ISSN 2596-2485
Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral v.3, 2015
Escola de Comunicação Universidade Federal do Rio de Janeiro
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Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral v.3, 2015
Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Filosofia e Ciências Humanas Escola de Comunicação
Rio de Janeiro 2015
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v.3, 2015 Editora Carmem Gadelha Revisão e editoração Felipe Valentim Produção editorial Davi Palmeira [Bolsista Especial I – Edital Pró-Cultura e Esporte] Capa e diagramação Marina Menezes [Laboratório Design Editorial - ECO/UFRJ] Orientação: Andréia Resende Supervisão geral de produção Érika Neves Corpo editorial (Professores da Direção Teatral) Adriana Schneider, Alessandra Vannucci, Carmem Gadelha, Celina Sodré, Eleonora Fabião, Gabriela Lírio, Jacyan Castilho, José Henrique Barbosa Moreira, Lívia Flores
Distribuição gratuita
C568 CICLORAMA - Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral. v.3, 2015 - . -- Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, 2013 v. : il. Anual. Editora: Carmem Gadelha. ISSN 2596-2485 1. Artes cênicas - Periódicos. 2. Teatro - Produção e direção Periódicos. I. Gadelha, Carmem. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Comunicação. CDD: 792
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07 Editorial — ABERTURAS 13
Torcer e espectar: simetrias ontológicas e corruptelas normativas Bruno Pinheiro Ribeiro
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De carne e avais: poder, prazer e presenças nas ruas do Rio de Janeiro Anna Duran
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(Auto)biografia fora da caixa Dieymes Pechincha
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Tempo trágico: arte e política do não-pertencimento Maria Eduarda Magalhães
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Palhaços em zonas de conflito Daniel Cintra
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Corte e montagem como elementos deflagradores de um processo de ensaio Ian Calvet Marynower
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Primeiras cenas expandidas: experimentações mágicas na obra de Loïe Fuller Isabella Mourão Raposo
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O canto transgressor; uma reinvenção da Carmen de Bizet Antonio Ventura
65
Casa vazia: uma experiência cênica (auto)biográfica em construção Gabriel Morais
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Exercício de direção cênica: Já sinta a Jacinta Mariah Miguel Valeiras
— PASSAGENS 81
O corpo travestido: uma análise de I am my own wife Felipe Valentim
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Insurgentes incidentais Morgan Cooper entrevista Ruanne Abou-Rahme. Tradução e edição de Maria Eduarda Magalhães e Anna Duran
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Editorial
Ciclorama chega ao terceiro número. Desta vez, ultrapassamos as dimensões de anais do Seminário da Direção Teatral, abrindo uma segunda seção, disponível para artigos de pós-graduandos da UFRJ ou não. Um mestrando da Faculdade de Letras da UERJ e graduando em Direção Teatral abre este novo espaço. Segue-se uma entrevista com os artistas palestinos estudados em um dos artigos; aproveita-se a oportunidade para estabelecer, aqui, mais esta modalidade de diálogo com o tempo presente. Um exercício de encenação de uma aluna de DT é refeito com estudantes secundaristas. Daí resulta que, também pela primeira vez, o Colégio de Aplicação, já habituado a ser campo de explorações por estudantes de Direção Teatral, enseja um artigo para a revista, na primeira seção. O Ano III, Número 2 de Ciclorama vem confirmar uma vocação: a de abrir-se a diferenciadas propostas, tendo como eixo principal a divulgação da pesquisa em Iniciação Científica. O propósito é explorar vocações de artistas pesquisadores (e pesquisadores artistas), dando-lhes oportunidade de por em causa, inclusive, a escrita considerada acadêmica: seus limites e possibilidades. Criamos a revista ao mesmo tempo em que inaugurávamos o Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC). A relação entre uma coisa e outra amadurece, à medida que avança a pesquisa como produção de pensamento autônomo, por parte de quem se aventure nela. Cremos que o trabalho desenvolvido em Iniciação Científica possa ter contribuído para o ingresso de alguns graduados em Direção Teatral no PPGAC. Não haja, no entanto, equívoco: Ciclorama não 7
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pretende voltar-se para a pós-graduação; apenas quer oferecerse como possibilidade de trocas e explorações pelos que assim desejarem. Este número se debruça sobre a investigação das imagens, linguagens e simbologias que integram o espetáculo da arte e da vida, em seu vai-e-vem. Os textos se expandem pelos espaços do filme, da cena teatral, da performance; vão para a rua e encontram a multidão. Andanças do contemporâneo, de Jacinta à política do não-pertencimento. As pesquisas são interligadas pela vida que se faz cena e pela cena que se faz vida. No jogo aqui exposto, investiga-se a ressignificação dos espaços, o ato político inscrito e implicado (às vezes, explicitado) na estética. O potencial das ruas é múltiplo; a cena é feita de linguagens que contrariam os dispositivos clássicos de produção e leitura de imagens. A experiência é vivida como arena onde se confundem trajetórias e (auto)biografias: arte feita de aqui-e-agora e de tensão entre o espectar e o participar. Também disso se nutre o convite à leitura, pois o que se oferece é pura passagem. Ensaia-se o dizer, no dizer. Os tempos que vivemos têm compleição trágica. Nossa cena produz alegria e dor, numa deriva que não encontra ancoradouro. Migramos. A cena contemporânea reafirma seu êxodo permanente, exigindo um olhar de novas abordagens críticas na arte e na política do não-pertencimento. Nas zonas de conflito, a imagem do palhaço é de choro e esperança. A violência é muita; o espetáculo, rude. Mas Arlequim recolhe os trapos encontrados no caminho e faz sua veste colorida. Nas costuras, diálogos entre cinema e teatro; repertório operístico e sua releitura na cena atual; teatralidade e performatividade. O trajeto de Arlequim levanta reflexões sobre o corte e a montagem dentro de um processo teatral; as possibilidades de encenação operística exploradas na contemporaneidade; o hibri8
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dismo teatro/cinema; as narrativas produzidas dentro de uma casa vazia, onde se confundem narradores e espectadores. Ciclorama se divide em duas cenas: na primeira, “Aberturas”, reúnem-se as iniciações; na segunda, “Passagens”, os rituais são incursões um pouco mais longas através dos temas visitados. Nas duas, Arlequim aciona e perfaz as mutações.
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[...] que o nous, o pensamento ou a mente, seja comparado a um tinteiro em que o filósofo molha a própria pena. A tinta, a gota de trevas com a qual o pensamento escreve, é o próprio pensamento. Giorgio Agamben
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— ABERTURAS
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Torcer e espectar: simetrias ontológicas e corruptelas normativas Bruno Pinheiro Ribeiro*
As recentes transformações da arquitetura do Maracanã – e a subsequente remodelação da forma como os corpos ali presentes usufruem e interagem com o espaço – provocam associações que ultrapassam os limites do próprio estádio. Uma dessas alusões aponta para o teatro, indicando que o projeto de estádio atual propõe uma relação entre os que fazem e os que fruem; relação mais próxima de uma plateia do que de uma torcida. O objetivo da presente pesquisa é, portanto, apontar as simetrias e dissonâncias históricas entre os espaços da cena e do jogo e das condições espectatoriais aí forjadas. Palavras-chave: espaço – condição espectatorial – capitalismo
*Orientação: Lívia Flores
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Torcer e espectar: simetrias ontológicas e corruptelas normativas
O estádio de futebol Mário Filho, popularmente conhecido como Maracanã, sofreu alterações significativas em sua arquitetura interna ao longo das últimas décadas, culminando com o formato atual, que engrossa o coro das chamadas “novas arenas”, projetos com o suposto selo de qualidade FIFA. Essas transformações, que atendem a expectativas de um modelo de cidade específico, encontram dissidências de toda sorte e associações a situações que extrapolam as linhas do próprio estádio. Reiterados são os momentos em que torcedores resignados, comentaristas esportivos, bêbados românticos e toda sorte de apaixonados pelo jogo de bola, comentam como o Maracanã não parece mais ser o espaço de expressão popular mais importante e vigoroso da cidade, mas sim uma plateia de espectadores absolutamente passiva e inerte diante da partida em curso, como se os torcedores estivessem numa sala de espetáculos, onde os modos de ordenamento prevêem um comportamento domesticado. Essa comparação, que contém a jocosidade típica dos amantes e cronistas futebolísticos – mesmo realizada de forma estreita e sem a profundidade histórica necessária –, convoca uma reflexão sobre como estão projetados o imaginário da atividade teatral nos tempos atuais e, mais especificamente, a maneira como se enxerga a relação entre os que fazem e os que fruem a cena. Os critérios de frieza, apatia e indiferença são aqui denotados qualitativamente como ruins; mais do que isso: como não constituintes da função cabida ao torcedor. E tais critérios são associados diretamente à função espectador, como se assim lhe fossem naturais. Os projetos arquitetônicos são definidores de modos de presença; através deles são destiladas intenções políticas que são absorvidas, não sem conflito e tensão pelos corpos que ocupam esses espaços. A tradição das edificações e reuniões tea14
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trais aponta para a circularidade como formato predominante. O círculo em sua ontologia prevê o encontro; sua capacidade gregária acaba por forjar uma ideia de comunidade. Diferentemente do cinema, no teatro e no estádio, o prazer solitário não é bem vindo; como diz Denis Guenoun (2003), ele sequer é possível. Os sujeitos que participam dessas atividades como fruidores só completam seu sentido se diante desse coletivo houver uma capacidade de reconhecimento no outro. As relações não são estabelecidas exclusivamente com o objeto representado (a cena ou o jogo); elas próprias são parte da representação, ou seja, torcida e espectadores são elementos constitutivos e fundamentais de suas totalidades. Roland Barthes (1984) afirma em seu texto, Poderes da tragédia grega, que: [...] contrariamente ao público do teatro burguês, inerte, reservado, só vivendo o espetáculo pelo olhar, aliás bastante crítico ou adormecido, os espectadores esportivos são fisicamente capazes de assumir os gestos exteriores do engajamento: o júbilo, o descontentamento, a espera, a surpresa[...] (p.28)
Uma das expressões mais conhecidas dos certames da bola é a de que a torcida é o décimo segundo jogador. Esta metáfora dá a dimensão do potencial de interferência que os torcedores são capazes de exercer. O jogo só se completa com a carga festiva realizada diretamente pelos presentes, que ocupam os espaços além das quatro linhas. O grito que ressoa na multidão, a chuva de papéis picados para recepcionar o time, as paródias musicais entoadas a plenos pulmões, os incentivos absolutamente desmedidos à beira da relva, o colorido das bandeiras cortando o vento, os sinalizadores e as bombas que desafiam as normas de segurança: elementos fundamentais de contágio e motivação aos quais os jogadores estão submetidos. E essa afetação é condicio15
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nante direta nas performances individuais e coletivas do time. Pode-se dizer, sem exagero, que torcida ganha jogo. Por essa qualidade de interação com a atividade, é possível forjar a ideia de que os torcedores, aqueles que compõem o corpo coletivo do décimo segundo jogador, guardam semelhanças com o coro da tragédia grega. Na coincidente relação de nascimento entre o teatro e a democracia, os gregos discutiam muitas de suas questões políticas através das narrativas teatrais. E dentro destas, a figura do coro cumpria papel primordial: Na antropologia diferenciada da tragédia grega, nesse universo de três níveis, em que o povo, os reis e os deuses dialogam, cada um falando de seu lugar singular, o poder humano por excelência, a linguagem, cabe ao povo-coro. [...] o coro é a palavra mestra que explica, que desfaz a ambiguidade das aparências [...] Pode-se dizer que é o coro que dá ao espetáculo a sua dimensão trágica, pois é ele, e só ele, que é toda palavra humana, é o comentário por excelência, é seu verbo que faz do evento algo mais do que um gesto bruto[...] (BARTHES, 1984, p.37)
Como se vê, o coro é elemento de constituição da tragédia, faz parte de sua ontologia. É através dele que os cidadãos eram representados na cena, refletindo seus desejos e indagações; era como se a evolução coreuta fosse uma emulação dos próprios espectadores, uma parte do todo, uma espécie de metonímia. No caso do futebol, não há uma distinção, um destaque; não há torcedores representados no espaço das quatro linhas de jogo, como acontece com o coro que representa os espectadores na tragédia. Os torcedores ocupam espaços predeterminados apartados do campo de jogo e, em nenhuma hipótese, a não ser em uma ação de transgressão, são autorizados a ocupar com seus corpos o espaço delimitado para a realiza16
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ção da partida. Entretanto, os torcedores guardam relações diretas com a efetivação do jogo; o futebol se faz por quem joga e por quem torce. Portanto, é no sentido de interferência do curso de afetação das representações e suas respectivas projeções que as ideias de torcida de futebol e coro se tocam. Apesar da distância histórica e da evidente diferença ontológica das atividades e seus respectivos fins políticos e morais, a associação entre ambas nos dá pistas de como as atividades públicas se organizam e como também a própria sociedade se forma através delas. Roland Barthes (idem) fala do tempo trágico, como sendo aquele em que há uma suspensão das atividades cotidianas em favor das atividades de festa, onde são representadas as tragédias gregas e onde a noção cívica é amplamente experimentada. Por mais que o esporte tenha um caráter de passatempo, ele é ponto de encontro da multidão, e as alterações sistemáticas que lhe têm sido impostas derivam de um projeto social específico. O devir da cidade grega era projetado pelos mitos divinos e sua relação com a polis: seus conflitos e suas tensões especulavam a respeito do futuro dos cidadãos. Havia uma possibilidade de interferência e discussão sobre os rumos da coletividade. O escopo atual propõe o inverso. A remodelação do Maracanã pulsa como símbolo do projeto de cidade contemporânea: O que define os dispositivos com os quais temos que lidar na atual fase do capitalismo é que estes não agem mais tanto pela produção de um sujeito quanto por meio de processos que podemos chamar de dessubjetivação.” (AGAMBEN, 2009, p.47).
Há uma fusão entre espaço público e privado, gerando um simulacro de ambos: os corpos ali presentes agora se situam entre telões, selfies, cadeiras exclusivas, camarotes cortando o espaço comum. O Maracanã atual, em sua reforma, anulou a ca17
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pacidade interativa que tinha. A limitação das arquibancadas, a supressão da geral, a proibição da entrada de instrumentos musicais, a proibição de fogos, a constante criminalização das torcidas organizadas e, até mesmo, ações de cunho coercitivo moral e político como a proibição de andar sem camisa e de fazer menção a atividades políticas na Copa do Mundo somam-se à escalada abusiva dos preços dos ingressos que expulsaram os torcedores populares, a quem o estádio deve sua história e sua dignidade. Ou seja, o uso desses dispositivos que propõem a assepsia, a apatia e a não-participação efetiva dos torcedores é condicionante decisivo para os rumos do jogo. Nessa inversão política, salta aos olhos a necessidade que este projeto de cidade tem de se representar. As câmeras que capturam as imagens da Copa e dos grandes eventos, além de seus frequentadores atuais, não querem camisas pirateadas, devaneios apaixonados, bandeiras a tapar a visão, fogos estalando seus ouvidos, abraços entre suores, lágrimas e odores, ações desmedidas e destemperadas; não querem os pobres, os favelados; não querem a mistura de nada. A cidade, através de sua imagem de representação, vai tristemente apagando aqueles que em maioria a formam e que no futebol sempre lhe foram régua e compasso.
BIBLIOGRAFIA AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. BARTHES, Roland. Escritos sobre teatro. São Paulo: Martins Fontes, 1984. DELEUZE, Gilles. “Post-Scriptum sobre as sociedades de controle”. In: Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226. GUÉNOUN, Denis. A exibição das palavras: uma ideia (política) do teatro. Rio de Janeiro: Folhetim Ensaios, Teatro do Pequeno Gesto, 2003.
