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Um buraco em transformação na cidade do Rio de Janeiro: performances do cuidado

Isadora Giesta*

O objetivo deste ensaio é apresentar um buraco aberto na Cidade do Rio de Janeiro, dentro de mim e também um jogo de baralho. Através de performances e brincadeiras realizadas durante o período de quarentena devido à pandemia de Covid-19, busco introduzir reflexões sobre cuidado, seus distintos significados e manifestações. A escrita performativa que se segue inclui teorias propostas pelo poeta e Doutor em Filosofia Rafael Zacca (2018), pelo líder indígena e escritor Ailton Krenak (2019) e pelo teórico do teatro e da performance Cassiano Sydow Quilici (2015).

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Palavras-chave: performance – cidade – cuidado

* Orientação: Eleonora Fabião. Bolsista PIBIAC.

Existem vários tipos de buracos. A ferida, por exemplo, é um buraco aberto. O interior de uma casa também é um buraco aberto. A boca pode ser um buraco aberto, assim como a escuta. Porém, diferentemente da boca que abre e fecha, o buraco da orelha está sempre aberto. E, fato é, todos os buracos do corpo têm algo em comum: eles são totalmente diferentes do “buraco” que se joga com cartas. Há, ainda, outros tipos de buraco, profundos e muito difíceis de descrever. E há também buracos que a gente enxerga, sabe nomear e acha que nunca vão fechar, como, por exemplo, o buraco da minha rua. Buraco (substantivo masculino): cavidade ou depressão, natural ou artificial, num corpo ou numa superfície1 .

Dia 9 de abril de 2020

Em março de 2019, uma enxurrada passou e levou um pedaço do chão de paralelepípedo da rua onde moro no Bairro do Grajaú, Rio de Janeiro. Ao longo dos 12 meses seguintes, temos observado a evolução do buraco. Ele começou pequeno e foi-se transformando em uma cratera que modificou a logística do lugar. A Comendador Martinelli é uma rua sem saída, porém, muitas pessoas e carros transitam por aqui. Por conta do buraco, tornou-se necessário tomar muito cuidado e alguns motoristas nem se arriscam mais a cruzá-la. O caminhão do lixo, por exemplo, parou de passar. Temos que carregar os sacos até o início da rua. Quanto mais o buraco cresceu, mais nos adaptamos a uma espécie de “novo normal”.

Escutei pela primeira vez a expressão “novo normal” – que, na verdade, se refere a um estado de coisas totalmente anormal – durante o período de quarentena, devido à pandemia de Covid-19. Em março de 2020, eu e milhões de pessoas, iniciamos

1 Dicionário virtual do Google.

um processo de lockdown – mais um termo novo. Nessa mesma época, o buraco da minha rua fez aniversário de 1 ano. Eu não poderia deixar de comemorar a data e fui até ele com um pedaço de bolo e uma vela. Cantei parabéns, discursei e partilhei o bolo com os seguranças da rua. Se aglomeração não tivesse passado a ser um problema, uma questão vital, teria dado uma festança. Essa foi a primeira performance realizada na quarentena e a chamei de O parabéns furado.

Como é possível, passado um ano, esse buraco ainda existir? Mesmo depois de aparecer em reportagens, mesmo sendo vizinho do então Governador da Cidade. Infelizmente, nós, cariocas, estamos mesmo acostumades ao descaso. A prefeitura prometeu agir, mas, como nos adverte o poeta e filósofo Rafael Zacca, no artigo O cuidado será uma pedagogia ou não será, são muitas as torções possíveis nas promessas políticas:

O atual prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, afirmou que ia “cuidar das pessoas”, afirmação que precedeu medidas de controle social, cultural e moral da cidade (como o desmonte de centros culturais e a desarticulação parcial do carnaval de rua, por exemplo). “Cuidar das pessoas” significa, no discurso do prefeito, como no discurso de muitas das modernas instituições [...] domínio. “Cuidar do outro” não é nenhum cuidado. Ninguém cuida de ninguém – as pessoas dominam (ZACCA: 2018, s/p.).

Ou seja, discursos de cuidado podem, muitas vezes, desencadear ações de controle e dominação, quer dizer, resultar em desrespeito e descuido.

