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Rua, substantivo feminino: mulheres que nomeiam a cidade e as errâncias urbanas como resistência

Priscila de Barros Cipriano*

O objetivo do presente artigo é refletir sobre as potencialidades da performance urbana articulando três referências: biografias de mulheres que nomeiam ruas da cidade do Rio de Janeiro, memórias “corpográficas” da artista-pesquisadora que realiza este estudo e a prática de errâncias urbanas como ferramenta de resistência artístico-política. Ao longo do caminho, serão acionados os conceitos de “corpografia”, “cidade-espetáculo” e “errâncias urbanas”, conforme articulados em estudos da arquiteta e urbanista Paola Berenstein Jacques (2005); da teórica da dança Fabiana Dultra Britto (2012); as noções de “coreopolítica” e “coreopolícia” propostas pelo teórico da dança e da performance André Lepecki (2011).

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Palavras-chave: performance urbana – errância urbana – feminino

* Orientação: Eleonora Fabião. Bolsa PIBIAC.

Uma corpografia itinerante

Nasci na cidade de Brasília, Distrito Federal, passei parte da infância em Salvador, Bahia, e cheguei ao Rio de Janeiro aos 8 anos. A primeira parte da minha infância foi marcada por estar em trânsito, mudar frequentemente de casa, trocar de escola, conhecer novas pessoas e, repetidamente, me despedir. Aos 12 anos, eu me mudei para a casa 101 da Rua Maria Augusta da Silva, Centro de São João de Meriti, Baixada Fluminense. Lá, vivi por 16 anos; e foi a partir dali que comecei a vivenciar a cidade sozinha, sem a supervisão de um/a responsável. Com 18 anos, fui estudar no Centro da capital, a 26 km de distância da minha residência. Foi então que iniciei uma nova fase de trânsito, o mesmo que milhões de trabalhadoras/es experimentam todos os dias: longas jornadas de deslocamento para estudar, trabalhar e/ou ter acesso à cultura e lazer em uma cidade mais equipada. Entretanto, não direi que este é um típico deslocamento centro-periferia – as noções de “centro” e “periferia” parecem definir uma relação de subalternidade que inferioriza a cidade menor, o que não condiz com a minha experiência.

Porém, fato é que as experiências de enfrentar horas diárias num transporte público precarizado; da insegurança no ir e vir; da falta de investimento e interesse político nos espaços urbanos para além dos cartões postais; do “ser” de um lugar e “estar” constantemente em outro moldaram meu corpo. Minha “corpografia” se fez nesse entre-lugar, no vai-e-vem entre cidades. Quando utilizo o termo “corpografia” me refiro ao conceito conforme elaborado pela arquiteta e urbanista Paola Berenstein Jacques e pela teórica da dança Fabiana Dultra Britto no artigo “Corpocidade”. As autoras definem:

A cidade é percebida pelo corpo como conjunto de condições interativas e o corpo expressa a síntese dessa interação descrevendo, em sua corporalidade, o que passamos a chamar de “corpografia” urbana. A “corpografia” seria uma espécie de cartografia corporal em que não se distinguem o objeto cartografado e sua representação. Uma ideia baseada na hipótese de que a experiência urbana fica inscrita, em diversas escalas de temporalidade, no próprio corpo daquele que a experimenta, e dessa forma também o define, mesmo que involuntariamente (BRITTO & JACQUES: 2009, p. 341).

Fica então exposta a relação processual e indissociável entre corpo e cidade, uma vivência cotidiana que produz esse tipo de cartografia realizada pelo e no corpo. Equilibrar-se no metrô em movimento, andar em calçadas improvisadas ou mal conservadas, atravessar no meio dos carros em movimento porque não há sinalização próxima, tudo isso cria memórias corporais, sensibilidades psicofísicas e modos de atenção que estão diretamente relacionados à cidade.

Nomes de ruas

Morar em uma rua com nome feminino despertou em mim a curiosidade: quem foi Maria Augusta da Silva? Uma rua com nome feminino em um mar de ruas com nomes masculinos. Afinal, é fato, temos muito menos ruas com nomes de mulheres do que de homens na cidade. Este foi o ponto de partida para minha pesquisa em performance urbana: por que tamanha diferença? Quem foram essas mulheres? Como ruas são nomeadas?