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De carne e avais: poder, prazer e presenças nas ruas do Rio de Janeiro Anna Duran*
Este artigo propõe a apresentação da pesquisa alimentada pelas experiências de multidão nas ruas, cujos procedimentos iniciais incluem ida a campo, coleta de materiais, além da produção de um relato que transita na fronteira entre crônica, ensaio e escrita científica, através do aporte autoetnográfico. Aborda-se o “fantasiar-se” como propositor de relações performativas que põem em jogo a relação entre normatividade, alteridade, travestimento e o potencial múltiplo das ruas. Palavras-chave: corpo – performatividade – rua
*Orientação: Adriana Schneider. Bolsa PIBIC/UFRJ.
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De carne e avais: poder, prazer e presenças nas ruas do Rio de Janeiro
De trás para frente: eu no rebanho de gente entulhada em frente às catracas travadas, a massa em dança mínima; eu na Praça XV, mais um zumbi urbano parasitário do próprio corpo; saindo do ônibus sem e com ar-condicionado (a muito útil gaiola de rodas da metrópole), eu e Patativa do Assaré no chão do Largo do Paço. Poetas niversitário Poetas de Cademia, De rico vocabularo, Cheio de mitologia.1
Eu neste escrito, neste abismo entre a rua e a Universidade. A pesquisa que origina este artigo tem por objeto de estudo o corpo urbano carioca – essa coalizão entre a arquitetura, o pavimento, a gente, o bicho, a máquina, o imaterial, o inominável e o tempo da cidade – como indica Eleonora Fabião (2010): Um “corpo” pode ser visível ou invisível, animado ou inanimado, cadeira ou gente, luz, ideia, texto ou voz. Um corpo é sempre uma multidão de relações e, como tal, está permanentemente deflagrando relações. Corpo em relação com corpo forma corpo. O entre-lugar da presença é no corpo que não está em nós. (p.323)
Também cabe, ao que aqui se desenvolve, compreender relações desse corpo com sua biopotência enquanto o “átomo primordial” contínuo para infinitos universos de experiência concorrentes e coexistentes, entre os quais interessa particu1
As citações sem referências bibliográficas foram retiradas das poesias dispostas no chão da Praça XV durante a exposição “Maria de Todos Nós”. Museu do Paço Imperial, 02 de julho a 13 de setembro/2014.
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larmente aqueles que a normatividade mais dificilmente encompassa. Imprensado entre um ano de Copa e eleições passadas e outro de Olimpíadas vindouras, o Rio 2015 é um projeto especulativo na contagem regressiva para 2016. A calmaria ordeira disfarçada de caos cotidiano é incapaz de enterrar o trauma que junho de 2013 impôs à cidade, mesmo que o alimento das inquietações silenciosas de agora não pareça mais do que fantasmagoria. Como será pois se ardiam fogueiras Com olhos de areia quem viu Praias, paixões fevereiras Não dizem o que junhos de fumaça e frio (Caetano Veloso)
Este estudo é movido por esse aparente desencarne da potência dos corpos múltiplos que se encontraram nas ruas, pelo desencarne concreto de inúmeros corpos marginais que foram perdidos nas ruas, por uma experiência de um comum outro que há tão pouco era palpável e agora parece evanescer no comum habitual. Como função estruturadora desses afetos, desenvolveu-se um programa simples de ações metodológicas ligadas ao evento do Carnaval de rua do Rio de Janeiro, baseado na ida a campo, coleta de materiais audiovisuais e de indumentária e subsequente produção de um relato escrito das experiências acumuladas no período. Compreendendo a natureza excepcional de uma proposição de pesquisa científica e artística que demanda elaboração teórica e prática, a abordagem desse programa de ações se pautou em uma perspectiva autoetnográfica, resumida por Daniela Versiani (2002), ao analisar o interesse de teóricos no que chama de ‘etnografias pós-modernas’. 21
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[...] experiências de escrita que têm por pressupostos a alegoria, o dialogismo e a polifonia, e que, ao incluir no texto etnográfico a voz do etnografado, desestabilizam a autoridade (no duplo sentido de autoridade e autoria) do etnógrafo em sua tentativa de representar o Outro, bem como um dos tradicionais pressupostos metodológicos da pesquisa de campo: a possibilidade de um real distanciamento do antropólogo em sua condição de sujeito produtor de conhecimento em relação ao seu objeto, isto é, o grupo estudado (p.67).
Como uma manifestação pública que desautoriza, reorganiza o poder de fala e produz dissonância, o Carnaval e a metodologia escolhida encontram nas premissas conceituais sobrescritas afinidades fundamentais, promotoras de uma escrita transgenérica, fluindo entre a poesia e a crônica e a dissertação. O texto originado da experiência no Carnaval é, por si só, um corpo mutante e em expansão, protético, montado e, acima de tudo, vivo, como se armado das tecnologias sexuais de que fala Beatriz Preciado (2011). Acrescida progressivamente de referências teóricas e ficcionais, em João Antônio, João do Rio e Rubem Fonseca encontrei referenciais de narrativas da marginalidade noturna e arquetípica, emergências do protagonismo autoimpositivo da festa com sua alegria, sua violência e seu grotesco, e o mapeamento descritivo de um Rio de Janeiro que, em parte, é também o de agora. Dentro da própria metodologia, a deliberação por esse período específico se fundamentou na condição excepcional de relação dos brincantes consigo mesmos, entre si, com o tempo e o espaço. Inúmeros antropólogos se debruçaram sobre a análise de sistemas simbólicos estabelecidos dentro das sociedades, seguindo o legado dos estudos de Arnold Van Gennep, que seccionam o rito em três partes, sejam elas preliminar, liminar e pós-liminar. Victor Turner (1974) desenvol22
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ve essa linha, compreendendo que a fase liminar ou liminaridade seria uma ocorrência com negociações políticas, sociais e afetivas distintas daquelas que compõem o funcionamento habitual da sociedade, da ordem da antiestrutura, caracterizada pela relação de “comunidade, ou mesmo comunhão, de indivíduos iguais que se submetem em conjunto à autoridade geral dos anciãos rituais.” (TURNER, 1974, p. 119). Ainda sobre ela, o autor afirma ser, junto à marginalidade e outras formas de precariedade, condição criadora de “mitos, símbolos rituais, sistemas filosóficos e obras de arte” (idem, p. 156). A essa experiência do comum e da equidade entre participantes decorrente da liminaridade, Turner denomina communitas, caracterizada pela transgressão das normas estruturais e um empoderamento incomum. No caso ocidental, em especial, a estrutura é uma configuração social que se sustém firmemente na identidade e no indivíduo, enquanto a antiestrutura explora outros suportes de relação com o mundo, como o arquétipo e a subjetividade. Para mim, os indivíduos são o resultado de uma produção de massa. O indivíduo é serializado, registrado, modelado. Freud foi o primeiro a mostrar até que ponto é precária essa noção da totalidade de um ego. A subjetividade não é passível de totalização ou de centralização no indivíduo. Uma coisa é a individuação do corpo. Outra é a multiplicidade dos agenciamentos da subjetivação: a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social. (GUATTARI & ROLNIK, 1996, p.31)
Ocorre, portanto, que a ocasião em que coletivamente se acorda a possibilidade de performar outras presenças é uma circunstância de potenciais criadores inestimáveis. A fantasia, no Carnaval, assume uma função fundamental nesse processo. Fantasiar, enquanto termo, guarda a potência do revesti23
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mento de prazer, do investimento de afeto na alteridade que, imageticamente, complementa sem jamais completar o corpo desejoso. Falo, nesta definição, tanto do travestimento – festivo ou cotidiano – quanto da produção imaginária de imagens e acontecimentos. O que diferencia o travestimento festivo daquele que passa despercebido e é exercido por todas as pessoas durante a estrutura ou não-liminaridade é a consciência da própria ação, ritualizando-a, e a suposição de que aquilo que se está performando é uma figura inteiramente Outra. Porém, conforme afirma Roberto da Matta (1997): […] fantasias carnavalescas criam um campo social de encontro, de mediação e de polissemia social, pois, não obstantes as diferenças e incompatibilidades desses papéis representados graficamente pelas vestes, todos estão aqui para “brincar” (p. 63).
“A alegria verdadeira (...) se parece com o início de uma perdição irrecuperável” (Clarice Lispector). O ato de fantasiar-se suscita o prazer coletivo de performar a Si e performar o Outro através do próprio corpo, numa potente provocação sobre a inteireza dessa ideia de indivíduo. Entretanto, dentro da estrutura social, as performatividades não-normativas ou desprivilegiadas, sejam elas de gênero, sexualidade, classe, capacidade, raça e outras tantas, são alvo de policiamento e violência. A equidade na experiência da communitas, o anonimato do mascaramento-fantasia e a desidentificação que a festa proporciona resguardam o brincante que adota aspectos atribuídos a essas categorias. Isso não quer dizer que se trate do reduto da paz absoluta. Pelo contrário, o Carnaval de rua não tem dono, não importa quantos banners prendam em postes ou oficiais fardados se ponha debaixo do sol quente. As regras estão suspensas; instauram-se novas éticas refeitas a cada encontro, em cada local e com cada pessoa, deixan24
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do os brincantes a uma deriva potente e perigosa, como toda zona de criação. “Eu estou depois das tempestades.” (Guimarães Rosa)
BIBLIOGRAFIA DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. FABIÃO, Eleonora. “Corpo cênico, estado cênico”. In: Contrapontos: Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação, v. 10, no 3. Itajaí: Univali, 2010. GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996. PRECIADO, Beatriz. “Multidões queer: notas para uma política dos ‘anormais’”. Revista Estudos Femininos, 2011: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2011000100002&lng=en&nrm=iso Acessado em 05/08/2015. TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 1974. Disponível em: https:// repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/1416 Acessado em 05/08/2015. VERSIANI, Daniela Beccacia. “Autoetnografias: uma alternativa conceitual”. In: Letras de Hoje, v. 37, no 4. Porto Alegre: 2002.
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(Auto)biografia fora da caixa Dieymes Pechincha*
O artigo investiga a rua como espaço de manifestação, vivência e acontecimento político, a partir de obras (auto)biográficas em espaços urbanos e não-convencionais. Serão analisadas as performances Ações cariocas – 7 ações para o Rio de Janeiro, de Eleonora Fabião1, e a concepção do Festival Home Theatre, coordenado por Marcos Vinicius Faustini2. Fabião objetiva provocar encontros e reflexões em meio à dinâmica do Largo da Carioca. Faustini elabora cenas para o interior de casas e edifícios, tendo como ponto de partida as histórias dos moradores e seus familiares. Palavras-chave: autobiografia – performance – espaço urbano
*Orientação: Gabriela Lírio. Bolsa FAPERJ 1
Eleonora Fabião – performer e teórica da performance. Professora Adjunta do Curso de Direção Teatral da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde leciona desde 1997.
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Marcus Vinícius Faustini – diretor teatral, documentarista e escritor. É autor do Guia afetivo da Periferia (2009) e criador da metodologia da Agência de Redes para Juventude.
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(Auto)biografia fora da caixa
Performers são, antes de tudo, complicadores culturais. Eleonora Fabião
O que você faria ao ser atravessado pela provocante frase “Converso sobre qualquer assunto”? Eis que em meio ao enorme fluxo e frenética pulsação da cidade do Rio de Janeiro, a performer Eleonora Fabião decidiu retirar duas cadeiras de sua casa, posicioná-las no Largo da Carioca, erguer seu cartaz e provocar a experiência. Essa performance integra um grupo de oito (em que apenas sete foram realizadas), que recebem o título de Ações cariocas. Cada ação foi esquematizada em forma de “programas performativos”, conceito defendido pela performer. Para Fabião (2008, p. 237), “O performer não improvisa uma ideia: ele cria um programa e programase para realizá-lo”. A sufocante sensação de medo, provocada pelo alto índice de violência na cidade do Rio de Janeiro, juntamente com o protagonismo dos grandes veículos de comunicação que mercantilizam e banalizam a miséria e a violência de forma a torná-las produto são, sem dúvida, elementos da criação de Fabião. Em seu artigo Performance de rua: ações cariocas - 7 ações para o Rio de Janeiro, a performer discorre sobre a necessidade de ressignificar o seu olhar sobre a cidade: Ações cariocas é um projeto de desintoxicação: expurgar as toxinas do medo via contato, diálogo, fricção. Uma re-apropriação do corpo e da cidade, um através do outro. Ou melhor, uma apropriação do corpo e da cidade como corpo. Ambos corpos em processo de formação mútua já que a cidade nos faz e nós fazemos a cidade. “Corpos” exatamente porque são campos conectivos, porque são entidades relacionais e interdependentes. (FABIÃO, 2010, p. 17)
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Os programas performativos preparados para Ações cariocas têm como objetivo possibilitar múltiplos olhares para o espaço (histórico e/ou ficcional) de forma a provocar, dar, receber e estabelecer relações. Utilizando-se da receptividade enquanto material de trabalho, a performer consegue debruçar-se sobre as relações que se tecem ao longo dos dias que passa sentada em uma cadeira falando e ouvindo, captando momentos e presenciando cada situação. Quando ergui o cartaz pela primeira vez, de fato, não sabia o que poderia acontecer. Uma pessoa sentou-se quase imediatamente. Queria contar suas estórias, ouvir minhas estórias. Dar sua opinião, receber minha opinião. Falar e escutar. Queria saber porque eu estava ali, o que estava fazendo ali. Alguns duvidando se eu estaria realmente aberta para conversar sobre qualquer assunto. Todos interessados em viver aquela experiência inusitada. Várias pessoas ficaram comigo por mais de uma hora. Com alguns conheci Rios de Janeiros antes inimagináveis. (FABIÃO, idem, p.15)
O que há de mais potente nesse processo é a constante necessidade do estado de presença e receptividade, com o objetivo de produzir encontros em meio ao fluxo incessante de uma cidade que corre. A potência está na ação do encontro e nas vivências capazes de ressignificar a função do espaço da cidade e produzir suspensões no tempo (real/ficcional) daqueles que se permitem interromper o próprio fluxo. Festival Home Theatre: “cena presente”
A pesquisa sobre o Festival Home Theatre inaugura a segunda fase deste trabalho e visa a expandir a análise no que tange à relação entre (auto)biografia, metodologia de trabalho e espaços não convencionais. O Festival, idealizado por Fausti29
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ni, em 2013, desenvolve cenas no interior de casas e edifícios, tendo como ponto de partida histórias de moradores, familiares e amigos. Para tal, Faustini desenvolveu uma metodologia de trabalho que consistia em: entrevistas com mulheres de diferentes regiões da cidade do Rio de Janeiro contando suas memórias. Essas narrativas foram escolhidas para se tornarem cenas que foram encenadas na casa de cada uma delas. (...) Fragmentos da vida dessas três mulheres foram encenadas pela atriz Regiane Alves na forma de monólogos de 20 minutos. A história de Dona Emília foi apresentada na sala de Isabel Diegues, que teve sua vida narrada na casa de Sandra, que por sua vez teve sua história encenada na Pavuna (FAUSTINI, 2013).
Faustini ganhou o Prêmio Shell de Inovação pela criação do Festival Home Theatre. Esse processo marca o seu retorno ao teatro. Em entrevista concedida, em 19 de março de 2013, ao Globo Teatro, Faustini afirma: Eu guardava o desejo de voltar a fazer teatro, mas não montando um espetáculo. Minha ideia era pensar em como o teatro poderia mobilizar a cidade. Historicamente, o teatro no Brasil pensa a cidade tematicamente na dramaturgia. Então eu queria inventar algo em que a questão da cidade não fosse apenas um assunto representado, mas uma ação do próprio teatro (FAUSTINI, 2013).
