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O impossível como matéria de pensamento e ação
Entrevista com Eleonora Fabião por Elilson
Eleonora Fabião é professora do Curso de Direção Teatral e do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena, ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Escola de Comunicação). Além de professora, é performer e teórica da performance. Na entrevista a seguir, publicada originalmente pela e.Revista 4 parede (Quarta Parede), ela dialoga com o artista Elilson sobre a interconexão entre suas atividades como dimensões de uma mesma prática artística.
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Elilson é também performer e, como ex-aluno do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC), teve a sua pesquisa de mestrado orientada por Eleonora. Desta forma, a entrevista se apresenta como uma conversa entre artistas, esmiuçando questões pertinentes ao estado da arte atual, principalmente no que diz respeito ao campo das expressões e práticas performativas.
Elilson pergunta, aponta direções e põe em realce aspectos da trajetória de Eleonora; ela, ao responder, continua a indagar; conceitua, historia, traz à tona possibilidades, fustiga a memória. As palavras parecem recompor as vivências, tornando-se, elas próprias, o refazer de um fluxo de ideias a compor cruzamentos múltiplos, sugerindo um mosaico ondulante e afetivo. Ao falar do passado, recente ou recuado, o que se impõe é o tempo presente de um fazer poético no qual as dimensões estética, social, política e espiritual unem-se indissoluvelmente.
Ciclorama agradece, aos editores da e.Revista 4 parede (Quarta Parede) e também aos artistas envolvidos, a autorização de republicação deste material na presente edição. Optamos por privilegiar alguns momentos da conversa, cortando outros, em benefício de uma maior fluidez. Demos prioridade aos trechos onde as formulações teóricas tomam relevo, em detrimento de outros trechos mais descritivos. A revisão preocupou-se em não interferir no conteúdo das falas, limitando-se a pequenos ajustes. A versão integral encontra-se disponível em http://4parede.com/16-urgencias-do-agora-o-impossivel-como-materia-de-pensamento-e-acao/
ELILSON: Eleonora, você costuma partilhar que realiza ações para imaginar-construir, em contato corpo a corpo com tantas concidadãs e concidadãos, “a cidade onde deseja(m) viver”. Poderíamos começar falando sobre como tem-se desenvolvido esse princípio performativo pensando na sucessão de encontros que se desencadeiam em tua prática artística nas ruas, nos contextos expositivos, nas salas de aula e na escrita? Nesse fluxo, como tem-se articulado a noção de “programa performativo”, seu conceito que tem vibrado na prática de uma nova geração de artistas e pesquisadores da performance no Brasil?
ELEONORA: olá, querido Elilson – muito obrigada pelo convite para pensar e conversar. Como sabemos, não há tanto material disponível sobre performance no Brasil quanto gostaríamos. Tampouco, muitos livros sobre o tema em língua portuguesa. Então vem sendo nosso trabalho, sobretudo daquelas de nós que também atuam nas universidades, ampliar e disseminar a discussão. Afinal, a performance é um elemento funda-
mental na produção artística, reflexiva e política contemporânea. Ela age no simbólico, no imaginário e sua força de entrada no cotidiano sociopolítico é determinante.
Sim, sou uma artista que trabalha com arte de ação (os espanhóis traduzem “performance” como “arte de acción” e gosto do termo). As ações que concebo vêm acontecendo em contextos diversos – ruas, espaços expositivos, festivais, bienais, museus, universidades, páginas (de papel e virtuais), canais no YouTube, domicílios e instituições de poder público. As matérias também são as mais variadas: o que for necessário, de acordo com o que for imaginado – matérias humanas e não-humanas, visíveis e invisíveis, leves e pesadas, estético-políticas. E há, digamos, uma matéria de base, uma matéria-chão: as circunstâncias. A coisa consiste em escutar as circunstâncias e me meter nelas – ser movida por elas, mover-me com elas e movê-las nas direções que me parecem precisas (necessárias e certeiras). O trabalho é lidar com lugares, pessoas, instituições, legislações, massa histórica e matéria fantasma. Lidar com volumetrias, velocidades, densidades, cores, luminosidades, atmosferas, campos de força. Lidar com múltiplas perspectivas, pontos de vista, saberes, sistemas de inclusão e exclusão, lugares de fala e forças de silenciamento. Cada ação se dá como uma movida de corpos, de muitos tipos de corpos, articulados por um programa performativo.
O “programa”, colocado da maneira mais concisa que consigo, é um disparador. Ele é o enunciado de uma ação performativa. E por ser enunciado performativo, já é ação. Como escrevi em textos onde apresento o conceito, esse enunciado determina um conjunto de ações previamente estipuladas, claramente articuladas e conceitualmente polidas, a ser realizado por artistas, pelo público ou por ambas as partes sem ensaio prévio. O programa age como uma espécie de contorno. Ele me dá contorno para agir. É como uma pele, flexível, porosa e
firme. É isso, ele é um tipo muito sutil de matéria e não propriamente uma metodologia de trabalho (algo que antecederia as ações, de caráter ordenador, com um peso que não precisamos aqui). Entendo o programa um procedimento composicional (“procedimento” da linguagem médica e “composicional” da linguagem artística). E ele age paradoxalmente, a energética é paradoxal: o que um programa faz é justamente des-programar tudo aquilo em que toca e que o toca. No final das contas, ele é um corpo estranho que se mete nas circunstâncias, uma forma de vida poética que suspende o estabelecido. Importante também dizer que ele sempre envolve experimentação: psicofísica, social, política e existencial, conjugadamente, por meio de ações marcadamente estéticas.
E sim, Elilson, quando percebo, como você diz, que o “programa” reverbera por aí, fico eletrizada. De fato, esse conceito-ação vem-se espalhando, acendendo, vem sendo ativado e ampliado pelas mais variadas pessoas. Talvez ele tenha uma força liberadora. Talvez seja um modo de fazer vida poética e abrir imaginação política. Ao menos comigo ele faz assim. Faz sempre assim. Outro dia, João Turchi, do Coletivo Mêxa – coletivo em São Paulo que reúne pessoas em situação de vulnerabilidade, em situação de rua e membros da comunidade LGBTQIA+ – me contou que o grupo vem desenvolvendo programas e se fortalecendo por meio deles. Mês passado, estava numa live com o pessoal do educativo do MuBE (Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia) e um dos educadores fez um depoimento super bonito sobre como ele vem usando, no seu dia a dia, a noção de programa; sobre como “aquilo” deu contorno a ele num momento difícil. Volta e meia, leio uma dissertação de mestrado ou tese de doutorado e lá está o programa fazendo acontecer mais e mais programas. Sentir como esse procedimento composicional energiza e inspira as mais variadas pessoas e grupos é eletrizante. Constatar como a estética
é fonte de vida, que a estética é uma força estruturante como poucas, me anima inteira.
E, para concluir, é sempre importante dizer que, assim como concebo, um programa não é uma improvisação ou um jogo. Não é a realização de uma improvisação; quando agindo um programa, não estou exatamente investida em ser inventiva, mas concentrada em levar a cabo o que precisa ser feito. Tampouco um programa é um conjunto de regras preestabelecidas que guiam um jogo. O que está em jogo não é um jogo. Um programa é um desejo. E não me parece que esse desejo, uma vez enunciado, opere como um conjunto de restrições ou se imponha como uma obrigação. Ele é de outra ordem, funciona de outra maneira, sintoniza em outra frequência. Um programa é a manifestação e a atualização de um desejo. E desejo, no final das contas, só quer desejar mais. E mais.
Ação Carioca #1: converso sobre qualquer assunto Largo da Carioca, Rio de Janeiro, 2008. Foto: Felipe Ribeiro
ELILSON: volto à dimensão política dos encontros, que parece ter encontrado, em tua trajetória, terreno fértil naquele que possivelmente é teu trabalho-coração, Converso sobre qualquer assunto. Em um dos relatos desse trabalho, você conclui que “a rua é o lugar onde o impossível acontece”. Tendo em vista os múltiplos contextos urbanos onde já realizou essa ação e a diversidade de imaginários em confluência oral, você poderia compartilhar alguns acontecimentos, em diferentes cidades do mundo, em que esta ação disparou as dimensões de “acaso” e “impossível” nos encontros?
ELEONORA: fiquei um tempão parada diante dessa pergunta. Olhando pra ela, ela olhando pra mim... Como você sabe, reproduzo várias vozes que escuto nas ruas em muitos textos que escrevo. São textos polifônicos e, rindo aqui com essa ideia, psicografados. Chego em casa possuída pelo espírito daquele acontecimento e descarrego no papel todas as vozes escutadas e experiências vividas. Seria uma psicografia etnográfica ou uma etnografia psicográfica? [rindo alto]. E, claro, acontece de tudo e mais um pouco quando estamos abertas e disponíveis na rua. No Rio de Janeiro então, nem se fala. Porém, pra te responder, vou por outro caminho, Elilson. Vou propor que pensemos um pouco sobre “acaso” e “impossível” para depois ver que vozes aparecem.
Primeiro, o acaso. Um codinome para rua talvez pudesse ser imprevisibilidade, apesar de toda a ordenação urbanística e legislativa (ou por meio dela). A rua é uma espécie de canal de imprevisíveis – não há mesmo como prever o que irá acontecer, sobretudo se você se lança nela agindo programas performativos. Considerando esta perspectiva, não me parece que aconteçam “acasos”, em seu sentido mais convencional, quando estamos justamente no campo da imprevisibilidade. Talvez, para pensarmos performance na rua, seja interessante suspen-
der a dicotomia clássica, a dicotomia do tipo adesivo de vidro de carro onde se lê: “só há acasos / o acaso não existe”. A rua, sugiro, vibra nas frequências paradoxais. Estou falando de uma massa de matéria – humana e não-humana, visível e invisível (histórica, arquitetônica, legislativa, urbanística, social, espiritual, gritaria, passarinho, três garotas, buzina, cheiro de pastel e urina) – que vibra para além (ou aquém) das dicotomias acaso/previsibilidade, acaso/determinação. A rua é o reino de Exu, o “Senhor da Terceira Cabaça”. O reino do movimento, da passagem. Como articulam Luiz Rufino e Luiz Antonio Simas no excepcional Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas, quando Exu foi desafiado a escolher entre duas cabaças, qual levaria para o mercado de Ifé – “Uma continha o bem, a outra continha o mal. Uma era remédio, a outra era veneno. Uma era corpo, a outra era espírito. Uma era o que se vê, a outra era o que não se enxerga. Uma era palavra, a outra era o que nunca será dito.” –, ele pediu uma terceira cabaça e misturou tudo. Desse dia em diante, como escrevem Rufino e Simas, “remédio pode ser veneno e veneno pode curar, o bem pode ser o mal, a alma pode ser o corpo, o visível pode ser o invisível e o que não se vê pode ser presença, o dito pode não dizer e o não dito pode fazer discursos vigorosos”. A rua não está de brincadeira e só está de brincadeira.
