ANO 2 | Nº 5
MARÇO - JUNHO / 2018
R$ 20,00 O valor arrecadado será revertido para a produção da próxima edição
ISSN 2526-4079
P O R
U M A
P O L Í T I C A
R E N O V A D A
cidadanista.com.br
Mídia, fake news e eleições 2018
Eleições na Colômbia
Paradigma econômico
A surpresa vem da esquerda
Vamos falar sobre Singapura?
Ventos de Trump no Brasil
por RODRIGO PEDROSO
por VINICIUS GOMES
com LULI RADFAHRER
Educação para todos
Bem Viver
Bancos comunitários
A escola de dona Êda
A Revolução dos Baldinhos
O outro lado da moeda
por CAROL VILAR
por LUIZ MILLER
por EUDES CARDOZO
Mutirões de bioconstrução
Entrevista
Encontro #OcupaPolítica
Minha terra; minha casa
"Cultura viva é feita pelo povo"
Por uma ocupação da política
por VITOR TAVEIRA
com CÉLIO TURINO
por IVAN ZUMALDE
+ E nt re v i s t a s excl u si va s co m :
SÂMIA BOMFIM (PSOL) | TARSO GENRO (PT) | ZÉ GUSTAVO (REDE) | LARISSA GASPAR (PPL)
CARTA DO EDITOR | por IVAN ZUMALDE - contato@cidadanista.com.br
RESISTIR É SEGUIR Do luto à luta, o bonde da história nos chama hoje para outra realidade amanhã
E
m uma das mesas do último Fórum Social Mundial em Salvador, Renato Rovai, editor da revista Fórum, iniciava sua fala pedindo desculpas por sair do contexto da qual a mesa se propunha. Ele queria falar primeiro de Marielle, executada no dia anterior. A plateia ecoou rápido e pediu ao jornalista que seguisse. A morte da vereadora se inseriu no próprio contexto do encontro e potencializou o lema proposto pelo Fórum para 2018: "Resistir é criar. Resistir é transformar". A resistência contextualizada por Rovai naquela manhã se referia ao atentado à democracia. E sua fala durante o debate sobre "mídias alternativas" citava o ataque aos profissionais independentes após o golpe. A democracia e os direitos humanos retrocederam após 2016, e naturalmente a imprensa livre e não hegemônica também sofreu. Os ataques se dão desde uma descabida culpabilidade pelas fake news, passando por censura de profissionais, até o quase inexistente investimento público na democratização dos meios de comunicação. Os “mídialivristas” enfrentam uma batalha dura. E pela análise da conjuntura, vai vir mais chumbo grosso pela frente. A resistência e a esperança empurram nossos sonhos para o futuro, mas é impossível passar incólume a uma derrota como a perda de Marielle e Anderson. A pergunta silenciosa
e coletiva que se escutava nos corredores da Universidade da Bahia era: Para que lutar e resistir se nos matam quando exigimos nossos direitos? A sensação de impotência é real, e foi possível senti-la no rosto dos milhares de participantes nos cinco dias de Fórum. O momento é duro e vai exigir muito das pessoas. Algumas vão cair, outras desistir; outras vão seguir. Do luto à luta, o bonde da história nos chama hoje para outra realidade amanhã. Um dos caminhos da resistência é ocupar a política, como fez Marielle. Sua memória nos faz lembrar que em 2018 abre-se um novo portal para a transformação. A política institucional – gostemos ou não – é o terreno onde grandes mudanças ocorrem, o último e legítimo bastião da voz popular. Ainda não sabemos se o resultado das urnas será em direção ao retrocesso ou reinvenção do campo popular e progressista. A avalanche conservadora em marcha ainda nos assusta com uma situação de exceção. Frente a isso, nos restam as armas da resistência e da participação popular a fim de manter firmes as barricadas da justiça social. Outras Marielles virão. A ocupação só começou. O cardeal Arns dizia na época da repressão durante a ditadura brasileira, "De esperança em esperança, de esperança, sempre". De luta em luta seguimos hoje, com a esperança de que a resistência é a melhor maneira de seguir em frente.
CIDADANISTA
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SUMÁRIO | Ano 2, nº 5 | março-junho 2018
Sumario NOTAS CIDADANISTAS
08_ O que eles disseram sobre desigualdade social 10_ A esperança que vem do Fórum Social Mundial 12_ A intervenção militar no Rio por quem vive na cidade 14_ Bastidores de uma frente progressista em formação 16_ Giro mundo: cidadanista planetário por Vitor Taveira 18_ Giro Brasil: cidadanista nos territórios 20_ Fake news, robôs e mídia em ano de eleição no Brasil 22_ O julgamento de Lula por quem o conhece há quarenta anos 24_ Dona Êda e a história de transformação pela educação 26_ Livros: uma seleção cidadanista para ler e refletir
BEM VIVER
28_ Célio Turino, "Os Estados têm que servir as pessoas" 32_ A Revolução dos Baldinhos de Florianópolis 36_ Mutirões de bioconstrução em ocupações do MTST 37_ Dez anos de retomadas quilombolas no Espírito Santo 38_ A economia circular que não esgota a terra 41_ BH receberá Encontro Nacional de Agroecologia
MOVIMENTOS
42_ Conheça as caras e as causas da renovação política 46_ A esquerda colombiana mostra sua força
CIDADÃO e s p e c i a l e c o n o m i a
50_ Por que Singapura pode ser a inovação necessária 54_ A economia solidária dos bancos comunitários
POLÍTICA
60_ Sâmia Bomfim (PSOL) 62_ Tarso Genro (PT) 64_ Zé Gustavo (REDE) 66_ Larissa Gaspar (PPL)
FRUTOS
67_ Ensaio: "Existe Carnaval em SP", por Alice Vergueiro 72_ A ingenuidade tecnológica acabou, por Fábio St Rios 74_ A antihomofobia evangélica, por Francis Duarte 76_ Coluna renovação: por ACREDITO 77_ Ícones: a história de Bertha Lutz 78_ "Inspira", por Guto Lacaz
EXPEDIENTE CONSELHO EDITORIAL: Célio Turino Ivan Zumalde Vitor Taveira
EDITOR:
Ivan Zumalde (MTB 29263)
COLABORARAM NESTA EDIÇÃO:
Alice Vergueiro, Ana Maria Barbosa, Antonio Martins, Eudes Cardozo, Fábio Rios, Francis Duarte, Guto Lacaz, Ivan Zumalde, Israel Rocha, Ítalo Alves, Luiz Miller, Maria Carolina VIlar, Mariana Lopes, Rodrigo Pedroso, Silvana Bragato, Susanne Sassaki, Vinicius Gomes e Vitor Taveira
A revista Cidadanista é uma publicação independente e apartidária. Sua missão editorial é produzir conteúdo progressista visando a formação de uma frente de renovação política de esquerda no país. A publicação nasceu do movimento social Raiz Cidadanista e está alinhada com os valores Ubuntu, Teko Porã e Ecossocialismo. Para falar com a redação, envie um e-mail para contato@ cidadanista.com.br ou ligue: 11 983 166 642 – Todos os artigos e conteúdos veiculados nesta publicação refletem as opiniões de seus autores, e não necessariamente dos editores da revista Cidadanista ou da RAIZ Movimento Cidadanista. PARA ANUNCIAR OU FAZER SUA ASSINATURA CONTATO@CIDADANISTA.COM.BR
EQUIPE Colaboradores
Vitor Taveira é comunicador social
e mestre em Estudos Latino-Americanos. Trabalha como repórter em meios contrahegemônicos e é integrante do programa de rádio Soy Loco Por Ti e do Cineclube El Caracol. O capixaba assina as colunas "Giro" e conteúdos de Bem Viver.
Quem fez
Luiz Miller é jornalista e ativista ambiental. Foi um dos produtores do documentário Volume Vivo, sobre a crise hídrica de São Paulo, e ajudou a construir o coletivo Aliança pela Água. Nesta edição, traz a história da "Revolução dos baldinhos" de Florianópolis. Francis Duarte, professora da rede
Maria Carolina Vilar,
pública, mestra em Língua Portuguesa pela UFRJ, acredita na educação como transformação social. Militante, escolheu São Paulo como um novo lar e é nefelibata nas horas livres. Escreveu os artigos sobre Bertha Lutz e o casamento gay.
Silvana Bragato é doutora
em Ciências, mestre em engenharia de produção e engenheira de alimentos. Silvana nos traz o conteúdo sobre a economia circular e suas vantagens e benefícios sobre a economia linear. Seu texto chama a atenção para a necessidade urgente de mudança na nossa maneira de consumir.
Eudes Cardozo é pai,
historiador, militante da mídia alternativa e jornalista gonzo nas horas vagas. Quando tem tempo... escreve sobre o tempo. É dele a matéria sobre os bancos comunitários. Eudes também é professor de História.
Rodrigo Pedroso é jornalista
e mestre em Sociologia. Há um ano vive em Medellín, na Colômbia, onde é freelancer e dá aulas de jornalismo internacional. Chegou ao país para entender melhor o que é e como se recupera de uma guerra de quase seis décadas. Pedroso nos traz a reportagem sobre as próximas eleições no país.
Fábio Stenio estudou Ciência
da Computação, Engenharia Metalúrgica e é estudante de História. Desenhista, programador sênior e hacktivista, é um dos responsáveis pelo portal A Postagem e escreveu para a Cidadanista o artigo sobre "O tempo da ingenuidade tecnológica da esquerda acabou".
Alice Vergueiro é fotógrafa e desde 2012 colabora com agências, veículos, jornais, revistas e sites. Também faz eventos sociais e corporativos e nesta edição assina o ensaio "Existe Carnaval em SP", que virou exposição no Teatro Commune. Vinicius Gomes
é escritor, jornalista e autor do blog “O Internacionalista”, no site Outras Palavras. Gomes nos traz o exemplo de SIngapura como modelo econômico paradoxal. Conversou com especialistas para tentar entender como o país asiático junta economia de mercado com grande intervenção estatal.
Guto Lacaz, renomado artista
6 CIDADANISTA
e ilustrador brasileiro, tem intervenções urbanas nas cidades de São Paulo e Rotterdam. Já ilustrou dezessete livros, sendo seu trabalho marcado por surpresa e humor. Seu talento e criatividade podem ser vistos na última página.
Dário Oliveira
ou Carol, é jornalista e fez longa carreira em editoras do país, mas foram as viagens e o voluntariado pela África que mudaram sua vida. Com pós-graduação em Gestão Social, atualmente contribui na construção de negócios sociais. É dela a matéria com dona Êda.
fotos: arquivo pessoal
Um time seleto de conteudistas preocupados com a justiça social e comprometidos com o jornalismo cidadão
reprodução/'capital'
FRASES Desigualdade
O que disseram O que pensam historiadores, sociólogos, economistas e escritores quando o assunto é desigualdade social brasileira
"O Banco Mundial prefere falar de diminuir o sofrimento e não de enfrentar a produção das desigualdades. O Brasil é um dos maiores laboratórios"
"Para recuperar a boa velha metáfora culinária: o bolo cresceu, mas não foi dividido, nem mesmo nos últimos anos " Pedro Ferreira de Souza, doutor em sociologia e pesquisador do IPEA
"É um erro associar o comportamento da desigualdade ao mandato de presidentes"
Marcelo Medeiros, professor e pesquisador da Unb, Universidade de Brasília 8 CIDADANISTA
arquivo pessoal
reprodução/'youtube'
Virginia Fontes, historiadora
"A reforma trabalhista irá aumentar as desigualdades sociais. Especialistas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) têm observado que essas reformas têm sido acompanhadas por aumento da pobreza e das desigualdades" Ruy Braga, sociólogo e professor livredocente da USP
" A elite sempre tem um monte de desculpas para não pagar impostos, e isso também ocorre em outras partes do mundo. A questão é saber por que a elite no Brasil tem sido bem-sucedida ao evitar mudanças no sistema tributário"
Thomas Piketty, autor do livro O capital e professor da escola de economia de Paris
25,4% DA POPULAÇÃO BRASILEIRA EM 2016 VIVEU COM MENOS DE R$ 387 POR MÊS. IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)
ENCONTRO Fórum Social Mundial 2018
por IVAN ZUMALDE
Resistir é criar. Resistir é transformar A Cidadanista esteve no Fórum Social Mundial em Salvador durante os dias 13 e 17 de março. Evento contou com iniciativas inovadoras e trouxe esperança para os povos em busca de paz e justiça
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arielle Franco foi executada no Rio enquanto acontecia o Fórum Social Mundial em Salvador. Era o segundo dia do encontro, e o crime atingiu em cheio a esperança das mais de 30 mil pessoas que buscavam soluções de paz para tempos de retrocesso. A indignação que atingiu o país e o mundo ecoou nas mesas de debates da Universidade Federal. Em luto, mas em luta, uma marcha em memória de Marielle foi realizada, e a mensagem da vereadora do PSOL transbordou nas mais de 1100 atividades organizadas pelos 120 países reunidos na capital baiana. Durante os três dias seguintes, Marielle esteve presente. Desde as salas sobre mídia alternativa, passando pelo trabalho colaborativo, sua voz de mulher, negra, periférica e ativista dos direitos humanos foi ouvida. Sua luta fez ressoar ainda mais alto o lema do Fórum: Resistir é criar; resistir é transformar. “Estou confiante que esta luta é particularmente certa e que vamos avançar”, disse o professor Boaventura de Sousa em encontro sobre ecossocialismo. O catedrático português comparou Marielle a Chico Mendes e tantos outros que perderam a vida; chamou a atenção para a necessidade de nos juntarmos – “A gente pediu para os trabalhadores se juntarem e foi o capitalismo que se uniu” – e conclamou 10 CIDADANISTA
O Fórum contou com a participação de movimentos sociais e representantes de entidades nacionais e internacionais
a esquerda para ser mártir da justiça social em um mundo em crise. Esse chamamento foi um dos muitos deixados pelos povos durante o Fórum. Os cinco dias trouxeram ensinamentos práticos sobre educação, meio ambiente, economia solidária, justiça, trabalho, entre outros tantos desafios humanos atuais. Na maiorida das iniciativas, os povos originários e a mulher foram os protagonistas. Não há futuro e cidadania no Brasil sem a inclusão da voz negra, indígena e feminina. Prova viva foi a realização da Assembleia Mundial das Mulheres, no Pelourinho, durante as atividades do Fórum e menos de 48 horas após o assassinato da vereadora. Marielle esteve presente no ato e estará no futuro do país depois do dia 15 de março.
O clima de denúncia e união entre os povos invadiu o campus da UFBA
NASCE A AELA No último dia 15 de março foi plantada a primeira semente da AELA (Aliança Ecossocialista Latino-Americana). O lançamento ocorreu dentro do FSM e contou com a participação de organizações nacionais, partidos internacionais e povos originários. A organização foi criada para "preencher a lacuna" e "criar um elo" entre as organizações dentro do continente. Segundo um de seus fundadores, Thomas Enlazador, ela terá objetivos práticos: "Queremos a inserção de políticas públicas ecossocialistas nas candidaturas de 2018", afirmou Thomas, que defende a construção da Rede Nacional de Assentamentos Humanos Resilientes. "Vamos construir, por meio do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, um mecanismo que garanta o debate e a participação dos cidadãos.” A AELA esteve também no Fama (Fórum Alternativo Mundial da Água) e segue com atividades durante o ano inteiro. CIDADANISTA
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RELATOS Intervenção no Rio
A intervenção no Rio de Janeiro é positiva? Entre o debate de especialistas e a efetividade da ação do Exército na capital fluminense está a opinião de quem vive e pensa a cidade todos os dias.
