ANO 2 | Nº 6
JULHO-OUTUBRO / 2018
A
ISSN 2526-4079
R E V I S T A
D A
N O V A
P O L Í T I C A
R$ 20,00 O valor arrecadado será revertido para a produção da próxima edição. Leia também o conteúdo em: cidadanista.com.br
Entrevista
Candomblé
Sônia para Presidenta
Legislativo
Terreiros periféricos
Por um novo Congresso
por IVAN ZUMALDE
por ANDREAS UFER
por ODED GRAJEW
Democracia sem privilégios
Deputado Federal
Corinthiana Democracia
A desigualdade como projeto
O que é e para que serve
por AMÉRICO SAMPAIO
por CHARLES NISZ
por CDC
Renovação e eleições mexicanas
Sistema versus Estado
Assentamento Amarildo
Que pasó en México?
Democracia em crise
por CAIO TENDOLINI
por ANA SUZINA
Sócrates cada vez mais moço
Agroecologia e resistência por LUIZ MILLER
+ E nt re v i s t a s excl u si va s co m :
SÔNIA GUAJAJARA (PSOL) | MARIANA HELOU (REDE) | ÁUREA CAROLINA (PSOL)
CARTA DO EDITOR | por IVAN ZUMALDE - zumalde@mymag.com.br
CONTRA ELE, SIM. SEMPRE Para noites de sono mais tranquilas, ainda nos faltam votos contra as ideias dele.
O
utro dia, um amigo soltou: "Se o Bolsonaro ganhar, te pago um choop". Não, meu amigo não vota nele e muito menos fazia aposta em cima da seriedade da ocasião. Longe disso. Apenas brincou com a casualidade e a incerteza do futuro das eleições e das pesquisas que ora confundem, ora confundem. A aposta veio quando falávamos sobre o perfil do eleitor do Jair e o quão esse eleitor é diverso. O fato é que, se Bolsonaro ganhar, é capaz de faltar ou proibirem o choop. Opiniões a parte – acho que o choop continua a existir mesmo se Bolsonaro ganhar – o candidato da extrema direita é uma ameaça e ponto. Um retrocesso com toques de fascismo brasileiro. Uma solução milagrosa para quem acredita que milagres existem. Quem o defende, ou é porque está desinformado ou porque está indignado – ou porque comunga de ideiais fascistas mesmo. A grande maioria é por causa da indignação com tudo e com todos. Essa parcela da população não consegue enxergar o que ele representa de tão raivosa que está com tudo. E não são poucos. Na minha pesquisa particular, 1 em cada 4 pessoas, vai votar nele, pois crê que o candidato vai "resolver" a situação do país. A razão para isso já foi debatida, escrita e compartilhada em todos os cantos. A crise social e política pela qual passamos somada ao ininterrupto mau trabalho de muito de nossos representantes causou tal sentimento de revolta em nós, brasileiros. A sociedade está com raiva e vontade de resolver logo. Quem não quer
dizer: "Chega. Não aguento mais, é preciso alguém para arrumar a casa. Alguém para fazer uma faxina em tudo de podre que temos no Brasil". E para isso, não precisa nem de pesquisa, nem de partido, nem de tempo de TV para saber quem representa –de forma oportunista– essa raiva toda. Sim, ele mesmo. Igualmente como fizeram em outros momentos da história Hitler e seu nazismo. Sem medo de comparações, e sem medo de combater o que Bolsonaro defende. Tempos obscuros merecem clareza e ação. O fato é que se ele ganhar, a situação pode e deve piorar. Além da perseguição natural sua e de seus seguidores contra mulheres, gays, pretos e pobres, a classe média, os ricos e todos que têm apreço por noites tranquilas de sono também vão sofrer. Só vai ser bom para quem quer ver o circo pegar fogo. Para o restante, é ruim eleger alguém despreparado e averso a ideias republicanas. É imprevisível e um risco para a combalida democracia ser representado pelas ideias militares dele. Os eleitores do Jair, votam no ódio que ele representa e não nele, um deputado federal medíocre, de ideias rasas, equipe idem e sem visão séria de país. Oportunamente, Bolsonaro brinca com a indignação e a revolta das pessoas e infla o ódio entre nós mesmos, misturando tudo o que não faz sentido com o falta de consciência política de nosso povo. É ele, sim que devemos combater como ideia, pessoa e votos nessa eleição. Sem apostas ou piadas. Ele, não. Hoje e sempre. Vote contra Jair Bolsonaro no dia 7 de outubro. CIDADANISTA
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SUMÁRIO | Ano 2, nº 6 | julho-outubro 2018
Sumario
MOVIMENTOS
28_O que faz um deputado? Charles Nisz
CIDADÃO
32_Aprendendo a renovar a política por Caio Tendolini 36_As crises das democracias por Ana Suzina 40_Desigualdades e privilégios por Américo Sampaio 44_Dos hippies ao Bem Viver por Gabriel Santana
POLÍTICA
07 12
Depositphotos
especial mulheres 50_SÔNIA GUAJAJARA 52_ÁUREA CAROLINA 54_MARIANA HELOU
FRUTOS
56_Por um novo Congresso por Oded Grajew 58_Fundo reeleitoral por Eduardo Mufarej 60_Um Sócrates cada vez mais moço por Coletivo Democracia Corinthiana
4 CIDADANISTA
Mídia Ninja
06
Reprodução
06_Uma nova sociedade; uma nova política 07_A democracia como pacto 10_Reduzir ou não o número de parlamentares? 12_Verdades e mentiras sobre Fake News 14_Livros: filantropia e permacultura 16_Violência contra jornalistas no Brasil 17_As crianças-soldado do Iêmen 18_Os orixás segundo um engenheiro 22_Ocupação Marielle, presente! 24_Agroecogia como resistência urbana
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Mariana Medeiros
NOTAS CIDADANISTAS
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Marcelo Camargo / Agência Brasil Reprodução
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Célio Turino Ivan Zumalde Vitor Taveira
EDITOR:
Ivan Zumalde (MTB 29263)
COLABORARAM NESTA EDIÇÃO:
Ana Maria Barbosa, Caio Tendolini, Fábio Rios, Francis Duarte, Guto Lacaz, Ivan Zumalde, Luiz Miller, Andreas Ufer, Susanne Sassaki, Américo Sampaio, Gabriel Santanna, Charles Nisz, Ana Suzina, Oded Grajew, Eduardo Mufarej, Walter Facetta, Victoria Roman, Thiago Fuschini,
Deposiphotos
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CONSELHO EDITORIAL:
Deposiphotos
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EXPEDIENTE
A revista Cidadanista é uma publicação independente e apartidária. Sua missão editorial é produzir conteúdo progressista visando a formação de uma frente de renovação política de esquerda no país. A publicação nasceu do movimento social Raiz Cidadanista e está alinhada com os valores Ubuntu, Teko Porã e Ecossocialismo. Para falar com a redação, envie um e-mail para contato@ cidadanista.com.br ou ligue: 11 983 166 642 – Todos os artigos e conteúdos veiculados nesta publicação refletem as opiniões de seus autores, e não necessariamente dos editores da revista Cidadanista ou da RAIZ Movimento Cidadanista. PARA ANUNCIAR OU FAZER SUA ASSINATURA CONTATO@CIDADANISTA.COM.BR
CIDADANISTA
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AMÉRICA LATINA | Relatório Update Fotos: Reprodução
por THIAGO FUSCHINI Seminário
Uma nova sociedade pede uma nova política
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sistema democrático já foi imaginado e reimaginado diversas vezes. O tempo atual está convocando a todos nós a fazer o mesmo. "Uma nova sociedade pede uma nova política.” É com esse mote que o Instituto Update, organização que estuda e fomenta práticas políticas emergentes na América Latina, realizou a pesquisa “Emergência Política – América Latina”, o retrato de um novo imaginário político latino-americano para o século 21. “Num mundo em que a política se torna sinônimo de crime e corrupção, trazer à tona referências capazes de resgatar a confiança na política, essa potente ferramenta de transformação, é o motivo deste estudo. E a América Latina é o grande palco de onde esse novo mundo emerge, especialmente em 2018, quando acontecem nove eleições que definirão os próximos passos na região”, explica Beatriz Pedreira, pesquisadora e cofundadora do Instituto Update. Fruto de uma viagem por 11 países – Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Guatemala, México, Paraguai, Peru e Uruguai – esse é o maior estudo sobre inovação política já realizado na região. Foram mais de 22 mil minutos de entrevistas com 250 lideranças sobre temas como “participação cidadã”, ”governo 2.0”, ”transparência”, “controle social”, “cultura política” e “comunicação independente”. O estudo é dedicado ao trabalho e à trajetória da vereadora Marielle Franco, executada em março deste ano no centro do Rio de Janeiro junto ao seu motorista Anderson Gomes. 6 CIDADANISTA
Mídia Ninja
Instituto Uptade promove seminário e lança relatório com iniciativas emergentes do cenário político latino-americano
A vereadora foi uma das 250 pessoas entrevistadas na pesquisa. O áudio da entrevista, realizada em agosto de 2017, foi transformado no curta A voz de Marielle, em parceria com a produtora Maranha. Caminhos para a democracia A pesquisa foi lançada no dia 6 de junho no seminário “Política do Século 21: a Democracia Reimaginada”, promovido pelo Instituto Update, em parceria com o Memorial da América Latina e apoio da Fundação Friedrich-Ebert-Stiftung Brasil (FES). O encontro contou com uma série de debates sobre soluções e caminhos para a democracia na região, com convidados do Chile, Colômbia, México e Brasil. Foram debatidos temas como “Inovação Eleitoral: experimentações, ferramentas e desafios para as eleições em 2018”; “Inovação pública: a reinvenção do Estado com a participação da sociedade e novas ferramentas”; “Advocacy: influência e incidência em larga escala”; “Inovação partidária: o rompimento da lógica e os novos papéis dos partidos políticos” e “Diversidade no poder: ocupação das mulheres nos espaços de poder”. Uma nova sociedade pede uma nova política. Para saber mais: www.emergenciapolitica.org
FRENTE AMPLA | Observatório das eleições
Frente ampla
A democracia como pacto Fotos: Reprodução
Coalizão com mais 60 organizações promove ações para fortalecimento da democracia e lança campanha para eleições
por THIAGO FUSCHINI
A vereadora Sâmia Bonfim, integrantes da Frente Favela Brasil e cidadãos em prol da Democracia
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eafirmar a importância do debate democrático na construção da política no dia a dia, garantir a realização de eleições limpas em outubro e criar uma ampla rede de apoiadores a uma reforma do sistema político brasileiro são os três principais eixos de ação do “Pacto pela Democracia”, coalizão de mais de 60 organizações e movimentos da sociedade civil — os institutos Ethos, Igarapé, Alana, Sou da Paz e Geledés, e grupos como Agora!, Acredito, RenovaBR, Brasil 21, Raps (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade), Bancada Ativista, Frente Favela Brasil e Movimento Raiz, entre outros. O Pacto elaborou um plano de ações para o segundo semestre, que inclui três eixos principais: uma campanha de mobilização, a criação do Observatório das Eleições, e a articulação com agentes políticos, como candidatos e partidos. 8 CIDADANISTA
A campanha de mobilização terá como foco as mídias sociais, com o objetivo de ampliar o alcance da mensagem do Pacto pela Democracia, através de artes, fotos, vídeos, hashtags e memes. O Observatório das Eleições será uma série de debates quinzenais, para reunir organizações do Pacto pela Democracia, compartilhar conhecimentos e informações para fortalecer a sociedade civil na produção de eleições limpas e diversas. O terceiro eixo é identificar candidatos, representantes, dirigentes partidários e outras lideranças que tenham sintonia com o Pacto pela Democracia, ampliando a rede de participantes. Para saber mais e participar: https://www.pactopelademocracia.org.br/
CIDADANISTA
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DOIS LADOS | redução de parlamentares
Sim ou não?
Reduzir ou não o número de parlamentares no Congresso? Perguntamos para dois candidatos ao Legislativo – federal e estadual – sobre a importância e a eficácia da redução do número de congressistas no Brasil
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SIM O Congresso é, ao mesmo tempo, ineficiente, caro e não representativo. Precisamos diminuir a quantidade de parlamentares, aumentar o controle social sobre a atividade parlamentar e aumentar eficiência no trabalho. A redução teria o efeito de tornar a representação no Congresso mais proporcional, reduzindo as distorções atuais, como o número de votos necessários para eleger representantes em cada estado, por exemplo. Sou candidato a deputado federal e, se eleito, apresentarei esta proposta. No caso dos deputados, seriam quatro deputados para o primeiro milhão de eleitores; depois, para cada 500 mil eleitores, uma nova vaga. O Brasil tem aproximadamente 1 milhão de indígenas, distribuídos por todos os estados, o que faz com que não alcancem um coeficiente mínimo de representação em nenhum deles. Para a escolha de deputados, teriam um colégio eleitoral nacional (o que resultaria em quatro vagas). Também é importante reduzir o número de senadores, de três para apenas dois por estado."
Célio Turino é historiador, idealizador dos Pontos de Cultura e candidato a deputado federal pelo PSOL-SP. 10 CIDADANISTA
NÃO Os custos com os parlamentares são altos? Sim e não. Por um lado, em 2018 serão gastos cerca de R$10 bilhões. Por outro lado, isso representa apenas 0,3% do orçamento federal, o que é pouco se pensarmos na importância da democracia e na quantidade de pessoas que esses parlamentares estão representando (cerca de um deputado para cada 400 mil habitantes). Menos ainda se levarmos em consideração que o Judiciário custa quase dez vezes mais que o Congresso. Dessa forma, é preciso pensar em alternativas que aumentem o grau de representatividade do país sem precisar cortar mais recursos de outros setores. Nesse sentido, é fundamental acabar com regalias e transformar esses recursos em mais cadeiras e representatividade, com mandatos mais baratos. Ao mesmo tempo, é fundamental reformar o nosso oneroso Judiciário e talvez repensar a nossa estrutura legislativa, já que uma única casa (somente a Câmara, com a extinção o Senado) poderia contribuir para dobrar o número de representantes sem elevar os custos.” Djalma Nery é professor da rede pública estadual, educador ambiental e candidato a deputado estadual pelo Psol-SP.
Reprodução
Léo Brito
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ARTIGO | notícias falsas
As verdades e as mentiras quando o assunto é fake news Notícias falsas são tão antigas quanto a imprensa. O que está por trás do uso do termo fake news pode ser, em realidade, a manipulação da opinião feita pela própria mídia
por FÁBIO ST RIOS
Q
uase que em tom de histeria, de uma hora para outra o mundo parece ter descoberto que existem notícias falsas e, o mais interessante, sob um novo nome, "Fake News". Com o mesmo ímpeto moralizante das "grandes guerras" contra alguma coisa, em que os americanos empreenderam no mundo, como a guerra às drogas e a guerra ao terror, agora, temos a guerra ao fake news. Eleito o inimigo comum, internamente, os EUA encontram uma fórmula mágica para manter a unicidade, já que o pensamento do antagônico é a única maneira de manter sua sociedade unida. Se por lá a tal "Fake News" tem cara de russo e cheiro de "macartismo", por aqui segue a mesma toada, o discurso anacrônico de uma guerra maniqueísta do bem contra o mal. Desde o invento da prensa de Gutenberg, existe notícia falsa, ou tendenciosa. O que separa o fenômeno digital fake news das tradicionais mentiras em jornais e livros não é a falta com a lisura ou verdade, mas o grau de popularização 12 CIDADANISTA
da prensa. Enquanto se mantinha na mão de poucos, quase não se falava nas manipulações grosseiras, como a edição do debate entre Lula e Collor, ou mesmo os sequestradores do empresário Abílio Diniz portando material de campanha do PT, na eleição de 1989. Não soa estranho que somente veículos digitais e de baixo custo de desenvolvimento, como blogs e páginas de redes sociais, sejam classificados como geradores das tais fake news? O que estaria na raiz da histeria seria a descentralização da geração de conteúdo de massa. Até pouco tempo, antes da popularização da internet, apenas algumas famílias dominavam o broadcast de notícias e formação de opinião. A internet, com as redes sociais e os blogs, abriu a janela que fez a luz entrar, e qualquer cidadão pode gerar conteúdo lido, no mínimo, por mil pessoas que compõem o seu círculo de influência. Portanto, foi a popularização da prensa de Gutenberg que gerou a histeria. Do ponto de vista dos jornalões, é preciso desclassificar as opiniões, os textos e as informações fora dos círculos "oficiais" do jornalismo. O que serve aos comuns, serve aos
Fotos: Depositphotos
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veículos como jornais, revistas e outros de porte menor que os jornalões e as TVs. Busca-se, portanto, reconstruir a ideia de que um fato só existe caso seja publicado na Folha, filmado no Jornal Nacional, ou publicado em qualquer veículo permitido pela oligarquia da informação. Não seria estranho que as agências de checagem jamais tenham analisado as manipulações dos jornais tradicionais? Por óbvio, questionar a classificação de fake news e a quem serve não significa não reconhecer fenômenos como o MBL, classificado como uma distorção do uso abusivo dessa liberdade por entidades que buscam fraudar processos eleitorais e de opinião, como a Cambridge Analytica. Seria, então, uma forma de questionar a quem servem as tais fake news e a quem serve a desclassificação das opiniões fora dos jornalões. Certamente, na sociedade do escândalo, a prevalência das informações se dá em episódios explosivos, e não na continuidade analítica. É nesse fenômeno da superficialidade dos discursos e na "desintelectualização" da sociedade que tais histerias se formam e as notícias falsas, que muitas vezes beiram o ridículo, ganham corpo e se propagam. Na raiz desse fenômeno e a quem serve está o histórico déficit educacional e a opção por uma formação tecnicista, em detrimento da pedagogia crítica, defendida por Paulo Freire. Não por acaso, o MBL defende uma anomalia chamada "Escola Sem Partido", com uma lei-padrão que pode ser baixada, impressa e apresentada por vereadores em qualquer município do país. Ou seja, se o Brasil tivesse dado o passo definitivo em direção a uma educação verdadeiramente democrática, as fake news não seriam problema, mas também, a mídia não se tornaria o partido político que se tornou, a influência da aristocracia econômica seria ínfima e a consciência do exercício da cidadania seria plena. Portanto, mais que um fenômeno editorial, as fake news são um caso educacionalmente de intelectualização da sociedade e de libertação dos povos, já que serve aos mesmos grilhões da escravidão moderna.
