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Sequências de espaço-tempo: o suporte da página como elemento expressivo
Luiza Leite*
Ao longo dos anos 2010, qualquer pessoa que visitasse pela primeira vez uma feira de arte impressa, com frequência manifestava surpresa diante de uma quantidade imensa de editoras independentes. Sobre as mesas, publicações as mais variadas, dos pequenos zines de uma folha só aos livros de artista com projetos gráficos complexos; dos volumes encadernados à mão aos livros levíssimos, que cabiam no bolso, feitos com dobraduras. Encontravam-se ali reunidos, sob o mesmo teto, trabalhos impressos com técnicas diversas, da risografia ao off-set, passando pela gravura, impressora a laser e até mesmo a xerox. A multiplicidade de formatos, estilos visuais e técnicas de impressão gerava um impacto imediato em quem estava conhecendo aquele universo. Cada editora apresentava uma proposta própria e, com frequência, as publicações vinham acompanhadas de uma explicação sobre sua criação por parte dos que estiveram diretamente envolvidos em todas as etapas de sua produção, seja como autor ou como editor.
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* Mestre em Antropologia (Museu Nacional/UFRJ) e Doutora em Literatura
Comparada (UERJ). Realizou pesquisa de Pós-Doutorado sobre a relação entre as publicações de artista e a performance, junto ao Programa de Pós-
Graduação em Artes da Cena (ECo/UFRJ).
O que em geral decorria dessa experiência de contato com um mundo editorial, até então desconhecido, era uma ampliação do significado da palavra “publicação”, palavra esta que muitos editores independentes preferem ao livro, por contemplar uma gama maior de formatos e estilos. Os visitantes saíam das feiras invariavelmente com uma pequena coleção muito singular de impressos, que poderia ser composta de um zine ilustrado por um coletivo de mulheres, passando por uma tradução de um texto até então inédito em português; um ensaio de imagem e texto sobre uma viagem a Canudos e uma publicação sobre uma oficina de livro de artista realizada no bairro do Bom Retiro (local onde fica localizada a Casa do Povo, que abrigou durante anos a Tijuana, a mais antiga feira de arte impressa de São Paulo). Atordoado diante de tantos estilos visuais e propostas editoriais, o público não permanecia o mesmo após seu passeio pelas feiras. Ao comprar zines e outras publicações diretamente das mãos de quem os produzia, a percepção do que podia ser uma publicação e, consequentemente, um texto passava por uma tremenda transformação. Fabio Morais chama atenção para o caráter subversivo das feiras, num país como o Brasil, em que a falta de democratização dos meios de produção editorial fez parte da história da tipografia. Ter acesso às publicações numa feira é também um modo de testemunhar a descentralização dos meios de produção e o afastamento dos circuitos convencionais do meio editorial. Diz Morais (2018, pp. 6-7):
Nossa relação com a página, com o espaço público que ela é, passa pelo ato de roubá-la de uma elite letrada e monopolista, e é isso que vejo nas atuais feiras de impressos: pequenos editores e auto-editores desafiando o monopólio de editoras que atuam não só arbitrando e legitimando o que deve ser publicado, como reforçando nossa proibição editorial ao colocar livros no mercado cujo preço beira um décimo do salário mínimo.
À medida que as feiras se multiplicavam (depois da pioneira Tijuana, vieram outras tantas como a Turnê, a Plana, a Pão de Forma, a Miolos etc.), o número de editores aumentava exponencialmente. Mas o impacto das feiras ultrapassava os círculos de produção. Cada feira, com sua especificidade, constituiu um importante canal de formação de público e, com isso, uma nova percepção a respeito do potencial das publicações impressas. Não demorou para essa influência recair também sobre a produção acadêmica, inicialmente nas áreas de Artes Visuais e Design. O contato com outras formas de conceber as publicações, além da preponderância da visualidade nas redes sociais, suscitou em muitos alunos o desejo de produzir textos que escapassem aos modelos canônicos. As imagens começaram a aparecer nas dissertações em uma relação de interdependência com o texto, as encadernações mudaram e também o estilo dos textos. Aquilo que antes parecia restrito aos programas de Artes Visuais e Design começou a aparecer em outras pós-graduações, como a Literatura Contemporânea e as Artes Cênicas.