Emerson de Oliveira
caseiro, morador da Rocinha, zona sul carioca
Filósofa e professora da UFRJ
Eu sou totalmente contra a intervenção porque acho que não é a solução para o problema. Não é disso que o Rio precisa. A cidade tem que pensar na situação dos policiais, combater o tráfico de armas, ter inteligência e pensar na legalização das drogas. O Estado tem que tomar uma série de medidas que não são fáceis e sobretudo resolver a crise econômica aguda do Rio. Se o governo federal quisesse mesmo ajudar a cidade, ajudaria resolvendo a crise econômica e tendo boa vontade para tentar compensar problemas estruturais no pacto federativo e na arrecadação de impostos que há anos prejudicam o Rio de Janeiro. Acho que tem muita coisa a ser feita. A intervenção não é uma delas e inclusive tem efeitos negativos – principalmente para as populações das favelas e das periferias, que sofrem com o arbítrio que se instala nesses momentos. Essa política de enviar o Exército não é a solução para os problemas do Rio de Janeiro". 12 CIDADANISTA
fotos arquivo pessoal
Tatiana Roque
A intervenção pode ser boa, mas vai sujar o nome dessa instituição. Porque eles vão ficar uns dez meses, só para estancar a sangria. Não adianta dar remédio genérico, você tem que dar morfina. Senão os caras vão brincar com a cara das Forças Armadas. É muito mais complexo do que todo mundo pensa. A população pensa que vai dar certo, mas a gente mesmo não vê fim em tudo isso.Tem que reformar o Código Penal inteiro. Tem que chegar no Congresso e dizer: “Ai, rapaziada, a partir de hoje, antes das forças adentrarem, a gente vai botar lei. Se o cara é corrupto, vai ficar preso. Não é essa brincadeira de tornozeleira e ficar rindo para a sociedade com o bolso cheio de dinheiro. O povo vive na angústia, sem educação, sem saúde, sem cultura e, principalmente, sem emprego. O morro precisa de estrutura. É uma senzala do século moderno. Não adianta botar força se não existe lei decente. O que para a violência é a educação. É uma coisa muito complexa o que acontece aqui, e se a gente não fizer política séria, nada vai adiantar".
por IVAN ZUMALDE
BASTIDORES Esquerda em movimento
Rumo a Casa do Povo
O movimento #nosmovimenta vai apoiar vinte candidaturas para o Legislativo em 2018. Lançado no final do ano passado, o "Nos" é integrado por quarenta ativistas e já conta com bases em São Paulo, Brasília, Pernambuco e Rio. "Queremos gente pobre, preta e periférica na Casa do Povo", diz Sheila de Carvalho, advogada e integrante do grupo que irá dar suporte em comunicação, tecnologia e assessoria jurídica para os vinte candidatos selecionados. A expectativa "pé no chão" é eleger dois, diz Sheila. Após as inscrições – encerradas em março –, os nomes dos selecionados serão divulgados na primeira semana de abril. As legendas serão PSOL, PT, PCdoB, PSB, PDT e Rede.
PSOL em mutação
BOULOS PRESIDENTE Boulos é candidato a presidente. Traz mudanças no jogo eleitoral e dentro do PSOL. Seu nome dá peso à esquerda, mas sua entrada também causou tensões entre os filiados do partido. O tempo e a campanha trarão os efeitos da nova fase para o partido e para o campo progressista. Em 2019, o partido será outro.
Sem cliente
De volta a França O estrategista
de campanha Guillaume Liegey, que ajudou a eleger Macron na França, esteve no Brasil atrás de clientes. Ele está prestes a lançar sua startup e seu método e sistema chamaram a atenção de PPS e Novo. Na França, o campo mais à esquerda vê sua atuação com ressalvas. "Não acho apropriado um marqueteiro que apoiou neoliberais fazer campanhas de esquerda. Não desejo ao Boulos essa experiência", falou Florence Poznanski à Cidadanista. Ela é conselheira no Brasil do França Insubmissa, principal partido de oposição na França. Poznanski acredita em campanhas "orgânicas" para guiar as eleições aqui no País.
"Esquerda volver"
AGORA É VAMOS
Depois da saída do movimento Agora, Alê Youssef projeta 2018 com o "Vamos". Abaixo em resposta para a Cidadanista. O Huck desistiu da candidatura (até o momento). Qual sua opinião sobre outros atores dentro do cenário político? Acho que qualquer projeto político passa pelo combate à desigualdade social. Os atores que merecem nosso apoio e incentivo são aqueles que atuam nesse sentido, que dedicam a vida a essa luta. É urgente entrar na arena para combater a aproximação oportunista do neoliberalismo com o neoconservadorismo, que tem gerado "Frankensteins" políticos perigosíssimos que representam retrocessos.
foto arquivo pessoal
#nosmovimenta
Conjunto 18
Senado Federal A proposta do Mandato Conjunto 18
é apoiar candidatos para disputar o Senado Federal por São Paulo. A iniciativa quer juntar interessados dentro do campo progressista e prevê lançar sua proposta alternativa no início de abril.
Últimas
Nova Democracia
O movimento, que teve atuação importante na Reforma política no ano passado retomou os trabalhos em 2018. A reunião aberta foi em São Paulo e contou com vários movimentos. 14 CIDADANISTA
Bancada Ativista
A bancada Ativista está construindo uma chapa coletiva para a ALESP. O mandato coletivo integrará mais de dez candidatos. O objetivo é repetir 2016, quando ajudou a eleger Samia Bomfim
Raiz Cidadanista
O círculo de Brasília formado por Leandro Couto, Raphael Sebba e Thomaz de Brito está criando um App para apoiar projetos de leis de iniciativa popular. O objetivo é aproximar o cidadão da política.
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AMÉRICA LATINA
Eleições podem mudar a política continental em 2018 Num cenário difícil de avanço das forças conservadoras, a América Latina vai às urnas em sete países. Além do Brasil, vale destacar a situação da Venezuela, onde Maduro tenta a reeleição diante da crise econômica; no México, onde forças de esquerda crescem diante do fraco desempenho do atual presidente Peña Nieto. O líder é Manuel López Obrador, do Morena, que chegou perto da vitória nas últimas duas eleições. A Colômbia, que realiza as primeiras eleições após a concretização do acordo de paz com as Farc, que agora é um partido político, viu seu ex-comandante Timotchenko abandonar a disputa em março. Porém quem chama a atenção, no topo das pesquisas, é o ex-prefeito de Bogotá, Gustavo Petro, do partido Progressistas. Em sua juventude, ele também foi guerrilheiro do grupo M-19, deixando as armas no início dos anos 1990 em outro processo de paz. Porém a intensificação da violência paramilitar contra forças de esquerda ainda preocupa, pois a Colômbia tem um histórico de assassinatos de líderes progressistas, incluindo candidatos presidenciais (veja mais sobre eleições colombianas na página 46)
PALESTINA
Israel segue prendendo crianças palestinas
Atltantic
O drama humanitário segue na Palestina, e uma de suas facetas cruéis é a prisão de crianças e adolescentes, a maioria acusada de xingar ou jogar pedras nos soldados israelenses. De acordo com a ONG Defense for Children International, em 2017 foram catorze crianças palestinas assassinadas e cerca de trezentas presas ou detidas, sendo onze mantidas em solitária. No final de janeiro, comitês de solidariedade com a luta palestina realizaram atos de apoio em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, pedindo liberdade para Ahed Tamimi e outras crianças e jovens palestinas presas. Ahed, de dezessete anos, está presa desde dezembro e acaba de ser condenada a 8 meses de prisão após viralizar um vídeo em que dá um chute num soldado, no mesmo dia em que seu primo Mohammed levou um tiro na cabeça de um militar israelense. Tamanha desproporção! As organizações sociais denunciam que há cerca de 6 mil presos políticos na Palestina 16 CIDADANISTA
reprodução
GIRO Cidadanista planetário
por VITOR TAVEIRA
A cada edição, pequenas pílulas do que está acontecendo no MUNDO
ESPANHA
Deputados renunciam à parte do salário
Não chega a ser novidade por lá, mas na Espanha alguns partidos de esquerda fixam o salário máximo que seus eleitos podem receber. Questionando os privilégios, a proposta é que os políticos, que exercem cargo de representação da cidadania, recebam algo similar ou ao menos próximo da média dos trabalhadores espanhóis. No caso do Podemos, por exemplo, o teto é fixado em três salários mínimos. Como no Brasil, a legislação não permite devolver o recurso aos cofres públicos, razão pela qual esses deputados destinam o sobrante para apoiar iniciativas cidadãs ou movimentos e organizações sociais. Se essa moda pega...
reprodução
MÉXICO
A candidatura de uma mulher indígena
divulgação
Um destaque do período pré-eleitoral mexicano foi a apresentação de uma candidatura dos povos originários. O Congresso Nacional Indígena (CNI) lançou a médica tradicional e defensora de direitos humanos María de Jesús Patricio Martínez, de origem nahua. Chamou a atenção o apoio dado inclusive pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e suas bases, que até então haviam negado a via institucional. Marichuy, como é conhecida, percorreu o país com seus apoiadores, defendendo um projeto anticapitalista e de baixo para cima. Porém sua candidatura não conseguiu as assinaturas necessárias para ser registrada como candidata independente, sem partido. De todas as maneiras, a campanha cumpriu em parte seu objetivo: chamar a atenção do México sobre seus povos originários e convidar as forças populares a se auto-organizar e intensificar a luta antissistêmica.
CULTURA
Movimentos de cultura realizam encontro
Quito, capital do Equador, recebeu o 3º Congresso Latino-Americano de Cultura Viva Comunitária. Foram cerca de 450 participantes representando redes, coletivos e organizações culturais de dezoito países da América Latina. Durante os dias de encontro, foram realizados debates, exposições, círculos de palavras, articulações políticas, espetáculos e percursos culturais por projetos culturais nos bairros e periferias da cidadesede. Os movimentos que se organizam em torno da rede Cultura Viva Comunitária (CVC) reivindicam políticas públicas para a cultura comunitária e maior articulação entre esse tipo de organização. O próximo congresso será realizado na Argentina, em 2019. (veja mais sobre Bem Viver na página 28)
CIDADANISTA
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GIRO Cidadanista nos territórios
A cada edição, pequenas pílulas do que está acontecendo no BRASIL
Atingidos por barragens
Mulheres bordando a resistência reprodução
Os bordados, tão comuns na vida de muitas mulheres, especialmente no interior do Brasil, se converteram numa ferramenta de resistência e memória. As histórias de cinco mulheres bordadeiras atingidas por projetos de barragens em cinco regiões do Brasil foram registradas no documentário Arpilleras: Bordando a Resistência. A arpillera é uma técnica têxtil surgida em Isla Negra, no Chile, que conta o cotidiano das comunidades. Foi usada pelas mulheres no país para denunciar os crimes da ditadura Pinochet e posteriormente, também na Colômbia, para denunciar a violência da guerra no campo. A técnica chegou ao Brasil e tem sido desenvolvida por mulheres do Movimento de Atingidos pelas Barragens (MAB), que organiza nacionalmente as pessoas afetadas pelos projetos hidrelétricos.
RIO DE JANEIRO
Há anos, movimentos reivindicam que um centro clandestino de tortura e repressão durante a ditadura militar seja transformado em memorial da resistência contra a ditadura militar. Ali foram assassinados mais de vinte militantes, e o local só ficou conhecido graças à denúncia de uma única sobrevivente. Conhecido como Casa da Morte, o imóvel localizado em Petrópolis (RJ) foi desapropriado em 2012. Em dezembro de 2017, a Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos do Rio de Janeiro assinou um acordo de cooperação com a Comissão da Verdade de Petrópolis, para que esta elabore seu relatório final esclarecendo as verdades do que ocorreu na cidade durante esse período sombrio do Brasil. Ativistas consideram um avanço para que finalmente possa ser atendida a intenção de ressignificar o espaço.
cartografias da ditadura
Casa da Morte pode virar centro de memória
AUDIOSIVUAL divulgação
Libreflix: um Netflix independente e gratuito
18 CIDADANISTA
Baseado na ideia do livre compartilhamento da cultura, ativistas criaram o Libreflix, uma plataforma de streaming aberta e colaborativa para a exibição de obras audiovisuais críticas, de produção independente e que tenham livre exibição. Qualquer pessoa pode adicionar produções próprias ou liberadas pelos autores. Já reúne um acervo com curtas, filmes, documentários, séries e produções para o público infantil. O endereço é fácil: libreflix.org. Confira!
PARANÁ
landcon
Curitiba discute lei de agricultura urbana
Depois de algumas polêmicas, a Câmara de Curitiba está tramitando uma lei de agricultura urbana. O pedido de retirada de plantações que moradores fizeram nas calçadas foi um dos disparadores para a iniciativa. O texto da lei define como horta urbana o cultivo de plantas comestíveis sem o uso de agrotóxico, contribuindo para a segurança alimentar. Nas áreas públicas, caberia a regulamentação do Executivo para o plantio. O projeto também prevê a regulamentação da criação de animais de pequeno porte, o que provocou polêmica. A proposta protocolada foi discutida entre vereadores nas comissões e com a sociedade em audiência pública. O projeto tramita internamente e se encontrava na Procuradoria Jurídica até o final de fevereiro.
MARANHÃO
Museu do reggae é inaugurado em São Luís
divulgação
O fenômeno do reggae no Maranhão é interessantíssimo. Nos anos 1970, os discos chegavam do Caribe pelos portos, e as rádios de alta frequência captavam os sons que vinham de lá. O fato é que o ritmo conquistou a população local, que, sem contato direto com a Jamaica, desenvolveu algumas características próprias, como o fato de ser dançado juntinho, em casal. Muito popular nas periferias, é claro que a popularização do reggae não esteve livre de preconceitos e racismo das elites, do poder público e policial, assim como sofreu certo estranhamento dos grupos de cultura popular tradicional. Com o tempo, o reggae foi se consolidando, sendo aceito e respeitado, a ponto de hoje poder ser considerado parte da formação cultural maranhense. Toda essa história agora pode ser encontrada no Museu do Reggae, que foi inaugurado em janeiro no belo Centro Histórico de São Luís.
