Cidadanista edição 4

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EDIÇÃO DE

ANIVERSÁRIO

ISSN 2526-4079

ANO 2 | Nº 4

A

R E V I S T A

D A

N O V A

P O L Í T I C A

R$ 20,00 O valor arrecadado será revertido para a produção da próxima edição. Leia também o conteúdo em: cidadanista.com.br

Entrevista

Onde a esquerda vira

“Justiça para minha mãe”

Negócios de impacto social

A marcha de Boulos

Salve o mundo e ganhe $

com BERTA Z. CÁCERES

por IVAN ZUMALDE

por FEL MENDES

Democracia Corinthiana

Sobrevoo político mundial

As Farc nas urnas

Novas forças; mundo velho

Da guerrilha ao partido

por FRANCIS DUARTE

por SALVADOR SCHAVELZON

por VITOR TAVEIRA

Resistência Popular Prolongada

Democratização urbana

Pratique a comuna

Pela vida dentro das cidades

O que ficou cem anos depois

por PEDRO OTONI

por ERMÍNIA MARICATO

por ADEMAR BOGO

Futebol e política

Revolução Russa

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CARTA DO EDITOR | por IVAN ZUMALDE - zumalde@mymag.com.br

EDIÇÃO DE

ANIVERSÁRIO

UMA REVISTA NOVA POR UMA POLÍTICA NOVA ANO 1 | Nº 1

EDIÇÃO DE LANÇAMENTO

edição gratuita

R E V I S T A

A esperança vem do caos

P A R A

C I D A D Ã O

Uma boa ideia

Por mais orgânicos

“Vai surgir algo novo no país”

Quer votar em Prévias?

“Você come veneno. E sabe”

com GUILHERME BOULOS

por CÉLIO TURINO

com MATTHIAS BORNER

Lição da Islândia

Pela legalização e pela paz

Os Piratas aportaram no gelo

Filha, papai é maconheiro

por LUIZ MILLER

com FERNANDO DA SILVA

Itaquera virou centro

Eu não sou você amanhã

Altar dos esquecidos

Para que servem as cotas?

com PE. PAULO BEZERRA

por DJAMILA RIBEIRO

Ditadura do capital

“Isso é uma solene hipocrisia” com DOM ANGÉLICO

Por uma frente de pessoas

Unidos não morreremos por CYNARA MENEZES

CONHEÇA A RAIZ MOVIMENTO CIDADANISTA EM RAIZ.ORG.BR

Periodicidade quadrimestral para garantir uma análise atemporal do "fazer político"

Para brindar nosso primeiro aniversário, apresentamos uma Cidadanista renovada e continuamos acompanhando a vindoura renovação política

H

á um ano nascíamos com a missão de despertar interesse nos cidadãos pela política e escolhemos o meio revista para fazer isso. Duplo desafio: falar sobre política e convencer as pessoas sobre sua importância e ainda editar uma revista impressa nos tempos atuais. Desafio dado, desafio cumprido. Atentos a cada movimento político que nasce e motivados pelos leitores que conquistamos, seguimos acompanhando a renovação política brasileira. Sim, ela existe e está acontecendo. Acredite! De lá para cá aprendemos mais sobre como tornar algo que deveria ser simples a ser, de fato, simples. Talvez esse seja um de nossos maiores compromissos: descomplicar a política publicando reportagens, artigos e entrevistas sobre cidadania para leitores cidadanistas. Com ajuda de gente boa espalhada pelo país – e fora dele – e assumindo sem medo um jornalismo comprometido com um país mais justo, chegamos ao primeiro ano orgulhosos. Em nossas páginas já descomplicamos a política com o cantor Criolo, o bispo Angélico, o professor Dennis, a índia Takuá, a jornalista Cynara,

o investidor Daniel, a educadora Ermínia, o sociólogo Ruy, o engenheiro Lúcio, o historiador Célio, a estudante Débora, a deputada Luiza, o líder Guilherme e claro, com o povo, especialmente com a comunidade periférica, negra, indígena, feminina, LGBT ou simplesmente todos aqueles que têm sua vida impactada pela falta do "fazer político". Depois de doze meses e com a missão renovada, criamos novas seções na revista como as "notas cidadãs" que oferecem sobrevoo rápido sobre as últimas novidades. Reordenamos também a seção política, agora no final e com recorte editorial especial feito por colunistas. Trazemos ainda novos colaboradores, charge fixa na última página e um mix maior em nossa temática, como a reportagem sobre inovação social. Além de tudo isso, continuamos com os já tradicionais conteúdos internacionais, sendo que, neste mês, entrevistamos a filha de Beta Cáceres. Boa leitura e até a próxima edição. Até lá, desejamos um 2018 com política no coração, leveza na alma e muita luta para exercer o poder popular. EDITORES CIDADANISTAS

CIDADANISTA

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SUMÁRIO | Ano 2, nº 4 | outubro 2017 - fevereiro 2018

Sumario NOTAS CIDADANISTAS

06_Fique de olho: novidades politizadas 07_Indicamos: livros, músicas e blogs 08_MTST: a marcha de Boulos 10_Educação: a lição dos cursinhos populares 12_Mulheres: a vitória da ocupação Mirabal 14_Pesquisa: católicos e conservadorismo 07_Renascimento: a Zona Leste acorda

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BEM VIVER

20_Entrevista: BERTA ZUÑIGA CÁCERES 24_ECCO, um chamado ao planeta 10_Fórum da esperança em Marabá

MOVIMENTOS

28_REPORTAGEM ESPECIAL Empreendedorismo social no Brasil

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CIDADÃO

36_Democratização urbanística por Ermínia Maricato e Paolo Colosso 40_CDC, um coletivo de futebol e política por Francis Duarte 44_Comunas e a organização popular por Pedro Otoni

POLÍTICA

50_Política pós-2011 por Salvador Schavelzon 54_Farc vira partido por Vitor Taveira 58_100 anos de Revolução Russa por Ademar Bogo 62_Caminho catalão por Ivan Zumalde 64_O VAMOS vem por Francis Duarte

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FRUTOS

66_Povo brasileiro por Célio Turino 68_Jihad por Eudes Cardoso 70_Charge: por Kellen Carvalho

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EDIÇÃO DE

ANIVERSÁRIO

EXPEDIENTE

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CONSELHO EDITORIAL:

Célio Turino Ivan Zumalde Vitor Taveira

EDITOR: Ivan Zumalde (MTB 29263)

COLABORARAM NESTA EDIÇÃO:

40 58

Ademar Bogo, Alice Vergueiro, Ana Maria Barbosa, Célio Turino, Eduardo Brasileiro, Ermínia Maricato, Eudes Cardoso, Fel Mendes, Francis Duarte, Ivan Zumalde, Kellen Carvalho, Maria Antonieta Giongo, Paolo Colosso, Pedro Otoni, Salvador Schavelzon, Susanne Sassaki, Thomaz Enlazador e Vitor Taveira

A revista Cidadanista é uma publicação independente vinculada a RAIZ Movimento Cidadanista e ao círculo Sampa. Para falar com a redação, ligue: 11 983 166 642 - Todos os artigos e conteúdos veiculados nesta publicação refletem as opiniões de seus autores, e não necessariamente dos editores da revista Cidadanista ou da RAIZ Movimento Cidadanista. PARA ENTRAR EM CONTATO, ENVIE E-MAIL PARA CONTATO@CIDADANISTA.COM.BR

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NOTAS CIDADANISTAS | Fique de olho

Fique de olho!

já formou alguns candidatos atuantes em cargos eletivos de agenda multipartidária que englobam legendas progressistas e liberais. Fique atento. + INFO: raps.org.br

Um giro pelas novidades, cursos, eventos e plataformas que pretendem ser uma alternativa à crise política que vivemos Bolsas para candidatos

Plataforma propõe selecionar novos candidatos

O RenovaBR é um grupo formado por cidadãos e apoiado por empresários e organizações criado com o propósito de acelerar novas lideranças políticas e viabilizar o acesso do cidadão comum ao Congresso Nacional. Com integrantes como a Rede de Transformação Pública e com a proposta de renovar o parlamento, o projeto seleciona e dá bolsas para quem quer se candidatar. Acompanhe. + INFO: renovabr.org

Eventos

Encontros e seminários sobre transparência e inovação pública Com o objetivo de aumentar a interação entre governos e sociedade, o II Encontro Brasileiro de Governo aberto irá abordar 6 CIDADANISTA

Aplicativo

App Mudamos quer alavancar projetos de lei de autoria popular

temas como prestação de contas e participação cidadã. O evento será realizado nos dias 28 e 29/11 no Centro Cultural São Paulo, na capital paulista, e conta com a iniciativa e apoio da CGU, Colab/USP, Agenda Pública, entre outros. Na sequência, no dia 30/11, acontece o II Seminário de Inovação Pública, no Comunitas, também em São Paulo. Não perca. + INFO: goo.gl/D2HoNh goo.gl/Lwp2yZ

Cursos

Cursos da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade

O RAPS foi fundado pelo empresário Guilherme Leal, da Natura, logo após sua candidatura a vice-presidente na chapa de Marina Silva nas eleições de 2010. A organização financia e oferece diversos cursos, como Jovens Raps, Líderes Raps e Empreendedores Cívicos e

Projeto do premiado ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade) e de seu fundador Ronaldo Lemos, o aplicativo Mudamos permite a assinatura de projetos de lei de iniciativa popular, previstos na Constituição brasileira. É uma forma direta de a população participar da política e propõe tornar a proposição de temas, leis e coleta de assinaturas mais fácil, bastando o download do aplicativo e se conectado às redes sociais. Baixe-o e descubra. + INFO: mudamos.org ou baixe o app diretamente em seu smartphone (android ou IOS)

FIQUE DE OLHO TAMBÉM (na gringa): •A Economia Femini(s)ta tem boa oferta de cursos on-line com temas feministas. Fique de olho em economiafeminita.com •O Medialab Prado promove a divulgação dos seus projetos de Inteligência Coletiva para a Democracia. Fique de olho em medialab-prado.es


NOTAS CIDADANISTAS | Indicamos

EDIÇÃO DE

ANIVERSÁRIO

MÚSICA

1 Espiral de ilusão música brasileira/samba por CRIOLO CD: 10 faixas - 2017

Pommelo discos

2 Caravanas música brasileira/MPB por CHICO BUARQUE CD: 9 faixas - 2017

Biscoito Fino

Inspire conteúdo Nossa pequena (mas cidadanista) seleção de livros, músicas e blogs para acompanhar com olhar crítico as mudanças de hoje e de amanhã

LIVROS

1 A elite do atraso: da escravidão à lava jato

por RAQUEL ROLNIK 280 páginas - 2017

por JESSÉ DE SOUZA 240 páginas - 2017

3 Caminhos da esquerda: elementos para uma reconstrução

Editora Leya

2 Territórios em conflito. São Paulo: espaço, história e política

Editora Três Estrelas

por RUY FAUSTO 208 páginas - 2017

Editora Companhia das Letras

BLOGS

1 Outras Palavras "Comunicação compartilhada" outraspalavras.net

2 Negro Belchior "Educação, diversidade e direitos humanos" negrobelchior.cartacapital.com.br

3 Opera Mundi

"Política-economia-sociedade" operamundi.uol.com.br

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NOTAS CIDADANISTAS | Onde a esquerda vira

A base marcha

Enquanto tentativas políticas da esquerda tentam se unir, Boulos junta a base em manifestação histórica e leva o MTST ao protagonismo pelo chão de barro. Sua liderança com as bases pode tornar real uma candidatura à presidência em 2018

por IVAN ZUMALDE

PREPARATIVOS Boulos e Pe. Paulo conversam antes de se dirigirem ao povo

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PERNOITE Suplicy dormiu no acampamento na noite anterior

base do acampamento está em São Bernardo do Campo e seus militantes se preparam para a batalha no território vizinho, em São Paulo. São 5h15 de manhã, e entre luzes e bandeiras, o cheiro do almoço que sai da cozinha improvisada invade o local, mostrando que o dia será longo. A luta é de paz, e seu líder sabe “o que” e “como” unir sua base para a marcha que se aproxima. "Hoje é a expressão da resistência e da esperança de um povo que quer conquistar sua casa", profetiza Guilherme Boulous no palco de madeira, enquanto espera sua vez de discursar para mais de 8 mil famílias organizadas. Nesse momento, o palco era ocupado por padre Paulo e outros líderes religiosos que fazem uma cerimônia ecumênica antes da marcha rumo ao Palácio do Governo em São Paulo. Horas antes, na noite anterior, foi ocupado por cantores como Caetano Veloso, atrizes globais, políticos e parceiros do movimento dos trabalhadores sem teto. O acampamento tem atraído a atenção e ganhado protagonismo em um país que ainda perpetua sua desigualdade social. É nesse cenário de falta de direitos como a moradia que o MTST atrai a base da população. E o faz pelo chão de barro e pela crença de um povo que sonha em ter sua casa própria e um pouco mais de dignidade. Esse mesmo povo é também o sonho da classe política de esquerda brasileira que um dia teve mais representatividade e respeito no mesmo chão de barro, mas que hoje está distante. A política partidária quer e precisa voltar à base e fazer política no palanque montado no barro. E começa a fazê-lo. No palco do acampamento sobe Eduardo Suplicy para discursar (e também cantar). Ele não chegou agora. O vereador mais votado de São Paulo dormiu no acampamento para apoiar o movimento. "Eu convidei o Doria e falei que iria vir", fala o ex-senador. Nem Doria, nem o prefeito de SBC vieram, mas a marcha não precisa do apoio deles para seguir; precisa que o poder público escute e dialogue com a população. Amanhece e é preciso partir. Toninho Vespoli, vereador de São Paulo pelo PSOL, fala sobre a resistência também na Câmara paulistana "Estamos fazendo lá e aqui uma frente nessa democracia com pitadas de totalitarismo que vivemos", grita Toninho que cede o microfone para Boulos. O líder do movimento entra, entoa mantras do MTST e conclama sua base enquanto seu parceiro Josue começa a organizar os mais de vinte grupos para a marcha. Na saída do palco, Boulos ainda responde a uma última pergunta: qual a diferença dessa marcha para as outras? "Hoje são 23 quilômetros", finaliza. Boulos sabe que a caminhada é longa, mas é única. Independente da distância, o povo vai se unir na base e chegar na política. É inevitável. A política é a manifestação do seu povo, e uma das vias para isso é a institucional. Tudo deve confluir, e se a política não escutar a base, a base vai marchar em direção à política e isso já começou.

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divulgação/reprodução

NOTAS CIDADANISTAS | Educação popular

Pessoas transformam o mundo Como a proximidade com os alunos e a dinâmica horizontal proposta pelos cursinhos populares pode inverter a lógica da educação e romper com a estrutura do poder do capital que asfixia a educação brasileira.

por FRANCIS DUARTE

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ão Paulo, 23 de setembro, sábado ensolarado e o Cursinho Popular Laudelina de Campos abre suas portas na Escola Estadual Alcântara Machado, no Alto do Ipiranga, para a realização da Feira de Profissões, uma das atividades que é referência entre os alunos, e para um bate-papo muito agradável sobre educação popular e o futuro do ensino no país. Fui recebida pelos coordenadores Victor e Grazi, que apresentam o evento em forma de diálogo aberto e franco entre professores, profissionais e alunos a respeito do mercado de trabalho, escolhas, perspectivas de futuro e, principalmente, olhar para além de uma ótica perversa e que priorizaria apenas o capital. O Cursinho Popular Laudelina de Campos teve suas origens na Rede Emancipa, do PSOL. Tem aproximadamente sete anos de existência, mas, hoje, é dirigido de forma independente por coordenadores, professores e, agora, com a presença de alunos que participam diretamente de debates e escolhas, de forma horizontal, para assim construírem juntos o ideal de educação popular. Ambos os coordenadores destacaram a dinâmica de ensino, tanto do conteúdo voltado para o vestibular quanto da prática dos “círculos de discussão/debates” e saraus culturais, ensinamen-


Fotos divulgação

MAIS QUE VESTIBULAR Os cursinhos populares ensinam muito mais aos jovens do que o currículo manda

tos vindos da pedagogia Paulo Freire e que trazem temas desde questões agrárias, feminismo, violência na periferia, chegando à situação dos refugiados - no dia, o grupo recebeu um militante congolês que dialogou com todo o grupo. A respeito da abrangência do território, o projeto apresenta grande acolhimento, pois o cursinho recebe alunos dos mais diferentes lugares, como a região do ABC, Cidade Tiradentes, Heliópolis e Vila Prudente, o que demonstra a carência de cursinhos populares para atender as demandas do ensino/aprendizagem de grupos sociais distanciados e silenciados dos grandes centros. Os coordenadores reforçaram que há um trabalho de preparação para o vestibular tradicional, mas também que priorizam uma formação crítica, discutindo, inclusive, o quanto o próprio vestibular se mostra como “catraca social”, uma vez que as universidades se tornam locais de abismos onde nem todos os aprovados conseguem manter os gastos com o ensino e as dificuldades de adequação de horários por trabalharem em rotinas muitas vezes exaustivas e engessadas pelos próprios empregadores. É perceptível a construção do processo de educação popular que questiona a segregação social e estimula a ação como forma de resistência da periferia.

Victor e Grazi abordaram de maneira contundente que a educação não pode ser vista como uma mercadoria e que a partir do momento em que ocorre o diálogo na sala de aula, há o entrelaçamento da vida tanto de professores quanto do aluno, torna-se algo integrado e coletivo. A realidade concreta pode ser então transformada e questionada, o que impulsiona a busca pelo conhecimento. Reforçaram que os próprios alunos comentam sobre a importância de os professores irem além do chamado “ensino tradicional”. Nesse sentido, percebeu-se que o processo de educação popular transforma também os professores, que se veem longe de metas ou porcentagens de produtividade extrema, trabalhando com autonomia, o que desenvolve e amplia horizontes para a relação professor-aluno e ensino-aprendizagem coletiva. Victor apresentou a ideia de educação popular como um ideal de construção de uma nova realidade porque tudo se baseia na coletividade, mesmo vivendo um período de perdas sucessivas, duras, numa perspectiva muitas vezes incerta. E é justamente esse pertencimento ao grupo o elemento capaz de promover a ação-reflexão. Nesse sentido, Grazi destacou o quanto é preciso lutar por essa educação popular, visto que há uma estrutura hegemônica que ataca os movimentos que a promovem. Assim, a resistência se configura como luta e fortaleza para todos que ali estão. Finalizando a conversa, tive a oportunidade de ouvir um aluno que participa da coordenação, Vlademir, e uma ex-aluna, a estudante de Comércio Exterior, Ana. Ambos reforçaram o conteúdo preparatório, mas principalmente salientaram a importância da existência dos círculos de debate como forma de ampliar horizontes e conscientizar a todos sobre a construção de uma sociedade mais justa e humana. Destaco o quanto saí tomada de um sentimento de força e coragem e o quanto ideais libertadores ecoam para além dos muros da educação tradicional, como afirmado por Paulo Freire: “Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão-ação. Pessoas transformam o mundo”.


