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Nau frágil: a não-fragilidade da obra de Priscila Rezende
Bernardo Pimentel*
Este artigo é uma reflexão sobre a performance Nau frágil (2019) da artista brasileira Priscila Rezende. Serão considerados aspectos estéticos, políticos, históricos e sociais relacionados ao trabalho. Referenciando as autoras feministas negras Djamila Ribeiro e bell hooks, veremos como a raça e o gênero da artista são aspectos cruciais da performance. Apresentada em dois locais diferentes, em uma rua na Polônia e em um teatro na Alemanha, Nau frágil será analisada como “arte orientada ao lugar” (site-oriented art), conforme articulado pela historiadora da arte e curadora Miwon Kwon. E, a partir de reflexões do teórico da dança e da performance André Lepecki, notaremos como a “matéria fantasma” afeta a criação, execução e recepção da performance.
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Palavras-chave: performance – arte orientada ao lugar – política
* Orientação: Eleonora Fabião. Bolsa PIBIAC.
[Grada] Kilomba sofistica a análise sobre a categoria do Outro quando afirma que mulheres negras, por serem nem brancas e nem homens, ocupam um lugar muito difícil na sociedade supremacista branca por serem uma espécie de carência dupla, a antítese de branquitude e masculinidade. [...] Mulheres negras, nessa perspectiva, não são nem brancas e nem homens, e exerceriam a função de Outro do Outro (RIBEIRO: 2017, p.23-24.).
Inicio este artigo com a citação acima para informar que sou um homem branco. Reconheço meus privilégios e estou ciente de que escrever sobre uma performance de uma mulher negra pode suscitar discussões. Explico, portanto, que meu intuito não é me apropriar dos discursos do movimento negro e feminista. Meu intuito é refletir sobre a obra Nau frágil de Priscila Rezende, para, como estudante e artista de teatro, abrir caminhos antirracistas e antissexistas a partir das questões por ela levantadas. Espero, assim, contribuir para o debate na universidade e na cena teatral carioca.
Priscila Rezende [1985–] é uma performer nascida em Belo Horizonte e graduada em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Minas Gerais. Seu trabalho aborda questões de “raça, identidade, inserção e presença do indivíduo negro e das mulheres na sociedade contemporânea”, conforme descrito em sua biografia.1 Exemplos de trabalhos recentes são: Bombril (2010) – performance em que a artista esfrega com seus cabelos objetos domésticos de metal como panelas e chaleiras – e All of which are american dreams [Todos estes são sonhos americanos] (2018) – instalação que consiste em uma sala com 38 blusas penduradas diante de uma parede com cinco balas calibre 38 cravadas, onde um áudio de batidas de coração é interrompido a cada 23 segundos por barulhos de tiroteio. Importante dizer
1 Ver o site da artista: http://priscilarezendeart.com/
que as blusas são similares àquelas que pessoas negras vestiam quando foram assassinadas, com a diferença da artista ter feito um corte em formato de coração na altura do peito de todas.
Em Nau frágil (2019), apresentada pela primeira vez em uma praça de Póznan, cidade polonesa, Priscila se posiciona em um círculo de rosas brancas. No centro deste círculo, há um barco repleto de rosas escuras (como a própria artista descreve). O barco a remo é branco e mede cerca de dois metros. Priscila, o barco e as flores estão cercados por quatro postes de madeira ligados por arame farpado. Estacas e arame formam uma cerca quadrada. A ação consiste em Priscila oferecer as rosas, uma por uma, para pessoas do público, e esperar que venham pegá-la de suas mãos. Para pegá-la, a pessoa terá que estender seu braço através da cerca. De acordo com o vídeo da performance, algumas pessoas aceitam a oferta, outras não.2
O título Nau frágil e o barco, que também tem algo de caixão com suas tantas flores, me remetem às embarcações que, repletas de africanos escravizados, chegavam ao Brasil na época da invasão colonial. Em entrevista, Priscila comenta sobre outra dimensão metafórica da imagem:
[...] essas duas palavras (nau frágil) são similares a outra palavra: “naufrágio” – a pronúncia é a mesma, mas com outro significado. É um barco frágil, mas também é a situação de afogamento. É uma metáfora para a crise na Europa. Eu acredito que a Europa é um navio frágil, que não consegue lidar com a situação” (REZENDE: 2019, s/p.).
