ISSN 2596-2485
Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral V. 8, 2020
Escola de Comunicação Universidade Federal do Rio de Janeiro
Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral V. 8, 2020
Centro de Filosofia e Ciências Humanas Escola de Comunicação
Rio de Janeiro 2020
V. 8, 2020 Corpo editorial Caio Riscado Carmem Gadelha Érika Neves Felipe Valentim Revisão Carmem Gadelha Felipe Valentim Revisão de normas técnicas Caio Riscado Érika Neves Capa e diagramação Beatriz Cardeal (bolsa AtivInt/DT) Orientação: Andréia Resende Produção Érika Neves
C568 CICLORAMA – Cadernos de Pesquisa da Direção Teatral. – vol. 1 (2013) - . – Rio de Janeiro: UFRJ, Escola de Comunicação, 2013 v. Anual. A partir de 2018 passou a ser publicada em formato eletrônico. Disponível em: https://issuu.com/ciclorama ISSN 2318-6232 (versão impressa) ISSN 2596-2485 (versão on-line) 1. Artes cênicas – Periódicos. 2. Teatro – Produção e direção Periódicos. I. Gadelha, Carmem. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Comunicação. CDD: 792
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Editorial
— ABERTURAS 17
Rua, substantivo feminino: mulheres que nomeiam a cidade e as errâncias urbanas como resistência Priscila de Barros Cipriano
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Um buraco em transformação na cidade do Rio de Janeiro: performances do cuidado Isadora Giesta
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Nau frágil: a não-fragilidade da obra de Priscila Rezende Bernardo Pimentel
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Existência e (re)existência: memória como método de reconstrução da cena Desirée Santos
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Coletivo Bonobando: reinvenção artística durante a crise do coronavírus Hugo Bernardo Souza
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Um avô que era sonho: processo de criação autoficcional Pedro Barroso Mantel
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O trágico na cena contemporânea: intersecções entre teatro, história e cinema Nicolas Alexandria
— VENTOS 79
Sequências de espaço-tempo: o suporte da página como elemento expressivo Luiza Leite
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O impossível como matéria de pensamento e ação Entrevista com Eleonora Fabião por Elilson
— PASSAGENS 119 O cinema happening de José Agrippino de Paula Sidnei Cruz 127 A cena autoficcional como ato estético-político para performar outras masculinidades Gabriel Antunes Morais 135 Carta para Cassils: Transição é sempre Mariah Valeiras Aguiar Miguel
Editorial
O número 8 de Ciclorama é um suspiro em meio às incertezas relativas não só a questões de saúde pública, mas também quanto aos rumos da ciência, da pesquisa e da educação na desastrada gestão política que agride o Brasil. Manter, nesta conjuntura, um veículo de divulgação da pesquisa científica demanda esforço de resistência e crença na arte e na ciência. A reflexão ajuda a viver as adversidades impostas durante todo o período de 2020. A Covid-19 expôs nossas já conhecidas fragilidades sociais, acentuou as desigualdades e forçou toda uma nova dinâmica de ensino-aprendizagem, sem abrir espaço e tempo para considerarmos os previsíveis prejuízos vindouros. Fomos desafiados a produzir formas de presença e encontro, tanto para enfrentar a solidão do isolamento quanto para manter a produção e a orientação de arte e trabalhos teóricos, transpondo o debate das salas de aula para o ambiente virtual. Não são tarefas simples, tendo em vista o cenário nacional negacionista, anticiência e antiarte. As agressões políticas têm foco específico: o pensamento crítico. Convenhamos, o ataque é certeiro; a depreciação do conhecimento é insistente, seja no corte do fomento à pesquisa, seja no tratamento dos campos do saber e seus conteúdos como componentes descartáveis. Existir e resistir são esforços reafirmados há, pelo menos, três edições de Ciclorama. Neste meio-tempo, vieram algumas conquistas, como a criação do Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC). Assumindo tais exer7
cícios, temos colhido frutos positivos que nos estimulam a caminhada. Este número apresenta mudanças que pretendem colocar em relevo o esforço acadêmico empenhado em pesquisar e produzir arte, mesmo com todo o sufocante quadro que emoldura o Brasil desde o golpe parlamentar de 2016. Criamos mais uma seção, destinada a professores de nossos cursos e outros que têm colaborado conosco; demos a ela o nome de “Ventos”, posta – sopros ou brisas – entre “Aberturas” e “Passagens”. A nova cena abre-se com Luiza Leite, que concluiu sua pesquisa de Pós-Doutorado no PPGAC-UFRJ. Seu trabalho se debruça sobre a escrita acadêmica e novas estratégias de produção e circulação de textos. A “prata da casa” representa-se também por uma entrevista de Eleonora Fabião, professora e pesquisadora da Direção Teatral (ECo-UFRJ) e do PPGAC. Ela conversa com Elilson Nascimento, nosso ex-aluno de Mestrado. Na entrevista, Eleonora e Elilson falam sobre o campo das expressões e práticas performativas, trazendo as interconexões entre atividades realizadas como dimensões de uma mesma prática artística. Com esta nova seção, pretende-se dar visibilidade à produção artística e de pensamento realizada na Universidade, além de observar as trocas com o meio externo. Com a intenção de ampliar o alcance do olhar sobre a escrita acadêmica, a revista se volta para as inquietações de nossos alunos-pesquisadores. Optamos por acolher uma construção linguística que já surgiu (e desencadeou debates) em outras edições: a tentativa de propor um gênero “neutro” para a língua portuguesa. É fundamental refletir sobre tal esforço, uma vez que agenciamentos biopolíticos visam a aniquilar subjetividades e corpos desviantes de um modelo hegemônico. É importante chamar atenção para um fato: o acolhimento, aqui, tem sentido pedagógico, considerando-se que a língua é um fenômeno em constante transformação. Isto implica a necessidade de refletir sobre as marcas históricas apresentadas. Mário 8
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de Andrade já observava: “se cada um fizer também das observações e estudos pessoais a sua gramatiquinha muito que isso facilitará pra daqui a uns cinquenta anos se salientar normas gerais, não só da fala oral transitória e vaga, porém da expressão literária impressa, isto é, da estilização erudita da linguagem oral”. De fato, muitas das contribuições de Mário foram absorvidas pelo chamado “registro culto” da língua; outras se tornaram marcas de um estilo pessoal, sem alcance capaz de modificar usos gerais. Cabe destacar: os modernistas tratavam de combater o eruditismo e abrir-se para o que circulava fora dele, na fala cotidiana como na poesia e na prosa populares e locais. Ombreando com Mário, Oswald falava da “contribuição milionária de todos os erros”. Por outro lado, considere-se: entre a rigidez da norma e sua dispersão, interpõem-se hábitos, trocas interregionais e locais, geracionais e de classe social que forçam tanto atitudes de mudança quanto necessidades de conservação de padrões. Destaquem-se alguns exemplos relacionados a um possível gênero neutro na língua portuguesa: 1) a mera mudança de um substantivo masculino por seu correlato feminino implica apenas uma troca de sinais, sem que se deixe de englobar em uma só designação as diferenças entre gêneros no interior de um determinado grupo (os/uns alunos, as/ umas alunas); 2) temos frequentemente encontrado a mudança de um substantivo ou adjetivo sem que se mude o artigo a ele ligado. Assim, “os amigues” permanece no masculino; encontram-se também ocorrências de artigo que substituem as/os por “es amigues”. Porém, nada garante a sua assimilação pela língua. É conveniente lembrar que não falamos inglês, onde os artigos são neutros porque a flexão de gênero está no substantivo ou adjetivo; 3) a força do hábito pode provocar situações nas quais um parágrafo apresente um registro que não se mantenha em um parágrafo seguinte de um mesmo texto; 4) haverá problemas de concordância de gênero, caso, por exemplo, 9
artigos, pronomes, substantivos e adjetivos não forem igualmente mudados; 5) ambiguidades do tipo “modos de ser solidárias” obrigam à verificação de contextos: se o adjetivo se referir a modos, há discordância. É possível que enunciados do tipo “todos e todas” se consagrem, assim como o habitual “senhoras e senhores”. Mas cabe também dizer que, além da possibilidade, comumente apontada, do espelhamento feito pela língua a opressões de qualquer ordem, há o aspecto da economia linguística, que leva ao uso do masculino para designar todos os gêneros. Questões ideológicas coexistem com problemas de outras ordens. Em qualquer caso, é necessário tomar como problemáticas as relações da língua com a cultura, da gramática e o que se supõe romper com ela. Vale lembrar Foucault: a língua atua muito mais pelo que nos obriga a dizer do que pelo nos liberta. E nascemos imersos nela. “Aberturas” continua introduzindo todas as seções de nossa revista; e agrupa os trabalhos da Iniciação Científica da Direção Teatral. Priscila de Barros Cipriano abre a seção com sua pesquisa sobre as mulheres que nomeiam as ruas da cidade do Rio de Janeiro; em seguida, Isadora Giesta apresenta uma série de relatos cotidianos que têm início com um fato ocorrido na rua de sua casa. Nessa reunião de relatos e de observações registrados durante o isolamento desencadeado pela Covid-19, Isadora propõe-se pensar uma performance do cuidado. Priscila e Isadora trazem a performance como ferramenta de investigação de problemas de natureza social. Bernardo Pimentel e Desirée Santos reforçam a potência da performance para visibilizar o debate identitário. Ele propõe uma reflexão a partir do trabalho da artista brasileira Priscila Rezende, considerando os aspectos estéticos, políticos, históricos e sociais que cercam a produção. Ela apresenta uma análise sobre os procedimentos adotados na construção da dra10
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maturgia do espetáculo Corpo minado (2018), do Grupo Atiro. Este é um ponto de partida para abordar o teatro negro contemporâneo, evidenciando o “performar a memória” como método de investigação e de reconstrução da cena teatral. Hugo Bernardo Souza e Pedro Barroso Mantel falam dos desafios que a pandemia trouxe à cena teatral. Hugo analisa como o Coletivo Bonobando lida com a necessidade de reinvenção artística que este período impõe, uma vez que “o vírus não é democrático”. Pedro partilha o processo de criação do espetáculo autoficcional Um avô que era sonho (2020), que ele mesmo escreveu e no qual atuou. O trabalho de Pedro traz à tona os desafios de criação de um “espetáculo virtual”, analisando o processo desde a elaboração da dramaturgia até os dispositivos estéticos implicados. Por fim, Nicolas Alexandria reflete sobre as possibilidades de pensar o trágico na cena contemporânea, valendo-se das questões políticas que envolveram a produção do filme O leão de sete cabeças, de Glauber Rocha. Esta narrativa fílmica é pensada no arranjo simbólico como um ponto de intersecção problemático entre teatro político, história e cinema. Em “Passagens”, os doutorandos do PPGAC Sidnei Cruz, Gabriel Morais e a mestranda Mariah Valeiras apresentam recortes das reflexões sobre a pesquisa que desenvolvem no programa. A Sidnei interessa investigar José Agrippino de Paula e sua inserção na contracultura; apresenta, aqui, uma leitura do filme Hitler Terceiro Mundo (1968), um clássico do nosso Cinema Marginal. Gabriel procura aprofundar os estudos sobre o “teatro performativo autoficcional”, tema que desenvolveu em seu Mestrado, agora em articulações com o debate identitário acerca das masculinidades desenhadas e impostas ao paradigma social contemporâneo. Mariah endereça uma carta ao performer Cassils, comentando o trabalho do artista em articulações com o mote teórico da pesquisa em desenvolvimento. Mariah traça 11
este caminho dialógico porque entende a epistemologia e a estética da transgeneridade como chaves para pensar sobre força, arte da performance e criação de corpo. O intuito deste número é refletir, sobretudo, a respeito dos marcadores sociais e suas relações com o campo expandido das produções em arte. É nítido o aumento de interesse dos estudantes em pensar práticas que tensionem as movências de gênero, sexualidade, raça, etnia e classe. Destaca-se a forte influência da performance na edição, trazendo contribuições não só de leituras, mas de experiências práticas dos próprios discentes. Observem-se os cruzamentos temáticos entre as seções e os diferentes segmentos de pesquisadores. Os artigos de Priscila, Isadora, Bernardo e Mariah estabelecem uma conversa potente com a entrevista de Eleonora. As práticas expandidas, com destaque para pesquisas autoficionais e as relações entre o teatro e a performance têm, nos artigos de Gabriel e Pedro, defesas de uma cena que parte do pessoal, mas sem cair no risco da elaboração de um espaço destinado ao culto de si. O artigo de Luiza Leite detalha e discute a expansão das textualidades, os novos sentidos que giram em torno das publicações e os modos de fazer escrita que estão, constantemente, reelaborando-se. Há uma ponte entre o texto de Luiza e Mariah, cujo artigo é uma carta. Saltam aos olhos as menções feitas à pandemia e todo o seu impacto na produção artística. Os editores confessam o prazer que, enquanto leitores, experimentaram na fruição de todos os textos.
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Sempre é tempo de peste, quando são os loucos que guiam os cegos.
William Shakespeare
— ABERTURAS
Rua, substantivo feminino: mulheres que nomeiam a cidade e as errâncias urbanas como resistência Priscila de Barros Cipriano* O objetivo do presente artigo é refletir sobre as potencialidades da performance urbana articulando três referências: biografias de mulheres que nomeiam ruas da cidade do Rio de Janeiro, memórias “corpográficas” da artista-pesquisadora que realiza este estudo e a prática de errâncias urbanas como ferramenta de resistência artístico-política. Ao longo do caminho, serão acionados os conceitos de “corpografia”, “cidade-espetáculo” e “errâncias urbanas”, conforme articulados em estudos da arquiteta e urbanista Paola Berenstein Jacques (2005); da teórica da dança Fabiana Dultra Britto (2012); as noções de “coreopolítica” e “coreopolícia” propostas pelo teórico da dança e da performance André Lepecki (2011). Palavras-chave: performance urbana – errância urbana – feminino
* Orientação: Eleonora Fabião. Bolsa PIBIAC.
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Uma corpografia itinerante Nasci na cidade de Brasília, Distrito Federal, passei parte da infância em Salvador, Bahia, e cheguei ao Rio de Janeiro aos 8 anos. A primeira parte da minha infância foi marcada por estar em trânsito, mudar frequentemente de casa, trocar de escola, conhecer novas pessoas e, repetidamente, me despedir. Aos 12 anos, eu me mudei para a casa 101 da Rua Maria Augusta da Silva, Centro de São João de Meriti, Baixada Fluminense. Lá, vivi por 16 anos; e foi a partir dali que comecei a vivenciar a cidade sozinha, sem a supervisão de um/a responsável. Com 18 anos, fui estudar no Centro da capital, a 26 km de distância da minha residência. Foi então que iniciei uma nova fase de trânsito, o mesmo que milhões de trabalhadoras/es experimentam todos os dias: longas jornadas de deslocamento para estudar, trabalhar e/ou ter acesso à cultura e lazer em uma cidade mais equipada. Entretanto, não direi que este é um típico deslocamento centro-periferia – as noções de “centro” e “periferia” parecem definir uma relação de subalternidade que inferioriza a cidade menor, o que não condiz com a minha experiência. Porém, fato é que as experiências de enfrentar horas diárias num transporte público precarizado; da insegurança no ir e vir; da falta de investimento e interesse político nos espaços urbanos para além dos cartões postais; do “ser” de um lugar e “estar” constantemente em outro moldaram meu corpo. Minha “corpografia” se fez nesse entre-lugar, no vai-e-vem entre cidades. Quando utilizo o termo “corpografia” me refiro ao conceito conforme elaborado pela arquiteta e urbanista Paola Berenstein Jacques e pela teórica da dança Fabiana Dultra Britto no artigo “Corpocidade”. As autoras definem:
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A cidade é percebida pelo corpo como conjunto de condições interativas e o corpo expressa a síntese dessa interação descrevendo, em sua corporalidade, o que passamos a chamar de “corpografia” urbana. A “corpografia” seria uma espécie de cartografia corporal em que não se distinguem o objeto cartografado e sua representação. Uma ideia baseada na hipótese de que a experiência urbana fica inscrita, em diversas escalas de temporalidade, no próprio corpo daquele que a experimenta, e dessa forma também o define, mesmo que involuntariamente (BRITTO & JACQUES: 2009, p. 341).
Fica então exposta a relação processual e indissociável entre corpo e cidade, uma vivência cotidiana que produz esse tipo de cartografia realizada pelo e no corpo. Equilibrar-se no metrô em movimento, andar em calçadas improvisadas ou mal conservadas, atravessar no meio dos carros em movimento porque não há sinalização próxima, tudo isso cria memórias corporais, sensibilidades psicofísicas e modos de atenção que estão diretamente relacionados à cidade.
Nomes de ruas Morar em uma rua com nome feminino despertou em mim a curiosidade: quem foi Maria Augusta da Silva? Uma rua com nome feminino em um mar de ruas com nomes masculinos. Afinal, é fato, temos muito menos ruas com nomes de mulheres do que de homens na cidade. Este foi o ponto de partida para minha pesquisa em performance urbana: por que tamanha diferença? Quem foram essas mulheres? Como ruas são nomeadas? Meu primeiro passo foi realizar um levantamento das ruas-mulheres da cidade. Para lidar com os muitos nomes encon19
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trados, determinei dois critérios de exclusão imediata: santas católicas e esposas de homens importantes. Primeiro, porque me interessa conhecer mulheres brasileiras que nomeiem nossas vias e não há santas brasileiras; e, segundo, as esposas, infelizmente, são personagens sintomáticas da sociedade patriarcal em que vivemos e são biografadas apenas como “esposa de fulano”, sem identidade e vida próprias. Nomear a principal avenida do Centro do Rio de “Presidente Vargas” não é uma escolha aleatória. A corpografia das cidadãs/ãos fluminenses é também afetada e constituída por Presidentes Vargas, Rios Brancos, Mens de Sá, Condes de Bonfim, Almirantes Alexandrinos e tantos outros. É latente uma determinada concepção de cidade a partir das escolhas dos nomes de suas ruas. O batismo das vias públicas é responsabilidade da câmara de vereadores e há alguns protocolos para tal. Por exemplo, ninguém que esteja vivo pode nomear um espaço público. É preciso também que algum/a vereador/a tenha interesse – pessoal ou institucional – e inicie um longo processo burocrático. Ou seja, é um procedimento que depende muito mais da representação municipal do que da sociedade civil e isso diz muito sobre o tipo de cidade em que vivemos.
A cidade olímpica-pandêmica Na última década, com os grandes eventos esportivos que o Brasil recebeu, testemunhamos o avanço da espetacularização de muitas cidades brasileiras. Acompanhamos uma série de remoções de moradores para construção de avenidas, estacionamentos e hotéis; a “revitalização” de espaços através de construções faraônicas sem função efetiva pós-evento; a gentrificação que expulsou os moradores mais pobres de bairros onde viviam há tempos. Esse processo de mercantilização glo20
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balizada, que visa ao turista internacional e desconsidera a população local, é um fenômeno que Paola Jacques chama de “espetacularização das cidades”. De acordo com o conceito cunhado pela autora, a espetacularização transforma a cidade em um cenário tão fotogênico quanto vazio, e enquadra a/o cidadã/ão como espectador/a passiva. A “cidade-espetáculo” é uma cidade sem organicidade, “para inglês ver”. Assim, há uma hipótese de conexão proporcionalmente inversa entre a participação popular e o nível de espetacularização de uma cidade: quanto mais os espaços públicos são reivindicados, quanto mais as pessoas participam da construção efetiva da cidade, mais ela se encarna, ganha músculo, vida. Proponho que a performance urbana é uma das formas de romper com a lógica da espetacularização, é um modo de reivindicar a cidade. Entretanto, estamos vivendo um impasse. O Rio de Janeiro, que já sofreu todos os males da espetacularização, está agora ainda mais agonizante: a crise sanitária do coronavírus está matando dezenas de trabalhadoras/es todos os dias desde abril. E, nesse contexto de imprescindível distanciamento social, impossibilitada de performar nas ruas, busco por meio desta pesquisa e da escrita outros caminhos para afirmar meu direito à cidade. O presente estudo foi iniciado em janeiro de 2020 e minha coleção de ruas-mulheres e suas biografias já anda vasta. São muitos os nomes, histórias e imagens colecionados. Estou particularmente interessada nas ruas do meu bairro atual, Santa Teresa. Moro na Rua Paula Matos que, assim como Maria Augusta da Silva, ainda não consegui descobrir quem foi. Ao longo da pesquisa já fui pega de surpresa algumas vezes por nomes que pareciam femininos; mas, afinal, eram dois sobrenomes de um homem. Ou seja, não posso afirmar que Paula Matos foi uma mulher. Porém, minha rua faz esquina com a Rua Pintora Djanira e esta, com certeza, era mulher. Djanira 21
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da Motta e Silva foi uma importante artista que residiu na Rua Almirante Alexandrino 2603, ou seja, a 2,5 km de distância da rua que a homenageia. E foi nesta rua com nome de almirante, que Djanira instalou uma pensão que tornou-se um importante ponto de encontro para inúmeros artistas modernistas. Me indigna o fato de terem batizado com seu nome uma pequenina ruela escondida, enquanto a rua onde viveu e a qual movimentou com sua hospedaria, tenha o nome de um militar. Penso nos tantos Almirantes, Generais, Coronéis e Capitães que nomeiam ruas no Rio de Janeiro e me ocorre o conceito de “coreopolícia” cunhado pelo teórico da dança e da performance André Lepecki no artigo “Coreopolítica e Coreopolícia”. O coreopoliciamento seria essa forma de controle que o estado inflige a suas/seus cidadãs/ãos, mostrando que apenas alguns tipos de circulação e paragens são permitidos na cidade. Em Lepecki (2011, p. 55), Coreografia da polícia, dinâmica da polícia, cinética da polícia. Coreopoliciamento como implementação do insensato movimento insensível que predetermina uma cinética do cidadão em que as relações movimento e lugar, ou política e chão, são permitidas apenas se permanecem relações reificadas, inquestionáveis, imutáveis, e que reproduzem o consenso sobre o seu “bom senso”.
Acredito que nomear ruas também é uma vertente desse coreopoliciamento, pois nos faz andar na linha de Almirantes, Coronéis, Brigadeiros... Tal escolha, que talvez possa soar desimportante, nos coloca na retidão de um Almirante em detrimento da sinuosidade de uma mulher, da vibração de uma artista modernista. E se nossa cidade olímpica tem essa tendência a diminuir o feminino no batismo de suas ruas, o que dizer do feminino negro? Quando iniciei a pesquisa, imaginava que encontraria 22
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pelo menos duas ruas com nomes de mulheres negras que marcaram a história do Rio: Tia Ciata e Chiquinha Gonzaga. Porém, não foi o que aconteceu. Tia Ciata dá nome a uma Escola Municipal entre a Rua de Santana e a Avenida Presidente Vargas, perto do local onde morou e é considerado por muitas/os historiadoras/es o berço do samba. Já a maestrina Chiquinha, muitíssimo embranquecida pela cultura pop, nomeia uma travessa no bairro de Lins de Vasconcelos, tão escondida que sequer a encontrei no site oficial da Prefeitura. Nossa cidade não é apenas masculina, ela é masculina e branca.
Navegar o Rio a pé: as errâncias urbanas Até agora, a pesquisa vem mostrando que a antiga capital federal guarda em suas ruas uma herança fortemente masculinista, branca e militarizada. Em contrapartida, venho conhecendo experiências artísticas de performances urbanas que abrem diálogo e afirmam o sensível da cidade. Me interesso sobretudo por ações que envolvem errâncias urbanas, ações pautadas no simples ato de andar pela cidade guiada por princípios poéticos de forte carga política. Porém, desde março de 2020, a pandemia me submeteu a um distanciamento radical das experiências de cidade e vem transformando também minha corpografia. A paragem também é coreopolítica. Minha intenção, assim que possível, é realizar performances-errância; quero navegar pelas ruas-mulher e assim ressignificar não apenas a cidade-espetáculo, mas renovar minha relação com o Rio de Janeiro.
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BIBLIOGRAFIA BRITTO, Fabiana Dultra e JACQUES, Paola Berenstein. “Corpo e cidade – coimplicações em processo”. In: REV. UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2012, n. 1/2, v. 19, pp.142-155. Disponível em: https://www.ufmg.br/revistaufmg/pdf/REVISTA_19_web_142-155.pdf ----. “Corpocidade: arte enquanto micro-resistência urbana”. In: Fractal: revista de psicologia. Niterói: UFF, 2009, n. 2, v. 21, pp. 337-350. Disponível em: https://periodicos.uff.br/fractal/article/view/4751/4566 JACQUES, Paola Berenstein. “Errâncias urbanas: a arte de andar pela cidade”. In: ArqTexto 7. Rio Grande do Sul: UFRGS, 2005, pp. 16-25. Disponível em: https://www.ufrgs.br/propar/publicacoes/ARQtextos/PDFs_revista_7/7_Paola%20Berenstein%20Jacques.pdf LEPECKI, André. “Coreopolítica e coreopolícia”. In: Ilha Revista de Antropologia. Florianópolis: UFSC, 2011, n. 1, v. 13, pp.41-60. https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/2175-8034.2011v13n1-2p41
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Um buraco em transformação na cidade do Rio de Janeiro: performances do cuidado Isadora Giesta* O objetivo deste ensaio é apresentar um buraco aberto na Cidade do Rio de Janeiro, dentro de mim e também um jogo de baralho. Através de performances e brincadeiras realizadas durante o período de quarentena devido à pandemia de Covid-19, busco introduzir reflexões sobre cuidado, seus distintos significados e manifestações. A escrita performativa que se segue inclui teorias propostas pelo poeta e Doutor em Filosofia Rafael Zacca (2018), pelo líder indígena e escritor Ailton Krenak (2019) e pelo teórico do teatro e da performance Cassiano Sydow Quilici (2015). Palavras-chave: performance – cidade – cuidado
* Orientação: Eleonora Fabião. Bolsista PIBIAC.
