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Um avô que era sonho: processo de criação autoficcional
Pedro Barroso Mantel*
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O artigo visa a analisar o desenvolvimento do espetáculo autoficcional Um avô que era sonho, escrito e atuado pelo aluno-pesquisador Pedro Barroso, como parte da pesquisa integrante do projeto “Cenas na pandemia: tecnologia e performatividade”, orientado pela Profª. Drª. Gabriela Lírio. A pesquisa objetiva, principalmente, analisar a elaboração da dramaturgia e dos dispositivos estéticos para a construção de um espetáculo virtual, exibido durante a pandemia da COVID-19. O estudo também se propõe relacionar conceitos sobre autoficção no teatro com os desafios enfrentados pelo jovem artista para a produção de um “espetáculo virtual”.
Palavras-chave: autoficção – teatro virtual - vídeo
* Orientação: Gabriela Lírio. Bolsista PIBIC/UFRJ.
"E pode um menino ser amigo de um velho? E pode um velho ser amigo de um menino?" (BARROSO, 2020). Um avô que era sonho é uma peça autoficcional construída a partir das memórias de meu falecido avô, Nathanael Barroso. Tendo como ponto de partida o sonho de um novo encontro, a cena investiga a importância do meu avô em minha vida. O espetáculo, que nasce na disciplina Ator II1, do curso de Direção Teatral da UFRJ, reflete o desejo de construir um trabalho artístico que reflita e expresse a relação de afeto e companheirismo, mesmo após a morte.
Através da poesia da oralidade e da comicidade, transformo-me em ator-narrador, dividindo-me entre narrar e performar memórias e vivências, buscando estabelecer uma relação de intimidade com os espectadores, que passam a ser cúmplices das lembranças. Com isso, o espetáculo produz novos sentidos para a morte, o luto, a saudade e a ausência, que se presentificam no ato performativo. Reflito sobre temas que me acompanham desde a infância: a construção da identidade cultural, o afeto entre figuras masculinas, o lugar de pertencimento, os sonhos e utopias, a exploração do trabalho e da terra, entre outros.
1 A disciplina “Ator II” foi realizada ao longo de 2019.2, ministrada pela Profa.
Dra. Gabriela Lírio, a partir da proposição de criação de um monólogo autoficcional cujo tema era “sonho”.
Arte de divulgação do espetáculo, de Davi Palmeira
O espetáculo foi elaborado para a linguagem de “teatro virtual”, tendo sido realizadas cinco apresentações, entre os meses de setembro e outubro de 2020, através da plataforma ZOOM, compondo a programação da Pandêmica Coletivo Temporário de Criação. Contando com a experiência dos profissionais envolvidos em diferentes áreas, ao longo de cinco meses de ensaio, o trabalho se propõe realizar um cruzamento entre as linguagens do teatro, do vídeo, da internet e o espaço privado (domiciliar), buscando novas articulações espaço-temporais, com desdobramentos na investigação do ator.
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O ator Pedro Barroso em cena do espetáculo. Foto: Thais Cabral
Iniciamos o processo de construção da dramaturgia expandida da cena logo após a apresentação do espetáculo em sala de aula. No início de 2020, retomei a escrita dramatúrgica, tendo como desafio ampliá-la para além da relação afetiva parental, incluindo os temas que permeavam as memórias. Uma tentativa de, a partir da narrativa central, suscitar reflexões não apenas relacionadas a minha memória individual, mas também à memória histórica, em uma cena nomeada pela Profa. Gabriela Lírio como “cena-ensaio”.
Compartilhei a dramaturgia, à medida que era criada, com Gabriel Morais, diretor da peça, com a professora Gabriela Lírio e com os demais membros da equipe para que fizessem as suas proposições, constituindo, deste modo, uma escrita aberta e, de certa forma, coletiva, mesmo que depois alguns elementos sofressem modificações, além de garantir um aspecto dinâmico para a montagem.