NOTAS CIDADANISTAS | Mulheres ocupam

divulgação/reprodução

O RESISTÊNCIA FEMININA A entrada da ocupação e as mulheres em ação

Toda força às Mulheres de Mirabal Movimento de Mulheres Olga Benário celebra acordo depois de muita luta e resistência frente à Ocupação Mirabal. Movimento Raiz Cidadanista em Porto Alegre segue no apoio em defesa de mulheres vítimas de violência.

por MARIA ANTONIETA GIONGO

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Movimento de Mulheres Olga Benário ocupa desde a madrugada de 25 de novembro de 2016 um prédio abandonado, no antigo Lar Dom Bosco, localizado no centro histórico de Porto Alegre. Chamada de Ocupação Mulheres Mirabal, em homenagem às irmãs assassinadas pela ditadura na República Dominicana, em 25 de novembro de 1960 (instituído Dia Internacional da Eliminação da Violência contra a Mulher pela ONU), tem como objetivo a criação de um Centro de Referência à Mulher que, além de acolher de maneira segura, ofereça também atendimento psicológico, jurídico e médico às mulheres vítimas de violência doméstica e em situação de vulnerabilidade. Um atendimento que hoje é quase inexistente diante da grande demanda em contraponto à escassez de recursos públicos – que não superaram 0,009% do orçamento municipal em 2014. Além dessa situação, o Estado extinguiu a Secretaria Estadual de Políticas para Mulheres – SPM/RS a partir de 2015, tornando o atendimento às vítimas ainda mais difícil e precário. Frente a isso, o Movimento Mirabal passou a atender e abrigar dezenas de mulheres, muitas das quais vêm acompanhadas de seus filhos menores, e promoveu intensa divulgação atraindo não apenas as próprias mulheres, mas também os profissionais apoiadores, que se dispuseram a colaborar e dar assistência às abrigadas, em sua maioria encaminhadas por entidades sociais ou pelo próprio poder público. Prestes a comemorar um ano de ocupação, o Movimento Olga Benário festeja uma importante vitória, em acordo celebrado no dia 21 de setembro, no qual Estado e Prefeitura se comprometeram a encontrar um outro local, até maio de 2018, para a instalação e funcionamento do Centro de Referência, além de suspenderem ações de reintegração (três até este momento). Em pronunciamento oficial, o Movimento Mirabal ressaltou a capacidade de organização e mobilização das mulheres como exemplo de exercício do poder popular na conquista de uma sociedade mais justa. Toda força às mulheres de Mirabal!



NOTAS CIDADANISTAS | Conservadorismo

O Catolicismo é a Favor dos Direitos Humanos? Pesquisa feita por professores da Unifesp e USP mostra que o católico é conservador e mais punitivo que o evangélico. O comportamento ressalta a importância de a Igreja abrir diálogo com a população.

por EDUARDO BRASILEIRO

O CATÓLICO SE ACHA CONSERVADOR?

40% muito 31,4% pouco 19,3% nada 9,3% outras respostas

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A

borto? Não, que coisa horrível! Estão matando crianças. Pena de morte? Sim, tem gente que merece.” Precisamos refletir. A maioria das pessoas que repete essa frase não fez verdadeiramente um questionamento sobre esses temas. O Brasil de 2017 é o país de poucos ouvidos e muitas bocas. Umberto Ecco tinha razão: “As redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”. Todos têm opinião, mas as respostas parecem irrefletidas e, por isso, pouco compreendidas. No dia 12 de outubro de 2017, na celebração de trezentos anos de Nossa Senhora Aparecida, a professora Esther Solano, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), e os professores Pablo Ortellado e Márcio Moretto, da USP (Universidade de São Paulo), visitaram a cidade da padroeira do Brasil e realizaram uma pesquisa qualitativa sobre o que pensa o católico. O estudo mostrou que o público era majoritariamente formado por “mulheres (56% contra 44% de homens), com renda entre R$ 2.810 e R$ 4.690 (29,2%) e ensino médio completo (32,5%). A maior parte (40%) se apresentou como muito conservador, diante de 31,4% dos que se disseram pouco conservador e 19,3%, nada conservador”. Da pesquisa constatou-se que o católico médio é muito mais punitivo que o evangélico, tendo 59% dos entrevistados sendo a favor da pena de morte, 81% concordando com a redução da maioridade penal, 70% sendo contrários ao aborto. A pesquisa por si só é muito esclarecedora e guarda uma cereja no bolo: 60,3% concordaram que "os direitos humanos atrapalham o combate ao crime". Esses dados nos chamam a refletir com profundidade o que está havendo dentro do catolicismo. A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) tem marcado sua história por posicionamentos em defesa de direitos humanos. A Conferência dos Bispos é contrária à redução da maioridade penal, denuncia há anos as mazelas do capitalismo e até se posicionou contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Porém se descola dela a maior parte dos católicos brasileiros, em especial o seu clero, grupo que deveria reverberar suas práticas e posicionamentos para o seu povo. Espalha-se pelo Brasil cada vez mais uma Igreja clerical irreversível. Em todos os cantos milhares de fiéis vão às igrejas só para adorar, pagar o dízimo e patrocinar


COMO PENSA O CATÓLICO

59%

81%

70%

60.3%

52.3%

77%

são a favor da pena de morte

são contra a prática do aborto

vêm com desconfiança o trabalho do MTST

querem a redução da maioridade penal

acham que os direitos humanos atrapalham o combate ao crime

desconhecem o movimento social MBL

santos, mas não se propõem a fazer uma conexão com o Jesus histórico, taxado como defensor dos pobres – objeto dos direitos humanos. Não seria lógico esse mesmo Jesus inspirar um Brasil justo e igualitário? Não! E o papa Francisco? Aquele que atacou a tirania do capitalismo e convocou-nos para a renovação da Igreja? Ninguém ouve falar do papa dentro das igrejas do Brasil. Voltemos aos números. Os dados da pesquisa confirmam que o público católico se apresenta mais punitivo que os evangélicos, porém mais liberal em pautas como a defesa da união do mesmo sexo (aprovada por 48% dos entrevistados), travestis usarem banheiro feminino (aprovada por 67%), sistema de cotas (aprovada por 56%). A afirmação feita pelos pesquisadores dizendo que “a polícia é mais violenta com os negros do que com os brancos” alcançou 90,6% de concordância. Os católicos estão de acordo também que escolas deveriam ensinar a respeitar os gays (83,5%) e ainda que "cantar mulher" é ofensivo (68%.). No espectro da política partidária, prevalece a antipolítica (31% dos entrevistados dizem que irão anular o voto), e os presidenciáveis não alcançaram nem 20% da opinião dos pesquisadores, sendo observada a seguinte

ordem: Lula (19%), Bolsonaro (11%), Dória (7%), Marina Silva (6%), Alckmin (3%) e Chico Alencar (1%). Sobre os movimentos sociais, o mais desconhecido foi o MBL (Movimento Brasil Livre), com 77%, e o com maior percentual de desconfiança foi o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), com 52,3%. Em tese, como toda amostragem, a pesquisa tem um percentual de erro alto. Porém, numa visão geral, podemos elencar princípios para traçar um caminho de uma Igreja católica comprometida com o sincero desejo de renovação e continuidade de sua missão próxima aos mais pobres, na defesa da justiça e da espiritualidade libertadora: 1) Bases: Há grupos comprovadamente contrários a uma Igreja com o papa Francisco e a renovação eclesial. Portanto, é preciso “dinamizar, articular e assessorar” as lutas dos mais pobres nas regiões periféricas, e “interligar” os que atuam pastoralmente para que encontrem a espiritualidade a partir de um novo referencial bíblico-teológico que se dá na opção preferencial pelos marginalizados. Uma Igreja que vencerá o fascismo presente no universo simbólico cristão. 2) Disputar o pensamento: Propor “vivências” de realidades como ir conhecer os milhares de sem-teto no Brasil que vivem na luta por moradia, como por exemplo o MTST. 3) Profecia: Habitar o contraditório. Mais que costurar, será preciso uma ruptura com o “peleguismo” da ação solidária que finge ouvir os mais pobres (por exemplo, o cardeal de São Paulo concordando em entregar ração aos pobres), e se disputar a narrativa do cristianismo nas ruas, onde se veem muitas expressões, como, por exemplo, o espetáculo teatral Evangelho segundo Jesus Cristo, rainha do céu, trazendo a beleza do evangelho a partir da luta de uma mulher transexual no Brasil. O cristianismo hoje pede mais uma vez o radical seguimento de Jesus. Mover-se pelas entranhas para retomar o serviço imprescindível de luta pela justiça no Brasil. São várias as formas, mas é imperativo que a renovação escolha estar onde ninguém mais está: sendo luz para quem está no escuro, justiça para quem está desolado, conforto para quem está desamparado e, sobretudo, profecia para quem quer lutar por um Brasil no qual os direitos humanos são a profissão de fé do cristão, povo da esperança num novo tempo. CIDADANISTA

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PLANO DE BAIRRO PARTICIPATIVO Consulta pública comunitária para elaboração de Plano de Bairro de NOTAS CIDADANISTAS | O amanhecer de Ita Itaquera, previsto no Plano Diretor da Prefeitura de São Paulo-2014. Organização: Raiz Movimento Cidadanista - Círculo Itaquera - Outubro/17

Bons Ventos Voltam a Soprar no Leste Como o trabalho de equipe feito por diferentes movimentos sociais está formando um polo de mobilização e transformação em um dos bairros mais emblemáticos da Zona Leste paulistana.

por IVAN ZUMALDE

FLYER Comunicação de chamamento dos Panelas Populares

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remos!

que que o r ir a b O

A R E U Q A T QUAL I QUER? VOCE AJUDE INIAO E DE SUA ONPSTRUIR UM A CO MELHOR BAIRRO

T

odos sabem onde é o campo mais famoso de Itaquera e qual a equipe que joga no estádio. Mas há um outro jogo acontecendo nas ruas, praças e centros espalhados pelo bairro onde novos times de mobilizadores sociais estão ganhando protagonismo e pontos com os moradores do região. Juntas, as equipes vestem e suam a camisa para lutar por mais justiça social e jogam o jogo na terra batida, junto com a população e em prol dela. São coletivos, movimentos e organizações sociais que, cada um com sua tática, estão ajudando a resgatar a tradição de Itaquera na liderança de mobilização na Zona Leste. Sabem da responsabilidade em honrar a camisa do distrito que tem longa tradição em lutas sociais. Foi aqui que muitas das comunidades eclesiais de base se formaram na época da ditadura, além de ser palco de importantes lutas por moradia, saúde e educação. O bairro sempre foi um polo de mobilização e amparo social, mas nas últimas décadas esse movimento havia ficado adormecido. Isso mudou nos últimos anos, e agora o movimento volta com força de um líder que desperta. Conheça a multifacetada Itaquera de hoje e a mobilização que vai transformar o território nos próximos anos.


EM AÇÃO Josué, do bairro sem medo, se prepara para ato

"O CÍRCULO DE ITAQUERA TEM A PRETENSÃO DE SER UM ESPAÇO DE PARTICIPAÇÃO E CONSTRUÇÃO COLETIVA DE PROPOSTAS "

VENTOS DE PROPOSTAS É domingo de uma manhã ensolarada de setembro, e um grupo de integrantes do movimento Raiz Cidadanista se prepara para fazer sua primeira consulta pública com os moradores do bairro. A ação é realizada perto da feira livre dominical e faz parte do projeto do movimento para criar um plano de bairro para a região de Itaquera. “Achávamos que ninguém iria querer responder o questionário, mas quando as pessoas viam os cartazes e ouviam nossa proposta, se prontificavam a participar. Ficou claro que é urgente colocarmos em prática mecanismos de participação da comunidade na construção das políticas públicas para o bairro”, ressalta Valdir da Silva Oliveira, um dos fundadores do círculo cidadanista de Itaquera, uma unidade local da Raiz fundada este ano no bairro. “O Círculo de Itaquera tem a pretensão de ser um espaço de participação e construção coletiva de propostas para a melhoria da qualidade de vida dos itaquerenses”, salienta Valdir, que já dispõe de dados e demandas locais para começar a formular o plano que, em sua segunda fase, será construído com a participação de outros coletivos e organizações do bairro que serão convidados a participar da formulação conjunta do projeto. “Toda nossa ação está articulada às proposições do Fórum Agenda 21 da Região Macroleste, na qual os prefeitos regionais se comprometeram, por meio de assinatura de uma carta, a construir o plano de bairro em consonância com os princípios

FAP A Frente Alternativa Preta (FAP) integra vários coletivos como a Uneafro.

LIEBERTAÇÃO Leonardo Boff em encontro do IPDM na região

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Fotos divulgação

DI Campana coletivo

SÍMBOLO PERIFÉRICO A okupação coragem oferece atividades culturais e é referência em Itaquera


NOTAS CIDADANISTAS | Mobilização

da Agenda 21 e das ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável) 2030”, afirma Kida Sanches, integrante fundadora do grupo juntamente com Eduardo Cesar Santos e Ivan Zumalde. A iniciativa do círculo de Itaquera também foi compartilhada com a DGD (Departamento de Gestão Descentralizada) e soma-se a outras iniciativas como outro plano de bairro que está sendo desenvolvido na região de São Miguel Paulista, bairro vizinho. Lá, a população está formulando, com a Fundação Tite Setubal, um plano para o Jardim Lapenna. Ao final, as ações fortalecem a região e servem de experiências para outros bairros. “Esse instrumento vai nos permitir mobilizar a comunidade para discutirmos nosso bairro e construírmos propostas de melhoria da qualidade de vida da comunidade”, finaliza Valdir. VENTOS DE FORMAÇÃO Formado em 2010, o IPDM (Igreja Povo de Deus em Movimento) é um grupo fundado por seis padres que surgiu para resgatar a vocação de uma Igreja comprometida com mais justiça social e próxima dos pobres. O grupo, que contou com a assessoria de dom Angélico em sua concepção, busca romper o silêncio dentro das comunidades católicas do Brasil e encontrou terreno fértil em Itaquera, onde o padre Paulo Bezerra lidera uma igreja menos conservadora e mais alinhada com os ideais do papa Francisco. O movimento ganhou força e se articulou nos últimos anos devido aos retrocessos sociais vistos – sejam eles na capital ou no Brasil – e também ao poder de jovens que mobilizam a comunidade local buscando uma "Igreja em saída", como relata um dos coordenadores do IPDM, Eduardo Brasileiro. "A estratégia se dá por dialogar e sair da bolha de alienação presente nos discursos religiosos hoje e retomar a caminhada da Igreja sobretudo para com os mais pobres, ouvindo os movimentos sociais populares." A estratégia do IPDM é clara e tem surtido efeito. Primeiramente, traz pautas para o debate junto com as comunidades e depois busca se articular com os movimentos sociais locais. "Será deles que construiremos um Brasil melhor. Serão eles que

dirão como resolver a crise e que irão propor reformas estruturais contra a desigualdade continental que temos", afirma Eduardo. Uma segunda forma de atuação do IPDM está na conquista de mentes e corações das pessoas, promovendo uma consciência mais libertadora. "Queremos disputar espiritualidades libertadoras, onde não somos engolidos pela alienação do consumismo", afirma Eduardo. Para isso, o grupo está prestes a lançar sua primeira cartilha de formação, na qual trará conteúdos para estimular encontros nas vilas e comunidades visando provocar pessoas decididas a retomar o trabalho de base. "Ao lançar sua cartilha, o IPDM inicia uma segunda etapa da sua caminhada. Deixa de ser “inspiração e aspiração” e ousa assumir os passos seguintes: uma “provocação” resultante da “mística” proposta por Jesus de Nazaré, crucificado e ressuscitado", profetiza o padre Paulo, que, consciente da atual conjuntura sociopolítica nacional, acredita na transformação vinda pela consciência e pela ação do IPDM com a população. "Estamos quase submersos numa crise econômica e socioambiental, cultural e religiosa. O IPDM, no entanto, provoca a inércia pastoral", finaliza o padre.