Quanto ao “impossível”, estou cada vez mais acreditando que ele, o impossível, é uma matriz de pensamento e ação. Ele é o modus operandi, o ímpeto político. Isso porque a convocação do impossível é sempre da ordem da iniciativa radical: trata-se do ato de imaginar o que não existe. De virtualizar o que não há. Ou seja, trata-se da atividade do bom artista e do bom profissional da política, que, aliás, deveriam trabalhar com mais frequência juntos. O “impossível” seria uma espécie de desejo em último grau. A abolição da escravatura era o impossível. O direito de voto para as mulheres era o impossível. Tra-
tar a AIDS era o impossível. Neste momento, a vacina contra o COVID-19 é um impossível. O impossível é a única coisa que realmente existe, que realmente importa, que realmente move e interessa. O inimaginável é justamente o espaço da imaginação, a força da invenção. E, veja, acho que não se trata de trabalhar para “tornar o impossível possível”; não se trata de docilizar, domesticar, capitalizar essa potência extraordinária. O que importa é se lançar nas coisas com a força vital que o impossível abre.
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Triptych Miami: converso sobre cualquier asunto / I will have a conversation about any subject Lincoln Road, Miami, 2018. Foto: Francisco Morado
Então, chegamos à ação Converso sobre qualquer assunto que você evoca na pergunta. O programa é: “Sentar numa cadeira, pés descalços, diante de outra cadeira vazia (cadeiras da minha cozinha). Escrever numa grande folha de papel: ‘converso sobre qualquer assunto.’ Exibir o chamado e esperar”. Desde 2008 venho realizando essa ação em muitos lugares e por ho-
ras a fio. Levei cadeiras para praças e ruas em diferentes bairros de cidades como Berlim, Bogotá, Fortaleza, Santo André, Rio de Janeiro, Miami, Nova York, São José do Rio Preto, São Paulo. Inicialmente, eram duas cadeiras, mas, com o passar dos anos, comecei a acrescentar mais e mais. A fazer grandes rodas, assembleias sobre qualquer assunto. Já cheguei a levar dez cadeiras, mas, se preciso for, o pessoal pede outras emprestadas em bares e restaurantes. As rodas já chegaram a ter 15 pessoas. Meu momento de glória é quando nem preciso mais explicar o programa pra quem chega. Outra pessoa enuncia ou, simplesmente, quem chega se junta e conversamos. Conversamos, debatemos, discutimos sobre os mais variados assuntos. E, sim, o impossível às vezes comparece de forma evidente (como quando fatos inacreditáveis acontecem). Porém, assim como a vibração é “exusíaca”, o impossível é a própria atmosfera do acontecimento. Aquilo tudo, aqueles encontros todos se dando em contextos culturais tão marcadamente separatistas e individualistas, aquelas longas conversas acontecendo entre pessoas completamente estranhas umas às outras e ensinadas a “não conversar com estranhos de jeito nenhum”, são profundamente brincantes e impossíveis. Não sei se me faço clara, mas é simples assim. E a sensação às vezes é lisérgica.
Houve o dia em que alguém se sentou e me disse que deveríamos estar sempre prontos para morrer. Perguntei como era estar pronta pra morrer, e ele, policial aposentado, respondeu: “estando em paz”. Houve o dia em que ele, um homem lindo, chorando e buscando palavras para descrever sua mãe adotiva, disse: “ela era preta como o vestido daquela moça ali”. E houve o dia em que ela declarou, de pé ao lado da cadeira, se negando veementemente a sentar, que os vizinhos estavam andando dentro da cabeça dela. Os passos, os saltos, o abrir e fechar das portas, o rodar das chaves, das maçanetas, as moedas caídas dos bolsos rolando pelo chão, as cadeiras arrastadas,
a piaçava da vassoura arranhando o corpo dela, bem ali, naquele instante. Falou: “Será que você não poderia, por gentileza, me receitar um remediozinho?” Houve o dia em que conversamos sobre construções de pontes. Pontes enormes, de até 13 km, e pontes curtas, que se fazem com uma tábua. Contei que quando eu era criança caí de uma ponte de tábua e chorei profundo no riacho raso. E ele contou que há cadáveres dentro dos pilares da ponte Rio-Niterói, corpos de operários mortos durante a construção. E houve o dia em que ela disse que seu filho de 10 anos foi levado à força, pelos guerrilheiros, para compor o exército da revolução. Mas que ela tinha muita fé e esperava seu retorno. O dia em que ela nos disse que o advogado a traiu e levou tudo. O dia em que ela me disse que traiu o seu namorado que, por sua vez, traía sua esposa com ela. O dia em que entendemos que sentir ciúmes é uma forma de ódio. O dia em que nós cantamos em coro “Meu coração, não sei por que, bate feliz quando te vê”. O dia em que ele nos alertou para nunca mais tomarmos café em avião porque aquilo é um veneno, “um veneno mesmo, porque eles não trocam o filtro nunca e isso faz muito mal pra você”. O dia em que ele me convidou para sairmos porque eu era muito jeitosa e ele dançava gafieira que era uma beleza. O dia em que ele me agrediu e eu repeti cada frase dele acrescentando exatamente o que eu sentia quando ele proferia cada palavra. E ele ouviu. O dia em que ele me confessou que nos últimos quatro anos, desde que chegou naquela cidade vindo do Oriente Médio, nunca havia conversado com ninguém daquela maneira. Ninguém. O dia em que o Brasil caiu ali mesmo. E escutamos, juntas, sons que o Brasil faz quando quebra. O dia em que as cadeiras cortaram meus ombros de tão pesadas e do tanto que era preciso caminhar para chegar até a praça da catedral pois o hotel onde me botaram ficava longe. O dia em que ela voltou com dois cafés pra gente, muito doces e frios os cafezinhos. O dia em que saí-
mos e deixamos as cadeiras vazias pra ir comer uma coxinha de galinha logo ali. O dia em que ela me trouxe no dia seguinte o Livro de Mórmon de presente, e eu agradeci. O dia em que se formou uma fila de mulheres que queriam sentar comigo ali e conversar à sombra da amendoeira. O dia em que ele tentou me assaltar, eu expliquei a situação e ele aceitou a explicação. O dia em que ele se despediu com um aperto de mão suado, melado, forte e duro. O dia daquele beijo suave. O dia em que ele chegou de manhã e passou o dia inteiro comigo, levantando o chamado junto, conversando sobre qualquer assunto com quem chegasse. E ele apareceu no dia seguinte também, sempre usando chapéu e não ficou descalço. O dia em que gargalhamos sem fim porque ela contava piada como ninguém. Loura oxigenada ela. Bonita toda vida. O dia em que uma criança adivinhou o nome da minha filha na primeira tentativa. Pimba, sem titubeação. O dia em que ficamos juntas, ali, fazendo silêncio. Silêncio, que na rua, nem tem muito como fazer. Ou tem.
ELILSON: é justamente através de encontros, “de acordo com o alcance de cada ação”, como você diz, que teus trabalhos imbricam proposição, vitalidade e experimentação para “transvalorar” modos de produção e relação. Mirando o pensamento costurado em diferentes épocas por Yoko Ono, Hélio Oiticica e por você, de que o papel do artista é “mudar o valor das coisas”, queria que comentasse sobre os processos de trabalhos como Movimento HO.
ELEONORA: O Movimento HO aconteceu em novembro de 2016. As curadoras eram Tania Rivera e Izabela Pucu, que, na altura, dirigia o Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica (CMAHO). O programa: “Ocupar com 4.700 tijolos, 3 livros e 7 pessoas 4 galerias do andar térreo do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica por 7 dias seguidos. Desligar a energia elé-
trica nas galerias, desligar o ar-condicionado e as luzes, abrir janelas e portas e pintar uma das paredes de amarelo 100%. De segunda-feira a domingo fazer e desfazer composições, formar e desformar espaços, mover e ser movidos. Aceitar a ajuda de quem quiser ajudar. Construir, seguir construindo, seguir aprendendo a construir. No meio da semana abrir uma roda de conversa. E, no último dia, transportar os tijolos e livros para a Casa das Mulheres da Maré, um projeto da ONG Redes no Complexo da Maré. Os tijolos se transformarão no quarto e último andar da Casa e os livros farão parte da biblioteca”.
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Movimento HO Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, 2016. Foto: André Telles e Felipe Ribeiro
E assim foi: sete dias, sete desenhos, sete títulos. Um movimento em sete movimentos e sete pessoas colaborando ali – você, André Telles, Felipe Ribeiro, Maria Acselrad, Mariah
Miguel, Viniciús Arneiro e eu. Porém, raramente estávamos sós; muita gente quis ajudar. Trabalhamos com 4.700 tijolos, ou seja, com mais de nove toneladas de material enquanto a brisa com os cheiros da cidade cruzava as galerias abertas; enquanto a luz mudava ao longo dos dias. Muitos valores estavam em movimento ali. E sim, acredito que uma das tarefas da artista é transvalorar. Vou pensando em voz alta contigo, pois há mesmo muita coisa em jogo aqui.
