Ciclorama - Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral (v.6, 2018)

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ISSN 2596-2485

Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral v.6, 2018

Escola de Comunicação Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral v.6, 2018

Centro de Filosofia e Ciências Humanas Escola de Comunicação

Rio de Janeiro 2018



Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral v.6, 2018


v.6, 2018 Editoria e revisão Carmem Gadelha Felipe Valentim Capa e diagramação Gabriela Benevides (Bolsista de Extensão I – PROFAEx/PR-5) Orientação: Andréia Resende Produção Érika Neves Corpo editorial (Professores da Direção Teatral) Adriana Schneider, Alessandra Vannucci, Carmem Gadelha, Daniel Marques, Eleonora Fabião, Gabriela Lírio, Jacyan Castilho, José Henrique Moreira, Lívia Flores, Marília Guimarães Martins

C568 CICLORAMA - Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral. v.6, 2018 - . -- Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, 2013 v. : il. Anual. Editora: Carmem Gadelha. ISSN 2596-2485 1. Artes cênicas - Periódicos. 2. Teatro - Produção e direção Periódicos. I. Gadelha, Carmem. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Comunicação. CDD: 792


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Editorial

— ABERTURAS 13

O jogo em sala de aula como metodologia de criação em processos de montagem Beatriz Santa Rita

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Processos do Coletivo Zume: corpos em trajetórias pela cidade Isadora Giesta

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Resistência na correria do Coletivo Bonobando Hugo Bernardo Souza

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Museu das Remoções: performance de (re)existência Henrique S Bueno

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As articulações entre o teatro e o poder público Taís Sobrinho Trindade

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Estratégias de representação em Laura de Fabricio Moser Daniella Fiaux

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O barroco e o contemporâneo: considerações sobre o trágico Henrique S Bueno

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Espectador pendular Camila Simonin

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Novas experiências do LEP Arnon Segal Hochman

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Uma odisseia em busca de direitos Daniel Cavalcanti Pimentel

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Boal: nacional, popular ou brasileiro? Augusto Melo Brandão

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Atuante-espaço na criação de movimento cênico: intercessões entre o Sistema Laban e Viewpoints Camila Simonin


— PASSAGENS 109 Breves apontamentos sobre a estética zen presente no teatro no Mariana Watanabe-Barbosa 119 O humor político ante a opressão: de Medeia a Cidade Correria Poliana Paiva de Araujo 129 Coletivos da Direção Teatral: da universidade para a cidade Érika Neves Lima de Souza

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Editorial

Ciclorama chega ao sexto número. Os motivos para comemorar são muitos, apesar da crescente ameaça contra a educação pública e a produção científica e artística. Isto ganhou alarmante materialidade nas eleições de 2018. Nossa revista é a expressão de um enfrentamento diário, travado nos espaços públicos universitários e fora deles, pelo direito a voz e democracia, arte e beleza. Experimentamos agora a plataforma digital, fato que possibilitará ampliar o acesso à nossa revista. Assim, a UFRJ também se mostra visível e resistente: mesmo com todas as cenas grotescas decorrentes do descaso com a educação pública, a Direção Teatral evidencia seu grito coletivo na manifestação da arte e da pesquisa acadêmica como aspecto de cidadania. Não se trata apenas de divulgação científica e artística, mas de fortalecer as conexões com a sociedade, postas em prática intra e extramuros. O teatro está nas ruas e recolhe delas o seu substrato. Ciclorama permanece dividida em duas cenas: “Aberturas” reúne as investigações de Iniciação Científica; “Passagens” é espaço para trocas e explorações com as pesquisas desenvolvidas no âmbito da pós-graduação. Nesta última, acolhemos também trabalhos oriundos de outras unidades da UFRJ ou de outras instituições. Os olhares dos pesquisadores-artistas e artistas-pesquisadores reforçam, em ambas as seções, a necessidade de viver o fenômeno artístico como resistência e crítica às narrativas hegemônicas e/ou midiáticas. A arte reafirma-se como um desdobramento da urgência benjaminiana: “escovar a história a contrapelo”. 7


“Aberturas” inicia-se com Beatriz Santa Rita, que investiga o potencial criativo do jogo como ferramenta de composição, metodologia de criação e ensaio de um processo cênico. Evoca a necessidade de resistir pela criação: brincar e brincante descobrem o poder do pensar artístico-crítico, tão caro ao cultivo da liberdade. Isadora Giesta e Hugo Bernardo Souza fazem narrativas de resistência. Ela apresenta seu coletivo, o Zume, nascido em nossas dinâmicas universitárias; ele, o Coletivo Bonobando e o processo de criação do espetáculo Cidade Correria, gerado no encontro de corpos, trajetórias e vivências em espaços fora da Zona Sul do Rio de Janeiro. Ambos os trabalhos falam das existências e resistências através da resposta da arte às bizarrices da sociedade brasileira contemporânea. Taís Sobrinho Trindade estuda as tentativas dos trabalhadores de cultura de tornar viável a sua produção, destacando as dificuldades de diálogo com o poder público. Henrique Bueno e Daniella Fiaux investigam a memória na escrita performativa. Bueno apresenta estratégias de autorrepresentação que os moradores da Vila Autódromo empreendem perante as práticas do poder público. É preocupação do pesquisador observar relatos sobre a visita ao Museu das Remoções como ato performático. Daniella se debruça sobre a escrita performática e autobiográfica do espetáculo Laura, de Fabricio Moser, onde ressaltam aspectos variados: atmosfera, sensorialidade, uso de objetos e relação com o espectador. A contemporaneidade revela suas múltiplas faces e inespecificidades; desta forma, Henrique Bueno propõe, em outro texto, o traçar de linhas identificadoras de analogias entre as linguagens, verificando inúmeras interpenetrações. Aí se destacam procedimentos barrocos, tendo Walter Benjamin como referência e constatando novos modos de lidar com as alegorias. As fronteiras porosas entre Arte e Política estimulam Camila Simonin a desenvolver suas reflexões a partir de uma provocação: 8


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“Como gerar um espaço de encontros entre espetáculo-espectador?”. Isto em um primeiro artigo. A artista-pesquisadora apresenta um segundo texto, ao fim da seção, sobre um trabalho em andamento: Camila expõe as possíveis fricções, intercessões e confluências entre o Sistema Laban e a técnica do Viewpoints. O intuito é propor uma investigação do movimento na cena contemporânea. Arnon Segal Hochman, Daniel Cavalcanti Pimentel e Augusto Melo Brandão mergulham nas experiências proporcionadas pelo Laboratório de Estética e Política da ECo-UFRJ e voltadas para os “espect-atores” cidadãos. Augusto Boal está, mais do que nunca, presente, pois é imperativo e urgente transformar as realidades sociais em prol de uma vida mais justa e democrática. “Passagens” se inicia com a filosofia do teatro no enquanto dispositivo que pode, a partir da sua diferença e particularidade, convocar a problematização e reinvenção de processos criativos. São as indicações de Mariana Watanabe-Barbosa. Poliana Paiva de Araújo promove reflexões a respeito de estética e política do riso na contemporaneidade, partindo de questões de gênero. Érika Neves, nossa produtora cultural e também aluna do PPGAC-UFRJ, apresenta sua pesquisa sobre os coletivos formados pelos estudantes da Direção Teatral da ECo e suas trajetórias nos territórios da cena carioca contemporânea. Esta reflexão contribui para o registro da história do curso. Alguns dos autores são já veteranos em Ciclorama. Outros participam de mais de uma pesquisa, com diferentes orientadores. A revista tem sido o lugar de articulação entre práticas artísticas e pensamento teórico. Ela é, sobretudo, a plataforma de onde é possível indagar, com Brecht, sobre “o tempo que nos foi dado viver sobre a Terra”.

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O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer. Walter Benjamin


— ABERTURAS


O jogo em sala de aula como metodologia de criação em processos de montagem Beatriz Santa Rita* O presente trabalho busca investigar o jogo em sala de aula como ferramenta de apropriação da linguagem teatral, à medida que os alunos se tornam autores dos produtos artísticos criados. Meu objetivo é estudar as potências do jogo como metodologia de criação e ensaio de um processo cênico. Minha pesquisa se iniciou quando me tornei bolsista PIBIAC do projeto “Teatro em Gotas”, realizado nas aulas de Artes Cênicas do Colégio de Aplicação da UFRJ. Em 2017, trabalhei com uma turma de primeiro ano do Ensino Médio, de 11 alunos; em 2018, estou a cargo de duas turmas de 10 alunos. Neste texto, analisarei duas montagens: a adaptação da obra Melodrama, de Felipe Miguez, em 2017; e a deste ano, ainda em andamento, que possui como texto indutor o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Palavras-chave: jogo em sala de aula – processos – direção teatral

* Bolsa PIBIAC / UFRJ. Orientação: Andréa Pinheiro.

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O jogo em sala de aula como metodologia de criação em processos de montagem

O texto que segue relata os processos, aprendizados e resultados alcançados a partir do trabalho desenvolvido no projeto “Teatro em Gotas”, realizado nas aulas de Artes Cênicas do Colégio de Aplicação da UFRJ, sob coordenação da Professora Andréa Pinheiro. O objetivo do projeto é a investigação do jogo como forma de aprendizado e apropriação da linguagem teatral, apresentando e explorando diversos elementos da cena, e como indutor de distintas formas de criação de cenas e espetáculos. Esta pesquisa se baseia no referencial teórico de Jean-Pierre Ryngaert (2009) em Jogar, representar; Johan Huizinga (2000) em Homo ludens; e Peter Brook (1999) em A porta aberta. Quando nos propomos estudar as definições de jogo, partimos de seus porquês e objetivos, o que nos leva a elementos exteriores ao mesmo. Porém, em nosso estudo, o jogo se torna ponto de partida: ele deve funcionar como mote para a criação cênica e, ao mesmo tempo, possibilitar que os alunos atinjam um lugar de protagonismo enquanto atores e autores efetivamente engajados na encenação dos seus espetáculos. Para Huizinga, o conceito de jogo é tido como fenômeno cultural e não biológico, anterior à noção de cultura. Para entender isso, basta pensarmos nos animais que já jogavam, tal como os homens, antes mesmo da existência destes. Sendo assim, ele afirma que: “No jogo existe alguma coisa ‘em jogo’ que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa” (HUIZINGA, 2000, p.1). Além das diversas definições de jogo fornecidas pelos grandes estudiosos, o seu significado também pode alterar-se a partir do que ele representa para cada jogador, pois sua essência reside na sua intensidade e capacidade de divertimento. Ele ultrapassa qualquer tipo de realidade e se dá em sua própria realidade autônoma que, por sua vez, permite que o mesmo se realize numa esfera transitória entre a brincadeira e a seriedade. 14


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Jean-Pierre Ryngaert (2009) busca compreender o jogo por um viés lúdico, enfatizando a relação entre os jogadores, abrangendo e agregando todos os participantes, sem pré-requisitos. Para isso, estuda os chamados indutores de jogo e o processo de criação do personagem como algo cumulativo. O autor defende a apresentação final de um trabalho artístico não como meta ou obrigação, mas como possibilidade, sempre em consonância com o processo vivido pelo grupo. Ressalta o prazer não como distinção mas como motivação entre os jogadores. Sendo o centro do jogo o próprio jogador, é ele quem cria os movimentos que podem fazer bloquear ou avançar o jogo. A partir disto, destaco a experiência vivida com a turma 21C em 2017 quando, após habituarmos os alunos à atmosfera do jogo a partir de espaço, imagem e personagem, propusemos um novo elemento: o texto como norteador. A partir de uma seleção de trechos da obra Melodrama, de Felipe Miguez, chegamos a um contexto em que começamos a propor diversos corpos e vozes, influenciados pelos distintos locais e épocas pelos quais perpassam os personagens do texto: na primeira cena, estão no Brasil de 1950; na segunda, transportam-se ao Meio-Oeste Americano do século XIX, com cowboys, saloons e duelos; já na terceira, são habitantes da Buenos Aires dos anos 1920, terra do tango e das paixões desenfreadas. A história permanece a mesma, mas os personagens mudam de local, contexto e referências culturais. Para que pudéssemos estabelecer cenicamente essa variação espaço-temporal, utilizamos três praticáveis de madeira representando os locais propostos pelo texto, o que gerou um curioso jogo cênico que demandava, necessariamente, o deslocamento entre os alunos a cada cena – para que se mantivessem em destaque e em comunicação uns com os outros e com a plateia – mantendo a cena sempre desenhada. A preparação e criação dessa conjuntura de jogo suscitou, junto aos atores, 15


O jogo em sala de aula como metodologia de criação em processos de montagem

uma grande expectativa pelo caráter espetacular da apresentação que se aproximava. A chegada dos elementos cenário, luz e figurino, a necessidade de decorar textos e marcas, o ritmo das falas e deixas, tudo isso fez com que os alunos se sentissem parte de algo maior. As aulas passaram a se chamar ensaios e a minha figura de bolsista se transformou em diretora. Fato é que, mesmo que a apresentação não tivesse ganho maior proporção, ainda assim, o resultado de tal experiência poderia ser configurado como teatro, já que “(...) o teatro começa quando duas pessoas se encontram” (BROOK, 1999, p. 12). Em seu livro, A porta aberta, Brook ressalta que, para manter a cena teatral viva é preciso mais do que o retorno ao sagrado, já que este não é mais suficiente. Ele aponta alguns referenciais para isto, tais como o espaço vazio, específico para a cena; a experiência prática, o fazer; a cena concentrada, o espaço e o tempo delimitados e, por fim, as conexões do ator: consigo mesmo, com o elenco e com a plateia, numa relação estabelecida no momento presente. O trabalho realizado em 2017 propiciou aos alunos um lugar de representação importante: notamos um fortalecimento do grupo não apenas como uma turma de escola, mas principalmente como um coletivo. Muito naturalmente, os alunos começaram a auxiliar uns aos outros, tanto no decorar das falas, na entonação e impostação da voz, quanto no próprio estar em cena, colaborando com marcações e movimentações. A apresentação encantou o público e empolgou os alunos, que se mostraram bem mais engajados e motivados a realizar novas encenações. Além disso, como estavam cientes de que no ano seguinte fariam parte do projeto “EncenaAção” – que encerra o ensino de Artes Cênicas no CAp com a montagem de um grande espetáculo fora do espaço escolar – a experiência vivida no primeiro ano contribuiu para o aprendizado e 16


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aprimoramento técnico e estético do grupo, na expectativa de, em breve, alçar voos mais altos. Dando seguimento à minha pesquisa, iniciei 2018 com duas novas turmas de primeiro ano, 21A e 21B, priorizando a introdução dos elementos teatrais durante os próprios jogos, apresentando, a cada aula, um vocabulário cênico comum à nossa prática, o que se fez muito importante, já que poucos têm o hábito de ir ao teatro. Muitos nunca pisaram numa sala de espetáculos. Salientamos a qualidade de comunicação entre os atores, o que, segundo Brook, é o elemento principal na construção de um espetáculo, além de todo um trabalho de sensibilização e conscientização corporal. Em seguida, introduzimos o indutor texto, proposto por Ryngaert, a partir da obra O auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Porém, ao invés de encenar o texto na íntegra – o que seria impossível devido ao pouco tempo de carga horária – ou selecionar e adaptar cenas, fizemos uma proposta distinta: pedimos que os alunos, divididos em grupos, retirassem, de um pequeno fragmento do texto, uma temática que gostariam de discutir. Usando este pequeno trecho como base, eles ficaram a cargo de criar uma nova cena, mudando completamente o contexto e inserindo novas falas. Para estimular a criação, acrescentamos algumas regras. A primeira estabelecia que cada grupo só poderia utilizar o cenário sorteado, dentre três opções: um cubo grande, dois cubos ou uma escadinha de dois degraus. Essa era uma regra essencial, uma vez que os alunos tendem a rechear o palco de cenários e criam encenações com muito pouca mobilidade, calcadas apenas no texto falado, em detrimento das ações e relações físicas. A segunda estipulava que a cena deveria utilizar, de forma cênica e criativa, dois pedaços de bambu, fazendo alusão a uma atividade desenvolvida anteriormente que gerou ótimos resultados. Enfatizamos que os bambus não poderiam fazer 17


O jogo em sala de aula como metodologia de criação em processos de montagem

parte do cenário: eles deveriam ser utilizados como objetos de cena. Já a terceira regra exigia o uso de uma música instrumental e de uma partitura coreográfica em algum momento da cena, sem a obrigatoriedade de unir uma coisa à outra: a música e a partitura coreográfica poderiam estar em momentos distintos. No início do processo, percebemos, nos alunos, uma certa dificuldade de tomar posse da autoria da cena. Não se tratava de falta de criatividade ou engajamento; eles pareciam esperar que eu, como bolsista de Direção Teatral, selecionasse um texto e os dirigisse em todas as etapas do processo, orientando-os em suas ações e marcações, numa perspectiva tradicional de montagem. Nada de errado com isso, porém o projeto “Teatro em Gotas” busca, a princípio, estimular os alunos a criarem, através dos indutores de jogo, as suas próprias cenas. Posteriormente, o bolsista diretor apresenta a sua proposta de encenação, lapidando ou modificando as cenas já realizadas. No caso deste ano, em que tivemos O auto da Compadecida como texto indutor, selecionei trechos do último ato, em que os personagens, já mortos, encontram-se, diante de Deus e do Diabo, para o Juízo Final: cabia aos alunos, de posse do trecho recebido, criar uma nova cena, em outro contexto. Dentre os trabalhos criados, destaco o de um grupo da turma 21A, que criou uma cena onde um dos personagens é o próprio Brasil, à procura de um salvador. Nada mais apropriado para discutir o momento em que vivemos. Outro grupo, inspirado no discurso nitidamente racista do personagem do padre, decidiu abordar este tema, transpondo o conflito para a escola. Já a turma 21B apresentou uma cena em que a morte se encarrega de apontar os erros dos outros personagens e outra em que o julgamento se encontra dentro de casa, na família, que a todo tempo se alfineta, sem fazer autocrítica. No momento, enquanto escrevo estas linhas, encontramo-nos na fase final do processo, com a finalização de marcações 18


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de cena e composição de figurino e adereços. A apresentação se dará daqui a três semanas, em um encontro que reunirá os alunos das outras duas atividades artísticas lecionadas no CAp, Música e Artes Visuais. A ideia é que todos possam apresentar algum trabalho de encerramento do ano letivo de 2018, compartilhando práticas e experiências. A investigação de novas possibilidades de montagem, de forma a não se prender somente aos modos hierarquizados centrados no texto é um de nossos apontamentos. Em suma, propomos explorar os indutores de jogo de Ryngaert com vistas a criar diferentes metodologias e dramaturgias para um mesmo processo cênico. “Seja qual for a maneira como o considerem, o simples fato de o jogo encerrar um sentido implica a presença de um elemento não material em sua própria essência” (HUIZINGA, 2000, p. 1). Portanto, são os diversos sentidos do jogo, que têm sua esfera própria, além do seu poder de fascinação e intensidade, que vêm estabelecer as pedagogias trabalhadas e os métodos de direção, que geram produtos artísticos desenvolvidos pelos alunos.

BIBLIOGRAFIA BROOK, Peter. A porta aberta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. HUIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000. RYNGAERT, Jean-Pierre. Jogar, representar. São Paulo: CosacNaify, 2009. SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.

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Processos do Coletivo Zume: corpos em trajetórias pela cidade Isadora Giesta* Este artigo tem como objetivo apresentar o processo de formação do Coletivo Zume – coletivo nascido no Curso de Direção Teatral da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no início de 2018 – e seus desdobramentos até o momento. Uma ação importante do Coletivo, neste ano, foi participar do Encontro Nacional de Estudantes de Artes (ENEARTE) realizado em Belém, na Universidade Federal do Pará (UFPa), onde ministrou uma oficina. Atravessam o texto conceitos agregados a partir de leituras feitas para as aulas ao longo do curso, indicações da orientadora desta pesquisa, bem como pensamentos elaborados nos ensaios semanais do grupo. O Coletivo Zume resiste apesar de, e (re) existe por meio de, todas as adversidades que a vida acadêmica e social nos apresenta neste momento de grave crise política no país. Palavras-chave: coletivos teatrais – corpo-cidade – teatro universitário

* Orientação: Eleonora Fabião.

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Processos do Coletivo Zume: corpos em trajetórias pela cidade

O Coletivo Zume nasceu no Curso de Direção Teatral da UFRJ – localizado na Urca, Zona Sul do Rio de Janeiro – e entende sua existência também como um modo de resistência: fincar pé, constituir e construir essa instituição pública voltada para o ensino, a pesquisa e a extensão. Cada participante veio de um canto da cidade, ou até mesmo de outras cidades, e nos encontramos aqui – nós e nossas bagagens. Wesley Calcanho chegou de Cachoeiras de Macacu; Priscila Manfredini, de São João de Meriti; Beatriz Santa Rita, do Méier; Reinaldo Machado, da Taquara; Vinícius Andrade, de Coelho Neto; Taís Trindade, de Campo Grande; Cecília Carvalho estava mais perto, em Laranjeiras; e eu cheguei do Grajaú, depois de pegar dois ônibus e um trânsito horrível. O nome do nosso coletivo nasceu depois de uma aula de “Direção I” quando a professora Alessandra Vannucci falou com seu sotaque italiano sobre “dar um 'zume' na cena”. Nos olhávamos sem entender o que seria esse “zume”, mas sustentávamos a cara de que estávamos entendendo tudo. Quem nos salvou foi a Priscila, que compreendeu o sentido da palavra e traduziu para a gente: “zume” era zoom. Lembro que rimos muito da nossa estupidez, do nosso carão e, inspirados por essa experiência, decidimos nomear o coletivo de Zume. Dois anos se passaram e depois de já termos trabalhado bastante juntos, de já conhecermos melhor as características uns dos outros, conseguimos nos organizar para começar a estruturar o coletivo e ensaiar. Em nosso primeiro encontro, muitos de nós nos atrasamos – foi um dia de trânsito pesado na cidade. Já entramos na sala 108 falando de como tinha sido custoso chegar até ali. A reunião se desdobrava, mas sempre voltávamos ao assunto dos ônibus, das nossas experiências dentro de transportes públicos. Como, por exemplo, o dia em que, distraída, peguei o 583 e não o 22


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582 e, quando fui descer, minha sandália prendeu no degrau e levei um tombo. Ou uma vez que eu e Cecília vivemos um momento de pânico quando o motorista do ônibus em que estávamos resolveu passar por um tiroteio no Catumbi. Histórias sobre ambulantes e performers, sobre pessoas que pedem dinheiro, e como cinco minutos fazem a diferença para a gente não se atrasar. Nesse vai e vem das narrativas, percebemos que era sobre isso que queríamos falar. Como fazíamos para chegar aqui, como os transportes afetavam nossa vida acadêmica, a que horas tínhamos que sair para chegar no tempo da aula, como era o comportamento dos nossos corpos e dos outros, o que acontecia durante os trajetos, por quais lugares passávamos, as arquiteturas, as diferenças entre a Zona Norte e a Zona Sul, o clima, os cheiros, as cores e tudo mais que permeia o corpo e seu comportamento na cidade. A partir daí começamos a ensaiar e desenvolver cenas e, desde março, os alunos da Escola de Comunicação (ECo) assistem a nossas apresentações nos corredores e no Laguinho todas as quartas e quintas. Nesse mesmo período, eu estava cursando a disciplina “Ator I” com a Professora Eleonora Fabião. Essa matéria modificou minha percepção sobre os corpos, sobre as coisas ao meu redor. A professora nos instigava a pensar que tudo é corpo, não só as pessoas, mas também as coisas, os objetos, os invisíveis. Segundo Eleonora: O corpo não é receptáculo ou recipiente [...], mas ‘tecido conectivo’; o mundo não é receptáculo ou recipiente, mas tecido conectivo. O palco, matriz de conectividade, é corpo, é mundo, é mundo-corpo e corpo-mundo (FABIÃO, 2010, p.323).

E foi em uma viagem de volta da faculdade para casa que comecei a enxergar o ônibus como um organismo por onde 23


Processos do Coletivo Zume: corpos em trajetórias pela cidade

coisas entram e saem; onde digestões e indigestões acontecem. Escrevi então uma cena sobre o Organibus, na qual sigo trabalhando até agora com o apoio do coletivo. A partir das aulas de “Ator I”, surgiu também a oportunidade de participar desta pesquisa coordenada pela Eleonora – Performance Urbana: estratégias artísticas e imaginação política. Desde então, estou trabalhando na elaboração de referências teóricas que alicercem e estimulem os trabalhos do Zume. A primeira indicação de leitura que recebi foi Vulnerabilidade vibrátil: arte da performance e mobilidade urbana, de Elilson Gomes do Nascimento – dissertação desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da UFRJ. Elilson se refere ao pensamento de Paola Jacques Berstein, especificamente ao conceito de “corpografia”: [...] corpografia é um tipo de cartografia realizada pelo e no corpo, ou seja, a memória urbana inscrita no corpo, o registro de sua experiência da cidade, uma espécie de grafia urbana da própria cidade vivida, que fica inscrita mas também configura o corpo de quem a experimenta (NASCIMENTO, 2018, p.19).