"...TEMOS QUE ENFRENTAR A CRISE NÃO COMO LIMITE, MAS COMO PROFECIA DE TRANSFORMAÇÃO"

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VENTOS DE RESISTÊNCIA Para completar o tripé dos bons ventos que trazem esperança para a poulação da Zona Leste, um vento mais forte bate na janela dos itaquerenses: o vento formado pela resistência das ruas. Se por um lado a Raiz propõe um plano de bairro e o IPDM for-


PESQUISA O movimento social Raiz coleta dados com a população para constuir o plano de bairro de Itaquera

ma a consciência da comunidade, nada se faz sem luta. E aqui entram diversos movimentos, como o Bairro Sem Medo, formado em Itaquera, ou ainda o Panelas Populares, que se organiza na região da Praça Brasil, na Cohab II – José Bonifácio. O território de luta da praça também acolhe a emblemática Okupação Cultural Coragem, importante motor de resistência cultural periférica do bairro. Cada um com seu jeito, formam a barreira da luta na região. Um dos movimentos que conseguiu grandes mobilizações e atos ultimamente foi o Bairro Sem Medo de Itaquera. O grupo faz parte da Frente Povo Sem Medo, ligado ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e que tem histórico de lutas na região com a Ocupação Copa do Povo na época da Copa do Mundo de 2014 – hoje as famílias aguardam a construção das moradias no local. O Bairro Sem Medo foi formado em abril desse ano, mas já conseguiu realizar atos importantes frente à intenção do governo do prefeito Doria de privatizar o Parque do Carmo, o segundo maior parque urbano da cidade e refúgio de mata atlântica e de lazer para a população do bairro e da Zona Leste. O parque, independente da opção da privatização, é um bem local público e merece atenção e debate aprofundado sobre seu futuro, o que deve ser feito pela iniciativa da Prefeitura, mas com a partici-

pação da comunidade local. "A gente já fez uma série de atividades, desde panfletagens no próprio parque até coleta de assinaturas que propõe um plebiscito. Fizemos um ato no próprio Parque do Carmo no dia da Festa das Cerejeiras e, além disso, fizemos uma ocupação da Prefeitura Regional de Itaquera, que tinha como objetivo alertar sobre como essa discussão não está sendo feita no bairro", afirma Josué Rocha, 28 anos, médico e coordenador do grupo em Itaquera. A organização tem como objetivo estimular moradores na região que queiram atuar em ações locais e estimular uma relação de pertencimento com o local, que já teve um histórico de mais empoderamento. "A região vivenciou um processo de lutas comunitárias pela saúde, por creche, o que foi muito importante. Essa memória precisa ser retomada, e acho que o Bairro Sem Medo pode cumprir muito bem esse papel de organização", finaliza Josué. Outra iniciativa recente na região é o Panelas Populares, "um terreiro de afetividade e diálogo em torno da construção de um projeto político com a cara da periferia", defende Jesus dos Santos, 33 anos, e um dos coordenadores do projeto que quer promover cozinhas comunitárias nas ruas e estimulando debates sobre a realidade da política nacional. A inspiração veio da Argentina atual e do Chile da época pré-golpe de Pinochet, mas a versão brasileira tem um tempero mais eclético e uma proposta mais periférica. "Temos quatro eixos temáticos – raça, gênero, sociedade e território" e uma formação mais heterogênea. Conta com sindicalistas, pessoas vindas de ligas anarquistas e também grupos que formam a "marcha pela consciência negra" e frentes como "São Paulo não está à venda". "A ideia é que a gente possa começar a produzir a partir de outros olhares e referências", finaliza Jesus. Ainda não é possível prever para onde os ventos levarão Itaquera e região, mas não há dúvidas que existe algo novo no ar e que o futuro dessa região habitada inicialmente por índios terá um novo rumo. Dias onde não apenas interferências urbanas feitas por cimento e ferro darão o tom do local, mas um destino idealizado e construído com a participação de seus moradores. Um vento e uma ventania que levem - e não façam voltar - a um lugar com justiça social para seu povo. CIDADANISTA

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BEM VIVER Entrevista Berta Zuñiga Cáceres

JUSTIÇA PARA BERTA

Em entrevista exclusiva para a revista Cidadanista, filha da ativista assassinada Berta Cáceres desabafa: “O assassinato da minha mãe caminha para a impunidade”.

por VITOR TAVEIRA

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m março de 2016, o assassinato de Berta Cáceres repercutiu em todo o mundo. Indígena, ambientalista e ativista de direitos humanos, ela era uma importante liderança do movimento social hondurenho e articulava lutas também no nível internacional. Conversamos com uma de suas filhas, Berta Zuñiga Cáceres, conhecida como Bertita, que integra o Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (COPINH), da qual sua mãe era uma figura destacada. Em passagem pelo Brasil, Bertita dialogou com movimentos do Brasil e outros países que travam lutas similares e presenciou homenagens a sua mãe, uma referência e mártir da causa.

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Quem foi sua mãe, Berta Cáceres? Foi uma líder do povo Lenca que sempre lutou pela defesa do território e direitos fundamentais dos povos indígenas. Também foi líder do movimento social em Honduras, principalmente depois do golpe de Estado de 2009. Mas desde muitos anos antes, ela, junto ao COPINH, trabalhou também em articulações meso-americanas em defesa dos rios, contra as represas, contra a militarização, contra a mineração. Apostou muito nos últimos anos em denunciar o Agua Zarca, que é um projeto hidroelétrico que ainda continua ameaçando. Foi assassinada no ano passado, dia 2 de março, justamente por uma forte luta contra esse projeto hidroelétrico que dizemos que não é apenas da empresa construtora do projeto, mas sim uma política de Estado em que também se via envolvida a empresa, porque há funcionários do Estado, militares, inclusive de alto mando, que expressam uma política de perseguição às lideranças e às pessoas que estão na luta pela defesa dos territórios. Sobre o assassinato de Berta, houve algum esclarecimento ou sinais de que haverá justiça? Nós sabemos que está caminhando para a impunidade e denunciamos isso de maneira reiterada. Diante da reação internacional tão grande que houve, o que as autoridades fizeram foi capturar os supostos autores materiais do crime para criar uma cortina de fumaça sobre o tema. Mas sabemos que o desafio que é a captura dos autores intelectuais é ainda maior, porque essa empresa que se chama Desarrollos Energéticos S.A. (Desa) tem como um dos donos uma das famílias mais poderosas de Honduras, que apoiou o golpe de Estado e que é intocável. No momento em que se toque alguém dessa família, pode-se dizer que basicamente houve uma revolução em nosso país. Nós estamos participando no litígio interno, tratando de disputar a justiça, de mostrar à sociedade hondurenha e ao sistema de justiça que essas coisas não podem acontecer. O processo está cheio de irregularidades, pois é a forma de atuar do Estado de Honduras, que também é cúmplice do delito e obviamente não quer a justiça. Estamos sempre demandando a captura dos autores intelectuais e vamos promo-


"Eu sabía que íamos triunfar, foi o rio que me disse" CIDADANISTA

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BEM VIVER | Entrevista Berta Zuñiga Cáceres

ver muitas ações para que isso se concretize. Vamos fazer isso com a solidariedade internacional e também com a força das comunidades que seguem lutando e pedindo justiça em relação a esse crime. Como tem sido o processo de solidariedade e de memória diante de sua morte e seu legado? Acho que a memória dela é muito forte, porque ela foi uma caminhante desses espaços dos movimentos, uma articuladora no âmbito da América Latina, que até certo ponto levou adiante esse trabalho. Há bastante gente comprometida que ficou muito sentida e é um tema que sempre comove as distintas comunidades, sobretudo quando são pessoas que se identificam com as vítimas, com os afetados de todo esse modelo e em toda região subcontinental que é América Latina. É uma problemática com a qual todos nos identificamos. Honduras é um país dependente, é um país que assassina.

importante de concessões de rios para hidrelétricas e mineradoras, entre elas a de Agua Zarca. Acho que entre as semelhanças também está o fato de que as comunidades estão fazendo resistência contra esses projetos e fortalecendo tanto a organização comunitária como outras estruturas para enfrentar essas problemáticas e defender os bens comuns da natureza. Em comum também vejo a perseguição às mulheres. Há um ódio fundamental às mulheres que não têm medo de falar, que não se calam e denunciam, que nomeiam as empresas e empresários, os bancos que também estão por trás, que financiam e possibilitam esses projetos. Quais as estratégias de resistência a esses projetos em Honduras? Acho que há muitos níveis. Algo muito importante num primeiro nível é o fortalecimento organizativo das comunidades. Como estruturas, temos os conselhos indígenas, que são como a célula de toda estrutura organizativa do COPINH. Os conselhos indígenas que motivam a luta, que organizam a luta, mas que também pensam a vida para além do capitalismo, o que exige muitos desafios. Nós sempre destacamos que minha mãe, nossa coordenadora geral, foi assassinada em meio a um fórum de energias alternativas que estava sendo realizado para debater quais são as possibilidades. Se não queremos hidroelétricas nem eólicas das empresas nem nada que venha das grandes organizações, nem solar, então quais são as alternativas que as comunidades têm para isso? O fato de ela ter sido assassinada enquanto discutíamos isso é bem simbólico para nós porque dá uma mensagem de que eles tampouco querem a construção das alternativas. Outra coisa importante são as rádios comunitárias, que têm um papel fundamental para fazer formação. A formação nas escolinhas, a articulação com outras organizações que em Honduras também estão fazendo a defesa territorial. Nesse

“ HONDURAS, É CÚMPLICE DO DELITO E OBVIAMENTE NÃO QUER JUSTIÇA “

Como esse projeto de desenvolvimento leva a todos esses conflitos na América Latina? No Brasil, conversamos com as pessoas afetadas por barragens e vemos problemas bastante similares. Em nossas comunidades do povo Lenca, temos enfrentado toda política de geração de energias limpas, porque assim a chamam – nós dizemos energias assassinas. São muitos projetos hidrelétricos, há 49 concessões só em nossa região, que é muito pequena em relação ao Brasil, por exemplo. Obviamente essas políticas se fazem à margem dos direitos do povo e contra a vontade de comunidades que claramente disseram que não querem esses projetos hidroelétricos em seus territórios. É uma política que foi impulsionada logo que houve o golpe de Estado de 2009. Honduras foi anfitrião desses golpes de Estado de novo tipo, que agora o Brasil também está enfrentando. Esse golpe de Estado representou a aceleração de todo esse modelo extrativista e saqueador. Em um só dia foi concedida uma quantidade muito 22 CIDADANISTA


encontro também estão pessoas do Movimiento Amplio por la Dignidad y la Justicia, que é outra organização que trabalha de maneira articulada junto ao Copihn. Formamos parte da plataforma do movimento popular e social, em que estão todas as organizações que desde o golpe de Estado criaram essa proposta refundacional de Honduras, como dizemos, e que fazem a defesa dos territórios. E quais as possíveis alternativas? Ao dizer não a esse modelo que se pode gerar com menos impacto social e ambiental? Há muitas alternativas em muitas áreas. No tema energético, havia debates muito interessantes sobre o tema primeiro de economizar energia. A forma de vida dos povos indígenas e suas concepções rompem muitos dos esquemas da lógica do consumo. Algumas comunidades pensam que a energia elétrica não é imprescindível, outras a colocam como uma necessidade. Há pequenos projetos de biodigestores, de pequenas turbinas, tanto eólicas como nos rios, mas que são das comunidades. Obviamente seguem uma lógica para o consumo das comunidades, e não para as empresas ou para o canal de interconexão elétrica da América Central de que Honduras faz parte. Algo que trazemos para o debate ao Brasil é que em Honduras não há muitas mega-hidrelétricas. São hidrelétricas pequenas, mas são controladas pelos empresários, pelos bancos. Na lógica que atrai esses projetos, não há respeito à cosmovisão dos povos indígenas. Uma coisa que propomos no debate é o tema de que há rios sagrados que não podem ser tocados. Isso na lógica capitalista e ocidental não vale nada. É visto como algo que mostra a ignorância das comunidades indígenas. Tem a ver com a lógica de para que há a energia, como se produz, a custo de quê, e também com lógicas de pequena demanda de comunidades pontuais, e não para alimentar esses canais de interconexão.

Normativas internacionais sobre povos indígenas e tribais, como o Convênio 169 da OIT, indicam que em todo projeto que afeta essas comunidades deve haver um processo de consulta prévia, livre e informada. Como isso ocorre nos territórios? É o mesmo em todos os países. Apesar de estar ratificado nos convênios internacionais, nunca se respeitou, e isso é parte também da causa dos problemas e dessas mortes. Atualmente se promove não só em Honduras, mas também na Guatemala, um projeto de regulamentação da consulta para justamente tirar esse direito das comunidades. Para que fique claro aos empresários, que também estão promovendo essa regulamentação, de que às comunidades se pergunta, mas sua palavra não vale nada, pois quem vai decidir ou são empresas ou setores do Estado que estão a serviço da empresa privada hondurenha e nos tirando essa possibilidade de decisão. Mas sabemos que para além das leis existe um direito legítimo, e nós sempre o reivindicamos para denunciar esses projetos por invadirem nossos territórios. Há uma grande contradição, pois para gerar energia para as grandes cidades e indústrias há que gerar essas zonas de sacrifício. Os territórios que vão pagar não são os que consomem… Honduras foi parte do Plano Meso-Americano de Integração e Desenvolvimento, que é, digamos, a renovação do Plano Puebla-Panamá, para gerar um monte de energía que não é sequer para Honduras, mas para a indústria mineira, para o turismo e também para esse corredor que move energia desde a América Central até os Estados Unidos, a primeira potência do mundo, e que necessita de muita energia. Isso vai avançando, e é o que dizemos: dessa energia não necessitamos. Ela serve aos interesses capitalistas e banha de mais sangue os nossos territórios.

“ OS TERRITÓRIOS QUE VÃO PAGAR NÃO SÃO OS QUE CONSOMEM “

CIDADANISTA

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BEM VIVER ECCO

UM CHAMADO AO PLANETA Permacultores, ativistas, indígenas e outros movimentos sociais se reúniram em evento no cerrado brasileiro para celebrar e construir o Ecco, um chamado de consciência e resiliência planetária

por THOMAS ENLAZADOR

A

conteceu no coração do Brasil, próximo da Chapada dos Veadeiros (GO), na pequena e misteriosa cidade de Alto Paraíso de Goiás, o Ecco – Chamado pela Resiliência Planetária –, um encontro que entrou na história do Movimento Alternativo Latino-Americano e para os Assentamentos Humanos Resilientes no Brasil. Pela primeira vez desde a criação da Rede Global de Ecovilas (GEN), o Brasil reuniu em um mesmo encontro o Casa – Conselho de Assentamentos Sustentáveis da América Latina –, o GEN, além de comunidades indígenas tradicionais, movimentos sociais, permacultores e ecoaldeias. O encontro aconteceu dentro da modalidade criada no início dos anos 1990, no México, e reuniu, em conselhos temáticos, diversos ativistas, lideranças e representantes de distintas organizações oriundas de vinte países em um evento que fortaleceu a cultura da resiliência e o ativismo em rede. O chamado teve seu objetivo cumprido, fortificando os movimentos dos assentamentos e iniciativas resilientes no plano regional, nacional e global. Ficou evidente a necessidade de uma mudança profunda no padrão de consumo e produção e na adoção de estilos de vida regenerativos. Faz-se ne24 CIDADANISTA

cessária a construção de projetos que fortaleçam a integração entre movimentos e uma maior pluralidade e diversidade socioeconômica dentro do movimento. Esse é um dos caminhos para enfrentar os atuais desafios planetários que seguem avançando em marcha degradante e surpreendente. Houve um grande intercâmbio de tecnologias sociais. O encontro que contou com cerca de 250 pessoas e mais de cem projetos foi realizado na sede rural do Instituto Biorregional do Cerrado – IBC, um instituto que tem quatro linhas principais de ação, focados na construção de uma ecoaldeia, um ecocentro comunitário, uma unidade de conservação dentro da sua área de preservação no território e ações biorregionalistas ligadas ao fortalecimento de políticas públicas locais. Outro ponto de destaque foi a participação nacional e internacional de lideranças indígenas e tradicionais, como representantes das etnias Karajá, Xerente, Huni Kuin, Guarani, Kalungas, indígenas da Colômbia e nativos da África. De maneira complementar, também foi reafirmado o compromisso


Fotos divulgação

PLANETA AZUL Uma das atividades do ]evento que aconteceu na cidade de Alto Paraíso no cerrado brasileiro

com a aliança multiétnica de permacultura Awire, que tem como missão levar a permacultura às aldeias indígenas e comunidades tradicionais, fortalecendo a presença dessas lideranças em cursos e eventos da rede e criando protocolos de apoio no design permacultural de aldeias e territórios. Seguindo os passos de países como Colômbia, Bolívia, Equador e México, foi realizado um grande painel e se articulou em alguns conselhos a consolidação de um movimento brasileiro pela Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra. Estavam presentes o mexicano e ativista Alberto Ruz e a advogada ambientalista Vanessa Hasson, que entregaram para o superintendente de Meio Ambiente de Alto Paraíso e para o representante do Mandato Coletivo da cidade uma proposta solicitando a inclusão de Alto Paraíso como a primeira cidade do Brasil a adotar oficialmente os direitos da Mãe Terra em sua legislação municipal. INCÊNDIO E REAÇÃO Eram pouco mais de 14 h do dia 11 de outubro

(último dia do encontro) quando fomos surpreendidos com um incêndio de grandes proporções que se aproximava do território do IBC. A brigada voluntária do IBC, em conjunto com o PrevFogo, ligado ao Ibama, constataram que o fogo oferecia grande risco aos presentes e tivemos que orquestrar a evacuação imediata de todos os veículos e as mais de duzentas pessoas presentes. Uma boa parte dos participantes, incluindo pessoas que nunca haviam se deparado com tal situação, se juntou bravamente às brigadas e lutou durante quatro horas para impedir que o fogo avançasse e causasse maior estrago. Foi um teste original e auspicioso para essa rede que pretende se tornar uma referência em resiliência e design permacultural em catástrofes ambientais e climáticas. Mesmo depois do término do Ecco, boa parte dos integrantes do IBC se juntou à Rede contra o fogo e esteve até o dia 29 de outubro em intenso combate no que foi um dos maiores incêndios florestais da história do cerrado e também uma das maiores mobilizações já realizadas pela sociedade civil organizada em brigadas voluntárias. Mais de 10 mil pessoas ajudaram direta e indiretamente nessa ação. No que tange ao Brasil, o encontro fortaleceu muito a Rede Casa Brasil, que trabalhará arduamente para unir esforços na incubação e integração de iniciativas resilientes. O Casa está aberto para novos colaboradores e projetos, e uma das frentes será o apoio ao Fama – Fórum Alternativo Mundial da Água, evento que acontecerá em março de 2018 em Brasilia como contraponto ao Fórum Global das Águas regido pelas transnacionais que estão privatizando esse precioso e indispensável recurso natural. Temos um horizonte auspicioso pela frente. As lutas são intensas e os retrocessos não param. Precisamos de mais chamados, conselhos de visões e iniciativas para florescer uma corrente de ativismo leve, próspero, feminino, plural e inclusivo. Se não nós, quem? Se não agora, quando? CIDADANISTA

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BEM VIVER Fórum Bem Viver

AO AR LIVRE O Fórum contou com dinâmicas e apresentações que abordaram o bem viver

FÓRUM DA ESPERANÇA EM MARABÁ Em entrevista para a Cidadanista, o arte-educador e escritor Dan Baron Cohen fala sobre a realização do 1º Fórum do Bem Viver que organizou em Marabá (PA).