"Desde o invento da prensa de Gutenberg, existe notícia falsa, ou tendenciosa. O que separa o fenômeno digital fake news das tradicionais mentiras em jornais e livros, não é a falta com a lisura ou verdade, mas o grau de popularização da prensa."
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CULTURA | livros
Lançamentos
Filantropia e Permacultura
Fotos: Divulgação
Duas indicações de livros para uma leitura cidadã: Graciela Hopstein traz o tema da filantropia de justiça social enquanto Djalma Nery fala sobre os desafios da permacultura no Brasil.
Filantropia de justiça social, movimentos sociais e sociedade civil no Brasil Organização da publicação: Graciela Hopstein Editora: e-papers (e-papers.com.br) Páginas: 246 / Ano: 2018 R$ 48,00
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Livro: Filantropia
A
publicação Filantropia de justiça social, movimentos sociais e sociedade civil no Brasil reúne um conjunto de 22 textos que, desde diversas abordagens teóricas e práticas, apresenta análises e reflexões sobre o cenário da filantropia de justiça social no Brasil e as suas interfaces e articulações com grupos e organizações da sociedade civil, bem como com movimentos sociais. Com a finalidade de enriquecer o debate, os artigos que integram a obra abordam um espectro amplo e diversificado de temáticas e estão organizados em cinco partes: 1- O cenário dos direitos humanos na América Latina e no Brasil; 2- Visão internacional sobre a filantropia em América Latina e no Brasil; 3-Filantropia de justiça social no Brasil; 4- Filantropia comunitária no cenário internacional e no Brasil e 5- Mobilização de recursos e investimento social privado no Brasil. Uma pergunta fundamental que surge como eixo norteador para compreender o espírito dessa publicação é: o que se entende por filantropia de justiça social? Trata-se do apoio – através de doações diretas e indiretas – voltado para o fortalecimento de movimentos, organizações e grupos da sociedade civil ligadas à transformação social, à igualdade de acesso a direitos humanos e civis, à redistribuição de todos os aspectos do bem-estar e à promoção da diversidade e da igualdade de gênero, orientação sexual, raça, etnia, cultura e estado de incapacidade. De fato, um dos aspectos que chamam a atenção – especialmente para aqueles que atuam na área – é que o conceito de filantropia no Brasil carrega conotações pejorativas. E este é, sem dúvida, outros dos desafios centrais desta obra: poder desconstruir e construir (de forma simultânea) o conceito, recuperando o significado original “de humanitarismo, de ajuda e de amor pelo próximo”. Inclusive, quando se faz menção à temática de filantropia de justiça social, uma das questões-chave é poder falar em doação de recursos financeiros para atores estratégicos que trabalham no campo dos direitos humanos e para a promoção de iniciativas de transformação social, e essa tampouco é uma tarefa fácil. Captar e doar recursos para apoiar organizações da sociedade civil, movimentos e defensores de
direitos é um assunto complexo, uma questão permeada de julgamentos e preconceitos. Na tentativa de valorizar e ressignificar o conceito e as práticas de filantropia de justiça social (que são indissociáveis) para a maior parte dos autores, a doação para o fortalecimento de organizações e movimentos deve ser concebida como um autêntico ato político de empoderamento de atores (no sentido amplo do termo) que atuam no campo da defesa de direitos e da transformação social. Os/as autores/as que participam desta obra foram escolhidos/as levando em conta a diversidade de perfis, de trajetórias profissionais e de vida, com capacidade de abordar uma multiplicidade de temáticas vinculadas direta ou indiretamente aos campos da filantropia de justiça social e comunitária, tanto a partir de experiências práticas, como de análises aprofundadas sobre a realidade e os cenários de atuação. A obra representa uma contribuição para o campo da filantropia de justiça social não apenas porque são poucas as publicações existentes sobre a temática, mas principalmente porque ela traz um mapeamento completo sobre os cenários e porque a partir das diversas reflexões apresenta uma agenda positiva e propositiva para o campo da filantropia de justiça social para o Brasil.
Divulgação
A organizadora Graciela Hopstein Doutora em Política Social pela Universidade Federal de Rio de Janeiro (UFRJ), Graciela atua como pesquisadora e consultora em organizações sociais e apoio a projetos na área de justiça social, direitos humanos e desenvolvimento comunitário; planejamento estratégico institucional e de territórios. Atualmente é consultora associada ao GIP – Gestão de Interesse Público e coordenadora da Rede de Filantropia para a Justiça Social. Graciela Hopstein está promovendo lançamentos e debates com seu livro
Livro: Permacultura
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Uma alternativa para a sociedade – caminhos e perspectivas da permacultura no Brasil Autor: Djalma Nery Distribuição: Autonomia literária Páginas: 318 / Ano: 2018 R$ 50,00
o apresentar conceitos, Djalma caminha pela história da permacultura, e faz isso com profundidade e simplicidade em uma escrita de fácil entendimento. Filho de ambientalistas, o autor argumenta que o capitalismo é incompatível com a ideia de sustentabilidade, e o faz amparado em experiência e também em uma reflexão profunda sobre a ontologia do capitalismo, cuja razão de ser está calcada na acumulação infinita de bens. O capital gira dessa maneira, transformando valores de uso em valores de troca, e é com essa premissa que Djalma apresenta a permacultura como uma alternativa para a sociedade. O livro faz uma minuciosa arqueologia dos caminhos permaculturais no Brasil. Não se trata apenas da apresentação da teoria e conceitos, mas é também um livro de histórias pessoais, do cuidado com a terra, do cuidado com os outros, da partilha justa e da divisão dos excedentes. O título do livro, Uma alternativa para a sociedade, joga luz para uma era que ameaça o planeta e todas as suas formas de vida por meio da exploração desmedida da natureza; uma sociedade que banaliza a violência e a miséria, explora os seres humanos e propaga aos quatro cantos a desigualdade e a injustiça. O que a permacultura propõe para superar esses desafios, na prática, é uma revolução. É a busca de uma cultura da permanência em um contexto regido pelo individualismo. Permacultura é a busca por um modo de vida e de organização humana que possa ser mais duradouro e sustentável de fato, e não apenas na retórica. O livro quer ser uma obra sobre as possibilidades concretas de mudança. CIDADANISTA
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GIRO | pelo Brasil
por VICTORIA ROMAN Denúncia
Depositphotos
Brasil é país perigoso para jornalistas Entre junho e agosto de 2018, dois jornalistas foram assassinados. País ocupa o oitavo lugar na América Latina
E
m agosto, o país teve o segundo caso de morte de profissionais da comunicação apenas este ano, um caso a mais do que no ano inteiro de 2017. O jornalista e radialista Marlon Carvalho teve sua casa invadida por quatro homens às 2h da manhã e foi executado em Riachão do Jacuípe, na Bahia. Há menos de dois meses, em junho, o radialista Jairo Souza também fora assassinado a tiros na porta da rádio Pérola, em Bragança, nordeste do Pará. Em 2017, o Brasil foi o oitavo país mais perigoso para a profissão de jornalista na América Latina, de acordo com a Classificação Mundial da Liberdade de Imprensa 2017. Diferente do primeiro colocado do ranking mundial de mortes desses profissionais, a Síria, que ocupa a posição desde 2012, os casos que acontecem no Brasil não possuem relação com nenhum conflito armado, como é o caso dos quatro jornalistas mortos entre 2016 e 2017 no país. Luiz Gustavo Silva foi morto em Aquiraz, no Ceará, após publicar notícias de um assassinato, Maurício Santos Rosa era dono do jornal mineiro O Grito, João Miranda do Carmo, criticava em seu site o prefeito de Santo Antônio do Descoberto, e João Valdecir Borba era radialista no Paraná. O ano de 2017 contou ao total 65 vítimas no jornalismo no mundo todo. Um relatório do Repórteres Sem Fronteiras (RSF) aponta que, dos 65 casos, 39 jornalistas eram claramente alvos e os outros 26 perderam a vida em meio a produções de reportagens. Este ano, 50 jornalistas já foram mortos pelo mundo segundo a ONG. O que torna o cenário mais preocupante é a impunidade nos casos que, para a presidenta da 16 CIDADANISTA
Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Maria José Braga, é combustível para mais violência. “Nós temos muitos casos em que a justiça não é eficiente na parte do Judiciário", explica Maria José. Um outro motivo para a dificuldade em punir os culpados, aponta a presidenta, é a baixa notificação. “Nem sempre as agressões a jornalistas são notificadas”, conclui. O PAPEL DA IMPRENSA Os veículos possuem um papel importante na preservação da vida dos profissionais. Segundo Maria José, esse papel é garantir a integridade física e psicológica do funcionário. “Muitos casos de agressões a jornalistas, com ferimentos e até mortes, ocorreram por negligência das empresas ao colocarem seus profissionais na rua”, e continua: "As empresas empregadoras têm por lei a obrigação de garantir segurança, mas acabam agindo como se não tivessem responsabilidade sobre a questão”, conclui. Ainda segundo a presidenta, “com o trabalho de entidades sociais e até mesmo de ONG’s, como é o caso da Abraji, os profissionais estão percebendo que denunciar é uma forma de cobrar medidas e resultar em menos impunidade”, finaliza. A jornalista Patrícia Campos Mello comenta que é preciso aumentar a visibilidade desses casos. “Não era só o Tim Lopes que era da Globo: você tem profissionais em cidades do interior que também estão morrendo. Eu acho que aumentar a visibilidade é um grande passo, embora em alguns lugares você tenha oligarquias que controlam os veículos. É uma questão muito mais complexa do que a gente imagina”, conclui.
GIRO | pelo Mundo
por VICTORIA ROMAN Crise humanitária
Adel Yahya / IRIN / Reprodução
As crianças-soldado do Iêmen País vive guerra civil entre rebeldes e governo e crise humanitária leva crianças para trincheiras
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m relatório divulgado pela ONU em julho deste ano indicou que em 2017, 842 crianças-soldado foram recrutadas no Iêmen. O país vive desde 2015, segundo o CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha), a pior crise humanitária do mundo em consequência da guerra civil entre o governo e rebeldes. O comunicado feito pelo Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários no Iêmen anunciou que 76 das crianças participaram de combates. O restante, sendo algumas das crianças com apenas 11 anos, foram encarregados de, segundo o texto, “monitorar postos de controle e prédios públicos, patrulhar e levar água, comida e material para posições militares”. CRIME DE GUERRA Existe um acordo mundial que proíbe o recrutamento e o alistamento de crianças menores de 15 anos, definindo como crime de guerra o uso delas em conflito armado. Após o Estatuto de Roma de 1998, que estabeleceu a Corte Penal Internacional, também conhecida como Tribunal Penal Internacional, foi feito um tratado subsequente que elevou essa idade para 18 anos, porém nem todos os países ratificaram o protocolo. Segundo o mestre em Relações Internacionais e especialista em Direito Internacional Humanitário Tarciso Dal Maso, o que se pretende agora é elevar essa idade universal para no mínimo 18 anos. O Brasil ratificou o protocolo, portanto é um país que considera como crime o alistamento, recrutamento e envolvimento de crianças em conflitos armados.
Para Tarciso, o tema é dramático, porque “eles estão em uma extrema fragilidade, são muitas vezes recrutadas à força ou sequestradas de suas famílias, submetidas a tratamentos cruéis e, por vezes exploração sexual”. O especialista conta que as crianças são, muitas vezes, utilizadas para cometer crimes graves: “elas estão naquele misto de destemor e medo e acabam cometendo esses crimes graves, é um cenário triste”. A recuperação de crianças traumatizadas se torna uma tarefa delicada e agudamente difícil. “O retorno aos seus lares é complicado por conta da desagregação, portanto existe todo um sistema internacional de cuidado e proteção, sobretudo nas Nações Unidas em relação à essa população”. A questão das crianças-soldado vai além. Segundo o texto publicado pela ONU em julho deste ano, 1.316 crianças foram mortas ou mutiladas em 2017. Metade dos casos ocorreu em consequência da coalizão militar da Arábia Saudita contra rebeldes iemenitas no ano de 2015. Desde o início da guerra no Iêmen, 2.200 crianças morreram e 3.400 ficaram feridas. CRISE HUMANITÁRIA NO IÊMEN A crise humanitária no Iêmen é considerada a pior em curso na atualidade. Em um cenário de guerra desde 2015, ela é agravada por uma epidemia de cólera. A guerra que devastou o país coloca de um lado as forças do governo de Abd-Rabbu Mansour Hadi, que por sua vez é apoiado por uma coalizão sunita que tem como liderança a Arábia Saudita, e de outro, a milícia rebelde huti, de xiitas com o apoio do Irã.