Na dissertação, Elilson também examina o conceito de cartografia: Suely Rolnik [...] recorre a geografia para definir a cartografia. Diferente dos mapas, que encerram-se como representações estáticas, a cartografia é um “desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos [...] e a formação de outros”. A cartografia, assim, é o terreno e prática de experimentação política das relações múltiplas que podem ser agenciadas e reinventadas num feixe de vetores afetivos que existem entre o cartógrafo, seu corpo, sua história, os lugares, os corpos dos lugares, as histórias dos lugares e as camadas temporais

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que passeiam entre atualidade e virtualidade permeando “estratégias das formações do desejo no campo social” (NASCIMENTO, 2018, p.18).

Penso que estes conceitos são particularmente importantes para o Zume, pois nossos corpos estão, o tempo todo, atravessando e sendo atravessados pela cidade e por outros corpos. Isso implica uma série de relações e acontecimentos que moldam nosso jeito de agir, de vestir, de transitar, o volume de nossas vozes e condicionam nosso comportamento em geral. E sempre existiu entre nós o desejo de realizar intervenções na rua para romper com essa normatividade imposta. Já nos primeiros meses, com receio de que não houvesse mais editais voltados para cultura em 2019, decidimos nos inscrever em vários editais ainda em 2018. Até o momento passamos em dois: um do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, onde iremos apresentar uma peça em abril de 2019; outro do ENEARTE Belém 2018 (Encontro Nacional de Estudantes de Artes), para ministrarmos uma oficina. Para conseguirmos chegar ao ENEARTE, pedimos auxílio à UFRJ que, com uma semana de antecedência do evento, informou que até teria a verba, mas estava precisando segurar gastos. Isso tirou nosso chão, pois queríamos muito ir coletivamente. Vendemos comidas e bebidas durante a “Mostra Mais 2018” e pedimos ajuda também aos nossos professores. E foi graças a eles que reunimos boa parte da verba necessária para chegar a Belém. Por questões de agenda, fomos apenas eu e Wes. Conseguimos duas vagas em um ônibus que sairia da UFMG rumo ao ENEARTE. Entretanto, no dia da viagem, recebemos a notícia de que o ônibus havia pifado e que não haveria ou-

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Processos do Coletivo Zume: corpos em trajetórias pela cidade

tro para substituir. Fomos mesmo assim para Belo Horizonte e, de lá, para Brasília, onde pegamos um avião para Belém. Nossa oficina no ENEARTE buscou incitar a reflexão sobre a construção e a divisão da cidade, fomentar o pensamento crítico em relação às questões sociais que definem os trânsitos dentro da cidade, aguçar a discussão sobre os entrelaçamentos corpo-cidade, aprofundar as conexões entre universidade e cidade. No primeiro dia, nos dedicamos a explorar o corpo desde a apresentação. De saída, propusemos que cada um falasse seu nome fazendo um movimento e, em seguida, todos repetissem o nome e o movimento de todos. Passamos para um jogo de diálogo com as mãos que se expandia para o corpo todo, prática realizada nas aulas de “Ator I”. Depois trabalhamos com as qualidades de movimentos de Rudolf Laban, momento em que começamos a introduzir sons da cidade. Ao final, todos escolheram cinco movimentos para criar uma partitura que tivesse como mote o nome das suas ruas. Quando todos já haviam feito isso, propusemos os cruzamentos desses corpos-ruas, criaturas-ruas, corpos de criaturas-ruas até chegar numa engrenagem que possuía sons, movimento e cruzamentos. Nomeamos esta engrenagem, que proporcionou diversas interações, de Entrecruzados. Dia dois da oficina: uma nova apresentação é feita, pois muita gente nova apareceu. Em seguida, conversamos sobre a deriva que faríamos. A “deriva etnográfica” nos foi proposta pela primeira vez numa aula de “Direção III”, com a professora Adriana Schneider. A prática consistia em sair da sala e deixar-se escolher por três objetos, que poderiam ser: “objetos perturbados, objetos naturais, objetos achados, objetos matemáticos, objetos selvagens, entre outras” (FLORÊNCIO, 2015, p.4). Para apresentar a proposta, Adriana Schneider se refere à “deriva etnográfica”, que consiste no: 26


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exercício surrealista [...] de fazer o ‘familiar se tornar estranho’, movimento oposto e complementar ao do etnógrafo em sua pesquisa de campo, disposto a tornar compreensível o não familiar” (CLIFFORD, James apud FLORÊNCIO, 2015, p. 3).

Concordamos que retornariam em 40 minutos para montarem então seus “despachos” com os objetos recolhidos. Sobre sua prática com “despachos”, Florêncio diz: O despacho aqui proposto não deve ser pensado como prática litúrgica das religiões de matriz africana, cujos conhecimentos milenares de ingredientes específicos são usados caso a caso para equilíbrio energético, mas como princípio ativo de operar pela imanência do terreno áspero e pela multiplicação de perspectivas singularizantes das materialidades, através das quais as coisas falam. Assumir o despacho como operador conceitual, poético, político (FLORÊNCIO, 2015, p.4).

Quando as pessoas voltaram e organizaram seus “despachos”, propusemos um exercício de escrita automática a partir do caminho percorrido, dos objetos encontrados e de um poema de Robert Frost, A estrada não percorrida, lido por nós. Após a escrita, todos apresentaram seus objetos e leram seus textos. Para finalizar a dinâmica, propusemos aos oficineiros que fôssemos a um lugar de “ferida” na UFPa, para colocação de nosso “despacho” coletivo. A UFPa fica localizada num bairro de Belém chamado Guamá, um dos bairros mais pobres e violentos da cidade. O campus é aberto: assaltos, estupros e mortes acontecem ali. Nos foi avisado, mais de uma vez, que transitar pelos arredores da UFPa seria muito perigoso. Nossa proposta foi, então, posicionar o “despacho” coletivo perto do portão da universidade. E o nome que demos a essa instalação-despacho foi Ferida social. 27


Processos do Coletivo Zume: corpos em trajetórias pela cidade

O ENEARTE mudou nossas vidas: nos aproximou de artistas de todo o Brasil e muito nos acrescentou como pessoas e profissionais da arte. A experiência e a responsabilidade de aplicar uma oficina, as trocas culturais, os sotaques e vivências tão diferentes, as experiências todas nos acrescentaram muito como artistas. O Coletivo Zume é recém-nascido, mas já está dando seus primeiros passos e mostrando a que veio. Apesar de não termos conseguido apoio da universidade para o transporte, tivemos sorte, fizemos vaquinha e, pela persistência e insistência, conseguimos ir ao Pará: atravessamos o país e cumprimos nossa missão.

BIBLIOGRAFIA FABIÃO, Eleonora. “Corpo cênico, estado cênico”. In: Revista Contrapontos, no. 3, v. 10, pp. 321-326. Itajaí – SC, 2010. FLORÊNCIO, Thiago. “Banzar ao Atá: por uma deriva etnográfica”. In: Revista de ensaios digitais, no. 1. Rio de Janeiro, 2015. ----. “Nativo ausente e escrita-despacho”. In: Vazantes, no.1, v. 2, pp. 61-70. Rio de Janeiro, 2018. NASCIMENTO, Elilson Gomes do. Vulnerabilidade vibrátil: arte da performance e mobilidade urbana (Dissertação de Mestrado em Artes da Cena). Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 2018.

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Resistência na correria do Coletivo Bonobando Hugo Bernardo Souza* Este artigo analisa algumas experiências de criação artística e dos modos de produção do Coletivo Bonobando, durante o processo de residência artística subvencionado pelo Edital de Fomento da Secretaria Municipal de Cultura (SMC), em 2014, na Arena Carioca Dicró, Penha. O coletivo é constituído por atores de diversos locais da cidade do Rio de Janeiro. Do encontro desses corpos, dessas diferentes trajetórias e vivências, nasceu o espetáculo Cidade Correria, trabalho construído de maneira radicalmente coletiva. O caminho do coletivo até a composição do espetáculo levantou muitas questões sobre a cidade, sobre a produção de arte e cultura no país, na atual conjuntura. O artigo também tenta refletir sobre estratégias coletivas de sobrevivência no cenário cultural atual. Palavras-chave: Bonobando – Cidade Correria – resistência artística

* Bolsista PIBIC / CNPq / UFRJ. Orientação: Adriana Schneider Alcure.

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Resistência na correria do Coletivo Bonobando

Em março de 2014, a Arena Carioca Dicró, equipamento público da Prefeitura do Rio de Janeiro localizado na Penha Circular, iniciava um processo de residência artística. Foram convidados artistas de vários grupos e iniciativas teatrais da cidade para participar de uma seleção com o intuito de preencher as vagas. Junto aos artistas, uma equipe de direção foi convidada para participar desse trabalho e acompanhar as atividades diárias que seriam realizadas durante a residência. Buscando compreender essa nova identidade, surgiu o Coletivo Bonobando. O coletivo não se entende como um grupo de teatro, mas como uma rede de artistas autônomos de diversas áreas do Rio de Janeiro, em sua maioria de territórios populares. Os integrantes moram na Vila Cruzeiro, Olaria, Complexo do Alemão, Brás de Pina, Caxias, Cidade de Deus, Serrinha e Humaitá. O projeto tinha como fundamento criar raízes num território e afirmar uma produção artística produzida fora do Centro-Zona Sul, o centro nervoso da produção artística da cidade. Por outro lado, ao se fixar no território marcando esse posicionamento, ele gerou ali uma desterritorialização imediata quando traz pessoas de vários lugares da cidade pra interagir num território não necessariamente familiar (ALCURE, 2015). 1

A residência consistia em encontros de 9h às 13h para o aperfeiçoamento artístico. Esta experiência permitiu que 12 artistas, em sua maioria, negros, moradores de favelas pudessem dedicar-se à sua arte e, sobretudo, viver/sobreviver des-

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Trecho de uma fala transcrita da comunicação apresentada por Adriana Schneider Alcure durante o evento A cena expandida 2: Tragi-cidades.

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ta atividade durante 2 anos. Este fato ocorreu graças ao Edital de Fomento à Cultura da SMC: A democratização da distribuição de recursos possibilitou o surgimento de novos agentes produtores de linguagem. Os favelados deixaram de ser apenas objetos de um material estético para se tornarem sujeitos criadores e pensadores de suas próprias realidades (BALBINO, 2018, p. 5).

Para contextualizar questões que moveram o processo de criação do espetáculo Cidade Correria, gostaria de destacar o que diz Adriana Schneider Alcure, integrante do Coletivo e diretora da referida peça2: Circular pela cidade é um ato político. Sair do seu local de moradia, do seu local de trabalho, da região onde a gente costuma se movimentar e ir pra um outro canto da cidade é um ato político. É um ato político porque envolve sair da sua zona de conforto. É um ato político porque envolve enfrentar os acasos da violência que marcam a nossa urbanidade. É um ato político porque significa, talvez, romper estratégias macropolíticas que fazem com que a gente fique estabelecido numa área da cidade.

Nesse ponto, percebe-se um processo interessante de movimentação e de superação de limites invisíveis por três pontos de vistas. O trajeto da equipe artística, em sua maioria do Centro e da Zona Sul, atravessando a cidade para um equipamento público localizado num complexo de favelas, o da Penha. Por outro lado, artistas de outras favelas confrontando seus limites em novas áreas, saindo de sua zona de conforto. E, por fim, os próprios artistas do território que, por sua vez, 2

Idem.

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precisam passar pela sede da UPP Chatuba3, que se encontra na entrada do Parque Ari Barroso4, onde a Arena está localizada, e por diversas vezes deparando-se com os profissionais que são seus opressores fora daquele espaço de trabalho. Essas tensões e diferentes vivências geradas atravessaram todo o processo de construção artístico e serão analisadas a fim de entender a arte como resistência, como estratégia de atravessamento dos limites e fronteiras. O primeiro ponto a ser tratado é a entrada da equipe artística no território. A Vila Cruzeiro já recebeu, diversas vezes, artistas de outras áreas da cidade. Em muitos desses projetos, o trabalho funcionava como uma espécie de “projetinho social”, no sentido pobre da palavra. Apresentavam um material limitado, com curta duração e tinham como objetivo ocupar o tempo do jovem favelado, evitando assim que nós causássemos problemas. Raros eram os projetos que investiam nas potencialidades que ali já existiam. Nas palavras de Natália Balbino (2018, p. 5): “o olhar estrangeiro sobre esses territórios sempre teve um tratamento exótico no sentido de construir estereótipos que marginalizam o pobre”. Os grupos de teatro das favelas nascem, principalmente, do desejo dos jovens de estarem juntos e, artisticamente, construir algo que dê sentido as suas vidas. Dar continuidade ao grupo formado é um processo trabalhoso, uma vez que as suas produções são desvalorizadas de acordo com um padrão elitista de cultura, o que normalmente é comercializado. O projeto de residência não teve espaço para isso. A estrutura se mostrou uma zona 3

Para informações sobre a UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), programa de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro: http://www.upprj.com/ index.php/o_que_e_upp Acesso em 22 de outubro de 2018.

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Criado em 1964, com 50.000 m2, o parque já foi um importante espaço de lazer da zona norte da cidade. Hoje está abandonado, aguardando recuperação por parte do poder público.

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de compartilhamento e troca de saberes. Isso se estabeleceu pela postura dos que ali chegaram, apresentando uma relação profissional, buscando travar diálogos de artista para artista, o que não era recorrente nos processos anteriormente mencionados. Os trabalhos realizados pelas ONGS eram cercados por discursos como “estamos levando cultura para a favela”. As experiências passadas criaram uma espécie de barreira, uma hierarquia na relação entre diretor e ator. A construção de um espaço de trabalho baseado na horizontalidade foi um dos desafios do Bonobando no processo de residência, entendendo que a desconstrução desses valores se dá diariamente no fortalecimento de uma escuta coletiva. O segundo ponto é o ingresso de artistas de outras áreas periféricas no processo. A circulação desses no novo espaço foi marcada por um limite terminado pela insegurança gerada pelas guerras entre facções. Ao mesmo tempo, existia uma espécie de simpatia pelo espaço, pois identificavam a configuração, as práticas, os costumes como semelhantes aos dos territórios em que vivem. Marcelo Magano, ator do Coletivo Bonobando e morador da Cidade de Deus, descreve o processo de inserção no espaço do Complexo da Penha, local do seu novo trabalho. Como morador de favela, a gente, de certa forma, tem uma empatia. A gente entende qual é o procedimento. Entende que a favela tem algumas regras, algumas leis. Mas a gente sempre fica com um pé atrás quando vamos em uma favela que não é nossa e que a gente não tem muito costume de ir. Alguns momentos, eu tive os receios de sair da favela e os amigos – os caras da boca – perguntar da onde eu era e tal. A gente nunca sabe como responder. Mas eu sempre entrei com os meus amigos pra ficar tranquilo.5

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Entrevista com Marcelo Magano, realizada por mim em outubro de 2018.

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O terceiro ponto a ser analisado é o percurso dos próprios artistas do território durante o período de residência artística. Vou utilizar, como exemplo, o trajeto da minha residência até a Arena. Eu, “cria” da Vila Cruzeiro, conhecedor desse espaço, tracei uma rota. Rota esta que muitas vezes foi adaptada, pois os anos de 2014 e 2015 foram marcados na Penha por constantes conflitos entre policiais da UPP e bandidos. O caminho mais curto para chegar ao meu destino, o Parque Ari Barroso, era um tanto peculiar. Moro na Rua 17, uma das ruas mais altas da Penha; próxima a minha casa tem um dos postos da UPP e no final dessa rua, ao descer toda a escadaria, chega-se a uma “boca de fumo” na rua conhecida como “Sacopã”. Desta rua até a Dicró são, aproximadamente, 20 minutos de caminhada. Antes da ocupação, o caminho parecia seguro e simples. O cenário foi mudando e a rota antes fixada passou a ser fluxo. Era necessário analisar todos os códigos que a favela oferecia. A favela funciona como uma espécie de organismo vivo. Ela possui movimentação, clima e respiração num ritmo reconhecido por seus moradores. Antes de ir para a Arena, nós, artistas da Vila Cruzeiro, procurávamos entender o clima para então traçar as rotas para chegar ao ponto de encontro – a sala de ensaio. Os enfrentamentos diários que marcaram nossos corpos jovens e negros afetaram diretamente todo o ambiente de trabalho e o processo de criação, seja na não possibilidade de chegar ao espaço pelos violentos confrontos ocorridos ou pelos traumas sofridos por nós quando éramos “surpreendidos” pelos conflitos durante o caminho. Járdila Baptista, atriz do Coletivo Bonobando, explicita, no relato a seguir: Agora me sinto um soldado corajoso obrigado a pisar em um campo minado sem saber o que fazer, sem saber o que vai acontecer, mas sabendo que iria morrer a qualquer momento. Esses

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sentimentos só percebi depois do exercício, porque me acostumei com tudo isso que aconteceu depois da invasão. 6

O Rio de Janeiro pode ser compreendido como sendo uma “cidade partida”7, ou seja, onde há uma segregação social marcada geograficamente pelas zonas em que o sujeito reside. Nós costumamos dizer que a cidade é partida para os moradores da Zona Sul, uma vez que nós da Zona Norte, em nossa esmagadora maioria, trabalhamos lá, estudamos lá, temos nosso lazer, seja nas praias ou nos grandes teatros, também lá. O movimento de circulação pelo território fora da zona em que se mora não se dá inversamente com tanta frequência. A Zona Sul se configurou como a principal área de desenvolvimento econômico da cidade a partir do século XX. Hoje, a Zona Sul é a área de maior valorização imobiliária, além da presença abundante de equipamentos urbanos e importantes sub-centros comerciais e de serviços (SILVA, 2010, p. 83).

Quando os moradores dessas áreas da cidade adentram o território do Complexo da Penha, na Zona Norte do Rio, todo o pensamento anteriormente estabelecido se inverte. Mais uma vez, a arte se encarrega de romper com essas barreiras construídas gerando novos encontros. Mais uma vez vemos a arte como facilitadora do processo de circulação pela cidade.

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Texto escrito a partir dos exercícios da oficina Deriva Etnográfica proposta por Thiago Florêncio durante o processo de residência.

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Título de um livro de Zuenir Ventura, publicado em 1994.

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BIBLIOGRAFIA ALCURE, Adriana Schneider. “Diálogos entre tradição e contemporaneidade no processo de criação de Jongo Mamulengo”. In: Urdimento, no 32, v.2, pp. 35-47, Florianópolis, 2018. ALCURE, Adriana Schneider & FLORÊNCIO, Thiago. “Procedimentos dramatúrgicos em Cidade Correria: Ocupações urgentes, corpos insurgentes”. In: O Percevejo Online, no.1, v.9, pp. 89-104, Rio de Janeiro, 2017. BALBINO, Natália de Oliveira. Linguagem, estética e política. Monografia. (graduação em Artes Cênicas) Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, p. 35, 2018. MAYUMI, Mariana. “A arte de (sobreviver) coletivamente: estudando a identidade do Grupo Galpão”. In: Rev. Adm (online), no 1, v.48, pp. 7-20, São Paulo, 2013. SILVA, Marta do Nascimento. A favela como expressão de conflitos no espaço urbano do Rio de Janeiro: o exemplo da Zona Sul carioca. Dissertação. (mestrado em Geografia). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2010.

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Museu das Remoções: performance de (re)existência Henrique S Bueno* O artigo apresenta uma análise da performatividade nos “relatos de si”, adotando como objeto de estudo uma visita guiada por um casal de moradores da Vila Autódromo (comunidade localizada no bairro da Barra da Tijuca, Rio de Janeiro/RJ) ao Museu das Remoções. O museu foi criado em 2016, após a remoção de mais de 700 famílias do local e a redução da comunidade a uma área 70% inferior. Com isso, partindo dos procedimentos utilizados pelo casal na apresentação dessa história de luta da Vila (desde sua construção até os dias atuais); e adotando como suporte conceitual os escritos de Schechner (2013) e Féral (2008) acerca da performance e da performatividade, busca-se observar as estratégias de autorrepresentação e as inserções de relatos de memória com o objetivo de investigar a visita como ato performático. Palavras-chave: relatos de si – performatividade – resistência

* Orientação: Gabriela Lírio.

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Museu das Remoções: performance de (re)existência

Vazio: uma torre envidraçada e um grande espaço de concreto se pretendem lápide e túmulo. Sob a inscrição Courtyard & Residence Inn by Marriot, o projeto de apagamento da comunidade da Vila Autódromo. A vila “reexiste”. Através dos olhares de Dona Penha e Seu Luís, a visita guiada ao Museu das Remoções da Vila Autódromo é a corporificação da resistência da comunidade. O relato do casal nos faz experimentar a Vila enquanto território de luta em uma sociedade que se opõe agressivamente à vida em favor do capital. É esta experiência que proponho como objeto para o estudo da “performatividade” nos “relatos de si”. A partir das conotações atribuídas por Schechner à performance (being, doing e showing doing1), Josette Féral (2008) desenvolve o conceito de performatividade: “Essa noção valoriza a ação em si, mais que seu valor de representação, no sentido mimético do termo” (FÉRAL, 2008, p. 193). Antes de iniciar a análise, entendo ser necessária uma breve apresentação da história da Vila Autódromo: a comunidade encontra-se localizada às margens da Lagoa de Marapendi, no bairro da Barra da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro. No fim da década de 1960, com a construção do autódromo da Barra, os trabalhadores que participaram das obras foram para o local e começaram o levante desta comunidade. No entanto, desde a década de 1990, ela começou a sofrer com tentativas de remoção pelo governo do estado. Nessa mesma década, com o acontecimento da Rio 92, a comunidade conseguiu a elaboração de um plano de urbanização e os moradores ganharam o título de posse de suas residências. Com isso, houve um período menos violento na luta travada entre o governo e a comunidade. No entanto, com a es1

Tradução livre: ser, fazer e mostrar o fazer.

