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O trágico na cena contemporânea: intersecções entre teatro, história e cinema

Nicolas Alexandria*

Trataremos, neste trabalho, de possibilidades de pensar o trágico na cena contemporânea, tomando como ponto de diálogo as questões políticas que envolveram a produção do filme O leão de sete cabeças, de Glauber Rocha, indicando, nesta narrativa fílmica, um ponto de intersecção problemático entre teatro político, história e cinema. Temos, como horizonte de análise, a utilização da linguagem simbólica e algumas aproximações possíveis, que fazem desse filme um ponto de inflexão importante. Estaremos próximos das questões políticas preconizadas pelo teatro de Brecht (1967), ao evidenciar, por exemplo, a peça Mãe Coragem e as indicações da relação entre teatro e cinema de Eisenstein (2002).

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Palavras-chave: trágico – teatro político – cinema

* Orientação: Carmem Gadelha.

O objetivo deste breve texto é tratar, dentro da obra de Glauber Rocha, do filme O leão de sete cabeças, tomando como ponto de diálogo as questões políticas que envolveram a sua produção, bem como o tema principal: o processo de colonização tardia da África e sua, digamos, “semente”. Filmado no antigo Congo Belga, esta narrativa fílmica é um ponto de intersecção para pensarmos sobre teatro político, história e cinema.

Temos, como horizonte de análise, a utilização da linguagem simbólica e algumas aproximações possíveis que fazem desse filme um ponto de inflexão importante em sua relação com o teatro político, sendo ele o único filme nacional, com locações documentais na África, na década de 1960, que parte de um acontecimento fundamental da história africana: o aprisionamento e a morte do líder de esquerda Patrice Lumumba, em termos políticos, seu assassinato.

Do ponto de vista da linguagem artística, O leão de sete cabeças aproxima-se das questões políticas preconizadas por Brecht, apresentando possibilidades interessantes para tratarmos o tema do “estranhamento” a partir de pontos referenciais da História da África se tomarmos, por exemplo, a peça Mãe Coragem, para problematizar algumas questões que envolvem a África como uma invenção epistemológica de europeus, nos termos de Mudimbe, segundo a visão de Regiane Motta (2018, p. 81). Vejamos:

Mudimbe apresenta a ideia de África como uma invenção epistemológica na área de ciências sociais, defendendo que o conhecimento sobre o continente seria um conhecimento estritamente controlado por procedimentos específicos elaborados por europeus, que ele denomina gnose.

Nesse sentido, estamos levando em consideração o “afrocentrismo” e o conceito de “translocalidade” como “fenôme-

nos que resultam de múltiplas circulações e transferências com o movimento de pessoas, produtos e ideias, que cruzam fronteiras geográficas, culturais ou políticas” (MOTTA: idem, p. 73).

Portanto, o cinema aqui pode ser visto como uma prática artística africana em diálogo com o não-africano prenhe de “translocalidade”, mas em contiguidade com a linguagem teatral, mesmo que as especificidades, tanto do teatro como do cinema, não rompam com as suas formas de produções artísticas, já discutidas por Eisenstein (2002).

Brecht e a questão do “estranhamento”

Brecht acompanha a expansão da ideia de teatro, deslocada da literatura dramática numa ampliação que dá especificidade à encenação. Portanto, ele faz parte do acúmulo do debate da teoria teatral vinda desde Stanislavski e o surgimento da encenação. Dentro deste processo de instituição do teatro dialético, a peça Mãe Coragem tem um destaque em relação à manutenção de uma estrutura clássica numa perspectiva épica.

Mãe Coragem tematiza dialeticamente as agruras da guerra e a perda filial, demonstrando uma perspectiva negativa, não edificante, da procura da sobrevivência com o comércio para os regimentos em marcha. Vemos aqui um processo fundamental da escrita dialética de não separar a vida privada da vida pública.