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PERIFERIA | Terreiros de Candomblé
por ANDREAS UFER
Os orixás segundo um engenheiro Precisamos entender melhor os terreiros de candomblé e perceber o quanto somos preconceituosos
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mundo parece estar de ponta-cabeça quando um engenheiro escreve sobre os orixás. Não sou uma pessoa religiosa. Não sigo nenhuma religião ou prática espiritual estruturada. Busco minha espiritualidade em outros lugares – nas relações humanas e sociais, na enormidade da natureza e em nossas próprias jornadas interiores. Para mim o divino está em todo lugar, e cada um deve ser livre para encontrá-lo e expressá-lo de sua própria maneira. Ainda assim, recentemente fui surpreendido com a minha própria ignorância e preconceito. Desde a época de faculdade – e em especial na última metade de década – busco me dedicar a formas de trabalharmos a inovação, o empreendedorismo e, em especial as nossas organizações e relações humanas, para resolvermos os grandes problemas sociais e ambientais dos nossos tempos. Fiz disso meu trabalho de vida. Nessa jornada foram ganhando atenção e relevância central as barreiras entre periferia e centro e a forma como construímos muros invisíveis através da nossa ignorância, valores e níveis de consciência. Neste tempo interagi com a enormidão da periferia da zona sul de São Paulo centenas de vezes. Jd. Ângela, Jd. São Luiz, Campo Limpo e Capão Redondo – juntos abrigando 1 milhão de pessoas – são uma metrópole em si. Em minhas incursões conheci muitas pessoas incríveis, talvez em abundância e intensidade maiores do que nas regiões centrais. Tive conversas interessantíssimas com guerreiros, que nas condições mais adversas fizeram da luta pela melhoria do seu entorno e do campo social ao seu redor seu caminho de vida. Conheci inúmeros espaços de resistência, que trazem 18 CIDADANISTA
luz e abrigo contra o rolo compressor do dia a dia. Recentemente fui dar aula de empreendedorismo social pelo quarto semestre consecutivo para um grupo de universitários americanos, que passam quatro meses viajando o mundo para estudar inovação e negócios sociais em São Francisco, Uganda, Índia e Brasil. Dessa vez a aula foi sediada em um local no extremo sul do Jd. Ângela, periferia da zona sul de São Paulo, na Península de Ipava, onde o meio urbano colide com o natural. Onde a urbanização desordenada segue seu curso e expande os limites da nossa megalópole. A aula foi em um terreiro de candomblé. O local que hospedaria a apresentação a princípio me gerou muito estranhamento e pouco entendimento sobre as conexões com o assunto de que tratávamos. Mas como ao longo do tempo aprendi a seguir a caminhada com curiosidade e exercitando a suspensão de prejulgamentos, fui para a empreitada com ouvidos e olhos atentos e coração aberto. Fomos muito bem recebidos por Fabi, da organização A Banca, que articulou a visita, e também pelo Pai Musiala e por José Roberto, além dos demais membros da comunidade. Em sua fala, Fabi, que vive conectada àquele espaço há muitos anos, disse: “Como anfitriões acreditamos que o nosso papel é fazer com que vocês se sintam bem. Que se sintam em casa.” E assim nos sentimos. agência ophelia
Espiritualidade
Arquivo pessoal
"O candomblé permaneceu vivo nas periferias, que cresceram a um ritmo alucinante" Após a minha aula sobre modelos de negócio para impacto social, tiramos os sapatos e formamos uma roda do lado de fora com o pé na terra. Ao som de tambores fomos provocados a contemplar as folhas das árvores, sentir o sol no nosso rosto e vivenciar a terra sob nossos pés. “Kosi ewe, kosi orisa” – Sem a folha não há orixá, diz a sabedoria do povo Iorubá da África Ocidental. (segundo a tradição iorubá, os orixás são os espíritos ancestrais que representam as forças da natureza). O divino está na natureza e em todos nós. Partimos para uma apresentação do Zé Roberto sobre o histórico e significado do candomblé. Uma verdadeira jornada no espaço-tempo. Fomos apresentados à geografia dos fluxos escravocratas entre 1500 e 1900 que tiraram milhões de africanos de suas casas para se tornarem, a princípio, apátridas e levaram a uma miscigenação de diversas culturas da África Ocidental e Setentrional. Esses escravos na sequência foram libertados, mas desprovidos de
posses, de vínculos com a terra e acesso às estruturas de poder permaneceram marginalizados, como seus herdeiros seguem até hoje. Desse contexto histórico e da miscigenação de culturas e povo, surge o candomblé, uma religião e manifestação cultural que mantém vínculos com os valores e as crenças originarias na África e tem em seu centro a conexão com a natureza. No contexto urbano paulista a visão europeia e cristã prevaleceu. A partir da década de 1930 as crenças consideradas impuras foram sistematicamente apagadas das regiões centrais. Porém o candomblé permaneceu vivo nas periferias, que cresceram a um ritmo alucinante nas décadas que vieram, movimento impulsionado pelo fluxo migratório acelerado e as altas taxas de natalidade. Assim se perenizava uma divisão de centro e da periferia, de preto e branco, de cristianismo e cosmologias pagãs. Nas regiões centrais e nas pessoas de renda maior foi se cristalizando a visão negativa das religiões de origem africana, e o termo candomblé se associou a algo obscuro e sinistro. E eu me incluo nessa massa que nada sabe sobre as crenças africanas, e na ignorância as marginaliza. Daí o impacto da minha interação recente na Península de Ipava. A primeira surpresa foi me CIDADANISTA
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Toluaye
PERIFERIA | Terreiros de Candomblé
"O Candomblé é uma cosmovisão intimamente ligada à natureza. Ela carrega consigo o espírito dos povos africanos que viviam e se entendiam como parte do meio natural". perceber parte de uma visão míope e enviesada de mundo – e no fim das contas todas as visões o são. A segunda foi reconhecer que talvez algumas de nossas subculturas ainda carreguem algo que já perdemos há tempos. Sem a folha não há orixá – o candomblé é uma cosmovisão intimamente ligada a natureza. Ela carrega consigo o espírito dos povos africanos que viviam e se entendiam como parte do meio natural – diferente do homem moderno ocidental que ignora essa relação. As folhas das árvores são essenciais para suas práticas e rituais. Em regiões extremamente urbanizadas e sem vegetação, a prática do candomblé é sufocada. Sem a água não há axé (axé é a energia presente em cada ser). O candomblé tem uma relação importante com os rios e demais corpos d’água. Expulso das áreas centrais com maior renda, ele também agoniza juntamente com a natureza nas regiões periféricas. Como nos contou José Roberto, a represa de Guarapiranga que cerca a Península de Ipava está cada vez mais poluída pelos efluentes não tratados do próprio Jd. Ângela e outras regiões. Além disso, lagos menores na região foram aterrados e nascentes e riachos se tornam esgotos a céu aberto. Com isso os insumos necessários para as práticas do terreiro precisam ser buscados em lugares cada vez mais distantes. Sem a terra não há candomblé – O Candomblé está conectado de forma indissociável com o território que o abriga. Com a expansão do concreto e a impermeabilização urbana, sua expulsão do centro da cidade não foi só política, pela perseguição e aniquilação sistemática, mas 20 CIDADANISTA
também se deu pela perda de territórios naturais. Os terreiros foram diminuindo de tamanho, mas foram se tornando espaços de resistência, não só da cultura negra e africana, como também da nossa conexão com a natureza. Não me converti ao candomblé, tampouco entendo suas crenças e práticas. Porém saio dessa experiência com importantes reflexões. Saio com a sensação de que precisamos entender melhor os terreiros de candomblé e que tipo de contextos mais amplos eles simbolizam. Como são as relações entre maiorias e minorias, entre periferia e centro? Como se dão os últimos resquícios da nossa conexão com o restante da natureza? Mais uma vez saio certo de que nada é simples. Nós temos a tendência de simplificar as coisas para que caibam em nossa limitada visão de mundo e capacidade de abstração. Temos dificuldade em conviver com o contraditório e entender que existem infinitas formas de enxergar uma mesma questão. Quais outras visões e valores além do candomblé estamos marginalizando e excluindo com a nossa forma de organizar o mundo? Precisamos refletir sobre os terreiros de candomblé. Adoece o candomblé e adoece a civilização moderna. Ou será que não percebemos ainda que sem a folha, sem a água e sem a terra nós também não existiremos?
por FRANCIS DUARTE
Fotos: Divulgação
PERIFERIA | Saraus
Cultura periférica
Sarau, periferia e resistência em SP Os saraus feitos às margens da capital misturam arte e movimentos sociais em um caldo cultural tão grande e diverso quanto a própria periferia
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silêncio da noite na periferia de São Paulo é rompido por versos declamados por homens e mulheres, muitas vezes, anônimos e em espaços alternativos de cultura ou, até mesmo, bares. São os saraus que proporcionam às diferentes comunidades da zonas norte, sul e leste, força para a dinamização de uma cultura que resiste em locais invisíveis ao poder público e sua ideia de “cidade linda”. Sim, (r)existem escritores e artistas para além dos vapores dos imponentes prédios que engolem as existências daqueles que seguem diariamente no sacolejo do transporte público precário e de valores que impossibilitam o acesso às infinitas vertentes de entretenimento das áreas centrais e assim, frente a essa realidade, cravam nos saraus periféricos uma arte local, mas também polos de arte engajada que dialogam com movimentos sociais de luta por moradia, saúde, educação e lazer. A origem dos saraus remonta ao período da chegada da corte portuguesa na então, colônia, e algo restrito apenas à elite europeia, mas nada pode deter o tempo, as transformações sociais e a capacidade de ocupação de espaços das comunidades. Desse modo, tal como os transgressores e antropofágicos poetas modernistas de 1922, a cultura europeia é, finalmente, deglutida e brotam no asfalto, produções culturais periféricas e locais como
o hip-hop, o cordel, a feminista e, sobretudo, a negra, mão forte que construiu e constrói este país, mesmo sendo tão vilipendiada. Nesse âmbito, Alma Preta, Elo da Corrente, Sarau da Brasa, Sarau do Binho, Sem Saída, Sarau do Vinil, Sarau no Kintal se desenham da zona norte a sul como uma resistência viva contra a colonização cultural imposta por grupos que acreditam que a cultura seja algo padronizado ou esteticamente restrito aos “salões”. O que ganha voz e ouvidos atentos são os microfones abertos para serem recitadas poesias próprias ou de outros autores e, consequentemente, o romper de aplausos para os retratos do contexto social e da realidade das chamadas “quebradas”. Vale ressaltar a presença de frequentadores assíduos que surgem ao longo da caminhada da chamada arte periférica. A vanguardista Cooperifa, sarau nascido em outubro de 2001 da luta dos conhecidos poetas Sérgio Vaz e Marco Pezão, num bar em Taboão da Serra, se mostrou como um compromisso com a literatura e a cidadania. Um passo que possibilitou o nascimento de tantas outras vozes e, quase duas décadas depois, produziram obras de autores como o próprio Vaz, Binho e Sacolinha. Outro nome que ecoa no movimento cultural da periferia e reforça os saraus é o escritor Ferréz, que publicou seu primeiro livro em 1997, Fortaleza da Desilusão, e seguiu dois anos depois com Capão pecado, a história real da localidade do Capão Redondo, que o projetou como um dos mais importantes escritores da literatura periférica ou marginal do país. São essas vitoriosas iniciativas que se mostram como ritos de passagem do âmbito privado para o público e, além disso, para o povo periférico e lutador que se identifica como aquele que ressignifica sua existência. Da criança ao idoso, todos veem a arte, a literatura e a poesia saírem de um pedestal apenas canônico e avançar pelos locais invisíveis ao outro extremo da cidadela de concreto armado e que, injustamente, acaba por negar a beleza real dos não canônicos e que luta fortemente por justiça social. Salve este país chamado periferia! CIDADANISTA
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OCUPAÇÃO| artesanato
por FRANCIS DUARTE Bordado
Ocupação Marielle, presente! Ocupação do MTST em Recife leva nome de vereadora carioca assassinada e ocupantes fazem bordados para resistir e se manifestar
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esde março de 2018, o centro de Recife, capital de Pernambuco, possui uma ocupação num prédio na Praça da Independência. Pertencendo ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, o MTST, a Ocupação Marielle Franco é uma homenagem para a vereadora do PSOL/Rio de Janeiro, brutalmente executada junto com seu motorista, Anderson Gomes. O prédio é todo gerido por mulheres que lutam por moradia e para que outros direitos constitucionais sejam plenamente respeitados. O espaço realiza inúmeros debates e atividades coletivas, tanto que no final de junho uma oficina de “Bordado de Guerrilha” animou tanto os moradores da ocupação quanto o público externo, visto que foi aberta para toda a comunidade local. A proposta foi elaborada por Clara Nogueira, formada inicialmente em Arquitetura e idealizadora do projeto “Linhas de Fuga”, que sempre se mostrou sensível aos temas da luta por moradia e o direito à cidade. Nesse contexto, desde 2015, Clara realiza oficinas de bordado que possam retratar, além da beleza dessa arte, também, narrativas femininas entremeadas às questões sociais, tendo o “Bordado de Guerrilha” se concretizado pela primeira vez. Sob esse sentimento de luta, resistência e arte a Revista Cidadanista conversou com Clara Nogueira e procurou descrever o trabalho, um pouco das histórias e, principalmente, um espaço de transformação e luta social, direto da capital pernambucana. Num primeiro momento, a organização apresentou que a oficina de bordado trouxe diferentes narrativas das mulheres da ocupação, suas 22 CIDADANISTA
vivências. O encontro para que a rotina e as histórias surgissem num clima de coletividade se fez necessário, sobretudo em respeito pelas perdas e as conquistas dessas guerreiras que constroem a Marielle Franco. Vale ressaltar que todo esse processo de entrevistas foi registrado e, no momento da atividade, as mulheres, inclusive externas à ocupação e que participaram, puderam ler, sentir esses relatos e, de forma bem sensível, bordarem desde frases das companheiras da Marielle Franco até interpretarem seus sentimentos por meio de desenhos. Clara Nogueira fala com propriedade: “O bordado é uma forma de expressão sensível dessas vidas. É um meio comunicação com a sociedade civil de forma a entender como é uma ocupação e que é formada por pessoas”. A partir dessa fala, observamos que toda a metodologia e a estruturação do trabalho foram desenhados com as inquietações do sonho da moradia digna e sempre mostrando as mulheres como lideranças de ocupações, seu lugar de fala concreta e a coragem para permanecer na luta. Somando a isso, conforme já mencionado, a oficina foi aberta para pessoas externas à ocupação, e o investimento que fosse possível auxiliaria na aquisição de linhas, bastidores e outros materiais para
Mariana Medeiros
ser trabalhado coletivamente. Daí nasceu a expressão “bordado de guerrilha”, que é o trabalho executado com o material e o tempo que se têm, encarando de frente as adversidades da mesma maneira com que as mulheres da ocupação se deparam diariamente. Um desses relatos que se transformou em bordados foi o da sra. Alba Valério Gomes da Silva, 51 anos, que viveu uma parte no interior do estado, Taquaritinga, e, depois, na capital, Recife. Dona Alba conheceu o movimento por meio de um rapaz carroceiro (ambos também vivem da reciclagem), que informou sobre uma ocupação no “Barro”, localidade de Recife. Ela saiu de uma casa de tábua e precária para o prédio que abriga as guerreiras e os guerreiros da Marielle Franco. “O meu aqui é 'pedacinho do céu'. Meu pedacinho do céu aqui. Porque foi um milagre de Deus, foi uma bença. Pelo menos eu tô na paz.
Clara Nogueira realizou o mapeamento afetivo das mulheres pernambucanas que trabalham com linhas e fios. Criou um site onde apresenta esse trabalho e, assim, tece esperanças entre outras mulheres também. www.mulheresquetecempe.com.br
Lá a polícia invadindo direto os barraco da gente. A pessoa fica nervosa. E aqui, graças a Deus, não tem isso, né? É um pedacinho do céu mesmo, aí tem paz.” E foi com uma dessas narrativas que nasceu uma das interpretações bordadas extremamente simbólica: um prédio e, ao lado, “um pedacinho do céu”. A Revista Cidadanista acredita que a sociedade civil, em sua plenitude, compreende e defende a importância da moradia digna que é tecida a partir de uma ocupação. Desse modo, possamos alinhavar novos caminhos possíveis como as mulheres da Ocupação Marielle Franco, tomadas de marcas e sonhos: “Reproduzidos no bordado a casa, a estrada, a correnteza… O sol, a ave, a árvore, o ninho da beleza”, já dizia os versos de uma canção. CIDADANISTA
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ASSENTAMENTO | agroecologia
texto e fotos por LUIZ MILLER
Exclusivo
Agroecologia e moradia como atos de resistência urbana Assentamento Comuna Amarildo de Souza é o único em Santa Catarina que visa um modelo de produção agroecológico no contexto urbano
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a altura do Km 8 da SC-435, que faz a ligação entre Águas Mornas e São Bonifácio, beirando o lado oeste do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, visualiza-se um pneu velho, enganchado numa árvore, onde se lê “Terra, Trabalho e Teto”, lema que dá a centralidade das ações do Assentamento Comuna Amarildo de Souza. Terra como um bem universal, teto como moradia digna para sobreviver e trabalho como geração de renda e autonomia. Este último, inserido sob o paradigma dos conceitos de produção alimentar agroecológica. Enquanto caminha pela horta onde se vê o crescimento de tomateiros, feijão guandu e mandioca ou, como se diz no Sul, aipim, o gaúcho Dalto mostra orgulhoso a estrutura de estufa que construíram coletivamente e sorri quando fala da tobata que apelidaram de Mao. “A tobata é chinesa, então demos o nome de Mao”, se referindo ao líder comunista chinês Mao Tsé-tung. Dalto é um dos oito remanescentes da primeira ocupação dos Amarildos, quando estes ainda formatavam a ideia de reforma agrária "rururbana" e contavam com 700
Da esquerda para a direita: Pepe, Dalto, Fábio, o casal Val e Vânia e Ronaldo, os remanescentes da ocupação da SC 401, e que foram remanejados para o terreno em Águas Mornas. Eles estão em frente a uma das hortas agroecológicas do local.
