei de todo o caminho, no qual eu não o tinha. Pensei que um dia poderia ficar sem isso de novo (Fragmento retirado de diário de bordo, 2018).
Nos ensaios, foi gerada uma qualidade de afeto preciosa; ao final de cada laboratório os atores se reuniram e compartilharam os atravessamentos que aquela experiência do dia havia proporcionado. Aos poucos, foi-se tecendo um pensamento a respeito do amor, a partir dessas práticas artísticas, que se materializaram através da escrita da dramaturga. Segunda hipótese: O amor é uma guerra. O abraço não é senão a tentativa de eliminar um dos antagonistas. A essência do amor consiste em querer reduzir dois seres em uma unidade: um ou outro deve ser eliminado. Mas, nenhum dos dois quer ser destruído e cada um tenta destruir o outro. Dois amantes que se consomem em uma luta dolorosa, ininterrupta, com breves momentos de gozo. Em sua forma carnal, o amor é pressentimento de morte. O sexo se assemelha a um assassinato que termina numa agonia. Mais forte é o desejo, mais o abraço carnal parece asfixiar; e quando os beijos não bastam para obter a impossível unidade, os dois se mordem, como se quisessem arrancar a carne do inimigo, incorporar-se, para no final se fundir um no outro. O desejo é um duplo agonizar, e o supremo espasmo se assemelha à morte com gemidos de morte. Mas os moribundos ao ressuscitar estão outra
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vez divididos em dois corpos, duas almas, sozinhos como antes (RIBEIRO, 2018, no prelo).
A encenação da relação conflituosa entre desejo e morte se afunila na materialização de Salomé, “S”, personagem bíblica que, no sofrimento por não ser correspondida por João Batista, ordena a morte de seu amado, colocando sua cabeça em uma bandeja de prata. Após a guerra entre os casais, a mesa é formada mais uma vez e mais maçãs são derramadas. De volta ao banquete, S se vê diante do corpo nu de João Batista. A cena acontece em cima da mesa, onde S profere ao corpo dele elogios de amor, seguidos de rompantes de raiva e surtos de violência, variando entre momentos de extrema atração e extrema repulsa. A oscilação dos sentimentos de S provoca um embaralhamento angustiante e crescente, enquanto a personagem beija e acaricia o corpo imóvel a sua frente, assim como quando o morde e sacode, puxando seus cabelos de forma violenta. Depois de finalmente conseguir beijar os lábios de João Batista, S percebe que estava diante de um cadáver. Amor e falta Se o movimento do desejo instala o que está ausente, e se esse ausente seria o que determina o sujeito do desejo, o desejável já estaria ali no desejo, mas de forma ausente, pois o objeto desejado não é possuído. Então, se o desejável já existe como falta, seria o objeto do desejo uma invenção? (RIBEIRO, 2018, no prelo)
Em dado momento a mesa se desfaz, todos os performers saem deixando o palco vazio e a cena é preenchida apenas pelas maçãs espalhadas no chão. Ouvimos o que é o começo de uma melodia, um ator entra e se posiciona no centro. Começa uma coreografia serena e precisa, que aos poucos se intensifica. 116
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Ao fundo se forma um coro que repete os movimentos de forma descoordenada. No seu crescente, o ator que está no centro vai gerando movimentos cada vez mais perturbados, o coro ao fundo começa a bater os pés no chão e a fazer caretas, emitindo gemidos que parecem soar diretamente na cabeça do performer. Este para de repente anunciando que ele mesmo não é uma invenção e se apresenta como Nijinsky. Um silêncio toma conta da cena e o coro sai, deixando o bailarino russo sozinho com sua loucura em busca de escrever uma poesia. Ele utiliza um giz para escrever no chão, onde as palavras se apagam à medida que o fluxo de escrita aumenta, tornando difícil a sua leitura. Após o insucesso para escrever sua poesia com palavras, o performer volta para o centro do palco e começa uma dança. Ao longe, outro performer se aproxima e dança junto com Nijinsky, que cai ao final da coreografia. Terceira hipótese: O amor está circunscrito ao impossível. O desejo transfigura o amado. Toda a graça e a doçura do amor pertence a esse tempo de preparação, ele vive na distância, quando cada um é para o outro um mistério. Mal o desejo é satisfeito vem a tristeza, o desencanto, o remorso: começa o fim. O amor se reduz a uma angústia. Promessa de felicidade e uma saudade doce pela felicidade jamais gozada. O amor é um jogo com a Luxúria, o amor tem suas raízes na animalidade, por isso é uma batalha na qual todos são vencidos (RIBEIRO, 2018, no prelo).