Entre os dias 20 e 31 de maio de 2015, ocorreu a terceira edição do Home Theatre, contando com trinta e seis cenas, quatro mostras e cinquenta casas. Esta edição apresenta a Mostra processo – 4 prédios. Quatro prédios foram selecionados pela curadoria: Balança-mas-não-cai, no Centro; Edifício Mercúrio, na Pavuna; Edifício Anchieta, em Anchieta; e Edifício Mas30
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carenhas, em Copacabana. Cada prédio recebe cinco cenas a partir dos moradores selecionados. Para a Mostra, foram selecionados quatro diretores(as): Anderson Barnabé, Douglas Resende, Carolina Caju e Kel Cogliatti, além de vinte atores. A metodologia do processo de criação compreende, após a escolha dos espaços, a realização de entrevistas realizadas pelos atores com familiares e moradores selecionados. Ao longo dos encontros, os atores coletam informações, objetos, relatos para elaborar uma “cena presente”. Os atores e diretores selecionados têm como objetivo presentear o morador com uma cena a partir dos relatos, objetos e trocas gerados durante o processo de entrevista. As cenas não necessitam ser fiéis aos relatos, o objetivo principal reside na construção de estratégias que permitam o jogo entre ator e espectadores. Em O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea, Leonor Arfuch afirma: [...] não é tanto o “conteúdo” do relato por si mesmo – a coleção de acontecimentos, momentos, atitudes –, mas precisamente as estratégias – ficcionais – de autorrepresentação o que importa. Não tanto a “verdade” do ocorrido, mas sua construção narrativa, os modos de (se) nomear no relato, o vai vém [sic] da vivência ou da lembrança, o ponto do olhar, o que se deixa na sombra; em última instância, que história (qual delas) alguém conta de si mesmo ou de outro eu (2010, p. 73).
Observo em Faustini e Fabião a necessidade de ressignificar os espaços em que incidem, instaurando novas narrativas. As duas obras analisadas propõem rupturas entre a função cotidiana do espaço e a necessidade de reinventar espaços ficcionais na cidade. Ambos os artistas constroem metodologias de trabalho que permitem apontar inquietações nos espaços urbanos onde habitam e transitam, seja ocupando um largo, seja 31
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evidenciando a história de um prédio a partir de seus moradores. Os artistas atritam suas experimentações com a historicidade e a ficcionalização do espaço urbano, a partir de relatos e vivências (de moradores e transeuntes) que são manifestações políticas, pois evidenciam a vontade dos realizadores em reformular seus olhares sobre o espaço em que vivem. A questão do tipo de cidade que desejamos é inseparável da questão do tipo de pessoa que desejamos nos tornar. A liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e as nossas cidades dessa maneira é, sustento, um dos mais preciosos de todos os direitos humanos (HARVEY, 2013, p. 28).
BIBLIOGRAFIA ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. FABIÃO, Eleonora. “Performance e teatro: poética e política da cena contemporânea”. In: Revista Sala Preta. São Paulo: v. 8, 2008. ----. “Performance de rua: ‘Ações cariocas’ - 7 ações para o Rio de Janeiro”. In: Cavalo Louco, revista de teatro. Porto Alegre: v. 5, no 8, 2010. FAUSTINI, Marcos Vinicius. Conheça Isabel, Maria Emília e Sandra – as primeiras personagens do Festival. Disponível em: http://www.festivalhometheatre.com.br/?p=783. Acesso em: 20/07/2015. ----. Home Theatre: Melhor cena do Festival será premiada com R$ 5 mil. Disponível em: http://redeglobo. globo.com/globoteatro/reportagens/noticia/2013/09/home-theatre-melhor-cena-do-festival-sera-premiada-com-r-5-mil.html. Acesso em: 20/07/2015. HARVEY, David. “A liberdade da cidade”. In: Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Editora Boitempo, 2013. MARICATO, Ermínia. “É a questão urbana, estúpido!”. In: Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Editora Boitempo, 2013.
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Tempo trágico: arte e política do não-pertencimento Maria Eduarda Magalhães*
Buscamos, na cena contemporânea, possíveis manifestações do trágico que apontem novas abordagens críticas: arte e política do não-pertencimento. Antonio Negri & Michael Hardt servem de base para pensar as relações sociais e políticas sob o capitalismo globalizado. Os aspectos citados ligam-se ao pensamento de Florencia Garramuño a respeito da “arte inespecífica”, um conceito ligado a obras de arte que recusam o pertencimento a uma categoria determinada. Aplicam-se os conceitos levantados à obra da dupla de palestinos Basel Abbas e Ruanne Abou-Rahme, The incidental insurgents. Palavras-chave: arte – inespecificidade – trágico
*Orientação: Carmem Gadelha. Bolsa PIBIC/UFRJ.
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I. Do objeto: o trágico
Na Grécia Arcaica, os saberes e o louvor aos deuses constituíam um mesmo momento de fala: o canto, os hinos. O que depois viemos a chamar de arte, filosofia, política, resultam de cisões e fronteirizações na própria linguagem. A Grécia Clássica vivia um novo contexto social, onde os limites entre o divino e o secular procuravam firmar-se mais claramente, mas sem que o temor da desmedida tivesse desaparecido. O conflito entre categorias próprias da polis (a filosofia, a democracia) e o divino imponderável dá lugar ao surgimento da tragédia: narrativa da tensão entre o pensamento racional e os mitos. É pensando em desfronteirizações atuais que vejo nosso tempo como trágico, embora essa recuperação do arcaico se dê sem que se configure o gênero tragédia. O pensamento de Antonio Negri e Michael Hardt serve-me de base para pensar as relações sociais e políticas às quais associo a tragicidade. A vida (em todos os seus aspectos) é regida pelo capital globalitário. Em consequência deste novo regime do capital, a precarização subjetiva, cujas raízes encontram-se (também) no mundo do trabalho: a flexibilização da jornada faz com que trabalhemos todo o tempo, em espaços descentralizados; a terceirização faz vulnerável o trabalhador, diminuindo suas perspectivas de segurança material. Porém, à medida em que a globalização avança, estes novos modos de trabalho e de vida criam novos modos de resistência, entrando em cena a ideia de “multidão” – este conjunto amórfico que decorre da precarização da vida – com também novos modos de combate. Na tragicidade contemporânea, não encontramos heróis versus deuses, mas os discursos dissonantes da multidão que se põem contra normas capitalistas imperiais. A multidão não se põe sob o domínio do Estado porque não quer tomá-lo. Não é unívoca, nem está ligada a uma ideia de proletariado ou operariado (modelo de luta das vanguardas modernas). 34
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A multidão é antes uma “carne viva e monstruosa”, que governa a si mesma, sem soberania. Ela busca uma nova forma de organização baseada na produção do “comum”: uma ação compartilhada. É rede de todos e para todos, diferente da rede entre Estados-nação. O comum é o que a multidão procura nas ruas de junho de 2013 e nos movimentos de ocupação. II. Do encontro com a linguagem: o inespecífico
Diante deste quadro – trágico – políticoeconômico, proponho observar manifestações artísticas que carregam características semelhantes em seu interior. Note-se que as formas expressivas gregas arcaicas não faziam distinções de gêneros e categorias; arte e filosofia tinham suporte numa mesma linha discursiva. A tragicidade alinha-se com tais atravessamentos, com a tensão entre eles. Encontro a reflexão de Florencia Garramuño sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Busco, então, reunir obras de arte distintas que configuram os termos “arte e linguagem inespecífica”. Isto significa apostar que tais obras têm em comum – e criam um comum – o aspecto da não-especificidade, seja numa mistura de dispositivos, um uso comum de linguagens, a superposição de gêneros, ou até a multidireção de conteúdos. A linguagem inespecífica passeia pelo específico para não pertencer a ele e, mesmo assim, configurar linguagem; do mesmo modo, a carne da multidão transita pelo corpo (e pela carne) para tornar-se monstro. O corpo(carne)-monstro ultrapassa a representação organizada e “inequívoca” do que consideramos corpo natural, funcional, sem implantes ou “desvios”. A carne é monstruosa porque desorganiza o corpo, é um pouco como o corpo sem órgãos de Artaud, retomado por Deleuze: Artaud apresenta esse “corpo sem órgãos” que Deus nos roubou para introduzir o corpo organizado sem o qual o juízo não se po-
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deria exercer. (...) O corpo sem órgãos é um corpo afetivo, intensivo, anarquista, que só comporta pólos, zonas, limiares e gradientes. Uma poderosa vitalidade não-orgânica o atravessa (DELEUZE, 1997, p.148).
A carne da multidão e a carne da arte inespecífica passam ambas pelo corpo organizado para des-organizar-se. Para designar a arte e a política do não-pertencimento, construímos fala, texto e discurso específicos e organizados – assim as tornamos discerníveis. O inespecífico, enquanto produção de práticas não-pertencentes, compartilhadas e compartilháveis, abre possibilidades de convívios entre diferentes, em que afetações se deslocam em feixes múltiplos. A multidão, não pertencendo, encontra, festiva, a arte inespecífica. The incidental insurgents (Os insurgentes incidentais1), trabalho apresentado na 31a Bienal de Arte de São Paulo, pela dupla de artistas palestinos Basel Abbas e Ruanne Abou-Rahme, consiste em partes e capítulos, divididos em três espaços. Os artistas partem da leitura de Os detetives selvagens, romance de Roberto Bolaño; da pesquisa sobre duas figuras apagadas da história oficial: Victor Serge, em sua juventude anarquista em Paris de 1910 e seus contemporâneos “bandidos” (bandos de rebeldes); e Abou Jildeh e sua gangue “bandida” no contexto da rebelião de 1930, na Palestina. Distantes no tempo e no espaço, os dois agitaram insurgências e foram marginalizados das narrativas revolucionárias e oficiais. Para Abbas e Abou-Rahme, era como se essas figuras estivessem constantemente à procura de uma linguagem política que desse conta da potência de radicalidade de seu tempo. Esta característica (re)aparece, de alguma forma, no trabalho dos artistas. Segundo Abou-Rahme, essas figuras 1
“Incidental” aqui deve ser entendido como secundário, de menor importância, para além da noção de casualidade.
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[...] são realmente interessantes na medida em que expõem a incompletude ou inadequação dos pensamentos políticos existentes. [...] Esses personagens estão em um determinado limite, onde eles são incapazes de continuar suas vidas como elas são e sentem a necessidade de superar as opções estabelecidas de uma forma ou de outra. E é assim que nos deparamos com a figura do bandido. (2014 – tradução minha e de Anna Duran).
The incidental insurgents traz em seu interior uma insatisfação com a incompletude da história, o desejo de partilha desta percepção e da prática a partir dela. Faz convergirem o conteúdo político e a prática, também políticos, inespecíficos, não-pertencentes. Identifico o trabalho de Abbas e Abou-Rahme como uma obra de “arte inespecífica”. Sua potência de comunicação cruza instalação e vídeo, articulados com um livro desmembrado pelas paredes (frases, passagens de livros, diversas “páginas” coladas). A convivência de diferentes suportes em uma mesma obra é o que primeiro chama a atenção de Garramuño, ao escrever sobre a inespecificidade na arte. É o que faz a autora perceber Fruto estranho, obra de Nuno Ramos que dá nome ao livro, enquanto recusa do pertencimento. E assim o é o trabalho do duo palestino. Recusa o pertencimento a uma única categoria artística, assim como nega pertencimento a uma história que esconde muito mais do que revela. Pretendo detalhar estes aspectos em outro artigo; para este detenho-me neste pequeno levantamento e atenho-me às relações políticas desenvolvidas acima. III. Inconclusão: retornando ao trágico
A potência trágica latente no trabalho de Abbas e Abou-Rahme se relaciona com os dois aspectos apontados acima, no que diz respeito ao inespecífico, assim como tem relação com 37
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o contexto político-econômico global atual, elucidado na primeira parte do texto. A emergência do trágico se dá nos momentos em que a obra de arte atravessa fronteiras dentro e fora dela mesma. Quando a discussão em torno da arte ultrapassa a obra e se desloca para territórios distintos, sem direções prévias. Quando um certo dionisismo é evocado, uma pulsão de rua, revolta e festa transborda o museu. Assumir a diferença como anterior e “natural” é pré-juizo. The incidental insurgents permite a produção de diferenças não “dadas” através do encontro de comuns. O trabalho parte de uma analogia: entre o não-pertencimento do Império e da Multidão (Negri & Hardt) e o conceito de arte inespecífica (Florencia Garramuño). O espraiamento de fronteiras liga-se ao trágico. Um paradoxo: é preciso um discurso específico para falar da inespecificidade. Combina-se uma força política que recusa pertencimento à dissolução de fronteiras constituinte da obra inespecífica. A tragicidade se insere aí, na tensão do encontro.
BIBLIOGRAFIA ABBAS, Basel; ABOU-RAHME, Ruanne. The incidental insurgents. The part about the bandits Pt.2. Disponível em: http://www.ibraaz.org/projects/52. BOLAÑO, Roberto. Os detetives selvagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997. ----. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, v. 3, 1997. GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos. Rio de Janeiro: Rocco, 2014. HARDT, Michel & NEGRI, Antonio. Império. São Paulo: Record, 2001. ----. Multidão. São Paulo: Record, 2005. JONES, Kevin. Potential of the moment – Basel Abbas e Ruanne Abou-Rahme. Disponível em: https://unfin shedperfect.files.wordpress.com/2013/06/92_features-baandrar_p104-111.pd SONTAG, Susan. “Questão em aberto: o caso de Victor Serge”. In: Ao mesmo tempo. São Paulo: Companhia das Letras: 2008.
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Palhaços em zonas de conflito Daniel Cintra*
Este artigo é resultado de pesquisa que investiga o impacto do cômico, em especial o trabalho de palhaços que atuam em áreas de constantes situações de risco, fora do picadeiro ou dos edifícios teatrais. Também analisa a atuação desses palhaços e como eles afetam o público desses lugares devastados por violência, desastres naturais, guerrilhas, guerras etc. É o palhaço utilizando seu poder de transgressão e subversão para quebrar hierarquias e desestruturar formas de poder que geram opressão. Palavras-chave: risco – comicidade – palhaço
*Orientação: Adriana Schneider. Bolsa PIBIC/UFRJ.
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Palhaços em zonas de conflito
Esta pesquisa tem por objetivo estudar a atuação de palhaços profissionais que se colocam em situações de risco, como o grupo Palhaços Sem Fronteira, fundado em Barcelona pelo palhaço Tortell Poltrona, em 1993; e os Palhaços em Rebeldia, criado em Chiapas por Iván Prado, em 2004. Pensando as zonas de conflito como espaços aparentemente inadequados para suscitar o riso, o conceito do que seriam esses locais tem-se expandido na pesquisa, incluindo, por exemplo, os hospitais, onde atuam diversos grupos de palhaços, como os Doutores da Alegria, criado em 1991 por Wellington Nogueira. Como parâmetros para a análise do trabalho destes artistas, elegi alguns pontos fundamentais para a discussão: o risco, o balanceamento de forças e a conscientização do poder do cômico. Segundo Vladímir Propp (1992, p. 46): “O riso é uma arma de destruição: ele destrói a falsa autoridade e a falsa grandeza daqueles que são submetidos ao escárnio”. O riso de zombaria seria a exposição daquilo que é considerado um defeito e possui caráter punitivo. O que é considerado um defeito torna-se o motivo de riso, dependendo do contexto. Aquele que vira objeto de riso tem o seu poder diminuído e, em contrapartida, alguém adquire este poder. Aqueles que não são o motivo de riso são agraciados por esse simples fato, enquanto algo ou alguém é ridicularizado. O riso gera, portanto, um balanceamento de forças, uma desestruturação da hierarquia. Foucault (1999) nos mostra como nossa formação é previamente determinada pelas formas de poder ao nosso redor, estejam elas presentes nas mídias, nas escolas, no interior de casa, nos governos regentes: Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função con-
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jurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade (pp. 8-9).
Há uma fatalidade de homogeneização de pensamento, de jeitos, de reações. O que existe são grupos de pessoas. E qualquer coisa que acontece fora do padrão já distingue um grupo do outro. É importante ter isso em mente para entendermos que, no campo da comicidade, cada público terá o seu próprio contexto, suas particularidades que o tornam distinto de outros públicos: O nosso riso é sempre o riso de um grupo. Ele talvez nos ocorra numa condução ou mesa de bar, ao ouvir pessoas contando casos que devem ser cômicos para elas, pois riem a valer. Teríamos rido também se estivéssemos naquele grupo. Não estando, não temos vontade nenhuma de rir (BERGSON, 1987, p. 13).
