ANO 2 | Nº 7
NOVEMBRO-DEZEMBRO / 2018
ISSN 2526-4079
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R E V I S T A
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N O V A
P O L Í T I C A
R$ 20,00 O valor arrecadado será revertido para a produção da próxima edição. Leia também em: cidadanista.com.br
Novas narrativas
Jardim Lapenna
Jornalismo da quebrada
Empreendedor social
Um plano para as pessoas
As histórias de Tony
com VICTORIA ROMAN
por THIAGO PAVÃO
por CAROL VILAR
Entrevista: Mauro Neri
Artistas ativistas
Renovação legislativa
"Dos loucos, o mais lúcido"
Design para mudar o mundo
A invasão progressista
por IVAN ZUMALDE
por RED
por VINCIUS GOMES
Movimento em rede
Charge
Artigo internacional
Um pacto pela Democracia
Refletir é preciso
A vida depois das redes sociais
por PEDRO KELSON E FLÁVIA PELLEGRINO
por GUTO LACAZ
por GEERT LOVINK
CONHEÇA A RAIZ MOVIMENTO CIDADANISTA EM RAIZ.ORG.BR
CARTA DO EDITOR | por IVAN ZUMALDE - contato@cidadanista.com.br
O 2019 QUE QUEREMOS Entre o otimismo e o plano de governo, fiquemos com a esperança em nós mesmos.
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esperança faz parte do jogo, da vida e da política. Assim deve ser e assim seguirá. Com o país prestes a inaugurar um novo ciclo presidencial, pesquisas apontam que o povo brasileiro tem esperança no próximo governo. É provável – e justo – que quase 100% das pessoas queiram que o governo seja bom e a vida melhore, salvo alguns masoquistas e oportunistas de plantão. Mas é preciso separar otimismo de plano de governo. Ainda mais quando o plano é incerto e os projetos, no mínimo, contraditórios, seja no nível econômico quanto na visão de país. Resta esperar 2019 e lembrar que o otimismo vem junto com o desejo das pessoas em pular as sete ondas na virada ou ainda na vontade de trocar o velho pelo novo. O clima festivo tem forte influência nessas pesquisas de opinião. Seja como for, entre pobres ou ricos, todos querem melhorar de vida, mesmo que o conceito e o entendimento de "bom" para uns possa ser o "ruim" para os outros. Vale lembrar ainda que a torcida pelo dar certo também não inclui os métodos a serem empregados, nem os benefícios ou desvantagens para cada parte. Certa dose de ingenuidade e falta de informação também corroboram para um cenário
de querer ganhar o jogo com a camisa do adversário. Resumindo, é melhor ser otimista, mas com os olhos e corações nas ruas e não só em Brasília. No poder executivo, Bolsonaro é o presidente eleito e irá governar. O ano novo vai chegar e a esperança de ontem vai virar o dia a dia, onde a esquerda fará oposição, a direita será governo e a história será escrita. No parlamento, mesmo com a renovação das cadeiras, o otimismo infelizmente ainda não é a regra. Cabe ao cidadão fazer o de sempre, fazer política nas ruas, nos lares, no trabalho. Fazer valer o poder popular emergir fora das eleições e construir não só resistências, mas também redes de solidariedade popular, movimentos culturais, construções coletivas e todas as formas de juntar a esperança em torno das realidades e urgências cotidianas. Para os 99%, o poder vai emanar das bases, em uma reconstrução legítima das minorias feitas maiorias, onde haja respeito à diversidade, a natureza e onde todas e todos possam comungar das mesmas oportunidades e se amparar na mesma justiça. Esse é o ano que queremos, repleto de nós mesmos feito por nós mesmos. Um feliz 2019 igual a todos os seguintes: feliz para todos nós.
CIDADANISTA
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SUMÁRIO | Ano 2, nº 7 | novembro-dezembro 2018
08 Sumario NOTAS CIDADANISTAS
06_Frases: eleições 2018 07_Cartum: por Ferrão 08_Jornalismo e conteúdo periférico 10_Perfil: Tony Marlon 12_Plano de bairro Jardim Lapenna
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MOVIMENTOS
16_Artigo internacional: por Geer Lovink 22_Design e memes progressistas
CIDADÃO
28_REPORTAGEM ESPECIAL Renovação legislativa de esquerda
ENTREVISTA
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36_Entrevista com Mauro Neri
FRUTOS
44_Reafirmar a democracia por Flávia Pellegrino e Pedro Kelson
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EXPEDIENTE CONSELHO EDITORIAL: Célio Turino Ivan Zumalde Vitor Taveira
EDITOR:
Ivan Zumalde (MTB 29263)
COLABORARAM NESTA EDIÇÃO:
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Flávia Pellegrino, Ivan Zumalde, Maria Carolina Balro, Murilo Martins, Murilo Mendes, Pedro Kelson, Susanne Sassaki, Thiago Fuschini, Victoria Roman e Vinicius Gomes
A revista Cidadanista é uma publicação independente e apartidária. Sua missão editorial é produzir conteúdo progressista visando a formação de uma frente de renovação política de esquerda no país. A publicação nasceu do movimento social Raiz Cidadanista e está alinhada com os valores Ubuntu, Teko Porã e Ecossocialismo. Para falar com a redação, envie um e-mail para contato@ cidadanista.com.br ou ligue: 11 983 166 642 – Todos os artigos e conteúdos veiculados nesta publicação refletem as opiniões de seus autores, e não necessariamente dos editores da revista Cidadanista ou da RAIZ Movimento Cidadanista. PARA ANUNCIAR OU FAZER SUA ASSINATURA CONTATO@CIDADANISTA.COM.BR
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FRASES | Eleições 2018
FRASES eleições 2018 “A comunicação é a alma. Se não está conseguindo falar a língua do povo vai perder mesmo. Falar bem do PT para a torcida do PT é fácil. Tem uma multidão que não está aqui que deveria ser conquistada" Mano Brown, rapper, em comício com artistas e aliados de Haddad na Lapa, centro do Rio, a cinco dias do 2º turno.
“Artistas, músicos, cineastas e formadores de opinião viram-se em um ambiente no qual ideais reacionários denigrem as tentativas de superar a desigualdade" Caetano Veloso, cantor, critica a campanha de Jair Bolsonaro (PSL) à Presidência da República em artigo para o jornal the New York Times
fotos: divulgação
"Constituição assegura a liberdade de ensinar, aprender e divulgar livremente o pensamento; o pluralismo de ideias está na base da autonomia universitária" Cármen Lúcia, ministra do STF, ao suspender ações policiais em universidades ordenadas por TREs às vésperas do 2º turno.
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“Só uma pessoa que não sabe o que é que significa uma mulher ganhar um salário menor que um homem e ter as mesmas capacidades, a mesma competência, ser a primeira a ser demitida, ser a última a ser promovida e, quando vai pra uma fila de emprego, pelo simples fato de ser mulher, não é aceita. Então, não é uma questão de que não precisa se preocupar. Tem que se preocupar sim” Marina Silva, no debate que reuniu oito candidatos à Presidência promovido em 17 de agosto pela Rede TV.
Cartum por FERRÃO
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Depositphotos
JORNALISMO | Conteúdo periférico
Novas narrativas
Em busca de um jornalismo mais plural. Iniciativas produzidas por coletivos das perifierias de São Paulo contam uma nova forma de ver os bairros
por VICTORIA ROMAN
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retrato das redações de jornais, revistas e TVs é excludente. E isso se manifesta nas pautas e conteúdos dos veículos de comunicação em todo o país. A grande maioria dos locais de trabalho que produzem conteúdo jornalístico é formado por pouca diversidade Mesmo que mais de 60% das vagas sejam ocupadas por mulheres, quase 80% dos colunistas dos grandes jornais são homens, retratando ainda uma grande concentração de opinião e poder masculino. Para ir contra isso e oxigenar as redações, surgem diversos coletivos para contar de maneira positiva as rotuladas periferias de São Paulo. Conheça quatro iniciativas que estão contando outras narrativas sobre as bordas da cidade.