A estratégia de evidenciar a contradição – para provocar o estranhamento, deslocar a compreensão possível de uma leitura dramática a favor de uma percepção racional e consciente – está presente na construção da personagem Mãe Coragem, à medida que as mazelas que a tomam são produtos das relações sociais nas quais está imersa e não por responsabilidade exclusiva das suas ações.

O que guia a nossa leitura não são as características morais da Mãe Coragem ou seu comportamento psíquico, mas a procura do vínculo social da personagem; ver o circuito de relações em que ela está inserida e as suas questões ideológicas.

Chamo atenção para o fato de Brecht também ser um autor que sofreu influência do teatro político de Erwin Piscator. Este encenador alemão foi um dos principais colaboradores de Brecht, incluindo na cena, já na década de 1920, outras linguagens como o cinema e a exploração de imagens. O que aparece agora como novidade foi experimentado no passado com muita eficiência.

Mas Brecht, justamente, deu novas dimensões ao cinema, inserindo-o na cena teatral. Inclusive porque aspectos de narrativa propriamente teatral dialogam com estruturas ligadas à montagem cinematográfica. Temos, no texto de Zuolin (2008), questionamentos interessantes para refletirmos sobre a grande contribuição de Brecht ao teatro contemporâneo, através do efeito de “estranhamento”, que, como sabemos, busca evidenciar e desmontar os efeitos de ilusão e o mecanismo de construção da linguagem teatral.

A percepção do efeito de “estranhamento” chegou até Brecht, segundo este texto, através do teatro chinês. Procedimento que encontramos explicitamente utilizado por Glauber Rocha no filme O leão de sete cabeças.

É importante chamarmos atenção, aqui, para um diálogo já posto, na década de 1920, na relação entre teatro e cinema, por Eisenstein (op. cit.), quando nos propõe o relevo da montagem como uma ação que já estava no teatro. Desfaz-se o equívoco de pensarmos o cinema como novidade capaz de tomar o lugar do teatro como linguagem específica, pois o cinema é uma montagem da montagem.

O efeito de “estranhamento” aproxima estas duas perspectivas de trabalho teatral, mas há uma singularidade que deve

ser respeitada, segundo o autor. Nesse sentido, o teatro chinês e o teatro dialético de Brecht têm estéticas próprias; e tanto um como outro continuam ancorados, numa compreensão interessada, em determinações históricas do Oriente, no primeiro caso; e do Ocidente no segundo.

A experiência da morte, da miséria, o espetáculo da hipocrisia da sociedade burguesa, a ostentação da riqueza, as demonstrações de poder bélico, a desordem social, a derrota na guerra, a queda da Alemanha, a desmedida vergonha das atrocidades da guerra são temas que partem da ordem do trágico e afirmam-se como pontos de reflexão para a produção do teatro dialético. É este aspecto que pretendo explorar e desenvolver em trabalhos futuros.

Converter o próprio uso das convenções teatrais num caminho contrário ao aristotélico, ou seja, tratar a emoção de outra perspectiva, incluindo-a como ponto de referência reflexiva, crítica e dialética é repensar da tradição inaugurada pela poética brechtiana.

Vejamos um excerto: “A estética, este legado de uma classe então depravada e parasitária, encontrava-se em estado tão lamentável que um teatro que escolhesse livrar-se do thaëter logo lucrava, tanto em reputação como em liberdade de ação” (BRECHT: idem, p. 182).

Enfim, pela leitura de Mãe Coragem, compreendemos que a vida, nas suas contradições relacionais, é muito mais atípica do que propõe uma leitura dramática que procure tipicidades, deixando claro que a nossa função/existência social coloca-se definitivamente em contradição com as nossas subjetividades individuais.

O leão de sete cabeças

Há referências de que Glauber fez diversos pronunciamentos revelando influência de Bertolt Brecht e Sergei Eisenstein para realização do seu filme, por exemplo, em Xavier (2004). Nesse sentido, O leão de sete cabeças faz parte de um projeto de vocação revolucionária, que pretende mostrar o confronto geopolítico do capitalismo que envolve conflitos étnicos, de classe e transnacionais.