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colha do Rio de Janeiro como sede das Olímpiadas e do Brasil como sede da Copa, no fim da primeira década dos anos 2000, a briga volta a criar novos contornos e a violência assume destaque neste cenário. A Vila, atualmente, ocupa menos de 30% da área que ocupava antigamente. Das 700 famílias que habitavam o local, hoje apenas 20 permanecem lá. E todas as casas foram removidas. Essas pessoas que lá permaneceram, receberam do governo novas moradias que formam a rua principal da comunidade. O que resultou também na perda dos títulos de posse que os moradores tinham, já que suas antigas residências não existem mais, e o governo não conferiu nenhum título de posse sobre as novas. Desta forma, essas pessoas vivem atualmente sob o iminente risco de despejo. O Museu das Remoções foi um plano elaborado em maio de 2016, em conjunto com museólogos e moradores da Vila, no qual se propunha a construção de um museu a céu aberto que servisse como símbolo, resistência e memória de luta. Os museólogos Joy Mendes, Alex Venâncio e Thainã de Medeiros sugeriram a criação de obras de arte através dos escombros da comunidade. Hoje, essas obras estão espalhadas pelo local que corresponde à área da Vila Autódromo e algumas foram cedidas para o Museu Histórico Nacional. É importante ressaltar, no entanto, que o Museu não se restringe às obras de arte criadas, mas é também a exposição do próprio local da Vila, suas ruínas e memórias. A visita guiada, objeto deste estudo, foi realizada em março de 2018 como proposta da disciplina “Performance no Museu”, oferecida pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da UFRJ e ministrada pela professora Gabriela Lírio no Museu de Arte do Rio (MAR). Na ocasião, Natália Macena, a filha do casal de moradores que nos guiou pelo lugar, estava cursando a disciplina conosco. Com isso, a turma combinou 39


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um ponto de encontro para que juntos chegássemos a estação de BRT Parque Olímpico, que fica próxima à comunidade. Quando lá chegamos, a primeira impressão é que estávamos em uma cidade-fantasma. Há pouquíssimas partes de natureza, e muito concreto. E, pelos arredores, não se via uma pessoa além de nós. No centro disso tudo, a torre envidraçada: o hotel ironicamente anunciado pelo site de hospedagens Booking.com como “localizado no badalado bairro da Barra da Tijuca”. E todo o concreto vazio ao redor, o estacionamento do hotel. Vazio. Saímos da estação e caminhamos por esse longo deserto de concreto. E, ao chegar à entrada, a primeira coisa em que reparei foi uma bandeira do Brasil. Rasgada. Logo em seguida, observei um painel que mostra o que era a Vila antigamente e o que se tornou hoje. A imagem estarrecedora nos faz perceber a brutal redução do espaço da Vila para a transformação do local no vazio em que estávamos. Continuamos nossa caminhada até a Igreja Católica da Vila Autódromo (que foi uma das principais bases para a luta dos moradores), onde encontraríamos Seu Luís e Dona Penha. Enquanto andávamos, reparei nos blocos de concreto brancos e padronizados: as casas da comunidade. Todas numa mesma rua, com o mesmo tamanho. E um pequeno quintal ao redor. A igreja, por outro lado, ficava na rua de trás e é uma das poucas construções que sobreviveu às remoções. Na igreja, fomos apresentados ao casal que nos ofereceu café e nos indicou que sentássemos nos bancos. Os dois começaram a apresentação do lugar: um longo relato sobre a história da Vila Autódromo, desde sua criação até a sua redução à rua com cerca de vinte casas que atualmente compõe a comunidade. Durante o relato, ambos se colocaram como agentes da ação, reafirmando todo o sentido de performatividade (ainda que se note a inexistência de qualquer sentido mimético). Eram corpos em ação. E estavam ali sendo, fazendo e mostran40


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do seus fazeres por meio das estratégias adotadas para a construção da narrativa. Como os dois só chegaram à comunidade cerca de 15 anos após seu levante, vemos que o início desse relato é feito basicamente a partir de fotos da comunidade à época de sua construção. A cronologia avança. A documentação trazida pelo casal passa a ser interferida pelos relatos de memória. As fotos, em sua maioria, são de lugares e ruas inexistentes no espaço geográfico atual; Seu Luís e Dona Penha passam, então, a interferir nas imagens com o objetivo de construir um novo mapa da Vila para os presentes. Tentam localizar dentro do espaço atual o que foi a Vila. Além disso, apresentam personagens que acompanham e compõem a narrativa. A forma como imagem e oralidade se atravessam no relato do casal é o que nos permite pensar sobre as estratégias de representação nos relatos de si, apontadas por Leonor Arfuch. Não se trata exatamente sobre a verdade do ocorrido, mas muito mais sobre “construção narrativa, os modos de (se) nomear no relato, o vaivém da vivência ou da lembrança, o ponto do olhar, o que se deixa na sombra” (ARFUCH, 2010, p. 124). Dona Penha e Seu Luis constroem o relato a partir de suas próprias vivências pessoais. Isso, obviamente, influencia as escolhas de narrativas adotadas pelos dois e a trajetória traçada pelo casal em sua fala. Há um certo distanciamento inicial, mas logo seus corpos aparecem nas imagens projetadas. Tornam-se personagens de seus próprios relatos. A experiência da visita se transforma completamente. Enquanto, antes, havia uma narrativa em tom informativo, agora, temos algo da esfera do testemunho e da memória. Quando se referem ao início dos anos 2000, é possível perceber que a memória traumática (presente desde o início do relato) se intensifica. Neste momento, a violência atravessa a narrativa oral para alcançar as imagens. A luta que antes se dava 41


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em um plano de debate político é substituída por um enfrentamento físico e bélico presentes no relato e na documentação que compõem a experiência do trauma da luta violenta e repressiva. E é também a partir deles que a luta se constrói, e se reconstrói no relato, presentificando-a: “Trauma, assim como performance, é sempre presente. Aqui. Agora.” (TAYLOR, 2009, p. 7) A brutalidade das imagens incomoda. No entanto, é por meio deste incômodo que a luta ganhou proporções internacionais e permitiu, àqueles que quisessem permanecer na comunidade, a resistência. Dona Penha é vista (por nós e por si própria) em imagens com o rosto todo ensanguentado após ter sido agredida pelas forças policiais do Estado. Nos vídeos, é possível assistir a diversas tentativas dos moradores, por vezes ineficazes, de se defenderem uns aos outros e interromperem a brutalidade com que a Guarda Municipal se colocou em confronto. Além disso, a violência não se deu somente de forma física. Eram praticadas violências psicológicas por parte do Governo. As ações consistiam em tentativas de separar as famílias e até o rompimento de tubulações de esgoto, deixando certos locais da Vila inabitáveis, obrigando os moradores a se retirarem de suas casas. Em um dos casos narrados pelo casal, o governo negociou com a esposa de um senhor que morava na Vila, e comprou apenas a metade da casa que cabia a ela. Tendo feito isso, eles demoliram apenas metade da casa, tornando-a inteiramente inútil. São estas imagens que finalizam o relato construído pelo casal. E é obviamente desconfortante. Impactante. No entanto, a forma como são apresentadas ao longo da narrativa é também o que proporciona a visita como experiência para além da espectação. Ademais, há que se atentar para a relevância da produção e reprodução das mesmas. É preciso lembrar seus contextos e sua funcionalidade. Em seu artigo Imagens extremas na cena contemporânea¸ Gabriela Lírio (2018) ressalta a metodo42


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logia de documentação de imagens e a necessidade de repensá-la em guerras de potência virtual. As imagens atuam como denúncias e são absolutamente relevantes nas lutas. No relato da Vila Autódromo, as imagens são denúncia e resistência. É preciso lembrar para não esquecer. Os corpos que ali estão nos recebendo operam neste mesmo sentido: são testemunho, resistência, “reexistência”. O Museu das Remoções não se limita a uma espacialidade geográfica e muito menos à exposição de obras de arte. Ele possui dimensões corporais. Humanas. Seus moradores são também museu: experimentação da luta para nós, os visitantes. É impossível sair do local inabalado e intocado pelo que se viveu ali. Ainda que não tenhamos sido nós os que se colocaram atrás de barricadas e em confronto com as forças truculentas do Estado. Memória não se remove.

BIBLIOGRAFIA ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico. Rio de Janeiro: EdUerj, 2010. BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo. Crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. São Paulo: Editora 34, 2017. FÉRAL, Josette. “Por uma poética da performatividade: o teatro performativo”. In. Sala Preta, no 8, pp. 191210, São Paulo, 2008. MONTEIRO, Gabriela Lírio Gurgel. “Imagens extremas na cena contemporânea”. In. Alea [online], no 2, vol.20, p. 257-268, Rio de Janeiro, 2018. SCHECHNER, Richard. Performance studies: an introduction. New York: Routledge, 2013. TAYLOR, Diana. “O trauma como performance de longa duração”. In: O Percevejo, no 1, vol.1, Rio de Janeiro, 2009.

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As articulações entre o teatro e o poder público Taís Sobrinho Trindade* O presente artigo consiste na segunda etapa da pesquisa “Arte e política em companhias teatrais”, integrante da pesquisa docente Arte e política: processos de criação e modos de produção, em que investigo os modos de produção dos trabalhadores de cultura, a partir das ações oferecidas pelo poder público, para entender como essas ofertas afetam o ofício dos artistas da cidade do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, analiso os novos modos de produção concebidos pelos trabalhadores em resposta a este momento crítico da atualidade. Descrevo e analiso minha experiência decorrente do acompanhamento das pré-conferências municipais de cultura, 3ª Conferência Municipal de Cultura (ambas iniciativas da Secretaria Municipal de Cultura) e do ciclo Outras Economias (iniciativa de coletivos de teatro). Palavras-chave: modos de produção – 3a Conferência Municipal de Cultura – Outras Economias

* Bolsista FAPERJ. Orientação: Adriana Schneider Alcure.

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As articulações entre o teatro e o poder público

Nesta etapa da pesquisa, examinei a 3a Conferência Municipal de Cultura1, realizada em junho deste ano. Além disso, também analisei Outras economias, um ciclo de conversas sobre economias solidárias, criativas e colaborativas, organizado por três coletivos: Teatro de Anônimo, Coletivo Bonobando e Grupo Pedras. Neste artigo, tentarei traçar um paralelo entre os dois eventos e entender como os artistas estão se empenhando em produzir neste crítico momento sócio-político. Antes da conferência, aconteceram as pré-conferências regionais de cultura (cinco, ao total), divididas em Áreas de Planejamento (AP’s), divisão político-administrativa usada para ampliar o alcance das ações e a participação da sociedade civil. Eu estive na pré-conferência da AP2 (área que inclui Grande Tijuca e Zona Sul), que aconteceu em Copacabana, na Sala Municipal Baden Powell, em maio. O objetivo das pré-conferências era escolher os pré-candidatos a Conselheiros Municipais de Cultura2 e dois delegados para participar da conferência, que teriam direito de votar em propostas e resoluções. Ao fim, havia 5 candidatos por linguagem artística (24 linguagens no total). Após estas etapas, aconteceu uma votação3 online para eleger os conselheiros. Algumas pessoas fizeram falas no palco do teatro. Entre elas, estavam a Subsecretária Municipal de Cultura, um representante da Comissão de Cultura da Alerj (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro), uma representante da Comissão de Cultura da Câmara Municipal e os organizado-

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Evento promovido pela Secretaria Municipal de Cultura, com objetivo de formular e avaliar as políticas culturais da cidade.

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O Conselho Municipal de Cultura é um órgão da Secretaria Municipal de Cultura, formado por membros do poder público e da sociedade civil, que atua propondo e aprovando ações relacionadas à cultura.

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Votação restrita aos eleitores cadastrados nas pré-conferências.

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res da pré-conferência. A Secretária Municipal de Cultura, Nilcemar Nogueira, não compareceu. Os discursos se deram em torno dos planos da conferência que, teoricamente, têm como objetivo criar o Sistema Municipal de Cultura4, propor uma revisão da Lei de Incentivo à Cultura (Lei do ISS) e elaborar o Fundo Municipal de Cultura5. Com essa experiência, entendi que os discursos dos representantes do poder público que insinuam uma vontade de participação da sociedade civil não são empregados na prática. Desde a configuração da pré-conferência, localizada num teatro com as luzes da plateia apagadas, passando pela explicação superficial e acelerada dos trâmites da conferência, até a má recepção dos organizadores e representantes da Secretaria aos protestos e dúvidas dos participantes: tudo indicava que não havia interesse do poder público em tornar os processos acessíveis a todos. Para elucidar a estruturação do poder público, Ulrich Brand discorre sobre o Estado como reprodutor da estrutura colonial capitalista: [...] a estruturação de um determinado aparelho estatal, de seus servidores, de seu orçamento e suas regras mostram como sua atenção está voltada mais para certos problemas (por exemplo, a propriedade privada ou a competitividade) e certos atores e interesses (das classes dominantes, dos homens, dos brancos) do que para outros. Isso significa que as políticas públicas 4

Processo de gestão de políticas públicas que deve contar com pelo menos 3 órgãos para ser efetivado: Conselho, Plano de Cultura e Fundo Municipal. Assim, é possível solicitar adesão ao Sistema Nacional de Cultura e requerer verbas para as instâncias federal e estadual para serem aplicadas em projetos culturais do Município.

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Órgão que lida com recursos destinados a projetos culturais e projetos do poder público.

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As articulações entre o teatro e o poder público

são parte de uma estrutura estatal classista e patriarcal, imperial e pós-colonial, que tem sua própria densidade e resiste às mudanças políticas (BRAND, 2016, p. 133).

Ainda em maio, fui ao Outras economias, um ciclo de debates sobre economia criativa, em que organizadores e expositores apresentaram ações e propostas transversais e autônomas de modo a criar outras formas de sociabilidade. Asier Ansorena6 e Graciela Hopstein7 foram os convidados deste encontro. Hopstein falou sobre a filantropia no Brasil. Ela traçou um panorama da cultura de doações no país e destacou a maneira pejorativa com que encaramos essas ações. Em sua fala, ela procurou retirar a negatividade que o conceito de filantropia carrega. Como coordenadora da Rede de Filantropia para Justiça Social, ela trabalha para que organizações da sociedade civil sejam contempladas com doações de diversas fontes. Ansorena apresentou a história, a expansão e a plataforma digital do Banco Palmas, banco comunitário fundado em 1998, localizado no bairro Conjunto Palmeira, na periferia de Fortaleza, Ceará. O banco foi criado a partir de uma articulação da comunidade que precisava resistir à força do mercado que expulsava os moradores durante o processo de urbanização. O objetivo era reorganizar a economia local, reativando a produção e o consumo locais. Ambas as propostas revelam uma participação efetiva da sociedade civil em suas ações. Elas são alternativas a mode6

Formado em Economia e Ciências Políticas pela Universidade de Michigan, em 2006. Em 2009, chegou ao Brasil para se juntar à equipe de microcrédito do Instituto Banco Palmas, o primeiro banco comunitário do Brasil.

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Doutora em Política Social. Professora e pesquisadora nas áreas de educação, metodologia de pesquisa, políticas públicas e movimentos sociais. Atualmente é coordenadora executiva da Rede de Filantropia para a Justiça Social e consultora associada ao GIP.

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los defasados que vêm sendo usados como meios principais de obtenção de recursos financeiros. Encontrar opções que não dependam exclusivamente de uma gestão política auxilia na continuidade dos projetos e no fortalecimento da democracia. Assim, as comunidades se organizam para agir em suas próprias localidades, se capacitam para receber o retorno de seus esforços e se preparam mais adequadamente para exigir as devidas ações do poder público. Os artistas queriam retirar daquele encontro ações concretas para colocar em prática em sua rede que contava com coletivos de teatro, artistas de circo, blocos de carnaval, ativistas, além da conexão com favelas e terreiros de candomblé. Os expositores os provocaram a pensar quais tipos de projetos poderiam atrair financiadores. Além disso, os artistas foram incentivados a pensar sobre como fazer um planejamento, de modo que o investimento tivesse retorno financeiro; como analisar a própria rede e perceber suas potências para atrair financiadores específicos; como multiplicar pequenas ações ganhando estabilidade; entre outras questões. Os expositores também não estimularam a criação de pessoas jurídicas, por conta dos custos, sugerindo a realização de projetos através de parcerias com instituições já existentes, que pudessem apoiar e fazer doações, colaborando também para o planejamento financeiro. Foi interessante notar o potencial dos feitos da sociedade civil, executados de maneira autônoma. Na área da cultura, é essencial que se encontrem diferentes modos de produção, já que estamos num momento de escassez de ofertas do poder público, de censura, de fechamento e precarização de espaços culturais. A 3a Conferência Municipal de Cultura aconteceu nos dias 4 e 5 de junho, no Imperator, no Méier. Eu não fui no primeiro dia. No segundo dia, pela manhã, minha orientadora me dis49


As articulações entre o teatro e o poder público

se que, devido à censura do prefeito Marcelo Crivella à mostra Corpos visíveis, haveria um ato no Méier que se deslocaria até a Conferência. O prefeito cancelou a programação da Arena Carioca Fernando Torres 4 dias antes de começar, alegando que o espetáculo O evangelho segundo Jesus, rainha do céu ofendia a consciência dos cristãos. Decidi me unir aos artistas prejudicados com a censura. Após a concentração, combinamos que iríamos até a conferência em grupos separados, sem chamar atenção e que, lá dentro, subiríamos no palco, ao sinal de um membro da mostra. Assim foi feito. Fomos convocados e interrompemos a conferência com palavras de ordem, cartazes e tambores. Na plateia, havia apoio e reprovação. O combinado era só sair do palco quando houvesse uma resposta satisfatória da Secretaria Municipal de Cultura. A secretária não estava lá. Este episódio me remete a uma colocação de Tatiana Roque, em seu cordel Erotismo e risco na política: Novas subjetividades entram na arena pública exigindo mais do que representação. Bem mais. Querem tornar visíveis suas trajetórias, seus corpos e suas marcas, silenciadas por tantos séculos. A intrusão desses elementos fissura os alicerces do espaço público e desestabiliza o próprio lugar do poder e da representação, pois esse lugar sempre se escondeu atrás de uma falsa neutralidade (ROQUE, 2018, p.1).

Finalmente, uma resolução: no dia seguinte, às 11h, haveria uma conversa entre a produção da mostra Corpos visíveis e a Secretaria Municipal de Cultura, a Comissão de Cultura da Câmara dos Vereadores e a Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, para de-

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finição dos rumos do evento e em qual espaço seria realizada a programação prevista para a Arena Carioca Fernando Torres. Porém, a Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual e a Secretaria Municipal de Cultura não compareceram à reunião. A parte censurada da mostra foi realizada na Fundição Progresso, na Lapa, onde o espetáculo foi apresentado, no dia 9 de junho. Precisamos frequentar e atuar nestes espaços conquistados pela sociedade civil junto ao público, por mais hostis que sejam, porque precisamos ser vistos e conquistar direitos. Ao mesmo tempo, precisamos criar outros modos de produção autônomos, solidários e democráticos, para sermos capazes de seguir concretizando ações artísticas e culturais.

BIBLIOGRAFIA BRAND, Ulrich. “Estado e políticas públicas: sobre os processos de transformação”. In: DILGER, Gerhard et al. (Orgs.). Descolonizar o imaginário: debates sobre pós-extrativismos e alternativas ao desenvolvimento.. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2016. Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura do Rio de Janeiro. Produtores culturais da Zona Sul e Tijuca participam de Pré-Conferência na Sala Baden Powell. 2018. <http://www.rio.rj.gov.br/web/smc/ exibeconteudo?id=7967848> Acesso em: 16/09/2018. ROQUE, Tatiana. Erotismo e risco na política. São Paulo: n-1 edições, 2018.

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Estratégias de representação em Laura de Fabricio Moser Daniella Fiaux* Este artigo é parte da pesquisa Autobiografia na cena contemporânea: tensionamentos entre o real e o ficcional, sob orientação da Profa. Dra. Gabriela Lírio. Objetivase compreender as “estratégias de representação” (ARFUCH, 2010) utilizadas no espetáculo Laura (2015/2018) de Fabricio Moser, que retrata a história de vida da avó do ator, assassinada por um ex-namorado quando ele tinha apenas nove meses de vida. Investigase aspectos tais como: atmosfera criada e sensorialidade, uso de objetos, bem como a relação com o espectador. Palavras-chave: autobiografia – estratégias de representação – cena contemporânea

* Bolsista PIBIC/UFRJ. Orientação Gabriela Lírio.

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Estratégias de representação em Laura de Fabricio Moser

Introdução No primeiro momento da pesquisa Autobiografia na cena contemporânea: tensionamentos entre o real e o ficcional, no ano passado, busquei compreender os conceitos teóricos fundamentais ao estudo da autobiografia. A metodologia partiu da leitura de materiais bibliográficos que abordam conceitos como autobiografia, autoficção, espaço biográfico, real/efeito de real, tensionamentos entre ficção e realidade e processos de criação. Paralelamente a isso, realizei um levantamento do material artístico com caráter autobiográfico produzido no Brasil. A partir disso, encontrei diversos artistas, companhias e espetáculos e delimitei o meu objeto de estudo: o espetáculo Laura de Fabricio Moser. Um breve panorama sobre autobiografia “DEFINIÇÃO: narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade”. (LEJEUNE, 2008, p. 14). Nos estudos sobre autobiografia, destaca-se a obra de Philippe Lejeune, O pacto autobiográfico, que defende a ideia de pacto do autor, ou seja, reforça que, para poder usar o termo, o autor, além de ser igual ao personagem e ao narrador, deve se prender apenas ao que for totalmente verdadeiro. Lejeune, com o avançar da pesquisa, percebe a fragilidade de tal pacto, uma vez que a autobiografia se refere a algo do passado, ou seja, ela chega por meio da memória. Sabemos que toda memória é revisitada e passível de reconstrução. Janaína Leite, atriz e doutoranda de Artes Cênicas da USP, em seu livro Autoescrituras performativas: do diário a cena, expõe uma visão interessante sobre a discussão do que é ou não autobiográfico: “Ao invés de tentar dizer o que é uma obra auto54


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biográfica, deixar que a obra diga o que ela é e pensar então que efeitos esse dizer produz no espectador, e que tipo de engajamento um exige em face do outro” (LEITE, 2014, p. 86). Ou seja, Leite propõe que ao analisar a obra, quem o faz esteja aberto à escuta. É assim que essa pesquisa busca entender o espetáculo Laura. A análise das estratégias de representação proporciona a escuta necessária que Janaína Leite propõe. O espetáculo Laura de Fabricio Moser Laura é sobre a avó do ator e idealizador do espetáculo Fabricio Moser, que foi assassinada por um ex-namorado. Moser tinha apenas nove meses de idade na época e, desde então, a morte de Laura tornou-se tabu para família, não sendo jamais abordada, tornando-se uma incógnita para o artista. Por esse motivo, para a montagem do espetáculo, Moser viajou até Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, para realizar uma vasta pesquisa sobre sua avó, recolhendo diversos materiais como cartas, fotos, vídeos, objetos, além de realizar entrevistas com parentes e vizinhos que vivenciaram a vida e/ou a morte de Laura. Moser trabalhou em outro espetáculo autobiográfico: Duo sobre desvios (2013/2017). A partir dele, percebeu o poder da autobiografia em cena, o impacto que o ato de falar de si tem em relação ao espectador. Dois fatores contribuíram para a decisão de criar o espetáculo: as descobertas do processo criativo de Duo sobre desvios e a vida e morte de sua avó, algo que o fascinava desde que, criança, encontrou o jornal antigo com a notícia do assassinato dela. Segundo ele, o processo se inicia no dia 10 de maio de 2014, data na qual ele consulta sua mãe sobre a possibilidade de encenar a biografia da avó Laura. O espetáculo estreia em 14 de agosto de 2015, no Parque das Ruínas, em Santa Teresa. Entre a decisão de encenar Laura e a estreia, Moser perde os pais em um trágico acidente de carro. 55


Estratégias de representação em Laura de Fabricio Moser

No processo de criação do trabalho, o artista contou com o olhar e a escuta de seis colaboradores que não possuíam uma função específica ou única, colaborando de forma múltipla e não hierarquizada: Ana Paula Brasil, Cadu Cinelli, Francisco Taunay, Gabriela Lírio, Nathália Mello e Rafael Cal. Criação da atmosfera: necessidade na condução do espetáculo A atmosfera que se cria em um espetáculo é de extrema importância para a percepção de um “efeito de real” (SANCHEZ, 2007, p. 32). Essa discussão, proposta por Sanchez, em Prácticas de lo real en la escena contemporanea, surge na análise do autor sobre a obra de Flaubert, que narra, com detalhes, os espaços de suas narrativas a fim de aproximar o leitor de sua história, causando nele uma sensação de real. Dentro de um ambiente teatral, os detalhamentos seriam todos os dispositivos disponíveis na cena. Em Laura, a atmosfera é muito bem conduzida a partir do uso dos objetos cênicos, dos cheiros e dos sons. Assim que adentramos o espaço, Moser nos convida a ver de perto alguns dos objetos disponibilizados na área cênica, como as fotos da família acompanhadas de uma breve introdução sobre cada familiar e onde estavam no momento da fotografia. Esse primeiro contato com o público é fundamental para a condução do espetáculo. Inicia-se ali uma atmosfera de interação e de diálogo com o espectador. O jogo começa e a plateia é convidada a jogar. A recepção que Fabricio Moser propõe funciona como uma preparação, pois, ao longo do espetáculo, os espectadores são requeridos a tomar algumas decisões sobre o andamento da peça. Em alguns espetáculos, quando a plateia é requerida de forma repentina, percebe-se um acanhamento dos espectadores. Quando o jogo com a plateia está dado des56


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de o início, cria-se a atmosfera necessária para a manutenção desse contato. Existem três momentos em que a plateia é convidada a escolher qual cena, dentre as três propostas por Fabricio Moser, gostaria de assistir; em determinado ponto da peça, o ator apresenta a certidão de óbito da avó, o jornal que ele encontrou quando criança e o inquérito policial. A plateia, então, deve escolher um desses três objetos para visualizar de perto. Outro momento semelhante é quando o artista disponibiliza três opções de cartas a serem lidas e a plateia novamente escolhe qual deseja ouvir. No terceiro momento, Fabricio Moser, agora travestido de Laura, pergunta à plateia os motivos da visita; “se estão querendo se benzer”, “ jogar tarô” ou “provar o famoso chá de barata”. Durante a entrevista que realizei com o artista, perguntei o porquê da opção de utilizar essa estrutura cênica. A resposta dele foi muito bonita. Disse-me que a estrutura é relativa à fragmentação da própria Laura. Ela é múltipla. O objetivo dessa estratégia é não permitir que a plateia saia do espetáculo com uma ideia fechada, mas que possa ter relances e sensações de quem foi essa mulher, mãe, avó, benzedeira, cartomante, dançarina. Segundo Desgranges, o preenchimento das lacunas pelo espectador transforma a fruição em ato de criação (DESGRANGES, 2000). Isso torna tudo muito mais interessante para o público. Durante o espetáculo, duas perguntas são realizadas em momentos distintos: “Alguém da plateia também perdeu um parente em algum acidente trágico e queira compartilhar?” e “O que há das nossas avós em nós?”. A plateia é convidada a responder a essas perguntas. Esse instante é muito delicado, pois está se pedindo para que algum espectador compartilhe algo íntimo com desconhecidos. Portanto, é extremamente 57


