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Editorial
de Andrade já observava: “se cada um fizer também das observações e estudos pessoais a sua gramatiquinha muito que isso facilitará pra daqui a uns cinquenta anos se salientar normas gerais, não só da fala oral transitória e vaga, porém da expressão literária impressa, isto é, da estilização erudita da linguagem oral”. De fato, muitas das contribuições de Mário foram absorvidas pelo chamado “registro culto” da língua; outras se tornaram marcas de um estilo pessoal, sem alcance capaz de modificar usos gerais. Cabe destacar: os modernistas tratavam de combater o eruditismo e abrir-se para o que circulava fora dele, na fala cotidiana como na poesia e na prosa populares e locais. Ombreando com Mário, Oswald falava da “contribuição milionária de todos os erros”. Por outro lado, considere-se: entre a rigidez da norma e sua dispersão, interpõem-se hábitos, trocas interregionais e locais, geracionais e de classe social que forçam tanto atitudes de mudança quanto necessidades de conservação de padrões. Destaquem-se alguns exemplos relacionados a um possível gênero neutro na língua portuguesa: 1) a mera mudança de um substantivo masculino por seu correlato feminino implica apenas uma troca de sinais, sem que se deixe de englobar em uma só designação as diferenças entre gêneros no interior de um determinado grupo (os/uns alunos, as/ umas alunas); 2) temos frequentemente encontrado a mudança de um substantivo ou adjetivo sem que se mude o artigo a ele ligado. Assim, “os amigues” permanece no masculino; encontram-se também ocorrências de artigo que substituem as/os por “es amigues”. Porém, nada garante a sua assimilação pela língua. É conveniente lembrar que não falamos inglês, onde os artigos são neutros porque a flexão de gênero está no substantivo ou adjetivo; 3) a força do hábito pode provocar situações nas quais um parágrafo apresente um registro que não se mantenha em um parágrafo seguinte de um mesmo texto; 4) haverá problemas de concordância de gênero, caso, por exemplo,
artigos, pronomes, substantivos e adjetivos não forem igualmente mudados; 5) ambiguidades do tipo “modos de ser solidárias” obrigam à verificação de contextos: se o adjetivo se referir a modos, há discordância.
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É possível que enunciados do tipo “todos e todas” se consagrem, assim como o habitual “senhoras e senhores”. Mas cabe também dizer que, além da possibilidade, comumente apontada, do espelhamento feito pela língua a opressões de qualquer ordem, há o aspecto da economia linguística, que leva ao uso do masculino para designar todos os gêneros. Questões ideológicas coexistem com problemas de outras ordens. Em qualquer caso, é necessário tomar como problemáticas as relações da língua com a cultura, da gramática e o que se supõe romper com ela. Vale lembrar Foucault: a língua atua muito mais pelo que nos obriga a dizer do que pelo nos liberta. E nascemos imersos nela.
“Aberturas” continua introduzindo todas as seções de nossa revista; e agrupa os trabalhos da Iniciação Científica da Direção Teatral. Priscila de Barros Cipriano abre a seção com sua pesquisa sobre as mulheres que nomeiam as ruas da cidade do Rio de Janeiro; em seguida, Isadora Giesta apresenta uma série de relatos cotidianos que têm início com um fato ocorrido na rua de sua casa. Nessa reunião de relatos e de observações registrados durante o isolamento desencadeado pela Covid-19, Isadora propõe-se pensar uma performance do cuidado. Priscila e Isadora trazem a performance como ferramenta de investigação de problemas de natureza social.
Bernardo Pimentel e Desirée Santos reforçam a potência da performance para visibilizar o debate identitário. Ele propõe uma reflexão a partir do trabalho da artista brasileira Priscila Rezende, considerando os aspectos estéticos, políticos, históricos e sociais que cercam a produção. Ela apresenta uma análise sobre os procedimentos adotados na construção da dra-
maturgia do espetáculo Corpo minado (2018), do Grupo Atiro. Este é um ponto de partida para abordar o teatro negro contemporâneo, evidenciando o “performar a memória” como método de investigação e de reconstrução da cena teatral.
Hugo Bernardo Souza e Pedro Barroso Mantel falam dos desafios que a pandemia trouxe à cena teatral. Hugo analisa como o Coletivo Bonobando lida com a necessidade de reinvenção artística que este período impõe, uma vez que “o vírus não é democrático”. Pedro partilha o processo de criação do espetáculo autoficcional Um avô que era sonho (2020), que ele mesmo escreveu e no qual atuou. O trabalho de Pedro traz à tona os desafios de criação de um “espetáculo virtual”, analisando o processo desde a elaboração da dramaturgia até os dispositivos estéticos implicados.
Por fim, Nicolas Alexandria reflete sobre as possibilidades de pensar o trágico na cena contemporânea, valendo-se das questões políticas que envolveram a produção do filme O leão de sete cabeças, de Glauber Rocha. Esta narrativa fílmica é pensada no arranjo simbólico como um ponto de intersecção problemático entre teatro político, história e cinema.
Em “Passagens”, os doutorandos do PPGAC Sidnei Cruz, Gabriel Morais e a mestranda Mariah Valeiras apresentam recortes das reflexões sobre a pesquisa que desenvolvem no programa. A Sidnei interessa investigar José Agrippino de Paula e sua inserção na contracultura; apresenta, aqui, uma leitura do filme Hitler Terceiro Mundo (1968), um clássico do nosso Cinema Marginal. Gabriel procura aprofundar os estudos sobre o “teatro performativo autoficcional”, tema que desenvolveu em seu Mestrado, agora em articulações com o debate identitário acerca das masculinidades desenhadas e impostas ao paradigma social contemporâneo. Mariah endereça uma carta ao performer Cassils, comentando o trabalho do artista em articulações com o mote teórico da pesquisa em desenvolvimento. Mariah traça
este caminho dialógico porque entende a epistemologia e a estética da transgeneridade como chaves para pensar sobre força, arte da performance e criação de corpo.
O intuito deste número é refletir, sobretudo, a respeito dos marcadores sociais e suas relações com o campo expandido das produções em arte. É nítido o aumento de interesse dos estudantes em pensar práticas que tensionem as movências de gênero, sexualidade, raça, etnia e classe. Destaca-se a forte influência da performance na edição, trazendo contribuições não só de leituras, mas de experiências práticas dos próprios discentes. Observem-se os cruzamentos temáticos entre as seções e os diferentes segmentos de pesquisadores. Os artigos de Priscila, Isadora, Bernardo e Mariah estabelecem uma conversa potente com a entrevista de Eleonora. As práticas expandidas, com destaque para pesquisas autoficionais e as relações entre o teatro e a performance têm, nos artigos de Gabriel e Pedro, defesas de uma cena que parte do pessoal, mas sem cair no risco da elaboração de um espaço destinado ao culto de si. O artigo de Luiza Leite detalha e discute a expansão das textualidades, os novos sentidos que giram em torno das publicações e os modos de fazer escrita que estão, constantemente, reelaborando-se. Há uma ponte entre o texto de Luiza e Mariah, cujo artigo é uma carta. Saltam aos olhos as menções feitas à pandemia e todo o seu impacto na produção artística.
Os editores confessam o prazer que, enquanto leitores, experimentaram na fruição de todos os textos.
Sempre é tempo de peste, quando são os loucos que guiam os cegos.
William Shakespeare