O primeiro ponto que me ocorre diz respeito ao modo de ocupar uma galeria de arte. A premissa do trabalho foi arrancar as paredes falsas das galerias, abrir tudo, deixar o corpo do prédio à mostra, desinvestir completamente em condições “adequadas” de temperatura e luminosidade para o encontro com a obra de arte, articular o máximo possível o espaço interno e o espaço externo, a rua e a instituição. Afinal, convidaram uma artista que trabalha sobretudo nas ruas para ocupar galerias e sabiam que eu traria essa questão. Sabiam e queriam, pois a gestão da Izabela buscava justamente essa permeabilidade entre o CMAHO e seu entorno. O segundo ponto diz respeito à própria nomeação daquele acontecimento. Lembro de um momento em que parei para beber um copo d’água – tínhamos que beber água a cada hora e meia, já que os tijolos puxam mesmo os líquidos do corpo da gente –, e me pareceu que, talvez, o Movimento HO fosse uma peça de dança. Mas, se assim fosse, quem dançava era o espaço. Fato é que a questão volta e meia se colocava: “aquilo” era uma exposição? Se sim, o quê, exatamente, estava em exposição? Talvez melhor dizer que se tratava de uma instalação? Mas se assim fosse, seria uma instalação onde nada parava quieto, onde nada se fixava, pois quando finalizávamos a construção de um desenho, outro era logo iniciado. Então, talvez melhor dizer que se tratava de uma escultura cinética? Ou seria mais certeiro olhar a peça como escultura social? Pode ser que o mais condizente fosse afirmar
que estávamos realizando uma performance coletiva de longa duração, ainda que a força escultórica se impusesse de modo tão definitivo. Ou então, como sugeriram as curadoras, entender aquela movida como uma “contra-coreografia”. E, pergunto, será que o termo “arte socialmente engajada” se encaixaria ali? E “arte relacional”? Ou ainda, será que qualquer tipo de categorização faz sentido quando o que está em questão é movimento e, especificamente, um movimento do tipo “HO”? Um movimento de movimentos no movimento.
Outro ponto a considerar é a perspectiva de quem visitou o Movimento HO. De saída, para adentrar o espaço, era preciso atravessar a primeira galeria, cujo chão foi forrado, já no primeiro dia, com tijolos bem paginados, porém não amalgamados. Havia então essa instabilidade. E havia o contato direto do corpo de quem ali adentrasse com os tijolos e com o pó dos tijolos; havia, de cara, uma espécie de relação tátil, além de visual, olfativa e auditiva com o trabalho. Uma vez dentro dali, fazia-se parte daquilo ali. O Movimento engolfava, fagocitava. Além disso, visitantes poderiam chegar, por exemplo, em um momento em que “a obra” consistia em um grupo de pessoas debatendo sobre como fazer a melhor “amarração” de tijolos para que estes se derramassem como línguas pelas altas janelas das galerias até o chão da rua. Lembro de uma mulher que entrou e me perguntou quando a exposição estaria pronta para visitação e eu expliquei que aquilo era a exposição. Ela sorriu e eu aproveitei pra perguntar se ela não gostaria de ajudar. Fato é que o público que viesse ver o Movimento HO era sempre convocado, direta ou indiretamente, a trabalhar porque “a obra” estava em permanente fazimento (e desfazimento). Uma vez abertas as portas do CMAHO às 10:00h, sempre havia gente trabalhando no espaço, muitos corpos em movimento, conversas em andamento, debates. O ambiente era de espetacularidade grau zero. E muita gente arregaçou as mangas para fazer junto.
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Movimento HO Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, 2016. Foto: André Telles e Felipe Ribeiro
De modo geral, me parece que o valor maior ali, o que de fato estávamos operando ali, era uma aliança radical entre todes aqueles “actantes” presentes (humanos e outros-que-humanos). Não estávamos fazendo arte visual, mas arte de dar a ver relações. Nos guiavam a escuta e a respondibilidade, a valorização da co-implicação intra-ativa entre tudo e todes em ação. Nos interessava a ética da aprendizagem permanente. E, importante, havia um debate de fundo acontecendo ali sobre institucionalidade, sobre modos de gestão e ocupação de espaços públicos condizentes com as necessidades das artes contemporâneas. Essa era uma questão extremamente importante para a equipe do CMAHO. E, também, aquela ação que literalmente não media esforços, era uma resposta direta ao desmanche democrático já em curso no país. Estávamos em no-
vembro de 2016 e o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff havia recém-acontecido. O ímpeto construtivo era determinante naquele momento – como continua sendo agora.
Sabe, Elilson, difícil é dizer o que não estava em questão ali. Eram mesmo muitos os valores em movimento. Como escrevi no texto de parede: “Movimento HO é uma disputa explícita por espaços concretos, imaginários e simbólicos na arena pública. Movimento HO performa aberta, coletiva e corporalmente uma luta em favor de experimentação e de imaginação política. Movimento HO é uma meditação sobre abstracionismo e concretude, materialismo e encantamento, ausência de cimento e presença de espírito, agenciamentos singulares e coletivos na cidade do Rio de Janeiro. O Movimento HO quer todos os encantamentos. Encantamento, material definitivo e derradeiro”. Vivemos uma transmutação recíproca – as pessoas, os tijolos, os três livros, a arte, os espaços e as instituições envolvidas – uns por meio dos outros, umas por meio das outras. Tudo ali material de construção. Tudo ali obra de arte. O espaço da arte, um canteiro de obras. O canteiro de obras, de construção da Casa das Mulheres da Maré, um espaço de arte. E mais as várias negociações entre nós sete. Afinal, sabemos, não se realizam programas sem negociar (e muito) ao longo do caminho.
Voltei, reli a resposta até aqui, e penso que faltou acrescentar, com todas as letras, que também concebi esse programa para efetivar uma transação financeira mesmo. O capital angariado para a exposição passou pelas mãos da performer e foi transformado em material de construção para a Casa das Mulheres da Maré e em pro labore para o grupo de artistas envolvido. Os 4.700 tijolos foram profundamente tocados, acrescidos em valor estético, energia vital, brilho performativo e, então, repassados para erguer o quarto andar da Casa. Na ocasião me disseram que este seria o andar destinado a atendimentos jurídicos e psicológicos para as mulheres da comunidade. Ou seja, cada ti-
jolo foi movido com a maior atenção para chegar na Maré em sua melhor forma e erguer esse espaço de cuidado. A nossa parte do trabalho acabou quando entregamos os tijolos e livros na Rua da Paz, Parque União; e brindamos com cerveja amarela e gelada em frente à Casa. Depois disso, coube aos tijolos, aos livros e suas novas interlocutoras fazer destino. Assim que – e este é outro ponto importante – esse Movimento não tem propriamente um fim. Ele continua se desdobrando para além do controle e da intencionalidade da artista. A este Movimento interessa valorizar e respeitar o movimento das coisas e(m) suas relações.
Elilson, te conto que esse trabalho me deu de presente uma questão que, desde então, passou a ser minha guia. O Movimento HO pergunta: como manter sempre 100% ativas e sem separá-las, sob hipótese nenhuma, as dimensões estética, social, política e espiritual das ações? Eis a questão.
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Movimento HO Em frente à Casa das Mulheres da Maré, Rio de Janeiro, 2016. Foto: André Telles e Felipe Ribeiro
ELILSON: ainda caminhando junto com você nas ruas, poderíamos te ouvir sobre as relações entre poder e solidariedade, entre fluxo e confronto que podem se desencadear nas ações, levando em consideração o que você diz, que nos espaços públicos “regulamentação e imprevisibilidade reinam juntas e delirantes”? Pensando também na crescente do fascismo e da imposição do medo como estratégia de controle dos corpos, como você tem visto a dimensão/precisão de fazer e criar arte, sobretudo neste Brasil atual?
ELEONORA: fazer arte sempre foi uma atividade fundamental e artistas sempre foram, na minha opinião, agentes sociais da maior importância. Acontece que hoje, especificamente em nosso Estado fascista suicidário (Vladimir Safatle), pornofarmaco neoliberal (Paul B. Preciado), necropolítico (Achille Mbembe), capitalístico-colonial (Suely Rolnik), em nossa eco-catástrofe planetária (Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro), antropocena capitalocena plantationocena chthulucena (Donna Haraway), a arte passou a ter uma função vital. A arte mantém o estado de experimentação e o corpo como questão. O espírito crítico e a imaginação política. Opera torções reveladoras e indica estratégias de ação. A arte imagina, inventa, dobra, expõe, propõe, denuncia, inspira, move, faz acontecer. Precisamos mais e mais das dinâmicas e da sagacidade artísticas pois estamos em ferrenha disputa. Nosso presente e nosso futuro estão em disputa. Nosso passado está igualmente sendo disputado. A roda está girando velozmente e é preciso que nós, artistas, façamos a nossa parte. Muitas e muitos estamos fortalecendo, belamente, as lutas antifascistas, antirracistas, antissexistas e antiantropocêntricas. Muites estamos trabalhando para que a geração de força estética seja abundante e abrangente. E a estética é uma força estruturante e curativa.
E penso que a prática da performance é muito importante nesse movimento. A performance estranha. Ela estranha esse mundo desencantado e produz estranheza crítica com lucidez e rigor. De uma vez por todas: a questão da performance não é se ela faz ou não faz sentido; a beleza da performance reside justamente no jeito como ela pratica o sentido como um fazer coletivo. E outra coisa: a performance não é um ensaio ou um lembrete; é um tipo de inteligência e um modo de ação. Para voltar ao que disse logo no início desta entrevista, a performance é arte de ação.
Ultimamente, tenho repetido em entrevistas, lives e textos o seguinte: como é possível que secretarias, departamentos e ministérios governamentais brasileiros não contem com a consultoria permanente de artistas contemporâneos? Como é possível que ainda não tenhamos nos organizado nesse sentido? Me surpreende a nossa lentidão. E digo que “me surpreende a nossa lentidão” pois trata-se apenas de uma questão de tempo, certo? Chegou a hora de artistas contribuírem mais diretamente para a criação de políticas públicas e para a invenção de modos de sociabilidade mais vivazes em nossas cidades. Precisamos agir com a urgência e a determinação que as circunstâncias exigem.