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importante a atmosfera criada, para que aquele ambiente deixe de ser hostil e passe a ser confiável. O público se sente confortável em compartilhar situações e pensamentos íntimos de sua vida, uma vez que Moser já compartilhou os dele. Esse momento é muito precioso em espetáculos autobiográficos, pois permite a associação do público com a história. Utilização dos objetos: a concretude na narrativa É relevante a utilização de objetos no espetáculo. A escolha de trazer objetos para cena passa pela ideia de tornar a história concreta. Sai do campo imagético da contação de história e da narrativa e transfere-se para o campo visual e tátil do objeto. Isso, portanto, aproxima o público à história, uma vez que dá concretude ao material verbal exposto. Um objeto marcante no espetáculo é o espelho emoldurado que era da avó Laura, depois passou para a mãe e em seguida para a irmã até chegar a Moser. Anteriormente, o espelho era um porta-retrato com uma antiga foto de sua avó e avô. Desde a descoberta desse objeto pelo artista, veio o interesse em levá-lo para cena. Moser e Nathalia Melo, uma de suas colaboradoras, realizaram uma sessão de fotos na Praia Vermelha para o material de divulgação do espetáculo e lá começaram a criar algumas imagens para fotografia, o que se transformou em uma partitura de movimentos, trabalhada em sala de ensaio, até, enfim, se tornar a coreografia que vemos no espetáculo. Sensorialidade: diálogos com o espectador Laura é um espetáculo bastante sensorial. Fabricio Moser propõe uma estética formada por diversos estímulos visuais (com vídeos e fotos), olfativos (cheiros que impregnam o ambiente), auditivos (trilha sonora) e táteis (toque na pele e nos 58


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objetos). Como estímulo olfativo, temos, por exemplo, o incenso “Palo Santo”. O artista utiliza, no início do espetáculo, essa essência para evocar a presença de sua avó. Em cena, ele acende o incenso e chama pelo nome Laura em uma espécie de ritual. Outros estímulos olfativos são o cheiro do café oferecido aos espectadores e o cheiro da bergamota, como o artista a chama. No Rio de Janeiro, chamamos de tangerina. Vó Laura gostava bastante dessa fruta e sempre ofertava para quem a visitava. Também é oferecida ao público que, ao aceitá-la e abri-la, sente o cheiro da fruta que preenche todo o ambiente. Como estímulo auditivo, podemos citar a trilha sonora do espetáculo, composta por várias músicas, entre elas Debaixo d’agua (agora), de Maria Bethânia, sobreposta a um som de água com o objetivo de evocar a sensação do mar da Praia Vermelha. Segundo Moser, em entrevista a mim concedida em 2018, seu objetivo, ao trazer todos esses elementos, é: Expandir a percepção do espectador através da experiência teatral. Provocar cheiros como ferramenta para evocar a capacidade de diálogo com a peça. Uma tentativa de explorar o máximo as questões da sensibilidade, do olhar, do toque, do cheiro.

Considerações finais A hipótese levantada é a de que espetáculos autobiográficos proporcionam o que Sanchez nomeia de “irrupção do real”. A atmosfera criada, os objetos, as fotos, os vídeos, os testemunhos através das cartas e entrevistas, a sensorialidade causam a sensação do real no espectador, por isso permitem uma boa identificação entre ator-espectador. Como espectadora de diversos trabalhos autobiográficos e, principalmente, como espectadora de Laura, percebo que o resultado alcançado nesses trabalhos se relaciona direta59


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mente com essa hipótese. Além disso, compartilhar algo íntimo estimula que os espectadores compartilhem suas biografias também. Para compartilhar, é preciso refletir e associar. O espetáculo Laura tem um resultado muito positivo nesse sentido.

BIBLIOGRAFIA: ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico. Dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: Eduerj, 2010. DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do espectador. São Paulo, Hucitec, 2003. LEITE, Janaína Fontes. Autoescrituras performativas: do diário a cena. São Paulo: Perspectiva, 2014. LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Organização: Jovita Maria Gerheim Noronha; tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. SÁNCHEZ, José Antonio. Prácticas de lo real en la escena contemporánea. Madri: Visor, 2007. SOLER, Marcos Marcelo. Teatro documentário: a pedagogia da não ficção. São Paulo: Hucitec, 2011.

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O barroco e o contemporâneo: considerações sobre o trágico Henrique S Bueno* Este trabalho propõe o estudo do trágico a partir da presença de uma estética barroca no contexto contemporâneo. Adotando-se como objetos a obra Hagoromo, do artista plástico Nuno Ramos; e o texto Descrição de imagem, de autoria de Heiner Müller, observa-se que o trânsito entre linguagens artísticas na obra de arte contemporânea impõe a inespecificidade. Esta característica se configura também pela não sobreposição de uma linguagem à outra. Não há como definir, nos casos dos objetos analisados, por exemplo, se se trata de pintura ou de escultura e de texto dramático ou conto, respectivamente. Desta forma, o que se propõe é traçar linhas identificadoras de analogias entre estas linguagens, verificando suas interpenetrações, admitindo-se a hipótese de que a estética contemporânea se insere no horizonte barroco. Palavras-chave: barroco – contemporaneidade – inespecificidade

* Bolsista PIBIC. Orientação: Carmem Gadelha.

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O barroco e o contemporâneo: considerações sobre o trágico

Uma profusão de linhas e cores: pintura abstrata, se observada a certa distância e adotando-se frontalidade em relação à obra. Deslocando-se a posição do observador, ele perceberá a desestruturação de todo o grafismo do quadro em uma escultura que parece saltar da tela. Tela? “Chapas de metal, tubos de metal, tecidos e tinta a óleo sobre madeira” (negrito meu)1: Hagoromo foi produzida em 2015 pelo artista plástico Nuno Ramos e, como em outros trabalhos de sua trajetória, pode-se testemunhar o rompimento das fronteiras convencionais entre pintura e escultura. Esse mesmo processo é apresentado por Heiner Müller em Descrição de imagem. Proposto como um texto dramático, rompe com todas as estruturas dramatúrgicas. Trata-se de um único parágrafo em poucas páginas, sem pontos, no qual há a verdadeira descrição de uma imagem, expondo-se, inclusive, todas as suas características “materiais”: a borda do papel ou um borrão não identificável, por exemplo. Além disso, o texto também problematiza o ponto de vista do próprio observador da imagem: não há uma formulação concreta sobre a cena representada, de forma que são mostradas especulações e possibilidades a respeito do desenho descrito. Apontamos, aqui, aspectos de tragicidade, a partir da presença de uma estética barroca no contexto contemporâneo, dada pelo trânsito entre as diversas linguagens artísticas. Tomemos, primeiramente, como paradigma, o modelo trágico apresentado por Nietzsche em Origem da tragédia (NIETZSCHE, 1982): Apolo e Dionísio se apresentam como figuras imanentes uma à outra. Elas se interpenetram e se repelem, contrariando dicotomias. A isto podemos associar o par forma e conteúdo. Não há como separá-los: um não existe sem o outro. 1

Ficha técnica da obra encontrada no site de Nuno Ramos: http:// www.nunoramos.com.br/portu/comercio.asp?flg_Lingua=1&cod_ Artista=115&cod_Serie=130. Acesso em 03 de outubro de 2018.

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Com isso, podemos ponderar a respeito da mimese. A modernidade não rompeu inteiramente com ela. As propostas realistas dão testemunho disso. A estética contemporânea radicaliza suas tensões com a mimese: investe na pura presença, embora também não alcance uma ausência completa de representação. Verificamos, constantemente, seu retorno. Se a pintura moderna busca, em sua composição, através das matérias tinta e tecido da tela, a representação de um outro externo, a pintura contemporânea aprofunda preocupações também com esta tinta e este tecido como conteúdo da obra. Sobressaem questões sobre a espessura da camada de tinta ou sobre a exposição do tecido de tela na própria composição. Assim, forma e conteúdo “colam-se”, com o mesmo grau de relevância, ao material de composição de uma obra artística. Diminui também o intervalo entre coisa representada e representação. No caso de Müller, portanto, acontece que, ao romper com a estrutura dramatúrgica tradicional, o texto apresenta a pretensão de coincidir com a própria cena, mas ele não consegue descolar-se completamente de sua espessura literária. Aqui é importante fazer uma breve distinção entre texto cênico e texto dramático: o primeiro, modernamente, dá-se como atribuição de um sentido ao segundo. Contemporaneamente, esta exigência se desfaz: não há, necessariamente, um registro escrito anterior. Portanto, vemos que, no caso de Descrição de imagem, apesar destas duas camadas subsistirem, seus estatutos são modificados. O rompimento com as estruturas tradicionais de um texto dramático propõe uma nova relação entre texto e cena. Diferentemente do que acontecia na modernidade, na qual a encenação se dava como mediação entre texto e cena, Müller pretende rechaçar esse caráter mediador. Então, o texto dramático passa a ser material cênico per se. Apresenta-se ali um sentido autorreferencial que surge justamente a partir do trânsito entre linguagens colocado nestas 63


O barroco e o contemporâneo: considerações sobre o trágico

obras (Descrição de imagem e Hagoromo). Não há como definir entre pintura e escultura ou dramaturgia e conto, sob o risco, inclusive, de não se ter nem uma coisa nem outra. É preciso aceitar que as obras permeiam universos diferentes. Não se consegue mais adotar uma narrativa-mestra para dizer que se trata de uma escultura com características pictóricas, ou de uma pintura com características escultóricas. E o mesmo ocorre no caso de Müller. Artur Danto, em Após o fim da arte, ressalta justamente que uma das marcas históricas do presente é a inaplicabilidade de qualquer narrativa-mestra (DANTO, 2006). Essas narrativas dizem respeito às especificidades de cada linguagem artística e sua história. Mas, convenhamos, não constituiria uma narrativa-mestra a aceitação de uma conjunção aditiva (e) posta entre pintura e escultura, por exemplo, no lugar de uma conjunção alternativa (ou)? Afinal, são diversas narrativas presentes no contexto de uma mesma obra, que não mais se colocam em fronteiras definidas. Há, na verdade, uma tensa justaposição. E estas linguagens se apresentam com forte caráter de incompletude, na obra. Com isso, tem-se como problema a representação. Não há mais uma escultura pretendendo representar algo, mas a linguagem escultórica-pictórica-dramatúrgica-cênica fazendo surgir, no lugar da representação, uma presença sempre incompleta. A partir dessas questões, portanto, aposta-se na forte característica barroca da arte contemporânea, considerando-se três temas: o mosaico benjaminiano, a alegoria e a simultaneidade. Em Origem do drama barroco alemão, Walter Benjamin (1984, p.17) utiliza a imagem do mosaico para explicitar que: O valor dos fragmentos de pensamento é tanto mais decisivo quanto menos imediata é a sua relação com a concepção de fundo, e desse valor depende o fulgor da representação, na mesma medida, em que o do mosaico depende da qualidade da pasta de vidro.

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Entendendo que esses “fragmentos de pensamento” constituem também as linguagens artísticas atuais, o que observamos na contemporaneidade é uma operação análoga, porém um tanto diferente do que diz Benjamin. No lugar do alargamento das mediações entre figura/fundo, texto/contexto, a obra de arte contemporânea traz consigo a compressão das camadas mediadoras. Na diminuição das distâncias, o texto pretende colar-se à cena; a escultura e a pintura atuam neste mesmo sentido, ao abordar como tema da obra as suas próprias materialidades. Quanto a isto, note-se que Benjamin chama atenção para a pasta de vidro. Agora, os materiais dão ensejo a um novo processo de alegorização, pretendendo-se, eles mesmos, personagens da obra, ao contrário das alegorias de Benjamin: A personificação alegórica sempre nos iludiu sobre este ponto: a sua função não é a de personificar o mundo das coisas, mas a de dar forma mais imponente às coisas, vestindo-as de personagens” (BENJAMIN, 1984, p. 199).

Atualmente, a tinta é tinta, mas também alegoria de si própria, acrescentando sua dimensão escultórica. O texto é texto, mas também cena alegórica de si mesmo. Há um jogo de espelhamento no qual imagem e reflexo se intercambiam e se confundem: pintura/escultura, texto dramático/texto cênico. Isso, portanto, reforça a hipótese de uma estética barroca na arte contemporânea. A obra compõe-se por elementos alegóricos. No entanto, este barroquismo contemporâneo extrapola o mosaico e a alegoria, vendo-se presente também no aspecto da simultaneidade das linguagens. Justamente a partir da coexistência de diversas formas artísticas numa mesma obra, percebemos um espraiamento das fronteiras que não nos deixa possibilidade de escolher 65


O barroco e o contemporâneo: considerações sobre o trágico

uma definição (ou narrativa) em detrimento de outra. Impõe-se a inespecificidade: Muito embora seja impossível dar uma resposta única a todas as possíveis formas de questionar a especificidade, as práticas analisadas neste ensaio articulam, na construção de uma inespecificidade que se constitui na retirada de todo sentido de pertencimento, outra forma de pensar esse potencial crítico da arte. Precisamente na ideia de um fruto estranho enquanto inespecífico – alguma coisa que não pertence nem se reconhece na espécie – pareceria estar esse potencial crítico (GARRAMUÑO, 2001, p. 10).

Com isto, podemos retomar o texto de Heiner Müller para arriscar a hipótese de que ele se apresenta como uma alegoria de qualquer obra de arte contemporânea. Cada imagem evocada pelo texto perde seu contorno no confronto com outras. A narrativa cede lugar a uma narratividade que tanto pode ser dramática quanto poética ou novelística. Importa a teatralidade que circula no ambiente cênico e não mais as virtualidades do texto escrito, postas em ato pela mediação do encenador. São narrativas em justaposição que se colocam como alegorias de si próprias, espraiam suas fronteiras e compõem um todo paradoxalmente incompleto e inespecífico. Processos semelhantes aos da obra de Nuno Ramos, a exemplo de Hagoromo.

BIBLIOGRAFIA BENJAMIN, Walter. O drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. DANTO, Artur. Após o fim da arte. São Paulo: EDUSP, 2006.

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GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. São Paulo: Record, 2001. MÜLLER, Heiner. Medeamaterial e outros textos. Tradução: Christine Roehrig e Marcos Renaux. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1993. ----. Guerra sem batalha: uma vida entre duas ditaduras. Tradução: Karola Zimber. São Paulo: Estação Liberdade, 1997. NIETZSCHE, F. A origem da tragédia. Lisboa: Guimarães Ed, 1982. ----. O caso Wagner: um problema para músicos/Nietzsche contra Wagner. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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Espectador pendular Camila Simonin* A pesquisa “Espectador pendular” está inserida no projeto Arte e política: processos de criação e modos de produção, que possui como proposta observar, no Brasil contemporâneo, a partir de estudos de caso, tanto as manifestações, discursos e debates políticos, quanto projetos artísticos, tendo como pressupostos de análise questões que perpassam as relações entre arte e política. Desenvolvida desde o primeiro semestre de 2017, a pesquisa Espectador pendular possui como tema o espaço ocupado pela arte. Dentre os inúmeros caminhos a que esse campo pode levar, decidi percorrer à pergunta “Como gerar um espaço de encontros entre espetáculo-espectador?”. Para isso, foram selecionados autores urbanistas, dramaturgos, diretores e professores como compositores da base teórica deste estudo. O objetivo da pesquisa é tentar entender melhor o espaço que existe entre quem faz e quem vê teatro, partindo do pressuposto de que reunir pessoas é um de seus sentidos primordiais. Palavras-chave: espectador pendular – espaço – palco/plateia

* Orientação: Adriana Schneider.

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A partir da pergunta “Como gerar um espaço de encontros entre espetáculo-espectador?”, a pesquisa Espectador pendular percorreu três linhas de abordagem: a crise do espectador em relação à cidade; o estudo de uma plateia ativa; o espectador pendular: pesquisa de uma poética a partir da tríade atuante-espaço-espectador. Neste sentido, percebi também a necessidade de falar sobre o espaço em termos de “localização”, isto é, a relação do teatro carioca com a cidade do Rio de Janeiro e seus espectadores, em termos de “espacialidade”, ou seja, como esses fenômenos urbanos se refletem no aparato teatral. Primeiramente, percorri, então, a crise do espectador no Rio de Janeiro. Segundo a urbanista Paola Berenstein Jacques (2010), atualmente, nas grandes cidades do Brasil, ocorrem “projetos de revitalização” voltados para a espetacularização dos espaços públicos. Esses projetos consistem em transformar áreas populares e informais da cidade em zonas pautadas por uma lógica espetacular – isto é, criação de imagens e construção de consensos urbanos. São, portanto, os projetos pacificadores, espetaculares e homogeneizadores. Cabe ainda uma ressalva ao termo “revitalização” como tentativa de dar uma nova vida – partindo da ideia de um espaço previamente “morto”. A autora se utiliza ainda do conceito, elaborado por Milton Santos, de “zonas opacas”, ao se referir às regiões periféricas da cidade em oposição às “zonas iluminadas/luminosas”, que tratariam das regiões “mais centrais”. Desta forma, é preciso entender esses ambientes opacos como espaços que sofrem uma tentativa de ocultamento, de redução ou eliminação. São os espaços que geralmente são ordenados, asseptizados e gentrificados – em outras palavras, que sofrem tentativas de espetacularização. Neste sentido, me questiono se esse processo também poderia ser transportado para o edifício teatral e os espaços da cena: existiria um projeto de revitalização em curso – pacifi70


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cador, espetacular e homogeneizador – para o teatro? Ao delimitar o espaço de luz ao espaço do palco, estaríamos também objetivando o silenciamento/ordenação da plateia? Estaremos aqui, portanto, tratando de espaços “pacificados” e sem conflitos entre espetáculo-espectador, sem dissensos. Como pesquisa de campo inicial, realizei entrevistas com diretores e espectadores, tentando entender quais seriam, então, os deslocamentos realizados por quem vê teatro no Rio de Janeiro, a relação dos artistas com os espectadores da cidade, se há, no ramo, o compartilhamento da ideia de um público-alvo ou não etc. Coloco, dentre as conversas feitas, um destaque para a entrevista com Fernando Maatz, diretor do projeto “Teatro do Saara”, que ocorreu na metade do ano de 2017. Projeto este que partiu não de uma temática, mas de uma localização na cidade, o mercado popular conhecido como Saara, que compreende vários quarteirões no Centro do Rio de Janeiro. A partir das questões suscitadas pela localidade, a produção definiu os horários das apresentações, o valor do ingresso, o tempo de duração dos espetáculos e as estratégias de divulgação. O espaço, que foi aberto no dia 13 de março no Largo de São Francisco de Paula, ofereceu então peças de 25 minutos, com horários às 12h, 13h e 14h, de segunda a sexta, divulgados, além das formas tradicionais, por um homem com megafone e placas na rua. O desafio do grupo era tentar atingir novos públicos, desconstruir um modo de fazer teatro, segundo Maatz1, ensimesmado, que dialoga mais consigo mesmo do que com outros públicos. O Saara é todo mundo: escritórios, os trabalhadores da região, velhinhos que andam pelo Centro, pessoas em situação de rua. 1

Entrevista realizada em abril de 2017, no Largo Francisco de Paula, Centro do Rio de Janeiro.

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Espectador pendular

Aqui, percebe-se também o questionamento da ideia de que os espectadores experimentam um espetáculo da mesma forma, como se houvesse uma homogeneização das sensibilidades, que impedisse o entendimento de uma plateia ativa. Para a segunda etapa da pesquisa, parti então para o estudo dessa “ativação da plateia”, termo possivelmente pretensioso, que trataria, sobretudo, do estudo do Espectador emancipado, noção desenvolvida por Jacques Rancière (2008). Para o autor, não existe uma obra de arte que não se relacione com um espectador. Porém, a ideia de um teatro sem espectadores não significa um teatro vazio, mas um espaço de corpos em movimento diante de corpos vivos ainda por mobilizar. [...] precisamos de outro teatro, um teatro sem espectadores: não um teatro diante de assentos vazios, mas um teatro no qual a relação óptica passiva implicada pela própria palavra seja submetida a outra relação, a relação implicada em outra palavra, a palavra que designa o que é produzido em cena, o drama. Drama quer dizer ação. O teatro é o lugar onde uma ação é levada à sua consecução por corpos em movimento diante de corpos vivos por mobilizar (RANCIÈRE, 2008, p. 9).

Desta ideia, surgem dois tipos de espectadores que estariam vinculados a uma plateia detentora de um poder ativo. O primeiro espectador quebraria as fronteiras espessas entre palco e plateia e invadiria o espaço da cena, sendo tomado pelas energias vitais que dela emanam. Ele se moveria a partir do que ali comunga. O segundo tipo de espectador também abdicaria da posição de mero receptor, que se encanta com o que vê. No entanto, ele não se aproxima da cena, mas se afasta, estranhando o que é dado e procurando entender o fenômeno e suas causas. Porém, para Rancière, o espectador emancipado não estaria necessariamente associado à sua posição na cena, nem às poéti72


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cas de Brecht, ao se distanciar, por exemplo; nem às de Artaud, ao perder toda e qualquer distância. Ainda que ambos possuam poéticas que pensam os espectadores, para Rancière, o espectador já seria emancipado, porque sua relação com a obra de arte está sempre conectada às suas próprias experiências e vivências, portanto o exercício político possível seria compreender a equivalência entre as inteligências. O autor não teria controle sobre a recepção de sua obra, que só existirá de fato com a presença do espectador. Assim, iniciei a terceira etapa da pesquisa, estudando as poéticas dos dois autores citados, ao que me deparei com uma imagem proposta por Brecht: As oscilações surpreenderam-no, como se jamais tivesse esperado que fossem dessa forma, como se não entendesse nada do que se estava passando; foi assim que descobriu a lei do pêndulo. O teatro, com as suas reproduções do convívio humano, tem de suscitar no público uma visão semelhante, visão que é tão difícil quanto fecunda (BRECHT, 2005, p. 117).