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Qual o principal legado do 1º Fórum do Bem Viver e os impactos para o futuro do Brasil e do mundo? O Fórum tinha objetivos de ativismo e gestão. O objetivo ativista era idealizar e executar uma intervenção cultural coletiva e inovadora para impedir a construção da usina hidrelétrica de Marabá (UHM) e o megaprojeto industrial de mineração da hidrovia. O objetivo gestor era, e continua sendo, cultivar uma metodologia capaz de fomentar uma rede de bem viver, de projetos alternativos e abastecidos por energia solar. Os dois objetivos são interligados, se estendem além do território amazônico e contam com a ajuda de solidariedade mundial para realizar uma intervenção aqui na Amazônia. Um dos legados do fórum foi a sensibilização em torno de cinquenta ativistas sobre as realidades emergenciais na Amazônia – do sul e do sudeste do Pará. Ao juntar a experiência coletiva para semear núcleos de intervenção em Tauari e em São João do Araguaia (que vai realizar um Festival Bem Viver em dezembro), o fórum também aprofundou a confiança nos seus integrantes em uma pedagogia “artístico-ecocultural” tanto como intervenção política, quanto como metodologia eco-pedagógica, que pode ser aplicada na gestão de projetos comunitários e de democracia participativa. Depois de tantas décadas de fóruns autoritários e cansativos que produziram inevitáveis e inviáveis “cartas coletivas”, escritas por poucos em nome do “povo”, o principal legado talvez seja a esperança que um paradigma antigo-contemporâneo e flexível já existe para cultivar uma democracia aberta e participativa. Nos conte um pouco sobre o projeto de tornar Marabá uma referência em bem viver Convidamos uma diversidade de gestores para participar no fórum em “formato caravana” como ação experimental piloto que aproximou todos os setores da sociedade civil em torno de um projeto paradigmático. A experiência foi socializada aqui em Marabá, na região do sudeste do Pará, e em redes sociais, confirmando a força motivadora dessa metodologia em comunidades populares. A partir dessa experiência-piloto, estamos agora


O FÓRUM:

lançando microfóruns, simpósios, festivais e colaborações de bem viver em Marabá para inspirar colaborações internacionais, focalizadas sobre a ressignificação de Marabá. Na prática, nosso objetivo principal é captar 40 mil placas solares até o final de 2019, para abastecer projetos alternativos viáveis. Assim, esperamos que Marabá vai se reimaginar como uma cidade de bem viver, tornando-se exemplo inspirador de vida sustentável na Amazônia, nas Américas e no mundo. Quais são as estratégias para influenciar o poder público em prol da sustentabilidade em uma época em que o governo federal busca aumentar a exploração comercial mineral da Amazônia? O poder público aqui em geral está corrompido e comprado pelo paradigma predador atual, com a “contaminação” das instituições e até dos movimentos sociais. A renovação ou transformação do poder público implica a emergência de construir um novo paradigma cooperativo de bem viver, enraizada na formação de comunidades éticas e corresponsáveis.

CHAMAMENTO Dan Baron Cohen fala na Assembléia de Marabá

fotos: divulgação

• Total de participantes: 50 de forma presencial e 5.000 em redes sociais • Países envolvidos: 42 países em ações paralelas e contribuições virtuais e 6 no fórum presencial •O rganização: Instituto Transformance/Rios de Encontro; ABRA (Rede Brasileira de Arteducadores) •P arceiros: AESSPA, CEPAGRO, CNE, GAETE, Instituto Casa Común, Grupo Xama Teatro, Instituto Fotoativa, Instituto Polis, International Rivers, Instituto Somos, Instituto Superação, MAB, Madeira Vivo, Movimento Bacia Itacaiúnas, MST, Polícia Militar da Bahia, Pombas Urbanas, Saúde e Alegria, Tapajós Vivo, Teatro Piollin, UFPA, UFPB, Xingu Vivo, •A poiadores: Ministério de Educação (2015), Unifesspa, UEPA, Policia Militar do Pará, • Evento: - Pré Fórum (30 junho à 30 agosto) - Fórum (31 agosto-5 setembro)

Estamos idealizando tudo isso com algumas estratégias principais: praticar bem viver em vez de falar sobre ele; usar todas as linguagens artísticas para estimular as múltiplas experiências humanas; juntar protagonistas “opostos” ou “improváveis” para praticar e simbolizar o paradigma do bem viver; e usar esses processos e políticas públicas de bem viver para cultivar democracia participativa e assim substituir a democracia representativa falida. Simultaneamente, estamos informando parlamentos regionais, redes de profissionais internacionais, ONGs e governos de peso (em particular na Europa, na África e Oceano Pacífico), sobre os efeitos catastróficos socioambientais causados pela industrialização e comercialização desreguladas da Amazônia e que impactam na violação de direitos humanos na região e violentam tratados e acordos das Nações Unidas. Estamos também estudando e advogando uma taxa internacional de bem viver para deixar minerais in situ na Amazônia, para manter esse bioma de “rios voadores” intacta e promovendo o uso de energias limpas e renováveis, particularmente de energia solar, na vida cotidiana, e não somente nos setores industrial e comercial. Como as ações propostas no Fórum ajudam na melhoria de vida da população local em prol da justiça social? Ajudam promovendo a compreensão sobre o significado da vulnerabilidade da Amazônia e informando sobre a necessidade de incorporar um cuidado ambiental com o território. Sem esse cuidado e com suas implicações socioeconômicas, nenhuma justiça social acontece ou se sustenta. CIDADANISTA

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SEÇÃO MOVIMENTOS | Matéria Negócios sociais

NA PRÁTICA Alunos do curso de empreendedorismo social em atividade dentro do projeto Viela no extremo sul da capital paulista

Fotos: Ivan Zumalde

o ã ç a v o In 28 CIDADANISTA


l a i soc DES

por FEL MEN

r a para cria iz n a rg o e res ntes s o de milita il. São empreendedo Uma legiã de mudar ial no Bras o c it o s s ó a p ç ti ro s p de mais ju os pelo cios sociais e motivad ó s g e te n n ir re u e tr if d sce em e e cons tor que cre e a realidad s o a ç e h on mudar impacto. C rise e inspire-se em . apitalismo meio à c c o o d n a s o mundo u

CIDADANISTA

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MOVIMENTOS | Negócios sociais

"Entre mudar o mundo e ganhar dinheiro, fique com os dois"

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frase já é um clichê no universo do empreendedorismo, mas continua sendo a maneira mais rápida de explicar o que são negócios de impacto. Essa tendência de empresas que querem resolver algum problema do planeta e prosperar fazendo isso tem ganhado força nos últimos dez anos. No Brasil, os olhares mais atentos viram nascer todo um ecossistema capaz de sustentar seu próprio desenvolvimento. Incubadoras, aceleradoras, fundos de investimento, family offices, mentores, startups, eventos… E, claro, essa movimentação chamou a atenção dos meios de comunicação (que em 2017 abordaram como nunca o tema), de mais empreendedores (que decidiram finalmente tirar aquela ideia do papel) e de corporações globais (que estão olhando o florescimento do mercado com bons olhos). O resultado disso é que, a despeito da crise econômica, os negócios de impacto têm crescido em volume, relevância e investimento. Bom, falando assim até dá vontade de largar tudo e se jogar nessa piscina. Alto lá. A parte mais chata da história é que o mercado ainda é incipiente e concentra pouquíssima diversidade, os investimentos são de alto risco e os empreendedores estão suando para garantir seu lugar ao sol.

A DESPEITO DA CRISE ECONÔMICA, OS NEGÓCIOS DE IMPACTO TEM CRESCIDO EM VOLUME RELEVÂNCIA E INVESTIMENTO 30 CIDADANISTA

Recentemente, em um dos primeiros grandes esforços para mapear o ecossistema dos negócios de impacto, a Pipe.Social, que é uma vitrine de negócios sociais, articulou com cerca de quarenta organizações e coletou informações de 579 negócios em diferentes estágios de maturação. Destes, 40% têm menos de três anos de formação. Isso ajuda a explicar o fato de que a grande maioria, 79%, esteja procurando investimento, 35% ainda não têm nenhum tipo de faturamento e apenas 7% faturam acima dos R$ 2 milhões. Para quem quer investir, é o cenário ideal: um rol gigante de oportunidades e ações a preços bem acessíveis. Para se ter uma ideia, 38% querem levantar até R$ 200 mil (cifra considerada módica no universo das startups). Enquanto as startups se digladiam para saber quem vai continuar existindo após três anos de vida (que não à toa é chamado no mundo do empreendedorismo de Vale da Morte), o cenário é animador do lado de quem detém o capital. De acordo com o Panorama no Setor de Investimento de Impacto da América Latina divulgado pela Ande (Aspen Network of Development Entrepeneurs), uma rede global que reúne mais de 250 organizações que incentivam o empreendedorismo em mercados emergentes, o total de recursos destinados a iniciativas de impacto social saltou de US$ 177 milhões (em 2014) para US$ 186 milhões (em 2016). Especificamente no Brasil, em 2016, metade dos investidores afirmou ter uma meta anual de retorno de 16% ou mais. Quem olha o mercado de dentro tem a mesma impressão: “Todos os sinais que tenho visto mostram que isso é uma tendência que vai cada vez tomar conta das discussões de investimento. É um caminho que não vai ter volta. É a


Dados e infográfico: Pipe.Social

OLHA EU AQUI Menina e sua mãe durante dinâmica presencial do curso. A população local participa da solução dos problemas sociais


MOVIMENTOS | Negócios sociais

pasta pra fora do tubo”, analisa Daniel Izzo, que em 2009 cofundou a Vox Capital, um fundo de investimentos exclusivo para negócios de impacto que já aportou centenas de milhões de dólares em diversas iniciativas. Em 2017, aliás, o Brasil viu duplicar o número de fundos de investimento de negócios de impacto, e segundo Daniel ainda há mais novidade por vir, dessa vez no setor dos family offices. “Tem dois family offices grandes que já estão criando uma estratégia única de impacto para todo portfólio”, revela. Para quem não sabe, family offices são chamados os investidores que operam dinheiro de famílias ricas que vêem nos empreendedores sociais uma ótima maneira de multiplicar seu patrimônio e uma saída muito mais eficiente do que a filantropia. São muitas vezes mais ágeis do que os tradicionais fundos de investimento e têm mais flexibilidade. Outro indicativo de que a pasta realmente saiu do tubo é o interesse de grandes empresas no assunto. “Tenho falado com bancos e instituições financeiras desde 2009. E em 2009 eles marcavam reunião com uma visão de curiosidade: “Vamos ver do que se trata”. Em 2012 já se diziam em um novo estágio: “A gente sabe o que é, mas ainda vamos ver se é pra gente”. E as conversas que a gente tem tido de 2016 em diante mostram outra visão deles: “A

Dados e infográfico: Pipe.Social

gente sabe o que tem que fazer, mas estamos no estágio de decidir como fazer”, conta Izzo. Mais do que investir, algumas empresas têm outros planos em mente. “Eu tenho visto muitas empresas olhando para negócios sociais com o objetivo de fazer uma aquisição para, de repente, criar um novo setor dentro da empresa”, conta Carolina Aranha, que trabalha com negócios de impacto há sete anos e é fundadora da Pipe.Social. Afinal, ter um negócio que faça bem para o planeta e ainda renda dinheiro era tudo o que as empresas queriam, e o setor de responsabilidade social não poderia entregar. Para se ter uma ideia, entre as marcas envolvidas com o Prêmio Empreendedor Social 2017, promovido pela Folha de S.Paulo, estão Vivo, Coca-Cola, C&A, Porto Seguro, Insper e UOL. DESIGUALDADE NO TOPO DA PIRÂMIDE Apesar de o cenário parecer bem animador, alguns dados da pesquisa divulgada pela Pipe.Social são bastante eloquentes e indicam uma realidade dura de engolir: os empreendedores são, em sua maioria, homens e do Sudeste. Apenas 20% das iniciativas são fundadas por mulheres. Mudar o perfil do empreendedor de impacto é um dos maiores desafios segundo Ana Julia Ghirello, fundadora da abeLLha, que incuba negócios de impacto no estágio inicial: “A maioria dos negócios


CURSOS

IN LOCO Andreas, Alice e Lucas em ação no projeto Viela

DESPERTAR, APRENDER E MUDAR

Para poder ajudar melhor, uma oferta de cursos e ferramentas promete capacitar novos empreendedores sociais na criação e gestão de negócios de impacto.

U

m segundo e importante movimento que vem na esteira do crescimento dos negócios sociais no Brasil é o segmento de cursos em empreendedorismo social. São cursos de capacitação e formação para quem busca um trabalho com mais propósito e quer estruturar melhor seus projetos sociais por meio de ferramentas que garantam a sustentabilidade financeira e impacto nas comunidades. “Buscamos despertar uma nova visão de mundo em nossos alunos a partir da vivência direta com os problemas”, diz Alice Castello Branco, coordenadora do curso BDC – Business Design for Change – oferecido pelo Sense-Lab, uma organização com foco em estratégia e capacitação em negócios pensados para a base de pirâmide social. A vivência mencionada por Alice significa experiências práticas que os alunos têm dentro de comunidades na busca de soluções reais das pessoas. Por meio de parcerias locais com empreendedores que já atuam em territórios periféricos, o Sense-Lab proporciona um contato e um aprendizado real. “Essa conexão gera empatia, e é desse encontro que a solução vai emergir”. pontua Alice. Um dos parceiros é o Projeto Viela, dentro do Jd. Ibirapuera, extremo sul da capital paulistana, liderado pelo líder comunitário Buiu, que proporciona projetos de cultura e esporte para crianças do

Para saber mais: www.sense-lab.com e artemisia.org.br

bairro. Somado à experiência prática, o curso ensina a aplicação de ferramentas como “Teoria U” e “Design Thinking”, metodologias que ajudam a tirar do papel a ideia dos alunos. A própria ideia do Sense-Lab surgiu da vontade de um trabalho com mais propósito de um dos seus fundadores, o engenheiro Andreas Ufer. Depois de atuar em diversas áreas, como consultoria e sustentabilidade, Andreas decidiu fundar o Sense-Lab em 2013. Após também investir em formação dentro e fora do país, participou do curso da Artemisia, outro importante organismo de apoio pioneiro no país (que também disponibiliza cursos presenciais e on-line), e criou sua empresa. “Estamos para fomentar o setor de negócios sociais”, afirma Andreas, que sabe que o setor ainda está em formação e que um dos principais desafios para a Sense-Lab é justamente a formação. “Queremos despertar as pessoas que buscam mais propósito. É o passo inicial para eles iniciarem uma transformação mais ampla”, sintetiza Andreas, que tem a esperança de ver o território do extremo sul mudar com líderes como Buiu, do projeto Viela. “Nosso sonho para os próximos dez anos é ver a região mudar”, afirma Andreas, referindo-se ao território formado por Capão Redondo, Jd. Ângela e entorno. Que o sonho se torne realidade.

CIDADANISTA

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MOVIMENTOS | Luz no fim do túnel

MA

A SALADOR

EGRO ÁVEL D U A S A E D COMI 180 MIL À O S S E : AC ACTADAS P LHÃO MISSÃO: I M I M S A 6 , O 1 S S $ E R P AMENTO: DOR: N E D N E E R MP FATUR

de impacto são feitos por gente das classes A e B para as classes C, D e E. É um grande desafio capacitar quem vive o problema na base para solucioná-lo por meio de um negócio”. Contrariando as estatísticas, um caso tem ganhado bastante atenção: o do Saladorama, fundado por Hamilton Henrique, empreendedor negro nascido na comunidade Santa Marta. Operando desde 2014 com a missão de democratizar o acesso à comida saudável em regiões mais pobres, o Saladorama vem atingindo resultados. Ao todo, já foram mais de 180 mil pessoas impactadas e em 2016 a startup faturou R$ 1,6 milhão e lucrou R$ 300 mil. A verdade é que, pouco a pouco, vão aparecendo empreendedores sociais que não largaram tão na frente na corrida do privilégio. Ou seja, a história de Hamilton não é a única, mas é uma das mais empolgantes. Mesmo com números interessantes, o Saladorama ainda não pode ser considerado um case (como o mercado costuma rotular). E, verdade seja dita, apesar dos vários indicativos de que os negócios de impacto são realmente um movimento de vanguarda, ainda não há uma história pra contar que tenha obtido estrondoso retorno financeiro, bem como impacto na sociedade. Para quem olha o furacão de dentro, é tudo questão de tempo. “Este ainda é um dos pro34 CIDADANISTA

blemas, a falta de êxitos de sucesso. A gente não tem muito como inspirar investidores porque o Brasil ainda não tem uma startup que foi investida, teve uma saída com retorno social e financeiro. Mas eu acredito que essa safra de empresas que já estão há mais de quatro ou cinco anos dentro desse setor conseguirão dar ótimos resultados”, comenta Carolina Aranha. A percepção de Daniel Izzo é a mesma. “É natural que leve um tempo para a gente ter um case mais sólido, mas eles já estão aí. Posso falar três que estão seguindo um caminho lindo: o Avante, o Dr. Consulta e o Geekie, que estão captando rounds significativos de investimento com players grandes do mercado. Estou otimista, acredito que se formos ter a mesma conversa daqui três anos, o papo será diferente.” Isso pode ser explicado com uma constatação razoavelmente simples: a maioria dos negócios de impacto têm menos de três anos de formação. Ou seja, tudo leva a crer que a maior parte do investimento tão sonhado por algumas startups de impacto ainda leve algum tempo para entrar na conta dos empreendedores sociais. Mas este não é o maior problema e nem a maior motivação dessa legião de inovadores sociais. O que os move é a vontade de transformar o mundo capitalista em um lugar mais justo usando o próprio sistema.

fotos: divulgação

EMPRESÁRIO SOCIAL Hamilton é dono de um negócio que ajuda sua comunidade


UM NEGÓCIO SOCIAL

mymag

Em dezembro na periferia de São Paulo


CIDADÃO Comuna

por POR PEDRO OTONI

Conjuntura, comuna e resistência popular prolongada De um ambiente de retrocesso social a um cenário de organização comunitária, educação popular e economia solidária. Seja muito bem-vindo às comunas