Meu primeiro passo foi realizar um levantamento das ruas-mulheres da cidade. Para lidar com os muitos nomes encon-

trados, determinei dois critérios de exclusão imediata: santas católicas e esposas de homens importantes. Primeiro, porque me interessa conhecer mulheres brasileiras que nomeiem nossas vias e não há santas brasileiras; e, segundo, as esposas, infelizmente, são personagens sintomáticas da sociedade patriarcal em que vivemos e são biografadas apenas como “esposa de fulano”, sem identidade e vida próprias.

Nomear a principal avenida do Centro do Rio de “Presidente Vargas” não é uma escolha aleatória. A corpografia das cidadãs/ãos fluminenses é também afetada e constituída por Presidentes Vargas, Rios Brancos, Mens de Sá, Condes de Bonfim, Almirantes Alexandrinos e tantos outros. É latente uma determinada concepção de cidade a partir das escolhas dos nomes de suas ruas. O batismo das vias públicas é responsabilidade da câmara de vereadores e há alguns protocolos para tal. Por exemplo, ninguém que esteja vivo pode nomear um espaço público. É preciso também que algum/a vereador/a tenha interesse – pessoal ou institucional – e inicie um longo processo burocrático. Ou seja, é um procedimento que depende muito mais da representação municipal do que da sociedade civil e isso diz muito sobre o tipo de cidade em que vivemos.

A cidade olímpica-pandêmica

Na última década, com os grandes eventos esportivos que o Brasil recebeu, testemunhamos o avanço da espetacularização de muitas cidades brasileiras. Acompanhamos uma série de remoções de moradores para construção de avenidas, estacionamentos e hotéis; a “revitalização” de espaços através de construções faraônicas sem função efetiva pós-evento; a gentrificação que expulsou os moradores mais pobres de bairros onde viviam há tempos. Esse processo de mercantilização glo-

balizada, que visa ao turista internacional e desconsidera a população local, é um fenômeno que Paola Jacques chama de “espetacularização das cidades”. De acordo com o conceito cunhado pela autora, a espetacularização transforma a cidade em um cenário tão fotogênico quanto vazio, e enquadra a/o cidadã/ão como espectador/a passiva. A “cidade-espetáculo” é uma cidade sem organicidade, “para inglês ver”. Assim, há uma hipótese de conexão proporcionalmente inversa entre a participação popular e o nível de espetacularização de uma cidade: quanto mais os espaços públicos são reivindicados, quanto mais as pessoas participam da construção efetiva da cidade, mais ela se encarna, ganha músculo, vida.

Proponho que a performance urbana é uma das formas de romper com a lógica da espetacularização, é um modo de reivindicar a cidade. Entretanto, estamos vivendo um impasse. O Rio de Janeiro, que já sofreu todos os males da espetacularização, está agora ainda mais agonizante: a crise sanitária do coronavírus está matando dezenas de trabalhadoras/es todos os dias desde abril. E, nesse contexto de imprescindível distanciamento social, impossibilitada de performar nas ruas, busco por meio desta pesquisa e da escrita outros caminhos para afirmar meu direito à cidade.

O presente estudo foi iniciado em janeiro de 2020 e minha coleção de ruas-mulheres e suas biografias já anda vasta. São muitos os nomes, histórias e imagens colecionados. Estou particularmente interessada nas ruas do meu bairro atual, Santa Teresa. Moro na Rua Paula Matos que, assim como Maria Augusta da Silva, ainda não consegui descobrir quem foi. Ao longo da pesquisa já fui pega de surpresa algumas vezes por nomes que pareciam femininos; mas, afinal, eram dois sobrenomes de um homem. Ou seja, não posso afirmar que Paula Matos foi uma mulher. Porém, minha rua faz esquina com a Rua Pintora Djanira e esta, com certeza, era mulher. Djanira

da Motta e Silva foi uma importante artista que residiu na Rua Almirante Alexandrino 2603, ou seja, a 2,5 km de distância da rua que a homenageia. E foi nesta rua com nome de almirante, que Djanira instalou uma pensão que tornou-se um importante ponto de encontro para inúmeros artistas modernistas. Me indigna o fato de terem batizado com seu nome uma pequenina ruela escondida, enquanto a rua onde viveu e a qual movimentou com sua hospedaria, tenha o nome de um militar.