famílias acampadas num terreno de 900 hectares no norte da ilha de Florianópolis. A ideia de ocupação dos espaços periurbanos surgiu desde o princípio do movimento, como medida para, além de fornecer moradia, fortalecer a agricultura urbana e o abastecimento orgânico da cidade, explicou o paulista Fábio. Logo na primeira noite de ocupação, ainda em Florianópolis, Fábio, formado em Agronomia pela UFSC, se juntou à ocupação para demonstrar solidariedade e não saiu mais. “Os caras chegaram em mim e disseram: você não tá na merda também? Então fica aqui”, se referindo ao fato de ele próprio, na época, não ter onde morar. TANTA CASA SEM GENTE, TANTA GENTE SEM CASA O começo dos Amarildos se deu no contexto do déficit habitacional urbano da Grande Florianópolis, a cidade com o quinto metro quadrado mais caro do Brasil, em que um palmo de chão custava, na época da ocupação do terreno localizado às margens da SC-401, exatos R$ 6.550, segundo índice Fipe/Zap. Soma-se a essa estrutura de especulação imobiliária o número de 31 mil famílias que vivem em condições precárias de moradia, sendo que o aluguel consome cerca de 30% de toda a renda familiar. Segundo dados do Censo Demográfico do IBGE, feito em 2010, existia na cidade de Florianópolis um total de 46.691 domicílios ociosos, sendo que, deste total, 21.552 encontram-se na condição de domicílios particulares não ocupados/ vagos. Essa quantidade seria suficiente para cobrir o déficit habitacional de cerca de 15 mil famílias que vivem em situações vulneráveis quanto à habitação. Isto por uma suposta lista da Prefeitura, a qual não se encontra oficialmente, ferindo assim a Lei de Acesso à Informação. O próprio terreno de 900 hectares à beira da SC-401, no norte de Florianópolis, objeto inicial do movimento, é um exemplo dessa política de exclusão. Com a ocupação em dezembro de 2013, demonstrou-se que a área tinha sido grilada durante os anos 1960 pelo deputado da Arena Artemio Paludo. Nesse período, foi criado o IRASC (Instituto de Reforma Agrária de Santa Catarina) com o intuito, veja bem, de distribuir terras, as quais
“Os caras chegaram em mim e disseram: você não tá na merda também? Então fica aqui” foram griladas e legalizadas para apadrinhados políticos do período. Ou seja, os amigos da côrte se beneficiaram dessa política, sendo que muitos deles, hoje em dia, dão nomes às principais avenidas, estradas e pontes de Santa Catarina. Enquanto o litígio judicial quanto ao terreno continua, já que foi considerado área da União, os Amarildos dizem que continuarão invadindo o local como símbolo de resistência e também de denúncia. Segundo eles, há interesses capitais por trás do ex-deputado da Arena que se diz titular da área, já que o terreno tem uma localização privilegiada e se encontra a cinco quilômetros de Jurerê Internacional – o metro quadrado mais caro da ilha, e que possibilitaria a construção de um heliporto, fazendo com que seus frequentadores não perdessem tempo no trânsito. Afinal, no verão, a ilha de Florianópolis se transforma num grande estacionamento de automóveis. UM CALDEIRÃO MULTICULTURAL Se, por um lado, os Amarildos, enquanto ocupação, denunciavam a especulação imobiliária na Grande Florianópolis, outro problema socioeconômico que assola o país contribui para a formação do grupo: a falta de oportunidade que leva migrantes em busca de empregos em outras regiões do país. Um deles, Val, veio da Bahia em 2007 em busca de trabalho e sofreu, literalmente na pele, pois chegou com roupa de baiano como disse, num período em que o inverno do Sul estava começando. Passou frio, fome, morou de ajuda, alugou casebres precários até dizer chega e se juntar aos Amarildos em 14 de fevereiro de 2014. Gostou da proposta de juntar luta por moradia e terra para agricultura, pois, no povoado de Teofilândia, de onde veio, Val trabalhava com a terra junto com o pai. A Amarilda Vânia, se juntou ao grupo com um mês de chegada em Florianópolis. CIDADANISTA
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ASSENTAMENTO | agroecologia
Com o pequeno Talisson debaixo do braço que, na época, tinha quatro anos, Vânia deixou São Miguel dos Campos em Alagoas, onde 20% da população concentra 80% de toda renda do município, atrás das mesmas condições de vida – renda e moradias dignas. Encontrou, no Sul, o mesmo cenário que empurra as pessoas ao subemprego: concentrações de renda e moradia. Vânia e Val não tinham apenas a origem nordestina e a vontade de sobreviver como ponto de intersecção. Quando se deu a reintegração de posse da área no norte de Florianópolis, os Amarildos foram levados para TI Morro dos Cavalos no município de Palhoça, numa área conflituosa para os guaranis de Santa Catarina. Foi nessa área do bairro Maciambu, que Val e Vânia descobriram que existe amor na luta. Dessa união, nasceu o pequeno Kaike no dia 3 de julho de 2014, data em que os Amarildos foram assentados pelo Incra na área destinada à reforma agrária em Águas Mornas, distante pouco mais de 40 quilômetros de Florianópolis. A LUTA POR TERRA É UM CONFLITO CONSTANTE Se na ilha os Amarildos tiveram problemas de aceitação e conflitos com moradores, como o que ocorreu quando foram deslocados para um terreno no bairro Rio Vermelho, na chegada em Águas Mornas não poderia ser diferente. Incentivados pela construção histórica-social que difama os movimentos que lutam por reforma agrária e pelo prefeito da época, Pedro Francisco Garcia, o qual dizia “hoje estão invadindo essa terra, amanhã a de vocês”, moradores do município se aglutinaram em frente ao terreno para pressionar o Incra a retirar os Amarildos. Naquele 3 de julho, enquanto Kaike nascia e os Amarildos conquistavam seu pedaço de chão de forma legal, os moradores locais tentavam argumentos contrários ao assentamento. Um dos senhores ali presentes carregava uma pasta com documentos que dizia comprovar a titularidade de suas terras desde o final do século XIX. Outro morador, a fim de criminalizar os Amarildos, disse que sumiu um martelo e que comeram algumas mexericas de sua propriedade.
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"A gente luta por terra e também por soberania alimentar e já pensou na agroecologia desde o primeiro manifesto" Ronaldo José da Silva, o único Amarildo nascido em terras catarinenses, está acostumado à criminalização dos movimentos sociais. Hoje, aos 59 anos, Ronaldo lembra das dificuldades que enfrentou após perder seu sustento. Mantinha uma farmácia pequena até a chegada das grandes redes do setor, levando à bancarrota Ronaldo e todos os pequenos comerciantes farmacêuticos. Após isso, o manezinho se juntou a diversas ocupações por moradia. No dia 26 de janeiro, quando soube da ocupação e ajudado por um vizinho, já que não tinha dinheiro para colocar gasolina no carro, Ronaldo se uniu aos Amarildos, os quais trata como se fosse uma família. Os conflitos, que não são apenas de ordem social, mas também institucional, fizeram com que os Amarildos perdessem corpo. Das 70 famílias assentadas em 2014, apenas oito resistiram até os dias de hoje. A falta de infraestrutura, pois foram assentados num terreno sem as mínimas condições, fazendo com que o banho de água aquecida em fogões à lenha fosse
Vânia e Val se conheceram durante a ocupação do terreno da SC-401 e tiveram um filho. No aniversário do menino, eles comemoram também o aniversário do assentamento.
uma constante durante os três primeiros anos, juntamente com as negativas frequentes da prefeitura local em atender os Amarildos no posto de saúde e a distância dos centros urbanos, levaram a essa perda significativa de famílias. Apesar de suas crianças frequentarem a escola, Val lembra da dificuldade em relação ao atendimento na saúde, que por Constituição é público e universal. Através do Incra, os Amarildos acionaram o Ministério Público Federal, o qual obrigou a municipalidade a atender e dar as mínimas condições de saúde aos assentados. PLANTANDO TERRA, PLANTANDO VIDAS Atualmente os Amarildos estão em condições melhores. Conseguiram, em pouco tempo, a certificação da Rede Semear como produtores orgânicos, o que dá uma condição favorável para comercializarem seus produtos em feiras e mercados. “A gente luta por terra e também por soberania alimentar e já pensou na agroecologia desde o primeiro manifesto”, salienta Pepe, que saiu de Ji-paraná, em Rondônia, com 19 anos, atrás das mesmas oportunidades socioeconômicas do restante dos Amarildos. Filho de soldados da borracha, Pepe levou sua experiência de mais de 25 anos nos movimentos de reforma agrária, viajando pelo país documentando a vida nas ocupações e a luta por terra. Sentado num banco de automóvel improvisado como cadeira, Fábio observava a conversa e frisou que os Amarildos têm dois princípios básicos quanto ao tipo de assentamento coletivo – o uso comum do solo, diferenciando do modelo básico de reforma agrária, o qual chama de burguês, porque em vez de terra coletiva, cada família tem seu lote para fazer o que quiser, bem como a agroecologia, dizendo que ali não entra um pingo de veneno. Fábio pensa num novo modelo de reforma agrária, na qual se priorize essas condições. “Dá para se produzir em grandes quantidades no modelo agroecológico”, salientou Fábio. O uso comum da terra foi discutido em reunião pelos Amarildos. Ali não vai existir muros; se uma família sair, dará espaço para outra que chegar com os mesmos intuitos e princípios que
fazem do Assentamento Comuna Amarildo um modelo de reforma agrária urbana. Os tempos vindouros são tenebrosos para a agricultura orgânica e seus modelos, com uma bancada política no âmbito federal sendo pressionada pelos interesses corporativos das multinacionais do agronegócio. Amarildos e toda uma rede de hortas urbanas se tornaram símbolos de resistência de segurança alimentar. AMARILDO, PRESENTE! CIDADANISTA
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SEÇÃO MOVIMENTOS | Matéria Eleições
O que faz o deputad Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil | Imagens: Depositphotos
por CHARLES NISZ
o que é deputado federal? Para entender o que é um deputado federal precisamos entender como o Brasil se organiza enquanto país. Somos uma federação que conta com 26 estados e um distrito federal, e esses estados são representados em Brasília por duas Câmaras: o Senado e a Câmara dos Deputados. O deputado federal é o representante da população dos estados na Câmara, eleito pelo voto popular para legislar e para fiscalizar os demais poderes.
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qual é o trabalho deles? É legislar, enxergando a sociedade e verificando quais leis precisam ser propostas ou atualizadas, bem como fiscalizar, verificando se os demais poderes estão cumprindo o corpo legislativo existente. Também é representar os interesses do cidadão que votou no conjunto de propostas que elegeu esse deputado. Porque um deputado é eleito pelas ideias e projetos que ele representa.
o que eles fazem e por que estão em brasília? Eles fazem esse trabalho de legislar e de fiscalizar de diversas formas: atuando em comissões, votando em plenário, realizando trabalhos temáticos, interagindo com as estruturas do Executivo, sempre com o objetivo de que as leis que regulam a sociedade sejam feitas e fiscalizadas. Ficam em Brasília porque lá é a capital do país, e o deputado federal é o representante do eleitor dos estados na sede da federação (que é Brasília).
qual a diferença entre deputado, senador e presidente? O deputado federal é o membro da Câmara dos Deputados, um de seus 513 membros, que são eleitos como representante do Legislativo em eleição proporcional para mandatos de quatro anos. Cada estado tem número de deputados eleitos proporcionalmente ao número de habitantes. São Paulo tem 70 deputados federais. O senador é o membro do Senado, eleito como representante do Legislativo em eleição majoritária por um período em oito anos. São os representantes das 27 unidades da federação, e existem três senadores para cada estado, totalizando 81 representantes. O presidente, por sua vez, é o representante máximo do Executivo, eleito para mandatos de quatro anos, com no máximo uma reeleição.
CIDADANISTA
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MOVIMENTOS | Eleições
quem pode ser deputado? A Constituição determina que, para se tornar deputado, o cidadão precisa ter: - nacionalidade brasileira; - pleno exercício dos direitos políticos; - domicílio eleitoral no estado que vai representar; - filiação partidária; - mínimo de 21 anos de idade.
como eles são eleitos? como funciona a regra por votos e por partidos? Deputados são eleitos em votação proporcional. Cada estado tem um número específico de cadeiras na Câmara dos Deputados, definidas de acordo com a população, com limitações: cada estado pode ter no mínimo oito deputados e no máximo 70. A votação proporcional funciona de acordo com o quociente eleitoral. O que é o quociente eleitoral? Você divide o total de votos válidos dentro do estado pelo número de cadeiras para a Câmara dos Deputados nesse estado. Aí a coisa começa a ficar um pouco mais complicada. Porque esse quociente eleitoral não é calculado pelos votos da pessoa, mas sim pelos do partido. Então você soma os votos de todos os candidatos do partido com os votos de legenda do partido e divide esse total pelo quociente eleitoral predefinido, de acordo com o total de votos válidos. Quando sabemos quantas vagas cada partido tem, tudo se simplifica: é só listar os candidatos mais votados por partido. Se eles estiverem dentro dessa cota, estão eleitos. Se estiverem fora, são suplentes.
por que o congresso tem mais brancos e homens se a população tem mais mulheres e negros? São vários os motivos. Há racismo na sociedade. Há machismo na sociedade. Mas também há uma profunda falta de democracia interna nos partidos. Recentemente, passou uma resolução definindo que no mínimo 30% das candidaturas devem ser femininas. Mas ainda é pouco, considerando que as campanhas mais endinheiradas, com mais acesso ao fundo partidário, ainda são de candidatos ligados aos caciques partidários. A baixa participação de mulheres e negros na política nacional reflete a profunda ligação do poderio econômico com as campanhas políticas. Nesse sentido, a Câmara dos Deputados representa, atualmente, mais as nossas elites do que propriamente a sociedade toda.
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quanto ganha um deputado? o que é a verba de gabinete, os benefícios extras e como funciona as emendas parlamentares? Os deputados federais têm salário de R$ 33.763, auxílio-moradia de R$ 4.253 ou apartamento de graça para morar, verba de R$ 101,9 mil para contratar até 25 funcionários, de R$ 30.788,66 a R$ 45.612,53 por mês para gastar com alimentação, além de outros benefícios, como aluguel de carros e plano de saúde da Câmara. Emendas parlamentares são destinações de recursos públicos do Executivo definidas pelos deputados. Há uma verba anual, definida em lei (após 2015, essa verba se tornou impositiva), para que os deputados façam emendas para a destinação de recursos públicos aos locais de votação. A regra é que 50% dos recursos devem ir para a área de saúde. O problema das emendas é que elas são utilizadas para favorecer políticos locais, como, por exemplo, o caso de um deputado que faz emendas para beneficiar um prefeito, que é seu aliado.
o que quer dizer o congresso bbb (bala, bíblia e boi)?
É uma bancada informal formada por três grupos que hoje exercem forte lobby no Congresso Nacional (não só na Câmara): 1) Os que defendem a liberação das armas para todo e qualquer cidadão, fazendo o jogo da indústria armamentista brasileira, que é a terceira maior exportadora de armas leves do mundo, mas que atua de forma muito limitada no mercado interno. 2) Os religiosos, que defendem um conservadorismo de costumes baseado em posições nascidas em igrejas católicas e evangélicas. 3) Os ruralistas, que fazem lobby pelo agronegócio, contra a agricultura familiar e contra grupos como os do Movimento sem Terra: o objetivo deles é a concentração de terras.
o que é mais importante? eleger um congresso ou um presidente? Não dá pra dizer que “é mais importante” eleger o Congresso ou a presidência. São poderes complementares. Eleger o Congresso é TÃO importante quanto eleger o presidente, uma vez que um faz contraponto ao outro. A questão é que a maioria das pessoas considera que a eleição para a presidência tem mais importância porque a presidência pressupõe mais poder concentrado na mão de uma pessoa só. Mas as duas eleições, além de concomitantes, são igualmente importantes.