Periferia em movimento
Sobre, para e a partir das periferias é que o coletivo de comunicação Periferia em Movimento tem como missão. A iniciativa foi criada por jornalistas do extremo sul de São Paulo que estavam incomodados com uma narrativa limitada e geralmente negativa sobre a realidade periférica. Desta forma, a equipe de três pessoas com a ajuda de colaboradores, busca contar a própria história e a luta por uma mídia mais plural e democrática. + INFO: periferiaemmovimento.com.br
Desenrola e não me enrola
Desenrola e não me enrola atua na veiculação de notícias sobre o cenário sociocultural das periferias de São Paulo. O principal objetivo é destacar um olhar positivo nas produções jornalísticas que mostram o melhor dos acontecimentos dentro das comunidades, como as ações de teatro e música. + INFO: www.desenrolaenaomenrola.com.br | desenrola.jornalismo@gmail.com
Alma preta
A Agência de jornalismo Alma Preta é especializada na temática racial do Brasil. Entre as produções da agência, existem reportagens, coberturas, colunas, análises e produções audiovisuais. Além disso, o portal fornece divulgação de eventos da comunidade afro-brasileira. O objetivo da agência é criar um novo formato de gestão de processos, pessoas e recursos por meio de um jornalismo independente e de qualidade. + INFO: almapreta.com | contato@almapreta.com
Nós Mulheres da Periferia
“Somos maioria. Somos minoria. Pobres, pretas, brancas, periféricas. Migrante, nordestina, baianinha, quilombola, indígena”, assim começa o manifesto do Nós Mulheres da Periferia. Formado por jornalistas moradoras de diferentes periferias da cidade de São Paulo. O principal objetivo do coletivo é disseminar conteúdos produzidos por mulheres a partir de mulheres. Tudo isso possui como fio condutor a intersecção de raça, classe, gênero e território. + INFO: contato@nosmulheresdaperiferia.com.br CIDADANISTA
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PERFIL | Líder comunitário
por MARIA CAROLINA BALRO Empreendedor social
Tony Marlon Ele tem personalidade, coloca na mesa o que pensa, se posiciona, é inquieto e nada conformista. Esse é Tony Marlon, morador do Campo Limpo, zona Sul de São Paulo.
"Eu nunca vi o meu sotaque, o meu cabelo ou alguém que se parece comigo narrando a minha história"
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esde que chegou em São Paulo, em 1998, Tony vem construindo uma trajetória baseada no direito de todos poderem contar suas histórias. Formado em Comunicação, ele é muito mais do que um jornalista. Ele é um empreendedor nato, apaixonado por criar espaços e saltos no imaginário para promover a mudança que quer ver na realidade. Melhor: a mudança que quer ver nas narrativas do mundo. Isso mesmo. Ele, assim como todos na periferia, está cansado de ver sua história ser contada por quem nem vive lá. “Eu nunca vi o meu sotaque, o meu cabelo ou alguém que se parece comigo narrando a minha história”, diz Tony. Uma de suas grandes inspirações foi o grupo de hip hop/rap Racionais MC’s. Quando chegou em São Paulo e ouviu as músicas dos Racionais, um dos grupos mais popular do Brasil, falando de onde ele morava, pronto, foi tudo o que Tony precisou para saber que não estava sozinho nessa jornada. “Os Racionais me deram uma identidade porque eu me identificava com a história que eles contavam. Antes, o meu imaginário era o que eu via sendo contado na televisão”, comenta. Outra figura importante na história de Tony Marlon é o projeto Arrastão do qual fez parte e foi lá que pode ampliar seu repertório imaginativo. “A gente só imagina futuros possíveis se ampliamos o repertório de futuros possíveis. Por isso, as organizações de base são extremamente importantes dentro dos territórios”, diz. E foi lá, dentro do projeto Arrastão que, em 2008, surgiu a agência de comunicação Maré Alta. “Estávamos cansados de ver as pessoas que não moravam onde nós morávamos, nos resumindo a uma palavra – carente. Resolvemos construir uma agência de comunicação que contasse a nossa história, do nosso jeito, que falasse afirmativamente sobre o mundo”. Em 2013, Tony deu vida à Escola de Notícias, uma escola antroposófica de comunicação que trazia uma metodologia para formar o olhar de quem conta a história. “A crise de comunicação não é de ferramenta, é de narrativa. A ideia era formar a próxima geração de contadores de história que a gente merece ter”. Este ano, mais um projeto nasceu – Historiorama, conteúdo e experiência. “Trabalhar para que todas e todos contem a sua história do
André Toma
mundo”, é como Tony define o Historiorama. Como ele mesmo diz, é muito importante ter diversidade na fala, criar a escola em que a gente gostaria de ter estudado. “Não adianta querer falar para todo mundo se não tem todo mundo falando”. Simples assim. Como fruto do Historiorama, também lançaram um jornal onde meninos e meninas, que passaram pela formação de comunicação, escrevem sobre os direitos sociais de seus bairros levando informação aos seus pais. Mais: criaram um Podcast de 15 minutos para contar a história de um personagem, a partir de quem a pessoa é. Historicamente a comunidade sempre foi contada por quem não mora lá, por outro olhar, outro viés, outra leitura. Existe um mundo acontecendo e não só a mídia tradicional. Existe uma rede de jornalistas dentro da periferia. Hoje, Tony Marlon está à frente do Historiorama, mas os outros projetos continuam existin-
do, justamente porque eles fazem sentido. E ele não para por aí. Num futuro, provavelmente Tony não estará mais no Historiorama, que irá fluir naturalmente, já que faz sentido, assim ele pode voar para novas iniciativas e, então, ir criando os espaços que precisamos para transformar o que queremos em realidade. Esse texto é apenas um resumo de tudo o que o Tony faz. Como citado no início, ele é inquieto. Está sempre criando algo para promover o bem-estar, reflexões e mudanças positivas. Imagine que, incomodado com as notícias ruins que todos os dias são televisionadas no jornal da noite, ele se propôs a fazer uma rápida leitura – uma poesia, trecho de um livro, de uma música –, ao vivo no seu Instagram, lá pelas 23h30, para que as pessoas possam ir dormir com uma mensagem positiva, mais leve, gostosa. Quer ter bons sonhos? Segue o Tony no Instagram! CIDADANISTA
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PLANO DE BAIRRO | Jardim Lapenna
por THIAGO FUSCHINI PPP: Política Pública Popular
Um plano, um bairro e uma nova realidade Em iniciativa única e inédita, moradores e sociedade civil planejam e implementam Plano de Bairro no extremo Leste de SP
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união de forças entre moradores, universidades, ONGs e Poder Público estão transformarando o Jardim Lapenna, no extremo Leste da capital paulista. Com apoio da Fundação TIde Setubal, FGV, Mackenzie, USP Leste e com a participacão efetiva de associações de bairro, escolas e postos de Saúde, o bairro é prova viva de que política pública se faz com todos e que dá certo. Há cerca de um ano e meio, o Plano de Bairro do Lappena foi do sonho a realidade e resultou em uma série de vitórias para a comunidade e uma inspiração a ser copiada por outros bairros. Entre as conquistas do projeto, constam a elaboração de um Plano para o desenvolvimento local, a realização de uma audiência pública da Câmara dos Vereadores para discutir as propostas do plano, realizada no próprio território, a inclusão de cinco medidas propostas pelo plano no Orçamento Municipal de 2019 e a formação de uma Frente de Apoio ao Planejamento Participativo Territorial da Várzea do Tietê, que reúne diversas entidades. Um dos aspectos essenciais deste processo tem sido o envolvimento e a participação direta da população que vive no bairro, obviamente a mais qualificada a identificar as necessidades da comunidade e a apresentar propostas . Desde fevereiro de 2017, teve início um processo participativo para discutir coletivamente os principais problemas, as soluções e as prioridades do bairro. Seus resultados criaram o “Plano de Bairro do Jardim Lapenna: rota para um território de direitos”. O Plano traz 48 ações para transformar o bairro, organizadas em 14 propostas e 4 grandes desafios. 12 CIDADANISTA
Acima, encontros e reuniões de planejamento, sempre com a presença da comunidade. Ao lado, cartilha produzida com explicações sobre o projeto.
Audiência pública feita no Galpão da Fundação Tide Setubal dentro do Jd. Lapenna. Evento teve presença dos moradores, vereadores e das organizações envolvidas no planejamento do Plano de Bairro
fotos: reprodução / FundaçãoTide Setubal
"Eu participo porque acredito na força dos movimentos populares; quando o povo se une em prol de melhoria na qualidade de vida e se dispõe a lutar por isto, as coisas acontecem" O Colegiado reúne-se semanalmente, no início das noites de segunda-feira, e é atualmente um espaço central de debate social e político do bairro, composto por lideranças do bairro e representantes das instituições públicas e sociais nele atuantes, com o objetivo de definir as estratégias de construção coletiva do planejamento e melhorias do bairro. PARTICIPAÇÃO E CONSTRUÇÃO COLETIVA “Eu participo porque acredito na força dos movimentos populares; quando o povo se une em prol de melhoria na qualidade de vida e se dispõe a lutar por isto, as coisas acontecem”, resume Vânia da Silva Linhares, uma das moradoras mais engajadas na atuação comunitária que vem construindo o Plano de Bairro do Lapenna. “É uma luta constante contra o ‘nunca vai mudar nada’ e contra a falta de interesse e de consciência dos moradores que não se engajam”, afirma. Para ela, que mora há 22 anos no bairro, “este processo coletivo vem envolvendo as pessoas e estimula os moradores a se conhecerem melhor. Daí, você descobre a potencialidade dos moradores, algo de que você nunca sequer desconfiou: temos artistas, músicos, poetas maravilhosos aqui no bairro e não sabíamos disto”.