CENTRO-OESTE
O cerrado pede socorro
É muito preocupante a situação do cerrado e da caatinga. A substituição da vegetação nativa desse bioma por monocultivos de soja, milho, algodão, eucalipto e outros tem prejudicado a proteção dos lençóis freáticos e aquíferos. O cerrado ocupa 22% do território brasileiro, mas já teve mais de 50% de sua mata nativa devastada. É lá que estão os três maiores aquíferos e onde nascem três importantes bacias hidrográficas do país. A situação da caatinga também não é muito diferente: com 11% do território do Brasil, já teve 46% de desmatamento. A campanha Sem Cerrado, Sem Água, Sem Vida defende que esses dois biomas sejam transformados em Patrimônio Nacional, assim como hoje são Amazônia, Pantanal e Mata Atlântica, proporcionando maior proteção legal. Diversas organizações sociais compõem a campanha em defesa da natureza, das comunidades tradicionais e do bem viver. Mais informações: www.semcerrado.org.br.
CIDADANISTA
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TECNOLOGIA fake News
Mídia
"Vinte chances em dez de acontecer aqui o que ocorreu com Trump nos EUA" Conversamos com Luli Radfahrer, mestre e Ph.D. em Comunicação Digital pela USP, para saber o que esperar de fake news, eleições, Globo e Facebook
O que esperar do cenário eleitoral em 2018? As fake news e o Facebook irão influenciar o jogo? Toda vez que a gente fala de fake news, a gente não comenta o principal inimigo que é o próprio Facebook. E ele tem uma estrutura heterodoxa. Por exemplo, como que você não deixa passar uma imagem de amamentação e deixa passar um discurso de ódio? É o próprio fake news! Quer dizer, são dois pesos, duas medidas. Na verdade, o Facebook ganha muito dinheiro com qualquer tipo de notícia. E o fake news é um tipo de notícia que as pessoas compartilham porque dá muita repercussão, inclusive porque outros veículos não estão noticiando. O pior é que você não pode entrar para regular. O Estado e os governos deveriam entrar? Ou o Estado enquadra o Facebook como veículo de mídia ou a gente sempre vai estar sujeito a esse tipo de abuso. Por exemplo, nenhuma
20 CIDADANISTA
"Ou o Estado enquadra o Facebook como veículo de mídia ou a gente sempre vai ter esse tipo de abuso" empresa de comunicação pode ter um veículo de fake news, pois perderia a sua licença para operar, além de anunciantes ou credenciais de verificadores de circulação. Imagina se o Estadão colocasse na capa "Lula na cadeia é um filho da puta". Ele não pode colocar isso porque pode perder a licença e a credibilidade editorial dele. O William Wack fala uma bobagem e, ao fazê-lo, comete um crime. O que a Globo faz? Caça e muito rapidamente despede o funcionário. Então, por que a Veja perdeu tanta credibilidade? Por causa disso. O Facebook ganha muito dinheiro não sendo mídia, e as pessoas se
deposithphotos
por REDAÇÃO
"A TV ainda é um lugar para poucos e as mídias sociais já são um lugar para todos"
TERRA DE ROBÔS O TRÁFEGO NA INTERNET EM 2016 TEVE MAIS ACESSOS POR BOTS DO QUE HUMANOS.
informam através dele. A responsabilidade pelos conteúdos que estão postados e são compartilhados teriam que ser do Facebook. O Facebook acaba de mudar sua estratégia de algoritmo e não deve privilegiar jornalismo. Acha que isso é um movimento que vai ganhar força? (A Folha de S. Paulo não vai mais publicar na rede social) Eu acho que é um movimento. Samsung e Volkswagen já cortaram anúncios no Youtube. Já teve alguns boicotes contra o Facebook. Acho que sim, está acontecendo um movimento de basta ao abuso do Facebook. Ninguém quer o fim dele, mas a gente quer que tenha as regras das outras mídias. Um paralelo para isso: a indústria automobilística nos anos 1950 matava e dava muito lucro. Hoje ela mata muito menos e continua dando muito lucro. A hora que você começa a ter regulação e começa a ter cinto de segurança, airbag, torna-se mais seguro. Hoje, temos um grande abuso de poder, independente de qualquer área. Desde coletas de dados de laboratório até o próprio Facebook. Seria necessário o governo pressionar isso, penalizando não a página do Facebook que publicou algo errado, mas o Facebook inteiro, por cada conteúdo publicado na rede social. E em relação às mídias sociais e à eleição? Acha que vai acontecer o mesmo aqui que aconteceu nos EUA com o Trump? Acho que tem vinte chances em dez de acontecer aqui o que ocorreu com o Trump nos EUA. Tem um público menos informado e muita gente em uma condição, tanto educacional quanto financeira, muito baixa. Essas pessoas devem estar dentro desse sistema, seja na produção, distribuição ou até no consumo e compartilhamento dessa informação. Então, é certo que isso vai acontecer. E o que tem de errado aí? Você penalizar a vítima e
52% 48% ROBÔS
HUMANOS
Fonte: pesquisa incapsula Bot traffic 2016
dizer que o indíviduo está errado porque leu a notícia que não tinha que ler. Isso é tão errado quanto a mulher não poder sair de saia curta durante a noite. Você tem que, na verdade, forçar a sociedade a permitir que ela saia como ela quiser, na hora que quiser. Saindo da internet e indo para TV. Qual sua opinião sobre Huck e Datena como candidatos? Isso atrapalha ou ajuda o eleitor? Com certeza atrapalha, mas, primeiro, isso não é uma coisa nova. Sempre personalidades de televisão fizeram isso. Então, o fato de um nome da TV querer ser candidato não é estranho. Acha que a Globo define a eleição em 2018? Acredita que a empresa tem mais poder de influenciar a opinião pública hoje do que as redes sociais? Não define, mas ainda é uma fonte importante. Ainda não se pode ignorar a Globo. A TV ainda é um lugar para poucos, e as mídias sociais já são um lugar para todos. Então, personagens como o Huck e o Datena estão na TV e também na mídia social. Você ainda não tem o contrário, como um Whindersson Nunes ou um youtuber qualquer que ainda tenha muito espaço na TV. Ainda.
CIDADANISTA
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INICIATIVAS Cieja Campo Limpo
Líder comunitária
Agente de transformação Conheça a história de dona Êda, educadora do extremo sul de São Paulo, que mudou o território e as vidas de pessoas com seu olhar transformador
São Paulo é uma das cinco cidades mais populosas do mundo. Enormes também são os seus problemas, desafios e contrastes. De acordo com o estudo realizado em conjunto pela prefeitura de São Paulo com a organização internacional Aliança de Cidades, em 2007, a capital paulista possuía 1.538 favelas. O Censo IBGE 2010 apontou que cerca de 2,1 milhões de pessoas na região metropolitana moram em favelas. Uma enorme desigualdade para uma cidade tão cheia de recursos. Frente a isso, os próprios moradores dessas comunidades se mobilizam para transformar a realidade de seus territórios e criar muitas iniciativas e projetos para dar voz e visibilidade ao que antes ficava somente nos extremos da cidade. Uma onda periférica que está fazendo muita diferença nas comunidades de São Paulo. Aqui, contamos a história de uma mulher ícone na Zona Sul paulistana, a educadora dona Êda. São pessoas como ela que servem de inspiração e são referência no Brasil e no exterior. 22 CIDADANISTA
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blog CIEJA campo limpo
por MARIA CAROLINA VILAR
Dona Êda, o CIEJA e o território: inovação social para mudar a cidade
Dona Êda Luiz CIEJA Campo Limpo
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urante vinte anos ela foi diretora do CIEJA Campo Limpo, um Centro de Educação de Jovens e Adultos, de ensino fundamental, que virou referência nacional com seu modelo de educação inovadora e inclusiva. Em 2017, foi reconhecida pela Unesco como Escola de Educação Transformadora para o Século XXI, uma das duas únicas escolas no Brasil a receber esse título. Dona Êda ou tia Êda, como é conhecida, revolucionou o método de ensino e a educação para jovens e adultos das comunidades da Zona Sul de São Paulo, criando uma escola aberta, acolhendo aqueles que foram excluídos de alguma forma. Mas o segredo não está somente em abrir os portões para todos, e sim na maneira como ela faz isso. Dona de uma simpatia acolhedora, a figura de Êda Luiz é cativante. Além de receber os alunos com o sorriso no rosto, saber o nome de todos, ela está aberta a ouvi-los. Foi junto com eles e os professores que ela construiu uma maneira efetiva e afetiva de ensino. Além de contar com muita resiliência e personalidade, dona Êda é do tipo que faz! “A escola é inclusiva não só porque recebe todo mundo, e sim, em todos os sentidos – no respeito, acolhimento, na produção de conhecimento, em ouvir o aluno sobre aquilo que ele quer aprender, na maneira de ensinar”, diz. Hoje, o CIEJA tem 1.500 alunos, sendo 212 com necessidades especiais, disponibilizando uma estrutura acessível e educação em libras e braile. O mais novo tem quinze anos e a mais velha é a dona Maria, com 89 anos. O funcionamento é integral – manhã, tarde e noite –, para abranger todos os públicos e dar oportunidade para todos os trabalhadores. Os alunos são divididos de acordo com seu nível de conhecimento – alfabetização, pósalfabetização, intermediário e final. Todos os turnos têm uma turma de cada nível, e com isso o aluno tem maior flexibilidade para frequentar a aula no horário que for melhor para ele, evitando perder conteúdo. Português, matemática, história,
"A educação brasileira tem tudo para dar certo. Tem os protagonistas, o nosso povo que é admirável em criatividade, e temos os educadores que confiam e acreditam em mudanças e transformações. Mas temos governos que não acreditam nisso”, ciências? Sim, tem tudo isso, porém as disciplinas foram substituídas por áreas do conhecimento, como ciências do pensamento (ciências e filosofia), ciências humanas (história e geografia), ensaios lógicos e artísticos (matemática e artes). Mais: os alunos trazem temas de interesse aos professores que acabam estimulando os mesmos a estudarem por meio de resolução de problemas. O resultado de tudo isso não poderia ser outro – sucesso. Aqueles que haviam perdido interesse em estudar encontram no CIEJA um refúgio cheio de oportunidades. Há mais de cinquenta anos como educadora, dona Êda conta que ao longo do tempo viu a educação perder um pouco o brilho. “A educação brasileira tem tudo para dar certo. Tem os protagonistas, o nosso povo, que é admirável em criatividade, e temos os educadores que confiam e acreditam em mudanças e transformações. Mas temos governos que não acreditam nisso”, desabafa. NOVOS DESAFIOS Em 2018, chegando aos setenta anos, ela se aposenta com a sensação de missão cumprida, mas nem de longe pensa em parar! “O CIEJA foi um projeto construído com muita luta e dificuldade, mas está na hora de passar o bastão e partir para ajudar os outros com toda a experiência que eu tenho”, comenta. Algumas cidades do Nordeste contam com a consultoria de dona Êda na educação. “O prefeito de Recife me convidou para trabalhar na construção de um modelo de ensino como o CIEJA”, comenta. Diante desse cenário, ela traz a reflexão: “Como ganhar um menino para escola e não perder para as drogas e a violência? A minha luta é que a educação de jovens e adultos não é uma receita de bolo. Resgatar o tempo perdido é outra realidade”, diz. CIDADANISTA
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JUSTIÇA Presidente setenciado
Julgamento de Lula
"É escandaloso. Só não vê quem não quer" fotos reprodução
O julgamento de Lula no TRF4 já foi sentenciado. Entre opiniões de juristas e políticos sobre o aspecto legal, influência política e golpe, falamos com Dom Angélico – que o conhece há quarenta anos – para saber sua opinião sobre a condenação do ex-presidente a 12 anos e 1 mês de prisão
por IVAN ZUMALDE Acredita que o julgamento foi isento? Lula é inocente ou sofre perseguição política? Eu preciso colocar o texto no contexto para não virar pretexto. Quero colocar um contexto, a começar por 1964. Nesse momento, o povo brasileiro aguardava pelas reformas de base, e aqueles que detinham o poder econônimo internacional e nacional criaram o fantasma do período comunista. E com isso deram o golpe. Por isso chamar a ditadura de militar é incorreto. É ditadura civil-militar. Agora os anos passaram. E o que houve? Um novo golpe. Eu não tenho partido político, mas o povo colocou através do voto um partido no poder. E houve um golpe parlamentar apoiado escandalosamente pelo Congresso e também por parte da justiça e por trás de tudo isso o poder econômico. E aí atinge a figura do Lula, que é o maior líder popular do Brasil, reconhecidamente no mundo. É escandaloso, só não vê quem não quer. O que
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se quer realmente é afastar o poder popular. Esse é o problema. Esse é o golpe. Lamento profundamente que parte da justiça esteja sendo politizada. Grande parte do Parlamento conspira contra o povo. Alega-se respeito à Constituição e fazem da Constituição um trapo, segundo os interesses econômicos e políticos de pessoas divorciadas dos interesses reais do povo brasileiro. Como amigo pessoal, o que diria sobre o presidente Lula? Como as pessoas deveriam vê-lo? Cada vista de um ponto é um ponto de vista. A gente pode cair em subjetivismo. Eu simplesmente apelo para a pesquisa. Enorme parcela do povo brasileiro está afirmando que vota no Lula. Então, se é democracia verdadeira e não há interesses, que ouçam o que Lula está dizendo. O pessoal tá com medo das urnas? E depois o povo vota e anulam o voto do povo. Ora, isso aconteceu no governo de Goulart.
Lula na época do sindicalismo no ABC. Nos detalhes, reproduções dos títulos das capas dos jornais brasileiros em 26/2/1981. Ao lado, matéria de 23/1/2018, do jornal The New York Times: "A democracia do Brasil empurrada para o abismo"
"O que se quer realmente é afastar o poder popular. Esse é o problema. Esse é o golpe". A pressão já tinha feito Getúlio dar um tiro no peito. Depois proibiriam até que Juscelino Kubitschek fosse a Brasília – e ele morreu num desastre que não foi suficientemente analisado. O Jânio afirmou: “Forças ocultas me afastam do poder”. São presidentes do Brasil. Então é preciso que larguemos a demogagia barata, deixemos de alienar o povo, e coloquemos às claras aquilo que o povo está dizendo. O senhor acha que as pessoas acreditam mais no Lula do que na própria justiça? Eu não quero julgar a justiça. A justiça precisa ser respeitada. Se bem que eu tenho visto um verdadeiro desfile de magistrados discutindo e se autoafirmando. O povo fica perdido. É preciso maior decoro no tratamento de todas essas questões. E quando se acusa uma pessoa, precisam apresentar provas e precisam dar ao acusado todo direito de ampla defesa. Porque senão, olhe, eu sou discípulo de um homem, filho de Deus, que foi condenado pelo poder
O que o senhor falaria para as pessoas que acreditam que Lula foi condenado por ser ladrão e corrupto? Que analisem claramente as acusações. Que vejam as provas. Acho importante isso. Convido que visitem o apartamento onde ele mora, em SBC, que é muito simples. Eu já estive lá. Sou amigo e admirador da luta desse pernambucano a favor do trabalhador brasileiro. Como o senhor acha que a história vai contar daqui a cinquenta anos o que vivemos hoje? Olha meu irmão, eu sou amigo do que foi o luminoso cardeal arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns. Quando ele estava prestes a partir para a eternidade, feliz, fui visitá-lo. Ele estava com os olhos fechados e de repente os abriu, me viu e falou: "Oh, Angélico, confiança, vamos avante. De esperança, em esperança, na esperança sempre”. É o que ele dizia durante a ditadura civil-militar. É o que continuo gritando durante a ditadura parlamentar, o golpe parlamentar.