Ao propor a imagem do pêndulo, no entanto, Brecht parece ignorar o seu retorno à cena. Comecei a me interessar, então, por uma poética que procura não só confrontar o público com a temática, mas deslocar o espectador em posição passiva para um estranhamento da situação em que vive e fornecer a ele uma possibilidade de ativamente interagir e atuar frente ao problema apresentado. Para isso, o espetáculo, dentro do aparato de espacialidade à italiana, habitual de teatro, criaria, portanto, dinâmicas de deslocamento do espectador, tratado como um pêndulo, que mergulha e emerge da cena – este sujeito é chamado aqui de “espectador pendular”. Dessa forma, para que o espectador experimente o movimento de mergulhar e emergir da cena, é preciso retirá-lo de 73


Espectador pendular

seu conforto, não somente por meio da temática e das ideias apresentadas em cena, mas fisicamente movê-lo. Invadir a plateia com a cena. Invadir a cena com “gente que assiste”. Às vezes, é preciso que o confronto seja a um palmo de distância, às vezes é preciso olhar de longe. Neste sentido, utilizo-me do pêndulo como metáfora para o movimento desse grupo de espectadores – não todos de uma vez –, que mergulha na cena e depois retorna, desconfortável, para seus assentos. Neste sentido, no primeiro semestre de 2018, realizei – como estudo de caso – o espetáculo Revolução na América do Sul, montagem realizada para a disciplina obrigatória intitulada “Direção VI”, do curso de graduação em Direção Teatral, que consiste em apresentar um espetáculo a partir de um texto teatral com duração de 60 minutos. A peça escolhida é de autoria do dramaturgo e pensador Augusto Boal, escrita em 1961 no “Seminário de Dramaturgia”, um evento coordenado por Boal e criado em 1958 como meio de apontar novos pontos de vista não só dramatúrgicos como também políticos. Com influências marcadamente brechtianas e considerada pelo autor Anderson Zanetti (2016) como “um teatro épico feito à brasileira”, a peça carrega elementos hiperbólicos e da farsa – além de pesquisas nos campos do circo e revista –, como lente de aumento para acentuar os traços de verdade implícitos na trama, além do uso de músicas e uma certa anarquia nos elementos cênicos. Desta forma, era um dos grande desafios desse projeto encontrar, nessa dramaturgia “épica à brasileira”, momentos de inserção do espectador e de uma relação imersiva com a trama ali desenvolvida. Em análise ao espetáculo levantado, a montagem foi capaz de oferecer novos pontos de vista para a cena criada, além de colocar o espectador como atuante de forma progressiva ao longo do espetáculo. Assim, começava-se vendo de dentro da cena, depois interagia-se timidamente com o que ali era desenvolvido, invadia-se a plateia com cena, criava-se coro com 74


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o espectador, até, enfim, pedir a colaboração do espectador na cena como um dos atuantes da imagem final. Criou-se, portanto, com a plateia, um movimento de ir e vir – pendular – ao longo da trama, além da criação de novos espaços de cena em espaços antes “considerados mortos” na sala teatral, que afastava e aproximava o espectador do que lhe era apresentado. Encerro, por fim, com a citação de Silvia Fernandes, que coloca em questão o deslocamento, ainda como maneira de traçar relações entre realidade e ficção. Ou seja, de que maneiras a estética teatral coloca em jogo hoje a obra assistida e as respostas que como cidadã devo tomar em relação à narrativa que me foi apresentada, o que realizo na cidade com o que foi colocado na sala teatral. É no vai-e-vem dessas polaridades que se estrutura a percepção do espectador desse novo teatro, colocado na posição instável de responder esteticamente ao que se passa em cena, como se assistisse a uma ficção teatral e, ao mesmo tempo, fosse obrigado a reagir a ações extremas, reais, que exigem dele uma resposta moral (FERNANDES, 2013, p. 57).

BIBLIOGRAFIA ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Max Limonad, 1984. -----. Linguagem e vida. São Paulo: Perspectiva, 2014. BRECHT, Bertold. Estudos sobre o teatro. Nova Fronteira, 2005 [1978]. BRITTO, Fabiana Dultra & JACQUES, Paola Berenstein. Corpocidade: debates, ações e articulações. Salvador: Edufba, 2010. FERNANDES, Silvia. Teatralidades contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2013.

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Espectador pendular

GUÉNOUN, Denis. A exibição das palavras: uma idéia (política) do teatro; tradução Fátima Saadi. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003. RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012. SINISTERRA, José Sanchis. “Dramaturgia da recepção”. In: Folhetim, v. 13. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2002. ZANETTI, Anderson. “De Nova Iorque ao Teatro de Arena de São Paulo – alguns encontros e desencontros de Augusto Boal com o teatro de Bertold Brecht”. In: Pitágoras 500, no 10, v. 2, p. 31-40. Campinas, 2016.

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Novas experiências do LEP Arnon Segal Hochman* O artigo apresenta três novos projetos que o Laboratório de Estética e Política (LEP) encaminha em 2018, ao lado do já existente trabalho com refugiados e solicitantes de refúgio. Os projetos, em desenvolvimento, se interconectam entre si e com as outras atividades do laboratório. Trata-se de um laboratório de Teatro do Oprimido visando a discutir questões de gênero, tendo como bases teóricas as teorias feministas clássicas e contemporâneas e a metodologia desenvolvida durante os últimos dez anos no Laboratório Madalena (Teatro das Oprimidas). O atual desenvolvimento consiste em uma abordagem interseccional, sob uma perspectiva que fuja ao binarismo; consiste, ainda, de um laboratório de Teatro do Oprimido para processos educativos, trabalhando com professores, alunos e demais participantes de comunidades de aprendizado. Finalmente, uma equipe de audiovisual, focada em documentar as atividades do LEP e inventar metodologias para destacar esta materialidade como função criativa dentro da Estética do Oprimido. Palavras-chave: Teatro do Oprimido – audiovisual – gênero

* Bolsista PIBIAC/UFRJ. Orientação: Alessandra Vannucci.

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Novas experiências do LEP

O Laboratório de Estética e Política segue em aproximação constante do seu lugar necessário na extensão universitária. Sua metodologia-base, o Teatro do Oprimido, criada por Augusto Boal a partir da década de 1970, é aplicada por milhões de pessoas nos cinco continentes como ferramenta de luta e transformação dos cenários sociais. Destaca-se no panorama mundial das artes por ser inclusiva, acessível a qualquer pessoa sem pré-requisito e sem financiamento, em evolução permanente e heterodoxa, pois, nas intenções de Boal, não ficaria vinculada ao fazer de seu mestre como a um modelo único. Pelo contrário, desenvolveria uma rede de variantes a partir da experimentação prática em cada ambiente na qual fosse introduzida como modo não-violento de luta e resistência. Faz-se essencial que esse espírito permeie não apenas o conteúdo, mas também as formas de organização do Laboratório. Busca-se a difusão dos meios de produção teatrais e artísticos, não podendo fechar-se apenas à comunidade acadêmica. Neste movimento, três novas experiências vêm-se consolidando: um laboratório de gênero, um laboratório de processos educativos e uma equipe de audiovisual. O laboratório de gênero parte necessariamente dos passos já trilhados pelos Laboratórios Madalenas – Teatro das Oprimidas, experiência iniciada pela nossa orientadora há dez anos, de relevância internacional na definição de metodologias de luta contra a violência de gênero no âmbito do Teatro do Oprimido. Em termos teóricos, parte-se tanto da teoria feminista clássica como de pensadoras contemporâneas do tema. Não seria possível, a qualquer proposta que fale sobre gênero, negar a vanguarda do feminismo e, neste caso especificamente, das Madalenas, que se pensam como laboratório estético-político de mulheres cis para mulheres cis. Não se trata, portanto, de julgar tais experiências superadas ou se opor à sua ainda atual necessidade de existência e de luta. O atual laboratório, 78


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no entanto, trilha direção complementar e distinta, buscando se desprender do binarismo e hospedar discussões também importantes como corpos diversos, a masculinidade hegemônica e a criação de masculinidades não tóxicas, transexualidades e não-binariedades, além da possibilidade de se discutir gênero sob perspectivas mais gerais e não necessariamente atribuídas ao masculino ou ao feminino diretamente. Cabe dizer que a nossa tentativa de encontrar alternativas na abordagem desta questão não é isolada. Mesmo dentro do Teatro do Oprimido (TO) se questionam quais novas metodologias podem acolher indivíduos “trans” que se reconhecem socialmente como mulheres e participam do Laboratório Madalenas, como publicado recentemente através de atas de discussões pelas Madalenas da Guatemala. Assim, cartografando territórios ainda inexplorados, as experiências do LEP colaboram para construir um campo urgente de debate e inovação do TO. Até o momento realizamos um trabalho de catalogação de material bibliográfico, seminários de leitura orientados pelos bolsistas pesquisadores com os extensionistas do LEP. Reuniões de criação da metodologia estético-política e oficinas abertas ao público, de aplicação de algumas dessas novas propostas, acontecem semanalmente na ECO e em fins de semana intensivos em outros espaços da cidade. O laboratório de processos educativos surge da demanda e trabalho final de um estudante de Letras da UFRJ, inscrito na matéria “Legado de Augusto Boal” (oferecida pela orientadora), no semestre de 2017.2. É importante ressaltar que não se trata de um projeto estruturado verticalmente pela orientadora ou bolsistas e meramente acatado pelos demais. Ao abrir espaço para que projetos de todo e qualquer participante se desenvolvam, o laboratório se caracteriza como plataforma propulsora dentro da área que se propõe. Assim, também neste caso, o LEP manifesta em sua forma de organização o empodera79


Novas experiências do LEP

mento sobre os meios de produção artístico-políticos pretendidos por Boal. A proposta trazida é de buscar formas de usar o Teatro do Oprimido para discutir questões dentro de todas as possibilidades relacionais em meio educativo. Assim, discute-se a relação professor-aluno, mas também relações entre professores e entre alunos, com funcionários, pais e comunidade acadêmica, Governo, etc. O projeto reaproxima o TO de suas origens na Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire (1974), enfocando a educação como prática política essencial, sobretudo na sua percepção dúplice, infra e superestrutural. Em termos metodológicos, o arsenal do TO é trazido como ferramenta para discutir a educação e suas relações, mas é também, imediatamente, multiplicado à comunidade pedagógica envolvida, permitindo que docentes e discentes se apropriem das técnicas para desenvolver processos autônomos. Esta iniciativa do LEP é recente e passa atualmente pela fase de desenvolvimento metodológico, focando atender convite que, através da oficina de refugiados e solicitantes de refúgio, o LEP recebeu para apresentar a peça de teatro-fórum Uma odisseia na Escola Municipal Ruy Barbosa, em Duque de Caxias. Na reunião em que estivemos com a escola, a plataforma colaborativa agenciou um debate articulado pelos responsáveis das diversas oficinas (pedagógica e de refúgio), expandindo então a proposta para além do primeiro convite (simplesmente apresentar a peça). A interconexão entre os diversos projetos que o LEP desenvolve é fundamental e reveladora, pois a interseccionalidade tem impacto político. Refugiadas e refugiados também fazem parte de comunidades de aprendizagem; alunos e professores também sofrem opressões de gênero e se posicionam em um mundo violento, que exclui diversidades e multiplica barreiras de nacionalidade, raça, gênero; cidadãos, quaisquer que sejam 80


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suas identidades de nacionalidade e de gênero, também são, em alguma instância, refugiados da própria falta de direitos. Finalmente, o LEP formaliza e amplia sua prática já constante de documentação em audiovisual através da criação de uma equipe específica para isso. A presença de extensionistas da habilitação em audiovisual não é fortuita, já que nossa orientadora atua também nesta área formativa. Nosso objetivo é mais do que simplesmente fazer do vídeo uma forma de documentação acessória ao teatro, mas aproveitar as potências específicas desta materialidade. Ainda que partindo de práticas performativas, o audiovisual pode se consolidar como obra autônoma e que tenha vida própria. Na mesma medida, documentar e fabular sobre o processo revela que ele é também objeto artístico, sobretudo em se tratando de Teatro do Oprimido. O TO embasa sua ação no uso do teatro e das artes como ferramentas de diálogo, provocando a sua ampla apropriação como direito e meios de comunicação, debate e construção de cidadania, áreas eminentemente inacabadas. Nas palavras de Boal, cidadão não é aquele que vive na cidade, mas aquele que a transforma. Assim, não existe e não poderia existir um resultado final ideal esperado da prática cidadã, pelo contrário, a cidadania só existe em processo. Se o processo é então o que se busca – assim como para Foucault a possibilidade discursiva não é apenas aquilo com que se luta, mas aquilo pelo que se luta – ele se torna, ainda que inacabado, objeto de interesse autônomo e independente de seu resultado último. Ademais, o registro audiovisual permite que o processo seja aberto, conhecido, analisado e descoberto mesmo por aqueles que ainda não tenham tido contato com o TO. O processo revela os erros e os entraves, revela as dificuldades e as estratégias. Diferentemente de um produto final que esconde suas fraquezas, alienando, o processo tido como obra 81


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se apresenta como aproximação, como mostra da possibilidade do fazer, do passo a passo coletivo para o êxito. Mostra ao receptor que, mesmo sendo complicado o caminho, qualquer pessoa pode percorrê-lo sem possuir particulares capacidades, virtudes e sem ter que sofrer sacrifícios heroicos para isso. Entender o processo como tal dialoga diretamente com a forma como Boal, em suas publicações, abre sua metodologia para qualquer interessado em usá-la para transformar a sociedade e não simplesmente aceitá-la como ela é. O audiovisual, embora não tenha a dinâmica dialética do teatro, do ato presente e do encontro público, possui outras forças a explorar, sobretudo no que diz respeito ao seu potencial de difusão, seja em número de pessoas, seja no espaço e no tempo. Trata-se agora de explorar e criar o que será o “Audiovisual do Oprimido”.

BIBLIOGRAFIA BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. BOAL, Augusto. Jogos para atores e não atores. São Paulo: Cosac Naify, 2015. CONFORT, Maria. “Você sabe o que é masculinidade tóxica?”. In: Geledés, (Online). Disponível em: https:// www.geledes.org.br/voce-sabe-o-que-e-masculinidade-toxica/. Acesso em: 13/10/2018. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2014. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. VANNUCCI, Alessandra. Legados do Augusto Boal e novas formas de militância nas práticas artísticas contemporâneas. Projeto de curso de extensão. CNPq, chamada No 25/2015 Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas, 2015. VIEIRA, João. “Violência sem fim: homens apertam o gatilho, mas também são mortos pela masculinidade tóxica”. In: Hypeness, (Online). Disponível em: https://www.hypeness.com.br/2018/09/violencia-sem-fi -homens-apertam-o-gatilho-mas-tambem-sao-mortos-pela-masculinidade-toxica/. Acesso em: 13/10/2018.

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Uma odisseia em busca de direitos Daniel Cavalcanti Pimentel* Este artigo destaca alguns aspectos referentes ao processo de criação do espetáculo Uma odisseia, uma realização do Laboratório de Estética e Política (LEP) da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ). O espetáculo segue a metodologia do Teatro-Fórum, técnica que compõe o arsenal de jogos-exercícios do Teatro do Oprimido de Augusto Boal [1931-2009]. Ao acompanhar as etapas vividas pelo protagonista durante o seu processo de elegibilidade como solicitante de refúgio no Brasil contemporâneo, o espetáculo põe em questão não apenas o direito de refúgio, mas também o próprio conceito de cidadania, entendendo o teatro como dispositivo eficaz da praxis política. Palavras-chave: refúgio – cidadania – Teatro do Oprimido

* Orientação: Alessandra Vannucci.

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Uma odisseia em busca de direitos

Em língua grega, Ulisses quer dizer ninguém. Mas eu sou alguém. (Uma odisseia, 2018).

O texto em epígrafe registra as palavras do protagonista do espetáculo Uma odisseia e dão início à cena que representa a sua entrevista de elegibilidade com o oficial do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE). Era a hora de justificar sua condição de refugiado, respondendo a uma série de perguntas sobre o seu país de origem, o motivo de ter saído de lá e as razões de não poder retornar. As respostas são reduzidas a termo e enviadas para os seus julgadores, representantes do Estado e da sociedade civil que decidem, à distância e com base na lei, se um solicitante de refúgio pode ou não ser considerado definitivamente como refugiado no Brasil. A cena descrita é baseada na estrutura legal do processo de elegibilidade, previsto na lei 9.474/1997, conhecida como “Estatuto do Refugiado”. Apesar do senso-comum entender a realidade de um “refugiado” como sendo igual à de um “solicitante de refúgio”, na prática cotidiana são realidades de vidas bastante diferentes. O primeiro já passou pelo devido processo e pode residir por tempo indeterminado com os mesmos direitos de um estrangeiro regular. O segundo, por sua vez, apesar de ter alguns direitos garantidos, ainda precisa ter sua condição de refugiado aprovada. Atualmente, no Brasil, os dados oficiais sugerem mais de 80 mil solicitantes de refúgio, convivendo com cerca de 5 mil refugiados1. A escolha do título como uma referência à epopeia grega atribuída ao poeta Homero não é por acaso. A saga reple1

O Brasil tem 86 mil estrangeiros aguardando resposta sobre refúgio e 14 funcionários para avaliar pedidos. Disponível em https://g1.globo.com/ mundo/noticia/brasil-tem-86-mil-estrangeiros-aguardando-resposta-sobrerefugio-e-14-funcionarios-para-avaliar-pedidos.ghtml. Último acesso em 18/10/2018.

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ta de obstáculos vivida pelo protagonista Ulisses, tentando retornar à sua ilha, após o fim da Guerra de Troia, ilumina alguns aspectos da vida de uma pessoa refugiada. O hábito de “relatar a si mesmo”, fenômeno tratado por Butler (2015) sobre a construção de uma narrativa autobiográfica e não-espontânea, criado a partir de uma requisição autoritária; os vícios da burocracia institucionalizada confirmados por Facundo (2017); a relação por vezes problemática com as organizações de proteção descrita por Harrel-Bond (1986); o processo comum de “desistoricização”, analisado por Malkki (1996), responsável pela anulação da subjetividade etc. são apenas alguns exemplos que nos remetem à trajetória do protagonista homérico. Assim como Ulisses, que não consegue encontrar o caminho de volta para o seu lar, um solicitante de refúgio no Brasil de hoje parece não conseguir nunca se encontrar com a Lei. A estreia do espetáculo ocorreu em junho de 2018 na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, como etapa do processo criativo da oficina estético-política com pessoas refugiadas e solicitantes de refúgio, uma atividade de extensão universitária realizada pelo Laborátório de Estética e Política da Escola de Comunicação da UFRJ. O projeto que idealizou a oficina é de minha autoria e foi escrito incialmente como trabalho final da disciplina eletiva “Legado de Augusto Boal”, oferecida no primeiro semestre de 2017 pelo curso de Direção Teatral da UFRJ e ministrada pela Professora Alessandra Vannucci. Os caminhos que me conduziram até aqui são repletos de encontros. Atualmente, estou matriculado no penúltimo ano do curso de Direito da UFRJ. Em 2017, meu desejo era solicitar a transferência interna para o curso de Direção Teatral, da mesma Universidade. A disciplina “Legado” foi uma das duas que consegui cursar sem entraves burocráticos, como 85


Uma odisseia em busca de direitos

“Poéticas do Espetáculo I”, ministrada pela Professora Carmem Gadelha. Um semestre depois, cursando também “Ética no Teatro” com a Professora Gabriela Lírio, convenci-me de que não precisava mudar de curso. Lembro da tarde em que a Professora Alessandra me mostrou as vantagens que uma formação acadêmica transdisciplinar, sem fronteiras, poderia me oferecer. Destaco a percepção de que o teatro – assim como toda e qualquer expressão artística – deve refletir de maneira crítica a sociedade de seu tempo. Enfim, permiti a mim mesmo continuar em trânsito. No mesmo período, fui aprovado no Programa Institucional de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq), na Fundação Casa de Rui Barbosa. Atuando como Estagiário no Centro de Proteção aos Refugiados e Imigrantes (CEPRI) da Fundação, converso semanalmente sobre questões jurídicas, com pessoas que querem se regularizar diante da lei migratória brasileira. Apesar de angustiante, a decisão entre ser um advogado ou um diretor de teatro revelou ser menos radical na medida em que o trabalho foi sendo construído. Sem dúvidas, a estrutura da universidade pública, a orientação das professoras, o suporte de familiares e amigos, tudo aliado ao processo de trabalho como condutor da oficina e como ator em Uma odisseia foram fatores fundamentais para os resultados obtidos. Há muitos desafios que compõem a integração de uma pessoa estrangeira. Destacamos a visão de que sua presença representa uma ameaça ao bem-estar comum. Durante a aplicação do método, contudo, foi observado que tanto o refugiado, como o imigrante econômico e até mesmo o cidadão nacional brasileiro encontram barreiras semelhantes. Isso pode ser explicado pela formação da nação brasileira, descrita por Ribeiro (2015) e por Holston (2013). Este último caracteriza a cidadania brasileira como sendo “inclu86


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dentemente desigual” (HOLSTON, 2013, p.70). Ainda que a lei garanta os critérios extensivos ius soli e ius sanguini, as políticas públicas de participação popular foram historicamente excludentes. As repercussões na política migratória são evidentes, pois, apesar de o Brasil permitir a documentação quase imediata de um solicitante, não há garantia de pleno exercício da cidadania. Neste sentido, o nacionalismo alimenta uma ilusão de que há direitos garantidos para os seus compatriotas. Hannah Arendt (1996, p.119), em seu artigo intitulado Nós refugiados, afirma que: “Driven from country to country [refugees] represent the vanguard of their people – if they keep their identity”2. O pensamento da autora desconstrói a figura do refugiado como uma vítima permanente e indica que sua existência movimenta as engrenagens adormecidas do país acolhedor, no que diz respeito à garantia dos direitos civis, sociais e políticos. Assim, é possível entender que uma pessoa refugiada pode ter direitos iguais de cidadania e contribuir efetivamente para com a comunidade que a acolhe. Uma frase que resume bem esse entendimento e que direcionou os encontros da oficina é: “o lugar de onde eu vim não existe mais; o lugar para onde eu vou não existe ainda”. É justamente este estado permanente de construção do lugar presente que permite a criação de novos projetos de futuro em sociedade. Ampliar a categoria “refugiado” para sensibilizar aliados em potencial não exclui o fato de que a experiência de uma migração forçada tem demandas específicas. A equidade, defendida por Rui Barbosa, jurista brasileiro, recupera a máxi2

Em tradução livre para o português, “Em fuga de país em país, os refugiados representam a vanguarda dos seus povos – caso consigam manter sua identidade”.

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ma aristotélica sobre tratar os desiguais na medida das suas desigualdades3. Trata-se de uma fronteira importante no âmbito da lei, para garantir direitos. Ainda assim, dentro do território semântico do refúgio, existe um universo interseccional que não pode ser apagado. Ser um refugiado é diferente de ser uma refugiada, assim como ser de origem africana é diferente de ter nascido na América Latina. Questões de gênero, raça, classe etc. atravessam com frequência o universo do refúgio e mostram que não se pode ignorar a diversidade. Essas e outras questões deram origem ao espetáculo de teatro-fórum Uma odisseia. A técnica desenvolvida por Boal foi escolhida por melhor representar as opressões vividas por um sujeito refugiado no Brasil de hoje. Seguindo a metodologia do teatro-fórum, no primeiro ato, o espectador assiste; no segundo ato, ele assume sua condição participativa de espect-ator e escolhe uma cena para substitur o protagonista ou atuar como seu aliado para modificar a realidade de opressão apresentada. A técnica do teatro-fórum é jogada por grupos no Brasil e no mundo que militam a favor de ações sociais continuadas e práticas políticas de transformação4. Paralelamente, o trabalho evoluiu na medida em que as barreiras legais foram sendo constatadas. A maioria das opressões tem solução apenas na lei e, por isso, a aplicação do Teatro Legislativo surge como uma excelente alternativa. Trata-se de uma técnica em que:

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Note-se que Rui Barbosa defendeu em vida o direito ao voto de estrangeiros residentes no Brasil, na esfera municipal de poder. Atualmente, nenhum estrangeiro não-naturalizado pode gozar de direitos políticos. Por lei, fica restrito aos nacionais brasileiros definir, a partir da democracia representativa, políticas governamentais de proteção à essa população invisibilizada.

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Note-se que Augusto Boal viveu exilado durante boa parte de sua vida, quando desenvolveu a maioria das técnicas que hoje compõem o arsenal do Teatro do Oprimido.

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instala-se durante uma sessão de teatro-fórum, uma mesa de assessores jurídicos verdadeiros (exercendo sua função real naquele espaço liminar) que elabora propostas de lei a partir das intervenções de espect-atores no drama apresentado (VANNUCCI, 2017, p.245).

Foi bem sucedida quando aplicada durante o mandato legislativo de Boal como vereador no município do Rio de Janeiro. Sua condução faz parte da nossa próxima etapa, quando se pretende potencializar a parceria com a Fundação Casa de Rui Barbosa e sua estrutura de consultoria e pesquisa em Direito. O objetivo principal é permitir que a sociedade civil expresse seus anseios dentro da convenção teatral, tornando-a um meio de recuperar a importância do exercício democrático, diante de um cenário em que a própria democracia representativa, amparada na cidadania nacional, está em crise. Boal repetia que “cidadão não é aquele que vive em sociedade, mas aquele que é capaz de transformá-la”. Esperamos encontrar, dessa forma, alternativas de participação popular e valorização da res publica (“coisa pública” ou seja, bem comum) no Brasil. Embora frequentemente ameaçado, o sistema de governo que escolhemos para nós completa 130 anos em 2019.

BIBLIOGRAFIA ARENDT, Hannah. “We refugees”. In: ROBINSON, Marc (ed.). Altogether elsewhere – writers in exile. Boston/London: Faber and Faber, 1996. BOAL, Augusto. Jogos para atores e não atores. São Paulo: Cosac Naify, 2015. BOAL, Augusto. Teatro Legislativo: versão beta. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1996.