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Um buraco em transformação na cidade do Rio de Janeiro: performances do cuidado
Existem vários tipos de buracos. A ferida, por exemplo, é um buraco aberto. O interior de uma casa também é um buraco aberto. A boca pode ser um buraco aberto, assim como a escuta. Porém, diferentemente da boca que abre e fecha, o buraco da orelha está sempre aberto. E, fato é, todos os buracos do corpo têm algo em comum: eles são totalmente diferentes do “buraco” que se joga com cartas. Há, ainda, outros tipos de buraco, profundos e muito difíceis de descrever. E há também buracos que a gente enxerga, sabe nomear e acha que nunca vão fechar, como, por exemplo, o buraco da minha rua. Buraco (substantivo masculino): cavidade ou depressão, natural ou artificial, num corpo ou numa superfície1. Dia 9 de abril de 2020 Em março de 2019, uma enxurrada passou e levou um pedaço do chão de paralelepípedo da rua onde moro no Bairro do Grajaú, Rio de Janeiro. Ao longo dos 12 meses seguintes, temos observado a evolução do buraco. Ele começou pequeno e foi-se transformando em uma cratera que modificou a logística do lugar. A Comendador Martinelli é uma rua sem saída, porém, muitas pessoas e carros transitam por aqui. Por conta do buraco, tornou-se necessário tomar muito cuidado e alguns motoristas nem se arriscam mais a cruzá-la. O caminhão do lixo, por exemplo, parou de passar. Temos que carregar os sacos até o início da rua. Quanto mais o buraco cresceu, mais nos adaptamos a uma espécie de “novo normal”. Escutei pela primeira vez a expressão “novo normal” – que, na verdade, se refere a um estado de coisas totalmente anormal – durante o período de quarentena, devido à pandemia de Covid-19. Em março de 2020, eu e milhões de pessoas, iniciamos 1
Dicionário virtual do Google.
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um processo de lockdown – mais um termo novo. Nessa mesma época, o buraco da minha rua fez aniversário de 1 ano. Eu não poderia deixar de comemorar a data e fui até ele com um pedaço de bolo e uma vela. Cantei parabéns, discursei e partilhei o bolo com os seguranças da rua. Se aglomeração não tivesse passado a ser um problema, uma questão vital, teria dado uma festança. Essa foi a primeira performance realizada na quarentena e a chamei de O parabéns furado. Como é possível, passado um ano, esse buraco ainda existir? Mesmo depois de aparecer em reportagens, mesmo sendo vizinho do então Governador da Cidade. Infelizmente, nós, cariocas, estamos mesmo acostumades ao descaso. A prefeitura prometeu agir, mas, como nos adverte o poeta e filósofo Rafael Zacca, no artigo O cuidado será uma pedagogia ou não será, são muitas as torções possíveis nas promessas políticas: O atual prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, afirmou que ia “cuidar das pessoas”, afirmação que precedeu medidas de controle social, cultural e moral da cidade (como o desmonte de centros culturais e a desarticulação parcial do carnaval de rua, por exemplo). “Cuidar das pessoas” significa, no discurso do prefeito, como no discurso de muitas das modernas instituições [...] domínio. “Cuidar do outro” não é nenhum cuidado. Ninguém cuida de ninguém – as pessoas dominam (ZACCA: 2018, s/p.).
Ou seja, discursos de cuidado podem, muitas vezes, desencadear ações de controle e dominação, quer dizer, resultar em desrespeito e descuido. Dia 20 de abril de 2020 O mês é de chuvas e mais um temporal caiu, deixando meu bairro sem luz. Era noite. Peguei uma xícara de café, botei uma 27
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vela acesa dentro e assisti a ela derreter, preenchendo o interior vazio daquele recipiente. Quando a luz voltou, a televisão ligou bem na hora de uma notícia sobre o número de pessoas mortas e infectadas pela Covid-19. Faltavam ainda uns 2 centímetros de vela para queimar e deixei acontecer, enquanto assistia ao jornal. Repeti isso alguns dias: olhar velas derretendo. Quando a última apagou, a xícara estava cheia até a borda. A cera, solidificada no interior da xícara, saiu inteirinha na minha mão, sem esforço, abrindo de novo espaço naquele recipiente. Um novo buraco. Dia 18 de maio de 2020 No cenário crítico da pandemia, o sentido da palavra cuidado vem modificando-se. O que era afeto – abraço, beijo, toque – agora tornou-se uma espécie de arma letal. As definições de cuidado estão sempre mudando? Nunca foi tão óbvio para mim o fato de que me cuidar é também cuidar diretamente de outre. Por isto, e porque tenho esta opção, permaneço em casa.
Dia 19 de maio de 2020 Tenho escutado muito que estamos vivendo “o fim do mundo”. Porém, esta é uma ideia que percorre a história da humanidade. O mundo já acabou muitas vezes. Em Ideias para adiar o fim do mundo, o líder indígena Ailton Krenak alerta sobre o presente momento: Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. [...] O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos (KRENAK: 2019, p.13).
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Aprendo com Krenak que cuidar é também viver a experiência da vida, é abraçar bons momentos, é cuidar das nossas casas – corpo, Terra. Quando cuidamos estamos adiando o fim. Sabemos como começa e como termina, mas o meio... O recheio é a melhor parte. Como dizia o filósofo meu pai, “curta a vida, pois a vida é curta”. Dia 6 de junho de 2020 Sempre fui caseira, mas ter que ficar em casa por tanto tempo, exaure. Neste sentido, seguir trabalhando na pesquisa me ajuda a manter o foco, pois me cuida. Dentre muitos, minha orientadora indicou um texto do teórico do teatro e da performance Cassiano Quilici. No capítulo A inquietude de si, Quilici diz que “criar também é uma forma de cuidar” (QUILICI: 2015, p.151). Ele se refere à arte “como modo de criar e cuidar das nossas formas de relação com o mundo e conosco mesmos” (idem, p.143). E reflete sobre a relação arte-vida no cotidiano: Transformação do cotidiano significa aqui a descoberta de um agir que não é o mero esquecer-se nas ocupações, o perder-se nos hábitos já cristalizados. Um agir renovado que começa na mudança de qualidade da própria percepção. [...] De qualquer forma, tudo começa com uma mudança de ponto de vista que desata o homem de um fazer e de um agir reativos, sobrecarregados de desejos de asseguramento do eu e de expansão do controle sobre as coisas (QUILICI: 2015, p. 143).
Motivada pela leitura, eu me propus um jogo. Por uma semana, todos os dias, faria algo de novo, buscando perceber as coisas ao redor com mais atenção e cuidado, em busca de outras experiências. No dia 1: me inscrevi em um curso de Francês online. Dia 2: decidi que sempre que tivesse que retornar a 29
Um buraco em transformação na cidade do Rio de Janeiro: performances do cuidado
um cômodo por ter esquecido algo, voltaria andando de costas. Dia 3: me aventurei a fazer uma aula de Qi Gong, prática chinesa parecida com Tai Chi Chuan. Dia 4: dancei todas as músicas de propaganda e de aberturas de programas que escutei na TV. Dia 5: limpei a janela do meu quarto até ficar tudo branquíssimo. Dia 6: toda vez que meu irmão, Caio, falava comigo, respondia entoando melodias. No final do dia cantávamos juntes. Dia 7: tive que ir ao mercado, uma velha coisa nova. Fui com Caio e propus as seguintes regras: não passar a mão na cara em hipótese alguma e estar sempre distante dos peões (pessoas) no tabuleiro (rua). Nesse jogo cooperativo, cada player tinha um poder especial. O meu: uma bolsa com objetos de poder (álcool 70% e cartão). O do Caio: foco e agilidade. Os irmãos Giesta terminaram todas as etapas da missão em menos de duas horas, inclusive a esterilização de cada produto, assim que chegamos a casa.
Dia 18 de agosto de 2020 Do alto da minha varanda, vejo o buraco que, neste dia, completa 1 ano, 4 meses e 9 dias de vida. Percebo que há uma movimentação nova – tratores e cerca de 10 pessoas trabalhando. A aproximação do período eleitoral fez com que o buraco fosse reconhecido como um problema e as obras começaram de fato. É isso. Dia 25 de agosto de 2020 Aqui preciso abrir parênteses (ou seria um pequeno buraco?): dizer que na minha família jogar cartas é uma tradição. Me lembro, ainda menina, de observar os mais velhos jogando buraco e se divertindo. Quando pude participar, minha “bisa”, 30
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matriarca da família, me ensinou a jogar “buraco fechado” e “buraco aberto”. Ao longo da quarentena, resolvi retomar a prática. Como não encontrei um baralho em casa, decidi fazer um. Demorei cinco dias produzindo as 104 cartas. Enquanto criava o baralho, observava pela janela as movimentações ao redor do meu objeto de pesquisa, meu parceiro de performance, o buraco da rua. Decidi, então, performar uma despedida. Convoquei o Caio, meu fiel escudeiro, para ajudar nessa empreitada. Assim, nasceu a ação Buraco aberto no buraco “ainda” aberto. Fomos até o local (quase dentro do buraco), abrimos uma mesa retrátil, posicionamos duas cadeiras e começamos o jogo. A partida durou cerca de 30 minutos e tivemos público. O Luizinho, um dos seguranças da guarita, acompanhou todo o processo. Disse que não sabia jogar, mas gostava de assistir. Achou o maior barato a gente estar lá, “jogando buraco no buraco”, frase que ele repetiu algumas vezes ao longo da partida. Ele até gravou um vídeo e mandou para a esposa. O Patrick, outro segurança, falou sobre como era “um protesto criativo esse aí que ‘cês tão’ fazendo”. Os demais espectadores foram pessoas que passavam na rua e paravam para observar. Convidei algumas para uma partida, mas nenhuma quis. Um senhor, depois de observar muito tempo, perguntou o que estávamos jogando. Quando eu disse “buraco”, ele ficou enfezado e gritou “Bolsonaro!”. Dia 9 de setembro de 2020 O buraco está quase todo coberto. A cavidade profunda que lá existia, agora dá lugar a cimento, terra, areia, pedras, encanamentos e uma espécie de cisterna (como alguns pontos de alagamento na Cidade do Rio possuem). Camada em cima de camada, com tubulações, veias, concreto até chegar à pele. 31
Um buraco em transformação na cidade do Rio de Janeiro: performances do cuidado
Dia 18 de setembro de 2020 Quando o buraco fechou, foi assim, de uma hora para outra. Acordei e não tive tempo de dizer adeus. Queria ter ido lá e enterrado alguma coisa significativa. Queria ter guardado nessa rua um pedaço da minha história. Ou, sei lá, uma cápsula do tempo para abrir daqui a uns 30/40 anos. Fico pensando se eu teria escrito uma carta narrando o que aconteceu em 2020, contando o que esse buraco representa na cidade, dizendo o que eu não fiz e queria ter feito. Fiquei sem ele. Buraco aberto, buraco fechado, buraco de tiro, buraco vazio, buraco na minha rua, no meu peito, buraco cheio de vazio. Buraco da boca pra falar, comer, cuspir e beijar. Buraco do nariz, da orelha, do cu. Buraco na terra que eu abro pra plantar, buraco pra enterrar. Dentre tantos buracos, me encontrei em um, segurei minha própria mão e decidi não soltar mais.
BIBLIOGRAFIA KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. QUILICI, Cassiano. O ator-performer e as poéticas da transformação de si. São Paulo: Editora Annablume, 2015. ZACCA, Rafael. “O cuidado será uma pedagogia ou não será”. In: Revista mesa – think peace (online). Niterói: PPGCA/UFF, 2018, n. 5. Disponível em: http://institutomesa.org/RevistaMesa_5/think-piece/
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Nau frágil: A não-fragilidade da obra de Priscila Rezende Bernardo Pimentel* Este artigo é uma reflexão sobre a performance Nau frágil (2019) da artista brasileira Priscila Rezende. Serão considerados aspectos estéticos, políticos, históricos e sociais relacionados ao trabalho. Referenciando as autoras feministas negras Djamila Ribeiro e bell hooks, veremos como a raça e o gênero da artista são aspectos cruciais da performance. Apresentada em dois locais diferentes, em uma rua na Polônia e em um teatro na Alemanha, Nau frágil será analisada como “arte orientada ao lugar” (site-oriented art), conforme articulado pela historiadora da arte e curadora Miwon Kwon. E, a partir de reflexões do teórico da dança e da performance André Lepecki, notaremos como a “matéria fantasma” afeta a criação, execução e recepção da performance. Palavras-chave: performance – arte orientada ao lugar – política
* Orientação: Eleonora Fabião. Bolsa PIBIAC.
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Nau frágil: A não-fragilidade da obra de Priscila Rezende
[Grada] Kilomba sofistica a análise sobre a categoria do Outro quando afirma que mulheres negras, por serem nem brancas e nem homens, ocupam um lugar muito difícil na sociedade supremacista branca por serem uma espécie de carência dupla, a antítese de branquitude e masculinidade. [...] Mulheres negras, nessa perspectiva, não são nem brancas e nem homens, e exerceriam a função de Outro do Outro (RIBEIRO: 2017, p.23-24.).
Inicio este artigo com a citação acima para informar que sou um homem branco. Reconheço meus privilégios e estou ciente de que escrever sobre uma performance de uma mulher negra pode suscitar discussões. Explico, portanto, que meu intuito não é me apropriar dos discursos do movimento negro e feminista. Meu intuito é refletir sobre a obra Nau frágil de Priscila Rezende, para, como estudante e artista de teatro, abrir caminhos antirracistas e antissexistas a partir das questões por ela levantadas. Espero, assim, contribuir para o debate na universidade e na cena teatral carioca. Priscila Rezende [1985–] é uma performer nascida em Belo Horizonte e graduada em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Minas Gerais. Seu trabalho aborda questões de “raça, identidade, inserção e presença do indivíduo negro e das mulheres na sociedade contemporânea”, conforme descrito em sua biografia.1 Exemplos de trabalhos recentes são: Bombril (2010) – performance em que a artista esfrega com seus cabelos objetos domésticos de metal como panelas e chaleiras – e All of which are american dreams [Todos estes são sonhos americanos] (2018) – instalação que consiste em uma sala com 38 blusas penduradas diante de uma parede com cinco balas calibre 38 cravadas, onde um áudio de batidas de coração é interrompido a cada 23 segundos por barulhos de tiroteio. Importante dizer 1
Ver o site da artista: http://priscilarezendeart.com/
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que as blusas são similares àquelas que pessoas negras vestiam quando foram assassinadas, com a diferença da artista ter feito um corte em formato de coração na altura do peito de todas. Em Nau frágil (2019), apresentada pela primeira vez em uma praça de Póznan, cidade polonesa, Priscila se posiciona em um círculo de rosas brancas. No centro deste círculo, há um barco repleto de rosas escuras (como a própria artista descreve). O barco a remo é branco e mede cerca de dois metros. Priscila, o barco e as flores estão cercados por quatro postes de madeira ligados por arame farpado. Estacas e arame formam uma cerca quadrada. A ação consiste em Priscila oferecer as rosas, uma por uma, para pessoas do público, e esperar que venham pegá-la de suas mãos. Para pegá-la, a pessoa terá que estender seu braço através da cerca. De acordo com o vídeo da performance, algumas pessoas aceitam a oferta, outras não.2 O título Nau frágil e o barco, que também tem algo de caixão com suas tantas flores, me remetem às embarcações que, repletas de africanos escravizados, chegavam ao Brasil na época da invasão colonial. Em entrevista, Priscila comenta sobre outra dimensão metafórica da imagem: [...] essas duas palavras (nau frágil) são similares a outra palavra: “naufrágio” – a pronúncia é a mesma, mas com outro significado. É um barco frágil, mas também é a situação de afogamento. É uma metáfora para a crise na Europa. Eu acredito que a Europa é um navio frágil, que não consegue lidar com a situação” (REZENDE: 2019, s/p.).
A artista se refere à “crise dos refugiados” iniciada em 2015, que envolveu mais de 744.000 pessoas, principalmente do Oriente Médio e África. Segundo o pesquisador Carlos No2
Ver, por exemplo, https://vimeo.com/431133174
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gueira da Costa Júnior (2015), o baixo desempenho econômico, guerras civis e governos antidemocráticos – mesmo após a Primavera Árabe – foram alguns dos principais motivos para as migrações. Estima-se que mais de 3.500 imigrantes tenham falecido nos trajetos, especialmente cruzando o Mar Mediterrâneo3 – inclusive Aylan Kurdi, uma criança síria de três anos que morreu afogada tentando chegar à ilha de Kos. A imagem do menino imigrante morto na beira da praia tornou-se um símbolo da crise. No caso do tráfico negreiro, a imigração foi severamente forçada. Cerca de 10 milhões de pessoas escravizadas foram trazidas para as colônias europeias entre os séculos XVI e XIX. Ao longo deste período, muitas mulheres negras foram abusadas, sendo o machismo mais um dos mecanismos utilizados pelos colonizadores para impor poder: Em um exame retrospectivo sobre a experiência feminina negra da escravidão, o sexismo era uma força opressiva tão grande quanto o racismo nas vidas das mulheres negras. O sexismo institucionalizado – ou seja, o patriarcado – formou a base da estrutura social americana junto com o imperialismo racial. O sexismo era uma parte integral da ordem social e política que os colonizadores brancos trouxeram de suas pátrias europeias e teve um impacto grave no destino das mulheres negras escravizadas (HOOKS: 2015, p. 30., minha tradução).
As mulheres negras escravizadas cuidavam das tarefas domésticas, trabalhavam no campo e, com frequência, serviam como objeto sexual, sendo violadas desde muito novas. No iní3
Informações extraídas do site de notícias G1. 01 nov. 2015. Disponível em <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/11/quase-750-mil-migranteschegaram-europa-pelo-mediterraneo-em-2015.html>. Acesso em: 06 set. 2020
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cio do século XIX, havia também casos de mulheres negras, como o de Saartjie Baartman, que foram “expostas” em várias cidades da Europa. Por conta de suas características físicas, Baartman foi exibida em gaiolas como atração nos chamados “zoológicos humanos”, sendo assediada por pessoas que pagavam para vê-la e até tocá-la. Priscila Rezende, descalça, de pé, com o barco e as flores espinhosas, cercada por arame farpado em uma rua polonesa, evoca a diáspora africana e a crise migratória hoje. Entretanto, apesar de referentes tão sofridos, a firmeza crítica e fineza estética do trabalho geram muita força: a Nau frágil de Priscila é não-frágil; sua “nau frágil” é forte. A segunda versão da performance aconteceu no teatro Ballhaus Naunynstrasse, em Berlim, durante o festival Postcolonial Poly Perspectives, também em 2019. Nestas apresentações, algumas mudanças foram feitas: o barco diminuiu significativamente de tamanho, era de madeira crua e ficava suspenso em uma espécie de pedestal. Igualmente, como conta Priscila, houve mudanças nas reações do público: Eu fiquei duas horas e meia na instalação na Polônia até alguém vir e me libertar. [...] Quando fui convidada para fazer a performance aqui [na Alemanha], foi um desafio, pois [um teatro] é um lugar fechado que pessoas vêm para ver uma performance. Gastei mais tempo olhando para os olhos das pessoas e criando uma conexão. Precisava mostrar para todos que estava desconfortável e queria sair. No primeiro dia, ninguém me ajudou. Eu senti que eles queriam, mas não sabiam como (REZENDE: 2019, s/p.).
Há um termo que nomeia, segundo a historiadora de arte e curadora coreana Miwon Kwon, performances que são concebidas para locais específicos: “arte específica ao lugar” (site-specif art). O termo designa obras que têm relação direta com 37
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o lugar físico onde acontecem. Já o conceito de “arte orientada ao lugar” (site-oriented art) inclui não apenas o espaço físico, mas o contexto sociopolítico e institucional onde o trabalho ocorre. Ou seja, a noção de lugar se amplia para abrigar a dimensão contextual dos acontecimentos que marcam a história daquele local. No caso de Nau frágil, me parece importante considerar a noção de “arte orientada ao lugar” já que os contextos – na rua e dentro de um teatro – influenciaram radicalmente as especificidades plásticas, a postura da artista e a relação com o público. Além disso, me parece fundamental agregar à reflexão a ideia de “matéria fantasma” conforme apresentada pelo teórico da dança e da performance André Lepecki. Em Planos de composição, o autor cita a socióloga Avery Gordon: O que é uma matéria fantasma para Gordon? “Todos aqueles fins que ainda não terminaram”. Esses fins, ainda sem término (o fim da escravidão que não terminou com o escravagismo; o fim da colônia que não terminou com o fim do colonialismo; a morte de um ente querido que não apaga sua presença; o fim de uma guerra que ainda não deixou de ser perpetrada) prolongam a matéria da história para uma concretude espectral (a virtualidade concreta do fantasma) que faz o passado reverberar e atuar como contemporâneo do presente... (LEPECKI: 2010, p.15)
Ou seja, tal conceito sugere que os fantasmas de eventos outrora vividos, que “a virtualidade concreta do fantasma” continua reverberando no presente e informando a criação e a recepção da obra. A “matéria fantasma” agrega, portanto, a noção de “arte orientada ao lugar”. Graças à percepção da matéria fantasma, compreendemos melhor como os contextos ressignificam o trabalho, como a performance “reverbera” de acordo com os diferentes lugares onde acontece. Assim, por 38
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exemplo, a cerca de arame dentro de um teatro alemão ou em uma rua polonesa “reverbera”, além da crise dos refugiados, o nazismo e os terrores de seus campos de concentração. Caso Nau frágil fosse performada no Brasil, além da escravidão, do racismo e do sexismo, reverberaria também a “concretude espectral” da população carcerária, majoritariamente negra em nosso país. E estes são apenas alguns exemplos de ressonâncias possíveis. As experiências e vivências que ocorreram em passados recentes e longínquos na Polônia, Alemanha, África, no Mar Mediterrâneo e no Brasil fazem parte de Nau frágil. Todas se unem e somam forças para criar uma obra potente e atual, que nos faz refletir sobre como as perseguições de minorias, especificamente a perseguição de mulheres e negras, persiste. Priscila Rezende, sem dizer uma palavra, nos faz escutar, ver e sentir.
Priscila Rezende, Nau frágil (2019, Póznan). Foto: Adam Ciereszko Site: http://priscilarezendeart.com/projects/nau-fragil-2019/
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BIBLIOGRAFIA HOOKS, bell. Ain’t I a woman: black women and feminism. New York: Routledge, 2015. JÚNIOR, Carlos Nogueira da Costa. “Crise migratória na Europa em 2015 e os limites da integração europeia: uma abordagem multicausal”. In: Conjuntura global. Curitiba, 2016, n. 1, v. 5, pp.19-33. Disponível em: https:// revistas.ufpr.br/conjgloblal/article/view/47421 KWON, Miwon. One place after another: site-specific art and locational identity. Londres: The MIT Press, 2002. LEPECKI, André. “Planos de Composição”. In: GREINER, Christine; SANTO, Cristina Espírito; SOBRAL, Sonia (ORG.). Rumos Itaú Cultural. Cartografia rumos Itaú Cultural dança 2009-2010: criações e conexões. São Paulo: Itaú Cultural, 2010. REZENDE, Priscila. “The european shipwreck: an interview with Priscila Rezende. [Entrevista concedida a] Alisson Hugill. Berlin art link [revista online]. Berlim, 2019. Disponível em: https://www.berlinartlink. com/2019/12/06/the-european-shipwreck-an-interview-with-priscila-rezende/ RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.
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Existência e (re)existência: memória como método de reconstrução da cena Desirée Santos* O artigo tem por objetivo traçar uma análise sobre os procedimentos adotados na construção da dramaturgia do espetáculo Corpo minado (2018), do Grupo Atiro, como ponto de partida para uma abordagem sobre o teatro negro contemporâneo. Interessa entender como o processo criativo parte da memória real e se transmuta para o aqui e agora, possibilitando tensões e fricções dentro da cena teatral e contribuindo, na prática, para o levantamento de uma vasta e incessante fonte de narrativas decoloniais. Proponho analisar o papel importante da memória no teatro contemporâneo, sobretudo a metodologia de dramaturgias em processo que culminam em obras inéditas, com foco em experiências realizadas no território da Maré, trazendo suas perspectivas e tecnologias de conhecimento. Palavras-chave: Corpo minado – teatro e memória – território
* Orientação: Lívia Flores. Bolsa PIBIC.
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Existência e (re)existência: memória como método de reconstrução da cena
Eu me levanto Acima de um passado que está enraizado na dor Eu me levanto Eu sou um oceano negro, vasto e irrequieto, Indo e vindo contra as marés, eu me levanto. Deixando para trás noites de terror e medo Eu me levanto Em uma madrugada que é maravilhosamente clara Eu me levanto
Maya Angelou
As artes são constituídas da memória, ou seja, lembranças e esquecimentos. Mas sempre mediadas pela linguagem criativa, artística.