"É preciso que larguemos de uma demagogia barata, larguemos de alienar o povo" CIDADANISTA
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arquivo pessoal
deposithphotos
econômico dos fariseus e pelo poder político dos romanos. Esse homem, Jesus Cristo, é o meu líder. Eu sou do partido dele. E anuncio a necessidade de implantar o reino dele. Que não é da acumulação de riquezas nas mãos de poucos, mas é realmente de destinarmos recursos para saúde, transporte, moradia ou continuaremos com um mundo em crise.
LIVROS
Leitura cidadã
Livro
A era do capital improdutivo (e como superá-la) Livro esmiuça a nova arquitetura do poder financeiro e seus impactos na democracia e na sociedade.
por ANTONIO MARTINS do outraspalavras
fotos reprodução
A era do capital improdutivo – A nova arquitetura do poder Autor: Ladislau Dowbor Editoras: Outras Palavras & Autonomia Literária Apoio: Fundação Perseu Abramo Páginas: 316 / Ano: 2017 R$ 40,00
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m A era do capital improdutivo, Ladislau Dowbor revela que o crescimento abissal das desigualdades, a ausência de limites para a depredação da natureza e o esvaziamento da política podem ser faces de um só fenômeno. Uma nova metamorfose do capitalismo (para usar expressão de Celso Furtado); um sistema que já não pode ser compreendido – muito menos superado –, manejando apenas as chaves analíticas do passado. O autor não se contenta em constatar o déficit teórico: ele adianta pistas para ultrapassá-lo, ou seja, para tramar um novo projeto pós-capitalista. A natureza mutante do capitalismo já havia sido destacada por Karl Marx. Mais recentemente, François Chesnais formulou, em A mundialização do capital (1988) e em obras posteriores, a hipótese do declínio do industrialismo e o surgimento de um “regime de acumulação sob dominância financeira”. Ladislau está de acordo e oferece farta documentação e dados a respeito. Mas A era do capital improdutivo situa essa transição num conjunto de outras transformações civilizatórias marcantes, que se acentuam a partir dos anos 1950. A primeira delas é uma drástica mudança na arquitetura do poder mundial. Desde a Paz de Westphalia (1648), os Estadosnações estão deixando de ser os atores centrais. Em seu lugar, emergem as megacorporações globais que controlam o grosso do comércio de alimentos, minérios e combustíveis no planeta. O próprio livro fornece, porém, elementos para enxergar como tal construção é instável; como resta, portanto, espaço para a resistência e a busca de alternativas. O livro trata, em especial, de duas vulnerabilidades. A primeira é o declínio do próprio crescimento econômico. A segunda debilidade crucial é a ineficiência das empresas. Para desenvolver o tema, Ladislau recorre a suas experiências como gestor – algo raro entre a esquerda. A intensa concentração empresarial, explica, criou conglomerados enormes movidos cada vez mais pela lógica única da rentabilidade financeira, incapazes de atender às demandas sociais e mesmo de evitar fraudes e tragédias. Por outro lado, é possível enfrentar esse capitalismo com as ideias do passado? Ladislau tem pistas também para esta questão.
Em certo trecho, ele recomenda “aos sindicatos e movimentos sociais” examinar melhor as novas formas de extração de mais-valia. Explica: “A forma tradicional foi brutalmente agravada por um sistema mais amplo de extração do excedente produzido”. Nos novos tempos, “todos somos explorados, em cada compra, seja através dos crediários, dos cartões, tarifas e juros abusivos, seja na estrutura injusta da tributação”. Como inverter a balança – ou seja, como abordar a luta pela emancipação social na era do capital improdutivo? Aqui, Ladislau destoa tanto do pensamento econômico tradicional quanto de grande parte dos economistas de esquerda, tão autolimitados pelo mito segundo o qual “não há orçamento” para atender às demandas sociais. É preciso, mostra o livro, opor, às lógicas contábeis da “austeridade” e dos “ajustes fiscais”, outras realidades. Mas como ir além do sistema? Ladislau frisa, desde o início, que sua experiência o ensinou a passar ao largo das ideologias – os “ismos”, como ele as chama. Quer saídas práticas. Porém a radicalidade do que propõe, sempre com base em um imenso volume de dados articulados, convida a especular: tais respostas não cabem no sistema a que estamos submetidos. Por isso talvez não haja heresia em dizer que o autor pratica um “póscapitalismo discreto”. É como se dissesse, à moda de Leminski: não se afobem: “distraídos, venceremos”. Proposto em 2010, o rascunho chama a atenção por sua atualidade. Nele, propostas estruturais – como a instituição Renda Básica da Cidadania, a redução da jornada de trabalho, a reorganização do sistema financeiro, a reorientação dos sistemas tributários e a livre circulação do conhecimento – figuram lado a lado com mudanças de atitude decisivas (como a “moderação do consumo” e a “generalização da reciclagem”). É pouco, certamente – e é ótimo que seja assim. Reconstruir um projeto de emancipação social será obra de multidões e exigirá décadas de imaginação, tentativas, erros, novas reflexões e criações. O que o livro de Ladislau Dowbor reitera é que o esforço começou; que já somos capazes de nos perceber submetidos à era do capital improdutivo – mas também de buscar as saídas; que, em oposição ao futuro distópico que hoje nos ameaça, podemos tatear o pós-capitalismo.
Fundamentos da escola do trabalho Autor: Moisey M. Pistrak Páginas: 288 R$ 30,00
Outros livros
Livros por uma expressão popular Conheça alguns lançamentos da Editora Expressão Popular. As novidades do catálogo trazem biografias e temas como educação e agroecologia. Henfil – o humor subversivo Autor: Márcio Malta (Nico) Páginas: 92 R$ 6,00
Contos e poemas Autor: Mário de Andrade; organização por Cláudia de Arruda Campos, Enid Yatsuda Frederico, Walnice Nogueira Galvão, Zenir Campos Reis Páginas: 128 R$ 20,00
Agroecologia no Brasil – história, princípios e práticas Autor: Manoel Baltasar Baptista da Costa Páginas: 144 R$ 22,00
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BEM VIVER Entrevista Célio Turino
Congresso Latino-Americano
"Cultura Viva Comunitária é pensar as capacidades das pessoas"
O historiador Célio Turino esteve no final de 2017 no Equador para o Terceiro Congresso LatinoAmericano de Cultura Viva Comunitária. Na entrevista concedida ao jornal El Telégrafo, Turino fala sobre o pensamento da cultura vista de baixo para cima.
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movimento Cultura Viva Comunitária no Equador é uma rede que articula experiências culturais de base comunitária em dezoito países, na sua maioria latino-americanos. O modelo equatoriano converge muito sua base com o programa brasileiro Cultura Viva, criado por Célio Turino em 2004, quando era secretário da Secretaria da Cidadania Cultural. Uma política pública do governo federal e do Ministério da Cultura que na época de sua implantação, entre 2004 e 2010, introduziu mais de 3.500 Pontos de Cultura em mais de mil municípios brasileiros. O projeto extrapolou fronteiras e tem, além do Equador, parceria com o projeto Escolas do Encontro, inciativa do papa Francisco, que busca integrar escolas e redes educativas pelo mundo. O diferencial do programa está em sua proposta teórico-prática. A cultura é uma manifestação preexistente à qualquer política e, em razão disso, o Cultura Viva está fundamentado em processos e experiências existentes, gestionados por organizações, coletivos e comunidades que interagem com seus territórios. Cada uma dessas experiências constitui o que o programa denominou "Ponto de Cultura", onde o Estado atua como facilitador das condições de produção, circulação e trabalho de rede, utilizando estratégias de cogestão. A autonomia, a participação e o empoderamento social são valores centrais dessa política. Célio participou ativamente da implementação dos pontos no Brasil e, em sua passagem por Quito durante os dias 20 e 25 de novembro de 2017, destacou o eixo temático do "ser comunitário" do programa. A reflexão busca voltar o foco para um dos pilares do movimento e é tema da entrevista com o historiador e escritor.
fotos divulgação
CÉLIO TURINO O
Célio Turino discursa no Equador
"Os Estados têm que servir às pessoas; não as pessoas servirem ao Estado"
CIDADANISTA
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BEM VIVER Entrevista Célio Turino
por PAOLA DE LA VEGA VELASTEGUI
Qual a importância da atuação do Estado em políticas culturais? Os Estados têm que servir às pessoas, não as pessoas servirem ao Estado. Essa ideia é muito importante. Foi com ela que começamos o Cultura Viva Comunitária no Brasil. Em seguida, outros Estados foram incorporando essas políticas públicas, entendendo que quem faz a cultura são as pessoas; que a cultura viva é feita pelo povo, com autonomia e protagonismo, com empoderamento. Quando o Estado equatoriano reconhece essa cultura viva comunitária, isso é muito significativo para toda a América Latina e por um ponto principal: Equador e Bolívia são os dois únicos países que incorporam em suas Constituições os direitos da mãe Terra e Sumak Kawsay (bem viver na língua andina quíchua); e cultura comunitária é uma política pública do "bem viver", porque constrói um processo de harmonias dentro das coletividades: primeiro uma harmonia do indivíduo consigo mesmo, em um processo de autorreconhecimento; segundo, a harmonia comunitária, do indivíduo com sua comunidade; e terceiro, dos indivíduos com outros seres, com a natureza. Todo esse trabalho afetivo e de cuidado da cultura soube suprir a ausência ou falências das políticas do Estado? Todo esse trabalho permite que as sociedades não se fraturem mais. Temos que trabalhar com a economia do cuidado, da reciprocidade. Sou historiador de formação e creio que o que estamos fazendo é um pouco parecido com o que ocorreu na Europa na Idade Média e a superação da Idade Média com as revoluções burguesas. Quando havia um sistema hegemônico que ocorria ao redor dos feudos, onde o senhor feudal era dono de tudo, algumas pessoas sairam para viver em outros espaços, de outras formas. Da mesma maneira, hoje o comunitário constrói outros modos de vida que vão acabar por fazer brotar novas formas de 30 CIDADANISTA
"Cultura comunitária é uma política pública do "bem viver", por que constrói um processo de harmonias dentro das coletividades" economia e de convivência social. A cultura existe quando há duas combinações: a primeira, quando se comparte o território; a segunda, quando se comparte a memória; e quando o território e a memória se encontram, se forma a cultura. Por isso o comunitário é um espaço de reflorescimento; o contrário é uma cultura de mercado, uma cultura que está morta. Nos conte sobre sua experiência de trabalho com políticas culturais de base comunitária? Comecei muito jovem na resistência contra a ditadura militar no Brasil nos anos 1970. Entrei na resistência pela cultura, fazendo cineclubes nas favelas e feiras culturais na periferia da cidade. E logo a vida me foi levando para a gestão, para pensar o cultural sempre com o comunitário; eu aprendi com as pessoas, vivenciando as favelas. Fui secretário de Cultura em Campinas, uma cidade
arquivo pessoal
Entrevista concedida e adaptada do jornal El telégrafo do Equador
"A cultura existe quando há duas combinações: a primeira, quando se comparte o território; a segunda, quando se comparte memória; e quando território e memória se encontram, se forma a cultura.
de 1,2 milhões de habitantes hoje. Aí, aprendi com as mulheres. No meu primeiro dia como secretário apareceram umas mulheres no meu escritório dizendo que queriam aprender a organizar uma biblioteca em uma casa que já tinham em um bairro na periferia da cidade - o Parque Itajaí, a 18 km do centro-, e queriam que comprássemos os livros. Com isso, me dei conta que o sistema funcionava mais que as estruturas. Comecei a pensar com o fluxo, com as capacidades, com as potencialidades das pessoas. Foi a partir daí que a teoria e os conceitos da Cultura Viva e dos Pontos de Cultura começaram a ganhar forma, por isso sempre digo, a Cultura Viva Comunitária é feminina, e feminista. Já em 2004, fui trabalhar no Ministério de Cultura, convidado pelo ministro na ocasião, Gilberto Gil. A ideia inicial do governo Lula não era criar os "Pontos de Cultura", e sim centros culturais, com muita verba para os edifícios e sem orçamento para o que as pessoas já faziam. Então, propus dar a volta; não gastar nada com os edifícios, e sim com as pessoas. E a coisa cresceu. Chegamos em 2010 com 3.500 pontos, em 1.100 municípios, com 9 milhões de pessoas interagindo com esses pontos. No Brasil, conseguimos construir uma política pública, as
pessoas absorveram a ideia de maneira generosa e fizemos um movimento acontecer. Agora está presente em mais de vinte países, incluidos alguns da Europa e da Ásia. A escola de gestão cultural na América Latina é bem diferente da anglo-saxônica, espanhola ou francesa. O que nos diferencia do "pensar a gestão cultural territorial e crítica"? Primeiro, a mestiçagem. Somos um continente mestiço. O outro é o poder comunitário que tem um sentido muito diferente da Europa. Os movimentos comunitários na América Latina são insurgentes, rebeldes. Na Europa, as pessoas querem aprender com a gente; agora existe um caminho inverso. E também existem ideias como a ética ubuntu dos povos africanos, que é uma ética comunitária: eu sou porque nós somos. Disso também nos alimentamos. E, finalmente, outro aspecto importante na gestão cultural na América Latina, e que aplicamos na política de cultura viva comunitária no Brasil, que é a busca de uma cultura que liberte, que potencialize as energias criativas das pessoas, para que a gente se enxergue como sujeito histórico e, portanto, agente da sua própria transformação. CIDADANISTA
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BEM VIVER Revolução dos Baldinhos
Nada se perde, tudo se transforma Como um projeto de gestão de resíduos orgânicos de Florianópolis virou referência nacional para comunidades de todo o país.