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N

osso país está submetido a uma profunda ofensiva de forças conservadoras (algumas inclusive de caráter fascista). Como resultado, vemos desmoronar conquistas sociais, garantidas com o esforço de trabalhadores em luta por mais de um século de nossa história. O imperialismo avança no controle dos nossos bens estratégicos; as elites econômicas associadas ao estrangeiro entregam as últimas reservas de soberania nacional a troco de ganhos imediatos. Vemos diante de nossos olhos a mesma estratégia utilizada no México pelos EUA e as elites locais associadas ao estrangeiro: a decomposição da soberania do Estado nacional e das condições de existência digna das grandes maiorias do povo. A “VIA PASSIVA” DE OPOSIÇÃO AO GOLPISMO A ofensiva conservadora (de matriz golpista) colocou em xeque a estratégia adotada pelas organizações populares e de esquerda desde a redemocratização do Brasil na década de 1980. As forças que durante as últimas três décadas conduziam a contraposição nos níveis social e político hoje se encontram incapacitadas para exercer a direção organizada das lutas do povo. Seu esgotamento político e a ausência de capacidade recriadora as levam a adotar a mesma estratégia saturada e derrotada com o golpe: baseada no legalismo acrítico, no “eleitoralismo ingênuo” e “negocialismo de baixo perfil”, o que podemos chamar de “via passiva”. Em

outras palavras, pretendem executar a tradicional abordagem que passa pelo desenvolvimento de lutas sociais como recurso auxiliar, que junto à negociação com setores conservadores possam resultar, em tese, numa vitória eleitoral e em governo, sob o registro e em defesa da ordem vigente. DESENVOLVER UMA NOVA ESTRATÉGIA PARA UMA NOVA GUERRA A situação atual se configura como a derrota estratégica da atual abordagem das esquerdas majoritárias no país. A realidade se moveu; não é possível continuar apostando nos mesmos mecanismos e metodologias de antes. É necessário realizar novas apostas e reinventar, no Brasil, uma estratégia popular e nacional de disputa do poder político e social. O desenvolvimento de uma estratégia deve constituir a base social que irá sustentá-la. A base social de uma estratégia (ou projeto) não está pronta (disponível na realidade), ela é formada por meio de uma “metanarrativa” (programa, visão, crença) e uma metodologia (linha de massa, mecanismo de organização, formação e luta) que promovam a constituição de um sujeito social novo (novidade). Portanto, no Brasil, não basta mobilizar o sujeito, mas, antes de tudo, é preciso constituí-lo. Já se tornou clichê indicar como solução o “retorno ao trabalho de base”, sim, mas é insuficiente uma conclusão que não possua uma disposição prática de realização. O “trabalho de base” é apenas o modal de um projeto (hoje inexistente para a maioCIDADANISTA

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CIDADÃO | Comuna

ria das esquerdas) e já que todo trabalho tem suas dimensões intelectual e manual (pensar, organizar e executar), é necessário agir. Porém, atualmente, o que há de abstrato na declaração tem de mecânico na execução. Pensa-se muito pouco (e com escasso compromisso teórico) sobre o papel do trabalho de base e se executa ainda menos do que se pensa. O trabalho de base não é agitação política, não é mobilização para ato, não é realizar “formações” com a base. Estas são atividades, e não método. De outro modo, é converter o conflito da vida cotidiana em um antagonismo social que constitua um sujeito revolucionário novo. Ou seja, partir das demandas imediatas do povo, dialogar e construir soluções práticas para que ocorra um credenciamento político do projeto e se inaugure uma nova classe de demandas, no nível da disputa do poder. Essa perspectiva tem como cenário de desenvolvimento o local de vida das pessoas, elo mais frágil da estrutura de controle existente, mesmo que este, de alguma forma, esteja imune aos controles privados e estatais. Os locais de trabalho, aposta principal das esquerdas para a organização do sujeito, são hoje espaços pulverizados e controlados pelo medo, locais nos quais a constituição do sujeito está bloqueada administrativa e ideologicamente pela dinâmica atual das relações de trabalho, cada vez mais opressoras. O local de moradia é, ainda, um espaço de encontro de aspirações comuns, e é nessa brecha que aparece uma possibilidade de reorganização do projeto popular e nacional. “O espaço é político”, já dizia Henry Lefèvre; a dinâmica de exclusão e inclusão no espaço determina modos de sociabilidade distintos no mesmo corpo social. Atuar no território significa atuar no espaço no qual o conflito se expressa como cotidiano, momento em que a política não aparece como tal (na forma de espetáculo), mas se revela por suas consequências. Uma ação consciente, coletiva e organizada no território pode constituir um sujeito social novo, socialmente antagônico ao bloco dominante, dotado de um comportamento coletivo que pode se transformar em poder material em outros cenários de disputa.

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As igrejas, em especial as de corte neopentecostal, perceberam o potencial do trabalho territorial e da comunicação, por isso ocupam os bairros com sedes que hoje determinam a paisagem das periferias. Transformaram o cotidiano (conflitos, angústias, carências de todas as ordens) em combustível para um projeto de poder que tem peso condicionador na vida nacional. Agiram assim porque entenderam que o território e as estruturas de comunicação (rádios, TVs, jornais, revistas) são as chaves para se disputar a hegemonia social. É necessário aprender com a realidade e tomar uma atitude comprometida em relação a ela. A pura denúncia das mazelas do golpe de nada serve se não for acompanhada de uma ação intencional, planejada, que vise acumular força e criar condições reais de combate em defesa do povo. COMUNAS: UNIFICAR AS FORÇAS VIVAS DOS TERRITÓRIOS É nessa perspectiva que criamos as comunas, como unidades territoriais de organização social e política do povo. As comunas são um dispositivo político e físico implantado nos territórios com o objetivo de engajar a comunidade em atividades que elevem seu perfil de organização e seu comportamento político. Assim, o sujeito social se cria por meio do seu protagonismo e de sua identificação com uma narrativa alternativa à dominante


Deposit photos

A VITÓRIA NÃO É UM ATO DE JUSTIÇA, MAS UMA CONSEQUÊNCIA DO USO CORRETO E DETERMINADO DA FORÇA

(esta pautada no individualismo e na fragmentação das demandas comuns). As comunas desenvolvem atividades relacionadas à educação popular, organização comunitária, economia popular solidária, cursinhos populares, cultura, acolhimento de demandas do cotidiano, orientação jurídica e muitas outras ações. Essas atividades respondem a demandas imediatas e criam o contexto para o estabelecimento de uma identidade coletiva e de estruturas de afeto e solidariedade que se expressam em engajamento político. RESISTÊNCIA POPULAR PROLONGADA: VIA ATIVA E POPULAR DE COMBATE AO GOLPISMO As comunas são os dispositivos necessários ao desenvolvimento da Resistência Popular Prolongada – RPP no nosso país, considerando a atual

configuração do cenário político brasileiro. As soluções espetaculares e “milagrosas” que prometem derrotar o golpismo – pela via eleitoral ou manifestações de ocasião, em um curto período de tempo – parecem contrariar a própria disposição atual das forças entre os atores políticos e econômicos. Precisamente, tal posição ignora o sentido de gravidade de nosso tempo, a profundidade da derrota que o povo brasileiro sofreu e vem sofrendo. Apostar na via rápida de derrota do golpismo é afirmar a ignorância sobre as forças atuais que os setores populares e democráticos acumulam. A RPP é a proposta estratégica que considera o enfrentamento em um quadro de assimetria de forças em conflito, que é objetivamente o caso brasileiro. Isso significa que o ator com menores recursos deve preservar suas forças acumuladas, evitando ações de alto custo, desgastar o inimigo a partir das suas vulnerabilidades e não no ponto de sua maior força, escolher (sempre que possível) o momento e o terreno mais favorável para o combate, cobrir e acumular força em cenários descobertos pelo oponente, utilizar o tempo como matéria-prima para a ação política. A RPP só pode se materializar se tiver imersa no povo, e o dispositivo disponível para estabelecer essa imersão são as comunas. Fora isso não há nada senão a velha estratégia da “via passiva” (com diferentes acabamentos retóricos), ou o vanguardismo messiânico, testemunhal e mecânico (isolado da classe que declara “representar”), ou mesmo o ativismo underground (autocentrado, incapaz de estabelecer alianças e propor algo dialogado com os diferentes). Por fim, é necessário combater as ilusões sobre o sentido geral da luta em nosso país. O golpismo não será derrotado por ser injusto e antinacional; ou eles caem pela força ou não caem. É fundamental aprender a regra de ferro da política e ter uma atitude comprometida em relação à mesma: a vitória não é um ato de justiça, mas uma consequência do uso correto e determinado da força. As comunas são um dispositivo prático de acúmulo de forças e de manifestação da RPP. Não há atalhos! Comuna ou nada!

CIDADANISTA

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CIDADÃO Futebol e política

por FRANCIS DUARTE

Futebol e política: o lado de dentro e de fora da bola

Um bate-papo com Walter Falceta do CDC (Coletivo Democracia Corinthiana) sobre Sócrates, democracia e, claro, futebol

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Divulgação

DOUTOR EM ITAQUERA Ao lado, grafite de Sócrates feito na UPA de Itaquera graças a articulação do CDC. Abaixo, o presidente Walter Faceta com sua camiseta de paixão e de luta

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Cidadanista conversou com o presidente do Coletivo Democracia Corinthiana, Walter Falceta, sobre a relação entre futebol e política em um bate-bola sobre os rumos da sociedade brasileira. Inicialmente Falceta ressaltou a importância do binômio futebol e política a partir de suas primeiras lembranças familiares e dos jogos de bola no próprio quintal de casa, com os amigos, no início do processo da vida social. A partir daí, fez alusões sobre seus antepassados imigrantes e, como o próprio Corinthians, time de seu coração, abraçou os chamados excluídos e marginalizados por uma sociedade que se pautava em classes. Era uma agremiação inclusiva, pois introduzia no palco dos acontecimentos a figura do trabalhador comum, alçado à categoria de craque, capaz de no campo de futebol mostrar que era capaz de tudo, de merecer seus direitos, de aspirar ao elogio público, de ser humano integralmente, em sua plenitude.

Walter também contou um pouco sobre a origem do CDC e ressaltou que foi a partir de um encontro informal para uma manifestação pública, na Avenida Paulista com Rua Augusta, com cerca de setenta cidadãos corinthianistas, que surgiu o grupo. Na época, os primeiros membros começaram a organizar encontros e articular ações em favor da democracia, utilizando como matrizes as ideias dos fundadores do clube, em 1910, e também das atividades da Democracia Corinthiana, no início dos anos 1980. Percebeu-se logo que havia outras metas comuns, como a luta contra o racismo, o machismo e a homofobia. E assim, sobre esses pilares, foi constituído o Coletivo Democracia Corinthiana (CDC). “Coletivo, este é o termo, porque consideramos que é assim, com base em identidades gregárias particulares, mas com visões comuns universais, que se pode reorganizar a esquerda", pontua Walter. Quando perguntado sobre como seria a postura de Sócrates hoje, caso estivesse vivo, perante a política e o futebol, o presidente do coletivo afirmou que o ídolo era muito autêntico e uma “metamorfose ambulante”. Sócrates foi filiado ao PT, por exemplo, e fez muitas críticas ao partido, CIDADANISTA

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CIDADÃO | Futebol e política

especialmente quando considerava que as causas socialistas e humanistas estavam sendo trocadas pela conveniência da governabilidade. Ainda assim, o Doutor nunca mudou de lado e nunca demonizou seus parceiros de caminhada. Deu broncas em Lula, mas sempre reconheceu seu valor como condutor de um processo espinhoso (e lento) de reforma das estruturas sociais. Sócrates tinha uma relação ruim com os cartolas corintianos porque acreditava que não seguiam nossa tradição popular-democrática e, por conveniência, tiravam proveito, até mesmo pessoal, dos negócios associados ao futebol moderno. Ele morreu amando o Corinthians, mas muito pouco à vontade com aqueles que dirigiam a associação. Se estivesse vivo, "tenho certeza de que estaria participando do Coletivo Democracia Corinthiana. E nos daria muitas broncas, certamente", reforça Walter. Questionado sobre a relação atual entre jogadores e questões sociopolíticas, Walter afirma que os jogadores sentem-se pouco à vontade para discutir temas como esses, pois foram “educados”, desde a base esportiva, em estruturas verticalizadas, autoritárias e castradoras do pensamento crítico. "Os jogadores são formados para se converter em mercadoria humana nas novas dinâmicas do modo de produção capitalista." Desde cedo são aconselhados a não se colocar em questões que não sejam as da execução restrita de seu ofício com a bola. Se tiverem sucesso, logo serão paparicados e deverão pagar com submissão aos cartolas e agentes. Em razão disso, infelizmente poucos atletas ousarão erguer antenas que possam, de fato, sintonizá-los com os problemas do homem comum. Vivem em redomas. Walter ainda destacou a luta progressista 42 CIDADANISTA

das demandas tidas como transversais, como as das mulheres e da comunidade LGBT. Felizmente, essa mobilização ocorre, segundo as palavras de Falceta, a partir de encontros das Mulheres de Arquibancada (que envolve companheiras de todos os cantos do Brasil) e outros movimentos correlatos, como o Movimento Toda-Poderosa Corinthiana (MTPC). O trabalho tem sido muito árduo, especialmente em virtude do viés de gestão machista de boa parte das torcidas organizadas. Elas podem ser, por vezes, avançadas na questão social, mas cultivam tradições machistas inventadas. Há grupos em que a mulher, por uma estranha superstição machista, não pode tocar no bandeirão, por exemplo. Outro desafio lembrado é o de constituir pontes para que as mulheres pratiquem o futebol e dele se tornem protagonistas no campo de jogo.


MANISFESTAÇÕES DA TORCIDA O CDC organiza atos em prol da democracia, além de apoiar movimentos sociais contra o conservadorismo

O CDC apoia essas ações. Seus membros frequentemente comparecem aos jogos do time principal feminino do Corinthians. Falceta mostrou o início de uma ação particular no campo da base de formação, muito incipiente e que será divulgada no futuro. Nos jogos do CDC há a tentativa de se trabalhar com a proposta do futebol misto, em que homens e mulheres compõem a esquadra. No futuro distante, Walter ainda acredita que campeonatos oficiais acolham times mistos de gênero, vencendo o equívoco da matriz biologizante de separação. "Não creio que seja utopia." A entrevista se encerrou com uma fala muito significativa sobre o futuro da relação futebol e política: “A bola não tem lado, não é? De repente, tem. O lado de fora e o lado de dentro. O de dentro pode ser o lado da obscuridade, da ausência do contato com os praticantes, é o feudo, é o lugar (ou não lugar) em que não ocorrem trocas solidárias. O lado de fora é aquele em que todos tocam com as mãos e os pés o doce fetiche. É o lado da luz, é o lado que permite o intercâmbio do dar e receber. O lado de dentro jamais vai deixar de existir. Mas a bola e seus amantes, à medida que se conscientizem das virtudes da reciprocidade, estarão cada vez mais do lado de fora. Porque futebol é como família amorosa: a verdadeira união não é para dentro, é para fora”. Desejamos que assim seja! Avante!

SÓCRATES FOI FILIADO AO PT, POR EXEMPLO, E FEZ MUITAS CRÍTICAS AO PARTIDO, ESPECIALMENTE QUANDO CONSIDERAVA QUE AS CAUSAS SOCIALISTAS E HUMANISTAS ESTAVAM SENDO TROCADAS PELA CONVENIÊNCIA DA GOVERNABILIDADE

CIDADANISTA

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CIDADÃO urbanismo

INTERNACIONAL

por ERMÍNIA MARICATO e PAOLO COLOSSO

Por um novo ciclo de democratização desde as cidades Contra a política do marketing e a favor da política do comum nas grandes cidades. 44 CIDADANISTA


Alice Vergueiro

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conjuntura regressiva, marcada pelo desmanche de direitos fundamentais, conservadorismo cultural, entrega de setores estratégicos da economia, austeridade com as camadas populares e generosidade com grandes atores do mercado também tem impactos negativos sobre as cidades. A ascensão dos discursos que se dizem não políticos deixa à margem os conflitos urbanos acentuados nos últimos anos. Entre 2009 e 2014, os setores imobiliários e da construção civil alavancaram o PIB. No entanto, o mercado aquecido elevou o valor dos imóveis e dos aluguéis numa proporção de duas a três vezes acima da inflação média no período, obviamente também muito acima da valorização dos salários. A retomada do investimento público em obras urbanas (PAC e PMCMV), potencializado pelos megaeventos Copa do Mundo e Olimpíadas, após décadas de restrição orçamentária, poderia ter significado a melhoria das condições de vida nas cidades, mas isso não aconteceu, como mostram os indicadores sociais e territoriais – além de inúmeros estudos sobre o assunto1. A decisão sobre o que e onde construir passou longe das necessidades urgentes relativas à mobilidade coletiva, mas sobretudo a interesses ligados ao rentismo imobiliário. Além disso, na ausência de regulação fundiária, que restringisse os aspectos especulativos – em geral câmaras municipais agiram no sentido contrário –, a população trabalhadora foi

divulgação

CONTRADIÇÃO EM 3 ATOS O complexo olímpico do Rio 2016 contrasta com falta de moradia e com políticos alheios as demandas reais da população

deslocada para áreas mais distantes, o que gerou viagens mais longas. Aplicou-se um plano desenvolvimentista no qual foram ignoradas a importância do controle público e social sobre o solo urbano e, ainda, a finalidade e a localização das obras executadas, ambas providências de competência municipal. A política de desoneração fiscal na compra de automóveis contribuiu para que o número de veículos dobrasse nas ruas das cidades, impondo um custo econômico, social (em horas perdidas nos congestionamentos) e na saúde (devido à poluição do ar e às mortes no trânsito).2 Após a ruptura democrática de 2016, demos passos para trás. Se anteriormente o reconhecimento do papel do Estado na implementação das políticas sociais permitiu, por exemplo, o acesso de mais de 4 milhões de pessoas à casa própria subsidiada, ainda localizadas, em geral, fora das cidades, agora, a gestão de “não políticos” dispensa intermediações e assume a cidade como negócio privado de forma nua e crua. Ações midiáticas e cosméticas tentam esconder o que a experiência diária escancara: a completa ausência do interesse público e social. Assistimos a cortes para os jovens que querem acessar a cidade, corte para os adolescentes que na escola tinham leite e alimentos orgânicos, corte no atendimento à mulher em situação de violência, corte em programas de cultura para a periferia, corte no serviço de assistência social CIDADANISTA