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BRASIL, Lei no 9.474 de 1997. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9474.htm Último acesso em 23/07/2018. BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo. Crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. FACUNDO, Angela. Êxodos, refúgios e exílios: colombianos no sul e sudeste do Brasil. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2017. HARRELL-BOND, B.E. Imposing AID: emergency assistence to refugees. New York: Oxford University Press, 1986. HOLSTON, James. Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. HOMERO. Odisséia. São Paulo: Nova Cultural, 2002. MALKKI, Liisa. “Speechless emissaries: refugees, humanitarianism, and dehistoricization”. In: Cultural Anthropology, n. 3, v. 11, p.377-404, 1996. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Global, 2015. VANNUCCI, Alessandra. “Legados de Boal. Novas formas de ativismo nas artes contemporâneas”. In: ZANETTI, Anderson et al. Boal, embaixador do teatro brasileiro. Rio de Janeiro: Mundo Contemporâneo, 2017.


Boal: nacional, popular, ou brasileiro? Augusto Melo Brandão* O trabalho procura refletir sobre a atualidade do teatro de Augusto Boal hoje, contrapondo a atuação do encenador no Teatro de Arena e no Teatro do Oprimido com textos de Mostaço (2016), Andrade (2014), Agamben (2014) e Vannucci (2017). Tem por metodologia a perspectiva fenomenológica da história e a valorização da trajetória individual do agente. Propõe que o Teatro do Oprimido seja pensado no contexto do Brasil da década de 1960, como aprofundamento das reflexões de Boal no Teatro de Arena, para recolocar discussões sobre arte, nação e povo na ordem do dia.

Palavras-chave: povo – nação – Teatro do Oprimido

* Bolsista PIBIC. Orientação: Alessandra Vannucci (Laboratório de Estética e Política).

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Boal: nacional, popular, ou brasileiro?

Em palestra para o CENACEN, Augusto Boal se apresenta ao público com uma ressalva: “Fui apresentado como diretor internacional. Quero dizer que eu nasci na Penha Circular, Rio de Janeiro, Zona Norte (...). Quer dizer, eu sou bem brasileiro e tal”. É 1985, etapa final do processo de transição democrática. Boal começa sua fala fazendo uma retrospectiva crítica de sua atuação como integrante e articulador do Teatro de Arena de São Paulo, do CPC da UNE e da Feira Paulista de Opinião. É interessante perceber o incômodo do palestrante. Boal se ressente por ter sido apresentado como dramaturgo internacional e sente necessidade de se afirmar como “bem brasileiro”. Nesse sentido, Andrade (2014) destaca que, para além do exílio físico ao fugir do país, haveria um segundo exílio no reencontro de Boal com um Brasil “praticamente exilado de si mesmo” (ANDRADE, 2014, p. 25). Seu Teatro do Oprimido foi recebido no país como uma arte menor, permanecendo exilado dos palcos. Ao tratar do processo de abertura política, o historiador Daniel Aarão Reis (2010) situa a Lei da Anistia como marco legal para a institucionalização de silêncios que, se não foram unânimes, teriam sido interrompidos apenas por “vozes isoladas” (REIS, 2010, p. 173). Ainda hoje, esse quadro gera para a historiografia e a crítica de arte o problema de lutar contra uma cultura do esquecimento que, para Reis (2010), se nutre da via de conciliação que marcou o processo de transição democrática. Do ponto de vista da fenomenologia, corresponde à praxis da história um sujeito que, antes de ser observador do fenômeno histórico, é ele próprio formado pela história (FABIÃO, 2012). Assim, a tarefa do historiógrafo passa por observar a história e, ao mesmo tempo, reconhecer-se como sujeito que faz e é feito pela história. Observando a palestra de Boal, podemos nos perguntar como é possível historiografar seu lega92


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do hoje. Em outras palavras, que serventia uma determinada leitura dos fatos narrados por Boal teria para a compreensão do momento atual, 33 anos depois da reabertura política, 50 anos após o AI-5, 2 anos depois de um novo golpe retirar um governo legitimamente eleito do poder, e em meio a uma eleição que vê o fascismo angariar quadros no Legislativo e no Executivo. Boal começa sua palestra narrando a encenação de um espetáculo do Teatro de Arena para uma liga camponesa no Nordeste. De cunho exortativo – nos moldes da “arte revolucionária popular” que caracterizava as produções do Arena – a peça incitava os camponeses à reforma agrária. Ao final, um dos espectadores sugere ao grupo que se junte aos camponeses para, depois do almoço, irem desalojar um coronel das terras que ele ocupou. Boal descreve seu sentimento diante do camponês como “angústia”: angústia de perceber que, não sendo capaz de fazer a reforma agrária, não poderia exortá-los a fazer o mesmo. Boal relaciona o episódio – exortar à revolução, mas não fazê-la – ao posterior desenvolvimento das técnicas de Teatro do Oprimido (TO). O TO busca conscientizar o espectador de que ele é também um artista dotado de corpo, não tendo como principal objetivo a atividade artística em si, mas a libertação através da ação social. É pela consciência do corpo que o espectador se transforma em ator, opera a linguagem do teatro a fim de construir imagens de sua própria opressão, segundo o palestrante “mais ricas, autênticas e vitais do que as daquele que não é oprimido”. O TO não se confunde com uma arte da contemplação, mas com uma pedagogia de luta e vida, que vê o teatro como “ensaio da revolução” (Boal apud ANDRADE, 2014, p. 70). As técnicas de TO foram desenvolvidas no contexto da repressão, quando “fomos expulsos do teatro tradicional e institucional” (BOAL, 2012, p. 64-65). 93


Boal: nacional, popular, ou brasileiro?

Surgindo no exílio, o TO ao mesmo tempo em que prossegue as investigações do Teatro de Arena e da Feira Paulista de Opinião, se distancia dessas mesmas experiências. Boal mantém o objetivo de fazer um teatro útil, capaz de ensejar a mudança social. No entanto, a exortação panfletária característica das experiências da arte popular revolucionária não tem mais lugar no TO. Seja pela expulsão do palco tradicional, seja pelas suas dinâmicas internas, o que importa aqui é a socialização dos meios de produção da arte teatral. Mostaço (2016) traça um panorama da cena teatral brasileira entre 1950 e 1970, dando conta de boa parte das atividades de Boal no período. Sempre marcado pela percepção da arte como “instrumento de luta e a arena como seu espaço de batalha” (MOSTAÇO, 2016, p. 39), o Teatro de Arena de Boal se destaca pela busca por um teatro popular e nacional, capaz de incorporar plateias operárias e camponesas e exortá-las à revolução proletária. A ideologia nacional-popular que pautava a atividade do Teatro de Arena – e de outras experiências como o CPC – vinha de dois grupos da intelectualidade brasileira. De um lado, o ISEB, cujas teses esboçam um conceito de nação desvinculado de uma teoria das classes sociais, onde o pacto de classes surge como pressuposto da organização social desenvolvimentista (MOTA apud MOSTAÇO, 2016, p. 57). De outro, o PCB, que, aderindo ao populismo do Estado, afirma uma ação revolucionária anti-imperialista e progressista, à qual todas as classes devem aderir (idem, p. 57). Tanto o desenvolvimentismo isebiano como a “frente nacionalista” – termo que Mostaço usa para definir a atuação do PCB – vão caracterizar a experiência cultural da esquerda na década de 1960. Cultura de esquerda que, para Schwarz (1977), é hegemônica, preservando sua atuação mesmo nos primeiros anos da ditadura (SCHWARZ, 1977, p. 62). 94


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Trabalhos de autores como Renato Ortiz e Marilena Chauí convergem, ao destacar o autoritarismo característico da noção de nacional-popular. No entanto, a materialização deste conceito nas experiências do Teatro de Arena implicou um processo de experimentação estética que envolvia agentes com posicionamentos diversos. Andrade (2014) destaca como Boal, Vianinha e outros artistas tinham consciência de que o povo para o qual falavam era uma invenção: “classe média não é povo, mas é como se fosse! [...] Já que não encontrávamos o nosso, transformávamos em povo tudo aquilo que encontrávamos” (Boal apud ANDRADE, 2014, p. 36). Mas afinal, O que é um povo? Em ensaio com este título, Agamben (2014) discute as origens do termo “povo”, que designa ao mesmo tempo o sujeito político por excelência e os marginalizados excluídos da política. Oscilando entre a vida nua e a existência política, povo e Povo constituiriam a fratura biopolítica fundamental e a história moderna não seria mais do que a tentativa de suturar esta fratura: O extermínio dos judeus na Alemanha nazista adquire, nessa perspectiva, um significado radicalmente novo [...] na fúria lúcida com a qual o Volk alemão, representante por excelência do povo como corpo político integral, procura eliminar para sempre os judeus, devemos ver a fase extrema da luta interna que divide Povo e povo (AGAMBEN, 2014).

Em que medida a fratura biopolítica apontada por Agamben pode ser útil para se (re)pensar a noção de nacional-popular? Um dos motivos para o fracasso da esquerda em concretizar seu projeto político na década de 1960 pode residir justamente nesta fratura. Se a arte revolucionária popular não era capaz de encontrar seu povo, como mobilizá-lo? A radicalidade da pergunta de Agamben nos permite indagar se haveria 95


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mesmo algum “povo” brasileiro que pudesse ser mobilizado por essa arte. Quando Boal afirma que, diante da incapacidade de encontrar o povo, transformava-se tudo em povo, nota-se um esvaziamento deste conceito, assim como o de nacional, ambos caros à atuação do Arena. Hoje, essa fratura biopolítica encontra-se novamente exposta, quando a esquerda se vê (ainda uma vez) às voltas para entender como seu projeto político não foi capaz de contemplar uma parcela significativa do “povo”, que prefere aderir a uma ideologia declaradamente antidemocrática. Com ressalvas às suas particularidades, o contexto atual demanda com urgência que se repense as noções de arte, ativismo, nação e povo. A trajetória de Boal pode fornecer pistas para uma reavaliação crítica desses conceitos. Reconhecendo o aspecto problemático da “arte popular revolucionária”, o TO reduz sua pretensão de ação, agindo na micropolítica da cena e recusando uma ideia abstrata de povo em prol da noção de “espect-ator”. Se, nas experiências do Teatro de Arena, o nacional e o popular eram ficções distanciadas do real, no TO o povo é um dado alcançável apenas no plano concreto da cena, povo de “espect-atores” que observam a cena, ao mesmo tempo em que nela atuam. Se o TO é um grande “ensaio da revolução” (BOAL apud ANDRADE, 2014, p. 70), seu “povo” é também um ensaio e uma prática. Em outras palavras, a passagem de Boal pressupõe a renúncia aos “conteúdos politizados (...) em favor da multiplicação da forma como dispositivo político” (VANNUCCI, 2017, p. 72). Logo, é curioso notar que o TO, embora só possa ser pensado a partir do Brasil da década de 1960 – do contexto da repressão e expulsão dos palcos, por um lado; e da evolução progressiva da pesquisa de Boal dentro do Teatro de Arena, por outro –, terminou por consolidar o encenador como um “diretor internacional”. Não menos contraditório é o fato que este 96


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teatro, decorrente da busca de Boal pelo “popular brasileiro” – busca que, em última análise, resultou na dissolução dessas mesmas categorias – só tenha amadurecido fora dos palcos e do país. O que isso nos diz sobre a dificuldade de pensar a identidade brasileira a partir de uma teoria dialética da luta de classes, de uma teoria dissidente das sexualidades ou de uma teoria decolonial da opressão de raça? Seria essa dificuldade expressão de uma resistência da própria noção de “brasileiro” a toda e qualquer fratura que pudesse revelar os problemas estruturais de nosso processo de formação histórica?

BIBLIOGRAFIA ANDRADE, Clara de. O exílio de Augusto Boal: reflexões para um teatro sem fronteiras. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014. AGAMBEN, Giorgio. “O que é um povo? Análise de uma fratura biopolítica”. Ensaio publicado no Jornal Folha de São Paulo em 16/11/2014. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2014/11/1547789-o-que-e-um-povo-analise-de-uma-fratura-biopolitica.shtml Acesso em 18/10/2016. BOAL, Augusto. Jogos para atores e não atores. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2012. FABIÃO, Eleonora. “History and precariousness: in search of a performative historiography”. In: JONES, Amelia et al (ed). Perform, repeat, record: live art in History. Chicago: Intellect, The University of Chicago Press, 2012. MOSTAÇO, Edélcio. Teatro e política: Arena, Oficina e Opinião. São Paulo: Annablume, 2016. REIS, Daniel Aarão. “Ditadura, anistia e reconciliação”. In: Estud. hist. (Rio J.), v.23, no 45, p.171-186. Rio de Janeiro, 2010. VANNUCCI, Alessandra. “Deslocamentos e Processos Criativos na Contracultura”. In: GADELHA, Carmem et al (org). Arte: Cena crítica. Rio de Janeiro: Circuito, 2018. Documentos: Transcrição de palestra de Augusto Boal durante o Ciclo de Debates sobre o Teatro Brasileiro, realizada pelo CENACEN, em 15/10/1985. Acervo: Biblioteca Edmundo Moniz, Arquivo FUNARTE. Acesso em 15/09/2018.

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Atuante-espaço na criação de movimento cênico: intercessões entre o Sistema Laban e Viewpoints Camila Simonin* Este projeto de pesquisa de Iniciação Artística e Cultural entende o Sistema “Laban-Bartenieff”, na forma como foi desenvolvido por Rudolph Laban, Irmgard Bartenieff e alguns discípulos – a citar Regina Miranda e Ciane Fernandes; e os Viewpoints, como foram trabalhados e ampliados em linguagem por Anne Bogart, como pilares estruturais. Ou seja, o estudo pretende partir de cada uma destas linguagens e de suas possíveis fricções, interseções e convergências para constituir um sistema de análise e geração do movimento para a cena. Como sistema, não se pretende, portanto, método, mas campo de trabalho para o ator-bailarino na intenção de formar linguagem e ferramentas de investigação de elementos essenciais ao pensamento da cena, tais como: Corpo, Forma, Relação, Expressividade e Espaço. Palavras-chave: Sistema Laban – Viewpoints – ator/bailarino

* Bolsista PIBIAC. Orientação: Jacyan Castilho.

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Atuante-espaço na criação de movimento cênico: intercessões entre o Sistema Laban e Viewpoints

O projeto de pesquisa Atuante-espaço na criação de movimento cênico: interseções entre o Sistema Laban e Viewpoints possui como pilares as teorias aqui apresentadas. Entende-se o Sistema Laban-Bartenieff, na forma como foi desenvolvido por Rudolph Laban, Irmgard Bartenieff e alguns discípulos – entre eles, no Brasil, Regina Miranda e Ciane Fernandes – e os Viewpoints, como foram trabalhados e ampliados em linguagem por Anne Bogart. Desta forma, a pesquisa possui como objetivos: construir um sistema-linguagem de análise e geração do movimento para a cena que tenha como base as fricções entre o Sistema Laban-Bartenieff e Viewpoints e traçar justaposições, convergências e semelhanças entre as teorias que sustentam nossa pesquisa. Como metodologia para a realização da pesquisa, partiu-se, no início do primeiro semestre de 2017, de experimentações de descrição de movimentos e coreografias para uma coleta de material teórico sobre Viewpoints e o Sistema Laban-Bartenieff. Já na segunda metade do ano de 2017, concomitante ao apanhado teórico, busquei, como pesquisadora, experiências e pesquisas práticas na Faculdade de Dança Angel Vianna, na qual frequentei, como ouvinte, duas disciplinas do Curso de Graduação – “Metodologia I e II” –, que possuem como ementa o Sistema Laban-Bartenieff visto como metodologia. Foi cumprido, ainda, um módulo sobre Viewpoints no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu de Preparação Corporal para Artes Cênicas e o Primeiro Módulo da Pós-Graduação Lato Sensu no Sistema Laban-Bartenieff. Nesse sentido, as experiências na Faculdade Angel Vianna aprofundaram o interesse no tema estudado e foram de extrema importância para a compreensão de que este trabalho necessita de um entrelaçamento contínuo nas relações teórico-práticas, à medida que se mostra um território em potencial para uma poética cujo ator-espaço esteja vivaz e se constitua como mote criador. 100


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Tendo como base este escopo teórico-prático, a pesquisa foi afinada no sentido de levar à experimentação, durante um processo criativo cênico, o arcabouço do sistema que se pretende investigar. O processo em questão é fruto da disciplina “Projeto Experimental em Teatro” (PET), que consiste no Trabalho de Conclusão do Curso de Direção Teatral. A montagem, em processo, possui como temática dramatúrgica relatos e vivências de pessoas em situação de rua. Procurei realizar um começo de processo em contato intenso com o material oriundo do Sistema Laban-Bartenieff e de Viewpoints. Partimos, então, das quatro categorias labanianas, a saber: Corpo, Forma, Expressividade e Espaço – em conjunto com o trabalho desenvolvido por Anne Bogart como um percurso que parte da consciência do próprio corpo, seu volume e organizações internas, até alcançar o corpo em relação ao espaço e aos outros corpos que o cercam, em um olhar mais, digamos, externalizado. Portanto, iniciamos com a atenção ensimesmada na categoria “Corpo” do Sistema Laban-Bartenieff, onde o importante era perguntar “O que (qual parte do corpo se) move?”. Partia-se, sobretudo, da respiração, das organizações corporais e pelo trabalho desenvolvido por Irmgard Bartenieff intitulado “Movimentos Básicos”. Ligada à categoria “Corpo”, alinhamos a categoria “Forma” e também o trabalho com o Viewpoint “Forma”, a primeira tratando da pergunta “Com quem se move?”, isto é, das relações. Neste campo, entendemos a importância do olhar como chave para o trânsito entre a percepção interna e externa. Já o Viewpoint “Forma”, ainda que receba a mesma palavra em português, está atrelado não às relações, mas aos contornos dos corpos e suas possíveis subdivisões em retas e curvas. Em relação à categoria “Expressividade”, uni alguns Viewpoints de “Tempo”, como: “Andamento”, “Repetição” e “Duração”. Aqui, uma descoberta muito importante foram as diferen101


Atuante-espaço na criação de movimento cênico: intercessões entre o Sistema Laban e Viewpoints

ças e afinidades dos andamentos internos (ou seja, a sensação de urgência ou calma) com andamentos externos (ou seja, com a velocidade). Enquanto Anne Bogart, nos Viewpoints, pensa o “Andamento” estritamente como “Rápido” e “Lento”, Rudolph Laban entende o tempo como uma sensação interna, partindo, não da ideia de velocidade, mas da “Urgência” ou da “Calma”. Notamos, portanto, territórios muito frutíferos para a construção do movimento nas oposições, mas também nas afinidades destas definições de tempo. Nos movimentos urgente e lento, encontramos conflito. Desleixo e apatia são percebidos nas corridas rápidas e calmas. Marasmo e estabilidade resultam do binômio lento/calmo. Nos movimentos urgente e rápido, mergulhamos em pânico e risco. Como última categoria labaniana, trabalhamos o “Espaço”. Neste tópico, entendemos o trabalho com os movimentos além-kinesfera, indo do “espaço abstrato virtual” ao “espaço concreto cotidiano”. Isto é, ao pensarmos em um trabalho que parte do “espaço abstrato virtual”, pensamos no corpo entrando nas dimensões1, por exemplo, colocando-o sobre retas infinitas ligando céu e terra, lançando-se em diagonais, achatando-se em planos.2 Trabalhadas as possibilidades de deixar o espaço desenhar o corpo, passamos ao espaço que nos cerca concretamente e as diferentes maneiras de o desenharmos através dos Viewpoints “Topografia” e “Arquitetura”. Assim, no trabalho com “Topografia” nos interessam os padrões desenhados no 1

Sobre o trabalho com dimensões, Fernandes (2002, p. 58) explica o prolongamento do corpo em uma direção: seja ela através de sensação de crescer e encurtar (para cima/para baixo: dimensão vertical), alargar-se e estreitar-se (para esquerda/para direita: dimensão horizontal) ou inchar e esvaziar (para frente/para trás: dimensão sargital).

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Ao unir duas dimensões, temos um plano. No sistema Laban, configuram-se como planos: Plano Vertical, Plano Horizontal e Plano Sagital (FERNANDES, 2002)

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espaço através dos deslocamentos, ou seja, se o corpo do ator-bailarino estivesse todo pintado de vermelho, trataríamos dos desenhos possíveis de serem compostos a partir da sua movimentação. Já em “Arquitetura”, o interesse muda para o espaço físico no qual se está trabalhando e como os movimentos do ator-dançarino são afetados por ele, o que significa dizer de que maneira o chão, a luz, a matéria sólida da sala (formato e material dos objetos ao redor), cor e textura afetam a movimentação dos atuantes. Por fim, como reta final, decidimos abordar uma categoria à parte, intitulada por mim “Movimento Grupal”. Aqui, entram os estudos dos movimentos em coletivo, sejam eles movimentos uníssonos, como as danças corais propostas por Laban; decisões coletivas de movimentação; ou, ainda, padrões individuais de movimento que geram um padrão coletivo. Tendo em vista ainda as bases desta pesquisa, pensamos ser este um território interessante para os Viewpoints de “Relação Espacial”, “Resposta Cinestésica” e o “Gesto”3. Para este último, entretanto, há de se trabalhar não somente pela definição de um movimento com início, meio e fim que expresse algo – ideia, emoção, época, como definido por Bogart (2005) –, porém re3

A seguir, coloco, em tradução livre, as definições dos Viewpoints mencionados como explicitados pelas autoras Anne Bogart e Tina Landau no livro The viewpoints book:

- Resposta Cinestésica: uma reação espontânea a algum movimento que ocorra ao seu redor. - Relação Espacial: distância entre os elementos no palco, especialmente entre um corpo e outro ou entre um corpo e a arquitetura. - Gesto: um movimento envolvendo uma parte ou partes do corpo que possua início, meio e fim. Os gestos podem ser comportamentais (aqui estão os gestos cotidianos como coçar, apontar, espirrar, acenar) ou expressivos (gestos que expressam um estado interno, uma emoção, um desejo, ideia ou valor) (BOGART, LANDAU, 2005).

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conhecendo no gesto os movimentos que indicam pertencimento a um grupo, a um ideal, a uma função social. Assim, finalizada a primeira etapa – denominada como um período de reconhecimento fisicalizado dos conceitos –, partimos então para a prática contextualizada. Aqui, retomo as práticas e experiências com os dois sistemas nos ensaios do processo de montagem que realizo no segundo semestre de 2018, em PET, e procuramos contextualizá-las com as temáticas que abordamos a partir dos relatos de pessoas em situação de rua. Reúno, a seguir, tentativas, dentre as quais cito algumas como motes principais. Em primeiro lugar, houve a exploração dos movimentos grupais na rua. Assim, foi possível perceber a trajetória de desenvolvimento, aproximação e diferenciação entre as brincadeiras de criança no asfalto e os grupos de moradores de rua, que optam por viver em coletivo e não sozinhos. Neste sentido, foi válido pesquisar os gestos em comum, as relações espaciais das pessoas em situação de rua, acostumadas com uma visão de baixo para cima nas calçadas; e uma “Resposta Cinestésica” trabalhada nos extremos: “estar com uma forte atenção” a tudo e todos os estímulos o tempo todo ou, ao contrário, estar alheio a tudo o que vem de fora como maneira de fugir da hiperestimulação diária. Uma segunda tentativa seria trabalhar a percepção do ritmo narrativo dos relatos e entrevistas que estamos fazendo, que foge de narrativas corriqueiras onde, a um clímax, segue-se um anticlímax. Ao contrário, as histórias e pessoas que temos conhecido no processo possuem narrativas compostas de diversos acentos, uma série de ênfases em acontecimentos desconexos, nem sempre sequenciais em cronologia e ordem de importância. Nesta perspectiva, penso que o trabalho com os “Fraseados Expressivos” de Laban e dos Viewpoints “Duração”

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e “Repetição” cairiam como luva para a dramaturgia textual e a de movimentos. Cito, por fim, a tentativa que acredito ser uma das mais importantes do trabalho, vinculada à categoria labaniana “Expressividade”, que está atrelada às qualidades e padrões de movimento. Reconhecer e entrar no padrão de movimento do outro é um ato de entrega e, sobretudo, de escuta. Portanto, colocar em cena esses encontros e escutas é de extremo valor para a montagem. É colocar no centro da atenção movimentos e subjetividades tornadas invisíveis no cotidiano.