Decorre daí uma questão relativa aos parâmetros de produção desses textos. O fato de uma produção marcadamente visual exercer uma influência sobre a produção textual se desdobra em trabalhos que passam pela primeira vez a contemplar não apenas a natureza do texto em si, mas a sua forma de ocupação da página. Alguns textos apresentam um questionamento sobre a sua própria natureza, isto é, os limites entre as diferentes linguagens. Muitos deles são inspirados na arte da performance das décadas de 1960 e 70 e, por esse motivo, oferecem ao leitor a oportunidade de acompanhar uma reflexão específica sobre o desdobramento do pensamento e a forma que ele assume. No presente artigo, discutirei como o manifesto A nova arte de fazer livros, do artista mexicano Ulises Carrión, nos fornece uma pista sobre possíveis parâmetros de produção textual que fogem aos formatos acadêmicos canônicos e apre-
sentarei dois trabalhos que tensionam a linguagem de modo a produzir poéticas que recorrem às imagens e são permeadas simultaneamente por reflexões teóricas, como parque das ruínas, de Marília Garcia, e Nox, de Anne Carson.
O artista Ulises Carrión começou sua carreira dentro da academia, mais especificamente no campo da Literatura, mas aos poucos foi-se interessando pela arte conceitual e abandonando a literatura. Em seu manifesto, A nova arte de fazer livros, publicado pela primeira vez na revista Plural, em 1975, Carrión diz que “um escritor escreve textos” (2011, p. 7). Para escrever livros, segundo a nova arte, o escritor teria que considerar a especificidade do livro como uma sequência de espaço-tempo “que pode conter qualquer linguagem (escrita), não somente a linguagem literária, até mesmo qualquer outro sistema de signos” (CARRIÓN: 2011, p. 13). O manifesto era direcionado aos escritores que até então percebiam o livro apenas como um receptáculo para textos já prontos. “A nova arte usa qualquer manifestação da linguagem pois o autor não tem nenhuma outra intenção a não ser testar a capacidade que tem a linguagem de querer dizer algo” (CARRIÓN: 2011, p. 57). A leitura de um livro feito segundo os parâmetros da nova arte dependeria, portanto, da percepção de sua estrutura. Uma vez compreendida a estrutura do livro, seria possível abandonar sua leitura. Carrión expande assim a compreensão de publicação para outros tipos de signos linguísticos encadeados segundo uma lógica estrutural. “Testar a capacidade que tem a linguagem de querer dizer algo” seria atentar para o caráter performativo da linguagem, isto é, fazer livros que põem em causa, por meio de sua forma, o que estão dizendo. Trata-se de espécies de texto que encenam ou performatizam o que está sendo dito em função da disposição de seus textos e/ou imagens. Produzir textos ao mesmo tempo poéticos e teóricos que tenham como base essa ideia significa atentar para a estrutura do todo e
se balizar por procedimentos que se dão pela via da montagem e da ruptura, criando constelações de sentido e aproximando-se de um paradigma regido por uma percepção ideogramática da linguagem.
Embora Carrión leve essa questão sobre os tipos de linguagem às últimas consequências, muitas vezes usando em seus livros signos não linguísticos, podemos tomá-lo como inspiração para pensar na especificidade das formas de escrita que fogem aos formatos acadêmicos mais usuais. Isso depende de uma percepção do livro como um todo, inclusive seu suporte. Uma constelação performativa de elementos que encenam em sua forma as próprias questões teóricas que estão sendo problematizadas. Naturalmente, o escritor deverá estabelecer, desde o início de sua produção, uma relação entre a visualidade ou o modo como o texto ocupa a sequência de espaço-tempo do livro. Gostaria de me deter sobre dois trabalhos de poesia que, embora não acadêmicos no sentido estrito, apresentam uma série de reflexões teóricas que são performatizadas no uso da relação texto e imagem: parque das ruínas, de Marília Garcia e Nox, de Anne Carson. As obras em questão manejam as imagens e o texto de modo a expandir a compreensão do que é proposto em termos teóricos. São trabalhos cuja estrutura depende do modo como arranjos específicos são dispostos nas páginas. Fazer esse tipo de escrita requer uma percepção sobre o todo que vai além da compreensão do livro como um receptáculo de palavras:
Na velha arte o escritor não se julga responsável pelo livro. Ele escreve o texto. [...] Na nova arte escrever um texto é somente o primeiro elo na corrente que vai do escritor ao leitor. Na nova arte o escritor assume a responsabilidade pelo processo inteiro (CARRIÓN: 2011, p. 14).