por LUIS MILLER de Florianópolis Fotos: Virgílio Ferro
FASE MESOFÍLICA A primeira parte da perda ocorreu no dia 22 de dezembro de 1988, em Xapuri (AC). Foi quando, munido de uma escopeta e fomentado pela raiva do pai, Darci deu fim à vida do ativista ambiental Chico Mendes. Sua morte, contudo, levantou bandeiras de luta por todo o país. Ao mesmo tempo em que seu corpo tombava, o país passava por transformações sociais rigorosas. Era o período da redemocratização do Brasil, mas também um período economicamente sombrio. Com a inflação batendo na casa dos três dígitos e uma fragilidade socioeconômica que mantinha um abismo entre as classes, famílias inteiras se dissolviam, criando bolsões de miséria pelo país. Como num enorme retalho social, centenas de pessoas, aturdidas pelo caos que as assolavam, buscavam um pedaço de chão para restaurar o mínimo da dignidade. Foi nesse período de êxodo que um grupo invadiu um terreno na Florianópolis continental e deu ao local o nome do ambientalista assassinado no Acre. Nasceu então a comunidade Chico Mendes. Se por um lado, abrindo as páginas dos noticiários policiais, a Chico Mendes será uma constante citação de violência urbana, por outro destaca-se por abrigar um dos projetos socioambientais mais reconhecidos do Brasil – a Revolução dos Baldinhos. FASE TERMOFÍLICA Desde o princípio, a comunidade Chico Mendes foi um laboratório de projetos sociais. No começo dos anos 1990, inspirado pelo método Paulo Freire, o educador Donizeti José de Lima, conhecido como Dodô, fundou a Casa Chico Mendes, dando apoio educacional e cultural para jovens e adultos socialmente vulneráveis. Foi sobre essa
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Marquito (de camisa azul ao lado) em atividade com a comunidade, nas dependências do projeto
efervescência social, onde o ativismo político de base semeava a vida das famílias da comunidade, que o jovem Marquito se debruçou, inspirado pelo ideal de justiça social. Sua base: a agricultura urbana como transformação comunitária. Filho de pais camponeses, Marquito, ou Marcos José de Abreu, desde cedo conviveu com a agricultura familiar. Quando estava com dezenove anos, foi estudar naturologia numa faculdade privada. Foi seu primeiro contato com questões como saúde, educação e agricultura. Foi aplicando tatuagem de rena nas praias de Florianópolis para completar sua renda e levado pela curiosidade em montar um sistema de rodízio para as galinhas da mãe que Marquito foi buscar conhecimento e bateu à porta do CEPAGRO (Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo). Ali foi onde ele se respaldou em conhecimento para dar vazão ao ativismo agroecológico. Abandonou o curso de naturologia e foi estudar engenharia agrônoma na UFSC, tornando-se hoje referência em métodos agroecológicos e agricultura urbana. Já no segundo semestre da faculdade, Marquito foi fazer o curso de extensão em
agroecologia. Em 2005, ano em que se formou, sua vida foi ligada à de Chico Mendes e à de Dodô. Naquele enclave, nascia o projeto Tecendo Vidas, com a proposta de fazer compostagem na Escola Estadual América Dutra Machado e nas duas creches do bairro, e também a de montar uma horta comunitária. O intuito era passar conhecimento de que é possível transformar resíduos orgânicos em adubo. Com a morte de duas crianças em outubro de 2008 por lepstopirose, o alerta foi ligado. Uma reunião comunitária que envolveu lideranças da Chico Mendes, Marquito, trabalhadoras do programa Frente Temporária de Trabalho e um médico sanitarista, foi criado o mutirão de recolhimento de resíduos orgânicos na comunidade. Nice e Leni, voluntárias do projeto, deram a ideia de distribuir baldinhos nas residências para coletar todo o resíduo orgânico da comunidade. De balde em balde, de casa em casa, incentivando e conscientizando os moradores, surgiu essa revolução que hoje é reconhecida como tecnologia social. O nome não poderia se encaixar melhor na filosofia de trabalho.
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BEM VIVER Revolução dos Baldinhos
FASE DA MATURAÇÃO “Se você ficar jogando lixo na rua, você está acabando com o nosso planeta. Você tá alimentando os vermes e as baratas.” Este é o trecho inicial do “Rap dos Baldinhos”, música feita pelo Mc Komay e que hoje é cantado pelas crianças do bairro como um hino à revolução no modelo de gestão dos resíduos orgânicos. A Chico Mendes é apenas uma microparcela do rejeito de lixo. Para se ter uma ideia, Florianópolis gasta, por ano, R$ 30 milhões com o aterro sanitário de Biguaçu, destinando quase que à totalidade de resíduos secos e orgânicos para um modelo centralizado e custoso. A Assistência Social do município tem o mesmo custo para manter uma cadeia de apoio às pessoas vulneráveis socialmente. Quase dez anos depois de o projeto ter início, vidas foram revolucionadas. Atualmente, a Revolução dos Baldinhos envolve 120 famílias da comunidade Chico Mendes que, além de se tornarem conscientes quanto à destinação correta do resíduo orgânico, também se beneficiam do produto final da compostagem, alimentando um ciclo que vai de pequenas hortas residenciais a economia no bairro e educação alimentar. Essa base de entendimento da produção alimentar é fundamental para combater as deficiências nutricionais, causadas em grande parte por um sistema que começa numa agricultura convencional, baseada em monocultura, e que fornece alimentos processados nas gôndolas dos supermercados. A Revolução dos Baldinhos cresceu, ganhou o Prêmio de Tecnologia Social do Banco do Brasil em 2013 e, também, um terreno próprio que deu maior autonomia e espaço para a gestão dos resíduos orgânicos. As pessoas envolvidas com o projeto participaram, ao longo desse período, de eventos para ministrar oficinas e palestras, replicando assim o modelo de transformação social comunitária e autônoma. O nós por nós que fez com que a Chico Mendes hoje seja um exemplo para outras comunidades.
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O projeto vai além da questão ambiental e também mobiliza a comunidade pelo aspecto social
BEM VIVER Minha terra, minha casas
Um "Minha Casa, Minha Vida" ecológico, solidário e de base Mutirões de bioconstrução têm acontecido para erguer casas em terreno conquistado por movimento de luta pela moradia
fotos midia ninja
por VITOR TAVEIRA
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cologia e espírito comunitário se encontraram para uma iniciativa da luta por moradia digna para todos. Uma parceria entre o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e a Universidade Alternativa de Permacultura (UniPermacultura) tem permitido erguer casas populares baseadas nas técnicas de bioconstrução por meio de grandes mutirões, iniciados em dezembro do ano passado. As atividades acontecem na Ocupação Povo Sem Medo do Sol Nascente, localizada na Ceilândia (DF), que possui 109 lotes para a construção de casas para famílias sem teto. Os lotes possuem 22 metros de comprimento por 6 de largura, e as casas padronizadas têm 65m². Tia Alzerita, uma ativista de 54 anos, foi a escolhida para ter a primeira casa erguida. Depois de o movimento conquistar o terreno mediante negociação com o governo distrital, a aposta pelo mutirão de bioconstrução atendeu a questões importantes: suprimir a necessidade de contratar grandes empreiteiras e utilizar técnicas ecológicas com muito menos impactos que os da construção civil moderna. Terra, lama, madeira, bambu e outros materiais naturais foram utilizados, permitindo, além de cuidar da natureza, oferecer uma alternativa mais barata para a construção. A ideia é tornar o local um bairro ecológico, acoplando outras iniciativas e tecnologias sustentáveis. “Queremos é ter fossa ecológica, captação de águas das chuvas e energia solar. Contamos com a ajuda de engenheiros e arquitetos voluntários e faremos uma ‘vaquinha’ para a compra de materiais”,
BEM VIVER Retomada no ES
Parceria entre o movimento social e Universidade ocorre na periferia de Brasília
explicou o coordenador do MTST/Brasília, Eduardo Borges, em entrevista ao Centro de Referência em Direitos Humanos do DF. O bairro contará com biblioteca comunitária, playground e paisagismo para tornar o espaço acolhedor para os moradores. “Esse é um momento histórico. Se não pensarmos no design desse acampamento, corremos o risco de haver um processo de ‘favelização’ e não conseguirmos a qualidade de vida que as pessoas sonham”, disse Marcos Ninguém, da UniPermacultura. Além disso, ao promover os mutirões, que já contaram com mais de duzentos voluntários, também se está contribuindo para a capacitação de pessoas para a bioconstrução, que é supervisionada e certificada pela UniPermacultura. Em janeiro, um grupo de artistas e ativistas visitou o local e apoiou a construção das casas. Estiveram presentes o cantor Criolo, a produtora cultural Paula Lavigne, as atrizes Alinne Moraes, Sonia Braga e Paula Burlamaqui, e a líder indígena Sônia Bone Gujajara. A solidariedade e a autonomia são as marcas desse projeto, que realizou uma campanha de doações que arrecadou 25 mil reais para os primeiros passos do projeto. Novas vaquinhas devem ser feitas para contribuir com a compra de materiais para a construção de mais residências e espaços comunitários.
Dez anos de retomadas quilombolas No Espírito Santo, áreas usurpadas para o plantio do monocultivo de eucalipto foram retomadas por comunidades quilombolas, que trabalham para reconvertê-las à agroecologia
por VITOR TAVEIRA
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omeçou em 2007 na comunidade quilombola de Linharinho, em Conceição da Barra, no norte do Espírito Santo. As fileiras de eucalipto eram derrubadas para replantar a esperança. De lá para cá se passaram dez anos, e hoje são dez também o número de retomadas quilombolas no norte do Espírito Santo, a mais recente realizada em 2017. “As retomadas quilombolas são áreas que estão em fase de transição, de reconversão. Algumas levavam mais de quarenta anos de monocultivo de eucalipto, com muito uso de químicos e agrotóxicos. Hoje abrigam famílias produzindo alimento”, explica Joice Nascimento, que vive na retomada de Linharinho, em Conceição da Barra . Integrante da ONG Fase, Beto Loureiro, ex-sindicalista e ex-funcionário da antiga Aracruz Celulose (hoje Fibria), conta que a compra das áreas a partir dos anos 1960 foi feita por meio de fraudes, usando laranjas da empresa, juízes comprados e se aproveitando da falta de escritura das terras pelas comunidades tradicionais que ali habitavam havia séculos. “As comunidades foram perdendo terra ao longo das últimas décadas; agora queremos ganhar, mesmo que seja uma parte, CIDADANISTA
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BEM VIVER Resíduos
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que não seja todo nosso território. Precisamos de um pouco de terra para ter dignidade e recomeçar uma vida roubada décadas atrás”, afirma João Batista Guimarães, do quilombo Angelim I. Apesar dos avanços legais desde 2003 – agora travados pelo governo Temer –, no Espírito Santo, nenhuma comunidade quilombola teve suas terras tituladas até hoje. Porém a luta continua, não só pela titulação, mas também pela recuperação de terras. “A retomada é um fator histórico e de grande importância para as comunidades de nosso território, que vieram como marco da resistência dos quilombolas de Sapê do Norte”, enfatiza Joice. Sapê do Norte é como é chamado o território que engloba diversos quilombos entre os municípios de Conceição da Barra e São Mateus. Eles estimam que hoje há pouco mais de mil famílias das 10 mil que habitavam a região antes da chegada dos megaprojetos vinculados ao eucalipto, petróleo e cana-de-açúcar. Para João Batista, a produção das famílias hoje nas retomadas prova que é possível, sim, recuperar espaços degradados e produzir alimento com diversidade e sem uso de veneno. “Hoje vejo a retomada como um horizonte futuro para os quilombolas. Um horizonte que aponta para a produção de alimento, tirando as comunidades da marginalidade e da miséria em que viviam, dependendo da produção de carvão de resíduos florestais da empresa e outras atividades.”
Economia circular – a produção que não esgota os recursos Em vez de extrair, a solução é colocar os recursos em movimento e, assim, preservar o ambiente. Entenda por que a economia circular – onde tudo que vai, volta – é melhor do que a linear
por SILVANA BRAGATTO Encontro da comunidade quilombola em Conceição da Barra, ES
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geração de resíduos industriais e domésticos vem sendo tratada de forma antagônica entre vários segmentos da sociedade. Enquanto alguns a tratam com indiferença, pensando que o planeta tem espaço e água abundantes, infinitos, outros têm se mostrado muito apreensivos a respeito do tema. Assim, há um embate, de certa forma silencioso, sobre a postura de todos diante do consumo excessivo e até certa sensação de culpa no desejo de consumir produtos. Na verdade, observa-se que os resíduos vêm atingindo níveis alarmantes, contaminando o solo, a água e o ar. Entre 2015 e 2016 a população brasileira gerou um total de 214.405 toneladas de resíduos sólidos diários, sendo, portanto, 1,040 kg/ hab./dia.1 Ora, se cada habitante de nosso planeta produzir essa quantidade de resíduos, estaremos descartando 7,5 bilhões de resíduos por dia!
Imagine se conseguíssemos produzir sem a geração de resíduos, ou melhor, gerando resíduos que voltassem ao sistema produtivo ou ao sistema onde foi gerado, de modo a criar um circuito fechado infinitamente. O que é resíduo torna-se recurso, matéria-prima. É essa a ideia proposta pela economia circular. Ela se contrapõe à economia linear, que tem como princípio extrair/transformar/descartar. Dessa forma, todos os produtos alcançarão, inevitavelmente, o fim de sua vida útil. Em consequência disso, para cada novo produto há necessidade de novas matérias-primas. Na economia linear, em muitos casos, são utilizadas tecnologias end of pipe (fim de tubo), que tratam e controlam os resíduos ao final do processo produtivo, mas temos evidenciado que não está sendo suficiente. Na economia circular, deve-se manter o valor dos materiais de forma que eles possam ser reutilizados na cadeia de produção o maior tempo possível. Assim, os resíduos se tornariam praticamente inexistentes, o descarte final do material seria eliminado. No caso do reaproveitamento de materiais, há uma grande diferença entre a economia circular e a linear. A reciclagem dos resíduos pode ser feita como downcycle ou upcycle. O downcycle, muito utilizado na economia linear, é a reciclagem de materiais caracterizada pela perda de suas propriedades técnicas originais. Isto é, há um rebaixamento da qualidade do recurso no seu uso para o próximo ciclo produtivo. Como assim? A partir do momento que um material compõe um produto, ele se mistura a outros componentes e torna-se muito difícil que volte à sua composição original e retorne ao ciclo produtivo como tal. Por exemplo, na reciclagem das embalagens Tetra Pak é muito difícil separar o alumínio, o plástico e o papel. Desta forma, esses materiais não podem voltar ao processo produtivo original, tendo que ser reutilizados conjugados em um outro produto. Nas camisetas confeccionadas com tecido originado da mistura de PET com algodão, após seu uso, não há como reutilizar o PET no ciclo produtivo e o retorno do algodão ao solo como nutriente; eles são de difícil separação.