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Alice Vergueiro

CIDADÃO | urbanismo

voltado aos vulneráveis – isso para ficarmos em alguns poucos exemplos. Há uma evidente estratégia de se concentrar na cidade visível, onde o preço do metro quadrado dos imóveis é bem mais alto e onde mora a população branca de alta renda. Ali são anunciadas diariamente pílulas de intervenções pontuais, projetos inconsistentes, sem qualquer debate com a população local, como se a cidade não tivesse problemas gigantescos e estruturais. E mesmo ali a zeladoria está deixando a desejar – podas de árvores, recapeamento de asfalto, manutenção da sinalização de trânsito, manutenção de semáforos, varrição de ruas, desentupimento de bueiros. Mais recentemente, anuncia-se com pretensão de novidade um plano para o centro de autoria do arquiteto Jaime Lerner. Na realidade, um velho conhecido, o urbanismo do espetáculo. Mais do mesmo: um bondinho, “edifícios icônicos”, “boulevares”. A esse urbanismo espetacular devemos dizer que seus impactos urbanos já se mostraram visivelmente negativos, suas composições político-econômicas duvidosas e seus ônus sociais eticamente inadmissíveis. O ocaso do Rio de Janeiro é suficientemente elucidativo. A limpeza social mantém ainda hoje um grande número de desabrigados, os equipamentos arquitetônico-midiáticos têm pouco uso, o moderno BRT não atende às necessidades dos que mais sofrem com a mobilidade. A gestão midiática da política tampouco dá resposta para a mobilidade urbana, um pro46 CIDADANISTA

blema identificado há mais de quatro décadas e que tem sido um foco das demandas populares e jovens dos últimos anos. O automóvel como matriz da mobilidade é um paradigma inviável e falido: mantém nossas cidades bloqueadas diariamente. É preciso defender de uma vez por todas a prioridade do transporte coletivo eficiente, integrado, não poluidor, com passagem subsidiada, além do fomento aos meios de transporte não motorizado e à mobilidade ativa. Mas o melhor que a municipalidade tem feito nos últimos meses é cortar investimentos nos corredores exclusivos de ônibus3, apagar ciclovias em bairros e agradar motoristas de automóveis com aumento de velocidade em marginais. No que diz respeito à habitação, não é muito diferente. A conjuntura de recessão econômica aumenta o número de desempregados e precarizados, o governo federal mantém suspensas as verbas para moradias na faixa dos que mais precisam, o que acarreta aumento da população sem teto. O governo local paulistano, por sua vez, fornece respostas pífias e deixa à sorte ocupações de moradia que são comunidades consolidadas, que dão uso e vida urbana a imóveis há décadas vazios. De nossa parte, devemos combater a criminalização de organizações populares e movimentos sociais. Esses atores coletivos são fundamentais para a ampliação da democracia, para o controle social sobre o Estado e os conluios desse com os interesses de oligopólios privados. O movimento por moradia já tem retomado, nos


É NOSSA A TAREFA DE LUTAR POR UMA CIDADE POPULAR, QUE POSSA SER CHAMADA DE NOSSA POR TODAS E TODOS

ESTADO DE FORÇA Polícia militar usa a força para tirar famílias que ocupavam terreno em São Paulo. Nem o Estado entende a diferença entre "ocupação" e "invasão"

últimos anos, esse lugar da aposta no protagonismo da sociedade num novo ciclo de lutas pela democratização das cidades. É preciso atentar para este fato: a urbanização que promove segregação permite também a organização das classes trabalhadoras. O território aproxima as dores e as forças de transformação. Também cabe a nós compreender como a cidade materializa as intersecções entre desigualdades de classe, raça e gênero. As populações periféricas, onde vivem os que não conseguem pagar pelos altos preços da área central, são majoritariamente negras, constituem verdadeiros quilombos urbanos, que mostram as marcas de nossa sociedade escravista. E quem sofre os ônus dobrados são as mulheres, as que mais usam o transporte público, além de ter jornada dupla. É importante visualizar essa sobreposição das desigualdades para sabermos ouvir as vozes dos personagens que entram em cena e protagonizam um novo ciclo de lutas: do movimento negro, dos feminismos, dos coletivos artísticos das periferias, da cultura emergente de apropriação dos espaços públicos e também dos secundaristas, cuja disposição e irreverência surpreende a todos. Ainda que enfrentem adversidades específicas, esses atores coletivos são convergentes em muitos pontos: são comunidades políticas que clamam pela efetivação de direitos, por formas inclusivas de sociabilidade e modos mais horizontais de decisão. Há neles um desejo por cidade aberta, como arena de participação de todas e to-

dos, como lugar do uso, das trocas não mercantis, do prazer no comum. Convergir esses sujeitos e realizar essas demandas somente será possível se assumirmos um projeto coletivo e pactuado, que necessita de capilarização, presença na opinião pública e base social. É nossa a tarefa de lutar por uma cidade popular, que possa ser chamada de nossa por todas e todos. É preciso voltar o foco para a sociedade, cuja vitalidade se manifesta nessas numerosas iniciativas, e não apenas para as instituições, que estão em profunda crise e precisam de reinvenção. É necessário voltar a atenção para as cidades, onde é possível exercer a democracia direta e controlar os recursos humanos e financeiros. Uma proposta nesse sentido está sendo construída em torno do que vimos chamando BrCidades – Um Projeto para as Cidades do Brasil4. Seu objetivo, com horizonte de médio e longo prazo, é um novo e mais profundo ciclo democrático para as cidades.

1- Conferir, por exemplo, CARVALHO, Caio Santo Amore de; SHIMBO, Lúcia Zanin; RUFINO, Maria Beatriz Cruz, orgs. Minha casa... e a cidade? avaliação do programa minha casa minha vida em seis estados brasileiros, Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015 . Ou também, MARICATO, Erminia. “É a questão urbana, estúpido”. In: Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo, ed. Boitempo, 2013. 2 - Conferir, por exemplo, MARICATO, Ermínia. Para entender a crise urbana. São Paulo: Expressão Popular, 2015; e também em COLOSSO, Paolo. Rem Koolhaas nas metrópoles delirantes: entre a bigness e o big business. São Paulo: Annablume, 2017 3 - https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/prefeitura-de-sp-tira-quase-r-8-milhoes-de-verba-usada-em-corredores-de-onibus.ghtml 4 - Conferir em https://www.brcidades.org/

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POLÍTICA Sumário

Especial - giro pelo mundo

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Conexão América Latina, Catalunha Rússia e Brasil Política pós 2011

O mundo nunca mais será o mesmo por_SALVADOR SCHAVELZON

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FARC vira partido

Sai a guerrilha e entra o voto na Colômbia por_VITOR TAVEIRA

100 anos russos

A revolução de Lênin e seu legado por_VITOR TAVEIRA

A Catalunha não ficou independente (hoje) por_IVAN ZUMALDE

O VAMOS vem e fica

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divulgação

Caminho sem volta

Precisamos falar sobre o país por_FRANCIS DUARTE

Alice Vergueiro

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POLÍTICA | América latina

por SALVADOR SCHAVELZON

O novo quer nascer e o velho não quer morrer Um sobrevoo pela política latinoamericana, na qual movimentos, partidos e forças traçam um embate ainda sem vencedores.

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epois de 2011 uma onda de manifestações correu o mundo. Com ocupações em praças, levantes contra governos, assembleias comunitárias e protestos, muitas bandeiras foram levantadas. Temáticas como anticorrupção, ou ainda as marchas motivadas pelo aumento do transporte público em junho de 2013 no Brasil ou a dos estudantes no Chile em 2011, foram algumas das motivações que incendiaram as mobilizações massivas que surpreenderam um cenário político antes apático. A sensação geral era de falta de alternativas frente a governos neoliberais, a que tantos conservadores quanto progressistas haviam se entregado. O contexto que dava lugar a esse ciclo era – e continua sendo – o do aprofundamento do modelo neoliberal, que se mostra sem alternativas. Os efeitos da crise são vários e em série: explosão de bolhas especulativas, com mais dívidas, mais segregação dos pobres, liberalismo extremo e a certeza frágil de que a lógica empresarial deve ser o caminho para o funcionamento dos serviços sociais em qualquer dimensão de nossa vida. Ao mesmo tempo, surgem como contraponto – mas também com elementos de um mesmo cenário cada vez mais comunicado entre uma profusão de minorias – novos feminismos, movimentos étnicos ou antirracistas que ganham espaço frente ao desmantelamento de uma política de massas que já não se mantém, em uma sociedade que já não existe, frente à inércia das ferramentas tradicionais, de estruturas e instituições que ainda seguem de pé. Por mais que o neoliberalismo seja único, generalizado e global, em termos de sistema político ele se organiza como polo midiático que opõe, de um lado, perfis que assumem abertamente uma agenda de elite atendendo a setores empresariais; frente a outro campo que, sem romper com o neoliberalismo, se apoia em narrativas como nacionalismo, soberania ou a um sistema de direitos sociais que imagina uma sociedade integrada com um Estado forte. Na realidade, naturalmente nem a liberdade nem a prosperidade do mercado se realizam; nem muito menos hoje a justiça social com intervenção do Estado vai mais além do que um discurso. Ficamos com palavras que não mobilizam, não


conseguem ser traduzidas em políticas estruturais efetivas, nem muito menos se conectam materialmente com a vida dos trabalhadores ou com construções políticas de base e poder territorial. Diante disso, surgem novos movimentos e mobilizações que se inserem em diferentes buscas políticas. As ruas abriram caminhos frente a uma disputa espetacular que se dilui em uma multitude de identidades, discursos, campanhas eleitorais sem conexão com quem realmente nos governa. São práticas de ruptura que se isolam sem conseguir enfrentar a batalha em um mundo que mercantiliza e vende tudo, com Estado e mercado trabalhando juntos frente a um capitalismo sem rival. As mobilizações de Hong Kong a Nova Delhi, Praça Zucotti ou no DF são, juntas, ar fresco e materialidade frente a cenários desgastados e sem saídas. Ali se discutiu ativamente a representação e os limites da institucionalidade republicana. É alto o risco de que o que está nascendo seja também tragado e neutralizado depois de

um impacto inicial e que as coisas voltem a se acomodar. Práticas políticas tradicionais que não perdem tempo em estar presentes em qualquer coisa que apareça exercendo pressão conspiratória sobre a difícil construção de horizontes verdadeiramente de ruptura. E ainda que haja experiências de governo de novos partidos na Índia, ou possa ocorrer no México, também ocorrem nos partidos tradicionais ocorrem coisas como Sanders e, em alguma medida, o kirchnerismo. O problema aparece na admnistração e gestão do impulso inicial do movimento, em que o peso do sistema mostra sua fortaleza e capacidade de tragar tudo. Depois das praças e mobilizações, abriu-se no campo da esquerda um debate sobre organização e poder institucional, que se questionou sobre a necessidade de encontrar instrumentos políticos que levassem a voz das ruas para o governo. Existem, ao mesmo tempo, buscas comunitárias que se multiplicam nas cidades e no campo, desde as margens da civilização, ou em ruptura com essa, CIDADANISTA

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POLÍTICA | Mundo

em agendas autonômas que se desconectam da conjuntura estatal cada vez mais tóxica e fatalista, controlada por lógicas em que parece que qualquer alternativa leva para o mesmo lugar sem conseguir sair de uma máquina social destrutiva. Mas foquemos nas traduções do ciclo de lutas que culminou na busca de uma nova política partidária dentro das instituições. As outras se situam em outro tempo e espaço, com um impacto difícil de medir mesmo que se apresentem com vínculo e como alternativa nova unindo todos os caminhos. Dentro da política estatal, e de forma mais visível, municipalismos ou frentes são postas em movimento, uma vez que as construções que capitanearam o rumo dos partidos e movimentos de esquerda no período anterior mostram seu desmoronamento. É justamente essa relação de velhas referências de esquerda que definem a possibilidade de algo novo nesse campo, e já existem experiências avançadas nessa direção. O partido Podemos e as confluências municipalistas na Espanha foram uma das expressões mais claras nesse sentido. Seu raciocínio é que se pode ser fiel ao 15M por um caminho institucional, e que por mais que as formas de soberania estatal e nacional estivessem sendo superadas, o governo de cada país é a instância que as classes populares tinham mais perto para enfrentar o neoliberalismo global. Com sua aposta ainda pendente de se concretizar, sobrevive também justamente por não ter encontrado lugar como o Syriza ou governos sul-americanos recentes. Entretanto, para que surjam novas alternativas, parece ser necessário um posicionamento claro em relação às expressões de quem são os herdeiros diretos. Assim é também dentro dos partidos que se renovam e, evidentemente, no caso da nova política espanhola, nenhum salto poderia ser imaginado sem se distinguir da esquerda tradicionalou da social-democracia. Embora o Podemos já tenha sentido seu limite nas eleições, o partido oscilou em se reencontrar com a Esquerda Unida (com o qual permanece aliado) ou fazer um pacto de governo com o PSOE. Sua razão de ser é a ruína da Espanha da transição iniciada em 1978, com 35 anos de esgotamento de um sistema anterior que 52 CIDADANISTA

ainda sobrevive e parece ter que ser contemplado também como parte da solução. Na América Latina, novas forças surgem na medida em que o passado é deixado de lado. Duas novas frentes exploram esse território no Chile e no Peru, onde os governos que chegaram com votos de esquerda mantiveram intactos uma agenda neoliberal. No Chile, o Frente Amplio, com seu núcleo político de forças autonomistas nascidas das mobilizações dos estudantes, só foi possível com a ruptura em relação a Concertación-Nueva Mayoría de Bachelet. O mesmo acontece no Peru, que pela primeira vez em muitos anos tem uma bancada de vinte congressistas de esquerda contra o fujimorismo, mas também contra o resto de opções políticas do sistema. O Frente Amplio do Peru, que, como o Podemos, conseguiu um importante terceiro lugar nas eleições, é a primeira força política de peso na região. Foi a partir do legado da luta de Cajamarca contra a mineradora Conga que o partido colocou na discussão os limites do extrativismo e a necessidade de pensar em alternativas para o desenvolvimento. Como complexa combinação de elementos velhos e novos, candidaturas ou rearranjos com novas caras (ou velhas, como Sanders e Corbyn, que ainda recuperam experiências de mobilização do ciclo atual, como Occupy) expressam e trazem avanços políticos explícitos ou subterrâneos, em reação a certa recomposição do campo conservador. Como condição, ao mesmo tempo, essas construções mostram distância com o núcleo de reflexão política originária das praças feitas por assembleias e políticas rizomáticas sem líderes; assim também como rupturas comunitárias e territoriais que entendem o poder e a transformação com muito mais intransigência. O "como" é a chave tanto nas instituições quanto nos territórios, mas uma dessas expressões é condescendente com a aceitação dos instrumentos políticos que não se rejeitam com a aposta que podem ser ressignificados. Não é verdade que essa saída tática do campo da esquerda, que busca o diálogo e a construção com as maiorias nos partidos e frentes, por meio de lideranças e demandas tradicionais, tenha ficado fora do ciclo anterior de lutas. Não é total-


mente um novo populismo ou uma nova resposta vinda das praças. Depois de Seattle, Gênova, Praga e o Fórum Social Mundial, a energia acumulada nos protestos antiliberais foi se constituindo também em movimentos políticos e depois em governos que pouco a pouco se distanciaram do que os unia na origem. Disso tudo nasceu na América Latina o ciclo de governos progressistas que sobrevive ou termina frente a sobressaltos eleitorais com resultados adversos nas eleições municipais do Brasil, legislativas na Venezuela, presidenciais na Argentina e contra a possível reeleição na Bolívia. As rápidas saídas dos governos, quando o ciclo econômico é desfavorável, deve ser uma lição para quem busca atalhos dentro das novas formações ou movimentos. Os limites das novas expressões, como foram antes o desenvolvimentismo e a social-democracia, se encontrariam na reprodução de formas de fazer as coisas com as forças que venham a substituir, estabelecendo participação apenas formal ou não para decisões cruciais e se entregando de corpo e alma em direção aos meios de comunicação. As novas frentes dificilmente vão fugir das disputas de cúpula ou tática eleitoral que contrasta com a política das praças e ruas. A experiência parlamentar mostra também uma acomodação em relação às lógicas de um sistema que desde dentro já não pode ser impugnado ou ressignificado, mas é facilmente moldado. Esses preferem apostar nas pequenas diferenças ou priorizar a própria construção para esperar uma mudança maior que chegará em um momento futuro. Na Argentina e no Brasil, diferentes intenções da "nova política" ficaram até agora encalhados, enquanto Lula e Cristina são os líderes que se recompõem e se posicionam na trincheira da oposição ao sistema - quase como se não tivessem vindo de uma força de governo que seria necessário superar. A rejeição a Temer e Macri possibilitaram que volte a se aproximar uma esquerda que tinha retirado seu voto a essas forças quando via um governo sem escrúpulos para reprimir protestos sociais ou executar projetos monstruosos como Belo Monte e suas cópias, indubitavelmente sem legitimidade popular. Projetos como o Ahora Bue-

nos Aires, com métodos de confluência próprios e busca de referências midiáticas novas e de articulação com novas linguagens populares terminaram sendo tragados pela impossibilidade de se encontrar espaços para além do kirchnerismo. No Brasill, parece estar muito longe a atitude crítica das manisfestações de junho de 2013, quando a participação do PT na administração de um projeto neoliberal de governo junto aos grandes partidos do sistema era evidente. Daí resultam as dificuldades para que deslanchem articulações como as que giram em torno de Guilherme Boulous, do MTST, a esquerda dentro do PT e partidos contrários a Temer, que inclusive mesmo não apoiando Lula, falam a mesma língua e confluem na mesma direção. A tragédia venezuelana, ou inclusive a imagem que Lula e Cristina mantêm dentro de alguns setores, fazem com que essas forças sigam de pé e bloqueiem a aparição desse tipo de alternativa, mesmo quando sua volta ao governo parece impossível. O desafio hoje é conseguir traduzir o desgosto social com o neoliberalismo em opções políticas. Mas também que estas não fiquem neutralizadas no lugar de crítica parlamentária ou de ações paliativas que não tocam a fundo o poder: mais lenha para um fogo de imagens e espetáculos. O desafio é que faça parte do debate a necessidade de pensar novas instituições do comum, e que qualquer projeto político se recicle também como uma disputa no plano das subjetividades, as quais nas praças e mobilizações de insurreição encontrem um território novo. Pode ser que essas demandas nos obriguem a ir além das alternativas institucionais que surgem no ciclo de lutas aberto globalmente na última década.

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POLÍTICA | Colômbia

por VITOR TAVEIRA

Farc: Da Guerrilha ao Partido Colômbia inaugura nova fase em seu sistema político e chama sua população para construir juntos uma nova realidade no país onde poder popular e paz querem estar juntos.