Leda Maria Martins
Introdução A cena é uma janela aberta de autoinvestigação para cada pessoa que se disponha a investigar a história do outro e de si própria, num emaranhado de narrativas com percepções de pontos específicos sobre a vida, tornando esta, por si só, seu cerne político. Os processos criativos que desejo abordar quase sempre se manifestam a partir de uma inquietação sustentada por questões insurgentes do indivíduo, dentro do território. O espetáculo Corpo minado (2018) exibe, na sua construção dramatúrgica, uma costura que intercala ancestralidade e ficção, situando-a dentro de um salão de beleza onde as narrativas das cinco atrizes, mulheres pretas, moradoras da Maré, colocam em cena vivências reais fundidas na ficção. O palco se torna o centro de articulações cujo objetivo é garantir a existên42
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cia de mulheres pretas no futuro. Em 2016, o grupo Atiro criou o projeto Agora Sei o Chão que Piso, a partir de uma pesquisa nascida da leitura do livro O teatro do bem e do mal, de Eduardo Galeano, desdobrando-se em quatro dramaturgias distintas. Este grupo de teatro, localizado na favela da Maré, pesquisa memória e território, através de práticas teatrais. De acordo com a escritora Conceição Evaristo, o conceito de escrevivência é desenvolvido por meio de um conjunto de experiências, em particular de pessoas pretas, que são transformadas em textos literários, a fim de preencher lacunas históricas através da ficção. Em seus contos, a autora constrói narrativas fundadas na memória, que emergem de maneira atemporal. Esse procedimento é constantemente utilizado por nós como ponto de partida para um novo processo artístico, seja ele qual for. No teatro contemporâneo, essa abordagem surge como prática de escrita, utilizada para a construção de personagens. Interessa-me analisar a existência e (re)existência de espetáculos que surgem desta metodologia e suas contribuições para a cena artística e cultural da cidade. Reconstrução da cena Caminhar sobre os trilhos da memória é confrontar diretamente o presente, refletindo a cidade e suas implicações sociais. Apresento aqui alguns métodos e discussões que surgem a partir de processos teatrais que costuram a vivência na ficção. O processo criativo, cujo objetivo é se autoinvestigar, tende a colidir com reminiscências da violência, especificamente para pessoas pretas. É estarrecedor pensar que a ausência de afetividades nas relações familiares, a falta de estrutura básica e do direito de ir e vir – garantido por lei, mas ainda reivindicado pela população negra – sejam marcadores dessas narrativas. Ser uma mulher preta, sapatão e diretora teatral me coloca 43
Existência e (re)existência: memória como método de reconstrução da cena
sempre no meio dessas encruzilhadas de gênero, sexualidade, raça e classe. Trilhar esses caminhos é repensar constantemente os atravessamentos ocasionados pela tentativa de epistemicídio1 da cultura negra. Corpo minado inicia-se em 2018. A convite de Bárbara de Assis, atriz e integrante do Grupo Atiro, tive a oportunidade de assinar a direção do espetáculo em parceria com o diretor e dramaturgo Wallace Lino. Inicialmente, o espetáculo tinha, como disparador, o tema “sonhos”, a partir de um monólogo de Bárbara, com o qual ela possivelmente construiria cenas/ performances em torno de si mesma, refletindo a corporeidade da mulher preta. A proposta foi repensada depois de a atriz indagar sobre as subjetividades que guardam as existências de cada mulher preta, não podendo um assunto tão sensível como sonhos se basear apenas numa única experiência. A partir disso, foram convidadas outras atrizes a compor o elenco do espetáculo, totalizando cinco atrizes em cena. Durante os encontros, era comum haver trocas sobre alguns temas que dialogavam com todas. Por exemplo, o cuidado com o cabelo era um dos assuntos que mais norteavam as conversas. A escolha do espetáculo se passar dentro de um salão de beleza não surgiu como ideia aleatória, mas foi ancorada no entendimento de que a estética era um elemento importante para entrelaçar as cenas. As leituras em torno do livro Tornar-se negro, de Neusa Santos, foram fundamentais para entender os estigmas que saltavam da narrativa de cada atriz. Relações familiares também eram abordadas nas discussões; cada história pessoal se tornava peça-chave para a composição dramatúrgica. Durante oito meses, as atrizes foram ins1
“Epistemicídio” é um conceito elaborado pelo professor português Boaventura de Souza Santos (2018), que trata da destruição de formas de conhecimento e culturas que não são assimiladas pela cultura do Ocidente branco.
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tigadas a criar pequenas partituras cênicas que tinham a ver com os temas abordados durante as conversas em grupo. O salão de beleza ficcional foi estabelecido em cena como local de encontro; em todos os ensaios, a preparação do ambiente “salão” era um momento divertido. Corpo minado é um espetáculo de pesquisa continuada, que pretende costurar histórias de mulheres pretas entrelaçando seus passados, presentes e futuros. Apresentar diversos pontos de vista sobre a vivência dessas mulheres é crucial para intensificar a produção de saberes. Audre Lorde (2019) cita a importância de romper com silêncios falando abertamente sobre desejos e sonhos como prática de liberdade. Memória Segundo o dicionário Oxford Languages, a memória é definida como faculdade de conservar e lembrar estados de consciência passados e tudo quanto se ache associado a isso. A linha da história reservada para pessoas que não pertencem ao círculo da branquitude, atingidas pela reprodução e produção de imagens de controle (isto é, as formas como pessoas não-brancas são representadas midiática e historicamente) coloca principalmente as mulheres pretas em situação de corpos subalternizados. Tencionar a reconstituição de lembranças afetivas felizes do ser e estar no mundo é construir pontes de narrativas decoloniais, como defende o sociólogo Stuart Hall (2006, p. 71): “a modelagem e remodelagem de relações espaço-tempo no interior de diferentes sistemas de representação tem efeitos profundos sobre a forma como as identidades são localizadas e representadas”. Em uma das cenas construídas por Jaqueline Andrade em Corpo minado, a atriz interrompe a quarta-parede e narra sua trajetória artística atrelada a memórias do seu crescimento no 45
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território da Maré. Com isso, abre-se uma janela através da qual o público mergulha na produção de imagens reais, a partir da perspectiva de um corpo que fala e se inscreve na história sob sua própria égide. Vale salientar que a elaboração de saberes carregados por pessoas pretas não se restringe apenas à oralidade. Esse pensamento romântico, arraigado em boa parte da literatura brasileira, objetifica e enfraquece outras configurações de linguagem. Leda Martins propõe essa reflexão no livro A cena em sombras. Nele, a autora discorre sobre a problemática de uma única ótica vigente, sobretudo na construção do teatro brasileiro: “um dos pontos principais da A cena em sombras é que ele ressignifica o termo negro e ele tenta matizar as possibilidades de se construir conceitualmente o que seriam as potencialidades do teatro negro” (MARTINS: 2019, s/p.)2 O teatro negro contemporâneo vem contribuindo de múltiplas formas para a cena artística e cultural do Brasil. A cidade do Rio de Janeiro é o lugar a partir do qual eu posso observar que as práticas teatrais estão cada vez mais inclinadas aos estudos epistemológicos. Garantir a existência de signos, conhecimentos, tecnologias, territórios, é distribuir infinitas possibilidades de contar histórias, em especial do ponto de vista de quem domina seu próprio lugar de fala (RIBEIRO: 2017). Portanto, a ideia do lugar de fala é fornecer visibilidade a indivíduos cujos pensamentos foram invisibilizados ou ignorados no decorrer da vida. Os questionamentos provocados por produções cênicas como Corpo minado colocam os sujeitos em situação de reelaboração do seu próprio corpo no mundo.
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Entrevista de Leda Maria Martins para a Literafro - TVUFMG. Ela é poeta, congadeira, escritora, ensaísta e pesquisadora nos campos da literatura, da performance e do teatro.
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BIBLIOGRAFIA BUENO, Winnie. Imagens de controle: um conceito do pensamento de Patricia Hill Collins. Porto Alegre: Zouk, 2016. DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016. EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017. ----. “Escrevivências da afro-brasilidade: história e memória”. In: Releitura. Belo Horizonte: Fundação Municipal de Cultura, nov. 2008, n. 23. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. LORDE, Audre. Irmã outsider: ensaios e discursos, 1984. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. MARTINS, Leda M. “Performances da oralitura: corpo, lugar da memória”. In: Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras. Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul, 2003, n. 26, pp. 63-81. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/letras/article/view/11881/7308 ----. Entrevista ao canal Literafro (YouTube). TVUFMG, Minas Gerais, 2019. Disponível em: https://youtu.be/ VGbsmT0L2Pk RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017. SANTOS, Boaventura de Sousa. Construindo as Epistemologias do Sul: Antologia Essencial: Para um pensamento alternativo de alternativas. Buenos Aires: CLACSO, 2018. SILVEIRA, Raquel Mariane da. “Entre o eco e a ressonância vozes femininas em becos da memória”. In: Revista Crioula. São Paulo: USP, 2019, n. 23. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/crioula/article/ view/156936/154930 SOUSA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro em ascensão social. Rio de Janeiro: Edição Graal, 1983.
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Coletivo Bonobando: reinvenção artística durante a crise do coronavírus Hugo Bernardo Souza* No Brasil, nos últimos anos, é possível observar um desmonte das políticas para o campo das artes e cultura. Apresenta-se, como dado novo, uma ameaça que atinge todas as instâncias da vida social – o coronavírus. Este vírus nos obrigou a adotar medidas de distanciamento social, acarretando a paralização das atividades artísticas e culturais. O presente estudo tem como objetivo analisar o cenário instaurado pelo coronavírus e os impactos provocados nas diversas esferas que atravessam o processo coletivo de criação artística de um grupo teatral: o Coletivo Bonobando.
Palavras-chave: Coletivo Bonobando – criação coletiva – coronavírus
* Orientação: Adriana Schneider Alcure. Bolsa PIBIC / CNPq / UFRJ.
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Coletivo Bonobando: reinvenção artística durante a crise do coronavírus
A cena do Coletivo Bonobando é de juventude, de uma geração que vem discutindo e tensionando as desigualdades sociais, raciais e de gênero. Estas cenas amplificam as vozes, as corporeidades, as ideias e as expressões, criando dissensões que desestabilizam, de forma necessária e urgente, o sensível hegemônico. Estas outras cenas apresentam e legitimam outros modos de vida, revelando as hierarquias, exclusões e invisibilidades das experiências sociais. As questões trazidas pelo Coletivo Bonobando e de outros grupos com características semelhantes problematizam, inevitavelmente, os modos de produção e criação nas artes. (ALCURE: no prelo).
Vivemos tempos sombrios. Está em curso um processo contínuo e planejado de desmonte de programas, projetos e ações decorrentes do descaso das autoridades em relação às artes e à cultura no Brasil. A nova geração de agentes culturais, vinda das periferias, vinha redesenhando a cena cultural carioca. São grupos como o Coletivo Bonobando, que se originou na Arena Carioca Dicró, na Penha, Zona Norte do Rio de Janeiro, com forte atuação territorial descentralizada; ou a Cia Marginal, oriunda da Maré, entre outros. As gestões governamentais atuais são responsáveis diretas pela descontinuação das ações que vinham possibilitando a esses sujeitos específicos o processo de ascensão e de acesso aos locais não ocupados anteriormente. Também a atual gestão do governo federal elegeu “a cultura como inimiga, em conjunto com a educação, as ciências, as artes, as universidades públicas e os temas relativos às chamadas minorias, em especial às manifestações de gênero, afro-brasileiras, LGBT e dos povos originários” (RUBIM: 2020, p. 3). Neste momento, há uma luta contra o sucateamento da cultura e pela sua democratização em todas as suas formas de manifestação, em especial, a arte negra e periférica. A reação de50
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pende, antes de tudo, de uma organização daqueles que foram diretamente afetados. É preciso insistir nos espaços de encontro, mesmo que o retrocesso permaneça tempo suficiente para causar estragos irreparáveis. Entretanto, não há dúvida de que o espaço aberto pela consciência e ação destes outros modos de vida não retornará para a invisibilidade. É preciso estar em movimento (ALCURE: no prelo).
Em 2020, porém, temos um novo adversário – o coronavírus. A pandemia instaurada pela Covid-19 tomou proporções mundiais e suas consequências abalaram todos os países econômica, social, psicológica e financeiramente. Sabemos que o teatro, enquanto arte coletiva, só se realiza em sua totalidade pelo encontro vivo entre os artistas e o público. Os espaços teatrais foram os primeiros a fechar e, certamente, serão os últimos a voltar, seguindo as recomendações dos órgãos de saúde. Todas as apresentações, temporadas, circulações, todo o circuito criativo e produtivo, responsáveis pela maior parte do sustento financeiro dos artistas e demais profissionais foram cancelados sem aviso prévio e sem previsão de retorno. Lívia Laso – multiartista e integrante do Bonobando – detalha esse momento: Nos dois meses que antecederam a pandemia, eu estava trabalhando bastante. Fiz duas peças com outros coletivos periféricos e fazia três shows por semana, então o maior impacto foi financeiro porque artista autônomo precisa se movimentar para ter renda. E aí com a quarentena não poder sair de casa impossibilita a busca pelo sustento.
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A esmagadora maioria dos integrantes do Bonobando são moradores de territórios periféricos. Estes espaços, historicamente, sempre foram reféns da falta de políticas públicas e já lutavam para sobreviver. Em favelas e periferias, há uma série de direitos básicos que não são assegurados, como, por exemplo, distribuição de água, rede sanitária e alimentação. Em consequência destes e outros descasos, corpos pobres e negros – fortemente presentes nesses territórios – são os que mais tombam por Covid-19. Diante da impossibilidade do encontro presencial e entendendo que o poder público não iria implementar medidas de socorro ao setor artístico-cultural, a sociedade civil e a classe artística uniram-se com o objetivo de minimizar os efeitos da pandemia em locais onde o Estado se nega a chegar. A partir deste momento, outras formas de existência têm sido pensadas como uma forma de reduzir os impactos da Covid-19 na economia criativa. Iniciaram-se campanhas de arrecadações de fundos e alimentos destinados aos trabalhadores da arte em situação de maior vulnerabilidade, como por exemplo, a campanha “Maré diz não ao Coronavírus” realizada pelas Redes da Maré1. Realizei, então, entrevistas com os artistas do Coletivo Bonobando para entender como vinham enfrentando financeiramente o período de quarentena. As atrizes Vanessa Rocha e Járdila Baptista, graduandas em Artes Cênicas pela UNIRIO e participantes do projeto de extensão “Teatro em Comunida-
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Redes da Maré é uma instituição da sociedade civil que tem por objetivo garantir políticas públicas efetivas que melhorem a vida dos moradores das 16 favelas da Maré.
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des”2, ressaltaram a importância do engajamento do corpo social universitário na atenuação desses impactos. Járdila aponta: “Esse ano, na impossibilidade de realizar trabalhos com teatro, me mantive com a bolsa que não foi cortada de um projeto da faculdade”. Vanessa complementa: “Marina lutou muito pro projeto continuar funcionando. A gente vem dando aula virtualmente. Quatrocentos reais estão rolando e é com esse dinheiro que vou me sustentando. Não tenho mais trabalhos extras nem as apresentações que fazia”. O uso de plataformas de financiamento coletivo foi essencial na disseminação dessas ações de resistência, que tiveram como foco inicial o provimento básico e rápido de insumos para os indivíduos mais necessitados de seu movimento. Fortalecendo essa rede, algumas ações foram implementadas como realizações independentes de festivais virtuais, como por exemplo, a Muda Picadeiro Digital, realizado pela Muda: Outras Economias, onde foi possível financiar pequenas ações artísticas, além de distribuir cestas de alimentos orgânicos para os artistas participantes do festival. Diante destes impasses, é possível observar um crescente movimento de migração do setor teatral para as plataformas virtuais. Transmissões ao vivo, apresentações de espetáculos e performances, cursos, ensaios e reuniões vêm sendo cada vez mais comuns nesses espaços. Na quarentena, a união entre arte e tecnologia possibilitou energizar um público emocionalmente abalado. As atividades artísticas realizadas remotamente “foram saudadas como canais de escape fundamentais da solidão,
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Programa de Extensão do Departamento de Ensino do Teatro da UNIRIO, coordenado por Marina Henriques (membro do corpo docente da UNIRIO e Doutora em Artes Cênicas), que promove a produção de conhecimento em teatro, a prática artística e pedagógica entre a Escola de Teatro e moradores de periferias.
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como alimento da alma, como alento e esperança de tempos e vidas sãs” (CALABRE: 2020, p. 11). Antes já era possível perceber a utilização de tecnologias em serviços culturais. Uma pesquisa desenvolvida por Ricardo Meirelles e João Leiva (CALABRE: 2020, p. 12.) relata que, em 2017, 67% dos brasileiros já eram usuários de internet. Com isso, nota-se a potência do uso da internet como canal de divulgação dos próprios trabalhos. Segundo Lia (2020, p.12), “é um indicador interessante do uso massivo da tecnologia de informação na busca de distribuição da produção mais democrática, porém, não tenhamos a ingenuidade de pensar que esse uso se dá em condições tecnológicas similares”. De acordo com a pesquisa feita pelo Comitê Gestor da Internet3, em 2018, 58% dos domicílios no Brasil não tinham computadores e 33% não possuíam internet. As dificuldades vão desde não conseguir comprar um computador até a incapacidade de pagamento dos serviços de internet de qualidade. Consequentemente utilizam a internet em ferramentas mais reduzidas como celulares e acesso de dados limitados. Segundo estudo realizado pela TIC: esse déficit é notadamente recorrente entre as classes “D” e “E”. Diante do cenário que se apresenta, o Coletivo Bonobando vem desenvolvendo estudos sobre as possibilidades oferecidas pelas ferramentas virtuais para criação da dramaturgia e montagem do seu próximo projeto, desta vez, à distância. Thiago Rosa, ator e estudante de dança, aponta certa resistência quanto ao novo modo de produção:
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Ver: https://www.brasildefato.com.br/2020/06/04/com-aulas-remotas-pandemiaescancara-desigualdade-no-acesso-a-educacao-de-qualidade. Acesso em: 8 de dezembro de 2020.
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Fazer performance online não é linguagem que domino. Eu prefiro trabalhar em contato direto com a plateia. Estou treinando muito sozinho e acabo sendo afetado por isso. As colaborações têm sido feitas à distância. Agora, o espaço e o trabalho são mais individualizados. É uma coisa que preciso aprender a lidar.
O cenário instaurado pelo coronavírus coloca em xeque nossos sonhos e objetivos dentro deste lugar onde estamos impossibilitados de atuar. Em meio à crise, se escancara a insuficiência de políticas públicas para todos os setores da sociedade: saúde, segurança, educação, arte, cultura etc. Mas, sobretudo, evidencia-se a precariedade dos recursos oferecidos aos territórios periféricos. O vírus não é democrático, como se costuma dizer. A Covid-19 está mais facilmente presente nas favelas, onde não há saneamento básico, onde é frequente a falta de água, onde não existe assistência hospitalar adequada, onde nem mesmo a relação entre a quantidade de habitantes e cômodos por casa permite o isolamento recomendado. Testemunhamos um cenário doloroso onde existem os que são a todo custo protegidos e aqueles que não são considerados dignos de proteção contra doenças e morte, “a desigualdade social e econômica garante que o vírus discrimine”4 (BUTLER: 2020, p. 62, tradução nossa). Conclui-se que, além dos obstáculos como a ausência de serviços de qualidade, da resistência do coletivo acerca dos novos modos de produção e da incerteza do que está por vir, apresenta-se como maior, mas não novo obstáculo: a luta pelo direito de sobreviver.
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No original: “La desigualdad social y económica asegurará que el virus discrimine”.
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BIBLIOGRAFIA ALCURE, Adriana Schneider. “Outros modos de vida e cena no teatro contemporâneo carioca”. In: ANDRADE, Clara de; GUENZBURGER, Gustavo; PENONI, Isabel (ed.). Cenas Cariocas: modos, políticas e poéticas teatrais contemporâneas. Rio de Janeiro: Editora Garamond. No prelo. BUTLER Judith et al. Sopa de Wuhan: pensamiento contemporáneo en tiempos de pandemias. ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020. Disponível em: https://bit.ly/sopadewuhan CALABRE, Lia. “A arte e a cultura em tempos de pandemia: os vários vírus que nos assolam”. In: Extraprensa. São Paulo, 2020, n. 2, v. 13, pp. 7-21. RUBIM, Antônio Albino Canelas. Atuação político-cultural da gestão Messias Bolsonaro. Cidade do México: Alteridade, 2020. MARTINHÃO, Maximiliano Salvadori (coord.). TIC Cultura: Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos equipamentos culturais brasileiros. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2019.
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Um avô que era sonho: processo de criação autoficcional Pedro Barroso Mantel* O artigo visa a analisar o desenvolvimento do espetáculo autoficcional Um avô que era sonho, escrito e atuado pelo aluno-pesquisador Pedro Barroso, como parte da pesquisa integrante do projeto “Cenas na pandemia: tecnologia e performatividade”, orientado pela Profª. Drª. Gabriela Lírio. A pesquisa objetiva, principalmente, analisar a elaboração da dramaturgia e dos dispositivos estéticos para a construção de um espetáculo virtual, exibido durante a pandemia da COVID-19. O estudo também se propõe relacionar conceitos sobre autoficção no teatro com os desafios enfrentados pelo jovem artista para a produção de um “espetáculo virtual”. Palavras-chave: autoficção – teatro virtual - vídeo
* Orientação: Gabriela Lírio. Bolsista PIBIC/UFRJ.
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Um avô que era sonho: processo de criação autoficcional
"E pode um menino ser amigo de um velho? E pode um velho ser amigo de um menino?" (BARROSO, 2020). Um avô que era sonho é uma peça autoficcional construída a partir das memórias de meu falecido avô, Nathanael Barroso. Tendo como ponto de partida o sonho de um novo encontro, a cena investiga a importância do meu avô em minha vida. O espetáculo, que nasce na disciplina Ator II1, do curso de Direção Teatral da UFRJ, reflete o desejo de construir um trabalho artístico que reflita e expresse a relação de afeto e companheirismo, mesmo após a morte. Através da poesia da oralidade e da comicidade, transformo-me em ator-narrador, dividindo-me entre narrar e performar memórias e vivências, buscando estabelecer uma relação de intimidade com os espectadores, que passam a ser cúmplices das lembranças. Com isso, o espetáculo produz novos sentidos para a morte, o luto, a saudade e a ausência, que se presentificam no ato performativo. Reflito sobre temas que me acompanham desde a infância: a construção da identidade cultural, o afeto entre figuras masculinas, o lugar de pertencimento, os sonhos e utopias, a exploração do trabalho e da terra, entre outros.
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A disciplina “Ator II” foi realizada ao longo de 2019.2, ministrada pela Profa. Dra. Gabriela Lírio, a partir da proposição de criação de um monólogo autoficcional cujo tema era “sonho”.
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Arte de divulgação do espetáculo, de Davi Palmeira
O espetáculo foi elaborado para a linguagem de “teatro virtual”, tendo sido realizadas cinco apresentações, entre os meses de setembro e outubro de 2020, através da plataforma ZOOM, compondo a programação da Pandêmica Coletivo Temporário de Criação. Contando com a experiência dos profissionais envolvidos em diferentes áreas, ao longo de cinco meses de ensaio, o trabalho se propõe realizar um cruzamento entre as linguagens do teatro, do vídeo, da internet e o espaço privado (domiciliar), buscando novas articulações espaço-temporais, com desdobramentos na investigação do ator.
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O ator Pedro Barroso em cena do espetáculo. Foto: Thais Cabral
Iniciamos o processo de construção da dramaturgia expandida da cena logo após a apresentação do espetáculo em sala de aula. No início de 2020, retomei a escrita dramatúrgica, tendo como desafio ampliá-la para além da relação afetiva parental, incluindo os temas que permeavam as memórias. Uma tentativa de, a partir da narrativa central, suscitar reflexões não apenas relacionadas a minha memória individual, mas também à memória histórica, em uma cena nomeada pela Profa. Gabriela Lírio como “cena-ensaio”. Compartilhei a dramaturgia, à medida que era criada, com Gabriel Morais, diretor da peça, com a professora Gabriela Lírio e com os demais membros da equipe para que fizessem as suas proposições, constituindo, deste modo, uma escrita aberta e, de certa forma, coletiva, mesmo que depois alguns elementos sofressem modificações, além de garantir um aspecto dinâmico para a montagem. Interessava-me a construção da subjetividade pelo trabalho, a investigação do lugar de pertencimento e a problemática da masculinidade tóxica nas relações masculinas. Temas que circundavam a história que gostaríamos de contar, mas que justamente encontravam o desafio de serem transformados em 60
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cena, fugindo de um aspecto meramente discursivo. A reflexão, sempre presente, era a de conseguir tornar aspectos íntimos, das memórias pessoais, em temas mais amplos que conseguissem estabelecer relação com os espectadores. Havia um desafio de estabelecer uma distância da minha própria família, ao observar suas contradições e conflitos, corroborando para a criação de material poético da cena. O município de Descoberto
Descoberto é o município em que meus avós nasceram, com o qual possuo uma relação afetiva profunda; e, também, local de produção de atividades artísticas e culturais. A cidade se apresentou como um tema relevante dramaturgicamente, visto que era um lugar decisivo no estabelecimento da relação com meu avô. Diante disso, busquei criar uma cena que apresentasse as minhas reflexões sobre a interferência de Descoberto nas nossas vidas, ao mesmo tempo que expandia o tema para uma análise histórica sobre o surgimento da cidade. Município muito pequeno, historicamente, Descoberto teve sua identidade cultural enfraquecida. Encontrei raros estudos e documentos historiográficos, o que reflete o baixíssimo conhecimento das suas origens pela população local, no qual me incluo. O ponto de partida para a pesquisa foi a dissertação de mestrado da minha amiga e pesquisadora Mônica Sica, Caminhos na paisagem – re[Descoberto]s (2018), que percorre alguns caminhos retratados nas pinturas do artista Francisco Severino, indo ao encontro dos costumes locais, refletindo sobre as paisagens descobertenses e avançando para um estudo histórico inicial.