Dia 20 de abril de 2020

O mês é de chuvas e mais um temporal caiu, deixando meu bairro sem luz. Era noite. Peguei uma xícara de café, botei uma

vela acesa dentro e assisti a ela derreter, preenchendo o interior vazio daquele recipiente. Quando a luz voltou, a televisão ligou bem na hora de uma notícia sobre o número de pessoas mortas e infectadas pela Covid-19. Faltavam ainda uns 2 centímetros de vela para queimar e deixei acontecer, enquanto assistia ao jornal. Repeti isso alguns dias: olhar velas derretendo. Quando a última apagou, a xícara estava cheia até a borda. A cera, solidificada no interior da xícara, saiu inteirinha na minha mão, sem esforço, abrindo de novo espaço naquele recipiente. Um novo buraco.

Dia 18 de maio de 2020

No cenário crítico da pandemia, o sentido da palavra cuidado vem modificando-se. O que era afeto – abraço, beijo, toque – agora tornou-se uma espécie de arma letal. As definições de cuidado estão sempre mudando? Nunca foi tão óbvio para mim o fato de que me cuidar é também cuidar diretamente de outre. Por isto, e porque tenho esta opção, permaneço em casa.

Dia 19 de maio de 2020

Tenho escutado muito que estamos vivendo “o fim do mundo”. Porém, esta é uma ideia que percorre a história da humanidade. O mundo já acabou muitas vezes. Em Ideias para adiar o fim do mundo, o líder indígena Ailton Krenak alerta sobre o presente momento:

Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. [...] O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos (KRENAK: 2019, p.13).

Aprendo com Krenak que cuidar é também viver a experiência da vida, é abraçar bons momentos, é cuidar das nossas casas – corpo, Terra. Quando cuidamos estamos adiando o fim. Sabemos como começa e como termina, mas o meio... O recheio é a melhor parte. Como dizia o filósofo meu pai, “curta a vida, pois a vida é curta”.

Dia 6 de junho de 2020

Sempre fui caseira, mas ter que ficar em casa por tanto tempo, exaure. Neste sentido, seguir trabalhando na pesquisa me ajuda a manter o foco, pois me cuida. Dentre muitos, minha orientadora indicou um texto do teórico do teatro e da performance Cassiano Quilici. No capítulo A inquietude de si, Quilici diz que “criar também é uma forma de cuidar” (QUILICI: 2015, p.151). Ele se refere à arte “como modo de criar e cuidar das nossas formas de relação com o mundo e conosco mesmos” (idem, p.143). E reflete sobre a relação arte-vida no cotidiano:

Transformação do cotidiano significa aqui a descoberta de um agir que não é o mero esquecer-se nas ocupações, o perder-se nos hábitos já cristalizados. Um agir renovado que começa na mudança de qualidade da própria percepção. [...] De qualquer forma, tudo começa com uma mudança de ponto de vista que desata o homem de um fazer e de um agir reativos, sobrecarregados de desejos de asseguramento do eu e de expansão do controle sobre as coisas (QUILICI: 2015, p. 143).

Motivada pela leitura, eu me propus um jogo. Por uma semana, todos os dias, faria algo de novo, buscando perceber as coisas ao redor com mais atenção e cuidado, em busca de outras experiências. No dia 1: me inscrevi em um curso de Francês online. Dia 2: decidi que sempre que tivesse que retornar a

um cômodo por ter esquecido algo, voltaria andando de costas. Dia 3: me aventurei a fazer uma aula de Qi Gong, prática chinesa parecida com Tai Chi Chuan. Dia 4: dancei todas as músicas de propaganda e de aberturas de programas que escutei na TV. Dia 5: limpei a janela do meu quarto até ficar tudo branquíssimo. Dia 6: toda vez que meu irmão, Caio, falava comigo, respondia entoando melodias. No final do dia cantávamos juntes. Dia 7: tive que ir ao mercado, uma velha coisa nova. Fui com Caio e propus as seguintes regras: não passar a mão na cara em hipótese alguma e estar sempre distante dos peões (pessoas) no tabuleiro (rua). Nesse jogo cooperativo, cada player tinha um poder especial. O meu: uma bolsa com objetos de poder (álcool 70% e cartão). O do Caio: foco e agilidade. Os irmãos Giesta terminaram todas as etapas da missão em menos de duas horas, inclusive a esterilização de cada produto, assim que chegamos a casa.