ELILSON: por fim, gostaria de perguntar sobre o “Janelas Abertas”, projeto que você e a professora Adriana Schneider coordenaram e realizaram junto ao Núcleo Experimental de Performance (NEP ECo UFRJ). Neste contexto de pandemia, a dimensão dos encontros se torna ainda mais urgente. Mas muitas iniciativas têm convocado artistas quase unicamente para explicar este momento ou teorizar o futuro. Me parece que o “Janelas” investe radicalmente e porosamente na imaginação política dos encontros, o que talvez se reflita na opção de vocês por não manter o registro em vídeo das conversas, mas
privilegiar o aqui-e-agora mesmo nesse âmbito virtual. O que atravessou os interesses de vocês nesses encontros?
ELEONORA: o “Janelas Abertas” aconteceu no Canal de YouTube do Núcleo Experimental de Performance, todas as quartas-feiras, ao longo de cinco meses (entre abril e setembro de 2020). O NEP é formado por mim, Adriana e nossas orientandas, orientandos e orientandes de Graduação em Direção Teatral e Pós-Graduação em Artes da Cena. O projeto nasceu do desejo de proporcionar encontros entre artistas, curadoras/es, pesquisadoras/es, cientistas, mestras e mestres de saberes populares e criar uma rede de solidariedade que estimulasse a permanência em casa e o apoio mútuo durante a quarentena. Um objetivo central do “Janelas Abertas” era divulgar a campanha de doações para os Hospitais da UFRJ no combate ao COVID-19. Entendemos que docentes, estudantes e servidoras e servidores da área de saúde na universidade estavam trabalhando diretamente no front e cabia a nós, das Artes da Cena, colaborar a partir das nossas redes e saberes específicos. Por conta da plataforma virtual, foi possível convidar participantes de vários estados e de fora do Brasil. E fato é que este projeto, feito de modo caseiro e extremamente afetuoso, acabou reunindo muita gente. Centenas de pessoas frequentaram os encontros.
Como todos os eventos do NEP, este também era baseado em um programa performativo. Nos interessa investigar modos de sociabilidade e o que chamamos de “cenas do pensamento”. O programa do “Janelas Abertas” consistia em: “convidar duas pessoas para uma entrevista mútua, ou seja, ambas seriam entrevistadas e entrevistadoras ao mesmo tempo”. Nossa opção curatorial foi convidar duplas que já se conheciam previamente, gente amiga entre si que, portanto, daria continuidade as suas conversas privadas na nossa praça virtual. Duplas amigas como eu e Adriana somos amigas. No pesado con-
texto da pandemia, em meio a tanto sofrimento, perdas, medo, insuficiências sanitárias e calamidades políticas, o importante era disseminar diálogo, escuta, pensamento e amizade. Como você diz, não estávamos focadas em diagnosticar o presente e prognosticar o futuro, mas, tão-somente, abrir espaço para que, em circunstâncias tão tensas e impressionantes, encontros acontecessem. A cada encontro, convidávamos quem nos assistia a abrir suas janelas e deixar o ar correr. Começávamos a transmissão pontualmente às 17:00h e, enquanto a tarde caía, as luzes das telas acendiam nossas casas. O intuito era mesmo arejar e inspirar. E partilhar. Partilhar o que cada dupla julgasse importante partilhar entre si e conosco naquele momento. No NEP, a lógica é sempre da partilha.
Foram 46 participantes ao longo do período. Não tivemos nenhuma recusa. Todas as pessoas contactadas, sem exceção, foram inteiramente disponíveis e generosas. Não posso deixar de citar os nomes. Além das 16 pessoas que compõem o Coletivo NEP, estiveram conosco: Leda Martins e Marcio Abreu, Cabelo e Gabriela Gusmão, André Lepecki e José Fernando Azevedo, Carla Guagliardi e Keyna Eleyson, Tania Rivera e Vladimir Safatle, Danielle Almeida e Max Hinderer, Francisco Mallmann e Miro Spinelli, Luiz Rufino e Thiago Florencio, Grace Passô e Ricardo Aleixo, Carmen Luz e Silvia Soter, Arto Lindsay e Barbara Browning, Amilcar Packer e Negro Leo, Jaciara Augusto Martim e Valéria Macedo, Enrique Diaz e Mariana Lima, Luiz Camillo Osório e Patrick Pessoa. Nunca é demais agradecer, mais uma vez, a todas as pessoas que participaram do “Janelas” como falantes e como ouvintes. Estivemos semanalmente juntas lá, estimulando as doações, inventando a nossa rádio com imagens, trançando atos de fala e atos de escuta, realizando investigação teórica, artística, pedagógica e criação universitária. Estivemos semanalmente lá, no tubo, no chat, no Zoom, em coletivo.
A gravação de cada “Janela” ficava no ar por uma semana. Assim, quem não pode estar presente teria oportunidade de assistir até antes do próximo encontro, período em que o pessoal do NEP se engajava nas transcrições. Ou seja, o programa não acontecia exclusivamente ao vivo, mas perto disso. Nos pareceu importante privilegiar o imediatismo do encontro mesmo no plano virtual. Colocar no ar essa onda performativa. Sintonizar nessa frequência presencial para marcar ritmo em um momento tão esgarçado. Um ritmo estruturante e afirmativo na temporalidade de uma quarentena sem prazo para acabar. Te conto que no presente momento estamos trabalhando nos textos e buscando verba para publicação do livro “Janelas Abertas” em formato impresso e digital. Estamos buscando meios para fazer uma ampla distribuição. Acreditamos que esse será um documento significativo do período da pandemia. E, neste exato instante, estamos iniciando um novo projeto no Canal de YouTube do NEP. Chama-se nep.recebe. Abrimos, de fato, um novo espaço de ação ali. As circunstâncias agiram e nós agimos com elas. E seguiremos agindo!
— PASSAGENS
O cinema happening de José Agrippino de Paula
Sidnei Cruz*
O texto vê o filme Hitler Terceiro Mundo (1968), de José Agrippino de Paula, como singular no Cinema Marginal, ao mixar cinema com happening** , usando a improvisação, o acaso, a colagem, a mixagem e o desgaste enquanto noções operacionais para a realização de um projeto de arte de guerrilha.
Palavras-chave: cinema marginal – happening – improvisação
* Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC/
ECO/UFRJ). Orientação: Carmem Gadelha.
** “Agrippino tinha acabado de lançar o romance PanAmérica, uma moderna epopéia recheada de alusões a celebridades e situações do cinema norteamericano. Resolveu, então, dirigir um filme sem nunca ter pensado seriamente em cinema. Na verdade, para ele, fazer literatura, teatro, cinema ou um happening era a mesma coisa” (MATTOS: 2007, p. 87).
Eu não vim para explicar, mas para confundir (Abelardo Barbosa, o Chacrinha)
Inicialmente chamado de “novíssimo”, o Cinema Marginal distanciou-se do Cinema Novo, discordando, sobretudo, da obrigatoriedade de preocupar-se com o elo final da cadeia produtiva da indústria cinematográfica: a distribuição do filme-mercadoria. No entanto, abraçou a causa do Cinema de Autor1 e levou esse princípio até as últimas consequências, ao mesmo tempo em que ignorava o público como objetivo comunicacional. Fazer é preciso, exibir não é preciso. O movimento se concentrou expressivamente entre os anos de 1968 a 1973. Ao desvincular-se dos padrões convencionais de representação e das premissas obrigatórias de uma destinação social, o Cinema Marginal assume o papel de arte de guerrilha diante de um quadro de terror, de realidade bruta, de violência e exclusão, imposto pela ditadura brasileira:
A questão da marginalidade dentro deste quadro ganha contornos mais fortes. A postura marginal começa a evoluir da definição pejorativa, contida na semântica de dicionário [...] para uma valoração positiva e que vai se constituir em lema e bandeira de toda uma geração. [...] A obra de arte passa a ser elaborada [...] sem que esteja no horizonte sua veiculação” (RAMOS: 1987, p. 30).
1 “O cinema de autor permitiria a prática cinematográfica desvinculada das exigências opressoras do último elo (a realização do valor) e, dando ênfase à dimensão pessoal do autor e à individualidade de sua inspiração, possibilitaria a liberação do ‘artista’ da dialética da mercadoria” (RAMOS: 1987, p.17).
Em 1968, os muros das cidades tornaram-se os dazibaos2 das manifestações perigosas da juventude em todo o planeta. As ruas voltaram a ser o lugar das almas encantadoras3, só que agora numa pegada mais “punk”, atualizada; e foi nessa onda que José Agrippino de Paula surfou ao realizar o longa Hitler Terceiro Mundo4, nas ruas de São Paulo, em pleno AI-5, na clandestinidade, sem autorização ou qualquer esquema de planejamento e segurança. Totalmente produzido na base da camaradagem, com restos de rolos e muita improvisação. Agrippino não planejava nada para as filmagens, conta Jorge Bodanzky (PUPPO: 2010), quando ele conseguia transporte, geralmente uma kombi – a mesma usada por Jô Soares na cena em que o Samurai transporta as crianças da favela – e uma grana para o lanche do pessoal, saía pegando todo mundo em casa, atores já caracterizados, passava as orientações e mandava filmar o que era possível, com os rolos de filmes curtos, sobras, que tinham que ser mudados a todo momento. Não havia corte, o rolo acabava e pronto. A locação era decidida na hora, diz Bodanzky:
As locações, igualmente improvisadas, incluíam o banheiro de um posto de gasolina na Via Dutra; um bar onde entramos com uma kombi para fazer um travelling e citar Edward Hopper; um necrotério com cadáveres de verdade; na construção do cenário
2 Dazibao: “na China, foi um movimento de expressão autêntica, pelo qual a população do país resolveu mostrar suas ideias. Seu surgimento histórico é incerto, mas em torno de 1911, com o fim do império manchu, e o início da república chinesa, eles se transformaram num verdadeiro meio de reclame popular, e se difundiram por todo o país” (sinografia.blogspot.com>2011/04). 3 “Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua” (RIO: 1997, p. 46). 4 Único longa, em 35mm, de Zé Agrippino. Elenco: Jô Soares, Ruth Escobar,
Eugênio Kusnet, Jonas Mello, Fernando Benini, Carlos Silveira, Túlio de
Lemos, Maria Esther Stockler e o Grupo Sonda.
de “O Balcão”5, [...] filmamos as cenas dos torturadores com farda militar (MATTOS: 2007, p. 91).