Sobre o que fazemos rir? Sobre o que devemos fazer rir? De quem rimos? E ainda: é para fazer rir? No documentário de Pedro Arantes, O riso dos outros (2012), o cartunista Andre Dahmer diz: “Se o humor se faz com vítimas, façamos a vítima certa”. Ou seja, assim como há um jogo de forças, há também uma consciência do poder do cômico por trás do agente que balanceia essas forças. O último ponto analisado é o risco constante dentro do campo da comicidade. Se para toda comicidade existe um alvo, também há um risco, que é toda e qualquer consequência que pode ou não vir dessa exposição. Quem exerce o ofício de fazer rir está fadado a se colocar em risco constante e, dependendo do contexto em que se encontra, pode não ter graça nenhuma e gerar reações negativas e mesmo agressivas. O atentado aos cartunistas do Charlie Hedbo exemplifica bem esta equação. 41
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O trabalho dos grupos citados sintetiza todos esses pontos aqui levantados. Este trecho, de uma entrevista de Tortell Poltrona, ao Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, exemplifica bem: [...] cheguei a Sri Lanka 10 dias após o tsunami no Oceano Índico [de 26 de dezembro de 2004] com os Médicos Sem Fronteira. Nós apresentamos no primeiro dia do ano letivo em uma escola secundária onde apenas 700 de 1.500 crianças sobreviveram ao tsunami. Depois da apresentação, o diretor veio e disse, “As pessoas trouxeram colchões, cobertores e remédios, mas até agora ninguém nos deu vida. Você nos deixa rir e sorrir, você nos dá vida”.1
Esses grupos assumem a responsabilidade de levar o riso para essas áreas justamente por terem a consciência da potência de seu trabalho, da capacidade de afetar e de transformar através da comicidade. Iván Prado (2014) diz: Atuamos lá debaixo de bombardeios. As mães emocionadas falavam pra gente que os filhos riam depois de nos ver. As crianças paravam de chorar. (...) As pessoas que vivem nesses lugares valorizam o riso como forma de comunicação mais direta. O riso é alimento para a esperança. É antídoto contra o medo. É uma linguagem universal e rápida.
Para além do risco de não fazer rir, o risco de vida também pode existir, como quando Iván se apresentou a 300 metros de um bombardeio no Oriente Médio. Vale lembrar que o artista que se apresenta é ainda um ser humano que se expõe e doa 1
Original em inglês (tradução minha), no site http://www.unhcr.org/4d65142b6. html (acesso em maio de 2015).
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seu corpo e seu ridículo visando a um bem maior que é afetar o público. Em entrevista concedida para esta pesquisa, Pasquale Marino, membro dos Palhaços Sem Fronteira, diz: Há sempre uma transformação no espaço antes e depois de um ato artístico; o mesmo também acontece quando há um espetáculo de palhaço e especialmente se percebe quando você está trabalhando em um espaço que não é normalmente utilizado para manifestações artísticas. Falo claramente de quando agimos em campos de refugiados ou aldeias onde eles nunca viram palhaços. [...] As artes cênicas sempre transformam o espaço, porque eles (os palhaços) estão lá para mudá-los, para criar novos olhares, e transformá-lo em um lugar mágico e único para emocionar.
Se o riso é a exposição de um erro, de um defeito, o que expor em áreas onde predominam a fome, a violência e o medo? Qual será o alvo? O palhaço torna a si mesmo o motivo de riso. Quando, por exemplo, vimos alguns números dos Palhaços Sem Fronteira, disponíveis em vídeos na internet, o palhaço se faz de bobo e não percebe algo óbvio diante dele, fazendo todas as crianças apontarem e rirem dele. Destaco dois risos analisados por Propp (1992), que são o riso de zombaria, já apresentado aqui, e o riso de alegria. Kant chama a este riso “jogo de forças vitais”. Ele elimina qualquer emoção negativa e a torna impossível, ele apaga a cólera e a ira, vence a perturbação e eleva as forças vitais, o desejo de viver e de tomar parte da vida (p. 163).
Propp (idem) ainda compara os dois tipos de risos: No riso de zombaria o que nos dá prazer é uma vitória de caráter moral, enquanto que no riso de alegria trata-se de uma vitória das
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forças vitais e da alegria de viver. Muitas vezes esses dois aspectos se fundem. Quem ri é o vencedor: o perdedor nunca ri (p. 181).
O palhaço balanceia as forças vitais do seu público, com quem estabelece um espaço de troca e afetos, transformando o espaço onde antes havia apenas medo e tensão. Nos hospitais, ao parodiar a rotina médica, o palhaço torna ridículo aquilo que incute medo e apreensão nos pacientes, tornando a rotina o motivo de riso. O palhaço, enquanto figura de subversão, tira o poder de opressão que os procedimentos médicos podem involuntariamente causar e dão este poder aos pacientes. Seja em espaços, em guerra ou em hospitais, há sempre a conscientização do que deve ser o objeto de riso e para quem se faz rir. São pequenas grandes ações que transformam, pouco a pouco, a sociedade, dando um alívio que se mostra necessário e denunciando os motivos dessa necessidade. Não existiriam esses grupos de palhaços, se não houvesse uma real necessidade do seu ofício. As zonas aqui estudadas ainda são “de conflitos”, que perduram em diferentes lugares, escalas e contextos. Quando indagado sobre qual a importância do palhaço nestes locais, Pasquale Marino diz: O palhaço tem muito sentido em uma zona de conflito, porque ele é a figura extra-cotidiana que fala a todo mundo da própria vida. É uma forma de arte com base em doação, sobre transformar em esperança a complexidade e tensão nas nossas sociedades: o palhaço significa encontrar liberdade e escapar da monotonia, uma técnica universal baseada em dar, dando alegria e positividade, recebendo em troca o calor de um sorriso ou um riso.
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BIBLIOGRAFIA ARANTES, Pedro. O riso dos outros. 2012 (Filme). BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola, 1999. MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo: Unesp, 2003. POLTRONA, Tortell. Entrevista no site do UNHCR – The UN Refugee Agency. IN: http://www.unhcr.org/ 4d65142b6.html. Acesso em 05 de maio de 2015. PRADO, Ivan. Entrevista a MACÁRIO, Carol para Diário Catarinense. In: http://diariocatarinense.clicrbs.com. br/sc/variedades/noticia/2014/03/responsavel-pelo-primeiro-festival-de-palhacos-do-mundo-arabe-fala-como-e-atuar-em-campos-de-refugiados-da-palestina-4436161.html Acesso em 05 de maio de 2015. PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992.
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Corte e montagem como elementos deflagradores de um processo de ensaio Ian Calvet Marynower*
Proponho um deslocamento do cinema para dentro da sala de ensaio, dispensando o próprio aparato tecnológico cinematográfico. Trata-se de compreender que a essência do cinema, aquilo que lhe é fundamental, pode ser encontrado travestido na realidade, dentro da cidade. Destaco a possibilidade de pensar corte e montagem dentro de um processo teatral. A análise teórica entre cinema e teatro contribuirá para a articulação de ambos, com finalidade de impulsionar um projeto prático experimental. Corte e montagem se aplicam como princípios pedagógicos que norteiam o processo criativo; são fundamentos que originam e não apenas instrumentos para fins estéticos da encenação. Palavras-chave: montagem – corte – direção de ator
*Orientação: Lívia Flores.
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Corte e montagem como elementos deflagradores de um processo de ensaio
“Poucas pessoas que visitavam Paris não conhecem o necrotério”, escreveu o comentarista social parisiense Hughes Leroux em 1888. [...] o necrotério atraía tantos visitantes regulares quanto grandes multidões de até 40 mil pessoas em seus dias mais movimentados, quando a história de um crime circulava na imprensa popular e os visitantes curiosos faziam fila na calçada à espera de andar em fila pela salle d’expostion para ver a vítima (SCHWARTZ, 2004, p.338).
A partir do espelhamento destes dois dispositivos, necrotério e cinema, é possível observar pontos em comum na medida em que ambos deslocam a massa para determinado acontecimento, desencadeando um sistema de relações, modos de comportamento e convívio, uma “comunhão de massa” (BUCK-MORSS, 2012, p.29). Ambos deflagram o desejo de observar o passado materializado em imagem, corpos-objeto. Tanto o corpo morto quanto a imagem projetada são representações daquilo que já foi, evidências da ausência. O público não pode manipular a imagem projetada, assim como é irreversível trazer o corpo morto novamente à vida. Os dispositivos se tocam, à medida que seccionam, fragmentam, elegem um elemento do real, legitimando-o como material de entretenimento. Refiro-me ao corte, à edição, à criação de instrumentos que operam sobre a realidade, transformando-a de forma agressiva. Ora, tanto o cinema quanto o necrotério de Paris devem ser encarados como sintomas da sociedade moderna; modos de produção do homem cosmopolita da virada para o século XX, que necessita aderir a um novo contexto industrial, cultural, arquitetônico. O necrotério parisiense é prova da existência do cinema antes mesmo de sua invenção – uma “ideia cinema”, um “modo cinema”. O que é cinema? Creio que ele não é um objeto, não é máquina, é antes uma consequência da cidade moder48
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na, um espanto produzido pelo sistema urbano e sua teia de relações. A cidade é feita de cortes, como um filme. Ou melhor, o filme, feito de cortes, é como a cidade. Uma relação simbiótica, filme e cidade se misturam, se influenciam, ontem e hoje. O cineasta russo Serguei Eisenstein desenvolveu em seus filmes um pensamento inovador sobre a montagem no cinema. Cada frame faz parte de um jogo de infinitas possibilidades de combinações. Por exemplo, em O encouraçado Potemkin, de 1925: a multidão descendo uma escadaria (corta), os pés de um homem que cai de joelhos (corta), outro corpo caído (corta). Manipular o real, torcer seu sentido e extrair dele aquilo que é necessário, desejado pelo artista. Eisenstein torna vertiginosa a expressividade humana através de operações agressivas: violenta a realidade filmada, torna-a estranha, estica seus contornos, redimensiona tempo e espaço, manipula corpos. Em jogo está uma busca obcecada pela eliminação do acidental: “autocontrole... milimétrico do movimento” (KRACAUER apud BUCK-MORSS, idem, p.35). O cineasta constrói um mosaico com um universo “x” de peças; ele as seleciona e manipula até chegar ao resultado final. Em se tratando de Eisenstein, um dos expoentes da estética construtivista, o modo sistêmico de operação da obra de arte está diretamente relacionado à submissão do corpo do operário à dinâmica de trabalho fabril e a esta nova cidade do século 20. Tudo é construção, junção, sobreposição, associação e dissociação de peças; unidades de imagens heterogêneas que compõem o todo e desencadeiam pensamentos e afetos na mente do espectador. A partir dos fragmentos, o espectador faz a síntese, constrói a unidade. Segundo Gerheim, “toda unidade é uma construção de um discurso necessariamente ideológico”. (GERHEIM, 2008, p.63). O cinema, como o teatro, desencadeia e fomenta o discurso, é o espectador quem o constrói. 49
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Professor de Eisenstein, Meyerhold desenvolve a Biomecânica: um treinamento corporal do ator pautado no estudo analítico do movimento. O corpo em cena é matéria plástica construtora de formas, corpo manipulável. O ator deve ter extrema consciência do seu corpo, do corpo do outro e do espaço; busca movimentar-se com precisão, eliminando o tempo entre pensamento e ação: o ator age. É imediato. O processo da biomecânica fragmenta o movimento em unidades. O “tiro com arco” é decomposto em 29 etapas detalhadas: desde uma “parada”, um “endireitar-se”, um “erguer-se”, um “movimento inverso” – este chamado de atkaz. O atkaz, fundamental na biomecânica, “indica um nítido corte com o movimento precedente e a preparação do movimento seguinte (...) um gesto de curta duração em sentido contrário, em oposição à direção do conjunto do movimento” (PICON-VALLIN, 2003, p.139). A fragmentação do movimento permite ao ator remontá-lo, reconstruí-lo como peças de um quebra-cabeça. Frente ao olhar pedagógico do diretor, ambos, ator e diretor, desempenham a função de um “montador” cinematográfico. Eles recriam um universo próprio através das inúmeras possibilidades de combinação dos fragmentos. Entre a peça A e a B, existe um “campo de transição”, que no filme em película é o espaço vazio entre os frames e na biomecânica de Meyerhold seria o atkaz, o movimento rompante; ambos são fundamentais para que haja um desenrolar rítmico do conjunto, para que a peça/filme possa prosseguir. A construção de uma partitura de movimentos permite ao ator liberdade de combinação dos fragmentos, ele gera a unidade, o todo. Neste processo, é possível atingir universos internos do ator em um movimento de fora para dentro; agir para provocar estados. Condiciono, portanto, o rigor estético, ao universo incógnito e subjetivo do ator. Na busca de controle da maquinaria humana, existe algo que foge, incontrolável, que é humano e não máquina. 50
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No ator, existe um microcosmo infinito, desconhecido, caótico e gerador de um estado, de uma energia de ação física real, algo que pulsa, alguma coisa de “alegria”, segundo Meyerhold. A precisão de agir está simbioticamente atrelada a esse universo interno e sem fundo do ator. A dissociação na prática entre ambos é impossível, o que ocorre é uma “administração” destas oposições. Sobre isso, Thomas Richard, citando Jerzy Grotowski, chama atenção para o paradoxo entre rigor e espontaneidade: Os atores podem encontrar liberdade dentro de sua estrutura, liberdade não para mudar sua linha de ações, mas para se adaptar levemente quando um reage ao outro (e a tudo que está ao redor), sempre mantendo a mesmas linhas de ações. “A espontaneidade é impossível sem estrutura. O rigor é necessário para se ter a espontaneidade” (RICHARD, 2012, p.93).
O ator seria como um “filme orgânico vivo”, em potência sempre de subverter, degenerar a sua forma. Contudo e paradoxalmente, agindo em prol da manutenção da própria forma. Nesse sentido, o trabalho do ator é estar permanentemente em conflito, é ser antagonista de si mesmo. Pesquisa prática:
Quatro atrizes desenvolvem uma partitura: 40 minutos para pesquisar o corpo, tendo em vista a coluna vertebral, 10 minutos para eleger 7 movimentos distintos, possíveis de serem repetidos inúmeras vezes com exatidão. Quando formalizada a partitura – “surpresa!”: está composto aquilo no qual as atrizes irão trabalhar pelos próximos meses, adquirindo gradativamente um sentido pessoal dado pelas atrizes. Interiorizados, os movimentos se fundem em um só e ganham consistên51
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cia. É como cavar de fora para dentro. O conflito se evidencia na medida em que as partituras começam a tocar o universo interno da atriz. “Não é fácil para mim realizar a partitura”afirmou uma das atrizes – “É um peso, densa, difícil de encarar”. Meu papel como diretor é de evidenciar as possibilidades, a fim de que as atrizes possam se aprofundar cada vez mais na partitura. O próximo passo é o processo de montagem, juntar as quatro partituras, interferindo de forma sutil em cada uma; alterando-as para encaixá-las, entrelaçá-las e compreender o funcionamento das 4 partituras acontecendo simultaneamente. Como elas se afetam mutuamente? A junção de 4 partituras, com 4 sentidos e modos de operação diferentes, construído pelas atrizes, geraria o todo, a unidade – ou seja - um 5o sentido outro, que foge ao controle das próprias atrizes. Um 5o sentido criado pelo diretor-montador, a peça. Seja pelo choque ou pela harmonia, pela associação ou dissociação das partes, deve existir o investimento na construção de um conjunto que pulsa, potente e gerador de variadas compreensões.