Na economia circular, os materiais são reaproveitados através do upcycle, em que as suas propriedades técnicas originais são mantidas. Assim, após o primeiro reaproveitamento, retornam ao mesmo ciclo produtivo ou a outro de maior valor. A ideia é que os ciclos produtivos sejam contínuos. Eles devem ser planejados de forma que seus recursos mantenham a qualidade técnica e sejam reutilizados, eliminando a noção de resíduo já no planejamento do produto. Isso é o que se denomina ciclo técnico, no qual os recursos serão aproveitados continuamente, sem perda de qualidade. Mas os materiais também podem ser recuperados através do ciclo biológico. No ciclo biológico, os produtos são projetados com materiais vegetais ou biodegradáveis, de forma que os resíduos serão facilmente incorporados pelo solo como nutrientes. Como no caso das bioembalagens desenvolvidas sem resinas sintéticas ou produtos tóxicos, confeccionadas através de produtos naturais, cujo ciclo se inicia e finaliza no solo, formando um ciclo contínuo. ECONOMIA CIRCULAR DE SERVIÇOS Entretanto, a economia circular não se preocupa apenas com resíduos sólidos. Ela se aplica, também, a serviços. Troca-se a posse e consequente descarte de um produto por uma associação de produto físico e atendimento de serviço. Na Europa, os carros ficam estacionados 92% do tempo e transportam normalmente 1,5 pessoa por viagem; escritórios são ocupados somente 40%–50% do tempo em um dia de trabalho.3 Aliam-se a essas informações as seguintes indagações: o que para você é mais importante: ter sua roupa limpa ou possuir uma máquina de lavar roupa? Tomar água potável ou possuir um purificador/filtro de água? Ter um aparelho de TV ou o acesso aos seus programas preferidos? Por que, em vez de possuirmos produtos (carros, filtros, aparelhos de TV, escritórios), não obtemos apenas os serviços por eles gerados? É isso o que a economia circular propõe – partilhar, arrendar, alugar. A empresa forneceria ao cliente o serviço, através da “locação” do produto. Por outro lado, os consumidores teriam como benefícios a não necessidade de adquirir um novo produto a cada 40 CIDADANISTA
avanço de tecnologia e o descarte do produto antigo, pois o fornecedor substituiria o seu produto sempre que houvesse uma atualização, o produto antigo retornaria ao processo produtivo para a geração de novos produtos, havendo, portanto, a redução de custos na obtenção de matéria-prima. Na transferência da economia linear para a circular não haveria diminuição de empregos, pois a produção de bens não seria alterada. Haveria apenas a mudança no padrão de consumo do ter por partilhar/alugar. Mas não seria mais caro alugar do que comprar? Não, pois haveria uma maior concorrência, além da não necessidade de adquirir sempre novos produtos e, principalmente, a redução de custos no processo produtivo devido à diminuição na obtenção de novas matérias-primas. A adoção da economia circular traria como resultado na Europa o aumento do PIB em 1,8 trilhão de euros, diminuição em 48% da emissão de CO2, diminuição em 32% do consumo de matérias-primas e aumento de 3 mil euros no rendimento familiar em 20302 A transformação da economia linear para a economia circular necessita do envolvimento do governo, empresas e consumidores. Na área política, deverá haver incentivos para o fluxo circular de recursos, através da prioridade à redução de resíduos. As cadeias de produção deverão ter, cada vez mais, maior entrelaçamento, a fim de reduzir os resíduos, danos ambientais e custos. As empresas deverão incentivar pesquisas, a fim de desenvolver produtos com materiais que possam ser reutilizados na cadeia de produção o maior tempo possível e modelos baseados na locação, partilha e atualização de seus produtos. Os consumidores deverão mudar seu paradigma de consumidor e posse para o de utilizador e o que partilha. Economia circular é a economia do retorno. Tudo o que vai, volta, é reaplicado em um círculo infinito de aproveitamento. Uma economia em que, ao invés de extrair, coloca os recursos em movimento, por isso preserva e respeita o meio ambiente. 1- Disponível em: <http://www.abrelpe.org.br/Panorama/panorama2016.pdf>. 2- Growth Within: A Circular Economy Vision for a Competitive Europe, Ellen MacArthur Foundation, SUN Stiftungsfonds für Umweltökonomie und Nachhaltigkeit) and McKinsey Center for Business and Environment, 2015. São utilizados dados europeus, pois até o momento ainda não há dados consolidados no Brasil.
BEM VIVER Encontro em BHdinhos
BH receberá Encontro Nacional de Agroecologia Dezenas de movimentos e iniciativas se unem na capital mineira para construir debate sobre agroecologia e democracia
por VITOR TAVEIRA
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erca de 2 mil pessoas e centenas de organizações são esperadas para participar do 4º Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), que acontece em Belo Horizonte (MG) entre os dias 31 de maio e 3 de junho. Em tempos de golpes e crise ambiental, o sugestivo lema do evento é Agroecologia e Democracia Unindo Campo e Cidade. Entre os objetivos do encontro está apresentar para setores da sociedade as experiências e benefícios da agroecologia, denunciar o desmonte de políticas públicas e violação de direitos, ampliar as alianças e redes do movimento agroecológicos, aprofundar o debate sobre os sentidos estratégico e político da comunicação e da cultura. O evento trabalha nas perspectivas de diálogo e convergência da agroecologia com o feminismo, a soberania e a segurança alimentar e nutricional, saúde coletiva, economia solidária, direito à cidade e justiça ambiental.
Esses diálogos e interseções serão desenvolvidos por meio de uma programação ampla e diversa, com atividades como debates públicos, discussões temáticas, apresentações culturais, mostra de cinema e a Feira de Sabores e Saberes, reunindo produtos e experiências que existem no país. Lembrando o aniversário de trinta anos da Constituição de 1988, o encontro busca lembrar as conquistas das últimas décadas e analisar o desmonte dos direitos e da democracia no Brasil. “Queremos reafirmar os sentidos da democracia e situar a agroecologia no campo de disputa por uma nova sociedade e promover um diálogo entre o campo e a cidade. Vivemos tempos de desmonte das políticas públicas, mas são tempos também de resistência e de renovação de paradigmas, de afirmação de iniciativas de autogestão e renovação de utopias”, diz a carta de convocatória do IV ENA. As mobilizações para o ENA-BH vêm sendo feitas nos meses prévios, com atividades sendo realizadas em diversas partes do Brasil, sob inspiração da antiga pergunta que se mantém atual: por que interessa à sociedade apoiar a agroecologia? O local de realização do encontro nacional também é fonte de inspiração, levando em conta a relevância e o pioneirismo da região metropolitana de Belo Horizonte para as experiências de agroecologia urbana no Brasil, contribuindo assim para estreitar o diálogo entre o campo e a cidade, para a ocupação de espaços públicos, trabalho comunitário, mobilização das juventudes e luta pelo direito à cidade. O encontro é organizado pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), que reúne dezenas de movimentos e iniciativas agroecológicas do Brasil, incluindo redes regionais, movimentos sociais do campo, da floresta, das águas e das cidades, fóruns, articulações, organizações não governamentais e outras entidades. CIDADANISTA
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SEÇÃO MOVIMENTOS Matéria #ocupapolítica
Ocupemos Encontro realizado em Belo Horizonte uniu lutas e conclamou todos para ocupar a política. O evento aconteceu dentro de uma ocupação popular e deixou um recado final: não adianta só votar, tem que ser votado.
por IVAN ZUMALDE de Belo Horizonte
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OCUPAÇÃO OCUPADA O #ocupapolítica organizou as atividades dentro da ocupação Carolina Maria de Jesus, (MBL) no centro de BH, onde vivem mais de 200 famílias. O encontro reuniu centenas de ativistas entre 8 e 10 de Dezembro de 2017
Conheça os ocupantes
A Cidadanista conversou com seis nomes que estão ocupando – e mudando – a cara da política nacional
Ed Marte
LGBT OCUPA Educador popular e atuante na luta LGBT, Ed Marte, 49 anos, foi candidato do movimento Muitas pela Cidade que Queremos. Obteve 2.190 votos para vereador de Belo Horizonte pelo PSOL em 2016. Não se elegeu, mas duas companheiras sim, e elas levaram a causa para dentro do mandato coletivo. Hoje, ele atua na "Gabinetona", o gabinete formado com os candidatos que não foram eleitos, mas fizeram parte da equipe originada na candidatura coletiva. Ed tem esperança que as pessoas ocupem a política – "precisamos colocar os corpos nas lutas e nas instituições do poder" – e afirma que a luta dele é a de todos e de todas que representam o coletivo. "Votou em um(a) , votou em todos(as)", finaliza.
Avelim
INDÍGENA OCUPA "Queremos indianizar." A militante da causa indígena, da mulher e da mãe Terra também foi uma das postulantes à Câmara de Belo Horizonte. Ela ocupa a política com sua identidade e voz. Avelim tem 37 anos e faz parte do mesmo mandato coletivo de Ed Marte. Fez campanha pela cidade e conquistou 642 votos. "Andei por toda cidade durante todo o mês da campanha." Assim como Ed, ela não está institucionalmente eleita, mas a luta dos índios está no mandato que elegeu dois dos doze candidatos do movimento coletivo. "Eu luto pelos índios, eu luto por todos", afirma a socióloga, que faz parte da coligação frente de Esquerda BH Socialista, com PSOL e PCB. Hoje, a câmara de BH tem índio. CIDADANISTA
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MOVIMENTOS #ocupapolítica
Xum Xum
QUILOMBOLA OCUPA Elizeu da Silva, ou Xum Xum, como é conhecido, é descendente de escravos refugiados do Quilombo Capão Negro, em Várzea Grande (MT). Segundo registros históricos, a comunidade foi formada por escravos fugidos de Cuiabá e vindos da Guerra do Paraguai. Entre perdas de terras e expulsões, o quilombo resiste. É habitado por 180 famílias quilombolas e foi reconhecido em 2009 pela Fundação Palmares pelo seu valor histórico na cultura afro-brasileira. Xum Xum é de poucas palavras, mas quando fala é categórico. "Tudo está ligado à política." Com cinquenta anos, ele representa a força de seus ancestrais por direitos e reconhece a importância da luta atual em ocupar a política. "Tem que mudar a sociedade", finaliza.
Cristina Terribas
MULHER OCUPA "Estamos construindo a democracia feminista", explica Cristina, 56 anos, ativista da partidA. O grupo, que funciona como um partido-movimento, tem como objetivo impulsionar mulheres feministas para ocupar os governos. O movimento, que está presente em mais de dezesseis cidades do país, não busca ser tendência em nenhuma legenda partidária, mas influencia diretamente as pautas de muitos mandatos. A atuação também se dá pela base, promovendo reuniões abertas, atos de resistência e manisfestos em defesa das mulheres e causas sociais. Dentre as atividades estão o Cine Debate TRANS, realizado em São Paulo, e as diversas mesas de debates sobre aborto, estupro e causas da mulher. 44 CIDADANISTA
Cida Falabella
CULTURA OCUPA Com quarenta anos de militância nos movimentos culturais da cidade, Cida Falabella, 58 anos, tem um currículo extenso. Foi conselheira municipal de Cultura e participou ativamente da formação de grupos teatrais e espaços culturais na cidade. Eleita vereadora pelo mandato coletivo do Muitas pela Cidade que Queremos, Cida teve 3.454 votos. A vereadora do PSOL quer "transbordar os partidos" e "aumentar o diálogo" com a sociedade. Ela, que participou da ocupação do prédio da Funarte em Minas Gerais, em maio de 2016, contra o governo Temer, hoje ocupa a política na "gabinetona" ao lado da também vereadora eleita Áurea Carolina. As duas levam adiante o sonho de uma "cultura que atravesse nosso modo de vida".
Ana Maria
JUVENTUDE OCUPA Ana Maria, 27 anos, ajuda as pessoas a ocuparem com dignidade os seus territórios. Tímida, mas com a firmeza de quem acredita no que faz, diz com entusiasmo sobre sua rotina de trabalho nas hortas comunitárias da Izidora, um terreno ocupado na periferia de Belo Horizonte. "Ensinamos a autogestão para os moradores", diz Ana, que faz parte do Brigadas Populares, movimento que tem como objetivo a implantação de "Comunas", comunidades organizadas por meio de educação popular e economia solidária. "Tivemos um desfile" na ocupação, temos nosso "cursinho popular" e ainda o centro de cultura popular Zoca, fala a orgulhosa Ana. Para ela, o significado de ocupar é também o de resistir e transformar. CIDADANISTA
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MOVIMENTOS Eleições presidenciais colombianas
A esquerda rompe o ciclo
Surpresa da Colômbia vem da
esquerda (e não das Farc)
Enquanto as atenções ficavam voltadas para o agora partido Farc, dois candidatos de esquerda despontavam nas pesquisas. O líder e ex-comandante das Farc, Rodrigo Londoño deixou a disputa
da Colômbia
Com menos de 2% das intenções de votos e com problemas de saúde, Timochenko deixou a corrida presidencial
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s ventos de rechaço ao sistema político e de imprevisibilidade eleitoral que estão varrendo a América Latina também sopram na Colômbia. Com eleições presidenciais marcadas para 27 de maio (as legislativas para deputados e senadores foram no dia 11 de março), o pleito deste ano apresenta duas características até agora dissonantes em relação ao histórico político colombiano: dois candidatos progressistas despontaram nas pesquisas de opinião para a presidência, e as Farc, que deixaram as armas há quase um ano e entraram para a vida civil pela porta da política, enfrentam dura resistência para ganhar corações e mentes. Pesquisa eleitoral divulgada no país pelo Conselho Nacional Eleitoral na última semana de fevereiro mostrava que o candidato Gustavo Petro, apoiado por uma aliança de pequenos partidos de esquerda, levava a dianteira na corrida com 22% dos votos. Sergio Fajardo, que já foi prefeito de Medellín e governador do estado de Antioquia – o mais rico do país –, estava em segundo lugar com 16% das intenções. Fajardo, não vinculado a nenhum partido (na Colômbia é possível candidaturas avulsas, desde que alcancem mais de 500 mil assinaturas dos cidadãos), é considerado
fotos divulgação
por RODRIGO PEDROSO
CIDADANISTA
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MOVIMENTOS Eleições presidenciais colombianas
de centro, mas formou aliança com partidos de esquerda. Enquanto o lema de Petro, tido por analistas como a surpresa eleitoral até o momento, é de um chamado para políticas progressistas espelhadas na social-democracia nórdica, Fajardo se apoia em parecer um candidato que foge do binômio guerra ou paz, que deu o tom da política colombiana nas últimas décadas. Se Gustavo Petro, prefeito da capital Bogotá em 2011, aposta na política como a capacidade de realização de políticas públicas para a mudança de algumas estruturas do país, Sergio Fajardo, apesar de também não ser um outsider, se declara um liberal que tenta se distanciar da tradicional reprovação colombiana à classe política: costuma dizer em seus comícios que “não é de direita, nem de esquerda”. Outra tática do político antioquenho é apresentar um discurso que foge aos temas que sequestram o debate público nacional da Colômbia: violência, narcotráfico, guerrilha e paramilitares. Nesse sentido, ele lembra o senador brasileiro Cristovam Buarque (PPS), que concorreu à presidência do Brasil em 2006 com um só tema: a educação como a salvação dos males nacionais. Petro sempre foi ligado à esquerda e chegou a ser guerrilheiro do grupo M-19 quando era jovem. Com a proximidade do primeiro turno para o final de maio, é cedo para dizer quem vai seguir liderando os votos – seja da esquerda ou da direita. O resultado das eleições legislativas do último dia 11 de Março foi benéfico para o candidato de direita Ivan Duque e seu partido ganhou quase 1/3 das cadeiras. Vale lembrar que a abstenção colombiana nas urnas costuma ser alta, ao redor de 30%. Tampouco é difícil mensurar agora os motivos que levam os colombianos o declararem voto em dois candidatos com programas progressistas. A história colombiana indica que o poder do establishment é estratificado e violento. A política no país é descentralizada, e os candidatos locais têm maior influência nos votos, seja pela compra deles, seja pelo apelo ao conservadorismo reinante no campo e nas cidades pequenas. Ambos, Petro e Fajardo, não possuem o que os locais chamam de maquinaria política, e o segundo turno deverá ser entre um deles e um candidato dos conservadores. Desde que foi proclamada a República, após a independência do julgo dos espanhóis em 1810, nunca houve na história colombiana um governo consi48 CIDADANISTA
Eleitores contrários queimam a banderia do partido FARC. Rejeição ainda é grande.