Segundo outra moradora, Marli Lensina Rosa da Silva, que reside no Lapenna há 28 anos, a união dos moradores mudou a comunidade. “Isto aqui era um bairro do cada um por si, e agora estamos mais unidos, lutando por uma causa comum, que são as melhorias de que precisamos, e que afetam a vida de todos”, diz. “É um trabalho que começamos, mas que vai continuar para sempre, porque sempre teremos o que mudar e melhorar o bairro, que, na verdade, é a nossa casa. Esta é a parte principal: a noção de que o Lapenna é o nosso lar”, explica Raimundo Ramos de Oliveira, que vive na comunidade há 57 anos. Para Anselmo Serafim, morador do Lapenna há 52 anos, um dos maiores desafios é mostrar aos moradores que as mudanças na comunidade não serão imediatas, mas levam tempo. “Há uma cobrança imediata de alguns, que usam este argumento para justificar sua falta de interesse em participar das discussões e dos encontros. Eles ainda precisam entender que se trata de um processo e que ele ainda está em construção”, diz. “O povo precisa se conscientizar de que é importante se envolver e participar para que as coisas realmente possam mudar. Conquistamos algumas CIDADANISTA
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PLANO DE BAIRRO | Jardim Lapenna
"Para o setor público, a participação dos moradores é de grande ajuda, porque eles, que vivem nos territórios, têm conhecimentos sobre os problemas emergenciais, e através do plano, podem apresentar um projeto completo." vitórias, e, agora, o povo precisa se animar e se unir mais”, diz Maria da Glória Alves, uma das fundadoras do bairro e que vive lá há 66 anos. O PLANO DE BAIRRO: UMA HISTÓRIA O Plano de Bairro é um instrumento para planejar a cidade na escala local, criado pelo Plano Diretor Estratégico de São Paulo (PDE - Lei 13.050/14). Seu objetivo é reunir as demandas do bairro e, a partir delas, desenvolver uma estratégica de transformação a partir da iniciativa da sociedade civil, mas com participação do poder público (especialmente o municipal) e do setor privado. De acordo com o PDE, o Plano de Bairro deve conter ações locais relacionadas à: mobilidade (com ênfase na circulação de pedestres, ciclistas e pessoas com deficiência); espaços públicos (áreas livres, áreas verdes e área de lazer); microdrenagem; iluminação pública; acessibilidade e equipamentos públicos. Em suma, trata-se de um instrumento de planejamento destinado a pensar a implementação de pequenas iniciativas e ações diretamente relacionadas com a qualidade de vida das pessoas no espaço mais próximo da vida cotidiana. O Jardim Lapenna é um bairro localizado na zona leste de São Paulo, mais especificamente no Distrito de São Miguel, situado entre a estação São Miguel Paulista e o antigo leito do Rio Tietê. Ele é definido por seus cerca de 12 mil moradores como “uma cidade entre muros, uma vez que existem nesse território limites físicos bem definidos: o muro da indústria Nitro Química ao leste, a alça de acesso para a avenida Jacu-Pêssego na fronteira oposta ao 14 CIDADANISTA
oeste, o muro e grade da CPTM ao sul e os muros da central da SABESP (contornado por um córrego proveniente do rio Tietê) ao norte. O bairro é conhecido por ter uma ampla presença de instituições da sociedade civil e por ser um lugar que, por meio de lutas contínuas, conquistou uma boa oferta de equipamentos públicos: possui uma UBS, duas creches, uma escola estadual, um ponto de leitura e um Centro de Criança e Adolescente. Ao mesmo tempo, no entanto, sua localização atrativa (próxima à uma estação de Trem Metropolitano e com boa oferta de equipamentos), associada à sua condição de várzea, fez com que o Lapenna passasse por um intenso e rápido processo de crescimento populacional: passou de pouco mais de 5 mil habitantes em 2000 (Censo, IBGE) para cerca de 12 mil habitantes em 2017 de acordo com a estimativa da Unidade Básica de Saúde local. O Jardim Lapenna passou então a sofrer com alguns graves problemas sociais e ambientais tais como: falta de coleta de esgoto e acesso à água tratada, aumento da incidência de alagamentos, participação expressiva de população com alto índice de vulnerabilidade. Segundo o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social – IPVS, produzido pela Fundação Seade, 53 em cada 100 pessoas que residem no Lapenna estão em situação de vulnerabilidade social alta ou muito alta. No Lapenna, de acordo com dados de 1991, 20% dos responsáveis por domicílio tem até 29 anos, contra 13% na Prefeitura Regional de São Miguel e 14% no município de São Paulo. Já a proporção de crian-
ças e jovens é extremamente alta: 18% dos moradores do bairro tem até 10 anos (contra 13% tanto em São Miguel como no município de São Paulo). CONQUISTAS E BALANÇO Em 24 de novembro passado, cerca de 200 moradores do Lapenna participaram de uma Audiência Pública promovida pela Comissão de Orçamento e Finanças da Câmara Municipal de São Paulo. Na reunião, que equivale a uma sessão da Cãmara no território e que contou com a participação dos vereadores Soninha Francine (PPS) e Senival Moura (PT), os moradores apresentaram o Plano de Bairro construído coletivamente e exigiram a implementação de sete medidas ao Orçamento do ano que vem. Uma semana depois, a mobilização popular surtiu efeito e cinco medidas foram incluídas e as outras dependerão de emendas parlamentares negociadas com os vereadores (veja quadro). “O Plano de Bairro é um instrumento poderoso, à disposição dos cidadãos, para a resolução de questões ligadas à micro-infraestrutura urbana, como iluminação e drenagem, por exemplo. Para o setor público, a participação dos moradores é de grande ajuda, porque eles, que vivem nos territórios, têm conhecimentos sobre os problemas emergenciais, e através do plano, podem apresentar um projeto completo. E é aí que entra nossa participação, capacitando e elaborando tecnicamente as propostas”, explicou o professor Ciro Biederman, da FGV, que participa do processo desde seu início. Para José Luiz Adeve, coordenador de projetos comunitários da Fundação Tide Setúbal, e um dos grandes entusiastas do Plano de Bairro do Jardim Lapenna, a principal qualidade de todo o processo tem sido a de reconhecer a periferia como um local de potencialidades, ao invés de simplesmente como o foco de carências, como é a visão geral a respeito dela. “Estamos estimulando a participação dos moradores, ajudando-os a qualificarem e desenvolverem sua argumentação e a elaboração de suas demandas, para interagirem de forma mais eficiente com o Poder Público e outras esferas da sociedade”, conclui.
Blog do Plano de Bairro Jardim Lapenna: planodebairrojardimlapenna.wordpress.com Página no Facebook: web.facebook.com/planodebairroterritoriolapenna
Na "Proposta Orçamentária Consolidada", aprovada pela Câmara Municipal da Prefeitura de São Paulo em Dezembro de 2018, foram aprovados e serão destinados 545 mil reais em "ações de implementação do Plano de Bairro do Jardim Lapenna" e que serão garantidos com recursos do LOA – Lei Orçamentária Anual.
Ações já incluídas no Orçamento Municipal de 2019 - Microdrenagem para atender 1,5 quilômetros, tendo como referência o Galpão de Cultura e Cidadania. Custo: R$ 450 mil - Criação de Hortas Comunitárias. Custo: R$ 25 mil - Criação de linha de ônibus que ligue o Jardim Lapenna ao bairro União de Vila Nova e ao Metrô Artur Alvim. Custo não definido. - Placas de sinalização de trânsito. Custo: R$ 85 mil - Adequação de imóvel para implantação de velório público. Custo: R$ 45 mil AÇÕES NÃO INCLUÍDAS NO ORÇAMENTO MUNICIPAL DE 2019, MAS QUE ESTÃO EM ESTUDO.
- Requalificação da rua Rafael Zimbardi. Custo: R$ 1 milhão; - Construção do novo prédio do posto de saúde em espaço já definido pela Supervisão de Saúde de São Miguel. Custo: R$ 480 mil.
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INTERNACIONAL | A vida pós web
por GEERT LOVINK
Sociedade do Social
imagens: depositphotos
Em seu sexto livro de crítica sobre a internet, o pensador holandês Geert Lovink joga luz sobre o atual estágio da rede e traz reflexões sobre como "A Sociedade do Social" implica em nossas vidas cotidianas. Leia o artigo exclusivo publicado no Brasil que faz parte do título "Sad by Design – on Platform Nihilism", ainda sem tradução no país.