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m feito histórico de grande importância para a América Latina ocorreu no início de setembro na Colômbia. Foi lançado oficialmente o partido que representa o trânsito das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) da clandestinidade para a política legal. O novo nome do movimento é Força Alternativa Revolucionária do Comum, mantendo a sigla Farc. A situação não é simples, dado o histórico de massacres e processos de paz fracassados no país. Para entender um pouco melhor a questão, ouvimos João Gabriel Almeida, um jovem brasileiro que é integrante das Farc. Para ele, o continente enfrenta uma importante questão hoje. “A aposta democrática dos anos 80 e 90 levou à geração de uma esquerda radicalmente comprometida com a democracia formal e burguesa. As vitórias eleitorais do ciclo progressista permitiram alguns avanços, dependendo do nível de organização orgânica dos setores populares que se logrou desde os aparatos estatais, mas a armadilha dos limites já estabelecidos do jogo político fez com que as reformas de fundo que se necessita para um novo salto de qualidade estejam limitadas pela mesma dinâmica eleitoral e a falta de condições econômicas objetivas.” João considera que os rompimentos desses pactos de classes dentro do sistema democrático pelas elites nacionais, como evidenciado no golpe brasileiro e nas guarimbas venezuelanas, mostraram certa inaptidão das esquerdas em pensar fora dessa alçada de conciliação. Ele lembra que a esquerda colombiana foi criada no contexto da guerra política, em que ocorreram muitas atrocidades e a perseguição a lideranças sociais sempre foi uma constante. Para ele, apesar das adversidades, também há ensinamentos valiosos oriundos desse processo. “A primeira de todas é o entendimento que não se deve confiar no inimigo e que as negociações com eles só podem se dar em posições favoráveis às maiorias. A segunda é saber do que o inimigo é capaz, por todos os massacres estatais. A terceira é a autogestão e o entendimento fora da cabeça pequeno-burguesa de que a sobrevivência das bases sociais é parte fundamental do projeto polí-


tico. E o último e o mais importante é a dimensão que o conceito de dignidade representa na política colombiana. É um povo acostumado a rebelar-se nas suas mais distintas dimensões e que não aceita baixar a cabeça.” É com esses aprendizados, cultivados em seus 53 anos de existência na clandestinidade, que as Farc entram na política democrática, analisa. Por conta disso, Almeida avalia que a entrada da antiga guerrilha na política legal ocorre de maneira distinta das esquerdas pós-ditadura nos países latino-americanos, pois se dá não por uma “crença inocente” da democracia como valor máximo para a humanidade, mas sim do entendimento de que o avanço tecnológico e militar impede a vitória de uma luta de guerrilhas e leva o enfrentamento em armas para um patamar de derramamento de sangue desnecessário. A democracia seria então uma tática para os setores populares organizados, podendo permitir avanços e conquistas conjunturais para o campo popular. A democracia burguesa seria então um “pacto de classe” para a não agressão física.

Um ponto crucial na disputa simbólica do novo partido é substituir o conceito de pós-conflito, muito usado na Colômbia para falar do horizonte aberto após os acordos de paz. Para as Farc, os conflitos seguirão vigentes, embora sem armas. Mas a democracia de forma alguma representa o fim dos conflitos. Portanto, deve-se falar na etapa do pós-acordo. Embora o andamento do cumprimento dos acordos não seja muito animador e os assassinatos continuem acontecendo inclusive depois da celebração do mesmo, o ambiente político começa apresentar algumas mudanças, como debates que antes não eram vistos e que agora começam a ser permitidos. João Gabriel critica a esquerda liberal por ter demandas historicamente distantes daquelas das maiorias empobrecidas, ao contrário do que viria do novo partido. “Junto com a desmobilização das Farc irrompe uma massa popular que se quer ver reconhecida na política, pois grande parte dos membros das fileiras guerrilheiras é de CIDADANISTA

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POLÍTICA | Colômbia

filhos e filhas dessa gente, e havia muitos apoios populares que garantiram a vida dessas pessoas.” REINTEGRAÇÃO NA SOCIEDADE Tudo isso se reflete hoje em como se está pensando a participação eleitoral e a organização interna partidária, entende João Gabriel Almeida. “Com sua dose normal de conflitividade, o que tem ocorrido é a saída progressiva dos membros da guerrilha das antigas zonas transitórias, uma espécie de ponto de concentração pré-integração, para a vida concreta em relação com a sociedade colombiana. Muitos membros ex-guerrilheiros já estão nas grandes cidades, principalmente Bogotá, com a responsabilidade de pensar como articular o trabalho político.” Essas zonas transitórias estão sendo transformadas em locais para capacitação onde se impulsionam projetos produtivos por meio de cooperativas, construindo alternativas econômicas nos territórios rurais, nos quais as Farc sempre realizaram trabalho de base com as comunidades. No âmbito eleitoral, conforme o negociado no acordo de paz, o partido Farc já tem garantia de ao menos cinco deputados e cinco senadores para as próximas legislaturas, podendo aumentar esse número a depender do resultado eleitoral. É mais do que possui atualmente o Polo Democrático Alternativo, único partido mais à esquerda no espectro político dentro do poder legislativo nacional.

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De maneira geral, Almeida afirma, conforme têm sido as declarações da Farc, que a estratégia majoritária será pela construção de uma grande coalizão nacional para a implementação acordos de paz no próximo mandato. Nesse sentido, ele destaca três forças políticas nas quais os acordos de paz são o epicentro da disputa: a extrema direita, que tenta mobilizar os setores que votaram contra o acordo e que aposta na desinformação; a esquerda liberal, comandada pela Aliança Verde, que se recusa a fazer acordo com as Farc, apostando no discurso contra a corrupção e no mérito individual de seus candidatos para chegar ao segundo turno e liderar uma grande coalizão que se aglutinaria contra a extrema direita, sem necessariamente atuar em favor da implementação dos acordos; e ainda o setor de coalização, que poderia unir setores do atual governo, partidos e movimentos de esquerda, incluindo as Farc. A implementação total dos acordos parece crucial para garantir um ciclo de avanços e conquistas progressistas para a Colômbia, conseguidas a duras penas em quatro anos de diálogos entre guerrilha do governo em Cuba e mais de meio século de confrontação armada. Do papel para a prática, sabemos, há uma distância que só pode ser vencida pela mobilização popular.


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POLÍTICA | Rússia

entrevista com ADEMAR BOGO

Cem anos da Revolução Russa "O triunfo da revolução consiste no seu principal legado"

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Por que cem anos depois – e num mundo em que cresce o conservadorismo –, é importante relembrar a Revolução Russa? As revoluções são atos no teatro da história impulsionados por dois fatores reais: as condições históricas e as circunstâncias em que tais atos acontecem. A Revolução Russa foi composta pela sequência de um conjunto de atos históricos até que, no desfecho final, tornou-se um grande acontecimento, um marco histórico que jamais será esquecido. O conservadorismo, por sua vez, também se afirma por meio de atos históricos, sustentado por condições e circunstâncias diferenciadas, muitas vezes disputadas dentro do próprio processo revolucionário e, por esta e outras razões, há revoluções que chegam a ser derrotadas pelo movimento oposto, contrarrevolucionário ou pelos equívocos cometidos pelo comando da revolução. Desde o advento do capitalismo, a humanidade convive com essas oposições e vê, em um momento, o ascenso das revoluções e, em outro, o avanço do conservadorismo. Nas últimas décadas vivemos esse último movimento, mas isso não significa que ele anule a memória dos movimentos anteriores e nem que impeça que novos movimentos ascendentes e revolucionários possam surgir. A Rússia da época vinha de um sistema semifeudal com recente industrialização, contrariando teses de que só o pleno desenvolvimento do capitalismo acirraria as contradições e a luta de classes para criar um Estado revolucionário entre os trabalhadores. Como explicar que a primeira grande revolução socialista do mundo acontecesse ali? Primeiro, não podemos considerar que seja puramente o teor das teses pré-elaboradas que dá o destino à história; depois, que em todos os lugares a revolução possa ocorrer da mesma forma e pelas mesmas razões. É evidente que Marx e Engels colocaram como elementos importantes a considerar para a realização de uma revolução as contradições entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção. Mas isso não significa um dogma, porque em outros momentos apresen-


taram as condições e as circunstâncias históricas como fatores decisivos. Em relação à Revolução Russa especificamente, eles mesmos alertaram que havia elementos diferenciados naquela realidade que poderia acelerar o processo revolucionário. Marx evidenciou isso em 1881 num primeiro esboço de resposta à carta de Vera Zasulitch, militante russa com a qual Engels também se correspondia e, em 1882, no prefácio à segunda edição russa do Manifesto do Partido Comunista. O entendimento de Marx era que, graças a uma combinação de circunstâncias únicas, a comuna rural estabelecida em escala nacional poderia livrar-se das características primitivas e se desenvolver diretamente com o elemento da produção coletiva em escala nacional. Nesse sentido, a Rússia era o único país em que a “comuna agrícola” mantivera-se em escala nacional; tendo ela, na forma comum do solo, a base da apropriação coletiva, poderia incorporar as conquistas positivas produzidas pelo sistema capitalista e substituir gradualmente a agricultura

parceleira pela agricultura extensiva com o auxílio de máquinas. Por isso, ela poderia tornar-se o ponto de partida direto do sistema econômico para o qual tende a sociedade moderna e “trocar de pele sem ter de cometer suicídio”. Por outro lado, também não é estranho o pensamento marxista sobre os modos de produção. Marx astutamente considerou que havia na Ásia um modo de produção diferenciado, razão pela qual o denominou de “asiático”, e não feudal. De certo modo, essas nuances ainda persistem em relação ao todo, e se imaginarmos que a China passa longe de 1 bilhão de pessoas, deveríamos refletir: se houvesse perdurado o capitalismo nos moldes ocidentais, tamanha população teria sobrevivido? Pois eles vivem. Fizeram também a sua revolução socialista em 1949 e lá estão com todas as contradições de nosso tempo. Quais foram as principais conquistas que a Revolução permitiu aos trabalhadores? Qual delas persistem até hoje? CIDADANISTA

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SEÇÃO | Matéria POLÍTICA | Rússia

As principais conquistas da revolução para os trabalhadores russos foram a superação da exploração econômica e a dominação política. O salto cultural alcançado já na primeira geração dos revolucionários é incomparável com quaisquer das décadas mais promissoras do capitalismo. Além disso, a experiência construída pela organização dos comitês ou conselhos, que representavam de fato os anseios da população e que transformaram desde o mais simples camponês até o mais elevado intelectual em verdadeiros sujeitos da própria história, demonstra o que significa o conceito de emancipação na teoria marxista. A demonstração de que a revolução necessita de um partido dirigente com a capacidade interativa de valorizar todas as forças, cuja função é determinada pelo próprio processo é um aprendizado que até hoje não pode ser ignorado. A formação da consciência da militância e das massas tendo os meios de comunicação como veículos das mensagens foi e continua sendo fundamental para se pensar um processo revolucionário. E a visão internacionalista dos dirigentes da revolução que não só deram continuidade à tradição, criando a Terceira Associação Internacional como tentativa de unificar o proletariado e os comunistas do mundo inteiro, demonstra ser uma lacuna na atualidade que precisa ser preenchida. Que erros considera que foram cometidos durante e depois da revolução e o que nos ensinam para pensar o socialismo no século XXI? Há muitos indicativos de erros apontados por estudiosos da história da revolução, mas devemos observá-los com certa serenidade, seja a crítica sobre o “partido único”, a “burocratização governamental”, a “ingerência do Estado” em todos os setores da produção, etc. No entanto, não se pode esquecer que todo o processo foi vivenciado universalmente dentro do modo de produção capitalista na sua fase mais perversa, a imperialista. Se a tese era de que “não se poderia iniciar o socialismo em um só país” e que “a revolução não ocorreria em países atrasados”, como exigir que aquela revolução se universalizasse e, ao mesmo tempo, passasse pela transição socialista? 60 CIDADANISTA

Na teoria revolucionária que Lênin e os bolcheviques estudaram estava claro que os trabalhadores não deveriam tomar para si e fazer funcionar a seu favor a máquina do Estado. Era a ditadura do proletariado a forma ideal a substituí-lo, mas era possível, sem um instrumento de poder centralizado, preparar-se para sair da Primeira Guerra Mundial vitoriosos e logo em seguida iniciar a preparação para a Segunda Guerra e vencê-la? Portanto, teoricamente, podemos encontrar inúmeros erros e equívocos, mas na prática não podemos esquecer que esta que completa cem anos foi a primeira insurgência, depois de Paris, a de fato instituir um governo dos trabalhadores. Para pensar o socialismo do século XXI é importante considerar as experiências históricas, mas as revoluções não são exportáveis, e os países, as culturas etc. são diferentes. O socialismo deixou de ser utópico quando Marx e Engels revelaram cientificamente as leis de funcionamento do capitalismo, que continuam em vigor. No entanto, não são apenas as leis que levarão à superação do capitalismo. É preciso que a favor delas se movimente a força do sujeito da história, sejam formuladas e aplicadas medidas políticas, as quais dependem da capacidade de cada organização. Quais são considerados os principais legados da Revolução Russa? O triunfo da revolução consiste no seu principal legado. Isto porque as forças revolucionárias mostraram ser possível, em condições adversas, colocar-se o propósito de fazer a insurreição, avançar para o segundo momento, que é a tomada do poder e, em seguida, implantar a ditadura do proletariado, que é de fato organizar o poder da maioria. Ao relembrarmos nesta data os cem anos da Revolução Russa, devemos pensar na quantidade de lutas pelo mundo que ela motivou; quantos estudos foram elaborados e obras de arte produzidas. A Revolução Russa afirmou perante a humanidade que a contemporaneidade inaugurou e superou o velho tempo em que as minorias lutavam pelas minorias; agora as maiorias devem lutar pelas maiorias, e nisso não há segredo. Basta que se tenha claro para onde ir e embrenhar-se na luta para lá chegar.


EDIÇÃO DE

ANIVERSÁRIO

Obrigado ACAUÃ RODRIGUES ADEMAR BOGO AIRTON FRANCISCO ALBERTO ACOSTA ALESSANDRA OROFINO ALICE VERGUEIRO ALINE RODRIGUES AMANDA RAHRA ANA JULIA GHIRELLO ANA LUCIA MARCHIORI ANA MARIA BARBOSA ANDRÉ LUIS HUBMANN AUGUSTO MARIN BERTA CÁCERES BRUNO CAPÃO CATIA MATSUO CÉLIO TURINO CESAR BRANCO BORGES CHARLES NISZ COLETIVO DICAMPANA COLETIVO ENVELHECER CRIOLO CRISTINE TAKUÁ CYNARA MENEZES DAN BARON COHEN DANIEL IZZO DÉBORA MINIGILDO DENNIS DE OLIVEIRA DJAMILA RIBEIRO DOM ANGÉLICO DOUGLAS BELCHIOR

DUDA ALCÂNTARA EDUARDO BRASILEIRO EDUARDO SUPLICY ERMÍNIA MARICATO EUDES CARDOSO FEL MENDES FELIPE LAROZZA FELIPO PAIVA FERNANDO DA SILVA FRANCIS DUARTE GILBERTO DA SILVA GUILHERME BOULOS IBERÊ MORENO JEROME SAINTE ROSE JOÃO FARIAS JONAS LESSA JOSÉ MARCELO ZACCHI JULIANO COELHO KELLEN CARVALHO LEANDRO MACHADO LUCAS CORVACHO LUCIANA CAVALCANTI LÚCIO GREGORI LUIZ FILHO LUIZ MILLER LUIZA ERUNDINA MANDATO COLETIVO ALTO PARAÍSO MARCELO SOARES MARCOS COSTA MARECLO LUNA

MARIA ANTONIETA GIONGO MARIANA BELMONT MARIANA CONTI MARILU GOULART MATTHIAS BORNER MEL DUARTE PAOLO COLOSSO PE.JÚLIO LANCELOTTI PE.PAULO BEZERRA PEDRO OTONI RENATA MONKEN RENATO RIBEIRO RONALDO FABIANO RONALDO TORRE RUY BRAGA NETO SALVADOR SCHAVELZON SENSE-LAB SUSANNE SASSAKI THOMAS ENLAZADOR TIAGO MOTA TICÃO TONY MARLON VITOR TAVEIRA WALTER FALCETA YONATHAN PARIENTI YURI GARFUNKEL ...e a todos que colaboraram conosco neste início. Valeu, pessoal!