Os atores iam improvisando e fazendo as cenas como num happening e a câmera ia atrás, filmando do jeito que desse, enquanto Agrippino ria e dizia que era isso mesmo, que estava tudo certo. “[...] Agrippino simplesmente criava as coisas diante da câmera e deixava que eu resolvesse o resto” (MATTOS: 2007, p. 87).
A improvisação trazida para o processo de filmagem foi uma ferramenta desenvolvida nas montagens e laboratórios realizados com o Grupo Sonda, a partir da montagem de Tarzan Terceiro Mundo (1968). A noção de improvisação utilizada pelo Grupo Sonda foi trazida por Maria Esther quando ela passou uma temporada em Nova Iorque e vivenciou a metodologia do Living Theatre6 em seus laboratórios e apresentações, afinidades confirmadas posteriormente com a vinda do grupo ao Brasil, em 19697. A improvisação é uma das linhas de força do Teatro Simultâneo (PAULA: 1964, pp. 106-9) desenvolvido por José Agrippino (PAULA: 2019, p.18), apontado já no roteiro teatral As Nações Unidas, como procedimento denominado “Cena e ruptura”.
5 O balcão, Jean Genet, dirigido por Victor Garcia, no Teatro Ruth Escobar. O cenário era uma enorme estrutura metálica com 25 metros de altura, em forma de torre circular, para cuja construção foram usadas 43 toneladas de aço. Ficou em cartaz de 1969 a 1971. José Agrippino de Paula fez um documentário de 30 minutos, preto & branco, com fotografia de Jorge Bodanzki (FERNANDES: 1985, p. 88). 6 “Maria Esther morou nos Estados Unidos, Manhattam/Nova Iorque, de 1963 a 1965, estudando com Marta Graham, Merce Cunningham, Alwin Nikolais e Meridith Monk. Acompanhou a atmosfera gerada pelos movimentos ao redor da Judson Church e do The Living Theatre. [...] tendo incorporado toda essa efervescência instaurada pela pop art, pelo pulular de instalações e happenings pela cidade de Nova Iorque” (GIANETTI: 2015, p.24). 7 Tanto havia essa afinidade que o Living, após a separação em três núcleos, veio ao Brasil a convite de Maria Esther e José Agrippino, em 1969.Ver depoimento de BODANZKY in PUPPO: 2010.
A noção de improvisação como espetáculo e não só como treinamento de atores, mas como linguagem teatral improvisada diante do público, era praticada em consonância com as experiências contemporâneas:
[...] a improvisação como espetáculo é uma terminologia que engloba diferentes procedimentos nos quais a criação e a execução de uma cena ocorrem simultaneamente e são testemunhadas pelo público. A diminuição da distância temporal entre criação e representação pública faz com que os que a praticam tenham que relacionar-se de maneira diferenciada com o fracasso, assim como aqueles que a assistem (MUNIZ: 2015, p. 33).
A linguagem corporal do filme, com seus movimentos geometrizados, impõe a estética do grotesco realçada pelos figurinos incomuns e maquiagens exacerbadas, caracterizando os personagens como figuras monstruosas, como que saídas de um filme de ficção científica ou de uma história em quadrinhos. O gesto de ocupar o espaço público, filmando no asfalto e na favela, transformando a cidade em situação de set-instalação-penetrável, dialogando com o ambiente estético de Oiticica, já é em si a obra-intenção. Uma carnavalização selvagem desenhada pelas cenas de multidão, com o público sempre acompanhando os atores como num bloco de entrudo, numa mistura de realidade e delírio. Delírio surrealista, conforme Sontag (2020, p. 339-40):
Por surrealismo não me refiro a um movimento específico na pintura inaugurado pelo manifesto de 1924 de André Breton [...]. Refiro-me a um modo de sensibilidade que perpassa todas as artes no século XX. [...] A tradição surrealista em todas essas artes é unificada pela ideia de destruir os sentidos convencionais e criar novos sentidos ou contrassentidos pela justaposição radical (o “princípio do collage”).
A mixagem (justaposição + subtração + soma + desgaste) é uma noção que Agrippino captura dos procedimentos da montagem cinematográfica e da edição musical e desloca para a “cena teatral”, atritando o familiar com o estranho8 . É uma operação de “incongruência quase abstrata”, de “união de coisas heterogêneas”, conforme observa Duchamp (VENÂNCIO FILHO: 1986, p. 65). Podemos traçar proximidades entre a ideia de mixagem de Agrippino e a de “escritura de videoclipe”9 e de selva frondosa de Juan Brossa, que diz: “Esta selva – composta de textos, sons, imagens, gestos, objetos e movimentos – cuja densidade é ainda mais enfatizada pelo adjetivo frondosa, se mostra relutante às classificações e sentido único” (TAHAN: 2006, p. 7)10 . A ordem não é a medida de montagem na poética “agrippínica”. O acaso e a espontaneidade, sim, são ingredientes incorporados a todo instante. “Tudo está em fluxo” (CARTLEDGE: 2001, p. 27). As cenas curtas são coladas alogicamente: um corpo arrastado ao longo de um corredor estreito, um casal nu rolando na areia da praia, uma canoa ocupada por refugiados lembrando a Arca de Noé. Enquanto isso, ouvimos o áudio de galinhas cacarejando, o Homem de Pedra balança no alto de um prédio de 20 andares, próximo ao Viaduto do Chá, um jovem cabeludo é torturado com choque elétrico e depois é castrado. De repente, um inusitado giro de câmera de 360 graus põe a cidade de cabeça para baixo. Agrippino incorpora tudo, não deixa nada de fora, conta Bodanzky, como a cena real de Jô Soares que, sentindo fome du-
8 “o estranho no familiar, o familiar no estranho, o irracional no racional, o racional no irracional, estes são os pares, os choques, as centelhas que agora produzem sentido. Aí estão as premissas do surrealismo e dadaísmo” (VENÂNCIO FILHO: 1986, p. 65). 9 Entrevista de Juan Brossa por João Bandeira e Noemi Jaffe: Revista Cult,
“Dossiê”, 1989, no19, p. 42. 10“Esta selva – compuesta de textos, sonidos, imágenes, gestos, objetos y movimentos – cuya densidade es un más enfatizada por el adjetivo frondosa, se muestra remisa a las clasificaciones y la orden único”.
rante a filmagem, vai a um restaurante japonês, ainda na pele do Samurai e é filmado contracenando com a dona do restaurante, que, sem saber, participa da mescla entre o real e a ficção. Um happening, onde as sequências estruturadas posteriormente na montagem não seguem nenhuma lógica narrativa, apenas uma sucessão de cenas ao acaso, sugerindo possibilidades de diálogos por associação de imagens recorrentes de personagens ou espaços. Ao filme se aplica o que Kaprow diz sobre um dos seus happenings:
É natural que se houver múltiplos espaços nos quais as ações são programadas – seja em sequência ou ao acaso –, o tempo ou o ritmo adquiram uma ordem determinada mais pelo caráter dos movimentos dentro dos ambientes do que por conceitos de desenvolvimento e conclusão convencionais” (KAPROW: 2013, p. 52).
Um dos fios de enredo do filme, dentre outros possíveis, é o que acompanha Jô Soares performando um samurai que controla o negócio de mendigos e anões, distribuindo-os pelos bairros de São Paulo, disputando o mercado com o Capitão América, que mora no Bairro da Liberdade e é amante de Hitler. O filme é um caleidoscópio de metáforas situando o nazismo de Hitler no mesmo contexto da Ditadura Militar brasileira. O filme nunca teve uma exibição comercial e se tornou um marco do Cinema Marginal, permanecendo incompreendido, mais do que incompreensível, como reconhece Jô Soares:
O filme tem começo, meio e fim, mas não nessa ordem. Ele não se preocupa em contar uma história do ponto de vista tradicional: seu filme são sequências, happening ao ar livre, onde a ficção se mistura com a realidade que passa ao lado da câmera, há certo exagero no grotesco. Para muitos é um filme incompreensível, mas a verdade é que é o filme mais incompreendido do cinema brasileiro (SOARES: 2017, p. 401).
Para Agrippino, experimentar é correr perigo. A opção pela estética da precariedade ecoa conversas com Glauber Rocha sobre subdesenvolvimento, estética da fome e, ainda, sobre Câncer, lendário filme experimental de Glauber. Isto fez do filme um acontecimento estético visionário com um tom de desencanto radical, um frescor-escracho, um manifesto estético brutal. Com uma pegada de H&Q e sci-fi, Hitler Terceiro Mundo tornou-se uma referência do cinema de invenção e transgressão no Brasil da Ditadura Militar.
BIBLIOGRAFIA
BROSSA, Juan. “Entrevista” por João Bandeira e Noemi Jaffe. In: Revista Cult, 1989, no 19, p. 42. CARTLEDGE, Paul. Demócrito e a política atomista. São Paulo: Unesp, 2001. FERNANDES, Rofran. Teatro Ruth Escobar: 20 anos de resistência. São Paulo: Global, 1985. VENÂNCIO FILHO, Paulo. Marcel Duchamp: a beleza da indiferença. São Paulo: Brasiliense,1986. GIANETTI, Julia Corrêa. A dança marginal de Maria Esther Stockler: uma dança imagética. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes – PPGARTES. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, 2015.
KAPROW, Allan. Ensayo sin título y outros happenings. Ciudad de México: Tumbona Ediciones, 2013. MATTOS, Carlos Alberto. Jorge Bodanzky: o homem com câmera. São Paulo: Imprensa oficial, 2007.
MUNIZ, Mariana Lima. Improvisação teatral como espetáculo: processo de criação e metodologias de treinamento do ator-improvisado. Belo Horizonte: UFMG, 2015. PAULA, José Agrippino de. As Nações Unidas. São Paulo: Papagaio, 2019. ----. Diário, manuscrito, fac simile, inédito, 1964.
----. Hitler Terceiro Mundo. Filme 35mm. São Paulo: Heco/Lume, 2009.