BIBLIOGRAFIA BARTENIEFF, Irmgard & LEWIS, Dori. Body movement – coping with the environment. New York: Gordon and Breach Science Publishers, 1993. BOGART, Anne & LANDAU, Tina. The viewpoints book – A practical guide to viewpoints and composition. Nova York: Theatre Communications Group, 2005. BOND, Fernanda Coutinho. Os viewpoints e seus múltiplos olhares: as pesquisas cênicas de Mary Overlie, Anne Bogart e Christiane Jatahy. Tese (doutorado em Teatro). Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2014. LABAN, Rudolph. Domínio do movimento. São Paulo: Summus, 1978. FERNANDES, Ciane. O corpo em movimento: o sistema Laban/Bartenieff na formação e pesquisa em artes cênicas. São Paulo: Annablume, 2002. MIRANDA, Regina. Corpo-espaço: aspectos de uma geofilosofia do movimento. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. -----. O movimento expressivo. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1979.

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— PASSAGENS


[...] tudo está oco; [...] tudo-está-oco está cheio de si, o que tocamos e vemos e ouvimos e degustamos e cheiramos e pensamos, as realidades que inventamos e as realidades que nos tocam, nos olham, nos ouvem e nos inventam, tudo que tecemos e destecemos e nos tece e destece, instantâneas aparições e desaparições. Cada uma distinta e única, é sempre a mesma realidade plena, sempre o mesmo tecido que se tece ao destecer-se. Octavio Paz



Breves apontamentos sobre a estética zen presente no teatro no Mariana Watanabe-Barbosa* Este artigo pretende uma investigação de elementos estéticos japoneses derivados das artes conhecidas no Ocidente como “arte zen”. Utilizaremos como objeto de estudo alguns dos princípios constitutivos do teatro no e, a partir deles, discutiremos alguns dos principais elementos estéticos japoneses: a estética do mínimo essencial, o yugen, o ma e a impermanência. Pensamos, aqui, o no enquanto um dispositivo que pode, a partir da sua diferença e particularidade, nos convocar a problematizar e reinventar os nossos processos criativos. Palavras-chave: arte zen – estéticas japonesas – teatro no

** Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Design da Universidade Anhembi Morumbi (UAM). Bolsista CAPES-PROSUP. Orientação: Cristiane Ferreira Mesquita.

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Breves apontamentos sobre a estética zen presente no teatro no

Este trabalho compõe uma pesquisa que investiga aspectos da arte japonesa que herda a estética “zen” e as suas influências em produções do design de moda realizado por estilistas nipo-brasileiros. Neste artigo, enquanto forma de criarmos um arcabouço teórico que sustente a nossa pesquisa, propomos investigar elementos estéticos japoneses, especialmente aqueles que derivam do zen-budismo, do xintoísmo e do taoísmo, utilizando como objeto de estudo os aspectos constitutivos do teatro no. Assim, percorreremos um caminho mais descritivo a respeito desta prática, passando pelos aspectos físicos que compõem o seu espaço cênico, os figurinos, as máscaras e, em especial, a formação do artista no enquanto uma forma de cultivo pessoal. Em nossa pesquisa, temos tentado um olhar para as estéticas japonesas enquanto um operador, um dispositivo que, em contato com as suas diferenças e singularidades, pode reverberar ações de modo a provocar pequenas rupturas em nossos modos apreendidos de criação artística. Ao trazermos as ideias das estéticas japonesas, estamos nos referindo a certas dominâncias do modo de sentir e pensar o mundo, relacionadas a uma herança cultural, mas que não funciona enquanto uma identidade fixa, pois, apesar de serem práticas tradicionais, a maneira como elas se expressam em cada local e em cada pessoa ocorre de forma singular e relacional, possibilitando mudanças e atualizações. Configura-se a cultura enquanto um organismo dinâmico, vivo e ativo. Toda a prática artística japonesa derivada de saberes mais tradicionais está relacionada a uma tradição chinesa, pelo fato deste ser o primeiro modelo de civilização tomado pelo Japão ainda no século V. Os saberes europeus só entram no país a partir da Era Meiji1, que se caracteriza pela modernização do 1

As eras da história japonesa são identificadas a partir da figura de seus imperadores. A Era Meiji se estende de 1867 a 1912.

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Japão a partir da introdução de modelos e técnicas ocidentais. Sendo assim, as artes que se relacionam com as estéticas “zen” estão ligadas à tradição chinesa, que adentra o território japonês a partir do século XII. A composição do teatro no, a partir do mínimo essencial: espaço cênico, figurino e atuação O teatro no é uma prática artística clássica japonesa, executada desde o século XIV, envolvendo em sua composição elementos como o canto, a música, a poesia e a pantomima. Deriva de saberes e práticas relacionados ao xintoísmo e ao zen-budismo. Foi fundada por Kanami (1333 – 1384) e o seu filho, Zeami Motokiyo (1363 – 1443) que é um dos principais dramaturgos desta arte, tendo escrito diversos tratados sobre como interpretar o no. O espaço cênico do teatro no é feito de um cipreste bastante aromático chamado hinoki e é preenchido de elementos simplórios. O palco principal é um quadrado que se situa pouco menos de um metro acima do chão, com uma pintura de pinheiro ao fundo que, segundo a lenda xintoísta, tem uma ligação com o sagrado. Do lado esquerdo, uma ponte de suspensão realiza a comunicação entre dois mundos: o território dos humanos e o território onde os atores assumem papéis sobrenaturais. Os pilares que surgem de cada um dos vértices do palco central funcionam, também, como um guia espacial para os atores. Por fim, como sinalizado nos estudos de Ângela Mayumi Nagai (2015), o telhado serve para sacralizar o ambiente do teatro. Este vazio despojado e simples passa, então, a ser ocupado por espíritos e criaturas místicas. Fazem parte das narrativas do teatro no deuses, espíritos, fantasmas, criaturas sobrenaturais e as suas principais personagens são os demônios, os anciãos e as 111


Breves apontamentos sobre a estética zen presente no teatro no

mulheres jovens, o que faz com que peças tragam consigo um forte simbolismo em suas narrativas. O trabalho a partir de arquétipos e da estética do mínimo essencial busca a restrição de elementos para que as coisas sejam a essência delas mesmas. Esta estética, derivada do zen-budismo, também é a base para o modo de interpretação do teatro no, baseado em movimentos lentos e pausados: os atores se assemelham a estátuas vivas. Os artistas trajam máscaras tradicionais para cada tipo de personagem e uma das recomendações é que, tanto em movimento, quanto em outras expressões corporais, os atores tentem ao máximo deixar as suas características pessoais e vivenciem uma espécie de passividade externa e atividade interna, buscando, a partir dos gestos mínimos, a essência daquilo que está sendo representado. O filósofo francês Jean-François Lyotard (2011) aborda a percepção dos símbolos no teatro no. Segundo ele, para que os símbolos apareçam, o próprio ator desaparece enquanto presença, usando como recursos as máscaras e as mãos escondidas. Uma interpretação que flerta e explora fronteiras com a não-interpretação, por não explorar, mesmo em personagens sem máscaras, as caricaturas faciais. A sugestão é a de que os atores mudem as suas expressões faciais “naturais”, permitindo que o seu rosto adquira a essência dos personagens a partir da forma. Assim, ator se confunde com personagem, explorando limites: o visível, o invisível, as peles, os ossos. Esta forma do no, ainda segundo Lyotard, explora um certo niilismo zen-budista, transforma signos em signos do nada, um nada que está entre os símbolos abordados na peça. Para Zeami Motokiyo (apud GREINER, 2015), nos intervalos das ações é que um signo se executa. No entremeio de uma ação para outra, o próprio signo de vazio pode se expressar, prenhe de possibilidades. O artista plástico nipo-argentino Kazuya Sakai (1970), destaca uma recomendação tradicional do no a respeito da lenti112


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dão dos movimentos que estreita as fronteiras entre passividade e atividade. As ações dos atores devem sempre ser ocupadas por algum tipo de vazio, de modo que se uma ação leva dez segundos para ser executada, sete destes segundos seriam ocupados pela atividade em si e três ocupados pela passividade. Para o autor, este momento de passividade seria ocupado pelo próprio fluxo mental do ator que está em ação. Tanto para o zen-budismo quanto para o taoísmo, mais movimento físico não necessariamente significa mais ação. Quando podemos deixar que o vazio ocupe a mente, podemos estar mais próximos do que é uma arte e seu processo de criação. Segundo a abordagem da semioticista brasileira Christine Greiner (2015), assim como em toda a arte japonesa, no teatro no, existe um elo entre corpo e mente que pode ser exemplificado numa união entre cultivo de si e o treino da arte. Retomando os tratados de Zeami, a autora aponta que o primeiro passo para o keiko, ou treinamento, é limpar a mente, clareá-la. Para atingir este estado de clareamento da mente, é necessário que o artista esqueça a vontade de si e possa mergulhar na prática a que se propõe. Desta forma, o treinamento de um artista no se aproxima do treinamento meditativo budista quando, ao reduzir os movimentos ao mínimo, se concentra em sua própria mente e na atividade de impermanência e fluxo que a toma. Outra característica que nos chama atenção no teatro no é que, apesar de sua simplicidade e despojamento estético, a um primeiro olhar, existe uma ética de perfeição dos movimentos, da música, das máscaras. Este ideal de perfeição, porém, deve se mostrar “imperfeito” e inacabado. É preciso, pois, gerar uma margem de possibilidade para que o espectador participe, de forma mental, se conectando ao espetáculo e às suas sensações sobre ele, para falar como Kazuya Sakai (1970, p. 141). 113


Breves apontamentos sobre a estética zen presente no teatro no

Outros elementos estéticos japoneses presentes no teatro no: a impermanência, aware, yugen e ma A partir da breve apresentação do teatro no realizada acima, abordaremos alguns conceitos estéticos importantes e que se expressam na concepção desta arte. Estamos entendendo “estética” a partir do conceito utilizado pelo cineasta Donald Richie (2007) que a observa como um campo de saber relacionado à apreensão sensorial do mundo. Para o autor, a arte é a imposição de um padrão na experiência e a experiência estética é o reconhecimento sensível deste padrão. Para Greiner (2017), a estética japonesa tem uma conexão ética, pois a construção das artes no Japão apresenta uma proximidade com a vida e com a natureza. Como aponta Junichiro Tanizaki (2007), a beleza deve emergir das realidades da vida. A própria origem da palavra belo na língua japonesa está relacionada aos acontecimentos cotidianos, também nos sublinha Michiko Okano (2010); originalmente, o ideograma tem uma leitura relacionada ao amor advindo dos laços familiares; posteriormente, ganha o significado de afetividade pelas coisas pequenas e, mais recentemente, passa a estar atrelado ao sentido de belo. Esta conexão entre artes e a natureza aproxima a produção artística japonesa à ideia de impermanência. Como aponta Greiner (2015), esta é uma concepção que atravessa todo um senso comum da cultura japonesa, herdado das culturas chinesa e zen-budista. Segundo a pesquisadora, na medicina chinesa, havia um princípio relacionado a ser com o vento que está ligado ao fluxo natural da vida. Para a cultura japonesa, nada é estável e o nosso único refúgio consiste em aceitar e celebrar isso, nos lembra Donald Richie (2007). Há ainda um outro elemento estético relacionado aos aspectos da natureza, da vida e da arte, chamado aware, que se re114


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fere às emoções provocadas nos indivíduos a partir da tomada de consciência sobre a efemeridade das coisas, podendo trazer tanto sentimentos melancólicos quanto aqueles mais ligados a admirações. Aware está ligado à beleza existente na impermanência. Dentre os elementos mais presentes no teatro no, o mais importante nos tratados de Zeami é yugen, sendo entendido por ele como uma certa forma de compreensão do mundo que é aprendida pelo ator no a partir do treino, enquanto uma forma de cultivo pessoal. Ele está relacionado a uma elegância presente na profundidade, ao que está escondido e que sugere algo, não podendo ser compreendido em sua totalidade, expresso em palavras ou visto com os olhos. Sakai (1970) observa que, no no, as expressões são dadas em contornos, naquilo que é sugerido, na essência mínima das coisas. Ma, por sua vez, é um elemento estético presente em toda a cultura japonesa, fazendo parte de um certo senso comum do país. Ele pode ter uma variedade de entendimentos, mas está relacionado a uma apreensão dos espaços de fronteira, o “entre”, o terceiro excluído. O ma está relacionado ao vazio disponível entre duas coisas, um vazio repleto de energia vital, de possibilidade de efetivações num entre-espaço. Abriga, ainda, a coexistência, à medida que um espaço-entre tensiona e faz dialogarem as noções de interno/externo, público/privado. Para que exista fluxo vital e impermanência, é necessário que exista este tipo de vazio, relacionado ao ma. Considerações finais: das potências estéticas do teatro no Como pontuamos no início deste trabalho, entendemos, aqui, o estudo do teatro no e de seus aspectos estéticos enquanto um operador que, a partir de suas práticas e princípios, nos 115


Breves apontamentos sobre a estética zen presente no teatro no

possa criar provocações, incômodos e reverberações em nossas atuações e processos criativos. O teatro no é uma prática artística que está muito ligada à tradição zen-budista, como uma grande parte das artes produzidas no país. A partir da estética do mínimo essencial, ele tenta buscar aquilo que as coisas são a partir de referências mínimas e um trabalho muito simbólico e arquetípico. Suas práticas nos convocam a aproximar o teatro do movimento de impermanência natural da vida, como entendido pelo zen-budismo. Assim, ele nos coloca em contato com cada sensação que os movimentos inerentes à vida nos trazem, sejam eles incômodos, melancolias ou admirações. Para que se possa criar esta conexão entre nós e as nossas sensações, existe um treino que se assemelha ao cultivo pessoal, que nos permite o contato com a profundidade das coisas, a partir do mínimo essencial. Assim, o treinamento artístico se aproxima do cultivo pessoal, se relacionando com os estados meditativos que nos convidam a contemplar a atividade mental e as sensações do corpo. Para que a criação artística seja inundada por esta aproximação da vida, é necessário que possamos prestar atenção aos pequenos vazios, retomando a importância da passividade física para que a atividade mental e sensorial possa, também, se fazer presente em nossas práticas.

BIBLIOGRAFIA GREINER, C. Fabulações do corpo japonês. São Paulo: n-1 edições, 2017. ----. Leituras do corpo no Japão e suas diásporas cognitivas. São Paulo: n-1 edições. 2015. LYOTARD, J. F. “O dente, a palma”. In: Revista Sala Preta, no.1, v. 11, pp. 139-146, São Paulo, 2011.

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NAGAI, A. M. “Olhos, ouvidos e ossos: percepções da luz e do som no teatro nô”. In: Revista Sala Preta, no.2, v. 15, pp. 175-187, São Paulo, 2015. OKANO, M. Ma: entre-espaço da comunicação no Japão - um estudo acerca dos diálogos entre Oriente e Ocidente. Teste (doutorado em comunicação e semiótica). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007. OKANO, M. “Fronteira e diálogo na arte japonesa”. In: VI Encontro de História da Arte (Anais), Campinas-SP, UNICAMP, 2010. RICHIE, D. A tractate on Japanese aesthetics. California: Stone Bridge Press, 2007. SAKAI, K. “O teatro nô”. In: Afro-Ásia, no 10-11, pp. 137-157, Bahia (UFBA), 1970. TANIZAKI, J. Em louvor da sombra. São Paulo: Cia das Letras, 2007.

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O humor político ante a opressão: de Medeia a Cidade Correria Poliana Paiva de Araujo* Em minha pesquisa de mestrado, intitulada O mito de Medeia na atualidade: a mulher, o humor e a tragédia, proponho a escrita e a encenação de um monólogo pelo viés do humor político. O processo de criação fará uma releitura do mito de Medeia a partir da revisão de literatura sobre o trágico, o feminino, o humor e a política. Neste monólogo, Medeia se voltará contra o patriarcado da Grécia Antiga, que relegava as mulheres à condição de propriedade; e confrontará seu autor, Eurípedes, pois há indícios de que foi ele quem a transformou numa infanticida. Nesta primeira etapa da pesquisa, faço uma investigação sobre comicidade e política, tomando, como estudo de caso, Cidade Correria, espetáculo do Coletivo Bonobando, criado a partir de residência artística realizada em 2014 e 2015 com jovens atores de territórios populares do Rio de Janeiro. Nesta dramaturgia, coletiva, quem é rebaixada ao estatuto de propriedade de uma prefeitura preocupada com megaeventos é a própria cidade. Palavras-chave: arte e política – comicidade – Medeia

** Orientadora: Adriana Schneider Alcure

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O humor político ante a opressão: de Medeia a Cidade Correria

Prólogo e metalinguagem De todas as peles que habitei (e ainda habito), o humor sempre foi a que mais amorosamente me acolheu, inicialmente como escudo protetor, nos ásperos dias em que adolescia; afinal, nada como uma boa piada na hora de desviar o foco para longe de si. Com o tempo, no entanto, fui entendendo possibilidades outras na capacidade de fazer rir. Ani DiFranco, música norte-americana, numa estrofe da canção My I.Q.1, que serviu de epígrafe ao livro Império, vaticina: “Sabendo portá-la, toda ferramenta é uma arma”. (DIFRANCO apud HARDT, NEGRI, 2001). De forma análoga, o humor também pode ser uma ferramenta destinada a inúmeras batalhas, inclusive as de âmbito político. Partindo dessa premissa, minha pesquisa de mestrado, intitulada O mito de Medeia na atualidade: a mulher, o humor e a tragédia, realizará a escrita e a encenação de um monólogo pela via do humor político. Nele, Medeia se voltará contra a misoginia da Grécia Antiga e, de tabela, confrontará seu autor, pois, segundo Vieira (2010), há fortes indícios, se tomarmos como base dados remanescentes sobre o mito, de que o assassinato dos filhos por Medeia é fruto da criação de Eurípides. Sobre isso, Rinne (1998) lembra que, na versão de uma lenda mais antiga, Medeia era a rainha de Corinto e teve os filhos assassinados pelos próprios coríntios, insatisfeitos com a dominação por ela imposta. Para a autora, houve má interpretação, intencional ou inconsciente, das representações simbólicas às quais Medeia estava submetida, que remetiam à veneração da Grande Deusa. Como o supracitado monólogo fará a transposição para os dias de hoje de um texto encenado em 431 A.C., na primeira etapa da pesquisa, optei por realizar uma discussão sobre comicidade e política à luz dos tempos atuais. Para tanto, busquei uma 1

Disponível em http://twixar.me/0kG3

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encenação contemporânea onde houvesse traços de opressão similares aos impostos por Eurípides a Medeia. Por isso, elegi o espetáculo Cidade Correria, do Coletivo Bonobando, criado a partir de residência artística realizada na Arena Dicró, no bairro da Penha, no Rio de Janeiro, e composto por jovens atores cariocas oriundos de territórios populares. Em julho de 2015, o coletivo inicia, sob a direção de Adriana Schneider e Lucas Oradovschi, uma imersão numa dramaturgia radicalmente coletiva. Fica bem clara, no decorrer da peça, a repressão tirana à qual a cidade do Rio de Janeiro foi submetida entre os anos de 2009 e 2016, quando esteve sob o comando do Prefeito Eduardo Paes. A partir das histórias e perspectivas de mundo dos atores, entendemos o desastroso rebaixamento da cidade onde vivem ao estatuto de joguete num contexto de megaeventos. De maneira contundente, o coletivo constrói uma narrativa capaz de provocar a reflexão a partir de um humor combativo, de PH ácido, injetado sem anestesia na veia do espectador. Um humor que, como sugere Minois (2003), para fugir da piada pronta, exige arrojo em sua construção; afinal: Como zombar com eficácia dos políticos que apresentam a si mesmos como palhaços? Palhaços sérios, quando proclamam sua integridade, palhaços cômicos, quando se misturam ao povo para apertar mãos, provar os pratos típicos do torrão de natal. Graças à comunicação midiática, os próprios políticos asseguram sua promoção pelo riso (MINOIS, 2003, p.598).

Assim, proponho, como metodologia, uma análise das passagens de maior destaque da segunda temporada do espetáculo, encenada em maio de 2016, no Espaço Cultural Sérgio Porto, no bairro do Humaitá, Zona Sul do Rio de Janeiro. Numa das primeiras falas da peça, o ator Igor da Silva, morador da favela de Vila Cruzeiro, informa que o sonho de sua mãe era que ele trabalhasse numa grande empresa internacional e que 121


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essa empresa seria o KFC, uma loja de fast food. Nesse momento, a plateia ri, talvez devido ao pressuposto levantado por Bergson (2004), o de que a comédia só tem início a partir do momento em que o outro deixa de nos comover. Um pouco depois, com brilho nos olhos, Igor revela que convidaram seu grupo de teatro para participar do programa Esquenta!, o que novamente provoca gargalhadas; afinal, a audiência percebe que as cicatrizes provocadas pelos estereótipos em torno do que seria uma “produção de periferia” não são passíveis de disfarce, nem mesmo por televisivas. A esse respeito, Hall (2016) nos lembra que: O que se produz visualmente, por meio das práticas de representação, é só a metade da história. A outra metade, o significado mais profundo, reside no que não é dito, mas está sendo fantasiado, o que se infere, mas não se pode mostrar” (HALL, 2016, p.435).

Bruscamente, o coletivo invade o teatro, interrompendo a narrativa de Igor, tocando tambores e executando uma espécie de grito de guerra, algo que nos transporta à ideia de agremiação, de tribo, de matilha. Passado um tempo e assentada a balbúrdia, os atores enumeram os possíveis autores a serem encenados, estabelecendo, ainda nos minutos iniciais, que a plateia seria irremediavelmente submetida a altas doses de metalinguagem. Como não conseguem chegar a um consenso, continuam sua busca até que, quando a encenação do Amok Teatro da peça Salina, de Laurent Gaudé, é mencionada, o debate identitário tem seu início, pois, por se tratar de uma encenação onde só há atores negros, alguns integrantes do Bonobando teriam de ficar de fora, como Daniela Joyce, atriz branca. Combativa, a moça bate a mão direita na parte interna do antebraço esquerdo, gesto que remete à identificação racial, e diz: “Sou da Vila Cruzeiro, sou preta por trajetória!”. Interessante aqui lembrar uma passagem de Fanon (2008), psiquiatra, ensaísta marxista e filósofo do pensamento decolonial da Marti122


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nica. Após ter traçado, em uma conferência em Lyon, um paralelo entre a poesia negra e a poesia europeia, Fanon, que era negro, ouviu de um amigo francês, em tom caloroso, que, no fundo, ele era branco. Já Daniela, ao falar nesses termos, lembra que, no fundo, mesmo branca, ela é negra. Negra por escassez de oportunidades, por abandono do Estado. Sobre isso, Caetano Veloso e Gilberto Gil, na canção Haiti, fazem uma pungente retórica, cuja gravação aqui transcrevemos em parte: Quando você for convidado pra subir no adro da Fundação Casa de Jorge Amado pra ver do alto a fila de soldados quase todos pretos dando porrada na nuca de malandros pretos, de ladrões mulatos e outros quase brancos, tratados como pretos, só pra mostrar aos outros quase pretos - e são quase todos pretos - e aos quase brancos, pobres como pretos, como é que pretos, pobres e mulatos e quase brancos, quase pretos de tão pobres, são tratados. (GIL & VELOSO, 1993).

Finalizando o embate, Thiago Rosa sugere “fazer como Lehman2 diz, uma peça não aristotélica, onde a história é contada através de um recorte de imagens e a plateia é levada ao entendimento a posteriori do que está sendo dito” (COLETIVO BONOBANDO, 2016, sem número de página). Querendo ou não, essa fala coloca em xeque visões preconceituosas que atravessam todos nós. Afinal, quem esperaria tamanha erudição de um grupo formado por jovens de territórios populares? Ou melhor, como diria Mignolo (2008), quem esperaria tamanha desobediência epistêmica? Tamanha desprogramação cerebral da razão imperial colonialista? Teatro pós-dramático lá é assunto para o 2

Hans-Thies Lehmann é autor do termo “teatro pós-dramático”, que aborda sua exploração como arte do acontecimento, somente possível mediante a presença mútua entre os que a executam e seus espectadores.