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internet é como o Velho Oeste. Nós pensávamos que seríamos os vaqueiros, mas, na verdade, nós somos os búfalos. Seja bem-vindo ao "Novo Normal". A mídia social está reformatando nossas vidas e tornando inseparáveis plataforma e indivíduo. Tudo é o próprio "social" e não há mais diferenças entre real e virtual. Não se fala mais como será a "próxima Web" no futuro. Em vez disso, um novo realismo se instalou, como tuitou Evgeny Morozov: “O utopismo tecnológico da década de 1990 postulava que as redes enfraquecem ou substituem as hierarquias. Na realidade, as redes amplificam as hierarquias e as tornam menos visíveis. Tudo está indissociado e faz parte do novo tecido social, "A "Sociedade do Social". Mas como fazer uma análise e uma crítica de todo esse fenômeno, suas conexões sociais e seus efeitos culturais para formular um pensamento sobre o que está acontecendo se ao mesmo tempo estamos submersos nessa mesma rede? Como olhar para o que está acontecendo no interior? Em vez de uma postura de superioridade, um julgamento do alto, poderíamos adotar uma abordagem amoral em relação ao intenso uso da mídia social de hoje. É hora de embarcar em uma jornada para o espaço chamado "tecno-social". Nossa amada internet pode ser retratada
como uma “constelação em rotação inversa com cem idiotas dentro”, mas nós a amamos mesmo assim: é o nosso lixo cerebral que não queremos olhar e muito menos pensar sobre as consequências. Não registramos o frenesi on-line que nos rodeia e nem sequer fingimos que nos importamos com a lógica cínica da propaganda em rede. Escândalos de mídia social nos aparecem – como Franz Kafka certa vez escreveu–, “como um caminho no outono: assim que é varrido, volta a cobrir-se de folhas secas. ”De manipulação comportamental a notícias falsas, tudo o que lemos é a credibilidade falida do Vale do Silício. No entanto, muito poucos sofreram consequências sérias. Evidências aparentemente não são suficientes. O lixo é eliminado, os dados vazam e os assobios são apagados - mas nada muda. Nenhum dos problemas pendentes é resolvido. Não importa quantos hacks e violações de privacidade ocorram, não importa quantas campanhas de conscientização e debates públicos sejam organizados, a indiferença esmagadora dentro da "Sociedade do Social" prevalece. Basta ver o rápido retorno à normalidade depois do escândalo de manipulação de mentiras promovido pela Cambridge Analytica nas eleições americanas, em março de 2018. A centralização de infraestrutura e serviços proporcionada garante tanto conforto às nossas vidas que fingimos que não é preciso mudar nada. Tudo parece inevitável. A pergunta é: por que já não existem alternativas viáveis para as principais plataformas digitais?
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INTERNACIONAL | A vida pós web
FALTA DE CRÍTICA E AÇÃO Qual é o destino da crítica sem consequências? Para que se formulam pensamentos se a sociedade parece inerte a eles. Em seu livro de 2018, "Anti-Social Media: como o Facebook nos desconecta e prejudica a democracia", Siva Vaidhyanathan luta com a crescente lacuna entre as boas intenções e a feia realidade: “O doloroso paradoxo do Facebook é promover sua devoção sincera de tornar o mundo melhor convidando partidos nefastos para sequestrá-lo espalhando ódio e confusão. A crença firme de Zuckerberg em sua própria autoridade e ética cegou a ele e a sua empresa os danos que isso estava facilitando e causando. Se o Facebook tivesse sido menos obcecado em tornar o mundo melhor, poderia ter evitado contribuir para as forças que pioraram o mundo”. Veja aqui a estagnação real existente, agora que o mundo está digitalizado. Como Gramsci disse, “O velho está morrendo e o novo não pode nascer; Nesse interregno, surge uma grande variedade de sintomas mórbidos”. Nossos desafios globais parecem enormes; na tela eles não conseguem ser vistos ou traduzidos para nossa vida cotidiana. Em vez de enfrentar as forças titânicas nos olhos, estamos entorpecidos, distraídos, voando e, às vezes, deprimidos. Devemos entender o intenso uso das mídias sociais como um mecanismo de enfrentamento? A compreensão limitada da entorno reduz nossa capacidade de resolver o problema. O alarmismo se esgotou e se quisermos esmagar o "Capi18 CIDADANISTA
talismo de plataforma", teremos que avançar para além de uma análise de economia política. Como podemos construir uma identidade coletiva com a qual possamos viver? O que seria uma autoimagem que fosse além das interpretações feitas por selfies de nossos dispositivos móveis? A selfie como máscara? ‘Eu amo essa foto com você, usando óculos escuros com um sorriso orgulhoso’. Não é possível identificar um problema ou articular uma resposta frente a isso. A atração irresistível de navegar nas atualizações e ‘Likes’ parece mais forte do que nunca. Retratar os usuários como vítimas do Vale do Silício não é convincente. Como o filósofo esloveno Slavoj Žižek disse, "podemos dizer que sabemos que a mídia social é má, mas continuamos a usá-la". O filósofo ainda vai além, “O que torna a nossa situação tão sinistra é a sensação de bloqueio. Não existe uma saída clara, e a elite dominante está claramente perdendo sua capacidade de governar”. Nosso ambiente e suas condições operacionais foram drasticamente transformados, e ainda assim nossa compreensão de tal dinâmica fica para trás. "O arame farpado permanece invisível", como disse certa vez Evgeny Morozov. A cultura da Internet está exibindo sinais de uma crise existencial de meia idade. Como Julia Kristeva uma vez escreveu: "Não há nada mais triste do que um Deus morto." A novidade se foi, a inovação diminuiu e a base de usuários se estabilizou. Em contraste com a nostalgia dos anos 90, não podemos dizer que houve uma "Belle Époque".
FUTURO NOSTÁLGICO E ENFRENTAMENTO Quem ousa mais se referir à "nova" mídia? Apenas pessoas inocentes ocasionalmente mencionam esse termo que já foi promissor. Na verdade, parece haver uma rápida disseminação do retrógrado, um anseio pelos primeiros dias mais simples. O que devemos fazer com essa nostalgia romântica pelo nascimento da realidade virtual, as desajeitadas interfaces iniciais da web? Claude Lévi-Strauss apresentou uma explicação possível: “O homem nunca cria nada verdadeiramente grande, exceto no começo: em qualquer campo que seja, somente a primeira iniciativa é totalmente válida. Os sucessivos são caracterizados por hesitação e arrependimento, e tentam recuperar, fragmento por fragmento, o terreno que já foi deixado para trás”. "A Sociedade do Social" é um mundo onde o digital não apenas se mistura ao cotidiano, mas também o invade - contraindo nossas habilidades e constrangendo nossas realidades. Esse artigo quer levantar questões sobre mídia social como o culto à selfie, a política de memes, o vício em internet e o novo padrão de comportamento narcísico. Duas décadas depois da febre "Ponto.com", poderemos responder à pergunta sobre como as mídias sociais de fato operam? Embora elas sejam onipresentes, é preciso primeiro entender seu funcionamento interno e seus mecanismos de distração e tristeza. É necessário compreender com profundidade as estratégias das "plataformas", a "violência tecnológica", as "selfies", e ainda se ater como as indústrias de extração de dados corporativos e sistemas de vigilância orientam o comportamento de massa para uma nova forma de alienação social. Toda essa complexidade gera uma reflexão sobre o pensamento intelectual nas redes. A internet não é um campo no qual os intelectuais públicos desempenham qualquer papel para falar. Ao contrário das épocas anteriores, as ambições
"Se o Facebook tivesse sido menos obcecado em tornar o mundo melhor, poderia ter evitado contribuir para as forças que pioraram o mundo”.
intelectuais são retraídas e modestas. Antes de projetarmos alternativas e formularmos princípios reguladores, é vital entender a psicologia das plataformas de mídia social. É preciso combinar crítica radical à internet com um confronto com os altos e baixos mentais de usuários de mídias sociais. Como Clifford Geertz observou, “compreender a cultura de um povo expõe sua normalidade sem reduzir sua particularidade”. Parecemos desencantados com nossas culturas on-line de fato. O think tank britânico Nesta resumiu a nossa condição atual. “À medida que o lado negro da Internet está se tornando cada vez mais claro, a demanda pública por alternativas mais responsáveis, democráticas e mais humanas está crescendo.” No entanto, os pesquisadores também são honestos o suficiente para ver que desafiar a dinâmica existente não será fácil. Estamos em um impasse. “A internet se vê dominada por duas narrativas dominantes: a americana, em que o poder está concentrado nas mãos de apenas alguns grandes atores, e um modelo chinês, onde a vigilância governamental parece ser a lógica operante. Entre o Big Tech e o controle do governo, onde isso deixa os cidadãos? A Nesta colocou duas questões estratégicas na mesa: "A Europa poderia construir o tipo de alternativas que colocariam os cidadãos de volta no banco do motorista?" E, em vez de tentar construir o próximo Google, a Europa deveria se concentrar na construção das infraestruturas descentralizadas que impediriam monopólios? O estado atual da "Sociedade do Social" que chegamos não deveria ser surpreendente. Em Futurability, Franco Berardi marca o final dos anos 1970 como a linha divisória, o momento em que a consciência social e a tecno-revolução divergiram. Foi quando entramos na era da tecno-barbárie: a precariedade provocada pela inovação, a riqueza criada pela miséria em massa, a solidariedade tornou-se competição, o cérebro conectado foi desacoplado do corpo social e a potência do conhecimento foi dissociada do bem-estar social. O desenvolvimento técnico continuou a acelerar, aumentando drasticamente a distância entre os sistemas técnicos e a organização social, como se a negociação entre eles parecesse impossível, o divórcio final parecesse inevitável. O poder do poder cibernético é dar a todos a impressão de que eles têm acesso ao mundo inteiro quando estão cada vez mais separados, que têm mais e mais "amigos" quando são cada vez mais autistas.