PUPPO, Eugênio (dir.). Jorge Bodanzky conta Agrippino. Vídeo.Doc. São Paulo: Heco Filmes Prod., 2010. RAMOS, Fernão. Cinema Marginal (1968/1973): a representação em seu limite. São Paulo: Brasiliense, 1987. RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Cia das Letras,1997.
SOARES, Jô. O Livro de Jô, uma autobiografia desautorizada. São Paulo: Cia. das Letras, 2017, v. 1. SONTAG, Susan. Contra a interpretação e outros ensaios. São Paulo: Cia das Letras, 2020. TAHAN, Halina. “Metamorfosis escénicas. Los simulacros divergentes del desnudo”. In: BROSSA, Joan. Strip-tease y Teatro Irregular y Oro y Sal. Buenos Aires: Ediciones Artes del Sur/CCEBA-Centro Cultural de España em Buenos Aires, 2006.
A cena autoficcional como ato estético-político para performar outras masculinidades
Gabriel Antunes Morais*
Este artigo visa a apresentar as questões que são movidas e que me movem pela pesquisa de doutoramento iniciada em agosto de 2020, no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena, da Escola de Comunicação da UFRJ. A investigação procura aprofundar os estudos acerca do “teatro performativo autoficcional” (MORAIS: 2020) relacionando-o com o debate identitário, em especial com as masculinidades, entendidas aqui como “configurações de práticas” (CONNELL: 2005). Proponho que a cena autoficcional pode se apresentar como ato estético-político potente para desconstrução das práticas hegemônicas de masculinidade, bem como ser uma “performance de possibilidades” (HEDDON: 2008) para que outras possíveis masculinidades possam ser performadas.
Palavras-chave: autoficção – performatividade – masculinidades
* Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC), da
Escola de Comunicação da UFRJ. Orientação: Gabriela Lírio.
O teatro contemporâneo, a partir do final do século XX, se viu incluído em um contexto de explosão do “espaço biográfico” (ARFUCH: 2010), com a proliferação de trabalhos que fazem, do material vivencial, a matéria-prima para seus processos de criação. Surge um campo expandido, híbrido e fronteiriço que tenho nomeado como “teatro perfomativo autoficcional”, composto por práticas que abarcam múltiplas estéticas, linguagens e formas de se utilizar das experiências de vida dos artistas. Desde a pesquisa de mestrado, tenho-me movido por esse campo, investigando as potências estético-políticas da cena autoficcional.
Primeiramente, gostaria de trazer o alerta feito pelo pesquisador francês Ulysse Caillon, quando aponta para o risco de que a disponibilidade imediata do material vivencial dos artistas conte mais nas escolhas estéticas do que uma perspectiva política sobre eles e, assim, a cena perca “seu poder de interrogação das estruturas normativas para, ao contrário, ter um discurso tranquilizador sobre a ordem social” (CAILLON: 2018, p. 269, tradução nossa). Nesse contexto, o processo de transformar em cena o que é da ordem do privado e do íntimo responde apenas a desejos narcísicos, indo ao encontro da explosão egocêntrica do “eu”, de um culto de si, muito presente, por exemplo, nas redes sociais ou nos reality shows televisivos. “Em todas essas situações o que parece estar em jogo é apenas a aparência, um culto a um ‘eu’ autocentrado e não a possibilidade de se abrir para o desenvolvimento de novas relações, para os modos de escapar dos processos de normatização e docilização de si” (MORAIS: 2020, p. 25). Aqui, não me parece que esses trabalhos produzam cenas autoficcionais no sentido que tenho defendido.
O que constitui, então, a “cena autoficcional” e quais as suas potências estético-políticas? Uma pista está no próprio conceito de “autoficção” proposto por Serge Doubrovsky, que afirma que “autoficção” corresponde a uma “ficção de eventos e fatos estritamente reais” (DOUBROVSKY apud GASPARINI: 2008, p.
15). A potência dessa noção está justamente no caráter ambivalente e ambíguo, que rompe com o binarismo real ou ficção e aposta nos atravessamentos e contágios que acontecem no espaço criado entre uma coisa e outra: entre a vivência, o processo de criação e a narrativa; entre a memória, a imaginação e o ato de performar a si mesmo. Foi neste espaço entre uma coisa e outra que enxerguei potência de criação na cena autoficcional. A cena autoficcional desnaturaliza a ilusão de um “eu” autocentrado e expõe radicalmente o processo de subjetivação produzido por ela. O “eu” é, ao mesmo tempo, desconstruído e construído no próprio ato de performar a si mesmo, no aqui e agora da cena autoficcional. Portanto, a cena autoficcional não produz discurso tranquilizador com a ordem social, nem pode ser uma pura exibição egocêntrica de si mesmo. Ao contrário, a cena autoficcional é um ato potente estética e politicamente, pois produz subjetividades, corporeidades, modos de existência e/ou imaginários que escapem dos modelos hegemônicos.
A multiplicidade do campo do “teatro performativo autoficcional” oferece inúmeros caminhos para o aprofundamento da pesquisa. Um desses caminhos pode ser encontrado na relação entre a cena autoficcional e o fortalecimento do debate identitário. Com mais de 30 anos investigando a utilização das realidades vivenciais dos artistas no teatro e na performance, a pesquisadora escocesa Deirdre Heddon argumenta que uma possível gênese da cena autobiográfica (ou, como prefiro nomear, cena autoficcional) está ligada à terceira onda do movimento feminista e encontra raízes na ideia de que a esfera do privado também é de ordem política. Estimulados pelos estudos feministas, pelos discursos negros, queers e decoloniais, multiplicaram-se trabalhos artísticos produzidos por mulheres que procuravam fazer ouvir suas vozes, afirmavam uma subjetividade excluída do domínio público e, ao mesmo tempo, denunciavam essa exclusão. Heddon lista uma série de artistas
(todas mulheres, com exceção do performer Spalding Gray), especificamente dos Estados Unidos, que se utilizam conscientemente de suas realidades vivenciais como matéria-prima para as criações. De acordo com a autora, essas cenas apresentavam-se como “performance de possibilidades” (HEDDON: 2008, p. 2, tradução nossa), com o possível sugerindo movimentos que culminam na criação e na mudança que, segundo a autora, é necessária, desejável e ao alcance.
No Brasil, podemos perceber, nos últimos anos, o crescimento de uma cena autoficcional protagonizada por sujeitos que, historicamente, são excluídos dos espaços de representação e que sofrem apagamentos violentos de seus modos de vida, suas narrativas e experiências. Podemos citar, por exemplo, os espetáculos Afeto (2019), do grupo Embaraça, e Cidade Correria, do coletivo Bonobando, os coletivos Toda Deseo e Bacurinhas, de Belo Horizonte, Coletivo-T, de São Paulo, o projeto “Prática de Montação”, da UNIRIO. São trabalhos de artistas moradoras e moradores das periferias das grandes cidades, negras e negros, LGBTTQIA+, indígenas, entre outras(os). Apesar de muitos desses trabalhos não se afirmarem como autoficcionais, é inegável que tais artistas, como afirmam Alcure e Florêncio (2017, p.95), “aderem às opções estéticas, às linguagens, suas experiências de vida, suas vivências no mundo” e, portanto, produzem cenas autoficcionais, “performances de possibilidades” capazes de dar visibilidade a sujeitos, corporeidades e narrativas marginalizadas e dissidentes.
Por outro lado, não é menos verdade que temos hoje muitos espetáculos criados por artistas homens a partir de suas realidades vivenciais, como Luis Antônio-Gabriela (2011), do diretor e dramaturgo Nelson Baskerville; O homem vermelho (2012), de Marcelo Braga; Laura (2014) e Aquilo que acontece entre nascer e morrer (2019), ambos de Fabrício Moser; Mamãe (2015), de Álamo Facó; Tripas (2017), de Ricardo Kosovski e
Pedro Kosovski, Um avô que era sonho (2020), de Pedro Barroso; entre outros. A partir desse contexto e do pensamento de Heddon, fui instigado a aprofundar minha investigação sobre o “teatro performativo autoficcional”, dentro de uma pesquisa de doutorado, relacionando a cena autoficcional com o sistema de relações de gênero, mais especificamente com as masculinidades. De que maneira a cena autoficcional coloca em jogo as masculinidades? Pode a cena autoficcional se tornar ato estético-político potente para performar outras masculinidades que escapem das normas hegemônicas?
No episódio “O que torna alguém uma minoria por sexo, gênero ou afetividade”, do podcast Café da Manhã, o escritor Renan Sukevicius realiza a seguinte reflexão sobre a peça O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues. Para Sukevicius, o personagem Arandir beija simplesmente porque acredita de fato que não se nega um último desejo a alguém que está morrendo, mesmo que esse beijo seja dado em outro homem. Arandir não é gay ou bissexual, pois, se fosse, refletiria antes de beijar uma pessoa do mesmo sexo em público no Rio de Janeiro do anos 1960. “Ainda hoje, no Rio, em São Paulo, na região do Cariri ou na cidade mais isolada do Amazonas, beijar alguém do mesmo sexo pode dar xabu, gerar bullying, violência verbal, física” (SUKEVICIUS: 2020). A heteronormatividade, na qual Arandir está inserido, faz com que ele aja sem pensar nas consequências. Ele nunca precisou pensar se podia beijar ou não Selminha. Ele nunca precisou pensar que seus atos, seus desejos e a sua simples presença poderiam torná-lo vítima da violência masculinista.