BIBLIOGRAFIA BUCK-MORSS, Susan. A tela do cinema como prótese de percepção. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2012. FLORES LOPES, Livia. Como fazer cinema sem filme? Rio de Janeiro: PPGAV/EBA/UFRJ, tese de doutorado, 2007. GERHEIM, Fernando. Linguagens inventadas palavra imagem objeto: formas de contágio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. GROTOWSKI, Jerzy. O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969. São Paulo: Perspectiva, 2010. PICON-VALLIN, Béatrice. Meierhold. São Paulo: Perspectiva, 2013. RICHARD, Thomas. Trabalhar com Grotowski, sobre as ações físicas. São Paulo: Perspectiva, 2012. SCHWARTZ, Vanessa R. “O espectador cinematográfico antes do aparato do cinema: o gosto do público pela realidade na Paris fim-de-século”. In: CHARNEY, Leo & SCHWARTZ, Vanessa R. (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
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Primeiras cenas expandidas: experimentações mágicas na obra de Loïe Fuller Isabella Raposo*
A pesquisa objetiva investigar o hibridismo presente nas performances da artista Loïe Fuller (Marie Louise Fuller – 15 de janeiro de 1862/1 de janeiro de 1928) e no primeiro cinema. As performances envolvem luz, corpo, música, movimento e sensorialidade. A cena expandida, presente nas discussões atuais, já era pensada e praticada por Fuller em meados do século XIX. Relaciono seus experimentos com o teatro, o pré-cinema e o surgimento do cinema, especialmente a partir das investigações do cineasta George Méliès (Marie-Georges-Jean Méliès – 8 de Dezembro de 1861/21 de Janeiro de 1938). A utilização do espelho em uma de suas performances se relaciona diretamente com as práticas de ilusionismo que integravam os números de magia no pré-cinema e com o cinema de Méliès. Palavras-chave: primeiro cinema – magia – hibridismo
*Orientação: Gabriela Lírio. Bolsa PIBIC/UFRJ.
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Primeiras cenas expandidas: experimentações mágicas na obra de Loïe Fuller
Em meados do século XIX, antes do surgimento do cinema, as feiras de atrações eram comuns na Europa e nos Estados Unidos. Foi um momento de grandes descobertas tecnológicas e científicas – o entusiasmo das pessoas por novidades era enorme. Junto às feiras, também havia outras formas de diversão popular, como o circo, os espetáculos de aberração, os círculos científicos e os espetáculos de magia. O nascimento do cinema advém de um processo longo e complexo de aperfeiçoamentos de técnicas, evolução tecnológica, aumento da produção industrial e, principalmente, a descoberta da eletricidade, grande marco revolucionário na história do cinema (e também do teatro). Como esclarece Flavia Cesarino em seu livro O primeiro cinema: O cinema não surgiu exatamente como uma grande novidade em que as pessoas ficaram assustadas ou desconfiadas, mas surgiu como mais um dos aperfeiçoamentos das técnicas óticas que eram utilizadas nos espetáculos de magia, nas apresentações de palestras auxiliadas por aparelhos de lanterna mágica, ou nos chamados “espetáculos totais” em que se procuravam simular experiências da realidade de forma artificial (COSTA, 2005, p. 12).
Em The magician and the cinema, Erik Barnouw (1981) afirma que o cinema foi utilizado, no início, como mais uma das práticas de ilusionismo que integravam os números de magia. Muitos dizem que a magia é o primeiro degrau do cinema – em 1895 já circulavam filmes pela França que utilizavam números de magias, trucagens explícitas e situações fantásticas, além de um claro descompromisso com a narrativa e qualquer moralidade. Os filmes eram apresentados em teatros populares, museus de cera, circos e vaudevilles e já apontavam um caminho pelo qual o cinema seguiria em seus primeiros anos de vida. A produção do primeiro cinema (1895 – 1910) precisa ser analisada dentro de seu contexto histórico – progresso técni54
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co, crença nas vantagens da modernidade, novidades na área da ciência e uma cultura racionalista vigente. Eram filmes que causavam um certo estranhamento, pois não estavam atrelados a uma narrativa e, muitas vezes, não era possível entender o que se passava – o efeito diegético era precário. Funcionavam como atrações autônomas, pois eram apresentados em shows de vaudeville, compostos de uma série de atos, de dez a vinte minutos. Os filmes mantinham o caráter anárquico do espetáculo de variedades e não seguiam nenhum tipo de regra formal rígida, proporcionando uma certa liberdade aos cineastas. É um período de muitas transformações, sobretudo de percepção de mundo e novas demandas – o cinema nasceu como uma atividade artesanal e rapidamente passou a ser uma atividade industrial de produção e consumo. Loïe Fuller e George Méliès
Segundo Cesarino, os traços definidores do primeiro cinema são o hibridismo e as referências intertextuais. Antes de 1906, o cinema não pretendia representar, através de imagens, uma ficção de homogeineidade de espaço e continuidade de tempo (mas sim uma continuidade de enquadramento). A configuração temporal era pouquíssimo ou nada linear, as elipses eram frequentes e exageradas. Eram muitas as vertentes possíveis para o cinema da época, basta olhar para grandes cineastas precursores do cinema: George Mèliés e os Lumière, cada um investigando caminhos distintos, a rigor. Como aponta Jean-Luc Godard, “O que interessava Meliès era o ordinário no extraordinário, e a Lumière o extraordinário no ordinário.” (AUMONT, 1989, p. 27). Os filmes de Méliès envolviam muitos truques de mágica, como superposições, aparecimentos e desaparecimentos (com a técnica do stop trick), e não trabalhavam com a ideia de reprodução da realidade – eram filmes fantásti55
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cos. Havia uma unidade de ponto de vista, frontalidade, câmera parada – elementos que também remetem ao teatro. Ao chamar a atenção do espectador de forma explícita e direta no filme “Les cartes vivantes”, Méliès formula o projeto básico do primeiro cinema: espantar, mostrar uma novidade, exibindo junto as capacidades mágicas do cinema. (COSTA, idem, p. 174).
O hibridismo nos primeiros filmes também é muito presente na obra de Loïe Fuller, dançarina-cientista do século XIX, precursora da dança moderna e da iluminação elétrica no teatro. Fuller nasceu na atual Hinsdale, no estado americano Illinois. Ao realizar diversas turnês pela Europa, acabou se instalando em Paris, onde se relacionou com diversos artistas do movimento simbolista e da Art Nouveau – e possivelmente com os irmãos Lumière, resultando em uma das primeiras imagens em movimento existentes: The serpentine dance1. Fuller é um dos muitos pontos de contato entre o cinema dos Lumière e de Méliès. Ela vivia em constante processo de criação, seus espetáculos envolviam movimento, luz, cor, tecidos, música, lanterna mágica e mais aparatos que ela mesma criava ou descobria e integrava às performances. Pesquisava novos efeitos visuais para experimentar em suas apresentações, sempre mágicas e hipnóticas, atemporais e muitas vezes abstratas. A questão da ausência e presença em seus espetáculos é muito significativa e é ligada aos espetáculos de magia e aos filmes de Méliès. Como apontou Erin Brannigan: As performances de Fuller envolviam a suspensão da descrença e a indulgência em uma realidade diferente que teve que ser retirada da es-
1 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iCJ7glJLRyE Acesso em: 20 de dezembro de 2014.
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curidão pelos poderes da percepção, e tudo era presença e não resolução. Como a mágica de Méliès, Fuller criou um espetáculo visual cuja “energia se move para fora”, para o espectador incrédulo, ao invés de uma lógica interna ou narrativa. Parafraseando Gunning, o próposito da arte de Fuller reside na atenção que sua performance atrai para si mesma (BRANNIGAN, 2003).
Os espetáculos de Fuller e os filmes de Méliès possuem vários elementos em comum, especialmente a questão da ausência e presença. Sobre essa questão, me atenho a um elemento específico que Fuller utilizava em uma de suas performances, que tinha tanto o efeito de ausência e presença quanto o de multiplicação de imagens – o espelho. Em 1893, Fuller patenteou a primeira versão de sua “sala de espelhos”. Era uma sala com espelhos formando uma estrutura octogonal, aberta na frente, com luzes elétricas instaladas em seus interstícios. A parede curva e as luzes multiplicavam a imagem de Fuller e seus reflexos, de modo que o público não sabia o que era reflexo e o que era de fato corpo. Ela patenteou diversas outras versões da sala de espelhos e, em 1897, em sua Dança do espelho, adicionou mais espelhos nas laterais e no chão, possibilitando ao público ver a sua dança de várias perspectivas diferentes. Em 1898, adicionou um vidro transparente bem na frente, causando mais reflexos, criando uma estrutura parecida com a de um aquário que, quando iluminado, se transformava em uma espécie de espelho de um lado só – para o público era transparente, mas para ela não. Fuller ficava imersa em seu próprio corpo, em sua própria imagem refletida e multiplicada. A união das luzes e espelhos proporcionava ao público um espetáculo de ilusionismo e magia. Em outros espetáculos, os espelhos eram colocados de modo a revelar somente algumas partes do corpo de Fuller, suas mãos, pés, ombros – ela era vista em pedaços, o que fez al57
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guns críticos da época considerarem uma performance agressiva. Posteriormente, devido à dificuldade em mover a sala de espelhos para refazer o espetáculo, Fuller passou a utilizar o espelho de modo mais simples, costurando-o em seu tecido – ela continuou investigando a questão de sua imagem e seus reflexos, os limites do corpo e da imaginação. O hibridismo presente no início do cinema e na obra de Fuller é significativo para as discussões recentes sobre a cena expandida, contribuindo para reflexões a respeito das fronteiras e caminhos possíveis do fazer artístico.
BIBLIOGRAFIA ALBRIGHT, Ann Cooper. Traces of light: absence and presence in the work of Loie Fuller. Middleton, Conn.: Wesleyan UP, 2007. BARNOUW, Erik. The magician and the cinema. Oxford: Oxford University Press, 1981. BRANNIGAN, Erin. “La Loie” as pre-cinematic performance – Descriptive continuity of movement. Disponível em: http://sensesofcinema.com/2003/feature-articles/la_loie/ Acesso em: 12 de março de 2015. CHARNEY, Leo; SCHWARZ, Vanessa. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. COSTA, Flavia Cesarino. O Primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005. EZRA, Elizabeth. George Méliès. Manchester: University Press, 2000. MANNONI, Laurent. A grande arte da luz e da sombra: arqueologia do cinema. São Paulo: Unesp, 2003.
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O canto transgressor: uma reinvenção da Carmen de Bizet Antonio Ventura*
Este artigo visa a investigar as novas possibilidades de encenação operística existentes na atualidade, a partir de uma montagem não-convencional da ópera Carmen, de Georges Bizet – obra fundamental do repertório lírico –, dirigida por Olivier Py na Opéra de Lyon. Questionaremos alguns dos tabus que ainda são mantidos pelo público mais conservador de ópera, tais como a fidelidade ao contexto do libreto e a procura de uma estética realista, pensando de que forma a quebra destes parâmetros pode significar a criação de outros níveis de sentido no espetáculo e a renovação do gênero lírico neste começo de século XXI. Palavras-chave: encenação – Carmen – Olivier Py.
*Orientação: Alessandra Vannucci. Bolsa-evento PIBEV.
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O canto transgressor: uma reinvenção da Carmen de Bizet
A ópera é um gênero atualmente embasado em repertório limitado de obras canônicas, já conhecidas pelos aficionados, e cuja essência, isto é, a melodia, vinculada ao texto do libreto original, permanece inalterada para qualquer nova encenação, contrariamente ao que é possível com a dramaturgia quando passa a ser encenada no gênero dramático. Diferente é o caso da identidade visual, aberta às diversas concepções de cada encenador e através das quais uma determinada ópera se renova e sobrevive. São, porém, as opções de encenação mais iconoclastas que suscitam as maiores polêmicas entre o público. Uma das questões centrais na encenação operística hoje é se as propostas visuais e de movimento contidas no libreto devem ser seguidas. Por um lado, boa parte do público é extremamente conservadora e defende montagens tradicionais, em geral, fiéis ao libreto na ambientação histórica e na interpretação naturalista; por outro lado, experiências modernizantes vêm ganhando espaço nas casas de ópera e no gosto de novas gerações de admiradores da cena lírica. Através de uma montagem da ópera Carmen, de Bizet, dirigida por Olivier Py na Opéra de Lyon, em 2012, investigaremos as possibilidades de uma encenação que transforma e “desrespeita” o libreto, principalmente no tocante à caracterização dos personagens, ambientes e temas. A encenação de Py altera a época e o local da ação. No caso de Carmen, isso é extremamente relevante, já que o enredo, localizado na Sevilha do início do século XIX e tendo como característica marcante uma pitoresca caracterização de tourada, gerou, ao longo de décadas, inúmeras encenações em ambientação espanhola. Portanto, o público possui um imaginário bem definido sobre essa ópera, gerando expectativas em relação ao que será visto em cena. Py quebra essas expectativas antes mesmo do fim do prelúdio, apresentando uma mise-en-scène assumidamente metateatral, que transita entre a Chicago dos anos 20 60
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do século XX e a França atual, aludindo a um ambiente de submundo muito distante da atmosfera glamorosa e folclórica associada a Carmen. Essa ruptura pode render à encenação a qualificação de herética ou até mesmo escandalosa; nada mais natural que o escândalo, porém, para uma obra que chocou a sociedade desde sua estreia, em 1875. Os personagens também se transfiguram. Da cigana do romance de Mérimé, Carmen se torna uma dançarina de burlesque; Don José, um policial; os contrabandistas, traficantes de cocaína. De certa forma, as funções sociais e características dos personagens se mantém para que o texto cantado e falado funcione, porém essa alteração traz mudanças significativas para a atmosfera do espetáculo. Diferentemente do libreto, em que a cigana tem apenas alguma fama em Sevilha, na encenação da Ópera de Lyon, Carmen é uma verdadeira estrela, a principal atração do cabaré Paradis Perdu. A fama não apenas traz uma caracterização diferente para a protagonista, como lhe empresta poder na vida noturna da cidade. O exotismo que a Paris de Bizet via na Espanha e nos ciganos torna-se uma fantasia primitivista-tropical logo na primeira aparição da personagem: Carmen aparece vestida de Eva, num cenário selvagem, trazendo uma serpente real sobre os ombros. Por fim, uma postura anárquica lhe é associada desde a abertura, quando ela arranca a bandeira francesa da delegacia de polícia e, despindo seu vestido, pendura-o no lugar, ironizando o poder vigente e sobrepondo-se a ele; numa encenação mais tradicional, a exibição deste caráter impetuoso só aconteceria no fim do primeiro ato e teria seu auge no final do terceiro. Os dilemas éticos de Don José são ampliados nesta versão. Primeiramente, por ele estar imerso, mas não envolvido, numa grande rede de corrupção policial (um policial da corporação extorque o bilheteiro do cabaret numa das primeiras cenas) e por ver seu superior Zuñiga ser assassinado pelos contra61
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O canto transgressor: uma reinvenção da Carmen de Bizet
bandistas (algo que não ocorre no libreto) no fim do segundo ato. Logo, ele tem plena consciência da vida que levará se fugir com Carmen e desertar do seu posto: ao se unir com criminosos que ele foi treinado para combater, deverá abrir mão de suas concepções éticas. A opção do diretor em colocar Carmen em cena durante o dueto de José com Micaëla deixa o conflito amoroso do personagem mais claro para a audiência. Uma faceta sombria do personagem é exibida, mostrando sua agressividade física contra Carmen e a manifestação de desejos suicidas no início do terceiro ato, quando ele chega a apontar uma arma à cabeça. Por sua vez Micaëla, originalmente um personagem com pouca profundidade dramática e que serve principalmente como contraponto a Carmen, ganha nova dimensão. Sua exclusão do mundo amoral do qual a trama fala é reiterada pela explicitação da sua condição de viajante (dita no libreto, mas raramente encenada) por meio de sua entrada em cena com malas nas mãos. Sua paixão sacrificial por Don José é ampliada através da inserção do seu suicídio na trama, no início do quarto ato (enquanto, pelo libreto, não sabemos o desfecho do destino da personagem). Especularmente à relação entre José e Micaëla, a paixão entre Escamillo e Carmen também é ampliada. O diretor põe o toureiro em cena antes do sugerido pelo libreto: entrando no camarim de Carmen, faz a protagonista agir de forma ambígua, ao dar-lhe uma de suas luvas em sinal de promessa, quando, poucas cenas antes, havia feito o mesmo com José. Essas ações fazem com que o público questione se Carmen e Escamillo já não teriam algum tipo de relação íntima, enquanto, no libreto, fica claro que o envolvimento dos dois só começa após o fim do terceiro ato. No quarto ato, o figurino reinventa o enredo, ao colocar Carmen em cena vestida de noiva. A encenação de Py aprofunda e amplia a brutalidade da história. Enquanto no libreto, a única morte prevista para ocor62
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rer em cena é a da protagonista, no fim do último ato, o saldo de vítimas da encenação de Py é seis vezes maior. Além disso, há agressões e insinuação de estupro durante o interrogatório que ocorre no fim do primeiro ato. Assim, o ambiente violento em que se desenrola o romance que deu origem à ópera é restaurado com muito mais eficácia do que a vaga indicação sanguinária da maioria das encenações em clima de tourada. Outra característica de montagem – mas comum a encenações recentes de outras óperas – é a sua metateatralidade. Por ser praticamente toda ambientada no palco e nos bastidores do Paradis Perdu, apresenta uma cena híbrida entre realidade e ficção, ou seja, o que realmente está acontecendo e o que é número de cabaré. O esgarçamento dos limites entre vida e teatro torna possível, em diversas cenas, a presença simbólica da morte, que permeia toda a obra, tanto no texto como na música, através dos leitmotifs. Os atos são apresentados por tabuletas elisabetanas e alguns dos principais números, como atrações da casa de shows, expondo a ficcionalidade do que aparece em cena. Carmen, mesmo em cenas de tensão, continua agindo como se estivesse frente a um público, ampliando o efeito de espetacularização, cujo auge se dá no fim da ópera: após ser esfaqueada por Don José, Carmen se levanta e desaparece por trás das cortinas do cenário; a protagonista sai de cena como uma estrela. A proposta cênica de Py valoriza qualidades não apenas pouco relevadas na tradição de montagens convencionais desta ópera, como também essenciais à sua plena e mais profunda compreensão. Carmen é uma ópera permeada pela cultura do espetáculo (a dança cigana e a tourada são os exemplos mais gritantes) e da morte, também tratada como espetáculo. De temáticas superficiais, calcadas apenas no clima sangrento e apaixonado normalmente associados à cultura hispânica, essas questões passam a ser o foco e o próprio germe da montagem em estudo. A encenação esgarça esses dois eixos ao extremo, ao ex63
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O canto transgressor: uma reinvenção da Carmen de Bizet
pô-las no palco não apenas como temáticas do enredo, mas também como opção estilística da escrita cênica. Se, por um lado, não se pode negar que a proposta cênica de Py está plenamente adequada à ópera em questão e à linguagem operística em geral, que é permeada pela convenção e pela teatralidade, por outro, é provável que este espetáculo não tenha satisfeito às expectativas de boa parte do público, nomeadamente os espectadores conservadores. Longe de ser um problema, talvez esta seja a solução mais acertada para fazer com que essa forma de expressão artística – com todas as restrições e convenções que a colocam em perigo constante de esgotamento – continue a surpreender, no melhor sentido possível, a sua audiência.