Penso nos tantos Almirantes, Generais, Coronéis e Capitães que nomeiam ruas no Rio de Janeiro e me ocorre o conceito de “coreopolícia” cunhado pelo teórico da dança e da performance André Lepecki no artigo “Coreopolítica e Coreopolícia”. O coreopoliciamento seria essa forma de controle que o estado inflige a suas/seus cidadãs/ãos, mostrando que apenas alguns tipos de circulação e paragens são permitidos na cidade. Em Lepecki (2011, p. 55),

Coreografia da polícia, dinâmica da polícia, cinética da polícia. Coreopoliciamento como implementação do insensato movimento insensível que predetermina uma cinética do cidadão em que as relações movimento e lugar, ou política e chão, são permitidas apenas se permanecem relações reificadas, inquestionáveis, imutáveis, e que reproduzem o consenso sobre o seu “bom senso”.

Acredito que nomear ruas também é uma vertente desse coreopoliciamento, pois nos faz andar na linha de Almirantes, Coronéis, Brigadeiros... Tal escolha, que talvez possa soar desimportante, nos coloca na retidão de um Almirante em detrimento da sinuosidade de uma mulher, da vibração de uma artista modernista.

E se nossa cidade olímpica tem essa tendência a diminuir o feminino no batismo de suas ruas, o que dizer do feminino negro? Quando iniciei a pesquisa, imaginava que encontraria

pelo menos duas ruas com nomes de mulheres negras que marcaram a história do Rio: Tia Ciata e Chiquinha Gonzaga. Porém, não foi o que aconteceu. Tia Ciata dá nome a uma Escola Municipal entre a Rua de Santana e a Avenida Presidente Vargas, perto do local onde morou e é considerado por muitas/os historiadoras/es o berço do samba. Já a maestrina Chiquinha, muitíssimo embranquecida pela cultura pop, nomeia uma travessa no bairro de Lins de Vasconcelos, tão escondida que sequer a encontrei no site oficial da Prefeitura. Nossa cidade não é apenas masculina, ela é masculina e branca.

Navegar o Rio a pé: as errâncias urbanas

Até agora, a pesquisa vem mostrando que a antiga capital federal guarda em suas ruas uma herança fortemente masculinista, branca e militarizada. Em contrapartida, venho conhecendo experiências artísticas de performances urbanas que abrem diálogo e afirmam o sensível da cidade. Me interesso sobretudo por ações que envolvem errâncias urbanas, ações pautadas no simples ato de andar pela cidade guiada por princípios poéticos de forte carga política. Porém, desde março de 2020, a pandemia me submeteu a um distanciamento radical das experiências de cidade e vem transformando também minha corpografia. A paragem também é coreopolítica. Minha intenção, assim que possível, é realizar performances-errância; quero navegar pelas ruas-mulher e assim ressignificar não apenas a cidade-espetáculo, mas renovar minha relação com o Rio de Janeiro.

BIBLIOGRAFIA

BRITTO, Fabiana Dultra e JACQUES, Paola Berenstein. “Corpo e cidade – coimplicações em processo”. In: REV. UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2012, n. 1/2, v. 19, pp.142-155. Disponível em: https://www.ufmg.br/revistaufmg/pdf/REVISTA_19_web_142-155.pdf ----. “Corpocidade: arte enquanto micro-resistência urbana”. In: Fractal: revista de psicologia. Niterói: UFF, 2009, n. 2, v. 21, pp. 337-350. Disponível em: https://periodicos.uff.br/fractal/article/view/4751/4566 JACQUES, Paola Berenstein. “Errâncias urbanas: a arte de andar pela cidade”. In: ArqTexto 7. Rio Grande do Sul: UFRGS, 2005, pp. 16-25. Disponível em: https://www.ufrgs.br/propar/publicacoes/ARQtextos/PDFs_revista_7/7_Paola%20Berenstein%20Jacques.pdf LEPECKI, André. “Coreopolítica e coreopolícia”. In: Ilha Revista de Antropologia. Florianópolis: UFSC, 2011, n. 1, v. 13, pp.41-60. https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/2175-8034.2011v13n1-2p41

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