O escritor, portanto, deverá pensar a relação do texto com a estrutura do livro, o que exige uma percepção sobre as qualidades formais do projeto como um todo. Uma das possibilidades de se fazer uso de escritas outras dentro do espaço acadêmico seria compreender o livro como uma estrutura e em especial uma estrutura de metalinguagem em que os elementos visuais explorados de certa forma iluminam os aspectos teóricos apresentados. Isso quer dizer muitas vezes voltar a atenção para os limites entre as linguagens como formulação teórica, tensionando o que é dito e a forma como é dito, o que requer uma capacidade de raciocínio que não faz uso apenas da linearidade, mas também das propriedades imagéticas da linguagem.
Marília Garcia inicia o poema-ensaio parque das ruínas com uma “epígrafe em forma de imagem” (GARCIA: 2018, p. 11) em que apresenta o trabalho da artista Rose-Lynn Fisher. Fisher põe lágrimas sobre lâminas e depois de secarem as observa por meio de um microscópio para “descobrir / se as lágrimas de tristeza teriam o mesmo desenho das lágrimas de alegria / das lágrimas de despedida / das lágrimas de cebola” (GARCIA: 2018, pp. 12-13). As imagens das lágrimas secas parecem fotos aéreas, mas, ao contrário de serem feitas à distância, mostram “algo que está muito muito / perto / tão perto / perto demais” (GARCIA: 2018, p. 13). Aos poucos, vamos entender essa epígrafe, com as fotografias das lágrimas ampliadas, como imagens-síntese de uma pergunta que atravessa o poema-ensaio: “como ver?”. Essa pergunta move Garcia a realizar o que ela chama de “diário sentimental da Pont Marie” em que faz anotações a partir de fotografias tiradas em uma ponte em Paris, todos os dias às 10h, a partir do mesmo ângulo: “não queria ver algo além mas o próprio lugar. Talvez com a foto pudesse recortar um instante / um fotograma” (GARCIA: 2018, p. 26). A autora diz que gostaria
de revelar o entre “sempre na vida tinha tentado pular etapas / apagar o meio o entre o processo / como fazer para atravessar e passar pelas coisas?” (idem).
Garcia vai compartilhando aspectos da construção do seu texto, os andaimes que em geral não são revelados. Há uma relação análoga entre a construção do pensamento enquanto se desdobra e toda uma gama de acontecimentos cotidianos e banais que passam despercebidos por nós: “como abordar e descrever aquilo que de fato preenche a nossa vida? [...] [georges] perec fala da capacidade de olhar para o cotidiano e para os gestos mais simples como por exemplo acordar abrir os olhos lentamente e ver (GARCIA: 2018, p. 27). Os acontecimentos extraordinários “guerra / desastres / morte” seriam mais fáceis de observar por sua contundência, mas como fazer para evidenciar o infraordinário? O pensamento que se desdobra em forma de perguntas em parque das ruínas pode também ser lido como nossos gestos mais simples que, em geral, não percebemos. Capturar esses instantes é justamente o que faz o cineasta David Perlov em seu ensaio-filme-biografia, um dos filmes que motivou a feitura do “diário sentimental da Pont Marie”. Ele diz ter começado a filmar “dia após dia em busca de alguma coisa”. Segundo Garcia, “ele grava o tempo passando e a própria vida. Ele faz um registro do meio / leva tempo aprender como fazer” (GARCIA: 2018, p. 37). Os filmes citados pela autora falam da proximidade como condição de se ver alguma coisa. Às vezes, é preciso se aproximar muito para enxergar algo que a princípio não era visível como no filme Blow up, de Antonioni. Outras vezes, é necessário tomar distância para poder perceber numa imagem o que antes, à falta de algum outro conhecimento ou acontecimento, não era perceptível.