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“Procissão em Descoberto”. Óleo/tela 2017 de Francisco Severino
Com os caminhos apontados pela historiadora, retorno ao ano de 1824, em uma Descoberto desconhecida e mineradora, como a retratada na publicação da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) de Os diários de Langsdorff - Volume I. Publicação histórica que apresenta os escritos produzidos pelo médico russo (colonizador) Georg Heinrich von Langsdorff, responsável pela principal expedição naturalista ocorrida no Brasil, no século XIX. No seu diário, o barão apresenta a trajetória de exploração, com saída do Rio de Janeiro e destino a Minas Gerais. Acompanhado de uma comitiva a cavalo, com pessoas negras escravizadas e artistas como Rugendas, eles avançam para o interior de Minas, recolhendo amostras naturais e registrando a paisagem através de pinturas e dos escritos de Langsdorff.
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“Descoberto novo perto do Rio Pombas” (1824), de Rugendas
Em seu caminho, a Expedição Langsdorff toma conhecimento de uma “nova descoberta”, que apresentava grande potencial minerador, indo na contramão do momento da mineração na região Central de Minas, que estava sob queda. Nessa localidade, estava situado o garimpo que teria sido o motivador, através do fluxo de pessoas, para o surgimento do município atual de Descoberto. Diante da informação, decidi apresentar no espetáculo a narrativa sobre o surgimento da cidade, no intuito de evidenciar suas heranças históricas. A ideia era a de evidenciar a contradição de ser uma localidade que, ao mesmo tempo, apresenta potenciais culturais e é atravessada por cicatrizes que permanecem evidentes na paisagem atual.
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“Igreja do Rosário orgulho da nossa cidade”, foto de Francisco Severino
De Descoberto para o espaço virtual
O espetáculo foi idealmente pensado para estrear de modo presencial, em julho de 2020, na principal praça de Descoberto. Porém, na pandemia, decidimos seguir com o projeto e experimentar uma montagem virtual. Iniciou-se, então, uma série de desafios a serem superados: produção artística e científica em uma pandemia; manter a saúde física e mental; teatro sem presença de público, feito em casa e através de câmeras... Questões políticas, materiais e estéticas que foram negociadas do início ao fim do processo. O primeiro desafio foi o de encontrar um espaço propício para iniciar os ensaios remotos. Foi necessário negociar a dinâmica da casa com meus familiares, já que meu quarto, na cidade do Rio de Janeiro, se apresentava como espaço de trabalho. Foi difícil conseguir separar as questões domiciliares e familiares dos ensaios. Um quarto não se transforma em sala de ensaio de uma hora para outra. A metodologia de trabalho incluía o compartilhamento das composições apresentadas nos encontros com a equipe, por 64
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meio da plataforma Zoom, escolhida devido às possibilidades técnicas oferecidas. Neste momento, discutíamos virtualmente o que foi criado e, de volta ao espaço de criação (meu quarto) retomava a elaboração do trabalho para, no ensaio seguinte, apresentar seus resultados. Com a criação das composições, fomos compreendendo que a arquitetura do quarto se materializava de maneira excessiva no vídeo e dificultava o deslocamento para os espaços vislumbrados na narrativa. Sendo assim, identificamos que era preciso buscar ângulos que possibilitassem um espaço simbólico para a cena, buscando outros significados para o espaço arquitetônico do quarto.
Capturas de Ensaio. Fotos: Pedro Barroso
No decorrer dos ensaios, descobríamos novas maneiras de apresentar a dramaturgia, fugindo da frontalidade tradicional das filmagens de peças de teatro. As tomadas de câmera ressaltavam os objetos; e tudo que compunha o plano deveria ter um sentido para estar ali. Ou seja, a preocupação não era apenas com o trabalho do ator em sua relação com o espaço cênico, mas também com a captação da imagem e seus elementos. Uma relação que é usual no audiovisual, mas que tivemos que nos apropriar, ao mesmo tempo em que tensionávamos códigos do cinema clássico narrativo, como por exemplo, a interdição do ator em olhar diretamente para a câmera. No nosso caso, o diálogo direto com o espectador, comparado a um 65
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aparte, se apresentou como um mecanismo fundamental para buscar a relação com o público, tão necessária ao teatro. Diante de todos os desafios, conseguimos realizar essa primeira experiência virtual, e obtivemos ótimos retornos das pessoas que assistiram, principalmente, pelo caráter dinâmico e pelas soluções cênicas que conseguimos produzir com os recursos disponíveis. A satisfação também foi grande por parte de toda a equipe, à qual não posso deixar de agradecer, pois sozinho não conseguiria realizar o espetáculo, principalmente nos dias atuais. Ao mesmo tempo, não posso deixar de registrar que o retorno financeiro é praticamente nulo, visto que a única arrecadação foi com a reduzida bilheteria das apresentações. Uma equipe de sete pessoas, com acúmulo de funções, que trabalhou pelo menos seis meses e não obteve a sua remuneração legítima devido à ausência absoluta de políticas de fomento cultural.
Foto de divulgação do espetáculo. Foto: Pedro Barroso
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BIBLIOGRAFIA BARROSO, Pedro Mantel. Um avô que era sonho. (Dramaturgia inédita). Rio de Janeiro, outubro de 2020. MARTINS, Mônica de Mendonça Sica. Caminhos na paisagem re[Descoberto]. Orientador: Isabela Nascimento Frade. 2018. 130 f. Dissertação (Mestrado em Artes) - Rio de Janeiro: Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Instituto de Artes, 2018. MONTEIRO, Gabriela Lirio Gurgel. Teatro de imagens e autobiografia: espetáculo? In: Arte e ensaios, n. 23, pp. 115 - 123. Rio de Janeiro: PPGAV/EBA/UFRJ, 2011. _______. Autobiografia na cena contemporânea: tensionamentos entre o real e o ficcional. In: PÓS: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG, n. 11, v. 6, pp. 78-91. Belo Horizonte: EBA/UFMG, 2016. DA SILVA, Danuzio Gil Bernardino (Org). Os Diários de Langsdorff, vol I. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997. PONTES, Luís. São João Nepomuceno: dois séculos de história. Vol. 1: o santo padroeiro e a fundação de São João Nepomuceno. Juiz de Fora: Quinto Império Editora, 2019.
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O trágico na cena contemporânea: intersecções entre teatro, história e cinema Nicolas Alexandria* Trataremos, neste trabalho, de possibilidades de pensar o trágico na cena contemporânea, tomando como ponto de diálogo as questões políticas que envolveram a produção do filme O leão de sete cabeças, de Glauber Rocha, indicando, nesta narrativa fílmica, um ponto de intersecção problemático entre teatro político, história e cinema. Temos, como horizonte de análise, a utilização da linguagem simbólica e algumas aproximações possíveis, que fazem desse filme um ponto de inflexão importante. Estaremos próximos das questões políticas preconizadas pelo teatro de Brecht (1967), ao evidenciar, por exemplo, a peça Mãe Coragem e as indicações da relação entre teatro e cinema de Eisenstein (2002). Palavras-chave: trágico – teatro político – cinema
* Orientação: Carmem Gadelha.
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O trágico na cena contemporânea: intersecções entre teatro, história e cinema
O objetivo deste breve texto é tratar, dentro da obra de Glauber Rocha, do filme O leão de sete cabeças, tomando como ponto de diálogo as questões políticas que envolveram a sua produção, bem como o tema principal: o processo de colonização tardia da África e sua, digamos, “semente”. Filmado no antigo Congo Belga, esta narrativa fílmica é um ponto de intersecção para pensarmos sobre teatro político, história e cinema. Temos, como horizonte de análise, a utilização da linguagem simbólica e algumas aproximações possíveis que fazem desse filme um ponto de inflexão importante em sua relação com o teatro político, sendo ele o único filme nacional, com locações documentais na África, na década de 1960, que parte de um acontecimento fundamental da história africana: o aprisionamento e a morte do líder de esquerda Patrice Lumumba, em termos políticos, seu assassinato. Do ponto de vista da linguagem artística, O leão de sete cabeças aproxima-se das questões políticas preconizadas por Brecht, apresentando possibilidades interessantes para tratarmos o tema do “estranhamento” a partir de pontos referenciais da História da África se tomarmos, por exemplo, a peça Mãe Coragem, para problematizar algumas questões que envolvem a África como uma invenção epistemológica de europeus, nos termos de Mudimbe, segundo a visão de Regiane Motta (2018, p. 81). Vejamos: Mudimbe apresenta a ideia de África como uma invenção epistemológica na área de ciências sociais, defendendo que o conhecimento sobre o continente seria um conhecimento estritamente controlado por procedimentos específicos elaborados por europeus, que ele denomina gnose.
Nesse sentido, estamos levando em consideração o “afrocentrismo” e o conceito de “translocalidade” como “fenôme70
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nos que resultam de múltiplas circulações e transferências com o movimento de pessoas, produtos e ideias, que cruzam fronteiras geográficas, culturais ou políticas” (MOTTA: idem, p. 73). Portanto, o cinema aqui pode ser visto como uma prática artística africana em diálogo com o não-africano prenhe de “translocalidade”, mas em contiguidade com a linguagem teatral, mesmo que as especificidades, tanto do teatro como do cinema, não rompam com as suas formas de produções artísticas, já discutidas por Eisenstein (2002). Brecht e a questão do “estranhamento”
Brecht acompanha a expansão da ideia de teatro, deslocada da literatura dramática numa ampliação que dá especificidade à encenação. Portanto, ele faz parte do acúmulo do debate da teoria teatral vinda desde Stanislavski e o surgimento da encenação. Dentro deste processo de instituição do teatro dialético, a peça Mãe Coragem tem um destaque em relação à manutenção de uma estrutura clássica numa perspectiva épica. Mãe Coragem tematiza dialeticamente as agruras da guerra e a perda filial, demonstrando uma perspectiva negativa, não edificante, da procura da sobrevivência com o comércio para os regimentos em marcha. Vemos aqui um processo fundamental da escrita dialética de não separar a vida privada da vida pública. A estratégia de evidenciar a contradição – para provocar o estranhamento, deslocar a compreensão possível de uma leitura dramática a favor de uma percepção racional e consciente – está presente na construção da personagem Mãe Coragem, à medida que as mazelas que a tomam são produtos das relações sociais nas quais está imersa e não por responsabilidade exclusiva das suas ações. 71
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O que guia a nossa leitura não são as características morais da Mãe Coragem ou seu comportamento psíquico, mas a procura do vínculo social da personagem; ver o circuito de relações em que ela está inserida e as suas questões ideológicas. Chamo atenção para o fato de Brecht também ser um autor que sofreu influência do teatro político de Erwin Piscator. Este encenador alemão foi um dos principais colaboradores de Brecht, incluindo na cena, já na década de 1920, outras linguagens como o cinema e a exploração de imagens. O que aparece agora como novidade foi experimentado no passado com muita eficiência. Mas Brecht, justamente, deu novas dimensões ao cinema, inserindo-o na cena teatral. Inclusive porque aspectos de narrativa propriamente teatral dialogam com estruturas ligadas à montagem cinematográfica. Temos, no texto de Zuolin (2008), questionamentos interessantes para refletirmos sobre a grande contribuição de Brecht ao teatro contemporâneo, através do efeito de “estranhamento”, que, como sabemos, busca evidenciar e desmontar os efeitos de ilusão e o mecanismo de construção da linguagem teatral. A percepção do efeito de “estranhamento” chegou até Brecht, segundo este texto, através do teatro chinês. Procedimento que encontramos explicitamente utilizado por Glauber Rocha no filme O leão de sete cabeças. É importante chamarmos atenção, aqui, para um diálogo já posto, na década de 1920, na relação entre teatro e cinema, por Eisenstein (op. cit.), quando nos propõe o relevo da montagem como uma ação que já estava no teatro. Desfaz-se o equívoco de pensarmos o cinema como novidade capaz de tomar o lugar do teatro como linguagem específica, pois o cinema é uma montagem da montagem. O efeito de “estranhamento” aproxima estas duas perspectivas de trabalho teatral, mas há uma singularidade que deve 72
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ser respeitada, segundo o autor. Nesse sentido, o teatro chinês e o teatro dialético de Brecht têm estéticas próprias; e tanto um como outro continuam ancorados, numa compreensão interessada, em determinações históricas do Oriente, no primeiro caso; e do Ocidente no segundo. A experiência da morte, da miséria, o espetáculo da hipocrisia da sociedade burguesa, a ostentação da riqueza, as demonstrações de poder bélico, a desordem social, a derrota na guerra, a queda da Alemanha, a desmedida vergonha das atrocidades da guerra são temas que partem da ordem do trágico e afirmam-se como pontos de reflexão para a produção do teatro dialético. É este aspecto que pretendo explorar e desenvolver em trabalhos futuros. Converter o próprio uso das convenções teatrais num caminho contrário ao aristotélico, ou seja, tratar a emoção de outra perspectiva, incluindo-a como ponto de referência reflexiva, crítica e dialética é repensar da tradição inaugurada pela poética brechtiana. Vejamos um excerto: “A estética, este legado de uma classe então depravada e parasitária, encontrava-se em estado tão lamentável que um teatro que escolhesse livrar-se do thaëter logo lucrava, tanto em reputação como em liberdade de ação” (BRECHT: idem, p. 182). Enfim, pela leitura de Mãe Coragem, compreendemos que a vida, nas suas contradições relacionais, é muito mais atípica do que propõe uma leitura dramática que procure tipicidades, deixando claro que a nossa função/existência social coloca-se definitivamente em contradição com as nossas subjetividades individuais.
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O leão de sete cabeças
Há referências de que Glauber fez diversos pronunciamentos revelando influência de Bertolt Brecht e Sergei Eisenstein para realização do seu filme, por exemplo, em Xavier (2004). Nesse sentido, O leão de sete cabeças faz parte de um projeto de vocação revolucionária, que pretende mostrar o confronto geopolítico do capitalismo que envolve conflitos étnicos, de classe e transnacionais. Temos a primeira obra fílmica tricontinental composta nesse trabalho, montado de forma emblemática, que retoma os investimentos experimentados em O dragão da maldade e Terra em transe. Diz Glauber: “Planejo filmar O leão de sete cabeças e A morte de D. Quixote na Espanha. Penso em abandonar esses projetos para filmar América […]” (ROCHA: 2004, p. 162). Felizmente o filme foi roteirizado e o projeto não foi abandonado. Conta-nos Glauber (idem, p. 164): sentado numa latrina, escrevia planos de O leão de sete cabeças e descobri que escrevia os planos como um compositor escrevendo uma partitura. […] A montagem é uma dialética de estrutura comparada à poesia. Não é o clima, mas a montagem das palavras que são a superestrutura do clima.
As análises especializadas chamam atenção para o fato da interpretação de O leão de sete cabeças ser guiada por uma proposta do teatro dialético de Brecht e a sua mise en scène explorar a linguagem teatral, sobretudo composições do teatro de bonecos (SILVA, s/d). Por outro lado, ao recorrer a uma proposta de “estranhamento”, de problematização da composição narrativa em planos não harmônicos e ao fundir ficcional e documental num mesmo tratamento artístico, o recorte político está sobremanei74
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ra assinalado em O leão de sete cabeças, que nos provoca a não esquecermos compromissos críticos e mudança social reivindicados pelo teatro político de Brecht. Mas a única formulação mais diretiva só pode ser feita pela fala de Glauber: “O leão de sete cabeças é sobre as lutas de libertação da África contra o colonialismo imperialista, sobretudo o português, o francês e o inglês” (ROCHA: 2014, p. 371). Podemos também nos espelhar nessa historicidade capturada por esse filme, que faz pulsar dentro de nós indignação com a geopolítica do capital – ainda hoje. Contudo, nos instiga a discutir de forma problemática e translocal a pedagogia do teatro, a produção cinematográfica e a história da África numa chave variada de referências. Bertolt Brecht, Glauber Rocha e Serguei Eisenstein são intelectuais e artistas interessantes para a oportunidade de inserção de temáticas africanas, portanto de exploração absoluta, em chaves “translocais”, nos termos de Mundimbe (2013). Trata-se da formação de novos encenadores e cineastas em exercício no cinema alimentado pelo teatro e no teatro alimentado pelo cinema, em busca da construção de um olhar comprometido com a África em termos não eurocêntricos, mas “translocais”. Portanto, está em jogo uma aposta na construção de conhecimentos postos lado a lado: o hoje chamado “diálogo Sul/ Sul”, numa dimensão decolonial. O trágico e o épico se encontram e tensionam na cena contemporânea.
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O trágico na cena contemporânea: intersecções entre teatro, história e cinema
BIBLIOGRAFIA AMSELLE, Jean-Loup. “Etnias e espaços: para uma antropologia topológica”. In: AMSELLE, Jean-Loup & M´BOKOLO, Elikia. Pelos meandros da etnia: etnias, tribalismo e Estado em África. Lisboa: Edições Pedago, 2014. BRECHT, Bertolt. Teatro dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. MOTTA, Regiane Augusto. “Percursos translocais: Valentim Mudimbe e o Pós-Colonial”. In: CARVALHO FILHO, Silvio de Almeida; NASCIMENTO, Washington Santos. Intelectuais das Áfricas. Campinas: Pontes, 2018. MUDIMBE, Valentim Y. A invenção de África. Gnose, Filosofia e Ordem do Conhecimento. Luanda: Edições Pedago, 2013. EISENSTEIN, Serguei. “Do teatro ao cinema”. In: A forma do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004. SILVA, Humberto Pereira da. Glauber e seu “O leão de sete cabeças”. Acessível em: <http://www.filmespolvo.com.br/site/artigos/convidado/1234>. Acesso em: 21 ago.2020. XAVIER, Ismail. “Prefácio”. In: ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. ZUOLIN, Huang. Um acréscimo ao texto de Brecht: o efeito de estranhamento na interpretação do teatro chinês. UFG: Curso de Direção Teatral, 2008.
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— VENTOS
Sequências de espaço-tempo: o suporte da página como elemento expressivo Luiza Leite*
Ao longo dos anos 2010, qualquer pessoa que visitasse pela primeira vez uma feira de arte impressa, com frequência manifestava surpresa diante de uma quantidade imensa de editoras independentes. Sobre as mesas, publicações as mais variadas, dos pequenos zines de uma folha só aos livros de artista com projetos gráficos complexos; dos volumes encadernados à mão aos livros levíssimos, que cabiam no bolso, feitos com dobraduras. Encontravam-se ali reunidos, sob o mesmo teto, trabalhos impressos com técnicas diversas, da risografia ao off-set, passando pela gravura, impressora a laser e até mesmo a xerox. A multiplicidade de formatos, estilos visuais e técnicas de impressão gerava um impacto imediato em quem estava conhecendo aquele universo. Cada editora apresentava uma proposta própria e, com frequência, as publicações vinham acompanhadas de uma explicação sobre sua criação por parte dos que estiveram diretamente envolvidos em todas as etapas de sua produção, seja como autor ou como editor.
* Mestre em Antropologia (Museu Nacional/UFRJ) e Doutora em Literatura Comparada (UERJ). Realizou pesquisa de Pós-Doutorado sobre a relação entre as publicações de artista e a performance, junto ao Programa de PósGraduação em Artes da Cena (ECo/UFRJ).
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O que em geral decorria dessa experiência de contato com um mundo editorial, até então desconhecido, era uma ampliação do significado da palavra “publicação”, palavra esta que muitos editores independentes preferem ao livro, por contemplar uma gama maior de formatos e estilos. Os visitantes saíam das feiras invariavelmente com uma pequena coleção muito singular de impressos, que poderia ser composta de um zine ilustrado por um coletivo de mulheres, passando por uma tradução de um texto até então inédito em português; um ensaio de imagem e texto sobre uma viagem a Canudos e uma publicação sobre uma oficina de livro de artista realizada no bairro do Bom Retiro (local onde fica localizada a Casa do Povo, que abrigou durante anos a Tijuana, a mais antiga feira de arte impressa de São Paulo). Atordoado diante de tantos estilos visuais e propostas editoriais, o público não permanecia o mesmo após seu passeio pelas feiras. Ao comprar zines e outras publicações diretamente das mãos de quem os produzia, a percepção do que podia ser uma publicação e, consequentemente, um texto passava por uma tremenda transformação. Fabio Morais chama atenção para o caráter subversivo das feiras, num país como o Brasil, em que a falta de democratização dos meios de produção editorial fez parte da história da tipografia. Ter acesso às publicações numa feira é também um modo de testemunhar a descentralização dos meios de produção e o afastamento dos circuitos convencionais do meio editorial. Diz Morais (2018, pp. 6-7): Nossa relação com a página, com o espaço público que ela é, passa pelo ato de roubá-la de uma elite letrada e monopolista, e é isso que vejo nas atuais feiras de impressos: pequenos editores e auto-editores desafiando o monopólio de editoras que atuam não só arbitrando e legitimando o que deve ser publicado, como reforçando nossa proibição editorial ao colocar livros no mercado cujo preço beira um décimo do salário mínimo.
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À medida que as feiras se multiplicavam (depois da pioneira Tijuana, vieram outras tantas como a Turnê, a Plana, a Pão de Forma, a Miolos etc.), o número de editores aumentava exponencialmente. Mas o impacto das feiras ultrapassava os círculos de produção. Cada feira, com sua especificidade, constituiu um importante canal de formação de público e, com isso, uma nova percepção a respeito do potencial das publicações impressas. Não demorou para essa influência recair também sobre a produção acadêmica, inicialmente nas áreas de Artes Visuais e Design. O contato com outras formas de conceber as publicações, além da preponderância da visualidade nas redes sociais, suscitou em muitos alunos o desejo de produzir textos que escapassem aos modelos canônicos. As imagens começaram a aparecer nas dissertações em uma relação de interdependência com o texto, as encadernações mudaram e também o estilo dos textos. Aquilo que antes parecia restrito aos programas de Artes Visuais e Design começou a aparecer em outras pós-graduações, como a Literatura Contemporânea e as Artes Cênicas. Decorre daí uma questão relativa aos parâmetros de produção desses textos. O fato de uma produção marcadamente visual exercer uma influência sobre a produção textual se desdobra em trabalhos que passam pela primeira vez a contemplar não apenas a natureza do texto em si, mas a sua forma de ocupação da página. Alguns textos apresentam um questionamento sobre a sua própria natureza, isto é, os limites entre as diferentes linguagens. Muitos deles são inspirados na arte da performance das décadas de 1960 e 70 e, por esse motivo, oferecem ao leitor a oportunidade de acompanhar uma reflexão específica sobre o desdobramento do pensamento e a forma que ele assume. No presente artigo, discutirei como o manifesto A nova arte de fazer livros, do artista mexicano Ulises Carrión, nos fornece uma pista sobre possíveis parâmetros de produção textual que fogem aos formatos acadêmicos canônicos e apre81
Sequências de espaço-tempo: o suporte da página como elemento expressivo
sentarei dois trabalhos que tensionam a linguagem de modo a produzir poéticas que recorrem às imagens e são permeadas simultaneamente por reflexões teóricas, como parque das ruínas, de Marília Garcia, e Nox, de Anne Carson. O artista Ulises Carrión começou sua carreira dentro da academia, mais especificamente no campo da Literatura, mas aos poucos foi-se interessando pela arte conceitual e abandonando a literatura. Em seu manifesto, A nova arte de fazer livros, publicado pela primeira vez na revista Plural, em 1975, Carrión diz que “um escritor escreve textos” (2011, p. 7). Para escrever livros, segundo a nova arte, o escritor teria que considerar a especificidade do livro como uma sequência de espaço-tempo “que pode conter qualquer linguagem (escrita), não somente a linguagem literária, até mesmo qualquer outro sistema de signos” (CARRIÓN: 2011, p. 13). O manifesto era direcionado aos escritores que até então percebiam o livro apenas como um receptáculo para textos já prontos. “A nova arte usa qualquer manifestação da linguagem pois o autor não tem nenhuma outra intenção a não ser testar a capacidade que tem a linguagem de querer dizer algo” (CARRIÓN: 2011, p. 57). A leitura de um livro feito segundo os parâmetros da nova arte dependeria, portanto, da percepção de sua estrutura. Uma vez compreendida a estrutura do livro, seria possível abandonar sua leitura. Carrión expande assim a compreensão de publicação para outros tipos de signos linguísticos encadeados segundo uma lógica estrutural. “Testar a capacidade que tem a linguagem de querer dizer algo” seria atentar para o caráter performativo da linguagem, isto é, fazer livros que põem em causa, por meio de sua forma, o que estão dizendo. Trata-se de espécies de texto que encenam ou performatizam o que está sendo dito em função da disposição de seus textos e/ou imagens. Produzir textos ao mesmo tempo poéticos e teóricos que tenham como base essa ideia significa atentar para a estrutura do todo e 82
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se balizar por procedimentos que se dão pela via da montagem e da ruptura, criando constelações de sentido e aproximando-se de um paradigma regido por uma percepção ideogramática da linguagem. Embora Carrión leve essa questão sobre os tipos de linguagem às últimas consequências, muitas vezes usando em seus livros signos não linguísticos, podemos tomá-lo como inspiração para pensar na especificidade das formas de escrita que fogem aos formatos acadêmicos mais usuais. Isso depende de uma percepção do livro como um todo, inclusive seu suporte. Uma constelação performativa de elementos que encenam em sua forma as próprias questões teóricas que estão sendo problematizadas. Naturalmente, o escritor deverá estabelecer, desde o início de sua produção, uma relação entre a visualidade ou o modo como o texto ocupa a sequência de espaço-tempo do livro. Gostaria de me deter sobre dois trabalhos de poesia que, embora não acadêmicos no sentido estrito, apresentam uma série de reflexões teóricas que são performatizadas no uso da relação texto e imagem: parque das ruínas, de Marília Garcia e Nox, de Anne Carson. As obras em questão manejam as imagens e o texto de modo a expandir a compreensão do que é proposto em termos teóricos. São trabalhos cuja estrutura depende do modo como arranjos específicos são dispostos nas páginas. Fazer esse tipo de escrita requer uma percepção sobre o todo que vai além da compreensão do livro como um receptáculo de palavras: Na velha arte o escritor não se julga responsável pelo livro. Ele escreve o texto. [...] Na nova arte escrever um texto é somente o primeiro elo na corrente que vai do escritor ao leitor. Na nova arte o escritor assume a responsabilidade pelo processo inteiro (CARRIÓN: 2011, p. 14).