derado popular, como o de Perón na Argentina nos anos 1950 ou o de Getúlio Vargas no Brasil entre 1930 e 1945. O país também passou imune, mergulhado nos próprios problemas, pela onda que colocou no poder governos de esquerda na América do Sul na década passada, como Lula no Brasil, os Kirchner na Argentina, Bachelet no Chile e Pepe Mujica no Uruguai. O poder presidencial colombiano sempre pendeu entre a direita e a centro-direita: os últimos três presidentes – Andrés Pastrana (1998-2002), Álvaro Uribe (2002-10) e Juan Manuel Santos (2010-18) – vieram de famílias da política tradicional. Os três tiveram familiares que já haviam sido presidentes da Colômbia no século passado. Ivan Duque, do Centro Democrático, e German Vargas Lleras, do Cambio Radical, congregam a força da direita. Ambos representam o status quo colombiano. O hoje senador Duque – que subiu nas pesquisas e encostou em Petro – apesar de apresentar um discurso mais moderado, é apadrinhado pelo ex-presidente e atual senador Álvaro Uribe. Seu partido, o Centro Democrático, brincam alguns colombianos, não é de centro nem democrático. A ala mais extrema usa como slogan “não deixe o país na mão do castro-chavismo”, como discurso para combater sobretudo Petro. Uribe também tem relações estreitas com a emergência e solidificação dos paramilitares na Colômbia. Seu governo, apoiado no mote “mão dura e coração grande”, foi responsável pelo aumento da militarização do país e de um combate intenso com as guerrilhas, como as Farc. O triunfo lhe rendeu status de cacique político colombiano. Em Antioquia, berço do conservadorismo colombiano, não é difícil escutar que se votará “em quem o dr. Uribe mandar”. Vargas Lleras, por sua vez, é o atual vice-presidente. Da mesma maneira que o PT polarizou a política brasileira, o acordo de paz com as Farc rachou a sociedade colombiana. Juan Manuel Santos, mandatário do país até agosto, conta com aprovação baixa até para padrões latino-americanos: 14% em janeiro. Por isso, Lleras, que tenta vender a imagem de alguém
CORRIDA PRESIDENCIAL GUSTAVO PETRO E SERGIO FAJARDO CONGREGAM A FORÇA PROGRESSISTA E SIMBOLIZAM O AVANÇO DA ESQUERDA NO PAÍS GUSTAVO PETRO
IVAN DUQUE
SERGIO FAJARDO
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FONTE: Polimétrica (Março/2018)
que sabe como funciona a política ao contrário de seu adversário pelo voto conservador Ivan Duque, desvencilhou-se do governo Santos e adota uma postura crítica ao acordo de paz. A maquinaria política colombiana joga a favor de Duque e Lleras. As Farc, que há um ano começaram a deixar as armas, suspendeu temporariamente em 8 de fevereiro a campanha política nas ruas. O partido enfrentou dificuldades para realizar comícios e culpa o governo por não dar a segurança necessária e os adversários da direita por pagarem a manifestantes para gerarem conflitos nas aparições públicas de seus líderes. Ainda que o Estado colombiano venha falhando em alguns pontos do acordo assinado em Havana, o que se assistiu não foi fruto apenas de adversários políticos. Na primeira semana de fevereiro, nas cidades de Armênia e Cáli, o ex-candidato presidencial (ele abandonou a disputa em Março) e líder do partido, Rodigo Londoño “Timochenko”, foi vaiado e cercado por pessoas enquanto caminhava pelo centro. Antes, no final de janeiro, além das vaias e insultos, jogaram ovos no então candidato em Yumbo. Um dia antes, em Florencia, retaguarda histórica da guerrilha, moradores se reuniram para protestar contra a visita do candidato ao Senado Ivan Márquez. Márquez nasceu em Florencia. Moradores da região se reuniram em um ginásio público onde candidato ao Senado faria um comício levando cartazes com os dizeres “Fora assassinos,
fora guerrilheiros”. Kyle Johnson, especialista do think tank The Crisis Group, afirmou a Silla Vacía que os ex-guerrilheiros superestimaram a acolhida que teriam em seus redutos que controlavam antes do acordo. Para o jornal El Colombiano, o cientista político Miguel Silva comentou que ainda não há, por parte da sociedade colombiana, a aceitação das Farc como atores políticos. “O que incomoda a muitos colombianos é o fato de eles fazerem política sem terem sido julgados antes”, afirmou. Silva se refere à Justiça Especial de Paz, um mecanismo que irá apurar e julgar crimes cometidos por todos os lados envolvidos nos 54 anos de guerra entre a guerrilha e o Estado. O processo, entretanto, levará anos. O resultado de uma guerra tão longa e da degeneração do combate é que Timochenko nunca passou dos 2% de intenções de votos desde que começaram as pesquisas. Ainda assim, o acordo de paz prevê que as Farc terá garantidas dez cadeiras no Senado e no Congresso colombianos, de um total de 280. As eleições de 11 de março para o Legislativo não deram mais assentos ao novo partido. Pelo que tudo indica, as Farc entrarão na política como um partido com pouca representação de votos e de cadeiras no jogo político. Se este texto até agora não comentou sobre as propostas que diferenciam os candidatos entre si é porque elas são escassas. A paz, a “ameaça” de a Colômbia se tornar uma “nova Venezuela” caso os conservadores não sejam eleitos, e a descrença generalizada na política tem feito com que essa campanha à presidência de 2018 não traga para a mesa debates nacionais mais profundos e com diversidade de temas. A violência é tradicionalmente o meio pelo qual os colombianos resolvem suas desavenças políticas, e o status quo tem como característica enfocar-se em enfretamentos pessoais em vez do debate de ideias. Desde o começo da corrida, no ano passado, seis militantes das Farc foram assassinados no interior do país. Nada novo em um país onde adversário político é sinônimo de inimigo: nos últimos trinta anos, 175 prefeitos, 543 vereadores, 28 deputados e quatro candidatos presidenciais foram assassinados segundo o Centro de Memória Histórica. Para o nível de violência política que o país apresenta, o fato de as Farc ter o rechaço eleitoral dos cidadãos colombianos representa um salva-vidas aos seus membros. CIDADANISTA
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CIDADÃO Especial economia
Singapura além do mito fotos depositphotos
Poderia o pragmatismo econômico de Singapura, que desafiou as teorias polarizadas do século XX, servir como bússola para o desenvolvimento no século XXI? por VINICIUS GOMES MELO
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transformação de Singapura de uma cidade portuária colonial para estar presente em nove entre dez das listas sobre países mais ricos e desenvolvidos do mundo assemelha-se a uma espécie de conto de fadas econômico. Se apenas meio século atrás suas ruas e vilarejos eram dominados pela pobreza e a malária, hoje Singapura é um dos maiores polos financeiros e tecnológicos do mundo, cujas luzes noturnas fazem o turista sentir que está em Las Vegas – de fato, muitos de seus habitantes não disfarçam o sorriso diante da comparação. Invariavelmente, a história de como isso aconteceu envolve a palavra “milagroso”. Entretanto, a economista Linda Lim, professora em Michigan e de nacionalidade cingapuruense, é uma das primeiras a refutar essa ideia. De acordo com ela, muito antes de o país alcançar sua independência, já era um bem estabelecido hub comercial e financeiro no Sudeste Asiático e Império Britânico, o segundo lugar mais rico do continente e com um dos portos mais movimentados do globo – o que certamente não fez mal algum ao país recém-nascido. Outra teoria rejeitada pela economista é a de que o sucesso de Singapura se deve à sua política econômica liberal. Já em 1983 – em tempos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan –, a professora Lim afirmava que “enquanto Singapura é de fato uma história de sucesso do desenvolvimento capitalista, isso não significa que seja uma história de sucesso do livre-mercado”, escreveu Lim em uma dissertação intitulada O sucesso de Singapura e o mito da economia de livre mercado.
SINGAPURA
População: 5,607 milhões (2016) PIB (nominal): US$ 294 bilhões (em 2015) PIB per capita: US$ 54.200 (em 2015) IDH: 0,925 – muito elevado Regime declarado: República parlamentarista
Em seu livro Chutando a escada, o economista sul-coreano Ha-Joon Chang parece ecoar a singapurense: “Se você ler apenas publicações como The Economist ou The Wall Street Journal, só ouvirá sobre a política de livre-comércio de Singapura e de sua boa acolhida ao investimento estrangeiro. Isso pode fazê-lo concluir que o sucesso econômico do país prova que o livre-comércio e o livre mercado são os melhores sistemas para o desenvolvimento econômico — até que você fica sabendo que quase a totalidade das terras em Singapura pertence ao governo, 85% da moradia é fornecida por uma agência governamental, o Conselho de Desenvolvimento Habitacional (HDB, sigla em inglês), e 22% da produção nacional vem de empresas estatais (a média internacional é cerca de 10%). Não há nenhuma teoria econômica — seja neoclássica, marxista, ke-
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Cambridge university
MÃO FORTE DO ESTADO Muito antes do estreito de Malaca ser disputado pelas potências europeias na era das navegações, aquelas águas que serviam de conexão entre os oceanos Índico e Pacífico já eram singradas por antigos mercadores árabes, africanos, persas e indianos, a fim de acessarem os mares interiores do Sudeste Asiático até a China. Ao longo dos anos, o contexto econômico de Singapura passou por diversas fases – de posto comercial da Companhia das Índias Orientais à colônia britânica, à parte integrante da Malásia, até sua total independência política em 1965. Mas além da privilegiada localização no cruzamento vital de seculares rotas marítimas e da infraestrutura e instituições desenvolvidas pelas autoridades coloniais – o que muitos acadêmicos locais afirmam ter sido benéficas –, foram as decisões políticas no pós-independência que mais intrigam e fascinam os estudiosos há décadas, e certamente onde reside o mérito de Singapura, uma vez que elas independem de qualquer determinismo geográfico. Lee Kan Yew foi a personificação desse sucesso, quando assumiu o comando, ainda em 1959, do pequeno território que servia de porto colonial na ponta da península malaia decidido a transformar o futuro do pequenino país. Desde o início, sob sua mão forte, o Estado interviu na economia singapurense protegendo sua indústria enquanto criava agências para atrair o investimento estrangeiro. Isso, porém, foi combinado com diversas políticas sociais, que semearam o solo para o crescimento de Singapura florescer. A mais famosa entre elas talvez tenha sido o HDB, que, se em um primeiro momen-
O economista sul-coreano Ha-Joon Chang, da Univesidade de Cambridge
"O Brasil está experimentando uma das maiores desindustrializações da história da econonomia" Recentemente, o economista criticou o rumo das políticas brasileiras. Ele é defensor do protecionismo para os países emergentes
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ynesiana ou o que for — capaz de explicar o sucesso dessa combinação de livre mercado e socialismo”. Realmente, poucos países no globo conseguem ser louvados simultaneamente por ambos os espectros do pensamento econômico. Porém, entre argumentos e contra-argumentos, ficam os fatos: o sucesso capitalista de Singapura nunca derivou da participação mínima do Estado. Pelo contrário, ele sempre foi um de seus atores mais engajados, agindo tanto como regulador quanto como investidor na economia do país. Ou seja, como resume Lim: “O espetacular sucesso econômico de Singapura se deve muito mais ao ‘Braço Longo’ do intervencionismo estatal do que à ‘Mão Invisível’ do livre mercado”.