Como homem “cis”, “hetero” e branco, eu também nunca precisei pensar se meus atos, meus desejos e minha presença me colocariam em risco. Fui acostumado a me olhar no espelho e enxergar um corpo não atravessado por gênero e sexualidade, nem racializado. O sistema de relações de gênero masculinista, heternormativo e a branquitude constroem a ilusão de um “eu”
universal, natural e neutro. Entretanto, é preciso perceber que, quando digo “eu sou um homem ‘cis’, ‘hetero’ e branco”, esse “eu” não corresponde a uma substância que pode se encontrar dentro de mim e revelada em toda a sua verdade através de uma narrativa de si. Trata-se de um ato performativo de subjetivação sempre atravessado por marcas de gênero, sexualidade, raça, entre outras. Esse ato performativo age sem parar construindo e desconstruindo subjetividade, sendo impossível atingir uma forma, uma representação final, ou seja, é impossível fixar o “eu”. Da mesma forma, é impossível encontrar no interior do sujeito a essência da masculinidade, um núcleo organizador do gênero. A socióloga australiana Raewyn Connell (2005) propõe que masculinidades, em seu caráter múltiplo e interseccionado com outros eixos de relação de poder (raça, classe, nacionalidade, posição na ordem do mundo, religião, etc.), são diferentes posições assumidas em um determinado sistema de relações de gênero, as configurações de práticas que são realizadas a partir dessas posições e os efeitos dessas práticas. Nessas configurações de prática, a autora alerta para a importância de atentar à agência do corpo. A reflexão proposta pela autora não se baseia em uma ideia essencialista da relação corpo e gênero, ou seja, não entende o corpo como uma máquina que define o gênero a partir de um determinismo biológico ou divino. Por outro lado, também não percebe o corpo como uma superfície passiva na qual uma estrutura social e simbólica de gênero é impressa. Corpos, como espaço onde a experiência se dá, são múltiplos, se transformam com o tempo e, dentro dessa multiplicidade, muitos são recalcitrantes, recusando os modos impostos de participar da vida social. Connell propõe que é preciso reafirmar a agência do corpo no processo de configuração das práticas de gênero. Tais práticas, como atos performativos, criam circuitos que ligam a agência corporal a contextos sociais específicos, ou seja, chamam os imaginá-
rios e estruturas simbólicas para jogar, enquanto a experiência corporal energiza o circuito. Os corpos são agentes e objetos de práticas performativas de masculinidades, pois, ao mesmo tempo que estão posicionadas numa determinada ordem de gênero, ao agir, tais práticas corporais reconfiguram, inventam, subvertem e resistem a essas mesmas estruturas.
Ao recriar as estruturas, consequentemente, estão modificando as suas posições nas relações de gênero e, portanto, produzindo outras possíveis práticas e outros efeitos. Proponho, portanto, que as práticas de masculinidades são atos performativos autoficcionais, já que, mais do que revelarem um “eu” essência, um núcleo interno estável organizador do sujeito, elas estão sempre em constante processo de subjetivação, de construção/desconstrução de corporeidades, sempre por fazer e inacabadas.
Esse entendimento das masculinidades como ato performativo e como configurações de práticas (re)criadas a partir da agência corporal tem sido importante para pensar as potências estético-políticas do “teatro performativo autoficcional”. A performatividade agencia afetos, desejos, intensidades entre corpos, que são desorganizados, desnaturalizados e recriados incessantemente na cena. Interessa investigar, por meio do mapeamento e análise de trabalhos autoficcionais, se, ao produzir outras corporeidades, a cena autoficcional também gera outros circuitos entre o agir desses corpos e as estruturas simbólicas de gênero. Por fim, a hipótese que essa pesquisa investiga é a de que essa produção de outros circuitos entre a agência corporal e as estruturas simbólicas na cena autoficcional tem potência para, por um lado, romper com a ilusão de um núcleo organizador do gênero, desnaturalizando as práticas hegemônicas da masculinidade e abrindo espaços para a desconstrução das hierarquias, das desigualdades e dos sistemas de opressão e, por outro, transformar-se em espaço fértil para que outras possíveis masculinidades (dissidentes, marginalizadas, subalternas) possam ser performadas.
BIBLIOGRAFIA
ALCURE, Adriana Schneider & FLORÊNCIO, Thiago. “Procedimentos dramatúrgicos em Cidade Correria: ocupações urgentes, corpos insurgentes”. In: O percevejo (online), 2017. Disponível em: http://www.seer.unirio. br/index.php/opercevejoonline/article/view/6885. Acesso em: 16 ago.2019. ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
CAILLON, Ulysse. “Confessions masculines. Quelles(s) masculinité(s) dans les solos autobiographiques d´hommes au théatre?”. In: European drama and performance studies. Paris: Garnier, 2018, no 10, pp. 267-291. CONNELL, Raewyn. Masculinities. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 2005. HEDDON, Deirdre. “Introduction”. In: Autobiography and Performance. Hampshire: Palgrave Macmillan, 2008, pp. 1-19. MORAIS, Gabriel. O teatro performativo autoficcional: experiências estético-políticas na cena contemporânea. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena – PPGAC. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2020.
SUKEVICIUS, Renan. “O que torna alguém uma minoria por sexo, gênero ou afetividade”. [Locução de]: Renan Sukevicius. Podcast Café da Manhã, 30 de jun. 2020. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/2valn8CFLcwgEndlqZOvdo?si=s334Ehy-SVGoRHrOJbDUVQ. Acesso em: 05 jan. 2021.
Carta para Cassils: Transição é sempre
Mariah Valeiras Aguiar Miguel*
O presente ensaio é uma carta endereçada ao performer Cassils. Ao longo do texto, analiso o trabalho do artista, relacionando-o a escritos do filósofo Paul B. Preciado, da fisiculturista Kathy Acker e do performer Miro Spinelli. A epistemologia e a estética da transgeneridade se revelam como uma chave para pensar sobre força, arte da performance e criação de corpo. Por fim, com o desejo de transicionar para um corpo forte, apresento um “programa performativo”, conceito cunhado por Eleonora Fabião, a ser realizado por mim em 2021: ECDISE.
Palavras-chave: Cassils – força – transição
* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Escola de
Comunicação da UFRJ. Bolsista CAPES. Orientação: Eleonora Fabião.
Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 2020.
Cassils, boa tarde!
Ainda não nos conhecemos, mas te conto que, há algumas semanas, comecei a pesquisar seus trabalhos em performance e, desde então, estou vivendo uma transformação profunda.
Minha alimentação mudou, tenho suado com mais frequência e meus sonhos se tornaram mais coloridos. Desde que entrei em contato pela primeira vez com seu trabalho, coloquei em prática um desejo antigo: me tornar uma pessoa forte, corporalmente forte.
Explico. Sou mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da UFRJ e estou desenvolvendo a pesquisa COM TODA FORÇA: performance e vida. Nela, disputo o uso da palavra “força”, entendendo que, embora o senso comum a associe a contextos conservadores e cismasculinistas, é necessário resguardar e ativar forças libertárias que afirmam a vida de modo contundente.
Isso porque estou partindo da compreensão de que, de maneira geral, experimentamos uma falta de força em nossos corpos que se manifesta como apatia, angústia, anestesia. Compreendo que nossos corpos são constantemente capturados por poderes hegemônicos, conservadores e neoliberais, racistas, misóginos, LGBTQfóbicos, capacitistas, antropocêntricos; esses poderes criam uma série de armadilhas que acabam por enfraquecer, capturar e desencantar a vida.
Eu te conto, Cassils, me lembrei agora, que faz pouco tempo um amigo amado tatuou um deus da guerra no centro do próprio peito. Esse amigo e eu somos umbandistas, uma religião brasileira de matriz africana que dança suas deusas e deuses, as e os Orixás. Para nós, o Orixá da Guerra é Ogum. Diante do meu espanto com a escolha de desenho e local da tatuagem, meu amigo explicou que o deus o ajudaria a escolher
as lutas nas quais se engajar, uma vez que, com o projeto de extermínio de corpos não-hegemônicos em curso no Brasil e em grande parte do mundo, deixar de lutar não é uma opção. Portanto, escolher as batalhas é mesmo fundamental.
Estamos em guerra pela libertação de nossos corpos. Fortalecer a vida é uma demanda a ser vencida e não há tempo para descanso; mas acho que você já sabe disso, a julgar pelas imagens de luta presentes em seus trabalhos. Você luta com um adversário invisível em The powers that be1 e luta com uma tonelada de argila em Becoming an image. 2 Coloca seu corpo no centro da ação e reivindica para si o direito de escolher como criar seus campos de batalha. Instaura uma lógica que não é de competição ou violência. Você luta a guerra que Paul B. Preciado (2020, p. 326) descreve como “A mais importante das guerras [...] porque o que está em jogo não é o território ou a cidade, mas o corpo, o gozo, a vida”.
E é por isso, Cassils, que sou convocada demais pelas forças que você ativa em suas performances. Porque estou interessada em campos de força; sobretudo em forças que reivindicam o corpo e tornam a vida mais viva.
E aí, nessa busca por forças, te digo que antes de conhecer seu trabalho, me deparei com uma citação de Preciado a respeito da aplicação de testosterona em gel, que transcrevo aqui:
1 Na performance The powers that be, Cassils luta com uma figura invisível.
A iluminação é feita por faróis de carros cujos rádios transmitem ruídos e partituras com trechos de notícias sobre os conflitos sociopolíticos do local em que a performance acontece. 2 Becoming an image é uma performance na qual Cassils luta com um bloco de argila de 2000 libras (aproximadamente uma tonelada). A ação é realizada em uma sala escura, diante do público, sendo iluminada exclusivamente quando o/a fotógrafo/a dispara sua câmera com flash. O trabalho foi criado em 2012 e realizado diversas vezes, desde então.
Espalho o gel sobre os ombros. Primeiro instante: sensação de um toque sobre a pele. Esta sensação se transforma em frio e depois desaparece. Então, nada acontece durante um ou dois dias. Nada. À espera. Depois se instala aos poucos uma lucidez extraordinária da mente, acompanhada de uma explosão de vontade de trepar, de caminhar, sair, atravessar a cidade inteira. Este é o ponto culminante em que se manifesta a força espiritual da testosterona misturada ao meu sangue. Todas as sensações desagradáveis desvanecem. [...] Só uma impressão de força que reflete a capacidade expandida dos meus músculos, do meu cérebro. Meu corpo está em si. Diferentemente do speed e da coca, não há queda imediata. Depois de alguns dias, o movimento interior se acalma, mas a sensação de força, como uma pirâmide desvelada por uma tempestade de areia, permanece (PRECIADO: 2018, p. 23).
Sabe, fiquei mais de um ano com este relato colado em mim. A possibilidade de experimentar as sensações desagradáveis desvanecendo e essa fome insaciável pelos movimentos da vida ativaram meu desejo. E o despertar de tantas forças trabalhando no corpo de Preciado me mantiveram imantada por estas palavras.