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O escritor, portanto, deverá pensar a relação do texto com a estrutura do livro, o que exige uma percepção sobre as qualidades formais do projeto como um todo. Uma das possibilidades de se fazer uso de escritas outras dentro do espaço acadêmico seria compreender o livro como uma estrutura e em especial uma estrutura de metalinguagem em que os elementos visuais explorados de certa forma iluminam os aspectos teóricos apresentados. Isso quer dizer muitas vezes voltar a atenção para os limites entre as linguagens como formulação teórica, tensionando o que é dito e a forma como é dito, o que requer uma capacidade de raciocínio que não faz uso apenas da linearidade, mas também das propriedades imagéticas da linguagem. Marília Garcia inicia o poema-ensaio parque das ruínas com uma “epígrafe em forma de imagem” (GARCIA: 2018, p. 11) em que apresenta o trabalho da artista Rose-Lynn Fisher. Fisher põe lágrimas sobre lâminas e depois de secarem as observa por meio de um microscópio para “descobrir / se as lágrimas de tristeza teriam o mesmo desenho das lágrimas de alegria / das lágrimas de despedida / das lágrimas de cebola” (GARCIA: 2018, pp. 12-13). As imagens das lágrimas secas parecem fotos aéreas, mas, ao contrário de serem feitas à distância, mostram “algo que está muito muito / perto / tão perto / perto demais” (GARCIA: 2018, p. 13). Aos poucos, vamos entender essa epígrafe, com as fotografias das lágrimas ampliadas, como imagens-síntese de uma pergunta que atravessa o poema-ensaio: “como ver?”. Essa pergunta move Garcia a realizar o que ela chama de “diário sentimental da Pont Marie” em que faz anotações a partir de fotografias tiradas em uma ponte em Paris, todos os dias às 10h, a partir do mesmo ângulo: “não queria ver algo além mas o próprio lugar. Talvez com a foto pudesse recortar um instante / um fotograma” (GARCIA: 2018, p. 26). A autora diz que gostaria 84
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de revelar o entre “sempre na vida tinha tentado pular etapas / apagar o meio o entre o processo / como fazer para atravessar e passar pelas coisas?” (idem). Garcia vai compartilhando aspectos da construção do seu texto, os andaimes que em geral não são revelados. Há uma relação análoga entre a construção do pensamento enquanto se desdobra e toda uma gama de acontecimentos cotidianos e banais que passam despercebidos por nós: “como abordar e descrever aquilo que de fato preenche a nossa vida? [...] [georges] perec fala da capacidade de olhar para o cotidiano e para os gestos mais simples como por exemplo acordar abrir os olhos lentamente e ver (GARCIA: 2018, p. 27). Os acontecimentos extraordinários “guerra / desastres / morte” seriam mais fáceis de observar por sua contundência, mas como fazer para evidenciar o infraordinário? O pensamento que se desdobra em forma de perguntas em parque das ruínas pode também ser lido como nossos gestos mais simples que, em geral, não percebemos. Capturar esses instantes é justamente o que faz o cineasta David Perlov em seu ensaio-filme-biografia, um dos filmes que motivou a feitura do “diário sentimental da Pont Marie”. Ele diz ter começado a filmar “dia após dia em busca de alguma coisa”. Segundo Garcia, “ele grava o tempo passando e a própria vida. Ele faz um registro do meio / leva tempo aprender como fazer” (GARCIA: 2018, p. 37). Os filmes citados pela autora falam da proximidade como condição de se ver alguma coisa. Às vezes, é preciso se aproximar muito para enxergar algo que a princípio não era visível como no filme Blow up, de Antonioni. Outras vezes, é necessário tomar distância para poder perceber numa imagem o que antes, à falta de algum outro conhecimento ou acontecimento, não era perceptível. Em um fotograma tremido de uma sequência do filme do Perlov, em que aparece o Bairro de Santa Teresa, Gar85
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cia encontra a janela de sua primeira infância. Isso a impele a narrar uma história que sua mãe sempre contava sobre o tio que se ofereceu para ir para a segunda guerra como médico para que seu irmão, tio-avô de Garcia, não tivesse que ir como soldado. As cartas trocadas entre o tio-avô e sua futura esposa são levadas por Garcia até a França, onde ela está fazendo uma residência artística, da qual faz parte o “diário sentimental da Pont Marie”. Ao examinar as cartas, a autora percebe que elas falam de assuntos corriqueiros, sobretudo de amor. Os cartões-postais de cidades bombardeadas que Garcia compra em Paris também apresentam textos que abordam questões passageiras e banais. Nos intervalos mais ínfimos que fazem parte dos grandes acontecimentos como as guerras, capazes de gerar imensas ruínas, encontra-se o infraordinário. Em meio ao livro, que é lentamente composto, é possível perceber as engrenagens feitas de texto e imagens, os pequenos desvios, as reticências, as perguntas a respeito do que esse texto busca comunicar. Garcia se pergunta: será que olhar a fotografia tirada na Pont Marie no dia em que houve o atentado terrorista ao jornal Charlie Hebdo revelaria alguma coisa sobre aquele acontecimento? Será possível encontrar no passado indícios sobre o futuro? Uma das perguntas que seu livro nos suscita seria: há como tecer um texto ao mesmo tempo em que a autora se localiza em relação a ele o tempo todo como se estivesse escrevendo em tempo real? parque das ruínas parece dizer que sim. Tem como ponto de partida uma proposição performativa: fotografar a Pont Marie do mesmo ângulo todas as manhãs. O ato de olhar e ver no tempo é desdobrado também como reflexão sobre os próprios procedimentos de composição do livro. Anne Carson é outra autora conhecida por esmaecer as fronteiras entre diferentes gêneros de escrita. Em Breves conferências, ela diz: 86
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Farei tudo para evitar o tédio. É a tarefa de uma vida. Você nunca saberá o bastante, sempre poderá trabalhar mais, não usará infinitivos e particípios de um modo estranho demais, não travará o movimento bruscamente demais, nunca sairá de dentro da própria mente depressa o bastante (CARSON: 2014, p. 207).
Uma característica parece atravessar os seus livros, o modo como ela escapa do que chama de tédio de uma história. Carson escreve por meio de fragmentos e confere ênfase especial às lacunas e ao uso da pontuação de modo a burlar a história inteiriça. No ensaio “Variações sobre o direito de se manter em silêncio”, a autora aponta dois tipos de silêncio encontrados no trabalho de tradução. O silêncio representado por uma lacuna concreta num documento antigo, como quando falta uma parte de um verso num poema, por exemplo; e o silêncio decorrente de uma palavra intraduzível, que não encontra outro modo de ser dita na língua de chegada. O silêncio seria um modo de impedir o clichê. Nesse ensaio, Carson diz que Joana D’Arc frustra a tentativa dos inquisidores de obterem um clichê teológico: Queriam que ela lhes desse nome, corpo e descrição de alguma maneira que eles pudessem entender, com imagens e emoções religiosas reconhecíveis, numa narrativa convencional. [...] Joana desprezava essa abordagem e impediu seu progresso o quanto pôde (CARSON: 2013, p. 8).
Assim como Joana D’Arc, Carson está interessada no que é capaz de catastrofizar a linguagem, por isso “não usará infinitivos e particípios de um modo estranho demais”. No livro Nox, Carson faz uso de uma combinação de texto e imagem em fragmentos que performam a impossibilidade de narrar a história do irmão que ela não via há 22 anos e aca87
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bara de perder. A tentativa de Carson de traduzir a experiência do luto é ao mesmo tempo um testemunho de seu fracasso. Por meio de pequenas colagens de fotografias e outras matérias biográficas, como cartas e bilhetes, Carson experimenta a criação de uma obra em que a visualidade é um elemento tão importante quanto a matéria textual. É no jogo entre as imagens, às vezes transpostas para a página em pedacinhos; e os fragmentos de texto, em que ela faz perguntas sobre diversos assuntos, que emerge uma tentativa de elaborar a perda do irmão. Além da escrita sobre a perda, o livro é uma tentativa de recobrar fatos de uma história perdida. Essa busca se assemelha, segundo Carson, à tarefa da tradução, que acontece por lampejos e apalpadelas. Nox é feito de alguns elementos heterogêneos que vão se repetindo e gerando um efeito encantatório. O livro tem um formato sanfona e abre com uma página que diz: NOX, FRATER, NOX (2010, s/p). Só compreendemos o sentido da palavra nox – que significa “noite”, em latim – e sua relação com a perda, ao longo do livro e mais especificamente no final. Em seguida, Carson nos oferece um fragmento de papel, pois o livro é feito de colagens, em que se lê um poema em latim. Trata-se da elegia número 101 que o poeta Catulo escreve para o irmão. Ao longo do livro, Carson cria verbetes com cada palavra desse poema. Revela assim a variação de sentido e as expressões idiomáticas a que pertence cada vocábulo. Aos poucos, ao lermos os vários sentidos atribuídos a cada palavra, por menor que seja, vemos que a linguagem, mesmo aquela que se pretende objetiva, nunca se restringe a um único significado. Os verbetes acabam aproximando-se da elegia em sua proliferação de sentidos. Além desses verbetes com as palavras em latim, Carson tece uma série de considerações sobre o irmão, sua biografia,
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e se faz perguntas como modo de desdobrar o pensamento ao longo do livro: Eu queria preencher a minha elegia com luz de todos os tipos. Mas a morte nos torna avaros. Não há mais nada a ser elaborado a respeito, pensamos, ele está morto. O amor não pode alterar isso. Palavras não podem acrescentar nada a isso. Não importa o quanto eu tente evocar o menino sonhador que ele era, a história permanece peculiar e banal. Então comecei a pensar sobre a história (CARSON: 2010, s/p).
A busca pela memória do irmão se torna um motivo para perseguir os significados possíveis da palavra história. Carson então nos oferece uma sucessão de pequenos fragmentos em que fala de Heródoto, historiador da Grécia Antiga. “História e elegia são parecidas. A palavra ‘história’ vem do antigo verbo grego que significa ‘perguntar’. Alguém que faz indagações sobre as coisas – sobre suas dimensões, peso, localização, humores, nomes, caráter sagrado, cheiro – é um historiador” (CARSON: 2010, s/p). Heródoto treina o leitor ao fazer perguntas, surpreso com as coisas estranhas que os seres humanos fazem. A mais estranha delas é a própria história. Carson acrescenta que a história é “ao mesmo tempo concreta e indecifrável”, assim como o livro feito de pequenos fragmentos de imagens da história de seu irmão. O historiador recolheria a mudez, palavra derivada do latim mutus e “considerada pelos linguistas como uma formação onomatopaica que se refere não ao silêncio mas a uma certa opacidade fundamental do ser humano, que gosta de revelar a verdade ao permitir que essa possa ser vista escondida” (CARSON: 2010, s/p). Carson faz um paralelismo com a origem semântica de mudez e a mudez do irmão com que ela vai se deparar na cidade de Copenhagem, onde ele viveu e faleceu. 89
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Nas páginas do livro, vemos pequenos trechos de uma carta que o irmão enviou para a mãe e também uma carta que a mãe escreveu em resposta mas nunca pôde enviar por falta de um endereço. Esses trechos são intercalados com narrativas sobre a viagem de Carson a Copenhagen duas semanas após a morte do irmão, pois sua esposa demorou a achar o contato de Carson em meio aos papeis dele. Sua tentativa de recuperar a história do irmão por meio dos fragmentos de fotografias e cartas se justapõe à reflexão sobre a história ao longo da primeira parte do livro. Segundo Carson, Heródoto quer prender os feitos das pessoas para impedir que saiam flutuando até virar nada: “Queremos que as outras pessoas tenham um centro, uma história, uma narrativa que faça sentido. Queremos poder dizer É isto que ele fez e aqui está o porquê. Criar um cadeado contra o desaparecimento” (CARSON: 2010, s/p). Essas reflexões são intercaladas com as memórias da relação da mãe com o irmão. “Vejo-a perto da pia descascando cenouras. Durante anos depois que ele se foi ela dava uma olhada toda vez que um carro vinha acelerado pela estrada” (CARSON: 2010, s/p). Carson justapõe uma foto da mãe segurando pela mão o filho ainda bebê e escreve embaixo: Ela nunca recebeu um endereço dele. De fato durante os últimos sete anos da vida dele ele não escreveu uma linha sequer. Aos poucos ela começou a dizer que ele estava morto. Como você sabe? eu disse e ela disse Quando rezo por ele nada retorna. [...] Depois disso não falamos mais sobre o meu irmão. A falta de esperança ergueu um muro em torno dela. Eu não tinha certeza se novos sentimentos vindos dele haviam acabado, mas não havia nenhuma razão prática para dizer isso. Era um alívio não tê-lo adentrando toda conversa como cheiro de cabelo queimado, para ser sincera, do meu ponto de vista. Do ponto de vista dela, todo o desejo deixou o mundo (CARSON: 2010, s/p).
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Uns seis meses após a morte da mãe, Carson recebeu um telefonema do irmão. A voz dele tinha uma densidade, mas se iluminou brevemente quando ele a chamou pelo apelido de quando eles eram adolescentes, o que fez toda a história retornar. E Carson se pergunta “O que é uma voz?” Lembramos do início do livro quando ela diz que o historiador é aquele que faz perguntas. O livro é permeado de perguntas e fazer perguntas é o próprio ato de rememorar. Carson está a uma só vez pensando a questão da história e se engajando num gesto de historiadora. Quando ela visita a igreja onde foi o velório do irmão acompanhada de sua viúva, ela se lembra de quando os próprios pais morreram. Costura com um senso de humor insólito as próprias memórias e as referências históricas. O que me ocorre enquanto eu me ajoelho na igreja em Copenhagen ouvindo cânticos dinamarqueses e deixando os lençóis da memória balançarem ao vento, é que ambos os meus pais foram colocados em seus caixões (com anos de distância incidentalmente) em casacos amarelos. Eles pareciam lindas gemas em paz. Eu sempre admirei o design de um ovo (CARSON: 2010, s/p).
Na página seguinte nos deparamos com uma montagem de pequenos fragmentos de fotografias em que se vê o oceano e o seguinte texto: Quando meu irmão morreu (inesperadamente) sua viúva não conseguiu localizar o meu número de telefone até duas semanas depois. Enquanto eu varria minha varanda e comprava maçãs e sentava à noite perto da janela com o rádio ligado, sua morte veio vagando vagarosamente pelo oceano (CARSON: 2010, s/p).
Mais para o fim do livro temos a primeira explicação sobre o poema do Catulo em Latim que aparece na primeira página. 91
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Carson diz ter conhecido a elegia quando ainda estava na escola e que desde então tentou traduzi-la inúmeras vezes. Ninguém (nem mesmo em Latim) consegue se aproximar da dicção de Catulo, que mesmo no seu momento mais triste tem um ar de profunda festividade, como uma daquelas árvores cujas folhas são reviradas, prata, ao vento. Nunca consegui chegar à tradução que eu gostaria de ter feito do poema 101. Mas ao longo dos anos trabalhando nele, pensei na tradução como um quarto, não exatamente um quarto desconhecido, em que se busca o interruptor de luz por apalpadelas. Acho que nunca acaba. Um irmão nunca acaba. Eu apalpo em busca dele. Ele não acaba (idem).
Surge aqui mais uma analogia da tradução como a busca de significado por apalpadelas, assim como se busca também a história de uma pessoa, “não adianta esperar uma inundação de luz” (CARSON: 2010, s/p). A analogia entre o ato de traduzir e a tentativa de recuperar a memória do irmão fica cada vez mais perceptível ao longo do livro, culminando com a tradução do poema 101 de Catulo. “Porque nossas conversas foram poucas (ele me telefonou talvez 5 vezes em 22 anos) eu estudo suas frases as que me lembro como se alguém tivesse me pedido para traduzi-las” (CARSON: 2010, s/p). Ficamos por fim sabendo por meio do verbete com a palavra Ave, que, quando aparece em lápides, o vocábulo quer dizer “agora é noite”. Entendemos o porquê do título Nox, noite em Latim, que é também como o livro se inicia com “Noite, Irmão, Noite” (CARSON: 2010, s/p). Tanto parque das ruínas como Nox desdobram questões conceituais a partir do jogo de imagem e texto que propõem. No primeiro livro, acompanhamos um esforço de fazer valer o que está entre, o que acontece sem que percebamos, e isso inclui uma reflexão sobre as engrenagens do próprio fazer. Na segunda obra, Carson performatiza o processo de luto ao encenar 92
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por meio dos pequenos fragmentos a história do irmão e consequentemente o trabalho do historiador. Ambos os poemas-ensaio têm uma estrutura de metalinguagem que faz com que as questões teóricas apresentadas ganhem forma concreta nas páginas e a forma concreta faça alusão direta à discussão conceitual. A história feita de lampejos e a opacidade insuperável do luto encontra sua concretização nos pedacinhos de fotografias e cartas que Carson justapõe, assim como o infraordinário, tudo aquilo que não reconhecemos por força do hábito ou porque está próximo demais, ganha contorno na investigação que Garcia faz sobre as possibilidades de ver. Parte do esforço de tornar esses trabalhos performativos mais visíveis e conhecidos, servindo quem sabe de inspiração para quem explora outras formas de composição textual, se deve em parte ao campo das Artes Visuais. A Regina Melim, por exemplo, traduziu uma série de textos sobre essas questões na revista Hay en português?, disponível online no site da editora Par(ent)esis. Autores da escrita conceitual, como Kenneth Goldsmith e Bélen Gache, problematizam as possibilidades de escrita ao explorarem procedimentos, tais como o sampleamento e a apropriação. O uso de procedimentos de escrita ancorados em performances foi amplamente usado por muitos coletivos de experimentação literária nos anos 1960/1970. Grupos como o Oulipo buscavam chamar atenção para a repetição da vida cotidiana, propondo programas, partituras ou restrições como pontos de partida para a criação (GACHE: 2017, p. 12). Garcia dialoga indiretamente com esses autores em seu repertório poético, chamando atenção para as múltiplas possibilidades performativas do texto, enquanto Carson nos convida a acompanhar passo a passo suas reflexões sobre o luto na forma própria como compõe suas colagens. Ambas as autoras mostram a densidade do pensamento que pode vir enredado em uma escrita de natureza poética, que faz uso de arranjos de imagem e texto. 93
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BIBLIOGRAFIA CARSON, Anne. Nox. New York: New Directions, 2010. ----. “Variações sobre o direito de se manter em silêncio”. In: Nay rather. Londres: Sylph Editions, 2013. ----. “Breves conferências”. In: Serrote. Instituto Moreira Salles, 2014, n. 17. GACHE, Belén. Instruções de uso: partituras, receitas e algoritmos na poesia e na arte contemporâneas. Florianópolis: Par(ent)esis, 2017. GARCIA, Marília. parque das ruínas. São Paulo: LunaParque, 2018. MORAIS, Fabio. Sabão. Florianópolis: Par(ent)esis, 2018.
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O impossível como matéria de pensamento e ação Entrevista com Eleonora Fabião por Elilson
Eleonora Fabião é professora do Curso de Direção Teatral e do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena, ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Escola de Comunicação). Além de professora, é performer e teórica da performance. Na entrevista a seguir, publicada originalmente pela e.Revista 4 parede (Quarta Parede), ela dialoga com o artista Elilson sobre a interconexão entre suas atividades como dimensões de uma mesma prática artística. Elilson é também performer e, como ex-aluno do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC), teve a sua pesquisa de mestrado orientada por Eleonora. Desta forma, a entrevista se apresenta como uma conversa entre artistas, esmiuçando questões pertinentes ao estado da arte atual, principalmente no que diz respeito ao campo das expressões e práticas performativas. Elilson pergunta, aponta direções e põe em realce aspectos da trajetória de Eleonora; ela, ao responder, continua a indagar; conceitua, historia, traz à tona possibilidades, fustiga a memória. As palavras parecem recompor as vivências, tornando-se, elas próprias, o refazer de um fluxo de ideias a compor cruzamentos múltiplos, sugerindo um mosaico ondulante e afetivo. Ao falar do passado, recente ou recuado, o que se impõe é o tempo presente de um fazer poético no qual as dimensões estética, social, política e espiritual unem-se indissoluvelmente.
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O impossível como matéria de pensamento e ação
Ciclorama agradece, aos editores da e.Revista 4 parede (Quarta Parede) e também aos artistas envolvidos, a autorização de republicação deste material na presente edição. Optamos por privilegiar alguns momentos da conversa, cortando outros, em benefício de uma maior fluidez. Demos prioridade aos trechos onde as formulações teóricas tomam relevo, em detrimento de outros trechos mais descritivos. A revisão preocupou-se em não interferir no conteúdo das falas, limitando-se a pequenos ajustes. A versão integral encontra-se disponível em http://4parede.com/16-urgencias-do-agora-o-impossivel-como-materia-de-pensamento-e-acao/ * ELILSON: Eleonora, você costuma partilhar que realiza ações para imaginar-construir, em contato corpo a corpo com tantas concidadãs e concidadãos, “a cidade onde deseja(m) viver”. Poderíamos começar falando sobre como tem-se desenvolvido esse princípio performativo pensando na sucessão de encontros que se desencadeiam em tua prática artística nas ruas, nos contextos expositivos, nas salas de aula e na escrita? Nesse fluxo, como tem-se articulado a noção de “programa performativo”, seu conceito que tem vibrado na prática de uma nova geração de artistas e pesquisadores da performance no Brasil? ELEONORA: olá, querido Elilson – muito obrigada pelo convite para pensar e conversar. Como sabemos, não há tanto material disponível sobre performance no Brasil quanto gostaríamos. Tampouco, muitos livros sobre o tema em língua portuguesa. Então vem sendo nosso trabalho, sobretudo daquelas de nós que também atuam nas universidades, ampliar e disseminar a discussão. Afinal, a performance é um elemento funda96
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mental na produção artística, reflexiva e política contemporânea. Ela age no simbólico, no imaginário e sua força de entrada no cotidiano sociopolítico é determinante. Sim, sou uma artista que trabalha com arte de ação (os espanhóis traduzem “performance” como “arte de acción” e gosto do termo). As ações que concebo vêm acontecendo em contextos diversos – ruas, espaços expositivos, festivais, bienais, museus, universidades, páginas (de papel e virtuais), canais no YouTube, domicílios e instituições de poder público. As matérias também são as mais variadas: o que for necessário, de acordo com o que for imaginado – matérias humanas e não-humanas, visíveis e invisíveis, leves e pesadas, estético-políticas. E há, digamos, uma matéria de base, uma matéria-chão: as circunstâncias. A coisa consiste em escutar as circunstâncias e me meter nelas – ser movida por elas, mover-me com elas e movê-las nas direções que me parecem precisas (necessárias e certeiras). O trabalho é lidar com lugares, pessoas, instituições, legislações, massa histórica e matéria fantasma. Lidar com volumetrias, velocidades, densidades, cores, luminosidades, atmosferas, campos de força. Lidar com múltiplas perspectivas, pontos de vista, saberes, sistemas de inclusão e exclusão, lugares de fala e forças de silenciamento. Cada ação se dá como uma movida de corpos, de muitos tipos de corpos, articulados por um programa performativo. O “programa”, colocado da maneira mais concisa que consigo, é um disparador. Ele é o enunciado de uma ação performativa. E por ser enunciado performativo, já é ação. Como escrevi em textos onde apresento o conceito, esse enunciado determina um conjunto de ações previamente estipuladas, claramente articuladas e conceitualmente polidas, a ser realizado por artistas, pelo público ou por ambas as partes sem ensaio prévio. O programa age como uma espécie de contorno. Ele me dá contorno para agir. É como uma pele, flexível, porosa e 97
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firme. É isso, ele é um tipo muito sutil de matéria e não propriamente uma metodologia de trabalho (algo que antecederia as ações, de caráter ordenador, com um peso que não precisamos aqui). Entendo o programa um procedimento composicional (“procedimento” da linguagem médica e “composicional” da linguagem artística). E ele age paradoxalmente, a energética é paradoxal: o que um programa faz é justamente des-programar tudo aquilo em que toca e que o toca. No final das contas, ele é um corpo estranho que se mete nas circunstâncias, uma forma de vida poética que suspende o estabelecido. Importante também dizer que ele sempre envolve experimentação: psicofísica, social, política e existencial, conjugadamente, por meio de ações marcadamente estéticas. E sim, Elilson, quando percebo, como você diz, que o “programa” reverbera por aí, fico eletrizada. De fato, esse conceito-ação vem-se espalhando, acendendo, vem sendo ativado e ampliado pelas mais variadas pessoas. Talvez ele tenha uma força liberadora. Talvez seja um modo de fazer vida poética e abrir imaginação política. Ao menos comigo ele faz assim. Faz sempre assim. Outro dia, João Turchi, do Coletivo Mêxa – coletivo em São Paulo que reúne pessoas em situação de vulnerabilidade, em situação de rua e membros da comunidade LGBTQIA+ – me contou que o grupo vem desenvolvendo programas e se fortalecendo por meio deles. Mês passado, estava numa live com o pessoal do educativo do MuBE (Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia) e um dos educadores fez um depoimento super bonito sobre como ele vem usando, no seu dia a dia, a noção de programa; sobre como “aquilo” deu contorno a ele num momento difícil. Volta e meia, leio uma dissertação de mestrado ou tese de doutorado e lá está o programa fazendo acontecer mais e mais programas. Sentir como esse procedimento composicional energiza e inspira as mais variadas pessoas e grupos é eletrizante. Constatar como a estética 98
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é fonte de vida, que a estética é uma força estruturante como poucas, me anima inteira. E, para concluir, é sempre importante dizer que, assim como concebo, um programa não é uma improvisação ou um jogo. Não é a realização de uma improvisação; quando agindo um programa, não estou exatamente investida em ser inventiva, mas concentrada em levar a cabo o que precisa ser feito. Tampouco um programa é um conjunto de regras preestabelecidas que guiam um jogo. O que está em jogo não é um jogo. Um programa é um desejo. E não me parece que esse desejo, uma vez enunciado, opere como um conjunto de restrições ou se imponha como uma obrigação. Ele é de outra ordem, funciona de outra maneira, sintoniza em outra frequência. Um programa é a manifestação e a atualização de um desejo. E desejo, no final das contas, só quer desejar mais. E mais.