A cena que segue conecta as duas figuras centrais dessa parcela da dramaturgia que explora o amor ligado ao impossível. Os performers começam uma movimentação onde eles se encontram e se desencontram juntamente com a trilha sonora executada ao vivo, formando uma paisagem ótico-sonora, onde o espectador vê movimentos de atração e dispersão. Esta coreografia, inserida pela diretora a partir do “fluxo das travessias” foi traba117
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lhada com os atores durante o processo de criação como forma de acessar o caminho do amor, traçando-o do seu nascimento até o seu fim. Investigando os desdobramentos do desejo quando este se depara com a interdição. Na cena, os performers caminham pelo palco atravessado de maçãs, terminam sozinhos, segurando uma delas com as mãos. Amor e morte A escolha de pensar o amor a partir da sua conexão com a morte foi devida à experiência do corpo feminino no mundo. Coube às atrizes a tarefa de pesquisar crimes de feminicídio e apresentá-los ao grupo, partindo de um lugar onde as histórias de amor que desencadearam a morte têm, em sua grande maioria, a mulher como vítima. Na construção da cena, as atrizes foram desafiadas a compartilhar relatos de feminicídio em primeira pessoa, utilizando seus nomes e idades verdadeiros no lugar das vítimas dos crimes relatados. Desta feita, os relatos de feminicídio foram trabalhados pela diretora de forma a nascer, a partir de uma coreografia de tango dançada por casais seguindo especificamente a forma heteronormativa; cada atriz se direciona para a frente e relata um crime a partir da sua perspectiva: a da vítima. Suas vozes vão-se misturando umas às outras, formando um crescente, evocando a multiplicidade de histórias das milhares de mulheres que são assassinadas todos os anos no Brasil. Considerações finais O Laboratório funciona como um espaço híbrido entre a academia e o teatro e Amor não recomendado se desenvolveu a partir deste desejo que consiste não só em mesclar, mas também em transpor para a cena o pensamento acerca de um tema tão re118
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corrente no contemporâneo e que já sofreu diversos desdobramentos na obra de pensadores e nas próprias instituições. Este movimento foi dado através do trabalho contínuo da direção juntamente com a entrega dos performers, que abriram seus canais afetivos e permitiram que o material produzido por essa investigação fosse transformado em arte.
BIBLIOGRAFIA LAROSSA, Jorge. Tremores. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017. PLATÃO. “O banquete”. In: Diálogos/Platão. São Paulo: Nova Cultural, 1991 (Os pensadores). RIBEIRO, Martha. Amor não recomendado. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2018. (no prelo) ----. “O treinamento do ator no Laboratório de Criação e Investigação da Cena Contemporânea: a respiração como escultura de afetos”. In: Pitágoras 500 – Revista de estudos teatrais, n. 1, v 9. Campinas, 2019.
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Memória e canibalismo no laboratório de criação e investigação da cena contemporânea Lucas Rodrigues de Souza* Este texto discorre sobre o segundo ano de projeto “Os mestres pedagogos dos anos sessenta: o teatro-ritual de Jerzy Grotowski, Peter Brook, Eugenio Barba”, orientado pela professora Martha Ribeiro. Objetiva-se desdobrar pesquisas dos mestres pedagogos em uma investigação sobre conceitos de memória individual e poético-social na cena teatral contemporânea, tendo como norte a arte do ator e/ou do sujeito em situação de representação, observado nas experimentações cênicas do Laboratório de Criação e Investigação da Cena Contemporânea. Pensa-se também a conceituação de “canibalismo” no teatro contemporâneo, desenvolvida por Martha Ribeiro como forma de deslocar corpos, identidades, memórias e biografias de territórios dados para acessar uma via de ação para a autonomia de pedagogia atorial. Palavras-chave: teatro performativo – pedagogia atorial – canibalismo.
* Aluno de Iniciação Científica do curso de Antropologia da Universidade Federal Fluminense. Orientação: Martha de Mello Ribeiro. Bolsa CNPq.
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Segundo Erika Fischer-Lichte, “uma representação teatral é sempre o lugar de encontro entre o real e o ficcional” (FISCHER-LICHTE, 2007, p. 16). A autora nos remete aos anos sessenta e ao rompimento efetuado por Grotowski com o chamado “teatro de quarta parede” (conceituação essa de Diderot1) para dar ênfase à realidade da arte e não mais ao real-cotidiano. Começamos este artigo com uma referência histórica a Grotowski para trilhar um caminho que já venho percorrendo desde o ano passado com a parte anterior da pesquisa de Iniciação Científica. Agora, o que pretendemos é criar ligações entre a primeira parte da pesquisa e esta nova etapa, que se volta mais para o processo laboratorial de treinamento e montagem do espetáculo Amor não recomendado (2019), dirigido por Martha Ribeiro. Óscar Cornago (2009), em seu artigo, Atuar “de Verdade”: A confissão como estratégia cênica, discorre sobre o fenômeno da confissão sob um ponto de vista cênico. Cornago inicia o artigo com a explanação sobre o filme Close up (1981), de Abbas Kiarostami, mais precisamente a respeito da parte final, a do julgamento de Sabzian, que fora acusado de haver usurpado a identidade de um famoso diretor iraniano. A cena em questão pode ser entendida como uma alegoria da representação do final do século XX e o começo do XXI, onde a verdade da representação recorre a um plano e experiências pessoais, que é algo que acontece de modo mais claro em uma cena do espetáculo Amor não recomendado, dramaturgia de Ribeiro (2019), onde a atriz Raíza Cardoso, sentada com um microfone na mão, discorre sobre uma verdade que poderia muito bem ser dela, embaralhando a percepção do espectador sobre quem fala: seria a personagem ou a atriz? O que rodeia 1
Denis Diderot conceituou o que hoje se entende por “teatro dramático” ou “drama”, tendo como fundamento as ideias de “quadro”, “perspectiva” e “quarta parede”, com a função de dar a ver um universo em espelho ao nosso mundo cotidiano.