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Fotos: Reprodução
MOVIMENTOS Renovação mexicana
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por CAIO TENDOLINI
Aprendendo a renovar a política Uma reflexão a partir das eleições mexicanas
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o dia 1 de julho de 2018 os mexicanos foram às urnas para escolher seus representantes para o Legislativo e o Executivo em âmbito local e federal. Você provavelmente ficou sabendo que Andrés Manuel Lopez Obrador foi eleito Presidente do México, num resultado histórico que tem, em suas potências e riscos, similaridades com a eleição de Lula em 2002. Este artigo é para contar uma história que você não escutou – a de um grupo político independente chamado WikiPolítica. O WikiPolítica (WP) surgiu a partir das manifestações #YoSoy132 em 2013, que emergiram nas universidades para protestar contra a candidatura de Enrique Peña Nieto à presidência. Peña Nieto é do Partido Revolucionário Institucional (PRI), que governou o México ininterruptamente por mais de 70 anos, no que os mexicanos chamam de “a ditadura perfeita” – um período democrático no qual o mesmo partido ganhou todas as eleições. Ali, o coletivo ainda se chamava de WikiPartido e tinha o objetivo de formalizar-se como partido político para conseguir disputar as eleições. Em 2014, o jogo mudou. O próprio Peña Nieto, pressionado por diversos grupos que pediam
mudanças que deixassem o jogo mais justo, aprovou uma reforma política que permitia candidaturas independentes – candidaturas de pessoas que não estivessem filiadas a partidos políticos (algo ainda proibido no Brasil). Nesse momento, o WikiPartido virou WikiPolítica. A estratégia que tinham era clara: percorrer o processo que aprovaria candidaturas independentes para disputar nas eleições de 2015 e conseguir dar visibilidade, estrutura e poder a esse projeto político. Em Jalisco, o jovem Pedro Kumamoto, de apenas 23 anos, foi o nome selecionado pelo coletivo para ser o candidato que representasse o projeto nas urnas. Pedro, um jovem de classe média, gestor cultural, tinha alguma experiência política em centro acadêmico e alguns movimentos ativistas. Para coletar as cerca de 8 mil assinaturas necessárias para validar a candidatura independente, o WP penou. Quase não tinham dinheiro, mas contavam com um pequeno grupo de pessoas altamente engajadas e um discurso potente e inspirador. “A política foi sequestrada de nós e está cercada de muros”, diziam algumas peças de comunicação, “mas esses muros vão cair.” E os muros caíram. Com quase 70 mil votos, numa campanha inovadora que custou menos de CIDADANISTA
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MOVIMENTOS | Renovação mexicana
70% das demais campanhas locais, Kuma foi eleito o primeiro deputado distrital independente do México, pelo estado de Jalisco. Em três anos de mandato, contrariando a lógica que diz que um candidato independente não seria capaz de fazer nada uma vez eleito, Kuma e o WP conseguiram acabar com o foro privilegiado em Jalisco, mudaram a forma de distribuir fundos públicos aos partidos, assim como aprovar leis que dizem respeito a imigração e meio ambiente. O WP deixou de ser somente uma potência eleitoral e tornou-se uma potência política. Em 2017, fui a Jalisco ao festival La Ocupación, promovido pelo WP para conectar seus mais de 12 núcleos locais que se formaram desde então, e pude presenciar o lançamento de uma campanha altamente ambiciosa. Kumamoto se lançava ao Senado mexicano e outros 15 integrantes do movimento a deputados estaduais e federais. Para ter sucesso, precisariam somar cerca de 1,5 milhão de votos nos diferentes territórios onde iriam disputar. De partida, precisaram coletar cerca de 200 mil assinaturas entre os candidatos postulantes para validar as candidaturas independentes. Só Kumamoto precisava de 150 mil para disputar o Senado. Conseguiram. Voltei a Jalisco em março deste ano pra acompanhar o início do período eleitoral e fiquei surpreendido com o que vi. Eram mais de 50 pessoas contratadas na estrutura centralizada de campanha, além de centenas de voluntários. O nível de organização era surpreendente, com cada um sabendo seu papel, tendo clareza de suas métricas e trabalhando dia e noite para alcançar o objetivo coletivo que havia sido traçado. Estive como observador em uma atividade de rua, onde senti algo inédito: pessoas indignadas com a política, cansadas dos vícios dos partidos
políticos, paravam seus carros para dar oi, para fortalecer, para pedir um adesivo e perguntar como podiam ajudar. Pessoas com tesão por política e inspiradas por um projeto que conseguia apresentar, na ética e na estética, uma outra política. Voltei ao Brasil com a certeza de que aquele grupo já era vitorioso e inspirado para dar sequência aos trabalhos aqui no Instituto Update, na Bancada Ativista e no #OcupaPolítica. No dia 2 de julho, que por acaso é meu aniversário, acordei pronto para celebrar por diversas razões: por mais um ano de vida, cercado de pessoas incríveis que dedicam sua vida para construir uma sociedade menos desigual e uma política mais acessível; porque o Brasil ia bem na Copa; e porque o WikiPolítica ia celebrar uma vitória mais do que justa. Eles perderam. Tudo. Nenhum dos 17 candidatos que disputaram em mais de 12 cidades distintas foi eleito. Entender o porque é aprender sobre como renovar a política. Primeiro, as regras do jogo. No México, o voto é distrital para o Legislativo, então só entra o candidato que ficou em primeiro lugar no distrito. Mas podem haver coligações, que somam votos para definir o mais bem colocado. O Kuma teve cerca de 800 mil votos, sendo o candidato mais votado para o Senado em Jalisco. Entretanto, sendo candidato independente, pela lei não podia se coligar e acabou ficando em terceiro lugar. O mesmo ocorreu com a maior parte dos candidatos do WP - todos ficaram em segundo ou terceiro lugar. Segundo, as estruturas de poder. O acesso dos partidos a recursos públicos foi muito superior ao que as candidaturas independentes tiveram, dando uma vantagem concreta para candidatos partidários realizarem campanhas milionárias. Terceiro, campanhas sujas. A campanha do WP pregava o jogo limpo: não disseminar fake news, não
"Estive como observador em uma atividade de rua, onde senti algo inédito: pessoas indignadas com a política, cansadas dos vícios dos partidos políticos, paravam seus carros para dar oi, para fortalecer, para pedir um adesivo e perguntar como podiam ajudar. Pessoas com tesão por política [...]"
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Obrador foi eleito em votação histórica
comprar votos, não fazer boca de urna etc. Os concorrentes, na ausência de fiscalização e punição concreta pela justiça eleitoral, abusaram desses recursos. Mas a responsabilidade também foi do WP. Eles menosprezaram a onda AMLO (sigla do presidenciável vitorioso), que foi avassaladora tanto em âmbito federal quanto local. Menosprezaram a ponto de evitar diálogo e às vezes até chegar a antagonizar. Foram extremamente ambiciosos: quiseram dar um salto de 60 mil votos para 1,5 milhão, um crescimento de mais de 20 vezes em apenas três anos. Caso Kuma tivesse saído para o congresso local em Jalisco, a história poderia ter sido diferente. Por fim, o WP concentrou toda a sua narrativa em antagonizar com os partidos políticos como grandes responsáveis pela falência da sociedade
mexicana, dialogando fortemente com a indignação dos cidadãos, mas criando inimizades poderosas no jogo político. Ao fim das eleições, o WP reconheceu a derrota e demonstrou clareza de que essa jornada está apenas em seu início. Vão seguir fazendo política, dentro e fora das instituições, e reforçaram que esse projeto político foi vitorioso em ampliar seu diálogo com a sociedade de forma exponencial. O WP vai ter que reajustar sua estratégia para se manter vivo e potente até o próximo ciclo eleitoral, daqui a três anos. Mas sua experiência é extremamente rica para todos nós que estamos buscando a construção de uma outra forma de fazer política, que desafia as estruturas de poder e muda o quem, o como e o para quê ocupar espaços de poder.
Tem crescido o uso do termo renovação política como uma solução para a crise política que estamos vivendo no Brasil. O conceito – que está em disputa e, dependendo dos rumos pode rapidamente cair em descrença no imaginário da população – implica que mudar a política do nosso país tem a ver com mudar quem ocupa os espaços de poder. A ideia de mudança tende a emergir durante períodos eleitorais como uma forma de dar visibilidade a outros nomes e grupos políticos, dado que é fácil apelar para o que não está funcionando ou o que pode melhorar. CIDADANISTA
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CIDADÃO Democracia
por ANA CRISTINA SUZINA
As crises das De
Em constante e vital transformação, o sistema democrático mundial acompanha a sociedade em embate com o capitalismo
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Marcelo Camargo / Agência Brasil
mo cra cias
Democracia? Deputados vibram a favor do impeachment de Dilma Rousseff no Plenário em Brasília. As elites acabam limitando a participação de movimentos sociais no Congresso.
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iscussões, debates, protestos, revoluções. A democracia está no centro de diferentes tipos de manifestações por todo o mundo neste começo de século. Existe uma tendência de falar de crise da democracia, de forma geral, fazendo referência a uma suposta história linear que evolui a partir da experiência grega. É importante reconhecer os pontos comuns e observar de que maneira a democracia, como conceito e como fundamento social, se consolida e se transforma. Mas é também muito importante identificar as peculiaridades que caracterizam uma variedade de crises nas diferentes democracias ao redor do mundo. Recentemente, na França, um colóquio falava de “democracia selvagem”, recuperando as reflexões do filósofo Claude Lefort (1922-2009), que denunciava uma tentação permanente de domesticar a democracia a partir de definições fechadas. Para o sociólogo francês Manuel Cervera-Marzal, o valor da proposta de Lefort está justamente em liberar a democracia dessas amarras. Para ele, “mais que uma resposta ou uma solução, a democracia é uma interrogação eternamente aberta”. Essa análise fina favorece uma melhor compreensão de que a democracia dialoga com seu contexto e que, justamente por seu caráter de buscar decisões coletivas, envolve tensões permanentes. Por sua vez, a profundidade dessas tensões e a maneira de lidar com elas revela muito do caráter de cada sociedade. UM MOVIMENTO, VARIADAS PRÁTICAS A variedade de compreensões e abordagens à democracia pode se manifestar mesmo em um único grupo social. A associação toute autre chose foi criada na Bélgica, em meados dos anos 2000. Como a tradução do nome sugere, ela busca uma organização social alternativa. A transformação da democracia vai no bojo dessa aspiração. Mas, numa síntese que ilustra o contexto mais amplo, pelo menos duas correntes diferentes convivem entre seus membros. Olivier Malay, ex-porta-voz da associação e doutorando em Economia na UniverCIDADANISTA
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José Cruz / Agência Brasil
CIDADÃO | Democracia
Fernando Frazão / Agência Brasil
À esquerda, índios invadem a Câmara dos deputados contra a demarcação de terras. Abaixo, posto sem combustível durante a greve dos caminhoneiros.
sidade Católica de Lovaina, explica que parte dos membros se organiza em torno do que ele chama “democracia cidadanista-ecologista” ou “transição democrática”, enquanto outra parte se concentra no campo da democracia “instrumental”. São dois eixos complementares que se mesclam na realidade, mas que revelam perspectivas diferentes. EU POSSO MUDAR O MUNDO A corrente da “transição democrática” se associa à consciência individual ou comunitária sobre a necessidade e a capacidade de mudar atitudes individuais que podem tornar o mundo melhor. O sociólogo belga Geoffrey Pleyers explica essas práticas por meio de seu conceito de “via da subjetividade”. Nele, os cidadãos buscam estabelecer uma coerência entre suas crenças e aspirações e suas atitudes. Um exemplo é deixar de usar o carro para contribuir no combate ao aquecimento global. No campo da democracia, as ações “cidadanistas” se referem a processos de participação nas decisões políticas. Tornar o processo mais participativo, mais direto, é o principal objetivo, independente do modelo social geral. Malay diz que os membros de toute autre chose que primam por 38 CIDADANISTA
essa abordagem estão preocupados, prioritariamente, em desenvolver mecanismos de consulta popular, para construir decisões políticas a partir do envolvimento de todos os interessados e afetados. Da cor do banco da praça à política de acolhimento de imigrantes, para esses cidadãos, o que mais importa é que as pessoas tenham espaços e processos que permitam opinar, discutir e construir decisões colegiadas. Os exemplos de iniciativas lembrados por Malay são assembleias constituintes populares, escolha de candidatos por sorteio e painéis cidadãos. Recentemente, a associação tomou parte de um painel cidadão para discutir a proposta de ampliação de um centro comercial na cidade universitária de Louvain-la-Neuve. Vinte e duas organizações se mobilizaram e envolveram a população local no debate que resultou no voto de 85% contra a referida ampliação.
TRANSFORMAR A DEMOCRACIA REQUER TRANSFORMAR O MUNDO No eixo descrito como “democracia instrumental”, a situação da democracia é uma parte de um amplo modelo social que precisa ser mudado por completo. Para esse grupo, a democracia atual tem maus resultados por causa, entre outras coisas, do modelo neoliberal e das políticas de austeridade. A política precisa mudar para se tornar mais representativa daquilo que a sociedade é e precisa. Para Malay, “não é possível dissociar democracia de relações de poder”, e isso coloca o modelo social no centro do debate. “As aspirações dos mais ricos acabam sendo mais eficazes porque sua voz é mais efetiva”, explica. Ele critica, por exemplo, o momento democrático atual, em que existe plena liberdade para a organização de movimentos sociais ou de processos de consulta popular, sem garantir uma capacidade real de mudança do modelo. “De que serve um painel cidadão se, no final, sua decisão não é forte o suficiente para mudar um acordo já estabelecido pelas elites políticas e econômicas?”, questiona. A “democracia selvagem” também entra em choque com os pilares do capitalismo, “porque é próprio do capitalismo designar um lugar determinado para cada ator social”, explica Cervera-Marzal. A democracia selvagem “é justamente esse movimento de (des)identificação, em que cada pessoa se emancipa do papel e do lugar que o capitalismo lhe determinou”, completa: quando “trabalhadores leem livros, empresários fazem trabalhos manuais, professores aprendem com os alunos, alunos vão para a Assembleia Legislativa, o capitalismo se desintegra”. A ruptura de estruturas de poder, própria da democracia, que deveria igualar a liberdade de ação na sociedade, é contrária aos pressupostos do capitalismo. OUTRA DEMOCRACIA, OUTROS CIDADÃOS A “outra democracia”, que é objetivo de toute autre chose, passa pela reforma institucional, mas envolve principalmente uma implicação forte dos cidadãos. O comitê coordenador da associação trabalha para que os dois eixos, de ampliação da participação e de mudança de modelo, se fortaleçam e se articulem proporcionalmente. O fun-
"As aspirações dos mais ricos acabam sendo mais eficazes porque sua voz é mais efetiva" damental de todo o processo de transformação reside, porém, “na politização dos cidadãos, tanto na formação intelectual quanto em suas atitudes”, enfatiza Malay. Para ele, o balanço de poder caminha de mãos dadas com uma cultura política desenvolvida. “Se os políticos sabem que os cidadãos se importam pouco com a política, eles fazem qualquer besteira”, explica. Para Cervera-Marzal, é essa adesão dos cidadãos que diferencia as recentes experiências da Espanha e da França na luta pelo avanço da democracia. Na Espanha, o movimento dos Indignados culminou com a criação de um novo partido político, o Podemos, mas uma parte da militância abandonou o movimento ou aderiu a outras práticas depois da apropriação de espaços institucionais. Na França, o envolvimento de militantes do movimento nuit debut com a política partidária é bastante tímido, mas existe e pode crescer. “Na Espanha, mais de 4 milhões de pessoas participaram de alguma mobilização nas praças e ruas em 2011, enquanto apenas 400 mil aderiram a alguma ação coletiva na França”, contabiliza o sociólogo. “Mesmo que as formas de ação sejam parecidas, a amplitude da contestação social é muito diferente”, destaca. O ponto comum que aparece nos debates ao redor do mundo é esse desejo pulsante de mais participação social efetiva, que se associa diretamente com a questão das assimetrias de poder. Seja em processos de participação política popular, seja em projetos de mudança de modelo social, as assimetrias aprofundam desigualdades. A diferença no acesso a recursos se soma a segregações morais de diversos tipos que tornam algumas vozes mais legítimas que outras. A assimetria reduz ou inibe a capacidade de contribuir para a construção e para a transformação da realidade. Para ter mais democracia é preciso garantir participação com paridade. CIDADANISTA
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CIDADÃO desigualdade
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por AMÉRICO SAMPAIO
Desigualdades e privilégios na democracia brasileira A s desigualdades presentes em uma sociedade são sempre proporcionais ao tamanho de seus privilégios. Dados da organização Oxfam de janeiro de 2018 mostram que cinco bilionários brasileiros concentram patrimônio equivalente à renda da metade mais pobre da população. É inaceitável, sob qualquer aspecto, um país atingir tal nível de desigualdade. O fato de cinco pessoas obterem tamanha riqueza, enquanto um quarto da população – ou 52 milhões de brasileiras e brasileiros – vive abaixo da linha da pobreza estabelecida pelo Banco Mundial deveria indignar a todos e produzir uma verdadeira insurgência em defesa da igualdade e de melhores condições de vida. Os cinco bilionários que concentram cifras estratosféricas de patrimônio são Jorge Paulo Lemann (3G Capital), com R$ 95,3 bilhões; Joseph Safra (Banco Safra), com R$ 71,1 bilhões; Marcel Herrmann Telles (3G Capital), com R$ 47,7 bilhões; Carlos Alberto Sicupira (3G Capital), com R$ 40,7 bilhões; e Eduardo Saverin (Facebook), com R$ 29,3 bilhões. Na outra ponta dessa régua estão as brasileiras e brasileiros que vivem com menos de US$ 5,50 por dia, por pessoa, o equivalente a uma renda mensal de R$ 387,07 per
capita (valores referentes a 2016, segundo dados da Síntese de Indicadores Sociais 2017, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE). Para se ter uma dimensão da distância que separa esses dois extremos da pirâmide econômica, uma pessoa remunerada só com um salário mínimo – realidade de mais da metade da população brasileira – precisa trabalhar 19 anos para conseguir acumular a quantia ganha em apenas um mês por um integrante do grupo do 0,1% mais rico do país. Só isso já dá uma dimensão do alto grau de privilégios na sociedade brasileira. Nesse sentido, é importante destacar ainda que a brutal concentração de renda em nosso país é incompatível com o que recomenda a Constituição Federal de 1988. Segundo a Carta Magna, configuram objetivos fundamentais da República brasileira: erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, bem como promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Mas, na prática, nossa realidade está completamente distante do que preconiza a Constituição
Foto: Alicia Nijdam
CIDADANISTA
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CIDADÃO | urbanismo
brasileira. Quando analisamos esses dados por gênero e raça, o problema se agrava ainda mais. Segundo o IBGE, em 2017 o salário médio das mulheres representou 77,5% do rendimento pago aos homens no Brasil. Enquanto os brasileiros receberam R$ 2.410, em média, as brasileiras ganharam R$ 1.868. Quando comparamos o ano de 2017 com 2016, os dados revelam que a diferença ficou praticamente estagnada nos dois últimos anos, 77,5% (2017) contra 77,2% (2016). Quanto à população preta e parda, a distorção é ainda mais profunda. O rendimento médio mensal dos trabalhadores e trabalhadoras brancas em 2017 foi de R$ 2.814, enquanto a população parda recebeu 57% desse valor, o equivalente a R$ 1.606, e a população preta, 55,8%, ou R$ 1.570. Esses dados escancaram uma realidade que coloca o Brasil entre os países mais desiguais do mundo. A cereja do bolo vem do recém-divulgado estudo do grupo de Thomas Piketty, publicado sob o título de Pesquisa Desigualdade Mundial 2018, em que aponta que quase 30% da renda do Brasil está nas mãos de apenas 1% dos habitantes do país, isto é, literalmente a maior concentração de renda do mundo. Além disso, uma das perspectivas mais cruéis das desigualdades que caracterizam a sociedade brasileira é a transferência intergeracional da desigualdade. Ela é um verdadeiro ciclo de privilégios que sustenta a dinâmica social, política e econômica de nosso país, e destina péssimas condições de vida às camadas populares. Os mais ricos terão sempre mais acesso a oportunidades, escolarização, emprego e, por consequência, à renda. Segundo a PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), divulgada neste ano, as brasileiras e brasileiros sem estudo tiveram uma remuneração média de cerca de R$ 850, enquanto o grupo que tem ensino superior completo recebeu em média R$ 5.000. Se considerarmos ainda que 77% dos brasileiros que têm pais com nível superior conseguem concluir a faculdade, mas que essa taxa cai para 18% para aqueles que os pais só completaram o ensino fundamental, podemos ter uma noção mais precisa do impacto que a educação tem no acesso à renda e vice-versa. É isso o que concluiu também o relatório feito pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) com dados de 30 países, 42 CIDADANISTA
A CONCENTRAÇÃO DE RENDA NO BRASIL
50%
mais pobre
5
mais ricos
cinco bilionários brasileiros concentram patrimônio equivalente à renda da metade mais pobre da população.