BIBLIOGRAFIA ABBATE, Carolyn; PARKER, Roger. Uma história da ópera. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. MERIMÉE, Prosper. Carmen. São Paulo: Editora 34, 2014. CARMEN. Ópera filmada e apresentada pelo canal de televisão francês Mezzo. Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=dYfFZ0HyAj0>. Acesso em 4 junho de 2015.
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Casa vazia: uma experiência cênica (auto)biográfica em construção Gabriel Morais*
Casa vazia: uma experiência cênica (auto)biográfica em construção investiga a utilização das narrativas vivenciais na criação da cena teatral e as estratégias nas diversas possibilidades de produção de subjetividades, através da análise de conceitos como: real e ficcional; teatralidade e performatividade; corpo, memória e imaginação. O artigo tem por objetivo analisar o processo de criação de Casa vazia, realizado inicialmente em dezembro de 2014, no bairro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro. Palavras-chave: autobiografia – real – ficcional
*Orientação: Gabriela Lírio. Bolsa FAPERJ.
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Casa vazia: uma experiência cênica (auto)biográfica em construção
Quatro atores. Uma casa. 24 horas. Chegue quanto puder. Saia quando quiser1.
Experiência cênica que se constrói na zona fronteiriça entre teatro e performance, Casa vazia busca uma relação espaço-temporal não convencional, ao expandir o lugar e as funções de ator e público (que aqui chamamos de convidados) e não apresentar dramaturgia linear ou fixa. Objetiva-se a construção de materiais (verbais, imagéticos, sonoros e/ou corporais) que podem ser utilizados durante as vinte e quatro horas e acontecem simultaneamente pela casa, podendo se cruzar e contaminar. Casa é espaço físico, mas também psicológico, afetivo e político. A vontade de pesquisá-la foi o primeiro mote da investigação: experimentar a casa e analisar o que ela poderia dizer através dos atores e espectadores. Ou seja, de que maneira o espaço pode ativar memórias e narrativas autobiográficas. Pensamos a casa como um espaço sagrado, no qual “o invisível pode aparecer nos objetos banais” (BROOK, 2011, p. 50) e, dessa forma, espaços, acontecimentos, diversos objetos e usos da casa “podem transformar-se e impregnar-se do invisível” (idem, ibidem). Como invisível entendemos a memória e os afetos que a casa pode catalisar, impulsionando a produção de narrativas autobiográficas. Inicialmente, investigamos corporalmente a casa, suas características físicas e sensoriais, procurando acessar a memória dos atores. A partir da leitura de autores como Arfuch (2010), 1
Com este convite chamamos o público para participar da experiência cênica Casa Vazia. Disponível em: https://www.facebook.com/projetocasavazia? fref=ts. Acesso em: 25/06/2015.
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Barrenechea (2008), Bergson (2010) e Lopes (2009), pensamos a memória como labirinto, com a presença de lapsos, de retornos, de vai-e-vem, do que se esquece e do que se omite. Memória ligada à percepção sensorial; memória que não pretende narrar um passado fixo, mas que o constrói no momento mesmo da narração, de modo inseparável da imaginação, que “evoca, distorce e muitas vezes reinventa as lembranças” (LOPES, 2009, p. 137). Para o ator Paes de Luna, “explorar a casa é como se reconhecer”. Explorar a casa produz narrativas de si. Entendendo o sujeito contemporâneo como fragmentado, múltiplo, mutável e relacional, propomos um sujeito que se construa na relação com este outro corpo chamado casa. É com a casa e as relações de troca que se estabelecem entre os corpos e sujeitos, que a ação e as diversas possibilidades de dramaturgia se constroem. Além da ativação da memória a partir da relação entre espaço e arquitetura, utilizamos outros dispositivos para criação de material autobiográfico e autoficcional. Cada ator pode ficcionalizar suas histórias pessoais, utilizar textos literários ou de outros atores ou convidados na construção dos próprios materiais. Observamos, também, a importância do uso de objetos e pedimos que os atores realizem uma coleção de lembranças com objetos que carreguem em si afetos e memórias. Por fim, estabelecemos dispositivos que afetem diretamente o corpo, seus limites e percepções, colocando-o em risco. Dessa forma, acessamos novas narrativas, atritamos as que já estávamos trabalhando, criando distorções, fragmentações e reinvenções na criação das memórias. Ao propor uma experiência com duração de vinte e quatro horas, desejamos um ritmo contrário aos tempos ordenados pela sociedade do consumo, no qual tudo é rapidamente descartado e trocado por algo mais novo. Desejamos um tem67
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Casa vazia: uma experiência cênica (auto)biográfica em construção
po de suspensão, procurando atingir um estado de experiência. Segundo Bondía, a experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (2002, p. 24; grifos meus).
O desejo da experiência do encontro nos levou a buscar uma aproximação radical entre atores e convidados. Bourriaud afirma que, em nossa sociedade, são restringidas as possibilidades de relações humanas e muitas são captadas pelo capitalismo, tornando-se mercadorias. Portanto: as obras de arte já não perseguem a meta de formar realidades imaginárias ou utópicas, mas procuram constituir modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade existente. (BOURRIAUD, 2009, p. 18).
Essas investigações artísticas relacionais quebram a dicotomia autor-fruidor e todos passam a ser criadores da experiência. Em Casa vazia, o encontro com o outro é fundamental. O convidado modifica os materiais dos atores e também constrói suas próprias narrativas. Em um ensaio aberto, uma convidada afirmou que, ao escutar uma narrativa, transportava-se para suas vivências. Percebemos que o jogo não se dá apenas 68
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com os quatro atores, mas com todos aqueles que compartilham da experiência. Todos os que entram na casa em alguma hora do dia e criam suas próprias narrativas são atores. Da mesma forma, os quatro atores se transformam em espectadores. O que existem são porosidades e atravessamentos entre as funções do ator e do público, sendo todos considerados jogadores. A radicalidade da proximidade entre os jogadores também gerou um estado de dúvida sobre se o que estava acontecendo era teatro ou não. Este questionamento ia ao encontro do nosso desejo de jogar com os cruzamentos entre teatralidade e performatividade, entre real e ficcional. Sobre sua experiência em Casa vazia, a convidada Camila Barra afirma: às vezes eu não sabia se via uma cena ou não. Foi difícil ver a construção em algumas coisas, parecia tudo improviso, quero dizer, uma conversa que simplesmente aconteceu... Parecia que cada um falava a sua história porque deu na telha falar, sei lá. Pareceu que eu só estava ali na casa de uns amigos e, às vezes, rolava umas conversas; que o Samuel sentou pra bater bolo na sala só por coincidência, que o Ricardo e a Mariah brincaram com os ímãs da geladeira só porque ocorreu deles estarem ali mesmo. Claro que era perceptível o trabalho construído, pensado, bem dirigido. Mas sei lá, na hora a gente acredita que tá vivendo aquilo, aquele momento e só. Não parece teatro, entende. Não sei se tô me fazendo entender. Percebo, principalmente agora, avaliando com calma, que foi tudo muito bem pensado, ensaiado, preparado.2
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Trecho de depoimento da espectadora Camila Barra, enviado por e-mail, após a presença na experiência cênica Casa Vazia, em 14/12/2015.
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Casa vazia: uma experiência cênica (auto)biográfica em construção
Dentro da casa, a teatralidade era posta em questão; ao sair dela, o espaço da cidade parecia teatralizado. A convidada Luiza Toschi nos enviou um áudio, gravado em um táxi, logo após sua saída do Casa vazia. Eis um trecho: eu tô aqui num táxi (…) acabei de sair da casa e eu percebi que meu olho tá diferente. (…) é como se eu tivesse descoberto uma perspectiva um pouco distante... Como se eu estivesse conseguindo olhar as coisas de longe e agora, o fato de estar na rua, com carros passando, árvores, marquises e prédios, tudo ganha um tamanho muito diferente. Como se eu estivesse numa maquete... como se isso não fosse a realidade, sabe?3
Bondía afirma que uma experiência é aquilo que nos acontece e nos toca e que “afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos” (2002, p. 24). É sempre transformadora. Ao radicalizar a intimidade e fazer com que os jogadores se exponham ao risco do contato com o outro, Casa vazia se propõe a ser um espaço de experiências, que afeta e transforma o corpo e sua percepção, como podemos observar nos relatos acima. Casa vazia, desde o início, traduz-se como uma experiência em processo de escritura constante e que só faz sentido no contato com o outro que vem nos visitar. Um espaço híbrido entre teatro e performance; um espaço-tempo de jogo, experiência e troca. Casa vazia abre as portas da intimidade da casa para receber desconhecidos, propondo olhar, escutar, sentir, trocar, conversar, suspender e esquecer, ainda que provisoriamente, o tempo.
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Trecho de depoimento da espectadora Luiza Toschi, enviado como áudio por Whatsapp, após presença na experiência cênica Casa vazia, em 14/12/2015.
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BIBLIOGRAFIA ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. BARRENECHEA, Miguel A. (org.). As dobras da memória. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. BONDÍA, Jorge Larrosa. “Notas sobre a experiência e o saber da experiência.” In: Revista Brasileira da Educação, no19. Rio de Janeiro: ANPED, 2002. BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins, 2009. BROOK, Peter. A porta aberta: reflexões sobre a interpretação e o teatro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. LOPES, Beth. “A performance da memória”. In: Revista Sala Preta, no 9. São Paulo: 2009.
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Exercício de direção cênica: já sinta a Jacinta Mariah Miguel Valeiras*
O presente trabalho busca analisar comparativamente dois processos de direção através de relato de experiência: como aluna do Curso de Direção Teatral, na disciplina Direção V, dirigi um espetáculo com alunas de graduação a partir do texto Jacinta, de Newton Moreno. Como bolsista PIBIAC, com plano de atividades no projeto “Fazendo Gênero” (Colégio de Aplicação da UFRJ), desenvolvi um exercício cênico com um grupo de alunos do Ensino Médio a partir do mesmo texto. O processo de criação compreendeu um exercício continuado que trouxe oportunidade de discutir sobre a experiência da direção; o intercâmbio das salas de ensaio e de aula; e sobre minha necessidade de fazer teatro, que se revela em uma urgência por vezes cômica e desamparada, como a fome e o constrangimento de Jacinta. Palavras-chave: direção teatral – experiência – relato
*Orientação: Celeia Machado. Bolsa PIBIAC/UFRJ.
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Exercício de direção cênica: já sinta a Jacinta
O trabalho que segue é um exercício de escrita. Minha intenção é organizar uma experiência – travessia – em um relato que trata de uma análise comparativa entre dois exercícios de direção: Somos todxs Jacinta, apresentado como resultado da Direção V; e Jacinta e a morte do teatro, montagem realizada no exercício de cena, do CAp. É experiência aquilo que ‘nos passa’, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação. (BONDÍA, 2002, p.8).
Jacinta é a pior atriz do mundo: não está em condições favoráveis. É marginal. Ainda que esfomeada, desestimulada, desacreditada e à beira da loucura, Jacinta permanece sua busca apaixonada. Para ela, “A arte é o que existe!” 1. Eu enxerguei em Jacinta um desejo que era meu: [...] o sujeito apaixonado não está em si próprio, na posse de si mesmo, no autodomínio, mas está fora de si, dominado pelo outro, cativado pelo alheio, alienado, alucinado. (BONDÍA, idem, ibidem).
Trabalhei com essa personagem, com essa dramaturgia, durante um ano inteiro. Seis meses em Direção V, outros seis meses no exercício de cena. Cada um dos projetos tinha diretrizes bastante particulares. Em Direção V, por exigência da disciplina, é solicitado que se trabalhe com uma equipe reduzida a um elenco de duas pessoas para apresentação em sala de aula. No CAp, trabalhei com seis alunas e alunos – parte de uma turma do se-
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Jacinta, de Newton Moreno (inédito).