Em um fotograma tremido de uma sequência do filme do Perlov, em que aparece o Bairro de Santa Teresa, Gar-
cia encontra a janela de sua primeira infância. Isso a impele a narrar uma história que sua mãe sempre contava sobre o tio que se ofereceu para ir para a segunda guerra como médico para que seu irmão, tio-avô de Garcia, não tivesse que ir como soldado. As cartas trocadas entre o tio-avô e sua futura esposa são levadas por Garcia até a França, onde ela está fazendo uma residência artística, da qual faz parte o “diário sentimental da Pont Marie”. Ao examinar as cartas, a autora percebe que elas falam de assuntos corriqueiros, sobretudo de amor. Os cartões-postais de cidades bombardeadas que Garcia compra em Paris também apresentam textos que abordam questões passageiras e banais. Nos intervalos mais ínfimos que fazem parte dos grandes acontecimentos como as guerras, capazes de gerar imensas ruínas, encontra-se o infraordinário. Em meio ao livro, que é lentamente composto, é possível perceber as engrenagens feitas de texto e imagens, os pequenos desvios, as reticências, as perguntas a respeito do que esse texto busca comunicar. Garcia se pergunta: será que olhar a fotografia tirada na Pont Marie no dia em que houve o atentado terrorista ao jornal Charlie Hebdo revelaria alguma coisa sobre aquele acontecimento? Será possível encontrar no passado indícios sobre o futuro? Uma das perguntas que seu livro nos suscita seria: há como tecer um texto ao mesmo tempo em que a autora se localiza em relação a ele o tempo todo como se estivesse escrevendo em tempo real? parque das ruínas parece dizer que sim. Tem como ponto de partida uma proposição performativa: fotografar a Pont Marie do mesmo ângulo todas as manhãs. O ato de olhar e ver no tempo é desdobrado também como reflexão sobre os próprios procedimentos de composição do livro.
Anne Carson é outra autora conhecida por esmaecer as fronteiras entre diferentes gêneros de escrita. Em Breves conferências, ela diz:
Farei tudo para evitar o tédio. É a tarefa de uma vida. Você nunca saberá o bastante, sempre poderá trabalhar mais, não usará infinitivos e particípios de um modo estranho demais, não travará o movimento bruscamente demais, nunca sairá de dentro da própria mente depressa o bastante (CARSON: 2014, p. 207).
Uma característica parece atravessar os seus livros, o modo como ela escapa do que chama de tédio de uma história. Carson escreve por meio de fragmentos e confere ênfase especial às lacunas e ao uso da pontuação de modo a burlar a história inteiriça. No ensaio “Variações sobre o direito de se manter em silêncio”, a autora aponta dois tipos de silêncio encontrados no trabalho de tradução. O silêncio representado por uma lacuna concreta num documento antigo, como quando falta uma parte de um verso num poema, por exemplo; e o silêncio decorrente de uma palavra intraduzível, que não encontra outro modo de ser dita na língua de chegada. O silêncio seria um modo de impedir o clichê. Nesse ensaio, Carson diz que Joana D’Arc frustra a tentativa dos inquisidores de obterem um clichê teológico:
Queriam que ela lhes desse nome, corpo e descrição de alguma maneira que eles pudessem entender, com imagens e emoções religiosas reconhecíveis, numa narrativa convencional. [...] Joana desprezava essa abordagem e impediu seu progresso o quanto pôde (CARSON: 2013, p. 8).
Assim como Joana D’Arc, Carson está interessada no que é capaz de catastrofizar a linguagem, por isso “não usará infinitivos e particípios de um modo estranho demais”.