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o falante, aqui podendo ser lido como “testemunha”, não é sua capacidade de narrar o que experienciou, mas a presença de um corpo vivo que passou por sofrimentos, experiências etc. Cornago faz uma indagação que pode servir como uma base norteadora para esse artigo: “em que medida a confissão também é um modo de pensar com o corpo, um pensamento performativo?” (CORNAGO, 2009, p. 106). Pensar em um Teatro Performativo, tal qual é pensando no Laboratório de Criação e Investigação da Cena Contemporânea (LCICC-UFF), coordenado pela Professora Doutora e diretora teatral Martha Ribeiro, é pensar, em grande parte, numa ideia de performance que se fundamenta na busca de uma experiência. Ivan Isquierdo, na conferência da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas em 2012, afirma que somos aquilo que lembramos. Ele também afirma que a memória não é certeira e que todos nós ficcionalizamos memórias, logo história e ficção não estão tão separadas assim. Essa afirmação que Izquierdo faz pode ser utilizada para pensar o embaralhamento entre ficção e realidade dentro do teatro contemporâneo. O que há de fictício dentro de nossa realidade subjetiva? Cornago entende a realização do fazer teatral como uma operação cirúrgica do mundo exterior (explicitando aqui uma dicotomia mundo/teatro ainda presente em um imaginário popular): “praticando cortes, descentramentos e focalizações com o propósito de fazer visível uma dimensão simbólica que não é do campo da realidade, questionando suas categorias, limites e convenções” (CORNAGO, 2005, p. 9). Sendo assim, Cornago (2005, p.10) conceitua “biodrama” como algo que pretende “recriar a vida dessas pessoas desde uma exterioridade anterior aos sentidos lógicos e as perguntas transcedentais impostas pelos discursos culturais, recuperadas como presença e aparência”. 123
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Podemos relacionar os biodramas com a obra de Alberto Kurapel e seu processo de criação. No cerne de suas criações, encontram-se temas como exílio, repressão, tortura, desaparecidos políticos, poder, todas essas temáticas articuladas em um discurso que visa a desconstruir a história – a mesma que é apontada como fictícia, para Izquierdo –, tomando como base sua própria cultura e sua memória fraturada para criar uma concepção que Kurapel denomina de mestiçagem artística. Em A escrita do outro, Diana Klinger descreve o fundo temático do romance La liebre (1991), de César Aira, que narra a travessia de um naturalista inglês pelos pampas no século XIX. O fundo etnográfico do romance opera o que Klinger denomina de “hermenêutica do outro” (KLINGER, 2016, p. 68), quando, por intermédio do outro, retornamos para nós próprios. Valendo-se de leituras de Derrida, a autora traça também o conceito de “tautologia de si”. Dessa forma, podemos pensar tanto em uma escrita etnográfica quanto numa escritura teatral que podem estar situadas entre a “hermenêutica do outro” e a “tautologia de si”. Assim, podemos ver que a “outridade”, que sempre foi o lugar central da escrita etnográfica, agora passa a receber um destaque dentro da produção literária latino-americana, segundo a autora. Ancorada no trabalho de Hal Foster em O retorno do real, Klinger pode nos ajudar a pensar a relação arte-etnografia, com o paradigma do “artista como etnógrafo”, tal qual Benjamin anteriormente traçou o paradigma “autor como produtor”. Há no paradigma do artista como etnógrafo uma “fantasia primitivista”, onde o “outro” tem um acesso especial a uma psiquê e a processos sociais a que o homem branco não tem acesso. A fantasia primitivista de Klinger concorda com o pensamento da antropóloga Els Lagrou, que faz a seguinte indagação: “o que viram os surrealistas na arte de outros povos, sua arte predileta vindo 124