Interessava-me a construção da subjetividade pelo trabalho, a investigação do lugar de pertencimento e a problemática da masculinidade tóxica nas relações masculinas. Temas que circundavam a história que gostaríamos de contar, mas que justamente encontravam o desafio de serem transformados em
cena, fugindo de um aspecto meramente discursivo. A reflexão, sempre presente, era a de conseguir tornar aspectos íntimos, das memórias pessoais, em temas mais amplos que conseguissem estabelecer relação com os espectadores. Havia um desafio de estabelecer uma distância da minha própria família, ao observar suas contradições e conflitos, corroborando para a criação de material poético da cena.
O município de Descoberto
Descoberto é o município em que meus avós nasceram, com o qual possuo uma relação afetiva profunda; e, também, local de produção de atividades artísticas e culturais. A cidade se apresentou como um tema relevante dramaturgicamente, visto que era um lugar decisivo no estabelecimento da relação com meu avô. Diante disso, busquei criar uma cena que apresentasse as minhas reflexões sobre a interferência de Descoberto nas nossas vidas, ao mesmo tempo que expandia o tema para uma análise histórica sobre o surgimento da cidade.
Município muito pequeno, historicamente, Descoberto teve sua identidade cultural enfraquecida. Encontrei raros estudos e documentos historiográficos, o que reflete o baixíssimo conhecimento das suas origens pela população local, no qual me incluo. O ponto de partida para a pesquisa foi a dissertação de mestrado da minha amiga e pesquisadora Mônica Sica, Caminhos na paisagem – re[Descoberto]s (2018), que percorre alguns caminhos retratados nas pinturas do artista Francisco Severino, indo ao encontro dos costumes locais, refletindo sobre as paisagens descobertenses e avançando para um estudo histórico inicial.
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“Procissão em Descoberto”. Óleo/tela 2017 de Francisco Severino
Com os caminhos apontados pela historiadora, retorno ao ano de 1824, em uma Descoberto desconhecida e mineradora, como a retratada na publicação da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) de Os diários de Langsdorff - Volume I. Publicação histórica que apresenta os escritos produzidos pelo médico russo (colonizador) Georg Heinrich von Langsdorff, responsável pela principal expedição naturalista ocorrida no Brasil, no século XIX. No seu diário, o barão apresenta a trajetória de exploração, com saída do Rio de Janeiro e destino a Minas Gerais. Acompanhado de uma comitiva a cavalo, com pessoas negras escravizadas e artistas como Rugendas, eles avançam para o interior de Minas, recolhendo amostras naturais e registrando a paisagem através de pinturas e dos escritos de Langsdorff.
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“Descoberto novo perto do Rio Pombas” (1824), de Rugendas
Em seu caminho, a Expedição Langsdorff toma conhecimento de uma “nova descoberta”, que apresentava grande potencial minerador, indo na contramão do momento da mineração na região Central de Minas, que estava sob queda. Nessa localidade, estava situado o garimpo que teria sido o motivador, através do fluxo de pessoas, para o surgimento do município atual de Descoberto. Diante da informação, decidi apresentar no espetáculo a narrativa sobre o surgimento da cidade, no intuito de evidenciar suas heranças históricas. A ideia era a de evidenciar a contradição de ser uma localidade que, ao mesmo tempo, apresenta potenciais culturais e é atravessada por cicatrizes que permanecem evidentes na paisagem atual.
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“Igreja do Rosário orgulho da nossa cidade”, foto de Francisco Severino
De Descoberto para o espaço virtual
O espetáculo foi idealmente pensado para estrear de modo presencial, em julho de 2020, na principal praça de Descoberto. Porém, na pandemia, decidimos seguir com o projeto e experimentar uma montagem virtual. Iniciou-se, então, uma série de desafios a serem superados: produção artística e científica em uma pandemia; manter a saúde física e mental; teatro sem presença de público, feito em casa e através de câmeras... Questões políticas, materiais e estéticas que foram negociadas do início ao fim do processo.