QUANTO GANHAM HOMENS E MULHERES
R$ 2.410
22,5% R$ 1.868
intitulada "O elevador social está quebrado? Como promover mobilidade social," divulgado em junho deste ano. Segundo o estudo, o Brasil ocupa a segunda pior posição em mobilidade social entre os países estudados. Para a organização, seriam necessárias nove gerações para que os descendentes de uma família que está entre os 10% mais pobres conseguissem atingir o nível médio de rendimento do país. Esse cenário é também peça-chave para se compreender o impacto da crise econômica brasileira nos diferentes estratos da sociedade. Segundo o cruzamento de dados do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV), os 20% mais ricos do país tiveram uma variação positiva de cerca de 10% no rendimento médio quando comparamos o primeiro trimestre de 2017 com o de 2018. No entanto, os 20% mais pobres tiveram uma variação negativa de 5% na renda média no mesmo período. Isto é, a saída da recessão econômica brasileira é radicalmente diferente para a população mais pobre. Por fim, é preciso evidenciar que o quadro de desigualdades sobrepostas na sociedade brasileira não é apenas um fenômeno social de nossa construção histórica, e muito menos a resultante de
uma ação estatal ineficaz e ineficiente ao longo de décadas e mais décadas. A desigualdade brasileira é um projeto, bem construído e estrategicamente elaborado de acordo com as diretrizes dadas por uma parcela da sociedade que não reconhece o valor da igualdade, da solidariedade e da fraternidade. Um exemplo crasso desse projeto é o sistema tributário brasileiro. Os mais pobres gastam 32% de tudo o que recebem em tributos, enquanto os mais ricos destinam apenas 21% de sua renda em impostos. E quando analisamos esses dados do ponto de vista dos impostos indiretos (aqueles cobrados sobre produtos e serviços), observamos que o abismo entre os dois extremos da pirâmide econômica é ainda maior. Cerca de 30% do rendimento dos mais pobres é consumido com esses tributos, enquanto os mais ricos gastam somente 10% do seu rendimento com esse tipo de imposto. Apesar de assombroso e inaceitável, o cenário das desigualdades no Brasil também aponta alguns caminhos para sua resolução. Estes passam fundamentalmente por quebrar o ciclo de privilégios que sustenta a sociedade brasileira. Para fazê-lo, é preciso construir um verdadeiro pacto popular pela dignidade humana, com vistas à ruptura com o sistema político e econômico vigente, deflagrando o fracasso do modelo de desenvolvimento brasileiro. Não podemos olhar para esse contexto e imaginar que ele deu ou dará certo em algum momento. Fruto desse OS BRASILEIROS E A DEMOCRACIA
13%
estão satisfeitos ou muito satisfeitos com a democracia
modelo, as desigualdades brasileiras são imorais, desumanas e antiéticas. Para enfrentar o problema, é preciso ampliar significativamente o acesso à educação dos mais jovens, a oferta de trabalho e renda para os mais pobres e promover políticas públicas redistributivas, isto é, uma forte intervenção estatal redistributiva. Mas não só isso. É preciso também alterar o curso do modelo político, econômico e social vigente e, acima de tudo, entender que não será pelas mãos do mercado, e muito menos pelo liberalismo econômico, que as desigualdades no Brasil poderão ser mitigadas. A responsabilidade é de toda a sociedade, mas é certo também que é papel do Estado ser o grande indutor de políticas que combatam o ciclo de privilégios e as desigualdades no Brasil. É evidente que as desigualdades atingiram patamares catastróficos no Brasil e colocam em xeque o modelo de desenvolvimento que o país tem apostado como o caminho para uma vida plena, digna e com bem-estar para todas e todos. Porém os impactos de uma sociedade altamente desigual não se dão somente no plano das diferenças na qualidade de vida entre ricos e pobres. Seus impactos abarcam também a perda de confiança na democracia. A pesquisa publicada pela ONG Latinobarómetro em 2017 nos permite identificar esse fenômeno. Segundo os dados do levantamento feito em dezoito países da América Latina, o Brasil é o país mais insatisfeito com a democracia. Apenas 13% dos brasileiros declaram estar “muito satisfeitos” ou “satisfeitos” com o sistema democrático. E no que diz respeito à fidúcia no sistema democrático, a confiança do brasileiro em relação à democracia também vem caindo. Em 2010, 80% da população afirmava que a democracia é o melhor sistema político; hoje essa taxa é de apenas 62%. Assim, num contexto de absoluta brutalidade com relação às desigualdades e com o descrédito na democracia brasileira, resta a pergunta: até quando o tecido social aguenta ser esgarçado em nome dos privilégios de poucos? As desigualdades são o produto e ao mesmo tempo produzem o sistema político brasileiro. Para avançarmos num pacto popular pela dignidade humana, é preciso romper com o atual sistema político, econômico e social brasileiro. Do contrário, continuaremos a assistir à reprodução das desigualdades e privilégios na democracia brasileira. CIDADANISTA
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CIDADĂƒO Bem Viver
Dos hippies ao Bem Viver Imagens: Depositphotos
44 CIDADANISTA
por GABRIEL SANTANNA
U
ma vida de paz sem guerra, baseada na luta pelo bem comum. É assim que alguns jovens estadunidenses viam os povos originários do país. “Havia essa percepção – até estereotipada - de que os nativos viviam (...) de maneira simples, da terra, vidas de intensa espiritualidade”, diz Sherry L. Smith, historiadora estadunidense e escritora do livro Hippies, Indians and the Fight for Red Power em entrevista ao jornal on-line Indian Country Today. Na verdade, a visão romântica não era completamente real. Havia rixas nas tribos e entre as tribos; certos pudores sexuais compunham a moral de muitas das comunidades; o clima perverso de algumas regiões impunham dificuldades que às vezes resultavam em racionamento de alimentos. Enfim, o paraíso não era perfeito. Mas havia muito o que ser aprendido. O respeito pela natureza, a noção de vida como algo que transcende o humano e a própria biologia tradicional eram elementos que intrigavam a juventude do país. “Encarar a natureza como sujeito de direitos, trabalhar o Bem Viver, são coisas que o movimento hippie já falava desde o final dos anos 60", conta Thomas Enlazador, permacultor e cientista jurídico especialista em cultura dos primeiros povos. Segundo essa filosofia do Bem Viver, a natureza é a composição de todas as existências. Não se pode pensar no indivíduo sem o coletivo, da
mesma forma que não se pode pensar no coletivo sem a natureza. Existe uma energia que flui entre tudo e todos. A essência vital. Uma árvore tem direitos, as águas também. A Mãe Terra tem direitos. Isso é Mino-bimaadiziwin, a maior das filosofias, com versões em muitas tribos em toda a América. Em Quíchua, na Colômbia, Sumak Kawsay; em tupi, no Brasil, Teko Porã. Em português conhecido como o Bem Viver. A juventude estadunidense, crescida em momento de crise das instituições (momento de guerra fria e conflitos ideológicos por todo o mundo), abraçou a filosofia do Bem Viver como contestação a valores tradicionais e capitalistas. A luta sempre foi, em parte, por alternatividade. O afronta pela afronta. Hippie significa “estar por dentro”, saber das boas-novas. “o grupo surge com um conjunto de jovens economicamente privilegiados que buscam se retirar da sociedade tradicional”, nos conta a historiadora Débora Bergamini. Assim, era inevitável que alguns não se interessassem realmente pelo que os nativos se propunham a ensinar, mas pela estética do movimento e como ela poderia melhorar suas autoimagens. Daí têm-se as mais diversas distorções dos princípios. O uso de drogas sem a reflexão espiritual; o poliamor baseado em um senso de consumo, em vez de no sentimento de amor para todos; a conversa em roda, mas sem reflexão sobre as filosofias dos primeiros povos. Todos os tipos de desvios e perdas. A justificativa sendo, muitas vezes, uma leitura equivocada das tradições nativas. As comunidades originárias também não aceitavam a juventude indignada apenas por questões filosóficas e metafísicas. Queriam que suas terras e direitos fossem reconhecidos. “Alguns nativos queriam se engajar com os hippies por considerá-los politicamente úteis”, explica Sherry L. Smith. Viam nos hippies uma forma de conseguir atenção da mídia, bem como suporte legal e político de pessoas acostumadas a navegar pelos meandros da sociedade republicana. Mas mesmo que por vezes conturbada, e permeada por segundas intenções, a aliança entre jovens e nativos potencializou a filosofia ancestral do Bem Viver. “Conseguiram uma visibilidade muito maior para o tema ambiental. Não ficou mais uma questão restrita a um nicho. A temática alcançou a todos os setores da sociedade.” E não é para menos: Aliados vindos de comunidades ocidentais e nativas acorrentavam-se a árvores no caminho de tratores CIDADANISTA
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CIDADÃO | Bem Viver
encomendados por grandes corporações. A ganância não pode passar por cima dos direitos da floresta! Em alguma extensão não importava muito se princípios individualistas rondavam os estímulos de alguns integrantes do movimento. A luta era das mais nobres. E o legado filosófico, inegável. O espírito da paz atravessou a barreira dos interesses e contagiou tanto os jovens quanto os nativos. Para alguns pensadores não se pode entender o Bem Viver sem essa relação com movimentos sociais e políticos da época. “[O Bem Viver] foi igualmente influenciado por críticas ocidentais ao capitalismo (...). Especialmente no campo feminista pelo ambientalismo”, explica o especialista no assunto Eduardo Gudynas, em entrevista ao jornal The Guardian. A exaltação do amor e da paz, como princípios elencados para intermediar a relação entre os primeiros povos e descendentes de europeus, fez nascer uma nova cultura. A indignação foi somada à tradição. Os hippies foram muito mais do que sexo drogas e rock n’ roll. Foi a luta por uma outra forma de pensar o mundo, baseada na cultura da paz, do amor e do Bem Viver. Mas símbolos são quebrados, movimentos se dissipam e estéticas são sequestradas. O governo de Nixon não foi bom para os hippies. Em 1971, no protesto de “MayDay”, 12 mil hippies foram presos. Nixon temia uma nova Woodstock. E as classes dominantes temiam uma revolução. Colocaram o poder das armas contra o poder das flores. O resultado não foi paz nem amor. Ao mesmo tempo, um sentimento da parte alienada do Ocidente contra
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o comunismo, a China e a União Soviética provocou um apelo a valores nacionalistas. Na verdade Nixon imitou o autoritarismo russo e chinês, colocando o nacionalismo fanático da população contra todos os que fugissem da norma. Como se não bastasse, a estética hippie era sequestrada pelo capitalismo. Filmes, músicas e comícios eram realizados com o apoio do grande capital. Muitos, temendo a repressão policial, preferiram as opções mais “seguras” do movimento. Contentaram-se com o formato. Perderam a essência do embate e reduziram o movimento hippie a mais um produto consumido na forma de acessórios de determinada moda, alimentos de determinados tipos, e em shows, músicas e filmes de determinada estética. O que foi um tanto esquecido foi justamente o que os nativos tinham a ensinar: o Bem Viver. A vida para além de bens materiais, para além do prazer instantâneo, da mera estética. Não são muitos os que se lembram. Infelizmente, mesmo a maior parte da esquerda tradicional permanece omissa aos ensinamentos hippies. Cercados até hoje pelo fantasma da União Soviética, insistem em uma dialética centrada no produtivismo. Não abraçaram os princípios da paz e da harmonia como norteadores de uma nova visão de mundo, preferindo no lugar uma visão europeia centrada no velho marxismo-leninismo. “A grande maioria da esquerda é materialista, marxista. (...) nunca estiveram conectados com as filosofia hippies e dos primeiros povos”, complementa Thomas Enlazador.