No entanto, neste momento, me sinto bem integrando a “multidão queer”3 a partir de uma perspectiva lésbica caminhoneira. A ideia de transicionar para um gênero cujo fenótipo está associado às características masculinas não ativa meu desejo. O que me atrai nestas palavras é a experimentação de força espiritual, muscular e cerebral que Preciado relata.
Então, decidida a não aplicar testosterona e/ou fazer uma transição de gênero, um longo tempo se passou sem que eu
3 “Multidão queer” é um conceito desenvolvido por Paul B. Preciado. Ver mais em: PRECIADO, Beatriz. Multidões queer – notas para uma política dos
“anormais”. In: Revista Estudos Feministas, 2011, no1, v.19.
soubesse como endereçar as forças ativadas em mim a partir do relato de Preciado. Até que me deparei com o seu trabalho CUTS: a traditional sculpture.
Neste trabalho, você escolhe manifestar o seu corpo “trans” realizando um programa performativo4 de longa duração. Em suas próprias palavras, postadas na rede social Instagram:
[...] minha performance de 161 dias intitulada “CUTS: A Traditional Sculpture” (em diálogo com a performance de Eleanor Antin em 1972, “Carving: A Traditional Sculpture”). Ao contrário de Antin, que faz dietas radicais, eu aplico meu conhecimento de fisiologia, biomecânica e nutrição para ganhar 23 libras [aproximadamente 10,5 quilos] em 23 semanas – por meio de um regime de treinamento de peso rígido, consumindo a mesma ingestão calórica de um atleta masculino de 180 libras [aproximadamente 81 quilos] e fazendo seis semanas de uso de esteroides. Com base na minha crença de que os corpos são esculturas sociais, esculpidas pelas expectativas da sociedade, este projeto mostra o corte da musculatura – em oposição ao corte de uma faca de cirurgião – manifestando um corpo trans em seus próprios termos (CASSILS: 2020, s/p)5 .
Durante vinte e três semanas, você aplica seus conhecimentos em fisiculturismo e nutrição e realiza uma transição de gênero. Para isso, compreendo que concebe e age um programa performativo composto por tempo (duração), um regime de exercícios, uma dieta nutricional rígida e a aparição do corpo em imagem fotográfica e videográfica. Semanalmente,
4 “Programa performativo” é um conceito desenvolvido por Eleonora Fabião.
Ver mais em FABIÃO, Eleonora. Programa Performativo: o corpo em experiência. In: Revista do LUME, 2013, no 4. 5 Minha tradução. Ver: https://www.instagram.com/p/CGacN86Hpy-/
você registra seu corpo ganhando uma libra de massa muscular (aproximadamente 450 gramas).
Especificamente, sobre a prática do bodybuilding, Kathy Acker afirma que:
Ao tentar controlar – moldar – o meu corpo através das ferramentas calculadas e métodos do bodybuilding e, de tempos em tempos falhando em fazê-lo, eu sou capaz de encontrar aquilo que não pode ser por fim controlado e conhecido: o corpo. É nesse encontro que reside o fascínio, se não o propósito, do bodybuilding (ACKER: 2015, p. 29).
Acker fala em encontrar o corpo, mas o que você realiza é a ação de esculpir o seu corpo. Li, em uma entrevista que você concedeu a Rosemary Heather, em março deste ano, que ganhar essa quantidade de massa muscular por semana é considerado o máximo que um bodybuilder pode conseguir. E sustentar esse ganho por vinte e três semanas é, nas palavras de Heather, “uma façanha incrível”. Mas você responde à entrevistadora afirmando que CUTS não é bodybuilding; é uma resposta ao trabalho de Eleanor Antin6. Ou seja, você reafirma o caráter artístico performativo do trabalho. E diz que a peça é a manifestação de seu próprio corpo transgênero como uma escultura social.
6 Em 1972, Eleanor Antin realizou um trabalho intitulado CARVING: a traditional scuplture, no qual passou trinta e sete dias seguindo uma dieta proposta em uma revista popular voltada ao público feminino e fazendo registros fotográficos de seu próprio corpo diariamente. Ao final do período,
Antin expôs todas as fotografias, cada uma contendo a hora do dia em que foi tirada e o peso da artista no momento do registro.
![](https://assets.isu.pub/document-structure/210813173005-b75b3009f899f05a508bbc3c1c8bcafe/v1/30379821f631e19cac4b62f86cd4d5c2.jpeg?width=720&quality=85%2C50)
CUTS: a traditional sculpture. Arquivo: CASSILS
Foi somente ao conhecer CUTS, que entendi a epistemologia da transição como sendo fundamental para o pensamento de força ativado nesta pesquisa.
Desde que entrei no mestrado, outro trabalho me acompanha e informa minha prática. Cassils, você conhece o performer Miro Spinelli? Spinelli passou pelo mesmo Programa de Pós-Graduação ao qual estou vinculada e concluiu sua pesquisa de mestrado com uma dissertação belíssima intitulada: DA ABERTURA À DESPOSSESSÃO: uma performance escrita em cinco movimentos. Neste trabalho, o autor articula pensamento decolonial e teoria queer a partir de uma perspectiva interseccional. O performer implica o próprio corpo no trabalho e revela que o início de sua prática artística performativa coincidiu com o processo de transição de gênero. De acordo com Spinelli (2018, p. 11),
Esta co-incidência entre a prática performativa e o início dos trânsitos de gênero se dá, acredito, pela capacidade que a performance pode ter de acessar saberes e desejos do corpo que são sistematicamente soterrados por sofisticadas tecnologias de poder.
Em outras palavras, se os regimes de poder exterminam corpos não-hegemônicos, há forças que podem ser ativadas pela arte da performance, capacitando os corpos a se emancipar e afirmar a vida em suas infinitas manifestações.
Cassils, penso que seu trabalho ativa essas forças. Enquanto toma para si a responsabilidade de esculpir o seu corpo “nos seus próprios termos”, você informa outros corpos sobre a possibilidade de criação de si. Ao materializar seu desejo em forma de corpo e de performance, você age liberando outros corpos para que façam o mesmo.
Foi assim comigo. Foi assim que entendi como realizar, a partir desta pesquisa, a criação de um corpo com força. Para que isso se manifeste, precisarei transicionar para este corpo
forte. Viver uma transição, que, embora não seja uma transição de gênero ou sexual, é, ainda assim, uma prática de desobediência às “heterocisnormas”. Conforme Preciado, “entendemos que, hoje, a transformação libidinal é tão importante quanto a transformação epistemológica: é preciso modificar o desejo” (PRECIADO: 2020, p. 328).
Antes de transcrever aqui o programa performativo que concebi, inspirada em seu trabalho, quero apresentar mais uma peça que, penso, se relaciona com esta conversa. Naquela mesma dissertação sobre a qual falei, Spinelli destaca a frase “transição é sempre” (SPINELLI: 2018, p. 36) e depois, em parceria com o poeta Francisco Mallmann, levanta essas palavras em forma de bandeira. Você consegue ver, Cassils, essa bandeira branca enorme, com as letras grafadas em cor preto, onde se lê “TRANSIÇÃO É SEMPRE”?
Dito isso, agradeço imensamente que tenha me acompanhado até aqui e me despeço transcrevendo o programa que estou concebendo para ser realizado a partir do primeiro dia do próximo ano, 2021.
Espero que possamos seguir essa conversa. Um forte abraço. mariah miguel
ECDISE
Eu, mariah miguel, farei uma transição de corpo para um corpo forte.
Durante sete meses, me submeterei à dieta nutricional e rotina de exercícios físicos com o objetivo de ganhar força muscular.
Começarei treinando 01 hora por dia e, a cada mês, acrescentarei 30 minutos de treino diário à minha rotina, até que, em julho, esteja treinando diariamente durante 04 horas.
Passarei cada mês me vestindo com apenas uma cor de roupa, inspirada pelo espectro visível das cores do arco-íris (janeiro: vermelho - fevereiro: laranja - março: amarelo - abril: verde - maio: azul claro - junho: azul escuro - julho: violeta).
Diariamente, fotografarei meu corpo inteiro, nu, diante de um tecido de brim colorido de 1,40m x 3m. A cada mês, substituirei o tecido por outro da cor correspondente ao mês de trabalho.
Ao final do trabalho, providenciarei a costura dos tecidos utilizados como fundo, a fim de confeccionar uma bandeira arco-íris, nas dimensões 3m x 9.8m, que será ofertada para uma instituição de acolhimento a pessoas LGBTQ+.
Esta performance deverá ser iniciada no dia 1 de janeiro de 2021 e realizada até 31 de julho de 2021.
BIBLIOGRAFIA
ACKER, Kathy. “Contra a linguagem comum: a linguagem do corpo”. In: CISMA: Revista de crítica literária e tradução. São Paulo, 2015, ano IV, no. 7, pp. 23-32. CASSILS. Cassils. Disponível em: <https://www.cassils.net/> Acesso em: 10 dez. 2020.
----. cassilsartist. Disponível em: <https://www.instagram.com/cassilsartist/> Acesso em: 28 nov. 2020. ----. “Cassils turns the act of looking at trans bodies into performance”. In: NOW magazine (online). Toronto, 2020. Disponível em: <https://nowtoronto.com/culture/art-and-design/cassils-raw-gardiner-museum-interview/> Acesso em 4 dez. 2020. FABIÃO, Eleonora. “Programa performativo: o corpo em experiência”. In: ILINX Revista do LUME, Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP. Campinas, 2013, no 4, pp.1-11. PRECIADO, Beatriz. “Multidões queer – notas para uma política dos ‘anormais’”. In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis: UFSC, 2011, no 1, v.19. PRECIADO, Paul B. Testo Junkie. São Paulo: n-1 edições, 2018. ----. Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. SPINELLI, Miro. Da abertura à despossessão: uma performance escrita em cinco movimentos. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena – PPGAC. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2018.
![](https://assets.isu.pub/document-structure/210813173005-b75b3009f899f05a508bbc3c1c8bcafe/v1/c7a018e42087c2780792c9580df7879f.jpeg?width=720&quality=85%2C50)
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