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INTERNACIONAL | A vida pós web
E O QUE FAZER COM AS MÍDIAS SOCIAIS? Os últimos anos foram dominados por uma profunda confusão. Evgeny Morozov, por exemplo, twittou: "Eu não quero que #Zuckerbergrenuncie. E não precisamos deletar o Facebook. O que precisamos é de um novo contrato para os dados". Para outros, o não uso é precisamente a resposta. Juntamente com o uso (relutante) ou não uso, uma terceira abordagem tem sido colocada. Em um artigo do Guardian intitulado "Como desaparecer da internet", Simon Parkin forneceu aos leitores (on-line) um manual sobre como se tornar um fantasma digital. "Excluir coisas é inútil", afirmou. Seu conselho em vez disso? Crie contas falsas e faça pesquisas indiretas. Sua conclusão – que torna sua manchete enganosa–, é que é quase impossível desaparecer. E se for tarde demais para deixar o Google, o Twitter, o Instagram ou o WhatsApp, não importando o quão digitalmente "desintoxicados" nos tornemos em outras esferas da vida? Vamos encarar, estamos ambos offline e online e essa crítica encontra-se numa posição igualmente contraditória Andrew Keen argumenta em seu livro de 2018, "Como consertar o futuro: sendo humano na era digital", que podemos reafirmar nossa ação e existência em relação à tecnologia. Keen exige integridade de dados. O mexer com os dados tem que parar. “A vigilância, em última análise, não é um bom modelo de negócios. E se há uma coisa que a história nos ensina é que os maus modelos de negócios acabam por morrer.” Ele lista as“ cinco balas de John Borthwick para consertar o futuro: plataformas de tecnologia aberta, regulação antitruste, projeto humano responsável, preservação do público espaço e um novo sistema de seguridade social ”. No entanto, as ações necessárias para implementar essas correções parecem paralisadas. Críticos da Internet têm poder limitado. Os acadêmicos também parecem um tanto impotentes. Impulsionados por uma lógica de revisão por pares e classificação, eles publicam dentro do universo segmentado de revistas com seu acesso limitado e impacto ainda mais limitado. Assim, embora os pesquisadores certamente colecionem evidências valiosas sobre o
poder econômico das plataformas de mídia social, a crítica de tecnologia em geral permanece dispersa incapaz de institucionalizar sua própria prática e criar escolas de pensamento mais coesas. Recentemente, estamos testemunhando o aumento dos dados de pico. Como o pico do petróleo, este é o ponto teórico quando a taxa máxima de extração de dados foi atingida. Os dados de pico são o momento em que os gigantes da internet já sabem tudo sobre você, o momento em que detalhes adicionais começam a inclinar a balança e fazem com que seu regime de dados imploda (lenta mas inexoravelmente). Este é o ponto de virada. Após esse momento, o valor dos dados extras diminui para um ponto zero. A "mina de ouro" dos dados de repente se torna lixo digital. Empresas como o Google estão cientes dos perigos de tais giros hegelianos e partiram para resgatar seus valiosos ativos de dados. Vale notar que tal mudança de política não vem de qualquer levante popular contra o "esgotamento social" devido à aquisição de máquinas inteligentes. Não, esta é uma iniciativa estritamente interna voltada para a autopreservação. Na nova versão do Android, nenhuma das funcionalidades de rastreamento foi removida. O Google simplesmente coleta menos dados - para seu próprio bem-estar. Outros produtos seguem o mesmo exemplo. A própria pesquisa do Google, por sua vez, responde aos dados de pico com um novo plano para mostrar "anúncios mais úteis". Em uma mudança semelhante, a nova atualização do aplicativo do YouTube do Google inclui uma configuração em que o aplicativo lembra os usuários a "dar um tempo" ao assistir a vídeos. Esta recente mudança para o autolimite é de fato estranha. O Google, no final das contas, diminuirá as trocas em tempo real a fim de incorporar a reflexão? E se a melhoria só puder ser alcançada ao se falar da cultura dominante (e mortal)? Por que a tecnologia ajuda você a se desligar? Como os usuários responderão ao moralismo padrão dessas mudanças? Contra tais gestos mais benéficos, devemos considerar coletivamente implementar os princípios da "prevenção de dados".
"A crítica de tecnologia em geral permanece dispersa - incapaz de institucionalizar sua própria prática e criar escolas de pensamento mais coesas"
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POR UMA ACADEMIA DA INTERNET Diante dessas condições, precisamos de estudos na internet mais do que nunca. E ainda assim, de alguma forma, isso não foi reconhecido e apoiado como uma disciplina séria. Considerando que ainda podemos estudar cinema, teatro e literatura, este não é o caso da internet, que tem consistentemente deixado de se estabelecer como uma disciplina acadêmica distinta com seus próprios programas de graduação, mestrado e doutorado em tempo integral. Onde está o nosso "conflito das faculdades"? Em todo o mundo, ninguém parece disposto a assumir o comando, para dar o primeiro passo (instável, mas significativo). Os novos programas artísticos de mídia foram fechados silenciosamente, fundidos em empresas acadêmicas inofensivas e voltadas para dentro, como as "humanidades digitais", ou foram incorporados à lógica da "transmissão" de mídia e comunicações. Como resultado, os "geeks brancos masculinos" da engenharia e potenciais "capitalistas de risco" das escolas de administração alcançaram domínio cultural - replicando infinitamente esquemas do Vale do Silício e deixando aqueles como ciências sociais, artes e humanidades de design à margem do protagonismo. A arabista italiana e ativista Donatella Della Ratta, que ensina cultura digital na Universidade John Cabot, em Roma, acrescenta outro elemento: “O assunto on-line está tão profundamente envolvido que a geração jovem não está preocupada com o dispositivo tecnológico em si, simplesmente o apagou, esqueceu-o. Meus alunos estão entediados se eu falo sobre tecnologia em si", Quais são as conseqüências dessa fadiga tecnológica exatamente no momento em que o debate finalmente alcançou a arena política tradicional? Antes de nos precipitarmos em debates sobre alternativas e estratégias, existe a necessidade de explorar esse campo um tanto vago e indefinido de decisão, fadiga e ego. A sociedade exige que seja feita uma análise sobre o desespero on-line em sua forma mais atraente, examinando em particular a interação entre nosso estado mental e a condição tecnológica.
possível escapar. Já se foram os dias em que o design da Bauhaus deveria fortalecer a realidade cotidiana da classe trabalhadora. Estamos bem além do ponto de design como uma camada extra. O design não é mais uma disciplina pedagógica que pretende elevar o gosto para dar sentido e propósito às suas vidas diárias. Estamos indo para o estilo de vida dos ricos e famosos. O ordinário não é mais suficiente, o mantra é para frente e para cima. Nós, os 99%, reivindicamos o estilo de vida exclusivo do 1%. Esta é a aspiração do planeta H & M. A cultura de design de hoje é uma expressão de nossas vidas intensamente prototipadas. Somos viciados em experiência que desejam extrair prazeres da vida, esgotá-la completamente. E, no entanto, é notável quão pouco progresso transformador fizemos. Nós queremos muito e fazemos tão pouco. Nosso estado precário se tornou perpétuo. O que fazer com os trabalhadores que não têm nada a perder além dos óculos de sol Ray-Ban? Não importa quão desesperada seja a situação, a revolta simplesmente não vai acontecer. Na melhor das hipóteses, assistimos a um festival, expandimos nossa mente e nosso corpo - e então afundamos de volta no vazio. A atual situação política exige que nos abstenhamos de propostas "tecnodiscussionistas" e em vez disso migremos essas "questões da internet", supostamente limitadas, para contextos mais amplos, como precariedade, política tecnológica pós-colonial, questões de gênero, ação de mudança climática ou urbanismo alternativo. Como Noam Chomsky disse em um entrevista: "Há muita coisa que podemos fazer para dobrar o arco moral da história em direção à justiça, emprestando a frase que Martin Luther King deixou famosa. O caminho mais fácil é sucumbir ao desespero e ajudar a garantir que o pior aconteça. A maneira sensata e corajosa é unir aqueles que estão trabalhando por um mundo melhor, usando as amplas oportunidades disponíveis".
