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Coletivo Bonobando: reinvenção artística durante a crise do coronavírus
Hugo Bernardo Souza*
No Brasil, nos últimos anos, é possível observar um desmonte das políticas para o campo das artes e cultura. Apresenta-se, como dado novo, uma ameaça que atinge todas as instâncias da vida social – o coronavírus. Este vírus nos obrigou a adotar medidas de distanciamento social, acarretando a paralização das atividades artísticas e culturais. O presente estudo tem como objetivo analisar o cenário instaurado pelo coronavírus e os impactos provocados nas diversas esferas que atravessam o processo coletivo de criação artística de um grupo teatral: o Coletivo Bonobando.
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Palavras-chave: Coletivo Bonobando – criação coletiva – coronavírus
* Orientação: Adriana Schneider Alcure. Bolsa PIBIC / CNPq / UFRJ.
A cena do Coletivo Bonobando é de juventude, de uma geração que vem discutindo e tensionando as desigualdades sociais, raciais e de gênero. Estas cenas amplificam as vozes, as corporeidades, as ideias e as expressões, criando dissensões que desestabilizam, de forma necessária e urgente, o sensível hegemônico. Estas outras cenas apresentam e legitimam outros modos de vida, revelando as hierarquias, exclusões e invisibilidades das experiências sociais. As questões trazidas pelo Coletivo Bonobando e de outros grupos com características semelhantes problematizam, inevitavelmente, os modos de produção e criação nas artes. (ALCURE: no prelo).
Vivemos tempos sombrios. Está em curso um processo contínuo e planejado de desmonte de programas, projetos e ações decorrentes do descaso das autoridades em relação às artes e à cultura no Brasil. A nova geração de agentes culturais, vinda das periferias, vinha redesenhando a cena cultural carioca. São grupos como o Coletivo Bonobando, que se originou na Arena Carioca Dicró, na Penha, Zona Norte do Rio de Janeiro, com forte atuação territorial descentralizada; ou a Cia Marginal, oriunda da Maré, entre outros. As gestões governamentais atuais são responsáveis diretas pela descontinuação das ações que vinham possibilitando a esses sujeitos específicos o processo de ascensão e de acesso aos locais não ocupados anteriormente. Também a atual gestão do governo federal elegeu “a cultura como inimiga, em conjunto com a educação, as ciências, as artes, as universidades públicas e os temas relativos às chamadas minorias, em especial às manifestações de gênero, afro-brasileiras, LGBT e dos povos originários” (RUBIM: 2020, p. 3).
Neste momento, há uma luta contra o sucateamento da cultura e pela sua democratização em todas as suas formas de manifestação, em especial, a arte negra e periférica. A reação de-
pende, antes de tudo, de uma organização daqueles que foram diretamente afetados.
É preciso insistir nos espaços de encontro, mesmo que o retrocesso permaneça tempo suficiente para causar estragos irreparáveis. Entretanto, não há dúvida de que o espaço aberto pela consciência e ação destes outros modos de vida não retornará para a invisibilidade. É preciso estar em movimento (ALCURE: no prelo).
Em 2020, porém, temos um novo adversário – o coronavírus. A pandemia instaurada pela Covid-19 tomou proporções mundiais e suas consequências abalaram todos os países econômica, social, psicológica e financeiramente.
Sabemos que o teatro, enquanto arte coletiva, só se realiza em sua totalidade pelo encontro vivo entre os artistas e o público. Os espaços teatrais foram os primeiros a fechar e, certamente, serão os últimos a voltar, seguindo as recomendações dos órgãos de saúde. Todas as apresentações, temporadas, circulações, todo o circuito criativo e produtivo, responsáveis pela maior parte do sustento financeiro dos artistas e demais profissionais foram cancelados sem aviso prévio e sem previsão de retorno.
Lívia Laso – multiartista e integrante do Bonobando – detalha esse momento:
Nos dois meses que antecederam a pandemia, eu estava trabalhando bastante. Fiz duas peças com outros coletivos periféricos e fazia três shows por semana, então o maior impacto foi financeiro porque artista autônomo precisa se movimentar para ter renda. E aí com a quarentena não poder sair de casa impossibilita a busca pelo sustento.