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Bonobando? Tanto é que toda a plateia ri. Ou melhor, gargalha. Só não sabemos se de susto ou desespero. A cirurgia Exatamente na metade da peça, Daniela é deitada em uma maca. Do proscênio, Thiago anuncia uma série de “intervenções de caráter cirúrgico, estético e olímpico, cujo fim é o embelezamento de uma paciente: a cidade”. Nesse momento, inicia-se o uso sem moderação da ironia, definida por Propp (1978) como um poderoso instrumento linguístico, através do qual, enquanto expressamos um conceito, o que está subentendido é exatamente o contrário, gerando, de maneira sofisticada, a comicidade. Assim, Thiago, o cirurgião-chefe, no intuito de conter o aumento da pressão arterial da paciente, dá ordens como “Pacifica!” e “Dá choque!”. Ao surgir o alerta de “manifestação na Zona Norte”, a diretriz é “aplicar UPP a 100%”. Já quando uma infecção ameaça passar da Zona Norte para a Zona Sul, a solução é “cortar todas as linhas de ônibus”. Finalizando, ele faz uma declaração, onde agradece à família brasileira, a Deus, ao filho Felipe e ao neto Matheus, numa clara menção à votação do Impeachment da Presidenta Dilma Roussef, que havia ocorrido algumas semanas antes, na Câmara dos Deputados. O acontecimento, eivado de obsessão com a ordem moral, assemelhou-se à caça às bruxas dos tribunais da Inquisição. O impeachment, além de todas as características de golpe de estado foi, também, uma jogada misógina. Somos um país que não gosta de mulheres. Somos a Idade Média disfarçada. Ainda deixamos queimar nas fogueiras nossas irmãs. A sociedade das bonecas mortas Já praticamente no final do espetáculo, Vanessa Rocha entra em cena com seus bonecos. Com uma fala tatibitate, 124


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ela nos faz acreditar que trata-se de seus filhos. Diferentemente do tom de sua voz, o conteúdo do que diz é bastante adulto, já que ela fica incomodada porque os bonecos estão pelados e, ainda por cima, misturados, meninos com meninas. De repente, sua postura muda e seu personagem vira outra pessoa, que põe os bonecos para beijar na boca e fazer sexo oral. Trata-se de um homem que, depois do que faz, cai em si, entendendo que precisa fugir, pois estuprou as meninas. Em sua tentativa de evasão, atira a esmo, atingindo as bonecas. Logo é abatido, assim como as milhões de vítimas dessa cultura do massacre que, como define Mbembe (2018), promove uma generalização da insegurança, valorizando mais e mais a posse de armas. Depois de “morrer”, Vanessa levanta-se. Agora ela é novamente a mãe das crianças. Observa que estão todas mortas. Chora por estar suja com o sangue dos filhos. Até aí a plateia vem rindo de nervoso, desconcertada com a colocação da tragédia e da comédia num mesmo balaio, fazendo-nos lembrar Minois (2003), que afirma serem duas as características que diferenciam o homem dos demais animais: ter noção da própria morte e rir. Quebrando o ciclo dos chistes nervosos, Vanessa, numa proposital alusão a Medeia, reúne a dor de todas as mães que perdem os filhos para o genocídio nosso de cada dia e urra: “Mataram meus filhos!”. A plateia, emudecida, não sabe se ri ou se chora. Epílogo Desde que passou por sua cirurgia, Daniela, a personificação da cidade-espetáculo esteve ali, a observar o sofrimento de seus filhos, os cariocas. De repente, num rompante de galhardia, como quem não tem mais nada a perder, vomita todos os sapos que engolira até então. Enquanto isso, todos os atores do coletivo entram no palco soltando pipas, ao som da música-tema de 125


O humor político ante a opressão: de Medeia a Cidade Correria

Ricardo Cotrim, como que a lembrar que, apesar dos desmandos, do assédio e do estupro de nossos sonhos, quem ainda manda é o vento. E, como pipas, que não existem se não forem empinadas, nós não existimos se não nos lançarmos para algum lugar que sequer sabemos qual é. Só sabemos que precisamos ir. Juntos. Cada um a seu modo. Independentemente das intervenções do Estado, do desamor, da correria. É fato que muita coisa mudou nos vinte e cinco séculos que separam Medeia de Cidade Correria. Enquanto na Grécia Antiga as mulheres não eram autorizadas a sair de casa sozinhas, no Rio de Janeiro de hoje, o problema é voltarmos vivas para casa. E, ao voltarmos, não sermos mortas por nossos companheiros. Infelizmente, as estatísticas são macabras. Porém, em meio à tragédia, respondamos com comicidade. Fazer graça da desgraça é o dissenso que nos resta. Resta não no sentido de sobra, do que merece descarte. Muito pelo contrário. Restar é resistir. É ato político. Perceber que as mulheres não foram ensinadas a amar umas às outras é ato político. Quando reconhecermos isso, viveremos o que hoje ainda é uma aposta: o feminismo como revolução. Revolução demorada, revolução-sexo-tântrico, revolução que urge. Para quebrar a lógica do patriarcado, as flores da primavera das mulheres precisam (e começam a) brotar nas urnas. Para que exploda um devir-mulher na política, como propõe Roque (2018), partamos da bela imagem de que desejar é olhar fixo para as estrelas. Estrelas moram do lado de fora. Ocupemos o lado de fora sem medo. Juntas somos mais. Quando nos apossarmos disso, o mundo será nosso e, portanto, de todos.

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BIBLIOGRAFIA BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2004. EURÍPIDES. Medeia (tradução de Trajano Vieira). São Paulo: Editora 34, 2010. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. HALL, Stuart. "O espetáculo do outro". In: Cultura e representação. Rio de Janeiro: PUC-RJ; Apicuri, 2016. HARDT, Michael & NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001. MIGNOLO, Walter D. "Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política". In: Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no. 34, 2008. MBEMBE, Achille. “Necropolítica”. Revista Arte & Ensaio no 32. Rio de Janeiro: PPGAV/EBA/UFRJ, dezembro de 2016. MINOIS, George. História do riso e do escárnio. São Paulo: Unesp, 2003. PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1978. RINNE, Olga. Medeia: o direito à ira e ao ciúme. São Paulo: Cultrix, 1988. ROQUE, Tatiana. Erotismo e risco na política. São Paulo: Editora n-1, 2018. Referência Musical GIL, Gilberto & VELOSO, Caetano. Haiti: Tropicália 2. Toronto: WEA, 1993. Referência dramatúrgica COLETIVO BONOBANDO. Cidade Correria. Direção: Adriana Schneider e Lucas Oradovschi. Rio de Janeiro. 07/05/2016, mimeo.

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Coletivos da Direção Teatral: da universidade para a cidade* Érika Neves Lima de Souza** “Coletivo” é uma palavra que costuma guiar as atividades do curso de Direção Teatral, seja na criação do espetáculo, seja na produção das Mostras em que se apresentam as peças dos alunos. Coletivo também tem sido o processo de reunião de vários (ex-)alunos para desenvolver ações de pesquisa de linguagem e por em prática seus projetos. As Mostras de Teatro da UFRJ têm indicado um crescimento de criações coletivas e colaborativas, bem como de textos de autoria do próprio diretor e de novos dramaturgos. Isto demonstra como, cada vez mais, os alunos trazem para sua formação as pulsações da cidade, da conjuntura – o que também suscita a organização de coletivos, na medida em que exercitam as possibilidades de diálogo a partir dos múltiplos sujeitos envolvidos. Palavras-chave: coletivos teatrais – universidade – cidade

* Artigo elaborado a partir do trabalho final da disciplina “Arte e Política da Cena”, ministrada pela Prof.ª Dr.ª Adriana Schneider Alcure, em 2018/1, no PPGAC-ECO-UFRJ. O texto foi modificado para publicação. ** Produtora Cultural da UFRJ e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC) da Escola de Comunicação da UFRJ, orientada pelo Prof. Dr. Daniel Marques da Silva.

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Coletivos da Direção Teatral: da universidade para a cidade

Direção Teatral e coletividade “Coletivo”. Esta palavra costuma guiar as atividades do curso de Direção Teatral da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fundado em 1994 – embora possa parecer redundante falar em coletivo quando se fala em teatro. Trabalhar coletivamente é primordial, seja na criação do espetáculo – para a qual convergem (ou divergem) as concepções de diversas áreas –, seja na produção das Mostras em que se apresentam as peças dos alunos-diretores. A Direção Teatral realiza três mostras de teatro anualmente, ao fim de cada semestre letivo, nas quais os alunos podem apresentar ao público da cidade do Rio de Janeiro suas encenações – frutos de disciplinas acadêmicas obrigatórias, de intensa pesquisa de linguagem teatral e experimentações: “Amostra Grátis” (Direção V), “Mostra Mais” (Direção VI) e “Mostra de Teatro da UFRJ” (Projeto Experimental em Teatro – trabalho de conclusão de curso). É fundamental o contato com o público, através do qual o aluno-diretor pode averiguar a efetividade de suas concepções cênicas. O interesse ao produzir anualmente as Mostras, além de apresentar à cidade os trabalhos desenvolvidos no curso, é possibilitar ao futuro diretor: 1) a vivência concreta de todas as etapas do processo criativo, produtivo e executivo de uma encenação, 2) o encontro necessário e profundamente enriquecedor com o grande público, e 3) a participação em um evento coletivo e colaborativo. [...] o teatro é agregador e integra diversos campos de conhecimento. A arte cênica e, por conseguinte, o curso de Direção Teatral, tem caráter marcadamente interdisciplinar tanto nos seus quadros pedagógicos como nos seus modos de criação, produção, pesquisa e extensão (FABIÃO, 2012, p.5).

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Coletivo também tem sido o processo de reunião de vários (ex-)alunos para desenvolver ações de pesquisa de linguagem e por em prática seus projetos, organizando-se em grupos e companhias, tais como: Grupo Pedras, Teatro Inominável, Coletivo Errante, )bandismos( ,Pé de Cabra Coletivo, Grupo Barka, Companhia Volante, Realizadora Miúda, Tentáculos Espetáculos, Companhia Black-Tie, Companhia Monte de Gente, dentre outros1; “(ex-)alunos” porque tais iniciativas são feitas tanto por ex-alunos quanto pelos que ainda estão se graduando. Muitas vezes também englobam alunos de outros cursos da UFRJ (como Cenografia, Indumentária, Radialismo, Dança, Música) e de outras instituições (como UNIRIO – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, CAL – Casa das Artes de Laranjeiras, Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Pena), além de pessoas de fora do âmbito universitário. Cada coletivo com suas especificidades e formas de relação, organização, criação e produção. O formado em Direção Teatral da UFRJ pode atuar de variadas formas2: como diretor de espetáculo; diretor de atores em filmes ou vídeos; diretor de vídeos publicitários; animador cultural em instituição de lazer e cultura; programador cultural na área de artes cênicas; consultor para projetos culturais; produtor cultural; pesquisador; ator; iluminador; professor; dentre outras possibilidades – imbricadas ou não entre si. [...] não basta formar o profissional; a condição de artista, como de cientista, requer invenção e auto-invenção. [...] o encenador de hoje inscreve-se cada vez mais em um jogo de agenciamentos coletivos de criação onde os contornos da sua figura ten-

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Alguns grupos já se desfizeram, alguns componentes se juntaram a outros e formaram novos coletivos.

2

Disponível em: http://eco.ufrj.br/index.php/2015-07-21-20-02-16/direcaoteatral. Acesso em 23 set. 2017.

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Coletivos da Direção Teatral: da universidade para a cidade

dem a borrar-se. Importam mais os funcionamentos (processos onde estão implicadas trocas de posição) do que as funções (GADELHA, 2012, p. 12-13; grifos meus).

Percebe-se que, para além da formação acadêmica como diretores para inserção no mercado de trabalho, o curso tem formado artistas múltiplos e multiplicadores, que podem atuar em diversas áreas/funções, que buscam o pensamento crítico e estratégias inovadoras. É a Universidade como território potencial de incentivo à experimentação, “espaço para experimentos que, no limite, podem romper com a tradição e inventar uma nova cena” (GADELHA, 2012, p. 8), que se articula com a cena teatral contemporânea, oxigena e se reinventa a partir da cidade. Nas palavras de um ex-aluno da Direção Teatral, Marcus Galiña, [...]a galera da UFRJ está aí, ocupando uma boa parte da cena teatral carioca por causa desse espaço de formação, de uma cena que pode ser mais alternativa e uma forma de representação que foge um pouco desse mercado mais da comédia, dos globais... Acho que a UFRJ cria um nicho aí bem diferenciado, que está reverberando na cidade (HUGO & ROTHE, 2012, p. 20).

As Mostras de Teatro da UFRJ têm indicado um crescimento de criações coletivas e colaborativas3, bem como de textos de autoria do próprio aluno-diretor e de novos dramaturgos (outros 3

Resumidamente, a criação coletiva ocorre quando todos do grupo tiveram o mesmo “peso” na elaboração e nas decisões dramatúrgicas. Criação colaborativa engloba um espaço coletivo de opinião e criação, mas com o tratamento de texto centralizado por dramaturgo(s). Para maiores detalhes, ver Trotta (2006, p. 161), que sintetiza características das duas modalidades em um quadro comparativo

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CICLORAMA - v.6, 2018

alunos ou externos). Embora a encenação de textos considerados “clássicos”4 ainda seja maioria absoluta, as demais categorias somadas quase a alcançam numericamente (86 de “clássicos” e 71 das demais):

MOSTRA DE TEATRO DA UFRJ TIPO DE TEXTO / DRAMATURGIA EDIÇÃO DA MOSTRA

CRIAÇÃO COLETIVA OU COLABORATIVA

TEXTO DO(A) PRÓPRIO(A) ALUNO(A)DIRETOR(A)

TEXTO DE OUTRO(A) ALUNO(A) DE DIREÇÃO TEATRAL

TEXTO DE NOVOS DRAMATURGOS (FORA DA DIREÇÃO TEATRAL)

TEXTOS "CLÁSSICOS"

TOTAL DE PEÇAS

I (2001)

2

2

0

0

3

7

II (2002)

0

1

1

0

6

8

III (2003

0

2

0

0

3

5

IV (2004)

0

3

0

0

5

8

V (2005)

0

1

1

0

6

8

VI (2006)

0

0

1

0

9

10 10

VII (2007)

0

5

0

1

4

VIII (2008)

1

1

1

0

5

8

IX (2009)

0

0

2

1

9

12

X (2010)

1

3

0

0

6

10

XI (2011)

4

2

0

1

3

10

XII (2013)

3

1

0

0

4

8

XIII (2013)

1

3

0

1

5

10

XIV (2014)

2

2

1

0

8

13

XV (2016)

0

1

1

1

2

5

XVI (2016)

4

0

0

4

2

10

XVII (2017)

5

3

0

1

6

15

TOTAL

23

30

8

10

86

157

Montar criações coletivas, colaborativas, autorais e novos autores demonstra como, cada vez mais, os alunos de Direção Teatral trazem para sua formação as pulsações da cidade, da 4

O conceito de “clássico” é mais complexo do que a abrangência deste artigo. Assim, aqui chamo de “clássicos” os autores mais conhecidos/mais montados da dramaturgia mundial.

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Coletivos da Direção Teatral: da universidade para a cidade

conjuntura5, as reflexões que os movimentam, suas posições políticas (não no sentido político-partidário, mas de pensamento sobre o que está à sua volta e em relação aos outros). E tudo isso também suscita a organização de coletivos, à medida que exercitam as possibilidades de diálogos, de imbricar olhares, compartilhar indagações e enriquecer os processos de pesquisa a partir dos múltiplos sujeitos envolvidos. As novas condições de produção coletiva iriam naturalmente forçar nos grupos a necessidade de constituírem um repertório dramatúrgico próprio, abrindo caminho para novos autores, dentro e fora do grupo e, posteriormente, promovendo a prática das criações coletivas (GARCIA, 2009, p.44).

Da Universidade para a cidade Se a Universidade se coloca como local propício à liberdade criativa, como se apresenta o território da cidade, perpassado por disputas e negociações, em constante processo de construção e significação? Sim, território heterogêneo e diversificado, embora apareça como espaço de uma pseudoliberdade de circulação – “suposta autonomia política e cinética do cidadão contemporâneo” – e de suposta neutralidade, como aponta Lepecki (2011, p.47). O que fazer numa conjuntura em que leis de incentivo e editais são os principais instrumentos de execução e circulação de projetos, em que se depende de pautas nas ocupações dos teatros públicos, ou pagar caros aluguéis nos espaços particulares para por suas criações em contato com o público? Isso quando não ocorrem cortes de verba e “calotes” do go-

5

Inclusive quando montam “clássicos” e os atualizam historicamente.

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CICLORAMA - v.6, 2018

verno6. De que forma os coletivos são afetados e enfrentam propositivamente esse contexto? Como têm-se inserido nos territórios simbólicos da cidade, nos âmbitos da produção, circulação e recepção? O estabelecimento de redes, a pesquisa continuada, a experimentação, os questionamentos, a busca por novos territórios e relações com o público são alternativas criativas e estratégicas para realizarem e circularem seus projetos (principalmente os que possuem caráter mais autoral), ainda que via editais e festivais. Geralmente, a realização de projetos teatrais começa com um proponente (diretor, produtor ou o próprio coletivo) encabeçando a ideia, submetendo-a a leis de incentivo e/ou inscrevendo-a em editais, e convocando profissionais de diversas áreas para trabalhar durante determinado período de tempo, por determinado valor, conforme suas atribuições e o que estiver definido em contrato. Nem sempre estes profissionais já se conhecem e o processo de criação deve se enquadrar no cronograma de execução do projeto – pois há prazos específicos de pré-produção, realização e pós-produção. Processo finalizado, estes profissionais serão chamados para novos projetos, de outros e/ou do mesmo proponente. Esta é a lógica hegemônica do mercado cultural. Sem prescindir deste processo e para além dele, os coletivos formados na Direção Teatral também têm desenvolvido iniciativas que prezam não apenas por realizar/circular seus projetos, mas discutir cidade, universidade, o artista-pesquisador/produtor, trocar experiências, promover pesquisas de linguagem con6

Em 2016, o Coletivo Errante, dentre outros proponentes, foi contemplado com o edital do Programa de Fomento às Artes da Secretaria de Cultura da Prefeitura do Rio de Janeiro, para realização de seus projetos em 2017, mas em 28/06/2017, a Prefeitura decidiu não pagar nenhum dos contemplados: https://oglobo.globo.com/cultura/prefeitura-do-rio-decide-nao-pagarprograma-de-fomento-as-artes-2016-21531039. Acesso em 22 set.2017.

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Coletivos da Direção Teatral: da universidade para a cidade

tinuadas. Expressam uma vontade de ressignificar e reterritorializar suas criações, ocupando a cidade de variadas maneiras; bem como a possibilidade de atuar em distintas posições artístico-profissionais. Iniciativas estas que também são formas de atuação política através da arte e da cultura. Segundo Abreu (2008), o teatro de grupo revive o poder de intervenção social da universidade, em que seus membros dedicam o empenho de politização aprendido na academia à prática criativa do teatro e Picon-Vallin (2008, p. 85) reforça que ele é “a única força de oposição ao teatro comercial”. Quando os coletivos buscam novos territórios de apresentação, também é uma forma de se aproximar de públicos que, por diversos fatores (econômicos, sociais, culturais), nem sempre vão/podem ir aos “espaços tradicionais” do teatro. Amplia-se o contato com quem, por vezes, tem acesso cultural restrito às manifestações teatrais, até mesmo no sentido de uso/fruição, e não de consumo. Relações coletivas Os procedimentos coletivos de criação e produção são uma das marcas do teatro no século XX, inventando novos caminhos a partir da sensibilidade e do questionamento dos artistas (GARCIA, 2009). Como aponta Picon-Vallin (2008), “teatro de grupo” é uma tautologia que tem sentido ao enfatizar uma experiência que se refere a um trabalho conjunto, de longo prazo, de convicções partilhadas, de intensa pesquisa (similar a um laboratório). No entanto, não é porque se faz parte de um coletivo que se suprimem as singularidades e que todos os pensamentos, opiniões e desejos são homogêneos. Conforme Arendt (1998), “a política baseia-se na pluralidade dos homens” (p.21); “surge no intra-espaço e se estabelece como relação” (p.23). É uma negociação entre os diferentes, um encontro que permite a troca, o diálogo. 136


CICLORAMA - v.6, 2018

E Rancière (1996) reflete sobre a articulação entre política e arte, visto que ambas operam com o dissenso, com a fricção no hegemônico e no homogêneo, fundamental para que não caiamos em autoritarismos. Além de presente nas próprias relações do coletivo, a política também está no que se propõe e se desenvolve, por exemplo, quando se atua em espaços não tradicionais de ensaios e apresentações, com potência de mobilização, por uma demanda estética e/ou ideológica: “[...] uma operação política por excelência, na criação que esses grupos acabam estabelecendo entre os espaços criativos próprios, os espaços públicos e os fenômenos sociais da cidade” (ABREU, 2008, p. 91). Ou quando a política é a própria temática da criação, seja por militância direta, seja por uma consciência política da relevância de determinados assuntos em determinada conjuntura. Mesmo com todas as intenções, ações e estratégias, a sobrevivência e o trabalho continuado dos coletivos são extremamente afetados por um contexto em que é difícil que o próprio indivíduo que compõe o grupo se sustente financeiramente, em que cada vez mais a arte e a cultura ficam relegadas ao plano do desnecessário, do que não é primordial – embora sejam campos transversais a todos os âmbitos da vida social. Lidar com as diferenças, dialogar, experimentar, pesquisar, arriscar, questionar, refletir, produzir, ocupar, circular, se posicionar: que sejam não apenas ações dos coletivos, mas que inspirem motivações no plano micro – em todos nós – que reverberem no macro.

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Coletivos da Direção Teatral: da universidade para a cidade

BIBLIOGRAFIA ABREU, Kil. “Experimentação e realidade: grupos e modos de criação teatral no Brasil”. In: GARCIA, Silvana & SAADI, Fátima. Próximo ato: questões de teatralidade contemporânea. São Paulo: Itaú Cultural, 2008. ARENDT, Hannah. “O que é política?” In: O que é política? - fragmentos de obras póstumas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. FABIÃO, Eleonora. “Salve!” In: SCHNEIDER, Adriana et al (orgs). Cenas transversais: memórias e perspectivas futuras. Rio de Janeiro: UFRJ/Escola de Comunicação, 2012. GADELHA, Carmem. “Dramas, comédias e lembranças”. In: SCHNEIDER, Adriana et al (orgs). Cenas transversais: memórias e perspectivas futuras. Rio de Janeiro: UFRJ/Escola de Comunicação, 2012. GARCIA, Silvana. “Dramaturgia nos processos coletivos de criação – uma introdução”. In: SAADI, Fátima (ed.) Revista Folhetim, no 28, p. 37-49, Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2009. HUGO, Vitor & ROTHE, Pedro. “Nossa prática é impossível”. In: SCHNEIDER, Adriana et al (orgs). Cenas transversais: memórias e perspectivas futuras. Rio de Janeiro: UFRJ/Escola de Comunicação, 2012. LEPECKI, André. “Coreopolítica e coreopolícia”. In: Ilha Revista de Antropologia, no 1, v. 13, p. 41-60, Florianópolis: UFSC, 2011. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/2175-8034.2011v13n1-2p41/23932>. Acesso em 28 mar. 2018. PICON-VALLIN, Béatrice. “A propósito do teatro de grupo. Ensaio sobre os diferentes sentidos do conceito”. In: GARCIA, Silvana & SAADI, Fátima. Próximo ato: questões de teatralidade contemporânea. São Paulo: Itaú Cultural, 2008. RANCIÈRE, Jacques. “O dissenso”. In: A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras; Brasília: Ministério da Cultura; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1996. TROTTA, Rosyane. “Autoralidade, grupo e encenação”. In: Revista Sala Preta, v. 6, pp. 155-164, São Paulo: USP, 2006. Disponível em: <http://revistas.usp.br/salapreta/article/view/57305>. Acesso em 06 jul. 2018.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Reitor Roberto Leher Vice-Reitora Denise Fernandes Lopez Nascimento Pró-Reitoria de Graduação Eduardo Gonçalves Serra Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Leila Rodrigues da Silva Pró-Reitora de Extensão Maria Mello de Malta CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Decano Marcelo Macedo Corrêa e Castro Vice-Decano Vantuil Pereira Coordenação de Integração Acadêmica de Graduação Rejane Maria de Almeida Amorim Coordenação de Integração Acadêmica de Pós-Graduação Juliana Beatriz Almeida de Souza Coordenação de Extensão Pedro Paulo Bicalho ESCOLA DE COMUNICAÇÃO Diretora Ivana Bentes Vice-Diretora Suzy dos Santos Direção Adjunta de Graduação Carine Prevedello Coordenação Geral de Pós-Graduação Gabriela Lírio Gurgel Monteiro Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena Elizabeth Jacob Direção Pedagógica de Extensão Alessandra Vannucci Coordenação de Direção Teatral Jacyan Castilho

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2 Ciclorama 1 C.indd 2

17/11/2014 11:29:48


Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral Ano VI, Número 5

ISSN 2596-2485

5 Escola de Comunicação Universidade Federal do Rio de Janeiro

Ciclorama5_2018_capa.indd 1

04/01/2019 16:58:25


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