O DESIGN ENQUANTO NARRATIVA A colorida fotografia dos anos 90 da Benetton sobre a miséria global tornou-se uma realidade diária. As favelas são inundadas por roupas de grife e calçados. Os refugiados de Versace não são mais raridades. Inveja e competição nos transformaram em sujeitos de uma conspiração estética que é imCIDADANISTA
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DESIGN | Memes progressistas
@henriqdesigner
Design Em época de eleições e ânimos a flor da pele, uma legião de designers gráficos traduziram o sentimento de repúdio ao candidato Bolsonaro em um festival de criatividade em nossos smartphones. O resultado da eleição não queremos lembrar, mas vale a pena relembrar os memes desses artistas ativistas.
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a t s i v i t a
@faelsmoreira
@raphabaggas
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ara ajudar na difícil missão de elencar grandes designers e suas artes questionadoras, convidamos o artista gráfico, ilustrador Murilo Martins para selecionar algumas peças e artistas que devem ter invadido seu smartphone, durante e após o segunto turno. MuTron, como também é conhecido, é o criador da novela gráfica "Eu sou um Pastor Alemão" – que em breve vair virar animação–, e fundador da Casa da Porta Amarela, espaço de publicações independentes na Flip, em Paraty. Murilo também colaborou com o Design Ativista, grupo criado em Junho desse ano que reúne artistas gráficos em torno de causas como o antiracismo e o feminismo. A seguir, você confere 13 artistas e suas artes contestadoras. CIDADANISTA
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DESIGN | Memes progressistas
@manoelaczr
@zangadas_tatu
@_sadrie
@camixvx
@jjbz 24 CIDADANISTA
@suianecardoso
@flopezdesign
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DESIGN | Memes progressistas
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@gabrielmellofranco CIDADANISTA
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ENTREVISTA | Mauro Neri
por IVAN ZUMALDE
MAURO
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O artista multifacetado e interventor urbano fala sobre ser graffitti, Dória, periferia e da missão de quebrar preconceitos e juntar pontes entre as pessoas por meio da sua arte
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Como acha que as pessoas da cidade enxergam um grafiteiro e artista de rua? Como você se define? Cada vez mais a gente tem mais repertório, mais referências sobre o que é a imagem do grafiteiro. No geral, o grafiteiro traz uma linguagem jovem. Uma estética, um estilo de vida. Muito próximo ao hip hop e ao universo do skate. Tem uma estética muito parecida. Então se alguém pensa em um grafiteiro, lembra alguém com roupa larga, de barba, boné e tatuagens. Há também os que se identificam como um interventor urbano, com uma estética "street art". Eu, por exemplo, me defino de maneira híbrida. Sou grafiteiro porque tenho essa pegada de intervenção urbana, muitas vezes sem autorização, com alguns elementos bastante usados, como os grafites rápidos. Na verdade, a melhor definição pra mim é o de artista público, de artista urbano, de interventor urbano. Então eu não me considero só como um grafiteiro, me defino como um artevista, um servidor público. Alguém que serve a sociedade, que transforma paisagens e alguém que está aí lidando com a educação através dos muros. Sim, me defino como interventor urbano, como um grafiteiro, como um pixador, como educador, como ativista, um artevista.
fotos: arquivo pessoal
As definições servem para ajudar a gente a compreender, e eu as uso como convém. Até porque as denominações, as definições, elas muitas vezes são usadas para atribuir valor. No geral, a sociedade quando distingue grafiteiro de pixador e de muralista, geralmente está atribuindo critério de valor. Quando gostam chamam de graffiti. Quando não gostam chamam de pixação. E, quando gostam muito, chamam de obra de arte ou de mural. Mas, para alguém de vanguarda, dependendo da origem do ponto de vista, pode entender que a pixação está no topo dessa vanguarda e seguido do graffiti e o mural. Então, depende muito se eu estou com um grupo de pessoas mais conservadoras, e que imaginando seu repertório, se eu me apresentar como pixador, eles vão imaginar que eu sou uma pessoa mais desprezível, desimportante ou um vândalo. Alguém ruim à sociedade. Se eu disser que sou grafiteiro, uma parte das pessoas vão pensar a mesma coisa porque não distingue a pixação do graffiti. Por outros vão entender que a pixação tem essa onda, essa moda e vão entender que eu sou um cara descolado. E se eu disser que eu sou um muralista, vai entender que eu já evoluí do pixador para o grafiteiro, e agora já estou numa outra categoria que é o muralista. Então,
depende muito, e essas definições, eu prefiro usar quando convém. Não deixando de ser eu mesmo. Não deixando de cumprir com a verdade e a sinceridade. Mas indo ao alcance, indo de encontro à leitura e à ótica do outro. Você acha que Grafitti é uma manifestação política? Como vê a sua arte sendo expressão de uma cultura ou expressão de protesto? Sim, eu acredito que toda manifestação pública é política. A relação com o outro, a linguagem, as possíveis compreensões, o diálogo. Acredito que isso sim é um ato político. Independente da mensagem ter um conteúdo mais panfletário ou simplesmente pelo fato de mover, de tocar, de influenciar na vida cotidiana e na paisagem urbana. Agora, existem níveis de políticas. Acredito que muito da expressão de graffiti tem conteúdo politico por estar no limite entre o legal e o ilegal. E que trata de questões de leis e normas de conduta. Acredito que o que eu faço é essencialmente político e vai de encontro com questões que eu escolho abordar no momento. No geral, eu trago mensagens de fácil compreensão, ligadas ao conceito do ver e da verdade. Ver e não somente olhar. Perceber a cidade, percerber as conexões, as injustiças, as peculiaridades da paisagem e da sociedade. Acho que o meu trabalho permeia essa ideia de transmitir informação. A informação e a educação através de referências visuais e escritas. Se por um lado tem uma questão lúdica e de fantasia, por outro, nos faz lembrar quesCIDADANISTA
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ENTREVISTA | Mauro Neri
tões cotidianas, problemas e virtudes reais da nossa sociedade. Acho que a minha ideia é essa. A minha intenção é discutir temas ligados ao direito à cidade, aos direitos humanos e de acordo com a pauta da cidade. Sobre qual o assunto que está vigente, eu vou combinando essas informações, de acordo com o contexto, com a estética, com a possibilidade, com os recursos. Seja de tempo, de dinheiro ou material. Nos últimos anos, o poder público, em particular na gestão do prefeito Dória, implantou políticas que interferiram na vida dos grafiteiros e do próprio Grafitti em São Paulo. Como vê a cidade depois do Cidade Linda? Pois bem, desde que eu acompanho as gestões, ou seja, desde a gestão da Marta, eu percebo é que existem mais semelhanças do que diferenças entre os governos. A política de repressão, de apagamento de grafite, de criminalização, de perseguição dos grafiteiros, de cancelamento dos seus grafites é uma lógica que vem há muitos anos. Acho que a gente nunca viveu uma liberdade total das nossas expressões. O que há é o seu plano de governo usar isso, mais ou menos contra ou a favor. A gente percebe que a gestão do Dória, por exemplo, foi uma 38 CIDADANISTA
gestão muito marcada pelo uso das informações. De publicizar as ações, de usar de uma forma midiática o sensacionalismo também. De entender um pouco o que a sociedade está querendo ouvir e lidar com isso. Acho que ele lida muito bem com essa questão da mídia, e ele explorou isso como outros não exploraram. Desde que eu acompanho essas diferentes gestões, percebo a prática de políticas afirmativas e de políticas punitivas. Mas a questão da punição, da repressão, independente da gestão, sempre aconteceu porque é algo, já enraizado na cidade. Os apagamentos de graffiti, independem muito da vontade do prefeito. Está muito mais relacionado com questões técnicas e das prefeituras regionais. Não é à toa que a lei é clara que, não se pode fazer um graffiti sem autorização. Mas isso é comum. É sabido. O que ocorre é que algumas gestões facilitaram essas autorizações, contribuiram com isso, fomentando eventos e atividades artísticas ligadas ao graffiti. Acredito que todas as gestões tiveram nos últimos 15, 20 anos, medidas afirmativas e medidas punitivas. Aí eles usaram isso de acordo como sentiam resultado na vontade da sociedade. Acho que quando a sociedade mostra que quer graffiti, que gosta e que valoriza a cidade grafitada, um prefeito, um gestor atento dá voz a
"Toda repressão também impulsiona uma transgressão à altura. Acho que essa gestão do Dória fez algo de positivo. Que foi fazer com que a sociedade também participasse mais, denunciando o que ela não achava de acordo" isso e fomenta isso. Quando a sociedade reclama de que a cidade está vandalizada e abandonada, e de que os vândalos precisam ser responsabilizados, o gestor também tendea coibir. No caso da gestão do Dória, por exemplo, ao meu ver, embora tenha criminalizado e aumentado o valor da multa, da pena, e que intimidou muita gente a não fazer graffiti, por outro lado, ele estimulou outras pessoas corajosas a se jogarem ainda mais e serem mais provocadores. Toda repressão também impulsiona uma transgressão à altura. Acho que essa gestão do Dória fez algo de positivo. Que foi fazer com que a sociedade também participasse mais, denunciando o que ela não achava de acordo. A diferença, em especial, nas duas últimas gestões, da gestão do Haddad para o Dória, é que o Dória, primeiro foi fazendo as coisas como havia pensado, e refletindo um pouco o que a mídia pensava disso, o que a sociedade estava dizendo a isso. Enquanto que a gestão do Haddad, entendeu que era importante conhecer, compreender. Acho que tinha uma análise mais antropológica da questão e menos criminalizatória. De entender da onde vem esse fenômeno, como ele acontece. De ouvir. Acho que ele teve um canal de diálogo mais próximo. Embora ouve diálogo também na nova gestão. Depois da repressão dos apagamentos, ele entendeu que era importante ter diálogo. Acho que depende muito também de como a gente está disposto a interagir e fazer uma interlocução com a gestão pública. Mesmo discordando de algumas ideologias, acho que é importante ter um canal aberto de diálogo e de troca.