A esmagadora maioria dos integrantes do Bonobando são moradores de territórios periféricos. Estes espaços, historicamente, sempre foram reféns da falta de políticas públicas e já lutavam para sobreviver. Em favelas e periferias, há uma série de direitos básicos que não são assegurados, como, por exemplo, distribuição de água, rede sanitária e alimentação. Em consequência destes e outros descasos, corpos pobres e negros – fortemente presentes nesses territórios – são os que mais tombam por Covid-19.
Diante da impossibilidade do encontro presencial e entendendo que o poder público não iria implementar medidas de socorro ao setor artístico-cultural, a sociedade civil e a classe artística uniram-se com o objetivo de minimizar os efeitos da pandemia em locais onde o Estado se nega a chegar.
A partir deste momento, outras formas de existência têm sido pensadas como uma forma de reduzir os impactos da Covid-19 na economia criativa. Iniciaram-se campanhas de arrecadações de fundos e alimentos destinados aos trabalhadores da arte em situação de maior vulnerabilidade, como por exemplo, a campanha “Maré diz não ao Coronavírus” realizada pelas Redes da Maré1 .
Realizei, então, entrevistas com os artistas do Coletivo Bonobando para entender como vinham enfrentando financeiramente o período de quarentena. As atrizes Vanessa Rocha e Járdila Baptista, graduandas em Artes Cênicas pela UNIRIO e participantes do projeto de extensão “Teatro em Comunida-
1 Redes da Maré é uma instituição da sociedade civil que tem por objetivo garantir políticas públicas efetivas que melhorem a vida dos moradores das 16 favelas da Maré.
des”2, ressaltaram a importância do engajamento do corpo social universitário na atenuação desses impactos. Járdila aponta: “Esse ano, na impossibilidade de realizar trabalhos com teatro, me mantive com a bolsa que não foi cortada de um projeto da faculdade”. Vanessa complementa: “Marina lutou muito pro projeto continuar funcionando. A gente vem dando aula virtualmente. Quatrocentos reais estão rolando e é com esse dinheiro que vou me sustentando. Não tenho mais trabalhos extras nem as apresentações que fazia”.
O uso de plataformas de financiamento coletivo foi essencial na disseminação dessas ações de resistência, que tiveram como foco inicial o provimento básico e rápido de insumos para os indivíduos mais necessitados de seu movimento.
Fortalecendo essa rede, algumas ações foram implementadas como realizações independentes de festivais virtuais, como por exemplo, a Muda Picadeiro Digital, realizado pela Muda: Outras Economias, onde foi possível financiar pequenas ações artísticas, além de distribuir cestas de alimentos orgânicos para os artistas participantes do festival.
Diante destes impasses, é possível observar um crescente movimento de migração do setor teatral para as plataformas virtuais. Transmissões ao vivo, apresentações de espetáculos e performances, cursos, ensaios e reuniões vêm sendo cada vez mais comuns nesses espaços. Na quarentena, a união entre arte e tecnologia possibilitou energizar um público emocionalmente abalado. As atividades artísticas realizadas remotamente “foram saudadas como canais de escape fundamentais da solidão,
2 Programa de Extensão do Departamento de Ensino do Teatro da UNIRIO, coordenado por Marina Henriques (membro do corpo docente da UNIRIO e Doutora em Artes Cênicas), que promove a produção de conhecimento em teatro, a prática artística e pedagógica entre a Escola de Teatro e moradores de periferias.
como alimento da alma, como alento e esperança de tempos e vidas sãs” (CALABRE: 2020, p. 11).
Antes já era possível perceber a utilização de tecnologias em serviços culturais. Uma pesquisa desenvolvida por Ricardo Meirelles e João Leiva (CALABRE: 2020, p. 12.) relata que, em 2017, 67% dos brasileiros já eram usuários de internet. Com isso, nota-se a potência do uso da internet como canal de divulgação dos próprios trabalhos. Segundo Lia (2020, p.12), “é um indicador interessante do uso massivo da tecnologia de informação na busca de distribuição da produção mais democrática, porém, não tenhamos a ingenuidade de pensar que esse uso se dá em condições tecnológicas similares”.