No livro Nox, Carson faz uso de uma combinação de texto e imagem em fragmentos que performam a impossibilidade de narrar a história do irmão que ela não via há 22 anos e aca-
bara de perder. A tentativa de Carson de traduzir a experiência do luto é ao mesmo tempo um testemunho de seu fracasso. Por meio de pequenas colagens de fotografias e outras matérias biográficas, como cartas e bilhetes, Carson experimenta a criação de uma obra em que a visualidade é um elemento tão importante quanto a matéria textual. É no jogo entre as imagens, às vezes transpostas para a página em pedacinhos; e os fragmentos de texto, em que ela faz perguntas sobre diversos assuntos, que emerge uma tentativa de elaborar a perda do irmão. Além da escrita sobre a perda, o livro é uma tentativa de recobrar fatos de uma história perdida. Essa busca se assemelha, segundo Carson, à tarefa da tradução, que acontece por lampejos e apalpadelas.
Nox é feito de alguns elementos heterogêneos que vão se repetindo e gerando um efeito encantatório. O livro tem um formato sanfona e abre com uma página que diz: NOX, FRATER, NOX (2010, s/p). Só compreendemos o sentido da palavra nox – que significa “noite”, em latim – e sua relação com a perda, ao longo do livro e mais especificamente no final. Em seguida, Carson nos oferece um fragmento de papel, pois o livro é feito de colagens, em que se lê um poema em latim. Trata-se da elegia número 101 que o poeta Catulo escreve para o irmão. Ao longo do livro, Carson cria verbetes com cada palavra desse poema. Revela assim a variação de sentido e as expressões idiomáticas a que pertence cada vocábulo. Aos poucos, ao lermos os vários sentidos atribuídos a cada palavra, por menor que seja, vemos que a linguagem, mesmo aquela que se pretende objetiva, nunca se restringe a um único significado. Os verbetes acabam aproximando-se da elegia em sua proliferação de sentidos.
Além desses verbetes com as palavras em latim, Carson tece uma série de considerações sobre o irmão, sua biografia,
e se faz perguntas como modo de desdobrar o pensamento ao longo do livro:
Eu queria preencher a minha elegia com luz de todos os tipos. Mas a morte nos torna avaros. Não há mais nada a ser elaborado a respeito, pensamos, ele está morto. O amor não pode alterar isso. Palavras não podem acrescentar nada a isso. Não importa o quanto eu tente evocar o menino sonhador que ele era, a história permanece peculiar e banal. Então comecei a pensar sobre a história (CARSON: 2010, s/p).
A busca pela memória do irmão se torna um motivo para perseguir os significados possíveis da palavra história. Carson então nos oferece uma sucessão de pequenos fragmentos em que fala de Heródoto, historiador da Grécia Antiga. “História e elegia são parecidas. A palavra ‘história’ vem do antigo verbo grego que significa ‘perguntar’. Alguém que faz indagações sobre as coisas – sobre suas dimensões, peso, localização, humores, nomes, caráter sagrado, cheiro – é um historiador” (CARSON: 2010, s/p). Heródoto treina o leitor ao fazer perguntas, surpreso com as coisas estranhas que os seres humanos fazem. A mais estranha delas é a própria história. Carson acrescenta que a história é “ao mesmo tempo concreta e indecifrável”, assim como o livro feito de pequenos fragmentos de imagens da história de seu irmão. O historiador recolheria a mudez, palavra derivada do latim mutus e “considerada pelos linguistas como uma formação onomatopaica que se refere não ao silêncio mas a uma certa opacidade fundamental do ser humano, que gosta de revelar a verdade ao permitir que essa possa ser vista escondida” (CARSON: 2010, s/p). Carson faz um paralelismo com a origem semântica de mudez e a mudez do irmão com que ela vai se deparar na cidade de Copenhagem, onde ele viveu e faleceu.