Ação Carioca #1: converso sobre qualquer assunto Largo da Carioca, Rio de Janeiro, 2008. Foto: Felipe Ribeiro
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ELILSON: volto à dimensão política dos encontros, que parece ter encontrado, em tua trajetória, terreno fértil naquele que possivelmente é teu trabalho-coração, Converso sobre qualquer assunto. Em um dos relatos desse trabalho, você conclui que “a rua é o lugar onde o impossível acontece”. Tendo em vista os múltiplos contextos urbanos onde já realizou essa ação e a diversidade de imaginários em confluência oral, você poderia compartilhar alguns acontecimentos, em diferentes cidades do mundo, em que esta ação disparou as dimensões de “acaso” e “impossível” nos encontros? ELEONORA: fiquei um tempão parada diante dessa pergunta. Olhando pra ela, ela olhando pra mim... Como você sabe, reproduzo várias vozes que escuto nas ruas em muitos textos que escrevo. São textos polifônicos e, rindo aqui com essa ideia, psicografados. Chego em casa possuída pelo espírito daquele acontecimento e descarrego no papel todas as vozes escutadas e experiências vividas. Seria uma psicografia etnográfica ou uma etnografia psicográfica? [rindo alto]. E, claro, acontece de tudo e mais um pouco quando estamos abertas e disponíveis na rua. No Rio de Janeiro então, nem se fala. Porém, pra te responder, vou por outro caminho, Elilson. Vou propor que pensemos um pouco sobre “acaso” e “impossível” para depois ver que vozes aparecem. Primeiro, o acaso. Um codinome para rua talvez pudesse ser imprevisibilidade, apesar de toda a ordenação urbanística e legislativa (ou por meio dela). A rua é uma espécie de canal de imprevisíveis – não há mesmo como prever o que irá acontecer, sobretudo se você se lança nela agindo programas performativos. Considerando esta perspectiva, não me parece que aconteçam “acasos”, em seu sentido mais convencional, quando estamos justamente no campo da imprevisibilidade. Talvez, para pensarmos performance na rua, seja interessante suspen100
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der a dicotomia clássica, a dicotomia do tipo adesivo de vidro de carro onde se lê: “só há acasos / o acaso não existe”. A rua, sugiro, vibra nas frequências paradoxais. Estou falando de uma massa de matéria – humana e não-humana, visível e invisível (histórica, arquitetônica, legislativa, urbanística, social, espiritual, gritaria, passarinho, três garotas, buzina, cheiro de pastel e urina) – que vibra para além (ou aquém) das dicotomias acaso/previsibilidade, acaso/determinação. A rua é o reino de Exu, o “Senhor da Terceira Cabaça”. O reino do movimento, da passagem. Como articulam Luiz Rufino e Luiz Antonio Simas no excepcional Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas, quando Exu foi desafiado a escolher entre duas cabaças, qual levaria para o mercado de Ifé – “Uma continha o bem, a outra continha o mal. Uma era remédio, a outra era veneno. Uma era corpo, a outra era espírito. Uma era o que se vê, a outra era o que não se enxerga. Uma era palavra, a outra era o que nunca será dito.” –, ele pediu uma terceira cabaça e misturou tudo. Desse dia em diante, como escrevem Rufino e Simas, “remédio pode ser veneno e veneno pode curar, o bem pode ser o mal, a alma pode ser o corpo, o visível pode ser o invisível e o que não se vê pode ser presença, o dito pode não dizer e o não dito pode fazer discursos vigorosos”. A rua não está de brincadeira e só está de brincadeira. Quanto ao “impossível”, estou cada vez mais acreditando que ele, o impossível, é uma matriz de pensamento e ação. Ele é o modus operandi, o ímpeto político. Isso porque a convocação do impossível é sempre da ordem da iniciativa radical: trata-se do ato de imaginar o que não existe. De virtualizar o que não há. Ou seja, trata-se da atividade do bom artista e do bom profissional da política, que, aliás, deveriam trabalhar com mais frequência juntos. O “impossível” seria uma espécie de desejo em último grau. A abolição da escravatura era o impossível. O direito de voto para as mulheres era o impossível. Tra101
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tar a AIDS era o impossível. Neste momento, a vacina contra o COVID-19 é um impossível. O impossível é a única coisa que realmente existe, que realmente importa, que realmente move e interessa. O inimaginável é justamente o espaço da imaginação, a força da invenção. E, veja, acho que não se trata de trabalhar para “tornar o impossível possível”; não se trata de docilizar, domesticar, capitalizar essa potência extraordinária. O que importa é se lançar nas coisas com a força vital que o impossível abre.
Triptych Miami: converso sobre cualquier asunto / I will have a conversation about any subject Lincoln Road, Miami, 2018. Foto: Francisco Morado
Então, chegamos à ação Converso sobre qualquer assunto que você evoca na pergunta. O programa é: “Sentar numa cadeira, pés descalços, diante de outra cadeira vazia (cadeiras da minha cozinha). Escrever numa grande folha de papel: ‘converso sobre qualquer assunto.’ Exibir o chamado e esperar”. Desde 2008 venho realizando essa ação em muitos lugares e por ho102
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ras a fio. Levei cadeiras para praças e ruas em diferentes bairros de cidades como Berlim, Bogotá, Fortaleza, Santo André, Rio de Janeiro, Miami, Nova York, São José do Rio Preto, São Paulo. Inicialmente, eram duas cadeiras, mas, com o passar dos anos, comecei a acrescentar mais e mais. A fazer grandes rodas, assembleias sobre qualquer assunto. Já cheguei a levar dez cadeiras, mas, se preciso for, o pessoal pede outras emprestadas em bares e restaurantes. As rodas já chegaram a ter 15 pessoas. Meu momento de glória é quando nem preciso mais explicar o programa pra quem chega. Outra pessoa enuncia ou, simplesmente, quem chega se junta e conversamos. Conversamos, debatemos, discutimos sobre os mais variados assuntos. E, sim, o impossível às vezes comparece de forma evidente (como quando fatos inacreditáveis acontecem). Porém, assim como a vibração é “exusíaca”, o impossível é a própria atmosfera do acontecimento. Aquilo tudo, aqueles encontros todos se dando em contextos culturais tão marcadamente separatistas e individualistas, aquelas longas conversas acontecendo entre pessoas completamente estranhas umas às outras e ensinadas a “não conversar com estranhos de jeito nenhum”, são profundamente brincantes e impossíveis. Não sei se me faço clara, mas é simples assim. E a sensação às vezes é lisérgica. Houve o dia em que alguém se sentou e me disse que deveríamos estar sempre prontos para morrer. Perguntei como era estar pronta pra morrer, e ele, policial aposentado, respondeu: “estando em paz”. Houve o dia em que ele, um homem lindo, chorando e buscando palavras para descrever sua mãe adotiva, disse: “ela era preta como o vestido daquela moça ali”. E houve o dia em que ela declarou, de pé ao lado da cadeira, se negando veementemente a sentar, que os vizinhos estavam andando dentro da cabeça dela. Os passos, os saltos, o abrir e fechar das portas, o rodar das chaves, das maçanetas, as moedas caídas dos bolsos rolando pelo chão, as cadeiras arrastadas, 103
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a piaçava da vassoura arranhando o corpo dela, bem ali, naquele instante. Falou: “Será que você não poderia, por gentileza, me receitar um remediozinho?” Houve o dia em que conversamos sobre construções de pontes. Pontes enormes, de até 13 km, e pontes curtas, que se fazem com uma tábua. Contei que quando eu era criança caí de uma ponte de tábua e chorei profundo no riacho raso. E ele contou que há cadáveres dentro dos pilares da ponte Rio-Niterói, corpos de operários mortos durante a construção. E houve o dia em que ela disse que seu filho de 10 anos foi levado à força, pelos guerrilheiros, para compor o exército da revolução. Mas que ela tinha muita fé e esperava seu retorno. O dia em que ela nos disse que o advogado a traiu e levou tudo. O dia em que ela me disse que traiu o seu namorado que, por sua vez, traía sua esposa com ela. O dia em que entendemos que sentir ciúmes é uma forma de ódio. O dia em que nós cantamos em coro “Meu coração, não sei por que, bate feliz quando te vê”. O dia em que ele nos alertou para nunca mais tomarmos café em avião porque aquilo é um veneno, “um veneno mesmo, porque eles não trocam o filtro nunca e isso faz muito mal pra você”. O dia em que ele me convidou para sairmos porque eu era muito jeitosa e ele dançava gafieira que era uma beleza. O dia em que ele me agrediu e eu repeti cada frase dele acrescentando exatamente o que eu sentia quando ele proferia cada palavra. E ele ouviu. O dia em que ele me confessou que nos últimos quatro anos, desde que chegou naquela cidade vindo do Oriente Médio, nunca havia conversado com ninguém daquela maneira. Ninguém. O dia em que o Brasil caiu ali mesmo. E escutamos, juntas, sons que o Brasil faz quando quebra. O dia em que as cadeiras cortaram meus ombros de tão pesadas e do tanto que era preciso caminhar para chegar até a praça da catedral pois o hotel onde me botaram ficava longe. O dia em que ela voltou com dois cafés pra gente, muito doces e frios os cafezinhos. O dia em que saí104
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mos e deixamos as cadeiras vazias pra ir comer uma coxinha de galinha logo ali. O dia em que ela me trouxe no dia seguinte o Livro de Mórmon de presente, e eu agradeci. O dia em que se formou uma fila de mulheres que queriam sentar comigo ali e conversar à sombra da amendoeira. O dia em que ele tentou me assaltar, eu expliquei a situação e ele aceitou a explicação. O dia em que ele se despediu com um aperto de mão suado, melado, forte e duro. O dia daquele beijo suave. O dia em que ele chegou de manhã e passou o dia inteiro comigo, levantando o chamado junto, conversando sobre qualquer assunto com quem chegasse. E ele apareceu no dia seguinte também, sempre usando chapéu e não ficou descalço. O dia em que gargalhamos sem fim porque ela contava piada como ninguém. Loura oxigenada ela. Bonita toda vida. O dia em que uma criança adivinhou o nome da minha filha na primeira tentativa. Pimba, sem titubeação. O dia em que ficamos juntas, ali, fazendo silêncio. Silêncio, que na rua, nem tem muito como fazer. Ou tem. ELILSON: é justamente através de encontros, “de acordo com o alcance de cada ação”, como você diz, que teus trabalhos imbricam proposição, vitalidade e experimentação para “transvalorar” modos de produção e relação. Mirando o pensamento costurado em diferentes épocas por Yoko Ono, Hélio Oiticica e por você, de que o papel do artista é “mudar o valor das coisas”, queria que comentasse sobre os processos de trabalhos como Movimento HO. ELEONORA: O Movimento HO aconteceu em novembro de 2016. As curadoras eram Tania Rivera e Izabela Pucu, que, na altura, dirigia o Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica (CMAHO). O programa: “Ocupar com 4.700 tijolos, 3 livros e 7 pessoas 4 galerias do andar térreo do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica por 7 dias seguidos. Desligar a energia elé105
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trica nas galerias, desligar o ar-condicionado e as luzes, abrir janelas e portas e pintar uma das paredes de amarelo 100%. De segunda-feira a domingo fazer e desfazer composições, formar e desformar espaços, mover e ser movidos. Aceitar a ajuda de quem quiser ajudar. Construir, seguir construindo, seguir aprendendo a construir. No meio da semana abrir uma roda de conversa. E, no último dia, transportar os tijolos e livros para a Casa das Mulheres da Maré, um projeto da ONG Redes no Complexo da Maré. Os tijolos se transformarão no quarto e último andar da Casa e os livros farão parte da biblioteca”.
Movimento HO Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, 2016. Foto: André Telles e Felipe Ribeiro
E assim foi: sete dias, sete desenhos, sete títulos. Um movimento em sete movimentos e sete pessoas colaborando ali – você, André Telles, Felipe Ribeiro, Maria Acselrad, Mariah 106
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Miguel, Viniciús Arneiro e eu. Porém, raramente estávamos sós; muita gente quis ajudar. Trabalhamos com 4.700 tijolos, ou seja, com mais de nove toneladas de material enquanto a brisa com os cheiros da cidade cruzava as galerias abertas; enquanto a luz mudava ao longo dos dias. Muitos valores estavam em movimento ali. E sim, acredito que uma das tarefas da artista é transvalorar. Vou pensando em voz alta contigo, pois há mesmo muita coisa em jogo aqui. O primeiro ponto que me ocorre diz respeito ao modo de ocupar uma galeria de arte. A premissa do trabalho foi arrancar as paredes falsas das galerias, abrir tudo, deixar o corpo do prédio à mostra, desinvestir completamente em condições “adequadas” de temperatura e luminosidade para o encontro com a obra de arte, articular o máximo possível o espaço interno e o espaço externo, a rua e a instituição. Afinal, convidaram uma artista que trabalha sobretudo nas ruas para ocupar galerias e sabiam que eu traria essa questão. Sabiam e queriam, pois a gestão da Izabela buscava justamente essa permeabilidade entre o CMAHO e seu entorno. O segundo ponto diz respeito à própria nomeação daquele acontecimento. Lembro de um momento em que parei para beber um copo d’água – tínhamos que beber água a cada hora e meia, já que os tijolos puxam mesmo os líquidos do corpo da gente –, e me pareceu que, talvez, o Movimento HO fosse uma peça de dança. Mas, se assim fosse, quem dançava era o espaço. Fato é que a questão volta e meia se colocava: “aquilo” era uma exposição? Se sim, o quê, exatamente, estava em exposição? Talvez melhor dizer que se tratava de uma instalação? Mas se assim fosse, seria uma instalação onde nada parava quieto, onde nada se fixava, pois quando finalizávamos a construção de um desenho, outro era logo iniciado. Então, talvez melhor dizer que se tratava de uma escultura cinética? Ou seria mais certeiro olhar a peça como escultura social? Pode ser que o mais condizente fosse afirmar 107
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que estávamos realizando uma performance coletiva de longa duração, ainda que a força escultórica se impusesse de modo tão definitivo. Ou então, como sugeriram as curadoras, entender aquela movida como uma “contra-coreografia”. E, pergunto, será que o termo “arte socialmente engajada” se encaixaria ali? E “arte relacional”? Ou ainda, será que qualquer tipo de categorização faz sentido quando o que está em questão é movimento e, especificamente, um movimento do tipo “HO”? Um movimento de movimentos no movimento. Outro ponto a considerar é a perspectiva de quem visitou o Movimento HO. De saída, para adentrar o espaço, era preciso atravessar a primeira galeria, cujo chão foi forrado, já no primeiro dia, com tijolos bem paginados, porém não amalgamados. Havia então essa instabilidade. E havia o contato direto do corpo de quem ali adentrasse com os tijolos e com o pó dos tijolos; havia, de cara, uma espécie de relação tátil, além de visual, olfativa e auditiva com o trabalho. Uma vez dentro dali, fazia-se parte daquilo ali. O Movimento engolfava, fagocitava. Além disso, visitantes poderiam chegar, por exemplo, em um momento em que “a obra” consistia em um grupo de pessoas debatendo sobre como fazer a melhor “amarração” de tijolos para que estes se derramassem como línguas pelas altas janelas das galerias até o chão da rua. Lembro de uma mulher que entrou e me perguntou quando a exposição estaria pronta para visitação e eu expliquei que aquilo era a exposição. Ela sorriu e eu aproveitei pra perguntar se ela não gostaria de ajudar. Fato é que o público que viesse ver o Movimento HO era sempre convocado, direta ou indiretamente, a trabalhar porque “a obra” estava em permanente fazimento (e desfazimento). Uma vez abertas as portas do CMAHO às 10:00h, sempre havia gente trabalhando no espaço, muitos corpos em movimento, conversas em andamento, debates. O ambiente era de espetacularidade grau zero. E muita gente arregaçou as mangas para fazer junto. 108
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Movimento HO Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, 2016. Foto: André Telles e Felipe Ribeiro
De modo geral, me parece que o valor maior ali, o que de fato estávamos operando ali, era uma aliança radical entre todes aqueles “actantes” presentes (humanos e outros-que-humanos). Não estávamos fazendo arte visual, mas arte de dar a ver relações. Nos guiavam a escuta e a respondibilidade, a valorização da co-implicação intra-ativa entre tudo e todes em ação. Nos interessava a ética da aprendizagem permanente. E, importante, havia um debate de fundo acontecendo ali sobre institucionalidade, sobre modos de gestão e ocupação de espaços públicos condizentes com as necessidades das artes contemporâneas. Essa era uma questão extremamente importante para a equipe do CMAHO. E, também, aquela ação que literalmente não media esforços, era uma resposta direta ao desmanche democrático já em curso no país. Estávamos em no109
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vembro de 2016 e o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff havia recém-acontecido. O ímpeto construtivo era determinante naquele momento – como continua sendo agora. Sabe, Elilson, difícil é dizer o que não estava em questão ali. Eram mesmo muitos os valores em movimento. Como escrevi no texto de parede: “Movimento HO é uma disputa explícita por espaços concretos, imaginários e simbólicos na arena pública. Movimento HO performa aberta, coletiva e corporalmente uma luta em favor de experimentação e de imaginação política. Movimento HO é uma meditação sobre abstracionismo e concretude, materialismo e encantamento, ausência de cimento e presença de espírito, agenciamentos singulares e coletivos na cidade do Rio de Janeiro. O Movimento HO quer todos os encantamentos. Encantamento, material definitivo e derradeiro”. Vivemos uma transmutação recíproca – as pessoas, os tijolos, os três livros, a arte, os espaços e as instituições envolvidas – uns por meio dos outros, umas por meio das outras. Tudo ali material de construção. Tudo ali obra de arte. O espaço da arte, um canteiro de obras. O canteiro de obras, de construção da Casa das Mulheres da Maré, um espaço de arte. E mais as várias negociações entre nós sete. Afinal, sabemos, não se realizam programas sem negociar (e muito) ao longo do caminho. Voltei, reli a resposta até aqui, e penso que faltou acrescentar, com todas as letras, que também concebi esse programa para efetivar uma transação financeira mesmo. O capital angariado para a exposição passou pelas mãos da performer e foi transformado em material de construção para a Casa das Mulheres da Maré e em pro labore para o grupo de artistas envolvido. Os 4.700 tijolos foram profundamente tocados, acrescidos em valor estético, energia vital, brilho performativo e, então, repassados para erguer o quarto andar da Casa. Na ocasião me disseram que este seria o andar destinado a atendimentos jurídicos e psicológicos para as mulheres da comunidade. Ou seja, cada ti110
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jolo foi movido com a maior atenção para chegar na Maré em sua melhor forma e erguer esse espaço de cuidado. A nossa parte do trabalho acabou quando entregamos os tijolos e livros na Rua da Paz, Parque União; e brindamos com cerveja amarela e gelada em frente à Casa. Depois disso, coube aos tijolos, aos livros e suas novas interlocutoras fazer destino. Assim que – e este é outro ponto importante – esse Movimento não tem propriamente um fim. Ele continua se desdobrando para além do controle e da intencionalidade da artista. A este Movimento interessa valorizar e respeitar o movimento das coisas e(m) suas relações. Elilson, te conto que esse trabalho me deu de presente uma questão que, desde então, passou a ser minha guia. O Movimento HO pergunta: como manter sempre 100% ativas e sem separá-las, sob hipótese nenhuma, as dimensões estética, social, política e espiritual das ações? Eis a questão.