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primeiramente da África, e depois principalmente da Oceania e das Américas pré-colombianas?” (LAGROU, 2018, p. 208). Dá-se, então, na atualidade, não o retorno da fantasia primitivista, mas uma reformulação da categoria do “outro” – que agora tem começado a falar sobre si. Dessa forma, se inicia uma investigação antropológica onde a disciplina começa a questionar sua própria autoridade “e insinuar que a prática etnográfica tinha algo a ver com a ficção” (KLINGER, 2016, p. 79). A interpretação das culturas, de Clifford Geertz (2008), é o ponto de partida para o desdobramento desse questionamento. Trazer Geertz e a sua antropologia interpretativa para este debate faz-se necessário, já que, sendo eu um antropólogo-performer, esse meta-discurso antropológico fortalece meus argumentos como artista pesquisador no LCICC-UFF. Tomando o meu próprio diário de campo como um objeto criador de ficcionalidades, faço do mesmo um espaço de autorreflexão, sendo ele uma “carta destinada ao remetente”, como observa Leonor Arfuch (2010) em O espaço biográfico. Nesse sentido, minha escritura etnográfica ganha ares biográficos não só pela minha inserção no grupo em que pesquiso – estando num liame entre antropólogo/performer –, mas também pela minha própria trajetória acadêmica, que é parte importante da minha existência no mundo, onde já não é mais possível dissociar de mim a relação com o LCICC-UFF. Pensamos o canibalismo dentro do fazer teatral contemporâneo com a leitura de Esquizoanálise e antropofagia, de Suely Rolnik (2000). Assim podemos pensar a cena artística a partir do viés da esquizoanálise e do movimento antropofágico da intertextualidade do texto dramatúrgico com os corpos dos residentes em cena. Dentro dessa intertextualidade, coloca-se a relação de “engolir” o outro, “de forma que partículas do universo desse outro se misturem às que já povoam a subjetividade do antropófago” (ROLNIK, 2000, p. 453). Podemos evidenciar isso com algumas 125
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cenas de Amor não recomendado (2019), onde a dramaturgia e atores canibalizam o outro – esse outro sendo colocado geralmente como figuras importantes da história do teatro, dentro do processo de montagem e encenação. A partir de Rolnik, localiza-se o lugar do LCICC-UFF dentro da desterritorialidade da identidade e da representação postuladas até então pelo teatro dramático. Alargando o conceito de “identidade” e trazendo-o para o fazer artístico, penso nele como o reconhecimento de um conjunto de caracteres particulares que caracterizam um movimento, obra e/ou grupo dentro de um panorama histórico mundial das artes. Há, no fazer do LCICC-UFF, uma busca por um “nomadismo do desejo” (ROLNIK, 2000, p. 455), como afirma Rolnik, que é capaz de aglutinar potências híbridas, ou seja, capaz de aglutinar potências criadoras advindas das mais diversas linguagens artísticas, memórias, corpos etc. O trabalho do Laboratório de Criação e Investigação da Cena Contemporânea parte dessa premissa desejante de se desviar das imagens prêt-à-porter do teatro dramático, priorizando um teatro onde corpos e identidades possam ser deslocados de seus territórios e biografias já dados, fazendo-os acessar uma rasgadura que busque uma via de acesso ao real dentro da cena – algo que é buscado nos trainings comandados por Martha Ribeiro e refletem-se nas montagens do Laboratório da Cena.
BIBLIOGRAFIA ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010 CORNAGO, Óscar. “Atuar de verdade. A confissão como estratégia cênica”. In: Urdimento – Revista de Estudos em Artes Cênicas, n. 13, v. 2. Florianópolis: UDESC, 2009.
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----. “Biodrama: sobre el teatro de la vida y la vida del teatro”. In: Latin America Theatre Review, n. 1, v. 39. EUA: Kansas, 2005. FISCHER-LICHTE, E.; BORJA, M. “Realidade e ficção no teatro contemporâneo”. In: Sala Preta, n. 2, v. 13. São Paulo: USP, 2013. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008. ISQUIERDO, Ivan. “Conferência de abertura”. In: Tempos de memória: vestígios, ressonâncias e mutações. Publicação originada do VII Congresso da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas. Rio Grande do Sul: 2012. KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. KURAPEL, Alberto. “A memória no teatro-performance: o ator-performer signo mnemônico da fratura espetacular". In: Tempos de memória: vestígios, ressonâncias e mutações. Publicação originada do VII Congresso da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas. Rio Grande do Sul: 2012. LAGROU, Els. “A arte do outro no surrealismo e hoje”. In: Horizonte Antropológico, n. 29, v. 14. Porto Alegre, 2008. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832008000100009&lng=en&nr m=iso>. Acesso em 09/08/2019. ROLNIK, Suely. “Esquizoanálise e antropofagia”. In: ALLIEZ, Éric (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. Coordenação de tradução de Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Editora 34, 2000.
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ISSN 2596-2485