Nas páginas do livro, vemos pequenos trechos de uma carta que o irmão enviou para a mãe e também uma carta que a mãe escreveu em resposta mas nunca pôde enviar por falta de um endereço. Esses trechos são intercalados com narrativas sobre a viagem de Carson a Copenhagen duas semanas após a morte do irmão, pois sua esposa demorou a achar o contato de Carson em meio aos papeis dele. Sua tentativa de recuperar a história do irmão por meio dos fragmentos de fotografias e cartas se justapõe à reflexão sobre a história ao longo da primeira parte do livro. Segundo Carson, Heródoto quer prender os feitos das pessoas para impedir que saiam flutuando até virar nada: “Queremos que as outras pessoas tenham um centro, uma história, uma narrativa que faça sentido. Queremos poder dizer É isto que ele fez e aqui está o porquê. Criar um cadeado contra o desaparecimento” (CARSON: 2010, s/p). Essas reflexões são intercaladas com as memórias da relação da mãe com o irmão. “Vejo-a perto da pia descascando cenouras. Durante anos depois que ele se foi ela dava uma olhada toda vez que um carro vinha acelerado pela estrada” (CARSON: 2010, s/p). Carson justapõe uma foto da mãe segurando pela mão o filho ainda bebê e escreve embaixo:
Ela nunca recebeu um endereço dele. De fato durante os últimos sete anos da vida dele ele não escreveu uma linha sequer. Aos poucos ela começou a dizer que ele estava morto. Como você sabe? eu disse e ela disse Quando rezo por ele nada retorna. [...] Depois disso não falamos mais sobre o meu irmão. A falta de esperança ergueu um muro em torno dela. Eu não tinha certeza se novos sentimentos vindos dele haviam acabado, mas não havia nenhuma razão prática para dizer isso. Era um alívio não tê-lo adentrando toda conversa como cheiro de cabelo queimado, para ser sincera, do meu ponto de vista. Do ponto de vista dela, todo o desejo deixou o mundo (CARSON: 2010, s/p).
Uns seis meses após a morte da mãe, Carson recebeu um telefonema do irmão. A voz dele tinha uma densidade, mas se iluminou brevemente quando ele a chamou pelo apelido de quando eles eram adolescentes, o que fez toda a história retornar. E Carson se pergunta “O que é uma voz?” Lembramos do início do livro quando ela diz que o historiador é aquele que faz perguntas. O livro é permeado de perguntas e fazer perguntas é o próprio ato de rememorar. Carson está a uma só vez pensando a questão da história e se engajando num gesto de historiadora. Quando ela visita a igreja onde foi o velório do irmão acompanhada de sua viúva, ela se lembra de quando os próprios pais morreram. Costura com um senso de humor insólito as próprias memórias e as referências históricas.
O que me ocorre enquanto eu me ajoelho na igreja em Copenhagen ouvindo cânticos dinamarqueses e deixando os lençóis da memória balançarem ao vento, é que ambos os meus pais foram colocados em seus caixões (com anos de distância incidentalmente) em casacos amarelos. Eles pareciam lindas gemas em paz. Eu sempre admirei o design de um ovo (CARSON: 2010, s/p).
Na página seguinte nos deparamos com uma montagem de pequenos fragmentos de fotografias em que se vê o oceano e o seguinte texto:
Quando meu irmão morreu (inesperadamente) sua viúva não conseguiu localizar o meu número de telefone até duas semanas depois. Enquanto eu varria minha varanda e comprava maçãs e sentava à noite perto da janela com o rádio ligado, sua morte veio vagando vagarosamente pelo oceano (CARSON: 2010, s/p).
Mais para o fim do livro temos a primeira explicação sobre o poema do Catulo em Latim que aparece na primeira página.
Carson diz ter conhecido a elegia quando ainda estava na escola e que desde então tentou traduzi-la inúmeras vezes.
Ninguém (nem mesmo em Latim) consegue se aproximar da dicção de Catulo, que mesmo no seu momento mais triste tem um ar de profunda festividade, como uma daquelas árvores cujas folhas são reviradas, prata, ao vento. Nunca consegui chegar à tradução que eu gostaria de ter feito do poema 101. Mas ao longo dos anos trabalhando nele, pensei na tradução como um quarto, não exatamente um quarto desconhecido, em que se busca o interruptor de luz por apalpadelas. Acho que nunca acaba. Um irmão nunca acaba. Eu apalpo em busca dele. Ele não acaba (idem).