Você nasceu no Grajaú, fez e participa de projetos educativos e culturais com a população periférica, mas também recebe criticas de grupos por alguns de seus posicionamentos políticos. Se acha incompreendido? Sim. Eu tenho origem no Grajaú, bairro periférico de São Paulo. E acho que eu sou fruto muito dalí. Sou o que sou porque cresci naquele contexto geográfico de inclusão e exclusão. Que me incluiu naquele caldeirão cultural. Mas que por outro lado me excluiu de outras oportunidades de acesso e minha evolução se deu alí com aquelas dificuldades, sendo resiliente, fazendo toda essa dificuldade, preconceito e privações, material para criar, para se inserir na cidade. E a minha inserção se deu por meio da arte. Sobre a possibilidade do querer. A possibilidade que os meus mestres, meus professores, conseguiram estimular em mim. Estimular esse meu orgulho. O orgulho de ser artista. O orgulho de trazer propostas com criatividade, e fez me estimular e a buscar, pesquisar e ver mais a cidade. E, como não podia ser diferente, é inerente e recíproco, o meu amadurecimento artístico foi completamente ligado com a questão da educação. Eu aprendi arte ensinando arte. Os meus conceitos, os questionamentos que eu trago, estão ligados também à questão de educação e de acesso à educação. Eu me identifico nesses jovens com essas dificudades e com vulnerabilidade na quebrada. E com isso, uma fraternidade, uma irmandade, uma coisa entre os colegas, entre os meus próximos. Acho que é algo que se destaca nas articulações nas quebradas, nas periferias, é uma articulação em rede. É um “se ajudar”, um CIDADANISTA
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“se apoiar”, uma rede de solidariedade, sobretudo uma rede. Uma rede de coletivos, de indivíduos, de agentes que propõem a transformação à partir das bordas da cidade. Isso foi o que originou o Projeto Imargem, que eu idealizei em 2006, e que hoje é uma plataforma multidisciplinar e horizontal, que discute e promove arte, direitos humanos. Mesmo eu tendo vazado essa margem, tendo acessado outros lugares, como centro, como a academia, e até, outras cidades, outros países, a minha conexão é muito forte com o meu local de origem. Sou um entusiasta da cena local, e um articulador. Assim como meu irmão, Welington, coordenador hoje do projeto do Imargem, a gente toca muitas ações e conhece muita gente. Mas essa relação com o poder público, ela veio junto com isso também. Há quase vinte anos que a gente vem com alguma relação com o poder público. Seja na gestão que for. Seja nas várias esferas, municipais, estaduais e federais. A gente esteve sempre articulando, tentando pleitiar recursos públicos para promover a nossa transformação. Então para mim, estar diante da Marta Suplicy, estar diante do Serra, do Kassab, do Haddad, do Dória e agora do Bruno, faz parte. Para mim sempre fez parte desse jogo entre a adesão e a resistência. Independente do meu voto, eu sempre estive fazendo uma oposição, fazendo crí40 CIDADANISTA
ticas ao governo. Independente do partido, estava sempre ali. Recebendo recurso, mas usando esse recurso também para criticar o governo. Eu tenho foto com o Kassab, tenho foto com o Haddad, tenho foto com o Dória, porque mostra um pouco esse meu interesse, e essa minha proximidade nessa relação. O fato de tirar foto com o gestor inspira pouca simpatia, sobretudo aos movimentos sociais, culturais, como é o caso do Dória, e ter uma imagem associada a uma possível colaboração com ele, para alguns ativistas, para alguns militantes, em especiais os mais extremos de esquerda, o qual a gente se identifica muito e tem muitos colegas e
"Eu me sinto incompreendido, sim. Ás vezes, dos loucos, o mais lúcido. Dos lúcidos, o mais louco. Fazendo mediação entre o mais pobre, o mais rico. De extrema direita, de extrema esquerda. Me interessa muito essa posição que acessa as diferenças" está muito próximo, surte um efeito de crítica. Então, eu fui muito criticado por fazer parte de uma comissão que ajudava o prefeito Dória a trazer soluções e alternativas para o graffiti. Eu percebi muita gente recuando, desfazendo amizade, ou me criticando nas redes sociais, essa minha disposição para colaborar com o diferente, com o outro. Eu integro isso, acho que é importante. Continuo com essa intenção de trabalhar, independente do governo que seja. Se for possível, se tiver abertura, exercendo o mínimo de democracia e de direito de livre expressão, a gente vai permeando e se infiltrando, e, influenciando, infectando, sendo influenciado, trocando. Acho que é um pouco isso. Me interessa muito diminuir os abismos sociais. Acho que se faz isso com empatia, com tolerância, com disposição ao diálogo. Acho que é isso que falta na grande parte da sociedade. Sobretudo, sobre essa sociedade dividida e guetizada, e elitizada. Independente do tipo de acesso que as pessoas tem. Sempre procurando se agrupar, principalmente, pelo que elas odeiam no que é diferente no outro. Acho que a gente pode aprender muito com o que tem de semelhante. Enfim, é uma pena que muitas vezes seja mal interpretado, mas essa é a vida pública, essa é a vida política. Impossível agradar à todos. O importante é estar mantendo a coerência e entendendo o porque de estar, e de com quem estar.
