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Existência e (re)existência: memória como método de reconstrução da cena
Desirée Santos*
O artigo tem por objetivo traçar uma análise sobre os procedimentos adotados na construção da dramaturgia do espetáculo Corpo minado (2018), do Grupo Atiro, como ponto de partida para uma abordagem sobre o teatro negro contemporâneo. Interessa entender como o processo criativo parte da memória real e se transmuta para o aqui e agora, possibilitando tensões e fricções dentro da cena teatral e contribuindo, na prática, para o levantamento de uma vasta e incessante fonte de narrativas decoloniais. Proponho analisar o papel importante da memória no teatro contemporâneo, sobretudo a metodologia de dramaturgias em processo que culminam em obras inéditas, com foco em experiências realizadas no território da Maré, trazendo suas perspectivas e tecnologias de conhecimento.
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Palavras-chave: Corpo minado – teatro e memória – território
* Orientação: Lívia Flores. Bolsa PIBIC.
Eu me levanto Acima de um passado que está enraizado na dor Eu me levanto Eu sou um oceano negro, vasto e irrequieto, Indo e vindo contra as marés, eu me levanto. Deixando para trás noites de terror e medo Eu me levanto Em uma madrugada que é maravilhosamente clara Eu me levanto
Maya Angelou
As artes são constituídas da memória, ou seja, lembranças e esquecimentos. Mas sempre mediadas pela linguagem criativa, artística.
Leda Maria Martins
Introdução
A cena é uma janela aberta de autoinvestigação para cada pessoa que se disponha a investigar a história do outro e de si própria, num emaranhado de narrativas com percepções de pontos específicos sobre a vida, tornando esta, por si só, seu cerne político. Os processos criativos que desejo abordar quase sempre se manifestam a partir de uma inquietação sustentada por questões insurgentes do indivíduo, dentro do território. O espetáculo Corpo minado (2018) exibe, na sua construção dramatúrgica, uma costura que intercala ancestralidade e ficção, situando-a dentro de um salão de beleza onde as narrativas das cinco atrizes, mulheres pretas, moradoras da Maré, colocam em cena vivências reais fundidas na ficção. O palco se torna o centro de articulações cujo objetivo é garantir a existên-
cia de mulheres pretas no futuro. Em 2016, o grupo Atiro criou o projeto Agora Sei o Chão que Piso, a partir de uma pesquisa nascida da leitura do livro O teatro do bem e do mal, de Eduardo Galeano, desdobrando-se em quatro dramaturgias distintas. Este grupo de teatro, localizado na favela da Maré, pesquisa memória e território, através de práticas teatrais.
De acordo com a escritora Conceição Evaristo, o conceito de escrevivência é desenvolvido por meio de um conjunto de experiências, em particular de pessoas pretas, que são transformadas em textos literários, a fim de preencher lacunas históricas através da ficção. Em seus contos, a autora constrói narrativas fundadas na memória, que emergem de maneira atemporal. Esse procedimento é constantemente utilizado por nós como ponto de partida para um novo processo artístico, seja ele qual for. No teatro contemporâneo, essa abordagem surge como prática de escrita, utilizada para a construção de personagens. Interessa-me analisar a existência e (re)existência de espetáculos que surgem desta metodologia e suas contribuições para a cena artística e cultural da cidade.
Reconstrução da cena
Caminhar sobre os trilhos da memória é confrontar diretamente o presente, refletindo a cidade e suas implicações sociais. Apresento aqui alguns métodos e discussões que surgem a partir de processos teatrais que costuram a vivência na ficção. O processo criativo, cujo objetivo é se autoinvestigar, tende a colidir com reminiscências da violência, especificamente para pessoas pretas. É estarrecedor pensar que a ausência de afetividades nas relações familiares, a falta de estrutura básica e do direito de ir e vir – garantido por lei, mas ainda reivindicado pela população negra – sejam marcadores dessas narrativas. Ser uma mulher preta, sapatão e diretora teatral me coloca
sempre no meio dessas encruzilhadas de gênero, sexualidade, raça e classe. Trilhar esses caminhos é repensar constantemente os atravessamentos ocasionados pela tentativa de epistemicídio1 da cultura negra.
Corpo minado inicia-se em 2018. A convite de Bárbara de Assis, atriz e integrante do Grupo Atiro, tive a oportunidade de assinar a direção do espetáculo em parceria com o diretor e dramaturgo Wallace Lino. Inicialmente, o espetáculo tinha, como disparador, o tema “sonhos”, a partir de um monólogo de Bárbara, com o qual ela possivelmente construiria cenas/ performances em torno de si mesma, refletindo a corporeidade da mulher preta. A proposta foi repensada depois de a atriz indagar sobre as subjetividades que guardam as existências de cada mulher preta, não podendo um assunto tão sensível como sonhos se basear apenas numa única experiência. A partir disso, foram convidadas outras atrizes a compor o elenco do espetáculo, totalizando cinco atrizes em cena.
Durante os encontros, era comum haver trocas sobre alguns temas que dialogavam com todas. Por exemplo, o cuidado com o cabelo era um dos assuntos que mais norteavam as conversas. A escolha do espetáculo se passar dentro de um salão de beleza não surgiu como ideia aleatória, mas foi ancorada no entendimento de que a estética era um elemento importante para entrelaçar as cenas. As leituras em torno do livro Tornar-se negro, de Neusa Santos, foram fundamentais para entender os estigmas que saltavam da narrativa de cada atriz.