Movimento HO Em frente à Casa das Mulheres da Maré, Rio de Janeiro, 2016. Foto: André Telles e Felipe Ribeiro
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ELILSON: ainda caminhando junto com você nas ruas, poderíamos te ouvir sobre as relações entre poder e solidariedade, entre fluxo e confronto que podem se desencadear nas ações, levando em consideração o que você diz, que nos espaços públicos “regulamentação e imprevisibilidade reinam juntas e delirantes”? Pensando também na crescente do fascismo e da imposição do medo como estratégia de controle dos corpos, como você tem visto a dimensão/precisão de fazer e criar arte, sobretudo neste Brasil atual? ELEONORA: fazer arte sempre foi uma atividade fundamental e artistas sempre foram, na minha opinião, agentes sociais da maior importância. Acontece que hoje, especificamente em nosso Estado fascista suicidário (Vladimir Safatle), pornofarmaco neoliberal (Paul B. Preciado), necropolítico (Achille Mbembe), capitalístico-colonial (Suely Rolnik), em nossa eco-catástrofe planetária (Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro), antropocena capitalocena plantationocena chthulucena (Donna Haraway), a arte passou a ter uma função vital. A arte mantém o estado de experimentação e o corpo como questão. O espírito crítico e a imaginação política. Opera torções reveladoras e indica estratégias de ação. A arte imagina, inventa, dobra, expõe, propõe, denuncia, inspira, move, faz acontecer. Precisamos mais e mais das dinâmicas e da sagacidade artísticas pois estamos em ferrenha disputa. Nosso presente e nosso futuro estão em disputa. Nosso passado está igualmente sendo disputado. A roda está girando velozmente e é preciso que nós, artistas, façamos a nossa parte. Muitas e muitos estamos fortalecendo, belamente, as lutas antifascistas, antirracistas, antissexistas e antiantropocêntricas. Muites estamos trabalhando para que a geração de força estética seja abundante e abrangente. E a estética é uma força estruturante e curativa. 112
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E penso que a prática da performance é muito importante nesse movimento. A performance estranha. Ela estranha esse mundo desencantado e produz estranheza crítica com lucidez e rigor. De uma vez por todas: a questão da performance não é se ela faz ou não faz sentido; a beleza da performance reside justamente no jeito como ela pratica o sentido como um fazer coletivo. E outra coisa: a performance não é um ensaio ou um lembrete; é um tipo de inteligência e um modo de ação. Para voltar ao que disse logo no início desta entrevista, a performance é arte de ação. Ultimamente, tenho repetido em entrevistas, lives e textos o seguinte: como é possível que secretarias, departamentos e ministérios governamentais brasileiros não contem com a consultoria permanente de artistas contemporâneos? Como é possível que ainda não tenhamos nos organizado nesse sentido? Me surpreende a nossa lentidão. E digo que “me surpreende a nossa lentidão” pois trata-se apenas de uma questão de tempo, certo? Chegou a hora de artistas contribuírem mais diretamente para a criação de políticas públicas e para a invenção de modos de sociabilidade mais vivazes em nossas cidades. Precisamos agir com a urgência e a determinação que as circunstâncias exigem. ELILSON: por fim, gostaria de perguntar sobre o “Janelas Abertas”, projeto que você e a professora Adriana Schneider coordenaram e realizaram junto ao Núcleo Experimental de Performance (NEP ECo UFRJ). Neste contexto de pandemia, a dimensão dos encontros se torna ainda mais urgente. Mas muitas iniciativas têm convocado artistas quase unicamente para explicar este momento ou teorizar o futuro. Me parece que o “Janelas” investe radicalmente e porosamente na imaginação política dos encontros, o que talvez se reflita na opção de vocês por não manter o registro em vídeo das conversas, mas 113
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privilegiar o aqui-e-agora mesmo nesse âmbito virtual. O que atravessou os interesses de vocês nesses encontros? ELEONORA: o “Janelas Abertas” aconteceu no Canal de YouTube do Núcleo Experimental de Performance, todas as quartas-feiras, ao longo de cinco meses (entre abril e setembro de 2020). O NEP é formado por mim, Adriana e nossas orientandas, orientandos e orientandes de Graduação em Direção Teatral e Pós-Graduação em Artes da Cena. O projeto nasceu do desejo de proporcionar encontros entre artistas, curadoras/es, pesquisadoras/es, cientistas, mestras e mestres de saberes populares e criar uma rede de solidariedade que estimulasse a permanência em casa e o apoio mútuo durante a quarentena. Um objetivo central do “Janelas Abertas” era divulgar a campanha de doações para os Hospitais da UFRJ no combate ao COVID-19. Entendemos que docentes, estudantes e servidoras e servidores da área de saúde na universidade estavam trabalhando diretamente no front e cabia a nós, das Artes da Cena, colaborar a partir das nossas redes e saberes específicos. Por conta da plataforma virtual, foi possível convidar participantes de vários estados e de fora do Brasil. E fato é que este projeto, feito de modo caseiro e extremamente afetuoso, acabou reunindo muita gente. Centenas de pessoas frequentaram os encontros. Como todos os eventos do NEP, este também era baseado em um programa performativo. Nos interessa investigar modos de sociabilidade e o que chamamos de “cenas do pensamento”. O programa do “Janelas Abertas” consistia em: “convidar duas pessoas para uma entrevista mútua, ou seja, ambas seriam entrevistadas e entrevistadoras ao mesmo tempo”. Nossa opção curatorial foi convidar duplas que já se conheciam previamente, gente amiga entre si que, portanto, daria continuidade as suas conversas privadas na nossa praça virtual. Duplas amigas como eu e Adriana somos amigas. No pesado con114
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texto da pandemia, em meio a tanto sofrimento, perdas, medo, insuficiências sanitárias e calamidades políticas, o importante era disseminar diálogo, escuta, pensamento e amizade. Como você diz, não estávamos focadas em diagnosticar o presente e prognosticar o futuro, mas, tão-somente, abrir espaço para que, em circunstâncias tão tensas e impressionantes, encontros acontecessem. A cada encontro, convidávamos quem nos assistia a abrir suas janelas e deixar o ar correr. Começávamos a transmissão pontualmente às 17:00h e, enquanto a tarde caía, as luzes das telas acendiam nossas casas. O intuito era mesmo arejar e inspirar. E partilhar. Partilhar o que cada dupla julgasse importante partilhar entre si e conosco naquele momento. No NEP, a lógica é sempre da partilha. Foram 46 participantes ao longo do período. Não tivemos nenhuma recusa. Todas as pessoas contactadas, sem exceção, foram inteiramente disponíveis e generosas. Não posso deixar de citar os nomes. Além das 16 pessoas que compõem o Coletivo NEP, estiveram conosco: Leda Martins e Marcio Abreu, Cabelo e Gabriela Gusmão, André Lepecki e José Fernando Azevedo, Carla Guagliardi e Keyna Eleyson, Tania Rivera e Vladimir Safatle, Danielle Almeida e Max Hinderer, Francisco Mallmann e Miro Spinelli, Luiz Rufino e Thiago Florencio, Grace Passô e Ricardo Aleixo, Carmen Luz e Silvia Soter, Arto Lindsay e Barbara Browning, Amilcar Packer e Negro Leo, Jaciara Augusto Martim e Valéria Macedo, Enrique Diaz e Mariana Lima, Luiz Camillo Osório e Patrick Pessoa. Nunca é demais agradecer, mais uma vez, a todas as pessoas que participaram do “Janelas” como falantes e como ouvintes. Estivemos semanalmente juntas lá, estimulando as doações, inventando a nossa rádio com imagens, trançando atos de fala e atos de escuta, realizando investigação teórica, artística, pedagógica e criação universitária. Estivemos semanalmente lá, no tubo, no chat, no Zoom, em coletivo. 115
O impossível como matéria de pensamento e ação
A gravação de cada “Janela” ficava no ar por uma semana. Assim, quem não pode estar presente teria oportunidade de assistir até antes do próximo encontro, período em que o pessoal do NEP se engajava nas transcrições. Ou seja, o programa não acontecia exclusivamente ao vivo, mas perto disso. Nos pareceu importante privilegiar o imediatismo do encontro mesmo no plano virtual. Colocar no ar essa onda performativa. Sintonizar nessa frequência presencial para marcar ritmo em um momento tão esgarçado. Um ritmo estruturante e afirmativo na temporalidade de uma quarentena sem prazo para acabar. Te conto que no presente momento estamos trabalhando nos textos e buscando verba para publicação do livro “Janelas Abertas” em formato impresso e digital. Estamos buscando meios para fazer uma ampla distribuição. Acreditamos que esse será um documento significativo do período da pandemia. E, neste exato instante, estamos iniciando um novo projeto no Canal de YouTube do NEP. Chama-se nep.recebe. Abrimos, de fato, um novo espaço de ação ali. As circunstâncias agiram e nós agimos com elas. E seguiremos agindo!
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— PASSAGENS
O cinema happening de José Agrippino de Paula Sidnei Cruz* O texto vê o filme Hitler Terceiro Mundo (1968), de José Agrippino de Paula, como singular no Cinema Marginal, ao mixar cinema com happening**, usando a improvisação, o acaso, a colagem, a mixagem e o desgaste enquanto noções operacionais para a realização de um projeto de arte de guerrilha. Palavras-chave: cinema marginal – happening – improvisação
* Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC/ ECO/UFRJ). Orientação: Carmem Gadelha.
** “Agrippino tinha acabado de lançar o romance PanAmérica, uma moderna epopéia recheada de alusões a celebridades e situações do cinema norteamericano. Resolveu, então, dirigir um filme sem nunca ter pensado seriamente em cinema. Na verdade, para ele, fazer literatura, teatro, cinema ou um happening era a mesma coisa” (MATTOS: 2007, p. 87).
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Eu não vim para explicar, mas para confundir (Abelardo Barbosa, o Chacrinha)
Inicialmente chamado de “novíssimo”, o Cinema Marginal distanciou-se do Cinema Novo, discordando, sobretudo, da obrigatoriedade de preocupar-se com o elo final da cadeia produtiva da indústria cinematográfica: a distribuição do filme-mercadoria. No entanto, abraçou a causa do Cinema de Autor1 e levou esse princípio até as últimas consequências, ao mesmo tempo em que ignorava o público como objetivo comunicacional. Fazer é preciso, exibir não é preciso. O movimento se concentrou expressivamente entre os anos de 1968 a 1973. Ao desvincular-se dos padrões convencionais de representação e das premissas obrigatórias de uma destinação social, o Cinema Marginal assume o papel de arte de guerrilha diante de um quadro de terror, de realidade bruta, de violência e exclusão, imposto pela ditadura brasileira: A questão da marginalidade dentro deste quadro ganha contornos mais fortes. A postura marginal começa a evoluir da definição pejorativa, contida na semântica de dicionário [...] para uma valoração positiva e que vai se constituir em lema e bandeira de toda uma geração. [...] A obra de arte passa a ser elaborada [...] sem que esteja no horizonte sua veiculação” (RAMOS: 1987, p. 30).
1
“O cinema de autor permitiria a prática cinematográfica desvinculada das exigências opressoras do último elo (a realização do valor) e, dando ênfase à dimensão pessoal do autor e à individualidade de sua inspiração, possibilitaria a liberação do ‘artista’ da dialética da mercadoria” (RAMOS: 1987, p.17).
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Em 1968, os muros das cidades tornaram-se os dazibaos2 das manifestações perigosas da juventude em todo o planeta. As ruas voltaram a ser o lugar das almas encantadoras3, só que agora numa pegada mais “punk”, atualizada; e foi nessa onda que José Agrippino de Paula surfou ao realizar o longa Hitler Terceiro Mundo4, nas ruas de São Paulo, em pleno AI-5, na clandestinidade, sem autorização ou qualquer esquema de planejamento e segurança. Totalmente produzido na base da camaradagem, com restos de rolos e muita improvisação. Agrippino não planejava nada para as filmagens, conta Jorge Bodanzky (PUPPO: 2010), quando ele conseguia transporte, geralmente uma kombi – a mesma usada por Jô Soares na cena em que o Samurai transporta as crianças da favela – e uma grana para o lanche do pessoal, saía pegando todo mundo em casa, atores já caracterizados, passava as orientações e mandava filmar o que era possível, com os rolos de filmes curtos, sobras, que tinham que ser mudados a todo momento. Não havia corte, o rolo acabava e pronto. A locação era decidida na hora, diz Bodanzky: As locações, igualmente improvisadas, incluíam o banheiro de um posto de gasolina na Via Dutra; um bar onde entramos com uma kombi para fazer um travelling e citar Edward Hopper; um necrotério com cadáveres de verdade; na construção do cenário
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Dazibao: “na China, foi um movimento de expressão autêntica, pelo qual a população do país resolveu mostrar suas ideias. Seu surgimento histórico é incerto, mas em torno de 1911, com o fim do império manchu, e o início da república chinesa, eles se transformaram num verdadeiro meio de reclame popular, e se difundiram por todo o país” (sinografia.blogspot.com>2011/04).
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“Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua” (RIO: 1997, p. 46).
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Único longa, em 35mm, de Zé Agrippino. Elenco: Jô Soares, Ruth Escobar, Eugênio Kusnet, Jonas Mello, Fernando Benini, Carlos Silveira, Túlio de Lemos, Maria Esther Stockler e o Grupo Sonda.
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de “O Balcão”5, [...] filmamos as cenas dos torturadores com farda militar (MATTOS: 2007, p. 91).
Os atores iam improvisando e fazendo as cenas como num happening e a câmera ia atrás, filmando do jeito que desse, enquanto Agrippino ria e dizia que era isso mesmo, que estava tudo certo. “[...] Agrippino simplesmente criava as coisas diante da câmera e deixava que eu resolvesse o resto” (MATTOS: 2007, p. 87). A improvisação trazida para o processo de filmagem foi uma ferramenta desenvolvida nas montagens e laboratórios realizados com o Grupo Sonda, a partir da montagem de Tarzan Terceiro Mundo (1968). A noção de improvisação utilizada pelo Grupo Sonda foi trazida por Maria Esther quando ela passou uma temporada em Nova Iorque e vivenciou a metodologia do Living Theatre6 em seus laboratórios e apresentações, afinidades confirmadas posteriormente com a vinda do grupo ao Brasil, em 19697. A improvisação é uma das linhas de força do Teatro Simultâneo (PAULA: 1964, pp. 106-9) desenvolvido por José Agrippino (PAULA: 2019, p.18), apontado já no roteiro teatral As Nações Unidas, como procedimento denominado “Cena e ruptura”. 5
O balcão, Jean Genet, dirigido por Victor Garcia, no Teatro Ruth Escobar. O cenário era uma enorme estrutura metálica com 25 metros de altura, em forma de torre circular, para cuja construção foram usadas 43 toneladas de aço. Ficou em cartaz de 1969 a 1971. José Agrippino de Paula fez um documentário de 30 minutos, preto & branco, com fotografia de Jorge Bodanzki (FERNANDES: 1985, p. 88).
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“Maria Esther morou nos Estados Unidos, Manhattam/Nova Iorque, de 1963 a 1965, estudando com Marta Graham, Merce Cunningham, Alwin Nikolais e Meridith Monk. Acompanhou a atmosfera gerada pelos movimentos ao redor da Judson Church e do The Living Theatre. [...] tendo incorporado toda essa efervescência instaurada pela pop art, pelo pulular de instalações e happenings pela cidade de Nova Iorque” (GIANETTI: 2015, p.24).
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Tanto havia essa afinidade que o Living, após a separação em três núcleos, veio ao Brasil a convite de Maria Esther e José Agrippino, em 1969.Ver depoimento de BODANZKY in PUPPO: 2010.
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A noção de improvisação como espetáculo e não só como treinamento de atores, mas como linguagem teatral improvisada diante do público, era praticada em consonância com as experiências contemporâneas: [...] a improvisação como espetáculo é uma terminologia que engloba diferentes procedimentos nos quais a criação e a execução de uma cena ocorrem simultaneamente e são testemunhadas pelo público. A diminuição da distância temporal entre criação e representação pública faz com que os que a praticam tenham que relacionar-se de maneira diferenciada com o fracasso, assim como aqueles que a assistem (MUNIZ: 2015, p. 33).
A linguagem corporal do filme, com seus movimentos geometrizados, impõe a estética do grotesco realçada pelos figurinos incomuns e maquiagens exacerbadas, caracterizando os personagens como figuras monstruosas, como que saídas de um filme de ficção científica ou de uma história em quadrinhos. O gesto de ocupar o espaço público, filmando no asfalto e na favela, transformando a cidade em situação de set-instalação-penetrável, dialogando com o ambiente estético de Oiticica, já é em si a obra-intenção. Uma carnavalização selvagem desenhada pelas cenas de multidão, com o público sempre acompanhando os atores como num bloco de entrudo, numa mistura de realidade e delírio. Delírio surrealista, conforme Sontag (2020, p. 339-40): Por surrealismo não me refiro a um movimento específico na pintura inaugurado pelo manifesto de 1924 de André Breton [...]. Refiro-me a um modo de sensibilidade que perpassa todas as artes no século XX. [...] A tradição surrealista em todas essas artes é unificada pela ideia de destruir os sentidos convencionais e criar novos sentidos ou contrassentidos pela justaposição radical (o “princípio do collage”).
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A mixagem (justaposição + subtração + soma + desgaste) é uma noção que Agrippino captura dos procedimentos da montagem cinematográfica e da edição musical e desloca para a “cena teatral”, atritando o familiar com o estranho8. É uma operação de “incongruência quase abstrata”, de “união de coisas heterogêneas”, conforme observa Duchamp (VENÂNCIO FILHO: 1986, p. 65). Podemos traçar proximidades entre a ideia de mixagem de Agrippino e a de “escritura de videoclipe”9 e de selva frondosa de Juan Brossa, que diz: “Esta selva – composta de textos, sons, imagens, gestos, objetos e movimentos – cuja densidade é ainda mais enfatizada pelo adjetivo frondosa, se mostra relutante às classificações e sentido único” (TAHAN: 2006, p. 7)10. A ordem não é a medida de montagem na poética “agrippínica”. O acaso e a espontaneidade, sim, são ingredientes incorporados a todo instante. “Tudo está em fluxo” (CARTLEDGE: 2001, p. 27). As cenas curtas são coladas alogicamente: um corpo arrastado ao longo de um corredor estreito, um casal nu rolando na areia da praia, uma canoa ocupada por refugiados lembrando a Arca de Noé. Enquanto isso, ouvimos o áudio de galinhas cacarejando, o Homem de Pedra balança no alto de um prédio de 20 andares, próximo ao Viaduto do Chá, um jovem cabeludo é torturado com choque elétrico e depois é castrado. De repente, um inusitado giro de câmera de 360 graus põe a cidade de cabeça para baixo. Agrippino incorpora tudo, não deixa nada de fora, conta Bodanzky, como a cena real de Jô Soares que, sentindo fome du8
“o estranho no familiar, o familiar no estranho, o irracional no racional, o racional no irracional, estes são os pares, os choques, as centelhas que agora produzem sentido. Aí estão as premissas do surrealismo e dadaísmo” (VENÂNCIO FILHO: 1986, p. 65).
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Entrevista de Juan Brossa por João Bandeira e Noemi Jaffe: Revista Cult, “Dossiê”, 1989, no19, p. 42.
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“Esta selva – compuesta de textos, sonidos, imágenes, gestos, objetos y movimentos – cuya densidade es un más enfatizada por el adjetivo frondosa, se muestra remisa a las clasificaciones y la orden único”.
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rante a filmagem, vai a um restaurante japonês, ainda na pele do Samurai e é filmado contracenando com a dona do restaurante, que, sem saber, participa da mescla entre o real e a ficção. Um happening, onde as sequências estruturadas posteriormente na montagem não seguem nenhuma lógica narrativa, apenas uma sucessão de cenas ao acaso, sugerindo possibilidades de diálogos por associação de imagens recorrentes de personagens ou espaços. Ao filme se aplica o que Kaprow diz sobre um dos seus happenings: É natural que se houver múltiplos espaços nos quais as ações são programadas – seja em sequência ou ao acaso –, o tempo ou o ritmo adquiram uma ordem determinada mais pelo caráter dos movimentos dentro dos ambientes do que por conceitos de desenvolvimento e conclusão convencionais” (KAPROW: 2013, p. 52).
Um dos fios de enredo do filme, dentre outros possíveis, é o que acompanha Jô Soares performando um samurai que controla o negócio de mendigos e anões, distribuindo-os pelos bairros de São Paulo, disputando o mercado com o Capitão América, que mora no Bairro da Liberdade e é amante de Hitler. O filme é um caleidoscópio de metáforas situando o nazismo de Hitler no mesmo contexto da Ditadura Militar brasileira. O filme nunca teve uma exibição comercial e se tornou um marco do Cinema Marginal, permanecendo incompreendido, mais do que incompreensível, como reconhece Jô Soares: O filme tem começo, meio e fim, mas não nessa ordem. Ele não se preocupa em contar uma história do ponto de vista tradicional: seu filme são sequências, happening ao ar livre, onde a ficção se mistura com a realidade que passa ao lado da câmera, há certo exagero no grotesco. Para muitos é um filme incompreensível, mas a verdade é que é o filme mais incompreendido do cinema brasileiro (SOARES: 2017, p. 401).
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Para Agrippino, experimentar é correr perigo. A opção pela estética da precariedade ecoa conversas com Glauber Rocha sobre subdesenvolvimento, estética da fome e, ainda, sobre Câncer, lendário filme experimental de Glauber. Isto fez do filme um acontecimento estético visionário com um tom de desencanto radical, um frescor-escracho, um manifesto estético brutal. Com uma pegada de H&Q e sci-fi, Hitler Terceiro Mundo tornou-se uma referência do cinema de invenção e transgressão no Brasil da Ditadura Militar.
BIBLIOGRAFIA BROSSA, Juan. “Entrevista” por João Bandeira e Noemi Jaffe. In: Revista Cult, 1989, no 19, p. 42. CARTLEDGE, Paul. Demócrito e a política atomista. São Paulo: Unesp, 2001. FERNANDES, Rofran. Teatro Ruth Escobar: 20 anos de resistência. São Paulo: Global, 1985. VENÂNCIO FILHO, Paulo. Marcel Duchamp: a beleza da indiferença. São Paulo: Brasiliense,1986. GIANETTI, Julia Corrêa. A dança marginal de Maria Esther Stockler: uma dança imagética. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes – PPGARTES. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, 2015. KAPROW, Allan. Ensayo sin título y outros happenings. Ciudad de México: Tumbona Ediciones, 2013. MATTOS, Carlos Alberto. Jorge Bodanzky: o homem com câmera. São Paulo: Imprensa oficial, 2007. MUNIZ, Mariana Lima. Improvisação teatral como espetáculo: processo de criação e metodologias de treinamento do ator-improvisado. Belo Horizonte: UFMG, 2015. PAULA, José Agrippino de. As Nações Unidas. São Paulo: Papagaio, 2019. ----. Diário, manuscrito, fac simile, inédito, 1964. ----. Hitler Terceiro Mundo. Filme 35mm. São Paulo: Heco/Lume, 2009. PUPPO, Eugênio (dir.). Jorge Bodanzky conta Agrippino. Vídeo.Doc. São Paulo: Heco Filmes Prod., 2010. RAMOS, Fernão. Cinema Marginal (1968/1973): a representação em seu limite. São Paulo: Brasiliense, 1987. RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Cia das Letras,1997. SOARES, Jô. O Livro de Jô, uma autobiografia desautorizada. São Paulo: Cia. das Letras, 2017, v. 1. SONTAG, Susan. Contra a interpretação e outros ensaios. São Paulo: Cia das Letras, 2020. TAHAN, Halina. “Metamorfosis escénicas. Los simulacros divergentes del desnudo”. In: BROSSA, Joan. Strip-tease y Teatro Irregular y Oro y Sal. Buenos Aires: Ediciones Artes del Sur/CCEBA-Centro Cultural de España em Buenos Aires, 2006.
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A cena autoficcional como ato estético-político para performar outras masculinidades Gabriel Antunes Morais* Este artigo visa a apresentar as questões que são movidas e que me movem pela pesquisa de doutoramento iniciada em agosto de 2020, no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena, da Escola de Comunicação da UFRJ. A investigação procura aprofundar os estudos acerca do “teatro performativo autoficcional” (MORAIS: 2020) relacionando-o com o debate identitário, em especial com as masculinidades, entendidas aqui como “configurações de práticas” (CONNELL: 2005). Proponho que a cena autoficcional pode se apresentar como ato estético-político potente para desconstrução das práticas hegemônicas de masculinidade, bem como ser uma “performance de possibilidades” (HEDDON: 2008) para que outras possíveis masculinidades possam ser performadas. Palavras-chave: autoficção – performatividade – masculinidades
* Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC), da Escola de Comunicação da UFRJ. Orientação: Gabriela Lírio.