A artista se refere à “crise dos refugiados” iniciada em 2015, que envolveu mais de 744.000 pessoas, principalmente do Oriente Médio e África. Segundo o pesquisador Carlos No-
2 Ver, por exemplo, https://vimeo.com/431133174
gueira da Costa Júnior (2015), o baixo desempenho econômico, guerras civis e governos antidemocráticos – mesmo após a Primavera Árabe – foram alguns dos principais motivos para as migrações. Estima-se que mais de 3.500 imigrantes tenham falecido nos trajetos, especialmente cruzando o Mar Mediterrâneo3 – inclusive Aylan Kurdi, uma criança síria de três anos que morreu afogada tentando chegar à ilha de Kos. A imagem do menino imigrante morto na beira da praia tornou-se um símbolo da crise.
No caso do tráfico negreiro, a imigração foi severamente forçada. Cerca de 10 milhões de pessoas escravizadas foram trazidas para as colônias europeias entre os séculos XVI e XIX. Ao longo deste período, muitas mulheres negras foram abusadas, sendo o machismo mais um dos mecanismos utilizados pelos colonizadores para impor poder:
Em um exame retrospectivo sobre a experiência feminina negra da escravidão, o sexismo era uma força opressiva tão grande quanto o racismo nas vidas das mulheres negras. O sexismo institucionalizado – ou seja, o patriarcado – formou a base da estrutura social americana junto com o imperialismo racial. O sexismo era uma parte integral da ordem social e política que os colonizadores brancos trouxeram de suas pátrias europeias e teve um impacto grave no destino das mulheres negras escravizadas (HOOKS: 2015, p. 30., minha tradução).
As mulheres negras escravizadas cuidavam das tarefas domésticas, trabalhavam no campo e, com frequência, serviam como objeto sexual, sendo violadas desde muito novas. No iní-
3 Informações extraídas do site de notícias G1. 01 nov. 2015. Disponível em <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/11/quase-750-mil-migranteschegaram-europa-pelo-mediterraneo-em-2015.html>. Acesso em: 06 set. 2020
cio do século XIX, havia também casos de mulheres negras, como o de Saartjie Baartman, que foram “expostas” em várias cidades da Europa. Por conta de suas características físicas, Baartman foi exibida em gaiolas como atração nos chamados “zoológicos humanos”, sendo assediada por pessoas que pagavam para vê-la e até tocá-la.
Priscila Rezende, descalça, de pé, com o barco e as flores espinhosas, cercada por arame farpado em uma rua polonesa, evoca a diáspora africana e a crise migratória hoje. Entretanto, apesar de referentes tão sofridos, a firmeza crítica e fineza estética do trabalho geram muita força: a Nau frágil de Priscila é não-frágil; sua “nau frágil” é forte.
A segunda versão da performance aconteceu no teatro Ballhaus Naunynstrasse, em Berlim, durante o festival Postcolonial Poly Perspectives, também em 2019. Nestas apresentações, algumas mudanças foram feitas: o barco diminuiu significativamente de tamanho, era de madeira crua e ficava suspenso em uma espécie de pedestal. Igualmente, como conta Priscila, houve mudanças nas reações do público:
Eu fiquei duas horas e meia na instalação na Polônia até alguém vir e me libertar. [...] Quando fui convidada para fazer a performance aqui [na Alemanha], foi um desafio, pois [um teatro] é um lugar fechado que pessoas vêm para ver uma performance. Gastei mais tempo olhando para os olhos das pessoas e criando uma conexão. Precisava mostrar para todos que estava desconfortável e queria sair. No primeiro dia, ninguém me ajudou. Eu senti que eles queriam, mas não sabiam como (REZENDE: 2019, s/p.).