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gundo ano que acompanhei durante todo o primeiro ano do Ensino Médio. Em ambos os projetos, eu tinha um limite de tempo, de trinta minutos. Para isso, as oitenta páginas do texto original se transformariam em, no máximo, doze. Para Direção V, cortei o texto (literalmente, com tesoura mesmo); escrevi uma cena completa com as falas de Jacinta que faziam parte de cenas excluídas, reorganizei os diálogos e adaptei cenas inteiras. Criei uma dramaturgia a partir do texto original. A escolha do texto para o CAp aconteceu entre janeiro e fevereiro. Para a outra turma, já havia sido escolhida a montagem do texto Agreste, também de Newton; como a busca era por um texto que tratasse de teatro, resolvemos ficar com o mesmo dramaturgo; assim, Jacinta retornou. Concordamos, minha orientadora e eu, que eu montaria com os alunos outra cena do mesmo texto. E, desta vez, eu já sabia qual seria. Uma cena que não consegui adaptar para Direção V e que ficou me “assombrando” – fantasmas que queriam interpretar Hamlet se encontram com Jacinta em um teatro abandonado. A cena estava pronta com início, meio e fim, mas, ainda assim, reescrevi um solilóquio inteiro. A Jacinta do Newton foi, em ambos os processos, um ponto de partida. Sem deixar de ser a Jacinta do Newton Moreno, foi também uma Jacinta minha – o começo da minha escrita cênica se deu, nos dois casos, ao adaptar a dramaturgia textual, muito antes das salas de ensaio. O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna [...] somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo). (BONDÍA, idem, p.9).
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Exercício de direção cênica: já sinta a Jacinta
O local de apresentação, nos dois processos, era uma sala de aula. A diferença é que, no CAp, era uma sala de aula de teatro; ainda assim, utilizei o espaço de maneira muito parecida nas duas montagens. No primeiro processo, me convenci, logo no início, que a melhor configuração era um palco frontal. Embora tenha notado problemas de espacialidade ao longo dos ensaios, não tive escuta para isso e mantive a frontalidade – acredito ter perdido, assim, uma boa oportunidade de jogo e relação com o espectador. Se Somos todxs Jacinta fosse novamente apresentado, o espaço seria revisto. Curiosamente (porque só me dei conta ao final da apresentação), mantive a mesma configuração no CAp, só que, desta vez, a cena foi potencializada pela escolha do espaço, que contava com os objetos cênicos: uma cortina, um baú e um cabideiro. O entendimento desse espaço ainda é objeto de estudo e não consigo concluir porque a frontalidade funcionou melhor num caso que no outro. Sigo a investigação. No que diz respeito ao trabalho com as atrizes e atores, me senti agraciada. Em Direção V, Duda Magalhães e Lívia Ataíde, duas amigas que, meses antes, se ofereceram para atuar para mim. Não tinham o texto, nem o projeto, partiram do desejo de trabalhar comigo. E o encontro não poderia ter sido mais feliz: minhas veteranas na Universidade deixaram que eu conduzisse o processo e me incentivaram e me encorajaram para tal; quando lhes apresentei o projeto, se comprometeram, imediatamente, com a cena. No CAp, seis alunos, entre quinze e dezessete anos, escolheram o encontro da Jacinta com os fantasmas, dirigidos por mim. Seis alunos: quatro atrizes, dois atores. Duda, Beatriz, Valentina, Nayara, Hugo e João. Para o primeiro processo, pedi às atrizes da Graduação uma composição que consistia em responder à pergunta: “O que vocês sempre quiseram fazer em cena?” O trabalho que elas trouxeram, foi transposto quase literalmen76
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te para a montagem final. Somos todxs Jacinta falava também dessas duas atrizes desejosas – Jacinta tem uma fome compartilhada. Fome essa que também pode ser observada no exercício de cena, quando fiz outra pergunta aos alunos: “Qual personagem vocês querem fazer?”. Não houve discussão. Diretor, Cômico, Galã, Primeira Atriz, Ingênua e Jacinta se distribuíram facilmente e, ao longo do processo, alunos e personagens se comparavam e se confundiam – o prazer de interpretar os papéis de sua escolha era visível e afetava muito positivamente o processo. Ainda sobre atrizes, outra curiosa coincidência. A Jacinta do CAp era outra Duda, a Boanova. E tal qual a primeira Duda, a segunda também passou por um processo de “desdudamento”, digo – desnudamento. Este, um pouco menos literal. Enquanto uma Duda encarnava Jacinta nua na busca por um aplauso, a outra Duda desnudava-se de um pavor, que vinha acompanhado de um desejo e, na busca pelos seus próprios aplausos, cantava. Cantava uma paródia de canção Disney, é bem verdade. Mas o ato de cantar vinha com toda a fome que uma Jacinta pede e acontecia, pela primeira vez, em público. O risco ao qual se expunham as atrizes nos dois momentos citados trazia uma potência cênica que pode ser comparada aos riscos que a Jacinta personagem correu na busca por um aplauso. Se para toda forma de comicidade existe um alvo, também existe um risco, que é toda e qualquer consequência que pode ou não vir dessa exposição, desse ‘tiro’ que é dado. Aqueles que exercem o ofício de fazer rir estão fadados a se colocar em constante situação de risco.2
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Fala de Daniel Cintra na apresentação do trabalho Palhaços em zonas de conflito. Seminário de Direção Teatral, 1 de julho de 2015. Notas pessoais colhidas durante a apresentação.
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Exercício de direção cênica: já sinta a Jacinta
O trabalho de direção foi muito diferente por diversos motivos. Enquanto no primeiro processo existia uma horizontalidade e uma troca mais direta por conta de um glossário que compartilhávamos, com os alunos do CAp era preciso maior clareza na condução; com Duda e Livinha eu já havia passado por outros processos, mas no CAp era a minha primeira vez. Por outro lado e inversamente, havia bastante insegurança na minha primeira direção que se dissipou um pouco na segunda, talvez como resultado do acúmulo do trabalho com o texto, com a cena, com a(s) equipe(s). [...] posto que não se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem “pré-ver” nem “pré-dizer. (BONDÍA, idem, p.28).
Ao escolher Jacinta, de Newton Moreno, intencionei falar de FOME e TEATRO. Fome de comida, fome de arte, fome de trabalho, fome de reconhecimento. Fome do teatro ele mesmo. Amor ao teatro. Homenagem ao teatro. Teatro como única forma de operar a vida. Múltiplas possibilidades de entender/ fazer/ser teatro. Dificuldades e recompensas dessa arte. Ambos os processos se configuraram, ao longo dos ensaios, com os mesmos recursos de comicidade – a paródia, a incongruência, o exagero, o risco –, com o uso similar do espaço frontal, com uma aproximação afetiva entre atores e personagens, com a mesma dramaturgia textual; são evidências de um trabalho continuado e, tal qual numa travessia, se apresentam como marcas do percurso. E a travessia traz em si infinitas possibilidades: processos, cenas, acúmulos. Procurei organizar meus passos em uma nar78
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rativa, buscando compreender, examinando meu caminho, dando nome, rumo, forma à jornada. Exercício de análise e escrita. Ainda em processo. Em travessia.
BIBLIOGRAFIA BONDÍA, Jorge Larossa. “Notas sobre a experiência e o saber da experiência”. In: Revista Brasileira de Educação. Campinas, 2002. LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação – uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Editora Vozes, 2003. MACHADO, Cleusa Joceléia. Identidade expressiva do ator. Campinas: Universidade Estadual de Campinas (tese de doutorado), 2010.
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O corpo travestido: uma análise de I am my own wife Felipe Vieira Valentim*
O trabalho tem por objetivo analisar o personagem central da peça I am my own wife, de Doug Wright, como um corpo ressignificado e como um ser in-significância, além de propor uma interpretação da obra enquanto texto dramatúrgico, trazendo as imagens que ela evoca para a encenação. A base das análises é a materialização de um feminino imaginado num corpo marcado por guerra, transgressão e multiplicidade. Desta forma, o estudo aqui apresentado não recorre a análises de gênero, mas sim ao corpo enquanto imagem capaz de materializar a pluralidade do que se é e do que se pode ser. Palavras-chave: corpo – imagem – linguagem.
* Aluno da graduação em Direção Teatral da ECO/UFRJ e do Programa de Mestrado em Letras da UERJ
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O corpo travestido: uma análise de I am my own wife
[...] Durante a Segunda Guerra Mundial, quando os aviões sobrevoaram Mahlsdorf, e as bombas eram lançadas, eu toquei gravações britânicas e norte-americanas. E eu pensei “Eles podem ouvir nos aviões que eu estou tocando discos do Edison”. Eu pensei – Se eles me ouvirem – eles saberão que sou amiga deles.1 (WRIGHT, 2004, p. 10)
I am my own wife retrata a vida de um travesti alemão que atravessou o Nazismo e o Comunismo na Alemanha Oriental. Filho de um nazista, Charllote era, nas palavras de Wright, uma impossibilidade. A história e os custos morais de sua sobrevivência são contados pelo seu corpo, não por marcas físicas, mas sim por suas memórias. A personagem se transforma em corpos que carregam os múltiplos pontos de vista da narrativa. Como estratégia para sua inserção no monólogo, Wright sinaliza, na abertura do texto teatral, o figurino da personagem: vestido preto simples de costura camponesa, lenço na cabeça e um delicado colar de pérolas. “Todos os personagens em I am my own wife usam um vestido por padrão; travestir é a norma” (WRIGHT, 2004, 6). O corpo em cena reverbera as trinta e quatro subjetividades que estruturam a trama de Charllote von Mahlsdorf. O travestimento é um modo de ressignificar e transgredir a cultura imposta ao corpo através de uma estetização da vida: o imaginário se faz político. E os últimos dias da Segunda Guerra foram os mais perigosos para mim porque eu me recusei a carregar uma arma e a vestir um uniforme. Em vez disso, eu mantive meus cabelos longos e 1
Esta e as demais traduções da peça apresentadas neste trabalho são de minha autoria.
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loiros e usava o casaco de minha mãe e sapatos de uma garota [...] Como os judeus, nós estávamos num jogo selvagem. [...] “Se eles atirassem em mim, qual seria a diferença entre ser um homem e uma mulher, porque o morto é morto!” (WRIGHT, 2004, 16-17).
O corpo descrito na peça é base para inscrição de relações ideológicas e sociais, no contexto da guerra. Assim, propõe-se a divisão desta análise em duas perspectivas: a primeira apresenta uma leitura da personagem enquanto corpo; a segunda, uma interpretação da obra enquanto texto dramatúrgico e as imagens que ela evoca para a encenação. Corpo-cena
Projeta-se resistir como possibilidade de transgressão, tornando-se imagem, materializando-se: “imaginação é política [...]”, aponta Didi-Huberman (2014, 61). No habitar desse corpo imaginado reside o caráter político da construção. O corpo – que é fundamental no debate acadêmico – entra em cena, abrindo-se como chave-mestra para leitura e desmonte das memórias. Em Vigiar e punir, Foucault (2013) aborda a relação do corpo com a punição; marcas de demonstração do poder do Estado, evidenciando o corpo como dispositivo político. As realizações do corpo nas artes e na cultura ocidental apontam: analisar o investimento político do corpo e a microfísica do poder supõe então que se renuncie [...] à oposição violência-ideologia, à metáfora da propriedade, ao modelo do contrato ou ao da conquista [...]. (p.30).
Referência para Charllote, sua tia, Louise, era o exemplo vivo de transgressão. Irmã lésbica de seu pai, foi ela quem re83
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cebeu a mãe de Charllote e os irmãos, quando o menino ainda atendia pelo nome de Lothar Berfelde. Era 1943; o governo alemão obrigou a evacuação de mães e filhos por causa dos ataques aéreos. Tia Louise trajava macacões masculinos e abandonava os vestidos no armário. Ao descobrir os vestidos, Lothar se descobre; teve também o primeiro contato com o termo “travesti” através do impresso Die transvestiten, de Magnus Hirschfeld, cuja leitura foi enfaticamente sugerida pela tia. 1945 marca o retorno de Lothar, então com quinze anos, para a casa do pai, extremamente impaciente e violento. No primeiro encontro, Charlotte mata o pai a pauladas e é condenada a cumprir pena de quatro anos, mas não chega a concluir. Com a invasão russa, as prisões foram esvaziadas. A personagem relata que as paredes foram derrubadas como “castelos de areia”; quando o guarda gritou “corra!”, ela pegou o cobertor e o despertador e correu. O fim da Segunda Guerra trouxe uma nova guerra: a invasão comunista reprimiu a vida gay que ressurgia em Berlim. Antes dos comunistas fecharem a taverna Mulack-Ritze – freqüentada por Bertolt Brecht, Marlene Dietrich, Magnus Hirschfeld, Henny Porten, citados na peça –, Charlotte compra toda a mobília, copos e talheres. Leva tudo para um porão (seu museu) e inaugura um novo ponto de encontro gay. Para proteger esses encontros clandestinos, Charlotte atuou como informante da Stasi, a polícia comunista. Sua participação foi mantida no máximo sigilo, vindo à tona após a Queda do Muro de Berlim, com a divulgação de documentos rapidamente consumidos pela imprensa. Charlotte possuía um nome secreto, Park. Dentre suas atuações, consta a delação de tráfico de antiguidades, o que resultou na prisão de seu grande amigo, Alfred. 84
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Cena-corpo
Originado em entrevistas com a própria Charllote, o monólogo tem múltiplos personagens e perspectivas. Todos apresentam o corpo travestido. Doug Wrigth escreveu a obra como um diálogo entre ele e o corpo que conta a história. O espectador interpreta a história através do olhar do entrevistado e do entrevistador. O texto sugere a visão do dramaturgo sobre sua entrevistada, tendo em vista que selecionar, editar e lapidar o material coletado implica relativizar pontos de vista. O público tem oportunidade de conhecer as múltiplas facetas de Charlotte, o que pode fazê-la parecer enigmática. A pós-leitura (ou pós-espetáculo) é produto dessa fragmentação. Elise Vieira (2013) situa a obra num limiar entre a representação biográfica e a autobiográfica. Por mais que Wright não se coloque com destaque na dramaturgia, seu personagem tem uma participação bastante efetiva. Vieira recorre à análise de Highberg (2011) sobre os áudios da entrevista que são tocados em momentos da peça. Sua função é evidenciar que a peça assistida baseia-se em registros obtidos em encontros de Wright com Charlotte. Os áudios fazem de Wright um personagem que partilha a experiência e convida o público a reconstruir a história. No fim da peça, o áudio traz Charlotte apresentando seu museu; na rubrica, há uma indicação de que Doug está em pé, ouvindo. Para Rancière (2009), as práticas artísticas intervêm “na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade” (2009,17). A representação, a escrita, “o grito” de um corpo enigmático, tudo constituirá uma “partilha do sensível”, uma estética da política. E uma política da estética. O gosto pelas antiguidades foi fundamental para Charlotte não ser esquecida. Transformar a casa em museu era uma 85
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forma de resistência, meio de manter e partilhar as memórias. Charlotte transformou-se em obra de arte. Deixou, portanto, de ser “eu” para transfigurar-se, abraçando processos de subjetivação. Quando famílias morreram, eu me tornei esta mobília. Quando os judeus foram deportados durante a Segunda Guerra Mundial, me tornei mobília. Quando os cidadãos foram queimados fora de suas casas pelos comunistas, eu me tornei. Após a vinda do muro, quando as velhas mansões foram destruídas para criar arquitetura do povo , eu me tornei [...] (WRIGHT, 2004,13)
Podem-se apontar dois pontos para a leitura do sujeito e de sua narrativa: 1) o corpo é uma invenção, elemento de um ser em significância; 2) a história é fruto da manipulação de informações. Mesmo baseada em documentos, trata-se da teatralização de um corpo que evoca leitores e espectadores curiosos pelo ser que desafiou a realidade de um mundo de espetáculos de horror. A língua é elemento importante no texto. Os trechos em alemão mantidos na tradução da entrevista ressaltam pontos do perfil da protagonista: o apego às memórias e à sua trajetória em dois momentos históricos da Alemanha; o seu pertencimento a uma nação tão complexa quanto ela. Essa pode ser uma das razões pelas quais os trechos em alemão são mantidos em montagens em todo o mundo. Charlotte Von Mahlsdorf é o retrato de uma Alemanha enigmática e extremamente dúbia. Para encenação, o texto requer linguagem específica. O Teatro de Séraphin apresenta, por meio de escrita poética, uma relação de respirações masculina, feminina e neutra, que provocam um grito, uma proto-linguagem, uma projeção no espaço de regiões subterrâneas. O feminino é “tonitruante e terrí86
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vel, como o uivo de um fabuloso molosso”. Juntamente com o masculino e o neutro, ativa-se o duplo do grito, “lembrança de uma linguagem cujo segredo o teatro perdeu” (ARTAUD, 1987,184). A estrutura da narrativa em I am my own wife e os caminhos que possibilitam sua encenação são claramente estabelecidos por Wright, que conduz os modos de leitura do corpo apresentado. Na construção do entrevistado pelo entrevistador, as brechas que este propõe daquele. Um entrevistado que atrai por sua existência impossível. Um ser enigmático, cuja única forma de poder de que dispõe é tornar-se memória através do gosto pelas antiguidades e pelo seu museu. A imagem feminina do corpo reverbera muitas outras vozes, gritos do homem in-significante2, da in-significância do ser em contextos de opressão, nos silêncios das memórias. Como em Teatro de Séraphin: (...) o grito que acabo de dar exige primeiro um buraco de silêncio que se retrai, depois o barulho de uma catarata, um barulho de uma água, está na ordem das coisas. (ARTAUD, idem, p.185).