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A cena autoficcional como ato estético-político para performar outras masculinidades
O teatro contemporâneo, a partir do final do século XX, se viu incluído em um contexto de explosão do “espaço biográfico” (ARFUCH: 2010), com a proliferação de trabalhos que fazem, do material vivencial, a matéria-prima para seus processos de criação. Surge um campo expandido, híbrido e fronteiriço que tenho nomeado como “teatro perfomativo autoficcional”, composto por práticas que abarcam múltiplas estéticas, linguagens e formas de se utilizar das experiências de vida dos artistas. Desde a pesquisa de mestrado, tenho-me movido por esse campo, investigando as potências estético-políticas da cena autoficcional. Primeiramente, gostaria de trazer o alerta feito pelo pesquisador francês Ulysse Caillon, quando aponta para o risco de que a disponibilidade imediata do material vivencial dos artistas conte mais nas escolhas estéticas do que uma perspectiva política sobre eles e, assim, a cena perca “seu poder de interrogação das estruturas normativas para, ao contrário, ter um discurso tranquilizador sobre a ordem social” (CAILLON: 2018, p. 269, tradução nossa). Nesse contexto, o processo de transformar em cena o que é da ordem do privado e do íntimo responde apenas a desejos narcísicos, indo ao encontro da explosão egocêntrica do “eu”, de um culto de si, muito presente, por exemplo, nas redes sociais ou nos reality shows televisivos. “Em todas essas situações o que parece estar em jogo é apenas a aparência, um culto a um ‘eu’ autocentrado e não a possibilidade de se abrir para o desenvolvimento de novas relações, para os modos de escapar dos processos de normatização e docilização de si” (MORAIS: 2020, p. 25). Aqui, não me parece que esses trabalhos produzam cenas autoficcionais no sentido que tenho defendido. O que constitui, então, a “cena autoficcional” e quais as suas potências estético-políticas? Uma pista está no próprio conceito de “autoficção” proposto por Serge Doubrovsky, que afirma que “autoficção” corresponde a uma “ficção de eventos e fatos estritamente reais” (DOUBROVSKY apud GASPARINI: 2008, p. 128
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15). A potência dessa noção está justamente no caráter ambivalente e ambíguo, que rompe com o binarismo real ou ficção e aposta nos atravessamentos e contágios que acontecem no espaço criado entre uma coisa e outra: entre a vivência, o processo de criação e a narrativa; entre a memória, a imaginação e o ato de performar a si mesmo. Foi neste espaço entre uma coisa e outra que enxerguei potência de criação na cena autoficcional. A cena autoficcional desnaturaliza a ilusão de um “eu” autocentrado e expõe radicalmente o processo de subjetivação produzido por ela. O “eu” é, ao mesmo tempo, desconstruído e construído no próprio ato de performar a si mesmo, no aqui e agora da cena autoficcional. Portanto, a cena autoficcional não produz discurso tranquilizador com a ordem social, nem pode ser uma pura exibição egocêntrica de si mesmo. Ao contrário, a cena autoficcional é um ato potente estética e politicamente, pois produz subjetividades, corporeidades, modos de existência e/ou imaginários que escapem dos modelos hegemônicos. A multiplicidade do campo do “teatro performativo autoficcional” oferece inúmeros caminhos para o aprofundamento da pesquisa. Um desses caminhos pode ser encontrado na relação entre a cena autoficcional e o fortalecimento do debate identitário. Com mais de 30 anos investigando a utilização das realidades vivenciais dos artistas no teatro e na performance, a pesquisadora escocesa Deirdre Heddon argumenta que uma possível gênese da cena autobiográfica (ou, como prefiro nomear, cena autoficcional) está ligada à terceira onda do movimento feminista e encontra raízes na ideia de que a esfera do privado também é de ordem política. Estimulados pelos estudos feministas, pelos discursos negros, queers e decoloniais, multiplicaram-se trabalhos artísticos produzidos por mulheres que procuravam fazer ouvir suas vozes, afirmavam uma subjetividade excluída do domínio público e, ao mesmo tempo, denunciavam essa exclusão. Heddon lista uma série de artistas 129
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(todas mulheres, com exceção do performer Spalding Gray), especificamente dos Estados Unidos, que se utilizam conscientemente de suas realidades vivenciais como matéria-prima para as criações. De acordo com a autora, essas cenas apresentavam-se como “performance de possibilidades” (HEDDON: 2008, p. 2, tradução nossa), com o possível sugerindo movimentos que culminam na criação e na mudança que, segundo a autora, é necessária, desejável e ao alcance. No Brasil, podemos perceber, nos últimos anos, o crescimento de uma cena autoficcional protagonizada por sujeitos que, historicamente, são excluídos dos espaços de representação e que sofrem apagamentos violentos de seus modos de vida, suas narrativas e experiências. Podemos citar, por exemplo, os espetáculos Afeto (2019), do grupo Embaraça, e Cidade Correria, do coletivo Bonobando, os coletivos Toda Deseo e Bacurinhas, de Belo Horizonte, Coletivo-T, de São Paulo, o projeto “Prática de Montação”, da UNIRIO. São trabalhos de artistas moradoras e moradores das periferias das grandes cidades, negras e negros, LGBTTQIA+, indígenas, entre outras(os). Apesar de muitos desses trabalhos não se afirmarem como autoficcionais, é inegável que tais artistas, como afirmam Alcure e Florêncio (2017, p.95), “aderem às opções estéticas, às linguagens, suas experiências de vida, suas vivências no mundo” e, portanto, produzem cenas autoficcionais, “performances de possibilidades” capazes de dar visibilidade a sujeitos, corporeidades e narrativas marginalizadas e dissidentes. Por outro lado, não é menos verdade que temos hoje muitos espetáculos criados por artistas homens a partir de suas realidades vivenciais, como Luis Antônio-Gabriela (2011), do diretor e dramaturgo Nelson Baskerville; O homem vermelho (2012), de Marcelo Braga; Laura (2014) e Aquilo que acontece entre nascer e morrer (2019), ambos de Fabrício Moser; Mamãe (2015), de Álamo Facó; Tripas (2017), de Ricardo Kosovski e 130
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Pedro Kosovski, Um avô que era sonho (2020), de Pedro Barroso; entre outros. A partir desse contexto e do pensamento de Heddon, fui instigado a aprofundar minha investigação sobre o “teatro performativo autoficcional”, dentro de uma pesquisa de doutorado, relacionando a cena autoficcional com o sistema de relações de gênero, mais especificamente com as masculinidades. De que maneira a cena autoficcional coloca em jogo as masculinidades? Pode a cena autoficcional se tornar ato estético-político potente para performar outras masculinidades que escapem das normas hegemônicas? No episódio “O que torna alguém uma minoria por sexo, gênero ou afetividade”, do podcast Café da Manhã, o escritor Renan Sukevicius realiza a seguinte reflexão sobre a peça O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues. Para Sukevicius, o personagem Arandir beija simplesmente porque acredita de fato que não se nega um último desejo a alguém que está morrendo, mesmo que esse beijo seja dado em outro homem. Arandir não é gay ou bissexual, pois, se fosse, refletiria antes de beijar uma pessoa do mesmo sexo em público no Rio de Janeiro do anos 1960. “Ainda hoje, no Rio, em São Paulo, na região do Cariri ou na cidade mais isolada do Amazonas, beijar alguém do mesmo sexo pode dar xabu, gerar bullying, violência verbal, física” (SUKEVICIUS: 2020). A heteronormatividade, na qual Arandir está inserido, faz com que ele aja sem pensar nas consequências. Ele nunca precisou pensar se podia beijar ou não Selminha. Ele nunca precisou pensar que seus atos, seus desejos e a sua simples presença poderiam torná-lo vítima da violência masculinista. Como homem “cis”, “hetero” e branco, eu também nunca precisei pensar se meus atos, meus desejos e minha presença me colocariam em risco. Fui acostumado a me olhar no espelho e enxergar um corpo não atravessado por gênero e sexualidade, nem racializado. O sistema de relações de gênero masculinista, heternormativo e a branquitude constroem a ilusão de um “eu” 131
A cena autoficcional como ato estético-político para performar outras masculinidades
universal, natural e neutro. Entretanto, é preciso perceber que, quando digo “eu sou um homem ‘cis’, ‘hetero’ e branco”, esse “eu” não corresponde a uma substância que pode se encontrar dentro de mim e revelada em toda a sua verdade através de uma narrativa de si. Trata-se de um ato performativo de subjetivação sempre atravessado por marcas de gênero, sexualidade, raça, entre outras. Esse ato performativo age sem parar construindo e desconstruindo subjetividade, sendo impossível atingir uma forma, uma representação final, ou seja, é impossível fixar o “eu”. Da mesma forma, é impossível encontrar no interior do sujeito a essência da masculinidade, um núcleo organizador do gênero. A socióloga australiana Raewyn Connell (2005) propõe que masculinidades, em seu caráter múltiplo e interseccionado com outros eixos de relação de poder (raça, classe, nacionalidade, posição na ordem do mundo, religião, etc.), são diferentes posições assumidas em um determinado sistema de relações de gênero, as configurações de práticas que são realizadas a partir dessas posições e os efeitos dessas práticas. Nessas configurações de prática, a autora alerta para a importância de atentar à agência do corpo. A reflexão proposta pela autora não se baseia em uma ideia essencialista da relação corpo e gênero, ou seja, não entende o corpo como uma máquina que define o gênero a partir de um determinismo biológico ou divino. Por outro lado, também não percebe o corpo como uma superfície passiva na qual uma estrutura social e simbólica de gênero é impressa. Corpos, como espaço onde a experiência se dá, são múltiplos, se transformam com o tempo e, dentro dessa multiplicidade, muitos são recalcitrantes, recusando os modos impostos de participar da vida social. Connell propõe que é preciso reafirmar a agência do corpo no processo de configuração das práticas de gênero. Tais práticas, como atos performativos, criam circuitos que ligam a agência corporal a contextos sociais específicos, ou seja, chamam os imaginá132
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rios e estruturas simbólicas para jogar, enquanto a experiência corporal energiza o circuito. Os corpos são agentes e objetos de práticas performativas de masculinidades, pois, ao mesmo tempo que estão posicionadas numa determinada ordem de gênero, ao agir, tais práticas corporais reconfiguram, inventam, subvertem e resistem a essas mesmas estruturas. Ao recriar as estruturas, consequentemente, estão modificando as suas posições nas relações de gênero e, portanto, produzindo outras possíveis práticas e outros efeitos. Proponho, portanto, que as práticas de masculinidades são atos performativos autoficcionais, já que, mais do que revelarem um “eu” essência, um núcleo interno estável organizador do sujeito, elas estão sempre em constante processo de subjetivação, de construção/desconstrução de corporeidades, sempre por fazer e inacabadas. Esse entendimento das masculinidades como ato performativo e como configurações de práticas (re)criadas a partir da agência corporal tem sido importante para pensar as potências estético-políticas do “teatro performativo autoficcional”. A performatividade agencia afetos, desejos, intensidades entre corpos, que são desorganizados, desnaturalizados e recriados incessantemente na cena. Interessa investigar, por meio do mapeamento e análise de trabalhos autoficcionais, se, ao produzir outras corporeidades, a cena autoficcional também gera outros circuitos entre o agir desses corpos e as estruturas simbólicas de gênero. Por fim, a hipótese que essa pesquisa investiga é a de que essa produção de outros circuitos entre a agência corporal e as estruturas simbólicas na cena autoficcional tem potência para, por um lado, romper com a ilusão de um núcleo organizador do gênero, desnaturalizando as práticas hegemônicas da masculinidade e abrindo espaços para a desconstrução das hierarquias, das desigualdades e dos sistemas de opressão e, por outro, transformar-se em espaço fértil para que outras possíveis masculinidades (dissidentes, marginalizadas, subalternas) possam ser performadas. 133
A cena autoficcional como ato estético-político para performar outras masculinidades
BIBLIOGRAFIA ALCURE, Adriana Schneider & FLORÊNCIO, Thiago. “Procedimentos dramatúrgicos em Cidade Correria: ocupações urgentes, corpos insurgentes”. In: O percevejo (online), 2017. Disponível em: http://www.seer.unirio. br/index.php/opercevejoonline/article/view/6885. Acesso em: 16 ago.2019. ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. CAILLON, Ulysse. “Confessions masculines. Quelles(s) masculinité(s) dans les solos autobiographiques d´hommes au théatre?”. In: European drama and performance studies. Paris: Garnier, 2018, no 10, pp. 267-291. CONNELL, Raewyn. Masculinities. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 2005. HEDDON, Deirdre. “Introduction”. In: Autobiography and Performance. Hampshire: Palgrave Macmillan, 2008, pp. 1-19. MORAIS, Gabriel. O teatro performativo autoficcional: experiências estético-políticas na cena contemporânea. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena – PPGAC. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2020. SUKEVICIUS, Renan. “O que torna alguém uma minoria por sexo, gênero ou afetividade”. [Locução de]: Renan Sukevicius. Podcast Café da Manhã, 30 de jun. 2020. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/2valn8CFLcwgEndlqZOvdo?si=s334Ehy-SVGoRHrOJbDUVQ. Acesso em: 05 jan. 2021.
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Carta para Cassils: Transição é sempre Mariah Valeiras Aguiar Miguel* O presente ensaio é uma carta endereçada ao performer Cassils. Ao longo do texto, analiso o trabalho do artista, relacionando-o a escritos do filósofo Paul B. Preciado, da fisiculturista Kathy Acker e do performer Miro Spinelli. A epistemologia e a estética da transgeneridade se revelam como uma chave para pensar sobre força, arte da performance e criação de corpo. Por fim, com o desejo de transicionar para um corpo forte, apresento um “programa performativo”, conceito cunhado por Eleonora Fabião, a ser realizado por mim em 2021: ECDISE. Palavras-chave: Cassils – força – transição
* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Escola de Comunicação da UFRJ. Bolsista CAPES. Orientação: Eleonora Fabião.
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Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 2020. Cassils, boa tarde! Ainda não nos conhecemos, mas te conto que, há algumas semanas, comecei a pesquisar seus trabalhos em performance e, desde então, estou vivendo uma transformação profunda. Minha alimentação mudou, tenho suado com mais frequência e meus sonhos se tornaram mais coloridos. Desde que entrei em contato pela primeira vez com seu trabalho, coloquei em prática um desejo antigo: me tornar uma pessoa forte, corporalmente forte. Explico. Sou mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da UFRJ e estou desenvolvendo a pesquisa COM TODA FORÇA: performance e vida. Nela, disputo o uso da palavra “força”, entendendo que, embora o senso comum a associe a contextos conservadores e cismasculinistas, é necessário resguardar e ativar forças libertárias que afirmam a vida de modo contundente. Isso porque estou partindo da compreensão de que, de maneira geral, experimentamos uma falta de força em nossos corpos que se manifesta como apatia, angústia, anestesia. Compreendo que nossos corpos são constantemente capturados por poderes hegemônicos, conservadores e neoliberais, racistas, misóginos, LGBTQfóbicos, capacitistas, antropocêntricos; esses poderes criam uma série de armadilhas que acabam por enfraquecer, capturar e desencantar a vida. Eu te conto, Cassils, me lembrei agora, que faz pouco tempo um amigo amado tatuou um deus da guerra no centro do próprio peito. Esse amigo e eu somos umbandistas, uma religião brasileira de matriz africana que dança suas deusas e deuses, as e os Orixás. Para nós, o Orixá da Guerra é Ogum. Diante do meu espanto com a escolha de desenho e local da tatuagem, meu amigo explicou que o deus o ajudaria a escolher 136
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as lutas nas quais se engajar, uma vez que, com o projeto de extermínio de corpos não-hegemônicos em curso no Brasil e em grande parte do mundo, deixar de lutar não é uma opção. Portanto, escolher as batalhas é mesmo fundamental. Estamos em guerra pela libertação de nossos corpos. Fortalecer a vida é uma demanda a ser vencida e não há tempo para descanso; mas acho que você já sabe disso, a julgar pelas imagens de luta presentes em seus trabalhos. Você luta com um adversário invisível em The powers that be1 e luta com uma tonelada de argila em Becoming an image.2 Coloca seu corpo no centro da ação e reivindica para si o direito de escolher como criar seus campos de batalha. Instaura uma lógica que não é de competição ou violência. Você luta a guerra que Paul B. Preciado (2020, p. 326) descreve como “A mais importante das guerras [...] porque o que está em jogo não é o território ou a cidade, mas o corpo, o gozo, a vida”. E é por isso, Cassils, que sou convocada demais pelas forças que você ativa em suas performances. Porque estou interessada em campos de força; sobretudo em forças que reivindicam o corpo e tornam a vida mais viva. E aí, nessa busca por forças, te digo que antes de conhecer seu trabalho, me deparei com uma citação de Preciado a respeito da aplicação de testosterona em gel, que transcrevo aqui:
1
Na performance The powers that be, Cassils luta com uma figura invisível. A iluminação é feita por faróis de carros cujos rádios transmitem ruídos e partituras com trechos de notícias sobre os conflitos sociopolíticos do local em que a performance acontece.
2
Becoming an image é uma performance na qual Cassils luta com um bloco de argila de 2000 libras (aproximadamente uma tonelada). A ação é realizada em uma sala escura, diante do público, sendo iluminada exclusivamente quando o/a fotógrafo/a dispara sua câmera com flash. O trabalho foi criado em 2012 e realizado diversas vezes, desde então.
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Espalho o gel sobre os ombros. Primeiro instante: sensação de um toque sobre a pele. Esta sensação se transforma em frio e depois desaparece. Então, nada acontece durante um ou dois dias. Nada. À espera. Depois se instala aos poucos uma lucidez extraordinária da mente, acompanhada de uma explosão de vontade de trepar, de caminhar, sair, atravessar a cidade inteira. Este é o ponto culminante em que se manifesta a força espiritual da testosterona misturada ao meu sangue. Todas as sensações desagradáveis desvanecem. [...] Só uma impressão de força que reflete a capacidade expandida dos meus músculos, do meu cérebro. Meu corpo está em si. Diferentemente do speed e da coca, não há queda imediata. Depois de alguns dias, o movimento interior se acalma, mas a sensação de força, como uma pirâmide desvelada por uma tempestade de areia, permanece (PRECIADO: 2018, p. 23).
Sabe, fiquei mais de um ano com este relato colado em mim. A possibilidade de experimentar as sensações desagradáveis desvanecendo e essa fome insaciável pelos movimentos da vida ativaram meu desejo. E o despertar de tantas forças trabalhando no corpo de Preciado me mantiveram imantada por estas palavras. No entanto, neste momento, me sinto bem integrando a “multidão queer”3 a partir de uma perspectiva lésbica caminhoneira. A ideia de transicionar para um gênero cujo fenótipo está associado às características masculinas não ativa meu desejo. O que me atrai nestas palavras é a experimentação de força espiritual, muscular e cerebral que Preciado relata. Então, decidida a não aplicar testosterona e/ou fazer uma transição de gênero, um longo tempo se passou sem que eu 3
“Multidão queer” é um conceito desenvolvido por Paul B. Preciado. Ver mais em: PRECIADO, Beatriz. Multidões queer – notas para uma política dos “anormais”. In: Revista Estudos Feministas, 2011, no1, v.19.
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soubesse como endereçar as forças ativadas em mim a partir do relato de Preciado. Até que me deparei com o seu trabalho CUTS: a traditional sculpture. Neste trabalho, você escolhe manifestar o seu corpo “trans” realizando um programa performativo4 de longa duração. Em suas próprias palavras, postadas na rede social Instagram: [...] minha performance de 161 dias intitulada “CUTS: A Traditional Sculpture” (em diálogo com a performance de Eleanor Antin em 1972, “Carving: A Traditional Sculpture”). Ao contrário de Antin, que faz dietas radicais, eu aplico meu conhecimento de fisiologia, biomecânica e nutrição para ganhar 23 libras [aproximadamente 10,5 quilos] em 23 semanas – por meio de um regime de treinamento de peso rígido, consumindo a mesma ingestão calórica de um atleta masculino de 180 libras [aproximadamente 81 quilos] e fazendo seis semanas de uso de esteroides. Com base na minha crença de que os corpos são esculturas sociais, esculpidas pelas expectativas da sociedade, este projeto mostra o corte da musculatura – em oposição ao corte de uma faca de cirurgião – manifestando um corpo trans em seus próprios termos (CASSILS: 2020, s/p)5.
Durante vinte e três semanas, você aplica seus conhecimentos em fisiculturismo e nutrição e realiza uma transição de gênero. Para isso, compreendo que concebe e age um programa performativo composto por tempo (duração), um regime de exercícios, uma dieta nutricional rígida e a aparição do corpo em imagem fotográfica e videográfica. Semanalmente,
4
“Programa performativo” é um conceito desenvolvido por Eleonora Fabião. Ver mais em FABIÃO, Eleonora. Programa Performativo: o corpo em experiência. In: Revista do LUME, 2013, no 4.
5
Minha tradução. Ver: https://www.instagram.com/p/CGacN86Hpy-/
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você registra seu corpo ganhando uma libra de massa muscular (aproximadamente 450 gramas). Especificamente, sobre a prática do bodybuilding, Kathy Acker afirma que: Ao tentar controlar – moldar – o meu corpo através das ferramentas calculadas e métodos do bodybuilding e, de tempos em tempos falhando em fazê-lo, eu sou capaz de encontrar aquilo que não pode ser por fim controlado e conhecido: o corpo. É nesse encontro que reside o fascínio, se não o propósito, do bodybuilding (ACKER: 2015, p. 29).
Acker fala em encontrar o corpo, mas o que você realiza é a ação de esculpir o seu corpo. Li, em uma entrevista que você concedeu a Rosemary Heather, em março deste ano, que ganhar essa quantidade de massa muscular por semana é considerado o máximo que um bodybuilder pode conseguir. E sustentar esse ganho por vinte e três semanas é, nas palavras de Heather, “uma façanha incrível”. Mas você responde à entrevistadora afirmando que CUTS não é bodybuilding; é uma resposta ao trabalho de Eleanor Antin6. Ou seja, você reafirma o caráter artístico performativo do trabalho. E diz que a peça é a manifestação de seu próprio corpo transgênero como uma escultura social.
6
Em 1972, Eleanor Antin realizou um trabalho intitulado CARVING: a traditional scuplture, no qual passou trinta e sete dias seguindo uma dieta proposta em uma revista popular voltada ao público feminino e fazendo registros fotográficos de seu próprio corpo diariamente. Ao final do período, Antin expôs todas as fotografias, cada uma contendo a hora do dia em que foi tirada e o peso da artista no momento do registro.
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CUTS: a traditional sculpture. Arquivo: CASSILS
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Foi somente ao conhecer CUTS, que entendi a epistemologia da transição como sendo fundamental para o pensamento de força ativado nesta pesquisa. Desde que entrei no mestrado, outro trabalho me acompanha e informa minha prática. Cassils, você conhece o performer Miro Spinelli? Spinelli passou pelo mesmo Programa de Pós-Graduação ao qual estou vinculada e concluiu sua pesquisa de mestrado com uma dissertação belíssima intitulada: DA ABERTURA À DESPOSSESSÃO: uma performance escrita em cinco movimentos. Neste trabalho, o autor articula pensamento decolonial e teoria queer a partir de uma perspectiva interseccional. O performer implica o próprio corpo no trabalho e revela que o início de sua prática artística performativa coincidiu com o processo de transição de gênero. De acordo com Spinelli (2018, p. 11), Esta co-incidência entre a prática performativa e o início dos trânsitos de gênero se dá, acredito, pela capacidade que a performance pode ter de acessar saberes e desejos do corpo que são sistematicamente soterrados por sofisticadas tecnologias de poder.
Em outras palavras, se os regimes de poder exterminam corpos não-hegemônicos, há forças que podem ser ativadas pela arte da performance, capacitando os corpos a se emancipar e afirmar a vida em suas infinitas manifestações. Cassils, penso que seu trabalho ativa essas forças. Enquanto toma para si a responsabilidade de esculpir o seu corpo “nos seus próprios termos”, você informa outros corpos sobre a possibilidade de criação de si. Ao materializar seu desejo em forma de corpo e de performance, você age liberando outros corpos para que façam o mesmo. Foi assim comigo. Foi assim que entendi como realizar, a partir desta pesquisa, a criação de um corpo com força. Para que isso se manifeste, precisarei transicionar para este corpo 142
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forte. Viver uma transição, que, embora não seja uma transição de gênero ou sexual, é, ainda assim, uma prática de desobediência às “heterocisnormas”. Conforme Preciado, “entendemos que, hoje, a transformação libidinal é tão importante quanto a transformação epistemológica: é preciso modificar o desejo” (PRECIADO: 2020, p. 328). Antes de transcrever aqui o programa performativo que concebi, inspirada em seu trabalho, quero apresentar mais uma peça que, penso, se relaciona com esta conversa. Naquela mesma dissertação sobre a qual falei, Spinelli destaca a frase “transição é sempre” (SPINELLI: 2018, p. 36) e depois, em parceria com o poeta Francisco Mallmann, levanta essas palavras em forma de bandeira. Você consegue ver, Cassils, essa bandeira branca enorme, com as letras grafadas em cor preto, onde se lê “TRANSIÇÃO É SEMPRE”? Dito isso, agradeço imensamente que tenha me acompanhado até aqui e me despeço transcrevendo o programa que estou concebendo para ser realizado a partir do primeiro dia do próximo ano, 2021. Espero que possamos seguir essa conversa. Um forte abraço. mariah miguel ___
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ECDISE
Eu, mariah miguel, farei uma transição de corpo para um corpo forte. Durante sete meses, me submeterei à dieta nutricional e rotina de exercícios físicos com o objetivo de ganhar força muscular. Começarei treinando 01 hora por dia e, a cada mês, acrescentarei 30 minutos de treino diário à minha rotina, até que, em julho, esteja treinando diariamente durante 04 horas. Passarei cada mês me vestindo com apenas uma cor de roupa, inspirada pelo espectro visível das cores do arco-íris (janeiro: vermelho - fevereiro: laranja - março: amarelo - abril: verde - maio: azul claro - junho: azul escuro - julho: violeta). Diariamente, fotografarei meu corpo inteiro, nu, diante de um tecido de brim colorido de 1,40m x 3m. A cada mês, substituirei o tecido por outro da cor correspondente ao mês de trabalho. Ao final do trabalho, providenciarei a costura dos tecidos utilizados como fundo, a fim de confeccionar uma bandeira arco-íris, nas dimensões 3m x 9.8m, que será ofertada para uma instituição de acolhimento a pessoas LGBTQ+. Esta performance deverá ser iniciada no dia 1 de janeiro de 2021 e realizada até 31 de julho de 2021.
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BIBLIOGRAFIA ACKER, Kathy. “Contra a linguagem comum: a linguagem do corpo”. In: CISMA: Revista de crítica literária e tradução. São Paulo, 2015, ano IV, no. 7, pp. 23-32. CASSILS. Cassils. Disponível em: <https://www.cassils.net/> Acesso em: 10 dez. 2020. ----. cassilsartist. Disponível em: <https://www.instagram.com/cassilsartist/> Acesso em: 28 nov. 2020. ----. “Cassils turns the act of looking at trans bodies into performance”. In: NOW magazine (online). Toronto, 2020. Disponível em: <https://nowtoronto.com/culture/art-and-design/cassils-raw-gardiner-museum-interview/> Acesso em 4 dez. 2020. FABIÃO, Eleonora. “Programa performativo: o corpo em experiência”. In: ILINX Revista do LUME, Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP. Campinas, 2013, no 4, pp.1-11. PRECIADO, Beatriz. “Multidões queer – notas para uma política dos ‘anormais’”. In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis: UFSC, 2011, no 1, v.19. PRECIADO, Paul B. Testo Junkie. São Paulo: n-1 edições, 2018. ----. Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. SPINELLI, Miro. Da abertura à despossessão: uma performance escrita em cinco movimentos. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena – PPGAC. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2018.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Reitora Denise Pires de Carvalho Vice-Reitor Carlos Frederico Leão Rocha Pró-Reitoria de Graduação Gisele Viana Pires Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Denise Maria Guimarães Freire Pró-Reitora de Extensão Ivana Bentes Oliveira CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Decano Marcelo Macedo Corrêa e Castro Vice-Decano Vantuil Pereira Coordenação de Integração Acadêmica de Graduação Rejane Maria de Almeida Amorim Coordenação de Integração Acadêmica de Pós-Graduação Juliana Beatriz Almeida de Souza Coordenação de Extensão Pedro Paulo Bicalho ESCOLA DE COMUNICAÇÃO Diretora Suzy dos Santos Vice-Diretora Marta Pinheiro Direção Adjunta de Graduação Sandro Tôrres de Azevedo Coordenação Geral de Pós-Graduação Gabriela Lírio Gurgel Monteiro Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena Gilson Moraes Motta Direção Adjunta de Extensão Alessandra Vannucci Coordenação de Direção Teatral José Henrique Moreira
ISSN 2596-2485