De acordo com a pesquisa feita pelo Comitê Gestor da Internet3, em 2018, 58% dos domicílios no Brasil não tinham computadores e 33% não possuíam internet. As dificuldades vão desde não conseguir comprar um computador até a incapacidade de pagamento dos serviços de internet de qualidade. Consequentemente utilizam a internet em ferramentas mais reduzidas como celulares e acesso de dados limitados. Segundo estudo realizado pela TIC: esse déficit é notadamente recorrente entre as classes “D” e “E”.
Diante do cenário que se apresenta, o Coletivo Bonobando vem desenvolvendo estudos sobre as possibilidades oferecidas pelas ferramentas virtuais para criação da dramaturgia e montagem do seu próximo projeto, desta vez, à distância. Thiago Rosa, ator e estudante de dança, aponta certa resistência quanto ao novo modo de produção:
3 Ver: https://www.brasildefato.com.br/2020/06/04/com-aulas-remotas-pandemiaescancara-desigualdade-no-acesso-a-educacao-de-qualidade. Acesso em: 8 de dezembro de 2020.
Fazer performance online não é linguagem que domino. Eu prefiro trabalhar em contato direto com a plateia. Estou treinando muito sozinho e acabo sendo afetado por isso. As colaborações têm sido feitas à distância. Agora, o espaço e o trabalho são mais individualizados. É uma coisa que preciso aprender a lidar.
O cenário instaurado pelo coronavírus coloca em xeque nossos sonhos e objetivos dentro deste lugar onde estamos impossibilitados de atuar. Em meio à crise, se escancara a insuficiência de políticas públicas para todos os setores da sociedade: saúde, segurança, educação, arte, cultura etc. Mas, sobretudo, evidencia-se a precariedade dos recursos oferecidos aos territórios periféricos. O vírus não é democrático, como se costuma dizer. A Covid-19 está mais facilmente presente nas favelas, onde não há saneamento básico, onde é frequente a falta de água, onde não existe assistência hospitalar adequada, onde nem mesmo a relação entre a quantidade de habitantes e cômodos por casa permite o isolamento recomendado. Testemunhamos um cenário doloroso onde existem os que são a todo custo protegidos e aqueles que não são considerados dignos de proteção contra doenças e morte, “a desigualdade social e econômica garante que o vírus discrimine”4 (BUTLER: 2020, p. 62, tradução nossa). Conclui-se que, além dos obstáculos como a ausência de serviços de qualidade, da resistência do coletivo acerca dos novos modos de produção e da incerteza do que está por vir, apresenta-se como maior, mas não novo obstáculo: a luta pelo direito de sobreviver.
4 No original: “La desigualdad social y económica asegurará que el virus discrimine”.
BIBLIOGRAFIA
ALCURE, Adriana Schneider. “Outros modos de vida e cena no teatro contemporâneo carioca”. In: ANDRADE, Clara de; GUENZBURGER, Gustavo; PENONI, Isabel (ed.). Cenas Cariocas: modos, políticas e poéticas teatrais contemporâneas. Rio de Janeiro: Editora Garamond. No prelo. BUTLER Judith et al. Sopa de Wuhan: pensamiento contemporáneo en tiempos de pandemias. ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020. Disponível em: https://bit.ly/sopadewuhan CALABRE, Lia. “A arte e a cultura em tempos de pandemia: os vários vírus que nos assolam”. In: Extraprensa. São Paulo, 2020, n. 2, v. 13, pp. 7-21. RUBIM, Antônio Albino Canelas. Atuação político-cultural da gestão Messias Bolsonaro. Cidade do México: Alteridade, 2020. MARTINHÃO, Maximiliano Salvadori (coord.). TIC Cultura: Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos equipamentos culturais brasileiros. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2019.