Temos a primeira obra fílmica tricontinental composta nesse trabalho, montado de forma emblemática, que retoma os investimentos experimentados em O dragão da maldade e Terra em transe. Diz Glauber: “Planejo filmar O leão de sete cabeças e A morte de D. Quixote na Espanha. Penso em abandonar esses projetos para filmar América […]” (ROCHA: 2004, p. 162).

Felizmente o filme foi roteirizado e o projeto não foi abandonado. Conta-nos Glauber (idem, p. 164):

sentado numa latrina, escrevia planos de O leão de sete cabeças e descobri que escrevia os planos como um compositor escrevendo uma partitura. […] A montagem é uma dialética de estrutura comparada à poesia. Não é o clima, mas a montagem das palavras que são a superestrutura do clima.

As análises especializadas chamam atenção para o fato da interpretação de O leão de sete cabeças ser guiada por uma proposta do teatro dialético de Brecht e a sua mise en scène explorar a linguagem teatral, sobretudo composições do teatro de bonecos (SILVA, s/d).

Por outro lado, ao recorrer a uma proposta de “estranhamento”, de problematização da composição narrativa em planos não harmônicos e ao fundir ficcional e documental num mesmo tratamento artístico, o recorte político está sobremanei-

ra assinalado em O leão de sete cabeças, que nos provoca a não esquecermos compromissos críticos e mudança social reivindicados pelo teatro político de Brecht.

Mas a única formulação mais diretiva só pode ser feita pela fala de Glauber: “O leão de sete cabeças é sobre as lutas de libertação da África contra o colonialismo imperialista, sobretudo o português, o francês e o inglês” (ROCHA: 2014, p. 371).

Podemos também nos espelhar nessa historicidade capturada por esse filme, que faz pulsar dentro de nós indignação com a geopolítica do capital – ainda hoje. Contudo, nos instiga a discutir de forma problemática e translocal a pedagogia do teatro, a produção cinematográfica e a história da África numa chave variada de referências.

Bertolt Brecht, Glauber Rocha e Serguei Eisenstein são intelectuais e artistas interessantes para a oportunidade de inserção de temáticas africanas, portanto de exploração absoluta, em chaves “translocais”, nos termos de Mundimbe (2013). Trata-se da formação de novos encenadores e cineastas em exercício no cinema alimentado pelo teatro e no teatro alimentado pelo cinema, em busca da construção de um olhar comprometido com a África em termos não eurocêntricos, mas “translocais”. Portanto, está em jogo uma aposta na construção de conhecimentos postos lado a lado: o hoje chamado “diálogo Sul/ Sul”, numa dimensão decolonial. O trágico e o épico se encontram e tensionam na cena contemporânea.

BIBLIOGRAFIA

AMSELLE, Jean-Loup. “Etnias e espaços: para uma antropologia topológica”. In: AMSELLE, Jean-Loup & M´BOKOLO, Elikia. Pelos meandros da etnia: etnias, tribalismo e Estado em África. Lisboa: Edições Pedago, 2014. BRECHT, Bertolt. Teatro dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. MOTTA, Regiane Augusto. “Percursos translocais: Valentim Mudimbe e o Pós-Colonial”. In: CARVALHO FILHO, Silvio de Almeida; NASCIMENTO, Washington Santos. Intelectuais das Áfricas. Campinas: Pontes, 2018. MUDIMBE, Valentim Y. A invenção de África. Gnose, Filosofia e Ordem do Conhecimento. Luanda: Edições Pedago, 2013. EISENSTEIN, Serguei. “Do teatro ao cinema”. In: A forma do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004. SILVA, Humberto Pereira da. Glauber e seu “O leão de sete cabeças”. Acessível em: <http://www.filmespolvo.com.br/site/artigos/convidado/1234>. Acesso em: 21 ago.2020. XAVIER, Ismail. “Prefácio”. In: ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. ZUOLIN, Huang. Um acréscimo ao texto de Brecht: o efeito de estranhamento na interpretação do teatro chinês. UFG: Curso de Direção Teatral, 2008.

— VENTOS

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