Relações familiares também eram abordadas nas discussões; cada história pessoal se tornava peça-chave para a composição dramatúrgica. Durante oito meses, as atrizes foram ins-
1 “Epistemicídio” é um conceito elaborado pelo professor português Boaventura de Souza Santos (2018), que trata da destruição de formas de conhecimento e culturas que não são assimiladas pela cultura do Ocidente branco.
tigadas a criar pequenas partituras cênicas que tinham a ver com os temas abordados durante as conversas em grupo. O salão de beleza ficcional foi estabelecido em cena como local de encontro; em todos os ensaios, a preparação do ambiente “salão” era um momento divertido.
Corpo minado é um espetáculo de pesquisa continuada, que pretende costurar histórias de mulheres pretas entrelaçando seus passados, presentes e futuros. Apresentar diversos pontos de vista sobre a vivência dessas mulheres é crucial para intensificar a produção de saberes. Audre Lorde (2019) cita a importância de romper com silêncios falando abertamente sobre desejos e sonhos como prática de liberdade.
Memória
Segundo o dicionário Oxford Languages, a memória é definida como faculdade de conservar e lembrar estados de consciência passados e tudo quanto se ache associado a isso. A linha da história reservada para pessoas que não pertencem ao círculo da branquitude, atingidas pela reprodução e produção de imagens de controle (isto é, as formas como pessoas não-brancas são representadas midiática e historicamente) coloca principalmente as mulheres pretas em situação de corpos subalternizados. Tencionar a reconstituição de lembranças afetivas felizes do ser e estar no mundo é construir pontes de narrativas decoloniais, como defende o sociólogo Stuart Hall (2006, p. 71): “a modelagem e remodelagem de relações espaço-tempo no interior de diferentes sistemas de representação tem efeitos profundos sobre a forma como as identidades são localizadas e representadas”.
Em uma das cenas construídas por Jaqueline Andrade em Corpo minado, a atriz interrompe a quarta-parede e narra sua trajetória artística atrelada a memórias do seu crescimento no
território da Maré. Com isso, abre-se uma janela através da qual o público mergulha na produção de imagens reais, a partir da perspectiva de um corpo que fala e se inscreve na história sob sua própria égide.
Vale salientar que a elaboração de saberes carregados por pessoas pretas não se restringe apenas à oralidade. Esse pensamento romântico, arraigado em boa parte da literatura brasileira, objetifica e enfraquece outras configurações de linguagem. Leda Martins propõe essa reflexão no livro A cena em sombras. Nele, a autora discorre sobre a problemática de uma única ótica vigente, sobretudo na construção do teatro brasileiro: “um dos pontos principais da A cena em sombras é que ele ressignifica o termo negro e ele tenta matizar as possibilidades de se construir conceitualmente o que seriam as potencialidades do teatro negro” (MARTINS: 2019, s/p.)2
O teatro negro contemporâneo vem contribuindo de múltiplas formas para a cena artística e cultural do Brasil. A cidade do Rio de Janeiro é o lugar a partir do qual eu posso observar que as práticas teatrais estão cada vez mais inclinadas aos estudos epistemológicos. Garantir a existência de signos, conhecimentos, tecnologias, territórios, é distribuir infinitas possibilidades de contar histórias, em especial do ponto de vista de quem domina seu próprio lugar de fala (RIBEIRO: 2017). Portanto, a ideia do lugar de fala é fornecer visibilidade a indivíduos cujos pensamentos foram invisibilizados ou ignorados no decorrer da vida. Os questionamentos provocados por produções cênicas como Corpo minado colocam os sujeitos em situação de reelaboração do seu próprio corpo no mundo.
2 Entrevista de Leda Maria Martins para a Literafro - TVUFMG. Ela é poeta, congadeira, escritora, ensaísta e pesquisadora nos campos da literatura, da performance e do teatro.
BIBLIOGRAFIA
BUENO, Winnie. Imagens de controle: um conceito do pensamento de Patricia Hill Collins. Porto Alegre: Zouk, 2016.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016. EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017. ----. “Escrevivências da afro-brasilidade: história e memória”. In: Releitura. Belo Horizonte: Fundação Municipal de Cultura, nov. 2008, n. 23. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. LORDE, Audre. Irmã outsider: ensaios e discursos, 1984. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
MARTINS, Leda M. “Performances da oralitura: corpo, lugar da memória”. In: Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras. Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul, 2003, n. 26, pp. 63-81. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/letras/article/view/11881/7308 ----. Entrevista ao canal Literafro (YouTube). TVUFMG, Minas Gerais, 2019. Disponível em: https://youtu.be/ VGbsmT0L2Pk
RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017. SANTOS, Boaventura de Sousa. Construindo as Epistemologias do Sul: Antologia Essencial: Para um pensamento alternativo de alternativas. Buenos Aires: CLACSO, 2018.
SILVEIRA, Raquel Mariane da. “Entre o eco e a ressonância vozes femininas em becos da memória”. In: Revista Crioula. São Paulo: USP, 2019, n. 23. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/crioula/article/ view/156936/154930
SOUSA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro em ascensão social. Rio de Janeiro: Edição Graal, 1983.