Surge aqui mais uma analogia da tradução como a busca de significado por apalpadelas, assim como se busca também a história de uma pessoa, “não adianta esperar uma inundação de luz” (CARSON: 2010, s/p). A analogia entre o ato de traduzir e a tentativa de recuperar a memória do irmão fica cada vez mais perceptível ao longo do livro, culminando com a tradução do poema 101 de Catulo. “Porque nossas conversas foram poucas (ele me telefonou talvez 5 vezes em 22 anos) eu estudo suas frases as que me lembro como se alguém tivesse me pedido para traduzi-las” (CARSON: 2010, s/p). Ficamos por fim sabendo por meio do verbete com a palavra Ave, que, quando aparece em lápides, o vocábulo quer dizer “agora é noite”. Entendemos o porquê do título Nox, noite em Latim, que é também como o livro se inicia com “Noite, Irmão, Noite” (CARSON: 2010, s/p). Tanto parque das ruínas como Nox desdobram questões conceituais a partir do jogo de imagem e texto que propõem. No primeiro livro, acompanhamos um esforço de fazer valer o que está entre, o que acontece sem que percebamos, e isso inclui uma reflexão sobre as engrenagens do próprio fazer. Na segunda obra, Carson performatiza o processo de luto ao encenar
por meio dos pequenos fragmentos a história do irmão e consequentemente o trabalho do historiador. Ambos os poemas-ensaio têm uma estrutura de metalinguagem que faz com que as questões teóricas apresentadas ganhem forma concreta nas páginas e a forma concreta faça alusão direta à discussão conceitual. A história feita de lampejos e a opacidade insuperável do luto encontra sua concretização nos pedacinhos de fotografias e cartas que Carson justapõe, assim como o infraordinário, tudo aquilo que não reconhecemos por força do hábito ou porque está próximo demais, ganha contorno na investigação que Garcia faz sobre as possibilidades de ver.
Parte do esforço de tornar esses trabalhos performativos mais visíveis e conhecidos, servindo quem sabe de inspiração para quem explora outras formas de composição textual, se deve em parte ao campo das Artes Visuais. A Regina Melim, por exemplo, traduziu uma série de textos sobre essas questões na revista Hay en português?, disponível online no site da editora Par(ent)esis. Autores da escrita conceitual, como Kenneth Goldsmith e Bélen Gache, problematizam as possibilidades de escrita ao explorarem procedimentos, tais como o sampleamento e a apropriação. O uso de procedimentos de escrita ancorados em performances foi amplamente usado por muitos coletivos de experimentação literária nos anos 1960/1970. Grupos como o Oulipo buscavam chamar atenção para a repetição da vida cotidiana, propondo programas, partituras ou restrições como pontos de partida para a criação (GACHE: 2017, p. 12). Garcia dialoga indiretamente com esses autores em seu repertório poético, chamando atenção para as múltiplas possibilidades performativas do texto, enquanto Carson nos convida a acompanhar passo a passo suas reflexões sobre o luto na forma própria como compõe suas colagens. Ambas as autoras mostram a densidade do pensamento que pode vir enredado em uma escrita de natureza poética, que faz uso de arranjos de imagem e texto.
BIBLIOGRAFIA
CARSON, Anne. Nox. New York: New Directions, 2010.
----. “Variações sobre o direito de se manter em silêncio”. In: Nay rather. Londres: Sylph Editions, 2013. ----. “Breves conferências”. In: Serrote. Instituto Moreira Salles, 2014, n. 17.
GACHE, Belén. Instruções de uso: partituras, receitas e algoritmos na poesia e na arte contemporâneas. Florianópolis: Par(ent)esis, 2017. GARCIA, Marília. parque das ruínas. São Paulo: LunaParque, 2018. MORAIS, Fabio. Sabão. Florianópolis: Par(ent)esis, 2018.