Dia 18 de agosto de 2020

Do alto da minha varanda, vejo o buraco que, neste dia, completa 1 ano, 4 meses e 9 dias de vida. Percebo que há uma movimentação nova – tratores e cerca de 10 pessoas trabalhando. A aproximação do período eleitoral fez com que o buraco fosse reconhecido como um problema e as obras começaram de fato. É isso.

Dia 25 de agosto de 2020

Aqui preciso abrir parênteses (ou seria um pequeno buraco?): dizer que na minha família jogar cartas é uma tradição. Me lembro, ainda menina, de observar os mais velhos jogando buraco e se divertindo. Quando pude participar, minha “bisa”,

matriarca da família, me ensinou a jogar “buraco fechado” e “buraco aberto”. Ao longo da quarentena, resolvi retomar a prática. Como não encontrei um baralho em casa, decidi fazer um. Demorei cinco dias produzindo as 104 cartas. Enquanto criava o baralho, observava pela janela as movimentações ao redor do meu objeto de pesquisa, meu parceiro de performance, o buraco da rua.

Decidi, então, performar uma despedida. Convoquei o Caio, meu fiel escudeiro, para ajudar nessa empreitada. Assim, nasceu a ação Buraco aberto no buraco “ainda” aberto. Fomos até o local (quase dentro do buraco), abrimos uma mesa retrátil, posicionamos duas cadeiras e começamos o jogo. A partida durou cerca de 30 minutos e tivemos público. O Luizinho, um dos seguranças da guarita, acompanhou todo o processo. Disse que não sabia jogar, mas gostava de assistir. Achou o maior barato a gente estar lá, “jogando buraco no buraco”, frase que ele repetiu algumas vezes ao longo da partida. Ele até gravou um vídeo e mandou para a esposa. O Patrick, outro segurança, falou sobre como era “um protesto criativo esse aí que ‘cês tão’ fazendo”. Os demais espectadores foram pessoas que passavam na rua e paravam para observar. Convidei algumas para uma partida, mas nenhuma quis. Um senhor, depois de observar muito tempo, perguntou o que estávamos jogando. Quando eu disse “buraco”, ele ficou enfezado e gritou “Bolsonaro!”.

Dia 9 de setembro de 2020

O buraco está quase todo coberto. A cavidade profunda que lá existia, agora dá lugar a cimento, terra, areia, pedras, encanamentos e uma espécie de cisterna (como alguns pontos de alagamento na Cidade do Rio possuem). Camada em cima de camada, com tubulações, veias, concreto até chegar à pele.

Dia 18 de setembro de 2020

Quando o buraco fechou, foi assim, de uma hora para outra. Acordei e não tive tempo de dizer adeus. Queria ter ido lá e enterrado alguma coisa significativa. Queria ter guardado nessa rua um pedaço da minha história. Ou, sei lá, uma cápsula do tempo para abrir daqui a uns 30/40 anos. Fico pensando se eu teria escrito uma carta narrando o que aconteceu em 2020, contando o que esse buraco representa na cidade, dizendo o que eu não fiz e queria ter feito.

Fiquei sem ele.

Buraco aberto, buraco fechado, buraco de tiro, buraco vazio, buraco na minha rua, no meu peito, buraco cheio de vazio. Buraco da boca pra falar, comer, cuspir e beijar. Buraco do nariz, da orelha, do cu. Buraco na terra que eu abro pra plantar, buraco pra enterrar. Dentre tantos buracos, me encontrei em um, segurei minha própria mão e decidi não soltar mais.

BIBLIOGRAFIA

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. QUILICI, Cassiano. O ator-performer e as poéticas da transformação de si. São Paulo: Editora Annablume, 2015.

ZACCA, Rafael. “O cuidado será uma pedagogia ou não será”. In: Revista mesa – think peace (online). Niterói: PPGCA/UFF, 2018, n. 5. Disponível em: http://institutomesa.org/RevistaMesa_5/think-piece/

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