POLÍTICA | Catalunha

por IVAN ZUMALDE

Caminhos da Catalunha

Engana-se quem pensa que a questão da Catalunha é apenas de independentismo. Existe muito mais no caminho que a região começa a trilhar

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TV está ligada no bar-restaurante do centro histórico de Oviedo, Norte da Espanha, mas ninguém presta atenção ao programa de entretenimento. Um grupo de três senhoras joga tranquilamente cartas enquanto um trabalhador toma seu vinho e uma família se acomoda para jantar. O casal e donos do restaurante correm de um lado para outro em função dos pedidos. É próximo das nove horas da noite e o clima de repente muda naquela terça-feira que parecia comum. Todos olham para a TV e os ânimos começam a se alterar. O rei vai falar. Não será um pronunciamento qualquer. O feito é inédito e histórico e o tema é áspero: a independência da Catalunha. O rei Felipe VI nunca tinha se dirigido à população de forma institucional, mas a pior crise política dos últimos quarenta anos na Espanha obrigou o monarca a fazê-lo. A data é 3 de outubro, três dias depois que a Generalitat – governo local de Barcelona – fez um referendo perguntando se a população queria a independência. O resultado da eleição – ilegal para o governo central espanhol – foi um sonoro sim (embora sem participação contundente da população com cerca de 60% de abstenção). Houve muita repressão policial por parte do governo de Madri o que acabou culminando em uma espiral de acontecimentos que inauguraram um novo ciclo na Espanha, revisitando temas históricos e jogando para o futuro um cenário ainda incerto e ao mesmo tempo pessimista. O discurso do rei não foge ao protocolo e pede unidade para a Espanha. Não chega a convencer nem os asturianos que estão no bar e muito menos os catalães, bascos ou galegos que fazem parte dos diversos povos que compõem o caldeirão étnico do estado espanhol. Mas a fala do rei ativa o debate em torno da polarização: “Os catalães querem se separar, mas não querem perder o passaporte espanhol”, brada em tom raivoso a dona do restaurante. De acordo com pesquisas, de maneira geral a população espanhola é contrária à independência da Catalunha. “Eu acho que o plebiscito é ilegal. Imagina se os bascos pensam o mesmo”, comenta a senhora que parou de jogar e teme a separação da Espanha. “Só acho que a violência foi exagerada”, afirma, comentando a truculenta ação da polícia no dia do plebiscito e que ocasionou alguns feridos e


mais ânimos à flor da pele, seja a favor ou contra a independência dentro da Catalunha. Desde então, muitas manifestações nas ruas da cidade, empresas saindo da região e principalmente muita falta de diálogo entre as lideranças do governo de Madri e Catalunha construíram um cenário de embate contínuo. Acrescente a tudo isso uma série de novas forças políticas e terá uma radiografia da Espanha atual, um país que vivencia uma multitude de ideologias que misturam, no mesmo tempo e espaço, questões étnicas seculares, novas forças políticas pós 15-M (movimento dos indignados de 2011) e rescaldos da guerra civil espanhola da época da II República espanhola (1931-9). Uma análise rápida da situação vista pela imprensa espanhola sugere uma questão puramente independentista, mas engana-se quem pensa que é só uma questão de separatismo ou secessão. Esse caldeirão complexo é também um jogo de xadrez político do republicanismo contra o monarquismo e ainda envolve questões econômicas da própria Catalunha, que detém grande força dentro do PIB nacional. O então governador da Generalitat, Carles Puigdemont, chegou a proclamar a “república catalã como um Estado independente, soberano, democrático e social”. Com isso, sofreu a repressão forte do Estado espanhol. Seu governo foi destituído e o Parlamento dissolvido, com nova data para as eleições. O governo de Mariano Rajoy, do conservador Partido Popular (PP), se utilizou do artigo constitucional 155 e, com o apoio da maioria do Parlamento nacional, interviu na Catalunha com força. Além da destituição do governo local, vai assumir o comando das forças policiais locais e controlar a Fazenda. Também tem poder e deve destituir diretores da TV catalunha. Muitos especialistas e juristas argumentam que a medida é exagerada e que trata-se de um golpe contra uma autonomia local, uma vez que também fere artigos constitucionais e questiona a intervenção direta no Parlamento. E de fato tudo leva a crer que o seja, uma vez que o mesmo ocorreu na Catalunha e no País Basco nas mãos do ditador Francisco Franco em 1936, que, após vencer a guerra civil, bombardeou Gernika no País Basco com a ajuda dos nazistas de Hitler e instituiu décadas de repressão para as duas autonomias, retirando direitos civis da sua população e minando

o ensino do euskera, no caso da autonomina basca e do catalão na Catalunha. Os tempos são outros, mas a repressão continua. Foi justamente durante a ditadura de Franco que o País Basco viu nascer o grupo separatista ETA – hoje com cessar-fogo definitivo e que tem se articulado para se tornar uma força política democrática espelhando o modelo das Farc na Colômbia. Embora grande parte da população basca também veja com olhos cautelosos a questão da independência da Catalunha, o apoio existe, principalmente quando o governo central de Rajoy imputa tamanha repressão. “Mariano Rajoy é um fascista e já acho que é o novo Franco”, afirma Benito Eulalio, basco e preso político por oito anos nas mãos do general Franco. Esse é um temor que assola a Espanha atualmente, e boa parte dessa desesperança vem da inabilidade política em resolver os conflitos da região, que podem gerar núcleos de resistência frente à opressão, inclusive armados. O fato que reforça isso é que os cidadãos da Catalunha começam a ser estigmatizados dentro da própria Espanha e pelos próprios espanhóis, como relata Raul, morador de Barcelona: “Eu não estou a favor nem contra a independência. Não se trata disso; trata-se de ter opiniões e debatê-las, e hoje tenho receio de dizer que sou catalão e ser rotulado. As pessoas acham que tenho que estar de um lado ou outro”, afirma em tom de confissão enquanto peregrina pelo caminho de Santigo rumo a Compostela. Diferentemente do destino de Raul que deve chegar em Santiago de Compostela, a instabilidade política, o pouco diálogo e o uso da força imputam uma nova realidade e jogam trevas sobre a democracia espanhola. A onda de conservadorismo e autoritarismo que o muundo vive, como a eleição de Trump nos EUA ou o golpe parlamentar no Brasil, tem suas vertentes também na Espanha. Entretanto, é dessa mesma crise institucional que pode surgir uma nova realidade e um caminho pode ser aberto. A Catalunha pode, hoje, não conseguir sua independência local, mas certamente está abrindo caminhos dentro e fora de Barcelona para o debate democrático e corajoso do seu povo em busca do seu próprio destino.

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POLÍTICA | Brasil

por FRANCIS DUARTE

Vamos debater o país?

Uma proposta de democratização de debates sem medo de mudar o país

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dia 26 de agosto, em São Paulo, foi marcado pelo início de um ciclo de debates promovido pela Frente Povo Sem Medo, o Vamos!, e objetiva repensar o país com uma proposta de aprofundamento da democracia somada às lutas das camadas mais populares. Os debates serão organizados em eixos de democratização: economia, política e poder, cultura e meios de comunicação, territórios e meio ambiente, programa negro, feminista e LGBT. A proposta do Vamos! se estenderá por outras capitais brasileiras, como Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Fortaleza, Belém e Recife, e conta ainda com uma plataforma digital de fora para que pessoas de outras cidades tenham acesso ao material, mobilizem profissionais relacionados às temáticas e todos que se interessem em formar núcleos de discussão, além de participarem de fóruns digitais. O evento de abertura teve sua primeira mesa de discussão composta pelos mediadores Leonardo Sakamoto e Dríade Aguiar e, para o debate, Guilherme Boulos, líder do MTST, Eduardo Suplicy (PT/SP), Luiza Erundina (PSOL/SP), Marcelo Freixo (PSOL/RJ) e a liderança indígena Sônia Guajajara. Inicialmente, Leonardo Sakamoto destacou que “a desilusão não pode destruir a esperança”. Falou sobre a necessidade de transformação do país e que o ciclo de debates do Vamos! almeja discutir o Brasil que queremos. Reforçou que as atividades serão abertas em cidades de todo o país e também incentivou o uso da plataforma digital. Guilherme Boulos, do MTST, agradeceu a presença de todas as pessoas e abordou o momento de desesperança e retrocessos, bem como a importância de lutar contra a descrença e a antipolítica. Reforçou a necessidade de se pensar verdadeiramente num projeto para o país e mudar nossos rumos. “Ganhar eleições não basta, visto o golpe que o país sofreu e, portanto, a democracia não pode ter as mesmas oligarquias de sempre. O povo precisa ter participação ativa e debatedora.” Erundina, do PSOL/SP, demonstrou sua preocupação com a juventude e a necessidade de reacender nela o interesse pela política. Destaca que a política é importante e, desse modo, é preciso se


Alice Vergueiro

“reencantar e lutar por uma dimensão social, educadora e coletiva. É preciso transformar o país com todos e todas”. Suplicy, do PT/SP, falou da luta e da importância da presença de outros nomes políticos para o diálogo e a busca de um projeto democrático para o Brasil. É imprescindível, neste momento, um projeto do povo e para o povo. Ressaltou ainda a iniciativa de debate promovida pelo ciclo do Vamos!, tanto na plataforma digital quanto nas praças e ruas. Terminou com a afirmação de que “é de grande importância ir além dos muros das nossas casas e, assim, elevar o grau de justiça e da participação popular”. Freixo, do PSOL/RJ, abordou o quanto a esquerda precisa se olhar com mais fraternidade e dialogar num projeto democrático. Destacou que o Vamos! provoca incômodo, inclusive na própria esquerda, e, por isso, é positivo para promover uma reflexão. Pecisamos dialogar com nossas similaridades, mas também com nossas divergências para um debate amplo e próximo de todas as pessoas neste país. Sônia Guajajara, líder indígena, cumprimentou todos, valorizou a presença das mulheres e da luta dos presentes e o quanto é preciso acreditar num país melhor. Emocionou ao abordar a violência sofrida pelos índios do Pico do Jaraguá frente à revogação de terras e que “não será o marco temporal de um governo ilegítimo que delimitará a luta de todos os povos indígenas”. Finalizou que é preciso lutar ainda mais e se reorganizar enquanto resistência. O lançamento oficial do Vamos! contou ainda com falas dos presentes, sorteados da plateia, para apresentar suas opiniões sobre o ciclo de debates e, consequentemente, iniciar todo o projeto de discussão pública e popular e que busca unir todo o país para levar adiante uma transformação social para todos. Vamos! Sem medo de mudar o país!

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FRUTOS Célio Turino

O artigo "O povo brasileiro" faz parte do livro "Cultura a Unir os Povos - a arte do encontro", recém lançado pelo historiador

por CÉLIO TURINO

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into saudades do Brasil. Sinto saudade do povo que se formou do encontro entre povos, sinto saudade de nossas raízes, sinto saudade de nossas flores e nossos frutos, sinto saudade do nosso futuro sonhado. Brasileiros, quem somos? Somos o único país a levar o nome de uma árvore, pau-brasil. Somos Pataxó, somos Tupinambá, somos Guarani, Jê e Tupi. Somos portugueses à solta, aqueles que depois de alcançar as falésias, no último limite de terra do continente euro-asiático, decidiram atirar-se ao mar sem fim. Somos os africanos trazidos em holocausto. Somos os imigrantes, os que fugiram da fome na Europa, no Oriente Médio e no Japão. O Brasil é a maior nação negra fora da África; há 25 milhões de descendentes de italianos; há mais descendentes de libaneses vivendo no Brasil que no Líbano, 12 milhões, entre sírios e libaneses, nossos irmãos; a maior cidade japonesa fora do Japão é São Paulo. Somos mescla, somos mestiços. Somos acolhedores, somos solidários, somos criativos, somos alegres, somos solares. Mas se somos tudo isso, por qual motivo nos maltratamos tanto? Por que tantos horrores, por que tanta matança? Por que se matou – e se mata – tantos indígenas? Eles nos receberam tão bem. Eles não, porque “eles” somos nós. O que se fez com nossos irmãos africanos? Em séculos passados, os comer66 CIDADANISTA

ciantes negreiros eram também conhecidos como brasileiros, 5 milhões de escravizados, arrancados de suas terras, transportados em tumbeiros, aprisionados em martírio. E os imigrantes desrespeitados, enganados, deportados. Os operários explorados. Os caboclos amordaçados, chacinados, Cabanos, Canudos, Contestado, Caldeirão, “contra os quais rugiam raivosamente 5 mil soldados”, “a enfrentá-los, um velho, dois homens feitos e uma criança” (final de Os sertões, de Euclides da Cunha). Canudos não se rendeu, como Palmares não se rendeu, o quilombo acolhedor, em torno do qual africanos escravizados, brancos pobres, indígenas, mestiços, judeus, se juntaram em resistência ao escravismo colonial. Somos irmã Doroty Stang, somos os ambientalistas assassinados, somos os indígenas assassinados, somos os jovens negros, pobres e da periferia, igualmente assassinados, amordaçados, desprezados. Somos os que assassinaram irmã Doroty, somos os que assassinam os ambientalistas, somos os que assassinam os indígenas, somos os que desprezam, amordaçam e assassinam os jovens da periferia. Somos os que maltratam e os que “bem tratam”. Somos iniquidade e solidariedade. Somos ódio e amor. Esses somos nós. Sinto saudade do “progresso autossustentado”, como previu Darcy Ribeiro, nosso querido antropólogo, em O povo brasileiro: “Estamos nos construin-

foto: arquivo pessoal

O povo brasileiro


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do na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre porque mais sofrida. Melhor porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa porque aberta à convivência com todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra”. Sinto saudade do Brasil. Sinto saudade de nosso primeiro encontro entre povos; está escrito, está na Carta de Caminha, foi em 22 de abril de 1500. Sinto saudade deste Brasil: “Além do rio, andavam muitos deles, dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então, além do rio, Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer [homem de circo]; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras, e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito”. Tenho esperança no Brasil. Conheço seu povo, meu povo. Tenho esperança porque a esperança da terra vai além do Thydêwá, há o vídeo nas aldeias, os cineastas indígenas, o cacique Aritana, meu amigo, fazendo ressurgir o idioma Yawalapiti, fazendo o seu povo ressurgir do tronco do Quarup. Tenho esperança no Brasil porque as pombas urbanas voam em Cidade Tiradentes, no Pirambu, na Restinga, em Simões Filho, no Parque Itajaí, no Capão Redondo, em Nova Iguaçu. Tenho esperança no Brasil porque os Griôs caminham, cavoucam nossa memória escondida e a cantam com afeto. São

Meninas de Sinhá, são Bola de Meia, são Nina, são Tainã. São quilombos, são mocambos, são aldeias, são favelas, são vilas. São fábricas, das poucas que nos restam. São agroecologia, são agrofloresta, são agricultura familiar. São economia popular, da reciprocidade, da dádiva. São jovens que se recusam a ser coisa. São invenção brasileira. Tenho esperança no Brasil porque de onde brota a desesperança, uma flor rasga o asfalto. Tenho esperança no Brasil de baixo, escondido, humilhado, explorado. É esse Brasil que precisa se encontrar e descobrir a força que tem. O Brasil do software livre, da cultura digital, da generosidade intelectual, da energia distribuída. Da economia solidária, do trabalho compartilhado, do mutirão, do Motirô. Das mulheres, das valentes mulheres que são mãe e pai, das valentes mulheres que enfrentam a vida, do ativismo, do feminismo, do trabalho, da esperança, do compromisso e do companheirismo. Tenho esperança no Brasil pelo devir, pelo que ainda vamos conhecer de nós mesmos, pelo que estamos a desesconder, pelo que vamos descobrir. Pelos homens, pelas mulheres, por quem é gente no gênero que for. Pelos velhos, pelas crianças, pelos adultos, pelos que estão a nascer. Por esses tenho esperança. Há água, há florestas, há jandaias, papagaios e periquitos, e onças e jaguares e macacos. São muitas as águas, são muitas as florestas, são muitas as aves, as onças os macacos e os jaguares. E os jacarés, o boto, o pirarucu, dourado. Essa terra já foi conhecida como Terra dos Papagaios, a terra das aves que falam. Tenho esperança no Brasil porque fazemos parte da “América do Sul/América do Sol/América do Sal”, conforme Oswald de Andrade nos dizia. Tenho esperança no Brasil porque somos América Latina e saberemos nos encontrar como irmãos. Tenho esperança no Brasil porque entre nós e a África há um rio chamado Atlântico, um continente se encaixando em outro, e saberemos nos encontrar como irmãos. Tenho esperança no Brasil porque na Europa também brota a esperança, e na América do Norte há quem resiste, e no Oriente Médio há quem ensaia outra forma de convivência e paz, mesmo que surgida de escombros. Os nossos irmãos asiáticos, os povos do Pacífico, do Himalaia, dos desertos. No Brasil todos nos fazemos irmãos, e se desaprendemos a nos fazer irmãos, teremos que reaprender. Com coragem, com alegria, coloridos, inventivos, criativos, brasileiros. CIDADANISTA

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FRUTOS Eudes Cardozo

por EUDES CARDOZO

Jihad

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atual estágio da evolução capitalista impõe sua dinâmica funcional pela força diariamente, como diria Mano Brown: “Pelo rádio, jornal, revista e outdoor. Te oferece dinheiro, conversa com calma. Contamina seu caráter, rouba sua alma…” Todas as relações estabelecidas dentro dessa máxima mundo estão permeadas pela ideologia dominante. O trânsito e o trajeto para casa, o trabalho e a sala de aula, o amor e o café, todos bebem da dinâmica funcional imposta. Nos tornamos todos potenciais vencedores, incansáveis e invencíveis competidores. O sistema impõe a competição, a disputa e o duelo. Afinal, é assim que as coisas são, é desse modo e para esse modus que trabalhamos. Diariamente, moídos e triturados pelas engrenagens capitalistas, convertemo-nos todos nas próprias engrenagens da máquina de moer gente e gerar lucro. O embate ideológico levado a nível visceral com o qual temos nos dado é a vitória de uma única ideologia. É a vitória da permanência. É o texto da dominação convertido em discurso e prática. O belicismo das relações pessoais é a ação efetiva da máxima competitiva capitalista, do individualismo e da ânsia de vitória. Acreditar que

foto: arquivo pessoal

“Tal como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, pois, com sua produção, tanto com o que produzem como também com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção” (Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã 1846).


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não somos afetados pela ideologia dominante é o próprio efeito da ideologia dominante, sua causa e consequência. O engodo de nos considerarmos seres especiais por determos valores progressistas funciona contra nós mesmos. Possuir ou compartilhar de ideais humanistas não nos torna menos vulneráveis aos ataques constantes e massivos da ideologia do establishment. Ser de esquerda não nos confere um colete à prova dos projéteis disparados ad eternum pela metralhadora capitalista. Se precisamos combater o inimigo por dentro a fim de vencê-lo, faz-se necessário como nunca antes combatê-lo em nosso interior, como diria o jagunço Zé Bebelo, após conceber anistia ao inimigo capturado, na obra Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa: “A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele adentro”. Embora deturpado pela mídia corporativista e pelo universal prisma mundo norte-americano, o termo islâmico jihad comporta os preceitos de um exercício útil aos nossos tempos. Jihad não é a mera peleja contra os infiéis. Trata-se de uma purificação do coração via expiação, verificação de ações e intenções aplicando à prática correções da conduta. O exercício jihadista pode ser execu-

tado, doutrinariamente falando, pelo coração, purificando-se espiritualmente na luta contra o mal; pela língua e pelas mãos, difundindo palavras e comportamentos que defendam o que é bom e corrijam o errado; por último, pela espada, praticando a guerra física. Nossa jihad deve começar o quanto antes. Em tempos de exacerbado fratricídio, o cuidado prévio de não meramente vencer, mas ouvir, torna-se uma ínfima porém valorosa vitória contra a máxima dominante. Ao defendermos com unhas e dentes posições ou ideais, devemos preservar nossas unhas e dentes e as de outrem, tomando o cuidado de não sermos vencidos por nós mesmos. O outro é ainda, por mais que não mais enxerguemos assim, a barreira intransponível aos avanços tecnológicos e persuasivos da humanidade, ao convencimento ou conversão induzida. O outro pertence a si mesmo, com suas dores, delícias e contradições. “O que nos resta é continuar tentando nos afastar desse ‘nós’ que somos agora. Porque esse ‘nós’ é, justamente, a maior vitória do inimigo que não cessa de vencer” (Tony Hara, Ensaios sobre a singularidade). CIDADANISTA

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HQ | Kellen Carvalho


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Mais informações em raiz.org.br e nas redes sociais da RAiZ


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