Há um termo que nomeia, segundo a historiadora de arte e curadora coreana Miwon Kwon, performances que são concebidas para locais específicos: “arte específica ao lugar” (site-specif art). O termo designa obras que têm relação direta com
o lugar físico onde acontecem. Já o conceito de “arte orientada ao lugar” (site-oriented art) inclui não apenas o espaço físico, mas o contexto sociopolítico e institucional onde o trabalho ocorre. Ou seja, a noção de lugar se amplia para abrigar a dimensão contextual dos acontecimentos que marcam a história daquele local.
No caso de Nau frágil, me parece importante considerar a noção de “arte orientada ao lugar” já que os contextos – na rua e dentro de um teatro – influenciaram radicalmente as especificidades plásticas, a postura da artista e a relação com o público. Além disso, me parece fundamental agregar à reflexão a ideia de “matéria fantasma” conforme apresentada pelo teórico da dança e da performance André Lepecki. Em Planos de composição, o autor cita a socióloga Avery Gordon:
O que é uma matéria fantasma para Gordon? “Todos aqueles fins que ainda não terminaram”. Esses fins, ainda sem término (o fim da escravidão que não terminou com o escravagismo; o fim da colônia que não terminou com o fim do colonialismo; a morte de um ente querido que não apaga sua presença; o fim de uma guerra que ainda não deixou de ser perpetrada) prolongam a matéria da história para uma concretude espectral (a virtualidade concreta do fantasma) que faz o passado reverberar e atuar como contemporâneo do presente... (LEPECKI: 2010, p.15)
Ou seja, tal conceito sugere que os fantasmas de eventos outrora vividos, que “a virtualidade concreta do fantasma” continua reverberando no presente e informando a criação e a recepção da obra. A “matéria fantasma” agrega, portanto, a noção de “arte orientada ao lugar”. Graças à percepção da matéria fantasma, compreendemos melhor como os contextos ressignificam o trabalho, como a performance “reverbera” de acordo com os diferentes lugares onde acontece. Assim, por
exemplo, a cerca de arame dentro de um teatro alemão ou em uma rua polonesa “reverbera”, além da crise dos refugiados, o nazismo e os terrores de seus campos de concentração. Caso Nau frágil fosse performada no Brasil, além da escravidão, do racismo e do sexismo, reverberaria também a “concretude espectral” da população carcerária, majoritariamente negra em nosso país. E estes são apenas alguns exemplos de ressonâncias possíveis.
As experiências e vivências que ocorreram em passados recentes e longínquos na Polônia, Alemanha, África, no Mar Mediterrâneo e no Brasil fazem parte de Nau frágil. Todas se unem e somam forças para criar uma obra potente e atual, que nos faz refletir sobre como as perseguições de minorias, especificamente a perseguição de mulheres e negras, persiste. Priscila Rezende, sem dizer uma palavra, nos faz escutar, ver e sentir.
Priscila Rezende, Nau frágil (2019, Póznan). Foto: Adam Ciereszko Site: http://priscilarezendeart.com/projects/nau-fragil-2019/
BIBLIOGRAFIA
HOOKS, bell. Ain’t I a woman: black women and feminism. New York: Routledge, 2015. JÚNIOR, Carlos Nogueira da Costa. “Crise migratória na Europa em 2015 e os limites da integração europeia: uma abordagem multicausal”. In: Conjuntura global. Curitiba, 2016, n. 1, v. 5, pp.19-33. Disponível em: https:// revistas.ufpr.br/conjgloblal/article/view/47421 KWON, Miwon. One place after another: site-specific art and locational identity. Londres: The MIT Press, 2002.
LEPECKI, André. “Planos de Composição”. In: GREINER, Christine; SANTO, Cristina Espírito; SOBRAL, Sonia (ORG.). Rumos Itaú Cultural. Cartografia rumos Itaú Cultural dança 2009-2010: criações e conexões. São Paulo: Itaú Cultural, 2010.
REZENDE, Priscila. “The european shipwreck: an interview with Priscila Rezende. [Entrevista concedida a] Alisson Hugill. Berlin art link [revista online]. Berlim, 2019. Disponível em: https://www.berlinartlink. com/2019/12/06/the-european-shipwreck-an-interview-with-priscila-rezende/ RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.