Mas nem tudo foi perdido. Ao contrário: o movimento hippie se desdobrou em dezenas de outros por todo o mundo. No México, por exemplo, Coyote Alberto Ruz criou em 1982 a Ecovila Huehuecoyotl. O permacultor, ativista e cientista social coordena no alto da montanha Tepoztlan, no México, uma verdadeira comuna hippie nos tempos modernos. Os princípios norteadores são a paz e o amor, o Bem Viver. De 1996 até 2009, Alberto e sua trupe viajaram por toda a América Latina em expedição, na Caravana Arco-Íris pela Paz. Um conjunto de trailers e caminhonetes que circulam pelo continente aprendendo e ensinando com as populações. Qualquer semelhança com uma caravana hippie não é mera coincidência. No Brasil, o próprio Thomas Enlazador lança suas flechas na luta pelo Bem Viver: é codeputado do Mandato Cidadanista. Uma pré-candidatura a deputado federal com design em roda, que propõe a cultura dos primeiros povos, e os direitos da Mãe Terra como alguns de seus alicerces. No último Fórum Social Mundial, no Brasil, foi também, um dos lançadores da aela (Aliança Ecossocialista Latino-americana), que tenta ser o mediador de uma aliança entre países do Sul do continente pautada no amor e na paz. Nas Constituições do Equador e da Bolívia, os direitos da Mãe Terra e o Bem Viver já têm força legal, inspirando e incentivando o mundo inteiro a considerar as filosofias dos primeiros povos da América. O fato é que há esperança. Pessoas maravilhosas dispostas a ceder seu sangue por um mundo mais tupi, mais náuatles, mais apache. Enfim, por um mundo mais nativo.
"Nas Constituições do Equador e da Bolívia, os direitos da Mãe Terra e o Bem Viver já têm força legal, inspirando e incentivando o mundo inteiro a considerar as filosofias dos primeiros povos da América."
CIDADANISTA
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POLÍTICA Sumário
ENTREVISTAS
Especial Mulheres Eleições 2018 Um importante passo
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na renovação política nacional é a inclusão de mulheres nos espaços de poder. Conversamos com três postulantes a cargos nessas eleições.
54
Sônia Guajajara
Uma índia no Poder Executivo Uma negra no Congresso federal
Mariana Helou
Uma jovem na Assembleia de São Paulo
58 Fotos: Divulgação
Áurea Carolina
por_IVAN ZUMALDE
CIDADANISTA
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ENTREVISTA | Sônia Guajajara
por IVAN ZUMALDE
SÔNIA
GUAJAJARA A vice na chapa de Guilherme Boulos (PSOL) para a presidência da República fala sobre as expectativas da campanha, direitos da Mãe Terra e o que espera para o futuro do país
"Nossa candidatura é para abrir caminhos para o povo, e não apenas para um grupo ou nosso partido"
50 CIDADANISTA
Como está sendo o dia a dia da campanha com o Guilherme Boulos e qual é a expectativa até o dia da eleição? Eu e Boulos somos irmãos de luta, interagimos perfeitamente. Ele cobre algumas agendas e eu sigo outros roteiros. Às vezes coincidimos agendas mas no geral possuímos agendas complementares um do outro para dar conta de todos os processos de diálogos com os mais diversos setores da sociedade brasileira, privilegiando as organizações sociais, as periferias e os movimentos populares. As pesquisas apontam entre 0 e 1% de intenção de votos. Você acha que os eleitores têm preconceito contra uma candidatura indígena com um líder dos sem-teto? Nossa imagem ainda não foi altamente popularizada. Essa intenção nos diz muito. Afirma que já avançamos, porém precisamos intensificar agendas e construir estratégias de forma a ampliar nossa imagem e nossas propostas para o conjunto do povo brasileiro. Acredito que com os programas em rádio, televisão e internet vamos dar um salto significativo. É evidente que há certo preconceito de pessoas sobre nossa candidatura, as pessoas estão acostumadas a reproduzir seus representantes apostando na velha política. Por outro lado, por onde passamos somos muito bem acolhidos, recebemos o carinho das pessoas, a solidariedade de nosso povo, até mesmo porque temos fortes identidades com o povo trabalhador e a parcela mais pobre desse país, pois somos fruto da luta pelo combate às opressões e, pela emancipação e promoção do amor e de um Brasil sem desigualdade e ambientalmente harmônico.
Como seria a implantação de uma política baseada no Bem Viver frente a um sistema tão antagônico como o capitalismo? Acha possível ou visualiza uma grande ruptura? As rupturas são essenciais para promover revoluções e transições. É por isso que nossa plataforma tem lado, o lado dos mais pobre e do povo indígena desse país. O Bem Viver não é uma filosofia isolada, é um novo sonho a ser buscado e temos como horizonte, a sociedade do Bem Viver. O Bem Viver não pode ser visto apenas como uma ferramenta nacional. Tem que ser construída nos diversos âmbitos, mas principalmente deve ser um acordo internacional. Afinal de contas, a manutenção da vida na terra depende essencialmente da Mãe Terra. Sem a natureza não há vida. Portanto, é possível construir um Bem Viver brasileiro ocupando os espaços institucionais e reorientando a ação do Estado em suas diversas faculdades de execução da política. Muitos dizem que essa candidatura é para abrir caminhos para esquerda e para o PSOL para as próximas eleições? Você tem essa visão? Nossa candidatura é para abrir caminhos para o povo, e não apenas para um grupo ou nosso partido. Somos uma candidatura com programa construído de forma coletiva e colaborativa e acreditamos que apresentamos uma plataforma avançada para superar em definitivo a pobreza, a forme, a miséria, o desemprego e as opressões no Brasil. Somos o caminho da liberdade e do sonho por justiça. Acredita que a ocupação de mandatos pela via institucional e partidos é uma forma eficaz de lutar pelos direitos dos povos originários? Acredito que o respeito à institucionalidade verdadeiramente democrática é capaz de produzir transformações tanto para os povos indígenas quanto para o conjunto da sociedade brasileira, pois o que move as instituições são as pessoas. Por isso ocupar todo e qualquer espaço institucional permite que o Estado tenha mais responsabilidade e muito mais força para construir as políticas essenciais aos povos indígenas e aos mais pobres neste país.
No eventual governo Boulos e Sônia, os direitos da Mãe Terra serão incorporados à Constituição? Acredito ser um dos grandes desafios nosso à frente da presidência da República, pois os direitos da Mãe Terra são os princípios elementares de manutenção da vida humana. Qual o seu sonho de futuro para o país? Sonho em representar a verdadeira raiz cultural do povo brasileiro ao lado de Guilherme Boulos na presidência da República. Sonho com um Brasil que tenha amor e harmonia com a Mãe Terra, sonho com um Brasil sem preconceitos, sonho com um Brasil com moradia digna a todos e todas, com um Brasil em que nossas terras sejam demarcadas, onde homens e mulheres caminhem lado a lado, onde a população de LGBT viva com liberdade e respeito de todos, com um Brasil que ame o povo negro, um Brasil da liberdade, do amor e da verdadeira justiça e que a coisa pública seja regida por um valor essencial para promoção das transformações sociais: a igualdade. Sonho com um mundo da harmonia e com um planeta saudável na plenitude da palavra. Sonho com uma sociedade do amor entre seres humanos e natureza. CIDADANISTA
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ENTREVISTA | Áurea Carolina
ÁUREA
CAROLINA Candidata a uma vaga a deputada federal, a vereadora mais bem votada de BH, Áurea Carolina (PSOL) fala sobre a experiência de renovar a política e como é atuar por um mandato municipal
"Fui eleita com a intenção de fortalecer o que as lutas estão construindo, denunciar as injustiças, contribuir para que as pessoas acessem os espaços de poder"
52 CIDADANISTA
Você está gostando da experiência de exercer o mandato de vereadora por Belo Horizonte? Estou gostando porque acredito que estamos, efetivamente, fazendo a diferença. Chegamos aqui com a proposta de ocupar a política com cidadania e ousadia e, neste primeiro ano de mandato, abrimos canais de participação popular, contribuímos para vocalizar as lutas da cidade e fizemos um grande esforço de diálogo e fiscalização na prefeitura para melhoria das políticas municipais em diversas áreas. Tudo isso é prova de que pessoas comuns, que pegam busão, batalham por moradia digna e enfrentam o machismo, o racismo e a LGBTfobia no cotidiano, precisam estar nos espaços de poder. É um trabalho exigente, sem descanso nem nos finais de semana, mas que faz valer o sentido da política que queremos, capaz de realizar pequenas e potentes transformações. Já entendeu como a máquina funciona. Você consegue mudar mais dentro da Câmara ou quando estava fora militando? Te escutam? Não deixamos de ser ativistas para entrar na institucionalidade, e isso é um traço fundamental do nosso mandato. Assim, não existe o "fora" e o "dentro", mas o uso da institucionalidade como um recurso para a luta, um instrumento que pode contribuir para melhorar a vida da população, mas que jamais substitui a resistência popular.
Já sobre a escuta, estar em um espaço de poder me trouxe mais visibilidade e projeção, mas a vivência do ambiente da política institucional dá a verdadeira dimensão do quanto é um lugar exaustivo, masculino, machista e racista. O jogo não é feito para nós, não é feito por nós, não é feito para a gente permanecer nele, já disse em algumas entrevistas, e cada vez isso fica mais evidente. Apesar de a bancada progressista ser minoria, conseguimos contrapor os argumentos e impedir que alguns retrocessos aconteçam, e essa possibilidade aumenta à medida que as pessoas vêm e ocupam o mandato: as ativistas e os movimentos nos dão força, sustentação e legitimidade para seguir com coragem nessa saga que só existe porque é coletiva e aberta. Você foi a vereadora mais votada da cidade, é negra, mulher e jovem. Como está sendo lidar com a pressão e a expectativa dos eleitores e dos movimentos que a apoiaram? Ser a vereadora mais votada da história de Belo Horizonte foi a confirmação de um trabalho. Essa votação fenomenal mostra que o campo das lutas populares tem um potencial muito grande, que a gente pode ir muito além, ainda mais nessa conjuntura de golpe, de destruição de processos históricos de políticas inclusivas. Fui eleita com a intenção de fortalecer o que as lutas estão construindo, denunciar injustiças, contribuir para que as pessoas acessem os espaços de poder, defender pautas urgentes, ou seja, ser uma agente colaboradora a serviço das lutas. Nesse sentido, conseguimos atuar sobre diversos temas: o compromisso da prefeitura com a urbanização da Izidora e a recriação da Secretaria Municipal de Cultura são alguns deles. Na sua grande maioria, tenho muitos retornos positivos sobre a minha atuação e a da Gabinetona, que é como chamamos o mandato compartilhado com a vereadora Cida Falabella. Foi eleita com apoio do “Muitas – pela cidade que queremos”, um movimento de renovação da política. Conte-nos como foi a experiência da campanha e se acredita que esse movimento possa repercutir em 2018? Muito mais do que um apoio, participei e participo ativamente da construção da movimentação. O Muitas surgiram em 2015, inspirada em movimentos
municipalistas e com a confiança de que outra política é possível. Como resultado de um ano e meio de movimentação e da aliança com o Partido Socialismo e Liberdade, via Frente de Esquerda BH Socialista (que reúne o PSOL, o PCB – Partido Comunista Brasileiro, as Brigadas Populares e o MLB – Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas), o Muitas apresentou à cidade 12 candidatas que representavam, com seus corpos políticos, as lutas que nos atravessam: mulheres, pessoas negras, povos indígenas, pessoas LGBTIQs, a luta pelo direito à cidade, pela cultura, pelos animais e verdes, antiprisional, pela legalização das drogas e pelas juventudes. Em uma eleição marcada pelo perigoso discurso de rejeição à política, fizemos uma campanha com poucos recursos financeiros, muita força de trabalho voluntária e engajamento de pessoas que acreditavam na proposta, e com isso reencantamos a política em BH. Outras movimentações parecidas surgiram no Brasil na mesma época e também conseguiram eleger vereadoras e vereadores em suas cidades. Acreditamos que, em 2018, podemos levar o desejo por uma outra política possível para Minas e para o Brasil. Fala-se muito em renovação da política, mas só existe renovação com práticas democráticas e compromisso com o enfrentamento à pobreza e às opressões. Junto com a Cida, você está inovando na forma de atuar dentro do sistema também. Nos conte como funciona a “Gabinetona” e a prática de compartilhar o mandato? A nossa campanha coletiva trazia como lema “Votou em uma, votou em todas” e, quando soubemos que seríamos duas vereadoras dentro da Câmara Municipal, entendemos que a melhor forma de efetivar isso seria por meio de um mandato coletivo. Assim, nasceu a Gabinetona, o mandato compartilhado entre mim e Cida Falabella, em covereança com Bella Gonçalves, a terceira mais votada. Em um espaço físico sem divisórias, uma equipe comum trabalha em conjunto. Atualmente, somos 41 pessoas, sendo 24 negras, 25 mulheres, uma indígena, 15 LGBTIQs e quatro moradoras de ocupações urbanas. A experiência da Gabinetona também concretiza nossos compromissos de confluência máxima, incluindo diversas forças do campo progressista e de experimentação de processos participativos.
ENTREVISTAS | Mariana Helou
MARIANA
HELOU
Depois de votação importante conquistada em 2016, Mariana Helou, (Rede) quer conquistar uma vaga na Assembleia Legislativa de São Paulo contra a hegemonia masculina
" Minha principal proposta é estabelecer um mandato inovador com participação do cidadão e abertura da Alesp"
54 CIDADANISTA
Você tem trajetória de ativismo social, empreendedorismo e trabalhou com inclusão em empresas como a Natura, mas há alguns anos se dedica também à política institucional. Acredita que a política é o melhor caminho para transformar a sociedade? Sim, acredito. A atuação de organizações da sociedade civil e as empresas têm um papel fundamental na transformação da sociedade, porém o alcance que o Estado tem para transformar a sociedade é mais amplo. Acredito em uma articulação constante entre todas as diferentes formas de atuação na sociedade e, em muitos lugares, a inovação e a dinâmica social são maiores do que na política. Mas , neste momento, acho fundamental minha atuação no governo e por isso em candidatei novamente. No seu perfil das redes sociais diz que sua preferência política é "moderada". Acredita que o rótulo de esquerda ou outro não te representa? Eu nem sabia que tinha essa informação assim nas minhas redes sociais! É verdade. Eu acredito que a forma que usamos os rótulos direita e esquerda são profundamente anacrônicos. Que é nosso desafio enquanto geração desenhar um novo modelo de desenvolvimento, que seja sustentável e inclusivo. Que tenha prosperidade para todas as pessoas, liberdade, respeito ao meio ambiente e equidade social. Você recebeu votação importante (16.212) na última eleição para vereadora e quase foi eleita. Nos fale como foi a campanha e o que traz de experiência para concorrer ao cargo de deputada estadual neste ano? A campanha foi incrível, de muita entrega e aprendizado. Acho que os bons resultados que a gente teve foi em virtude do compromisso e dedicação e também por apresentar uma proposta que fazia sentido para a sociedade com uma nova forma de fazer política, descomplicando o próprio fazer político e trazendo pautas significativas. E tudo isso foi importante para a campanha de deputada estadual que estamos vivendo. Já sabemos como fazer um planejamento e como atuar.
simas pessoas para fazer muitas coisas e não tem recursos, o que acaba sendo um limitador bem grande tanto para a construção do partido, quanto para viabilizar as candidaturas. O bônus é porque tem muito espaço para elaborar em um partido que quer construir um país. Dentro da Rede você tem espaço para colocar pautas e propor fazer diferente. Tem uma intenção genuína e horizontal, com propostas diferentes e um partido voltado para um novo modelo de desenvolvimento. Em relação às pessoas que queiram se filiar, o que eu falo é que a Rede é um modelo inspirador e afirmo que participar da política também é fundamental nesse momento, seja se filiando ou não. Qual sua expectativa para eleição e qual sua principal proposta? Como é a parceria com a também candidata Duda Alcantara? Minha expectativa para a eleição é a melhor possível. Acredito que é possível ser eleita e vamos trabalhar para isto! Minha principal proposta é estabelecer um mandato inovador com a participação do cidadão, abertura da Alesp e tecnologias sociais interessantes e divertidas de participação. Minhas principais pautas são: primeira infância, água e saneamento básico, segurança pública e gestão fiscal. A minha parceria com a Duda já vem nesse sentido de pensar novas formas de ser fazer política. Quando a gente já vê os modelos tradicionais de dobrada, que é uma lógica financeira e eleitoral, a gente se propôs a fazer diferente. Então, enquanto a Duda é candidata a federal, eu sou candidata a estadual; nós vamos assumir propostas conjuntas em âmbito federal e estadual de forma transversal. Além disso, faremos uma campanha em conjunto em recursos também. Fazer junto é mais legal. Nos conte como é a rotina partidária da Rede Sustentabilidade? Como é sua forma de atuação dentro do partido e o que diria para quem quer se filiar a alguma legenda? A Rede é um partido muito pequeno. Com o ônus e bônus disso. É muito recente, de 2013 e o ônus é que tem bastante desorganização, tem pouquís-
O país teve uma presidenta que sofreu um processo de impeachment. Na sua opinião, ela sofreu esse processo também por ser mulher? Como as mulheres podem conquistar mais protagonismo na política? Acho que vários elementos foram exarcebados por ela ser mulher, na forma do tratamento e em como a sociedade encarou o processo. Era muito claro esse recorte de gênero no modo como ela foi tratada. E é em razão dessa questão de gênero, que as mulheres devem ter mais protagonismo no processo eleitoral. São muitos os mecanismos para isso, como combate a candidaturas laranjas, cotas, mas a forma mais concreta é uma só: o voto. Conscientizar que precisamos votar mais em mulheres. Como espera engajar as pessoas e mobilizar uma população que não acredita no voto e está desacreditada nos políticos? É a grande chave dessas eleições. É a grande pergunta para todos os candidatos, mas principalmente para o país, pois existe uma perspectiva de que as pessoas deixem de votar, votem em nulo e branco. E isso vai fortalecer as pessoas que estão atreladas a quem tem cargo e estão nos espaços de poder. Pretendemos ir à rua para debater isso. Precisamos trabalhar essa mensagem de que votar em mulheres, em gente nova e em gente boa é a única forma de melhorar nossos representantes.