Eu me sinto incompreendido, sim. Ás vezes, dos loucos, o mais lúcido. Dos lúcidos, o mais louco. Fazendo mediação entre o mais pobre, o mais rico. De extrema direita, de extrema esquerda. Me interessa muito essa posição que acessa as diferenças. Acho que tenho muito a aprender com isso. Ás vezes me sinto, sim um compreendido. Ás vezes eu sou muito alternativo entre os formais. Muito formal entre os alternativos. Também buscando aí, uma leitura que abranja mais gente. Para mim, me interessa fazer uma arte que seja compreendida pelos pobres, pelos funcionários, pelos empregados, pelos patrões, pelas pessoas do centro, da periferia. Acho que interessa tudo. Temos que trocar com todos. É difícil, às vezes, a gente ser incompreendido. Mas acho que ser incompreendido também é fato de uma incapacidade de transmitir clareza. Então, é um exercício importante de se fazer, de realmente conseguir transmitir a informação, a informação que acredita, ser verdadeiro, ser coerente. É isso que eu venho tentando fazer. Eu escrevo caligrafias compreensivas. Faço desenhos figurativos, justamente para ser mais compreendido. O meu apelo é por ser compreendido. Eu acho que eu interajo mais quando eu acesso. Então, a minha ideia é diminuir essa margem de incompreensão do outro, indo de encontro ao repertório do outro. Ao que faz sentido para o outro. E, na medida do possível, com CIDADANISTA
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"Eu falo sobre a ótica de um artista, negro, com origem na periferia, mas que circula e que tem acesso e interesse à pessoas diferentes ou opostas a esse meu lugar de origem"
o olhar do outro. Exercendo empatia, tentando se colocar no lugar do outro. Eu falo sobre a ótica de um artista, negro, com origem na periferia, mas que circula e que tem acesso e interesse à pessoas diferentes ou opostas a esse meu lugar de origem. E me identifico muito com as pessoas do meu lugar de origem. Então, a minha intenção é, assim como quando a gente vai aprendendo novos idiomas, cada novo idioma, a gente aprimora o nosso próprio idioma. Acho que é muito interessante ir ao encontro de novas linguagens, de outros idiomas, para aperfeiçoar o nosso discurso. Seja na língua, ou na linguagem que for. 42 CIDADANISTA
O que espera do futuro do país? Pretende se candidatar a algum cargo? Eu espero que a gente troque mais, que as pessoas da periferia participem, interajam mais com o centro, com as classes nobres, e vice versa. Espero que as pessoas circulem mais. Que tenha uma questão de pertencimento muito mais ampla, que as pessoas tenham orgulho do seu lugar, mas que tenham interesse, e curiosidade e respeito pelo lugar do outro. Espero que a gente faça uma transformação, uma revolução na educação através dos muros da cidade, através da ocupação e a valorização da paisagem da cidade. Acho que a educação, não pode estar restrita só ao seu núcleo familiar, ao seu tipo de acesso escolar, mas sobretudo ao tipo de leitura que é possível fazer olhando a realidade, a verdade, olhando a cidade, vivendo a cidade, aprendendo educação, se alfabetizando lendo pixações, lendo poesias, lendo informações úteis, lendo os muros da cidade e não ficando refém só da mídia, de uma mídia. E eu acredito nisso, em criar mensagens escritas, desenhos, e influenciar que outros agentes façam isso, para que a gente tenha uma sociedade mais participativa, que aprenda olhando para a cidade, olhando a arquitetura, olhando a paisagem natural ou urbana. Que a gente ouça, que a gente troque experiências através dos discursos e das vazões dessas margens. Eu, como um servidor, com eu vim para servir, acho que eu tenho um potencial, um poder e uma grande responsabilidade que é, de fato, contribuir com a transformação e a valorização da informação através das modificações artísticas nas paisagens e servindo, toda minha vida, seja como educador, seja como interventor urbano. Considero sim a possibilidade de contribuir com mais mandatos na vida política. Jogando o jogo como ele é jogado hoje. Ás vezes, com um edital público, um recurso de trinta mil, a gente faz mais do que muita gente não é capaz de fazer com trezentos mil. Acredito em usar recurso público para devolver para o público algo que a gente ache mais justo. Acho que posso contribuir sim, sendo um parlamentar, um vereador, um deputado, ou
cumprir algum cargo no executivo com esse olhar da educação. Espero ter energia, estratégia e inteligência para, caso me candidate, ter chances de ser eleito. E, sendo eleito, poder usar a máquina pública e o recurso público para acessar mais gente de um jeito mais eficaz. Usando essa estratégia da paisagem e a sua relação com a sociedade. Como estão os projetos “ver a cidade” e os outros que criou? Como foi sua turnê na Europa e o que espera da turnê nos EUA? O projeto “ver a cidade” e “ver a cidades” é isso. É conhecer, aprender, encontrar novas referências, novos parâmetros para gente aperfeiçoar o nosso projeto de transformação. Quanto às viagens, está
muito ligado à autossustentabilidade, de vender a própria arte, mas também de transformar as paisagens através das pinturas. Pintar de toda forma, autorizado, ou não. Continuar na ponta, efetivamente, criando artes para somar no repertório das pessoas. E aprender, trocar, discutir, refletir, problematizar, sobre políticas públicas para ocupação e valorização do espaço público por meio da arte. Esse é o meu projeto. Essa é a minha temática. Por onde eu passar, quero entender, quero compartilhar experiências nesse sentido e trazer um pouco do acúmulo que a gente vem tendo aqui em São Paulo, que é a capital mundial da transgressão e da arte urbana. Seja em lugares que estão mais avançados que nós, em políticas como o caso de Portugal e Alemanha. Temos algo a aprender com eles, mas no geral, temos muito o que ensinar para grande parte do mundo sobre isso. A gente está aqui, aqui é o país da transgressão, sabe que aqui se dá um jeitinho, mas a gente está cada vez mais próximo de países que aprimoram suas leis de criminalização e suas especialidades para reprimir essa onda mais conservadora. Mas mesmo nessas ondas existe espaço para a gente regular coisas que podem ser reguladas, como a participação das pessoas na permanência do que acreditam ser importante ver na cidade. A experiência está sendo interessante. Estou chegando agora nos Estados Unidos para experimentar isso um pouco. Esse lugar que é referência no mundo para tanta coisa e quero ver um pouco o que a gente pode trocar para o nosso Brasil. CIDADANISTA
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ARTIGO | Pacto pela Democracia
por PEDRO KELSON e FLÁVIA PELLEGRINO
Reafirmar a Democracia
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"A democracia é um modelo complexo e nunca atenderá integralmente aos anseios do cidadão justamente por ser o resultado das tensões dos diferentes grupos sociais e políticos"
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democracia vive uma crise global. Esse é o diagnóstico compartilhado por diversos centros de pesquisa dedicados ao monitoramento da qualidade deste tipo de regime ao redor do mundo. Um decréscimo significativo da quantidade e da qualidade das democracias vem sendo identificado desde 2006, levando alguns autores a afirmar que entramos no fim da terceira onda democrática. A preocupação com a manutenção do sistema democrático não é, portanto, uma exclusividade brasileira, mas os índices relativos ao Brasil são preocupantes e mostram que o país segue a tendência global. Em sua última pesquisa, o Instituto Latinobarómetro aponta que apenas 34% dos brasileiros preferem a democracia a outras formas de governo. O valor é o menor desde 2001 e o terceiro menor índice em comparação com os demais países da América Latina. O estudo indica ainda que 41% da população é indiferente quanto ao regime em vigor e 14% pensam que regimes autoritários são mais adequados.
Segundo o relatório da The Economist Intelligence Unit, por sua vez, o Brasil apresentou em 2017 o índice de qualidade democrática mais baixo desde 2006. Dos cinco indicadores que embasam este índice, a baixa participação social na vida pública e uma cultura política bélica e polarizada são os fatores que mais influenciam o baixo desempenho de nossa democracia. Esses dados demonstram algo perceptível em nosso cotidiano, em especial nos últimos processos eleitorais, marcados por episódios de intolerância, violência e desvalorização da pluralidade, gerando experiências traumáticas para o tecido social brasileiro. O debate político ganhou contornos violentos e foi tomado pelo uso indiscriminado de fake news e outros mecanismos de desinformação. A esse contexto crítico soma-se a descrença na política
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tradicional. Partidos políticos, governos e parlamentos são sistematicamente avaliados pela população com os piores índices de confiança se comparados a outras tantas instituições públicas e privadas. O crescente tensionamento entre os Poderes da República agrava a crise das instituições. Impeachment presidencial, tentativa de cassação de chapa eleitoral, ameaças do exército, intervenção militar em estados, assassinato de representante eleita, facada em presidenciável... Não há como negar que os últimos anos não foram fáceis para a nossa institucionalidade democrática. Para completar, tivemos em 2018 o maior nível de alienação eleitoral desde a redemocratização, com mais de 42 milhões de votos brancos, nulos e de abstenções. Números que indicam descrédito na democracia, tornando-a mais frágil e, assim, vulnerável a retrocessos autoritários.
nossa história recente o registro de guerra entre países democráticos. É por isso que surge o Pacto pela Democracia, uma iniciativa da sociedade civil formada por cidadãos e cidadãs de todo o país, organizações, coletivos e movimentos com diferentes pautas e áreas de atuação e lideranças políticas de vários partidos e esferas do poder público. Criada no começo de 2018, essa frente atuou de forma conjunta e intensa ao longo do ano. Mais de 90 mil cidadãos, 83 iniciativas da sociedade civil e 272 lideranças políticas oriundas de mais de 29 partidos já compõem essa rede. Juntos, A contenção da erosão promovemos iniciativas para democrática é uma qualificar o processo eleitoral responsabilidade de seus e também levamos a praças diferentes atores. Democratas públicas conversas sobre à esquerda, ao centro ou à política, eleições, democracia direita precisam reconhecer-se e participação social. enquanto um campo para atuar Para 2019, o compromisso de forma conjunta pela defesa do Pacto pela Democracia é e aprimoramento de nossas de fortalecer esse movimento instituições democráticas e de revitalização da vida política pelo desenvolvimento de uma e democrática brasileira. cultura política democrática Este é o momento de não mais profunda e efetiva. apenas conter o processo de A democracia é um modelo degradação da democracia, complexo e nunca atenderá mas também de criar uma rede integralmente aos anseios do que, apesar de suas diferenças cidadão justamente por ser estejam comprometidas com o resultado das tensões dos a construção democrática diferentes grupos sociais e brasileira, e você é convidado políticos. Apesar da sensação a integrar este movimento. de que ela não dá conta das Conheça o Pacto em www. demandas sociais, pesquisas pactopelademocracia.org.br da Universidade de Oxford Pedro Kelson é mestre em demonstram que países sob Cultura Democrática (PUC-SP). regimes democráticos tendem Flávia Pellegrino é mestra a ser mais ricos do que aqueles em Ciências Políticas autoritários. Tendem ainda a (Sorbonne Nouvelle - Paris). Ambos integram a secretaria ter melhores serviços de saúde, executiva do Pacto educação e respeito aos direitos pela Democracia. humanos, além de não haver em CIDADANISTA
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HQ | Guto Lacaz
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