O primeiro desafio foi o de encontrar um espaço propício para iniciar os ensaios remotos. Foi necessário negociar a dinâmica da casa com meus familiares, já que meu quarto, na cidade do Rio de Janeiro, se apresentava como espaço de trabalho. Foi difícil conseguir separar as questões domiciliares e familiares dos ensaios. Um quarto não se transforma em sala de ensaio de uma hora para outra.
A metodologia de trabalho incluía o compartilhamento das composições apresentadas nos encontros com a equipe, por
meio da plataforma Zoom, escolhida devido às possibilidades técnicas oferecidas. Neste momento, discutíamos virtualmente o que foi criado e, de volta ao espaço de criação (meu quarto) retomava a elaboração do trabalho para, no ensaio seguinte, apresentar seus resultados. Com a criação das composições, fomos compreendendo que a arquitetura do quarto se materializava de maneira excessiva no vídeo e dificultava o deslocamento para os espaços vislumbrados na narrativa. Sendo assim, identificamos que era preciso buscar ângulos que possibilitassem um espaço simbólico para a cena, buscando outros significados para o espaço arquitetônico do quarto.
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Capturas de Ensaio. Fotos: Pedro Barroso
No decorrer dos ensaios, descobríamos novas maneiras de apresentar a dramaturgia, fugindo da frontalidade tradicional das filmagens de peças de teatro. As tomadas de câmera ressaltavam os objetos; e tudo que compunha o plano deveria ter um sentido para estar ali. Ou seja, a preocupação não era apenas com o trabalho do ator em sua relação com o espaço cênico, mas também com a captação da imagem e seus elementos. Uma relação que é usual no audiovisual, mas que tivemos que nos apropriar, ao mesmo tempo em que tensionávamos códigos do cinema clássico narrativo, como por exemplo, a interdição do ator em olhar diretamente para a câmera. No nosso caso, o diálogo direto com o espectador, comparado a um
aparte, se apresentou como um mecanismo fundamental para buscar a relação com o público, tão necessária ao teatro.
Diante de todos os desafios, conseguimos realizar essa primeira experiência virtual, e obtivemos ótimos retornos das pessoas que assistiram, principalmente, pelo caráter dinâmico e pelas soluções cênicas que conseguimos produzir com os recursos disponíveis. A satisfação também foi grande por parte de toda a equipe, à qual não posso deixar de agradecer, pois sozinho não conseguiria realizar o espetáculo, principalmente nos dias atuais. Ao mesmo tempo, não posso deixar de registrar que o retorno financeiro é praticamente nulo, visto que a única arrecadação foi com a reduzida bilheteria das apresentações. Uma equipe de sete pessoas, com acúmulo de funções, que trabalhou pelo menos seis meses e não obteve a sua remuneração legítima devido à ausência absoluta de políticas de fomento cultural.
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Foto de divulgação do espetáculo. Foto: Pedro Barroso
BIBLIOGRAFIA
BARROSO, Pedro Mantel. Um avô que era sonho. (Dramaturgia inédita). Rio de Janeiro, outubro de 2020. MARTINS, Mônica de Mendonça Sica. Caminhos na paisagem re[Descoberto]. Orientador: Isabela Nascimento Frade. 2018. 130 f. Dissertação (Mestrado em Artes) - Rio de Janeiro: Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Instituto de Artes, 2018.
MONTEIRO, Gabriela Lirio Gurgel. Teatro de imagens e autobiografia: espetáculo? In: Arte e ensaios, n. 23, pp. 115 - 123. Rio de Janeiro: PPGAV/EBA/UFRJ, 2011. _______. Autobiografia na cena contemporânea: tensionamentos entre o real e o ficcional. In: PÓS: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG, n. 11, v. 6, pp. 78-91. Belo Horizonte: EBA/UFMG, 2016. DA SILVA, Danuzio Gil Bernardino (Org). Os Diários de Langsdorff, vol I. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997. PONTES, Luís. São João Nepomuceno: dois séculos de história. Vol. 1: o santo padroeiro e a fundação de São João Nepomuceno. Juiz de Fora: Quinto Império Editora, 2019.