FRUTOS Artigo
por ODED GRAJEW
Por um novo Congresso
P "Nenhum dos atuais deputados federais e senadores foi enfiado goela abaixo de nenhum de nós. O atual Congresso Nacional é resultado exclusivo das nossas próprias escolhas."
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rovavelmente você faz parte da gigantesca maioria da população brasileira que se envergonha do atual Congresso Nacional. E não é sem razão: nossos deputados federais e senadores deveriam legislar e fiscalizar o Executivo tendo como horizonte um Brasil justo, igualitário, democrático e respeitoso dos direitos humanos, uma sociedade pacífica, solidária e em aliança com a natureza, uma economia voltada para o atendimento das necessidades humanas e para a redução das desigualdades. Deveriam colaborar para que tenhamos uma administração pública avessa à corrupção, políticas públicas visando elevar os níveis de vida e de participação das grandes maiorias, exercício da iniciativa e da soberania popular nas grandes decisões, proteção dos recursos naturais, inserção soberana no concerto das nações. Em vez disso assistimos a um Congresso Nacional dominado por bancadas que defendem interesses contrários aos interesses da maioria do povo brasileiro e que não representa essa maioria: os pobres, os negros, as mulheres, os jovens, os indígenas e as minorias discriminadas. Para cada grande decisão chantageiam o governo, legislam em causa própria e desviam para esse fim os recursos públicos de que depende o atendimento das neces-
sidades sociais. O atual Congresso pauta seu funcionamento por práticas espúrias que desvirtuam o procedimento democrático de tomada de decisões, apequenam a instituição, reduzindo-a à função de homologador da vontade do Executivo, falseiam sua representatividade, desacreditam a instituição parlamentar e a própria atividade política e deslegitimam as decisões, uma vez que são tomadas por maiorias constituídas por meios inidôneos. Do total de parlamentares da atual legislatura, 238 respondem a algum procedimento investigatório no Supremo Tribunal Federal! O resultado disso: somos os campeões mundiais das desigualdades sociais, 5% da população se apropria de 95% da renda e 10% das pessoas possuem 74% da riqueza. Por outro lado, 9%, que representa a parte mais rica, se apropriam de 70% dos recursos públicos. Temos a terceira maior população carcerária do mundo e a maior taxa de assassinatos. No nosso
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sistema tributário os pobres pagam proporcionalmente mais impostos que os ricos. Em geral nossos serviços públicos, como educação e saúde, são de péssima qualidade. Não é por acaso que as pessoas de maior renda pagam por serviços privados. E aí vai. Diante deste quadro é fundamental o engajamento de organizações, lideranças e militantes da sociedade civil e candidatos éticos e progressistas numa mobilização para conscientizar os eleitores da importância do Congresso para o país e para a qualidade de vida dos cidadãos, bem como da necessidade de votar nos deputados e senadores com muita consciência e responsabilidade, estimulando os eleitores a pesquisar o currículo e as ideias de cada candidato usando os meios que a internet e muitos sites oferecem. Saber se o discurso eleitoral vendido na campanha eleitoral dos que buscam a reeleição virou verdade, descobrir quem de fato honrou
nosso voto ou quem nunca mais o merece de novo. Na véspera de cada eleição para o Legislativo recebo muitas solicitações de pessoas que não procuraram se informar ou não têm consciência da importância do Congresso, querendo “dicas” para votar em deputado e senador. Isto não deveria se repetir. Foi com estes objetivos que foi lançada a campanha Um Novo Congresso. Esta é uma campanha que deveria ser de todos que nela queiram participar, divulgando, sensibilizando, mobilizando. Para maiores informações acesse <www. umnovocongresso.org.br>. Nenhum dos atuais deputados federais e senadores foi enfiado goela abaixo de nenhum de nós. O atual Congresso Nacional é resultado exclusivo das nossas próprias escolhas. Nas eleições deste ano nosso voto pode mudar praticamente tudo. No dia 7 de outubro será possível mostrar nossa indignação e renovar para
melhor o Congresso Nacional. Temos pouco tempo pela frente. Se é importante eleger um presidente da república comprometido com a justiça social e a democracia, é fundamental eleger um Congresso que represente também esses valores. Sem um Congresso digno, o futuro presidente ficará à mercê das mesmas barganhas que assistimos nos dias de hoje e não teremos, por exemplo, orçamentos e legislações que procurem reduzir nossas desigualdades, uma reforma tributária que faça justiça fiscal nem uma reforma que democratize de verdade e moralize nosso sistema político. Não adianta se iludir. Um novo Congresso é necessário, é possível. E pode ser pelo voto!
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FRUTOS Artigo
por EDUARDO MUFAREJ
Fundo Reeleitoral
E
ste ano, pela primeira vez, nossas eleições serão financiadas majoritariamente por recursos públicos. A mudança, que deveria representar um avanço para solucionar a crise de representatividade que tomou conta do sistema político depois de quatro anos de Lava Jato, se tornou a principal esperança de manutenção de poder dos caciques políticos brasileiros. Segundo a Pesquisa Ipsos, 94% da população não se sentia representada pela classe política em agosto de 2017, praticamente 19 de cada 20 brasileiros. Em outubro do mesmo ano, a Câmara aprovou, em resposta aos escândalos de corrupção e à pressão por mudanças, o fim do financiamento empresarial e uma “minirreforma” que garantiu aos partidos, via Fundo Eleitoral, R$ 1,71 bilhão do orçamento federal de 2018. Vale lembrar que as agremiações já receberiam este ano mais de R$ 888 milhões via fundo partidário. O novo modelo concentra recursos públicos bilionários nas mãos dos presidentes dos partidos tradicionais sem cobrar transparência ou qualquer tipo de contrapartida. O resultado é previsível: segundo dados já enviados ao TSE pelas próprias siglas, nenhuma fará distribuição equânime entre candidatos. Na maioria dos casos o dinheiro será destinado a políticos que já estão poder. 58 CIDADANISTA
A adoção de um modelo de financiamento público sem critérios e incentivos adequados tende a agravar o distanciamento entre eleitores e candidatos, uma vez que representantes da velha política receberão grandes aportes financeiros para aumentar as chances de sucesso em uma eleição em que a população clama por mudança. Há casos de candidatos com problemas na Justiça exigindo fatia maior dos recursos por conta da maior dificuldade que terão para conquistar votos. É evidente que campanhas políticas custam dinheiro em qualquer lugar do mundo, mas há meios de reduzir seus custos e soluções para aumentar o controle e o equilíbrio de condições entre candidaturas. O financiamento público pode funcionar, desde que haja critérios claros e que eles atendam aos anseios da população. Comparativamente, para que um programa social, uma empresa ou qualquer ente privado tenha acesso a dinheiro público, é preciso seguir uma série de critérios rígidos e bem específicos. Por que é diferente quando se trata de um fundo eleitoral bilionário? Faz sentido que presidentes de partidos políticos decidam monocraticamente como pretendem usar esse dinheiro? Exigir prestação de contas, gestão transparente, critérios justos
para a divisão dos fundos e outros mecanismos de pesos e contrapesos pode dar legitimidade aos fundos partidário e eleitoral, contribuindo para fortalecer bons projetos políticos e esvaziar agremiações usadas para simples manutenção de poder. Da forma como existe atualmente, o fundo eleitoral funciona como um mecanismo contra a vontade da sociedade. Precisamos pressionar a classe política e cobrar alterações na legislação. Enquanto isso não acontece, nosso papel como cidadãos é desconfiar de campanhas milionárias, apoiar novas candidaturas e começar a virar o jogo a nosso favor. Tenho esperança no Brasil. Conheço seu povo, meu povo. Tenho esperança porque a esperança da terra vai além do Thydêwá. Há o vídeo nas aldeias, os cineastas indígenas, o cacique Aritana, meu amigo, fazendo ressurgir o idioma Yawalapiti, fazendo o seu povo ressurgir do tronco do Quarup. Tenho esperança no Brasil porque as pombas urbanas voam em Cidade Tiradentes, no Pirambu, na Restinga, em Simões Filho, no Parque Itajaí, no Capão Redondo, em Nova Iguaçu. Tenho esperança no Brasil porque os Griôs caminham, cavoucam nossa memória escondida e a cantam com afeto. São Meninas de Sinhá, são Bola de Meia, são Nina, são Tainã. São quilombos, são mocambos, são aldeias, são favelas, são vilas. São fábricas, das poucas que nos restam. São agroecologia, são agrofloresta, são agricultura familiar. São economia popular, da reciprocidade, da dádiva. São jovens que se recusam a ser coisa. São invenção brasileira. Tenho esperança no Brasil porque de onde brota a desesperança, uma flor rasga o asfalto. Tenho esperança no
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"Tenho esperança no Brasil porque de onde brota a desesperança, uma flor rasga o asfalto. Tenho esperança no Brasil de baixo, escondido, humilhado, explorado.” Brasil de baixo, escondido, humilhado, explorado. É esse Brasil que precisa se encontrar e descobrir a força que tem. O Brasil do software livre, da cultura digital, da generosidade intelectual, da energia distribuída. Da economia solidária, do trabalho compartilhado, do mutirão, do Motirô. Das mulheres, das valentes mulheres que são mãe e pai, das valentes mulheres que enfrentam a vida, do ativismo, do feminismo, do trabalho, da esperança, do compromisso e do companheirismo. Tenho esperança no Brasil pelo devir, pelo que ainda vamos conhecer de nós
mesmos, pelo que estamos a desesconder, pelo que vamos descobrir. Pelos homens, pelas mulheres, por quem é gente no gênero que for. Pelos velhos, pelas crianças, pelos adultos, pelos que estão a nascer. Por esses tenho esperança. Há água, há florestas, há jandaias, papagaios e periquitos, e onças e jaguares e macacos. São muitas as águas, são muitas as florestas, são muitas as aves, as onças, os macacos e os jaguares. E os jacarés, o boto, o pirarucu, dourado. Essa terra já foi conhecida como Terra dos Papagaios, a terra das aves que falam. Tenho
esperança no Brasil porque fazemos parte da “América do Sul/América do Sol/América do Sal”, conforme Oswald de Andrade nos dizia. Tenho esperança no Brasil porque somos América Latina e saberemos nos encontrar como irmãos. Tenho esperança no Brasil porque entre nós e a África há um rio chamado Atlântico, um continente se encaixando em outro, e saberemos nos encontrar como irmãos. Tenho esperança no Brasil porque na Europa também brota a esperança, e na América do Norte há quem resiste, e no Oriente Médio há quem ensaia outra forma de convivência e paz, mesmo que surgida de escombros. Os nossos irmãos asiáticos, os povos do Pacífico, do Himalaia, dos desertos. No Brasil todos nos fazemos irmãos, e se desaprendemos a nos fazer irmãos, teremos que reaprender. Com coragem, com alegria, coloridos, inventivos, criativos, brasileiros.
Eduardo Mufarej é fundador do RenovaBR, membro do conselho do CLP, do Ranking dos Políticos e da Escola de Negócios da Universidade de Yale. CIDADANISTA
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FRUTOS Brasileiro
por COLETIVO DEMOCRACIA CORINTHIANA TEXTO WALTER FACETA
Sócrates: cada vez mais moço Nosso amigo e inspirador alçou-se ao gramado de cima em 2011, quando já contava 57 anos. Nascera "Brasileiro" no nome, no glorioso 1954, ano do IV Centenário de São Paulo. Magicamente, no entanto, o que sentimos é um Magrão cada vez mais jovem, cada vez mais menino. O nosso filósofo da bola rejuvenesce a cada dia. Como jornalista, estive algumas vezes com Sócrates. Pareceu-me cada encontro uma quase eternidade. Lembro de uma conversa com ele e Wladimir na cantina Famiglia Mancini, na rua Avanhandava, no centro de São Paulo, na virada do milênio. Ele começou calado e, angustiado, pensei que não teríamos meia hora de papo. Logo, no entanto, ele pediu um vinho italiano. Descontraiu-se. De repente, eram quatro e cinquenta da tarde e ainda estávamos lá, beliscando o pão italiano, falando de tudo: de futebol, política, literatura, amores e dissabores. Se havia uma maior grande virtude em Sócrates era exercitar
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a projeção dialética, no modo hegeliano e no modo marxista. Ele tinha humildade e competência para projetar-se no interlocutor, valorizando suas dores, seus motivos e suas demandas. Sócrates confessava-se seduzido para sempre ao corinthianismo. E nesse amor feito perene, sua joia era a torcida alvinegra, de forma especial os mais humildes. Para Sócrates, o Corinthians era um Brasil compacto, com todas as suas pérolas de diversidade, problemas, desafios e talentos inventivos. Em sua visão, nos anos 1980, o corinthiano não sabia bem o poder coletivo transformador que tinha. Já em seus dias derradeiros, encontrei-o na TV Cultura, e ele havia remodelado sua percepção acerca do assunto. Para ele, o Brasil do novo século, inclusivo, democrático, capaz de universalizar acessos, havia copiado o jeito de ser corinthiano. Sócrates via o corinthianismo como professor dos novos tempos. No decorrer dos anos, nosso mais carismático
jogador criticou o partido ao qual se filiara e reclamou elegantemente com o líder barbudo, mas sempre valorizou a mudança que reduziu a miséria e gerou oportunidades para os pobres, negros, índios, mulheres e jovens. Segundo Sócrates, mesmo com todos os erros e tropeços, a experiência do governo popular era de sucesso e deveria ser aprimorada. Naquele dia, ele repetiu o pensamento. A melhor esquerda do Brasil era aquela que copiava o corinthianismo, em sua fidelidade, em sua paixão, em sua solidariedade. Cada Sócrates que conheci era melhor e mais jovial que o anterior, mais capaz de rir de si mesmo, mais capaz de rir com os outros, em vez de rir dos outros. Eram assim suas noitadas com outros amigos, como o jornalista Xico Sá. Sim, Sócrates adorava o mar de bandeiras, o papel picado, o batuque, a alegria da Fiel. Segundo ele, isso era vida, pulsante. Era o que realmente valia a pena no futebol.
"O futebol brasileiro efetivamente seria melhor se os atletas pensassem mais, se lessem O capital, se fossem menos corporativistas, se ousassem pensar em políticas de inclusão popular." Nem vou dizer do Magrão jogador de futebol. Cansei de voltar tarde, a pé, do Morumbi ou do Pacaembu, na hora do apagão do transporte público, apenas para ver um toque de calcanhar, um lançamento no ponto futuro. Sim, havia jogos em que Sócrates até desaparecia. De repente, no entanto, como um jogador de xadrez, antevia a jogada fundamental, segundos à frente. Era o passe sensacional para Casagrande ou a tabela mágica com Palhinha. Do nada, o zero a zero virava um dois a zero, a impossível goleada.
O futebol brasileiro efetivamente seria melhor se os atletas pensassem mais, se lessem O capital, se fossem menos corporativistas, se ousassem pensar em políticas de inclusão popular. Se assim vivessem, de modo holístico, certamente inventariam mais em campo, acertariam mais, proporcionariam espetáculos melhores, menos roteirizados, mais criativos. Sócrates precisa, portanto, voltar urgentemente às mesas dos bares, ser amigo do peito dos corinthianos e dos brasileiros.
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INSPIRA por Guto Lacaz
HQ: Guto Lacaz
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