A evocação de inúmeras subjetivações em um único corpo; o travestimento como norma da não-norma apontam para as inúmeras possibilidades do que se pode vir a ser, fortalecendo a imaginação como transgressão política. No fim do segundo ato, Wright-personagem está em pé, ouvindo um corpo marcado pela história, a vida, a memória... Quando eu estava com quase quarenta anos, minha mãe estava lavando as roupas, [...] Pendurando minhas meias e minha liga. 2
Entenda-se por in-significante a leitura de Ana Kiffer (2010): Entre o Ó e o Tato, sobre o ensaio filosófico de Jean-Luc Nancy.
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Ela se virou para mim e disse: “Lottchen, é muito legal brincar de se vestir. Mas agora você cresceu como um homem. Quando vai se casar?” E eu disse “nunca, minha querida Mutti. Eu sou minha própria esposa.” (WRIGHT, idem, p.43)
BIBLIOGRAFIA ARTAUD, Antonin. “Teatro de Séraphin”. In: O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Max Limonade, 1987. DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Rio de janeiro: Editora Vozes, 2013. HIGHBERG, Nels. “When heroes fall: Doug Wright’s ‘I am my own wife’ and the challenge to truth”. In: FORSYTH, Alison; MEGSON, Chris. Get Real: documentary theatre past and present. London: Macmillan, 2011. KIFFER, Ana. “Entre o Ó e o Tato”. In.: Alea. Rio de Janeiro: Scielo (online), 2010, no.1, pp. 34-46. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1517-106X2010000100003&script=sci_arttext. Acessado em 07/09/2014. RANCIÈRE. Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34, 2009. SANTOS, Elise Tuma Vieira dos. História oral e autobiografia no teatro documentário. Belo Horizonte: UFMG. Dissertação de Mestrado – Escola de Belas Artes, 2013. WRIGHT, Doug. I am my own wife. New York: Faber and Faber, 2004.
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Insurgentes incidentais Morgan Cooper entrevista Ruanne Abou-Rahme Tradução e edição de Maria Eduarda Magalhães e Anna Duran1
Ruanne Abou Rahme e Basel Abbas trabalham no romance audiovisual Incidental insurgents desde 2011. O projeto compõe-se de diversas partes – a primeira completou-se em 2013 – e seu foco é a figura do bandido. Interessei-me pelo trabalho, tanto o individual quanto o colaborativo, já há alguns anos. Em Incidental insurgents, Ruanne e Basel perseguiram uma abordagem investigativa ao arquivo e história oral. A ênfase é no bandido e particular personagem Abu Jildeh (AJ), um dos muitos obscurecidos na história das revoluções e da resistência palestina contra a opressão. MORGAN: Ruanne, diga como veio a trabalhar neste projeto e sobre os processos de pesquisa e reconstrução deste personagem. RUANNE: Começamos em 2011, depois da Revolução Egípcia. Estávamos em crise sobre a nossa posição não só enquanto artistas, mas também como pessoas, pensando sobre o contexto e situação da Palestina. Existem movimentos de base aqui ou ali, mas em geral há um certo declínio político. Por acaso, peguei uma novela de Victor Serge (VS), Unforgiven years; li a introdução de Richard Greeman, também sobre a vida de Serge. Foi quando me deparei com o grupo de anarquis1
Biography. University of Hawai’I Press, v.37, n.2, 2014. Disponível em: http:// muse.jhu.edu/journals/biography/v037/37.2.cooper.html#img02
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tas bandidos2, de 1910 em Paris, camaradas de Serge. Algo naquela história me fascinou: ressoavam acontecimentos e questões com que me debatia. Naquela mesma noite, li passagens para o meu parceiro, Basel; ele também ficou impactado. Decidimos começar a pesquisa com a vida de VS e a história dos bandidos anarquistas. VS nasceu na Bélgica, na virada do século XX, filho de fugitivos russos revolucionários. Ele se tornou anarquista e, ainda jovem, foi para Paris. Em 1910, quando Serge editava um jornal, o movimento já havia passado do auge (fim do século XVIII). VS e outros jovens bandidos logo se desiludiram. Em 1912, Serge foi preso. A polícia de Paris alegava que ele era um dos mentores dos bandidos. Mais tarde ele foi para a Espanha e se tornou comunista antes de acabar na Rússia, onde se juntou aos bolcheviques. Anti-stalinista, foi preso e exilado. A maior parte do seu trabalho, em especial os últimos romances, explora o que acontece com quem é politicamente radical e luta por justiça social, por um mundo diferente. Ao mesmo tempo, as personagens de Serge são desencantadas com o pensamento político e movimentos de sua época. Isso ressoou em Basel e em mim. Estejam em questão a revolução total ou insurgências menores, nosso interesse é ver esses momentos através de indivíduos que parecem incidentais, particularmente aqueles que não foram capazes de tão-somente assentir e participar dos movimentos e partidos existentes. Eles expõem incompletudes ou inadequações do pensamento político. Estão num limite, sentem necessidade de superar opções estabelecidas. Qual é o limiar que uma pessoa atinge para assumir a posição de bandido? Nosso projeto expressa o impulso em direção à mudança e justiça; e também a desesperança do momento. Existia esse potencial enorme ativado 2
Em inglês, “bandit” tem o sentido de “rebelde”. Em português, embora admitamos também este sentido, predomina o de “fora da lei”, “ladrão”.
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pelo mundo árabe e outros lugares, a possibilidade de real mudança, onde não permaneceríamos presos nesse sistema capitalista colonial. Ao mesmo tempo, nós tínhamos a sensação de que iríamos simplesmente ficar numa repetição sem fim. Era e é, ainda, um momento de desespero e esperança simultâneos. Estávamos desiludidos com os partidos políticos e movimentos da Palestina e há muito sentíamos que já não podíamos investir neles. Buscamos um imaginário político diferente, uma espécie diferente de linguagem. Esses personagens, a começar pelos bandidos anarquistas, estavam na mesma busca. Embora olhemos para tempos diferentes do nosso, também olhamos para o momento em que vivemos. É um projeto muito pessoal, mas expressão de algo que muitos sentem: estamos no meio de uma crise profunda e ainda não temos uma “casa” política ou fórum; não sabemos como mudar essas condições. Enquanto começávamos com os bandidos anarquistas, nos valemos da pesquisa que vínhamos conduzindo sobre o período anterior a 1948 na Palestina. Estávamos interessados em quais métodos e práticas israelenses coloniais contemporâneos foram, na realidade, desenvolvidos pelos britânicos. Estávamos atraídos pelos testemunhos de 1930, durante a Revolta contra os britânicos; as gangues de bandidos camponeses se aproximavam do que lemos da Segunda Intifada. Essas semelhanças nos impressionaram e moveram a investigar mais. A figura do bandido nos trouxe para a Revolta de 1936. Conversando com meus pais, eles mencionaram Abu Jildeh, de quem eu nunca tinha ouvido falar. Ele era um camponês bandido nos anos 30, que deixava os britânicos loucos; depois foi morto. Basel e eu ficamos intrigados. Conforme começamos a cavar mais fundo, percebemos que não havia muita coisa nos relatos históricos. A ausência de narrativas sobre AJ se tornou significativa para nós porque todos os registros encontrados indicavam que ele ocupava uma grande parte do imaginário popular. Não somente a 91
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comunidade rural palestina era muito apegada a AJ, mas havia músicas e histórias sobre ele. Os registros da polícia ou os jornais daquela época têm bastante coisa sobre ele. Mais tarde ele sai da história da luta revolucionária na Palestina. Esse virou um caso em questão para nós e fez voltar ao impulso central do projeto: olhar para as figuras incidentais, consideradas não significativas. A certa altura, os bandidos anarquistas foram rejeitados pelo movimento; tragicamente, eles expressavam precisamente o que havia de errado. O projeto não é um impulso para romantização. Desejamos ver o que essas figuras desmascaram e revelam sobre seu tempo; sobre como movimentos revolucionários escrevem suas narrativas de revolução e resistência; o que omitem e por quê. Insistimos na incompletude desta história. Com o AJ, exploramos essas inquietações. Descobrimos que muitos desdenhavam dele, simplesmente vendo-o como criminoso. Um criminoso que deixou os britânicos loucos. Ele era despolitizado. Nessa representação de AJ, encontramos algo que faltava na luta anticolonial moderna na Palestina, isto é, atenção a tensionamentos de classe, mascarados hoje com frequência. Todos nós sabemos muito bem que agora na Palestina estamos no meio de um projeto neoliberal tecnocrata muito forte, implantado pelas autoridades. A elite se beneficia do contexto colonial e serve como uma extensão da Ocupação. Isto é muito urgente para nós. Estamos envolvidos numa luta, mas não estamos nela juntos. Não podemos negar o fato de que a elite investe na manutenção desse sistema de colonialismo de povoamento. É assim que você acaba em um regime de segurança disposto a silenciar as pessoas. AJ ilumina uma longa história em que é suprimido o fato de que existe uma elite se beneficiando da Ocupação. Atualmente estamos num tempo difícil, em que essas disparidades de classes que dividem palestinos precisa ser abordada. AJ era um fazendeiro e conhecia muitas pessoas que perderam suas terras nos 92
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anos 1930. Ao mesmo tempo, uma porção grande da elite colaborava com os britânicos. Esta história se repete agora. Quando AJ estava trabalhando em Haifa, conheceu outros camponeses que perderam suas terras. Essas experiências devem ter contribuído para a sua radicalização. Sabemos que a Revolta de 1936 foi majoritariamente camponesa. Nos anos 30, AJ formou o seu bando; eles começaram a não só atacar britânicos e sionistas, como também membros da elite palestina que trabalhavam com os britânicos. Isto é a chave para entender por que AJ não está inscrito na narrativa palestina de resistência, ainda que todos os textos da época evidenciem seu enorme impacto. Basel e eu o lemos como um precursor da Revolta de 1936, embora ele tenha sido apanhado pelos britânicos, encarcerado e morto em 1934. O Partido Comunista Palestino adotou AJ como um mártir. Nos anos 1970, com o declínio do PC, a narrativa muda. Ted Swedenburg escreve sobre isso de modo esclarecedor. Ele descobre que, em determinada altura, o PLO (Palestine Liberation Organization) e Fatah queriam distanciar-se dos camponeses palestinos. Quando PLO e Fatah começaram, os camponeses eram o símbolo da resistência, sua linha de frente. Segundo Swedenburg, durante os anos 70 (podemos ver isso no discurso e nas imagens) a reescritura começa, com uma grande dimensão de classe, mas agora mascarada. Swedenburg vê uma mudança no discurso das pessoas não só com relação a AJ, mas também quanto à Revolta de 36. Esse apagamento e reescritura é muito importante para nós. MORGAN: Essa história desapareceu entre os arquivos. Como você a descobriu? Você disse antes que você e Basel estão “escavando vidas sub-representadas”. RUANNE: A descoberta de uma pista leva a outra. Muito da pesquisa envolvia falar com pessoas e receber conselhos sobre 93
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onde encontrar material. Achamos um livro sobre AJ. Através de desdobramentos de uma fonte a novas fontes, cruzávamos com novas descobertas. Encontramos recortes de jornal que incluíam AJ. Encontrar arquivos e falar com pessoas foi o que nos permitiu manter o projeto crescendo. Quando mostramos o trabalho em Londres, o escritor Musa Budeiri, que trabalhou sobre o Partido Comunista Palestino, compartilhou seu arquivo sobre a Revolta de 1936 conosco. O projeto continua crescendo. Quando conheci Alex Winder, ele nos falou do que havia coletado. Desde então, compartilhamos os achados de nossas pesquisas. Muito material pode ser encontrado em arquivos físicos e online; conversas também são muito importantes. A história é fragmentada. Cada pista abrirá possibilidades diferentes. A cada vez que mostramos o trabalho, a seção de AJ cresce. As pessoas inserem o projeto nos seus próprios arquivos, que dividem conosco; assim o projeto se espalha e aprende com os arquivos nos quais é incorporado. Fomos com Alex à vila de onde saiu AJ. Encontramos um neto e um sobrinho. Em entrevistas com eles, descobrimos que o túmulo de AJ estava sem identificação. Eu fiquei chocado. Eles disseram que nós éramos os primeiros a vir, o que é triste por si só. Retornamos dez dias depois; eles haviam feito um túmulo para AJ, com seu nome e uma inscrição. Eles também tinham correções a fazer no livro sobre AJ que havia sido publicado recentemente. Descobrimos que o filho de AJ havia participado da Frente Popular pela Libertação da Palestina (PFLP) nos anos 60 e foi morto em 1969 pelos israelenses. MORGAN: Pergunto sobre a intervenção artística e o impacto que seu projeto pode ou deveria ter. RUANNE: Tudo é tentativa de ativar alguma coisa que já está lá. Não criamos uma história nova; tentamos iluminar uma 94
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vida e um passado que têm sido empurrados rumo à obscuridade. Como artistas, alcançar isso é nossa maior esperança. A ativação acontece quando personagem e história adentram o imaginário das pessoas. Tal processo é cumulativo. Por isso este projeto é de longo prazo. A primeira vez que mostramos foi em Jerusalém. Muitos jovens palestinos que nunca haviam ouvido falar no AJ descobriram-no e ficaram atraídos por sua história. Também apresentamos o trabalho online e vimos uma performance surgir dele. Há pouco tempo, a pesquisa por AJ no Google trazia poucos resultados, mas agora traz imagens do nosso projeto. Pusemos na internet em lugares diferentes e isso deu ao projeto um novo sopro, mantendo-o viável e relevante. O objetivo é que a história não permaneça incompleta, lançada à obscuridade; é não permitir que a história da nossa luta seja escrita somente por algumas pessoas. Esse trabalho resiste à homogeneização e ao sequestro da narrativa da resistência palestina. Restaura o passado em sua riqueza e complexidade; faz dessa história um recurso para dar forma a nossas lutas atuais e nossa visão para o futuro. Estamos trabalhando na publicação de um panfleto que queremos distribuir no verão. Esperamos que ajude a reativar a história de AJ.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Reitor Roberto Leher Vice-Reitora Denise Fernandes Lopez Nascimento Pró-Reitor de Graduação Eduardo Gonçalves Serra Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Ivan da Costa Marques Pró-Reitora de Extensão Maria Mello de Malta CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Decana Lilia Guimarães Pougy Vice-Decana Mônica Lima e Souza Coordenação de Integração Acadêmica de Graduação João Batista Ferreira Coordenação de Integração Acadêmica de Pós-Graduação Mohamed Al-Hajji ESCOLA DE COMUNICAÇÃO Diretor Amaury Fernandes Vice-Diretora Cristina Rego Monteiro da Luz Direção Adjunta de Graduação Chalini Torquato Barros Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura (PPGCOM) Denilson Lopes Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC) Adriana Schneider Alcure Coordenação de Direção Teatral Jacyan Castilho
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Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral Ano 3, Número 2
ISSN 2596-2485
Escola de Comunicação Universidade Federal do Rio de Janeiro
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