Lee Kan Yew
to serviu para controlar a crise imobiliária e a falta de moradia para a população, passou a oferecer preços acessíveis, incluindo locação social a partir de 26 dólares singapurenses, com lojas de atendimento que auxiliam em caso de reparos, direito à escolha do piso e metragens que vão até 130 m2. O investimento na saúde pública e em educação de qualidade aumentou a produtividade e a qualificação de cidadãos, especialmente de cidadãs, pois ao realizar uma vigorosa campanha de planejamento familiar para o controle de natalidade no diminuto país, o governo acabou por aumentar exponencial-
ISEAS-Yusof Ishak Institute
mente a participação da mulher no mercado de trabalho de Singapura. “A habilidade do Estado em se organizar de maneira eficiente permitiu que ele fizesse a ‘parte básica’ de forma correta com uma velocidade incrível e uma reação política adversa limitada. Ao entregar rapidamente uma boa infraestrutura, baixa inflação, equilíbrio fiscal, estabilidade política e baixa corrupção, fez com que Singapura superasse países vizinhos e se tornasse o local preferido para ser a sede regional de multinacionais”, resumiu Lim. Todavia, contrariando o que todos gostaríamos de ouvir sobre o sucesso de Singapura, ele dificilmente poderá ser reproduzido por outros países em desenvolvimento, uma vez que foi necessária uma série de políticas públicas integradas que contemplou os espectros econômicos, sociais e culturais. Além disso, como aponta a professora, não foram apenas as “políticas certas”, mas também uma série de condições iniciais favoráveis, tanto doméstica quanto internacionalmente. “Assim, a capacidade de tal para outros países é limitada, uma vez que poucos, quiçá um sequer, poderia (ou desejaria) reunir e implementar tal conjunto de políticas públicas complexas e interligadas sob a guisa de um Estado forte e centralizado cujo poder político não se modificou por quase meio século”, afirma. E de qualquer maneira, eles próprios parecem ter exaurido sua fórmula e têm novos desafios à frente. Singapura sempre buscou fazer valer suas vantagens comparativas no que tange à localização, logística, infraestrutura, política fiscal e regulatória, a fim de criar um ambiente mais do que amigável para os negócios – afinal, o comércio está na gênese de Singapura –, tornando-se assim um polo magnético
"A habilidade do Estado em se organizar de maneira eficiente permitiu que ele fizesse a 'parte básica' de maneira correta com uma velocidade incrível e uma reação política adversa limitada" Professora Linda Lim
como centro financeiro global. Não é à toa que muito dos problemas que o país hoje possui são os mesmos das economias desenvolvidas no Ocidente, como áreas urbanas densas, baixa taxa de natalidade, inflação e desigualdade econômica crescentes, mobilidade social reduzida, declínio na qualidade dos serviços públicos, sem mencionar seu limitadíssimo espaço físico. Além disso, após décadas de crescimento quase ininterrupto, a economia singapuruense depende cada vez mais da mão de obra e do capital estrangeiro. Para Lim, o governo deveria finalmente “adotar as políticas sugeridas pelos economistas locais que advogam pela limitação da dependência laboral estrangeira e aumentar os subsídios sociais para seus cidadãos, mesmo que isso signifique desacelerar o crescimento do PIB numa ‘reestruturação dolorosa’”. Todavia, como no passado, o pragmatismo da política econômica de Singapura continua sendo sua maior marca, e o próprio Estado reconhece-se como o responsável pela situação em que o país se encontra. Para todos os efeitos, certamente poucos ousariam dizer que eles não encontrarão um novo caminho para o sucesso. CIDADANISTA
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O outro lado da moeda: bancos comunitรกrios 54 CIDADANISTA
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O Banco Palmas foi o primeiro dos 113 bancos comunitários do Brasil. Nos detalhes, algumas das cédulas produzidas pelo banco
“Quem fez mais mal ao mundo: os bancos, as guerras ou a Igreja?”, disparava Antônio Abujamra ao seu convidado após a sabatina de provocações no programa homônimo transmitido de 2000 até 2015 pela TV Cultura. por EUDES CARDOZO
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esde 1171, bancos possuem um papel central na estrutura de dominação. Em sua gênese e por sua natureza pecuniária, os bancos são um dos pilares das sociedades capitalistas. Nascem da necessidade de mercadores de não transportarem grandes quantias de moedas e/ou mercadorias. São em essência instituições superavitárias. Casas da moeda, casas de custódia de moeda e casas da ordem financeira. De natureza exploratória e excludente, bancos possuem um dialeto seu, idioma próprio e propositalmente distinto do vocabulário popular. Um banqueiro poderia chamar de “arrendamento mercantil”, mas utiliza o termo “leasing”; um jogo de azar pode ser chamado de cláusula “del credere”, corresponde ao instituto ou previsão da parte contratante ou representada de descontar os valores de comissões ou vendas do representante comercial na hipótese de a venda ou de a transação ser cancelada ou desfeita. E se um banco, sim um banco, dialogasse diretamente com os produtores em linguagem
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"Situações de pobreza são, via de regra, situações de empobrecimento" Joaquim de Melo
tórico de lutas das comunidades onde os bancos se instalam é o que dá poder ao movimento. O potencial organizativo, a solidariedade, a atuação cidadã e a iniciativa popular frente ao descaso do poder público são o elo entre as agências de bancos comunitários espalhadas de norte a sul do país. Trinta anos antes da inauguração do Banco Palmas, o pioneiro e genitor do movimento, os moradores do Conjunto Palmeira organizaram-se em mutirões para o rearranjo e a realocação de sua vida. A urbanização da hoje turística Fortaleza retirou comunidades de pescadores da orla e os empurrou para o território onde estes, organizados, constituiriam o conjunto. Das organizações colaborativas de moradores surgiu a Asmoconp (Associação dos Moradores do Conjunto Palmeira). Ao sudeste, do lado sul do mapa, fundada em 1987, a UPM (União Popular de Mulheres de Campo Limpo e Adjacências), é de onde brota o Banco Comunitário União Sampaio. O paralelo “associações de moradores” é o pano de fundo e ponto de convergência nos projetos. Hoje é também um dos critérios para a abertura de novas agências para a Agência Brasileira de Bancos Comunitários. Produto da união de moradores de comunidades segregadas, os bancos comunitários de A moeda física deu lugar a um sistema digital
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simples, decodificada e humilde, humildade na concepção de Clarice Lispector, segundo a qual: “Quando falo em ‘humildade’, refiro-me à humildade no sentido cristão (como ideal a poder ser alcançado ou não); refiro-me à humildade como técnica. Virgem Maria, até eu mesma me assustei com minha falta de pudor; mas é que não é. Humildade como técnica é o seguinte: só se aproximando com humildade da coisa é que ela não escapa totalmente”. (A legião estrangeira) E se um banco tivesse como público-alvo e ofertasse crédito aos desacreditados? E se uma agência bancária, ao estabelecer seu limite de empréstimos, consultasse a adimplência do creditado junto aos seus vizinhos? E se além do real e, com o mesmo poder de compra da moeda nacional, comunidades excluídas dos grandes centros urbanos possuíssem uma moeda local que evitasse, por sua vez, a fuga de capitais dessas regiões para os centros de consumo tradicionais? Avisem aos anarquistas que isso se tornou possível aqui nos trópicos, em um sistema perto/ distante do mutualismo e com ideias tupiniquins e moeda própria. Os moradores do Conjunto Palmeira, na periferia de Fortaleza (CE), hoje realizam suas transações comerciais utilizando o palma. No açougue, na floricultura e em diversos outros estabelecimentos comerciais do Jardim Maria Sampaio, distrito do Campo Limpo na Zona Sul de São Paulo, milhares de consumidores podem pagar suas compras com o sampaio. Sampaios e palmas são duas das mais de cem moedas sociais em circulação nas transações comercias do país. A emissão da moeda (lastreada ao real e restrita ao consumo local) está a cargo de um BCD, Banco Comunitário de Desenvolvimento, gerido pela comunidade. Os bancos comunitários oferecem também operações de crédito em três modalidades de empréstimos, funcionam como postos fiscais e agências de fomento à microempreendimentos locais. Por trás da história da moeda social está a do engajamento de comunidades segregadas e excluídas. Se a moeda social está lastreada ao real, o que confere peso às iniciativas “bancárias” é o his-
Joaquim criou o Banco Palmas há 20 anos na periferia de Fortaleza
desenvolvimento, em processo dialético, se unem em uma rede nacional espalhada em vinte estados, noventa municípios, contando com 113 agências. A ECONOMIA IMPLICADA De acordo com Joaquim de Melo, um dos idealizadores do Banco Palmas, “situações de pobreza são, via de regra, situações de empobrecimento”. A fuga de capitais, a ausência do poder público, o descaso e a falsa percepção de democracia acentuam esse quadro. Os moradores do Conjunto Palmeira descobriram, através da solidariedade e da luta, mais que seu potencial organizativo. Descobriram também seu potencial produtivo e imaginativo. O Banco Palmas é um dos produtos da mobilização dessas pessoas. Mas não o único. No Conjunto Palmeira, a associação de moradores, fortalecida e creditada junto à população, oferece cursos de microeconomia, oferta formações de agentes para os próprios bancos, mas, sobretudo, inclui e convoca o cidadão à cidadania. Dentro das necessidades específicas de cada região, toda agência fomenta não só o comércio e a circulação de valores monetários, mas fomenta a economia não financeira, cidadã. “O importante não é ter mais dinheiro. É saber o que ele pode fazer por você. A provocação foi feita pelo HSBC em 2012, dois anos antes de anunciar o fim de suas operações no Brasil. Foi também a descoberta das associações de moradores que conseguiram dar um nó no sistema bancário, utilizando de sua técnica aplicada por outros meios, em outros meios. Que, no fim das contas: “Dinheiro é só dinheiro!”.
Os limites e entraves das associações e bancos comunitários são os limites de nossa sociedade: burocracia, lentidão das agências nacionais reguladoras (quando não sua total paralisia), entraves jurídicos legais e controle rigoroso do Banco Central. No tocante à economia, a "economia" de outro jeito é o que propõem os bancos comunitários. Comunidades inteiras com concordata aberta pelo poder público demonstram ao seu modo que há jeito, e outros jeitos para o desarranjo do mundo; demonstram em números como o sistema de trocas pode ofertar mais-valia social. Isso é de fato um problema, tanto para os financistas quanto para os especuladores. Quanto às negras/ pardas almas postas no vermelho, pelo Estado e o poder financeiro, estas seguem demonstrando que há outro e outros jeitos. QUANTO À REVOLUÇÃO? A revolução requer teorias revolucionárias, mas carece de práticas. Práticas revolucionárias. E como bem disse o trem de Solano Trindade: “Tem gente com fome de comer!”. “Todo mundo tem fome de tudo no mundo todo. É! Ter fome é o nome do mundo. O povo tem nome pra tudo e o mundo tem fome de novo” (Froid, Negro é Foda).
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POLÍTICA Sumário
Entrevistas EXCLUSIVAS
Renovação, mandatos, e eleições
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Reunimos quatro lideranças políticas de diferentes partidos para fazer uma radiografia do campo progressista. Com a palavra:
SÂMIA BOMFIM
A vereadora guerreira e socialista de São Paulo
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PSOL
TARSO GENRO
O emblemático político do Partido dos Trabalhadores no RS
ZÉ GUSTAVO
O jovem do interior de SP conta o que viu em Brasília
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REDE
LARISSA GASPAR
A mulher que luta contra a maré na Câmara de Fortaleza PPL
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fotos reprodução/divulgação
PT
POLÍTICA Entrevista
SÂMIA
BOMFIM Uma das vereadoras mais combativas de São Paulo, a feminista e socialista Sâmia, descreve seu primeiro mandato e fala da luta para enfrentar preconceitos na Câmara Municipal
por IVAN ZUMALDE
Como é ser vereadora de São Paulo? Está gostando da experiência do mandato? É muito desafiador. A Câmara de São Paulo é bastante conservadora e há décadas é dominada por figuras que representam a elite econômica que comanda a cidade. Minha ideologia política – sou socialista, feminista, acredito na organização e mobilização popular – é muito diferente da maioria dos demais parlamentares. E o peso do machismo e do preconceito comigo pelo fato de ser jovem também é relevante. Mas estou gostando muito da experiência, pois o mandato é um instrumento importante para vocalizar demandas sociais e dar visibilidade para uma lógica política diferente da tradicional. Já entendeu como a máquina funciona? Eles a ouvem mais agora, dentro, ou quando estava do lado de fora? Todo dia é um novo aprendizado, desde as questões burocráticas às descobertas do “jogo da política”, que se expressa pouco às claras, mas é construído em bastidores. Confesso que quanto mais entendo como funciona, menos gosto daqueles que defendem o “poder” como atualmente é constituído. Ainda que não queiram me ouvir, me ouvem muito mais hoje, com certeza. Essa é uma das vantagens
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dos mandatos populares. Mas, se não for acompanhado de apoio do lado de fora, vão te ouvir, mas não vão te escutar. Como estão seus projetos de campanha sobre as causas da mulher e da periferia? A maioria das pautas e projetos de lei tem esse conteúdo. No primeiro ano de mandato encaminhamos mais de cinquenta. De todos, porém, consegui ter três aprovados, enquanto vereadores da base têm bem mais. Mas muitas vezes esses projetos se expressam em outras ações que não projetos de leis – atividades, reuniões com o Poder Executivo, manifestações populares, conteúdo nas redes sociais, atuação em plenário, instrumentos legislativos etc. E através deles conseguimos força para pautar nossas ideias, ainda que haja boicote e resistência. Como é exercer um dos mandatos mais combativos ao governo Doria? Qual o resultado de tal resistência? (O prefeito acaba de deixar a prefeitura para concorrer ao governo do Estado) Por um lado, é claro que há menos espaço para os mandatos combativos e de oposição desenvolverem suas pautas. Por outro, cumprem um papel fundamental de fiscalização e independência. Poder opinar e apontar saídas diferentes das de Dória é fundamental, pois este governo é péssimo: autoritário, privatista, antipovo, higienista. Precisamos avançar em muitos aspectos, mas sentimos que cumprimos bem nosso papel quando, por exemplo, Dória me despreza publicamente. Isso é sinal de que estamos no caminho certo. Você foi eleita com o apoio de um movimento de renovação política – como a bancada ativista. Como será em 2018 e o que diria para quem quer ocupar a política? A Bancada Ativista continua em 2018 e acredito que com ainda mais força que em 2016, pois a crise política e a econômica se aprofundaram no país. Se na última eleição havia um sentimento de que era necessária uma renovação política, agora essa demanda é gritante. Mas precisamos ficar atentos, pois hoje todos querem se apresentar com uma
cara repaginada, principalmente aqueles que já não têm mais nenhuma confiança do povo. Aos que querem ocupar a política, eu diria para não terem medo, pois é disso que a sociedade precisa e é isso o que ela quer. Renovação que não tenha medo de enfrentar privilégios e que ouse nas formas e modelos de mandato. Você vai se candidatar a deputada federal? Qual sua expectativa? Vou me candidatar a deputada federal, sim. O PSOL está num momento importante de sua história. Sua experiência como partido de esquerda, com um programa e uma prática política clara, de quem não se vende nem opta pelo caminho “mais fácil” de conciliação, é fundamental para termos esperança no futuro político do país. Mas a reforma eleitoral e a cláusula de barreira querem destruir nossa ferramenta. Precisamos de nomes representativos para vocalizar um programa de revolução política em um momento tão difícil para a população brasileira. A experiência que temos com o mandato em São Paulo pode ser um impulso para mudanças em âmbito federal. Por isso construiremos essa candidatura de deputada. Acredito que o PSOL tem condições de ampliar a bancada federal, e temos excelentes nomes para isso. Qual sua análise sobre o campo da esquerda e sua opinião sobre o futuro político do país? A esquerda organizada teve lições importantes nos últimos anos. Talvez a mais importante delas é que a classe trabalhadora só tem a perder quando os partidos de esquerda fazem concessões à direita. Fazer concessões é deixar que eles sigam comandando mesmo quando a maioria do povo os rejeita. Foi assim nos governos do PT. O golpe selou isso. Ou se rompe com essa lógica de conciliação e concessões ou seguiremos acumulando derrotas. E não temos que ter medo de parecer radicais: o recuo levou o povo a retrocessos profundos, como a PEC do teto e a reforma trabalhista, por exemplo. O cenário é difícil, mas tenho confiança no poder das nossas ideias e de práticas políticas renovadas que têm dado esperança para a esquerda brasileira. CIDADANISTA
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POLÍTICA Entrevista
TARSO GENRO Um dos quadros mais emblemáticos do PT, o ex-ministro fala sobre a esquerda no Brasil e no mundo, Boulous presidente e a estratégia para o futuro do campo progressista
por IVAN ZUMALDE
Você participa de articulações políticas do campo da esquerda no Brasil e no mundo. Qual é a foto mais precisa que vê hoje? Penso que as mutações sociais e econômicas que o capitalismo sofreu, acompanhadas do desmantelamento da URSS e das vertentes sociais-democratas, que se transladaram para soluções liberais e neoliberais, não foram respondidas pela esquerda. Hoje há um debate mundial, que eu acompanho principalmente na Espanha e em Portugal, que busca revisitar a tradição da esquerda do século passado, a partir de dois valores que devem nortear a ação política para uma nova ideia de socialismo: a necessária interdependência entre fins e meios, para o desenho de uma nova sociedade, de uma parte, e o sentido democrático e libertário, não aceitando, portanto, nenhuma "ditadura" estatal para "encurtar" saídas, mesmo que ela seja feita em nome do proletariado ou dos excluídos em geral. Pelo simples motivo que ela, necessariamente, cria novos grupos de privilegiados, que, na verdade, abandonam os "fins" a que se propuseram como grupo dirigente. Na sua opinião, qual a estratégia de renovação que os partidos de esquerda brasileiros deveriam adotar para lograrem força e representatividade política no futuro? Os partidos de esquerda, em nosso país, estão envolvidos nesse turbilhão e em todos eles tem gente pensando em inovar, em recriar, em revisar o que foi feito, sem perder a ancoragem nas experiências "reais" que nos trouxeram até aqui, do socialismo e da social-democracia. Acho que essa estratégia ainda não construiu um fio comum, uma ideia matriz inovadora, que exige, aliás, muito intercâmbio internacional para que ela tenha força e capacidade de articulação interna. De outra parte, não se pode deixar de levar em conta as dificuldades que temos, em todo o mundo, para enfrentar o liberal-rentismo, que é propagado pelos oligopólios midiáticos e, em muitas circunstâncias, ganha o senso comum para os seus valores. Guilherme Boulos será candidato pelo PSOL. Acredita que o perfil de Boulos poderia acompanhar a trajetória de Lula e ser eleito hoje ou no futuro como foi no PT?
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mo, que se instalou na nossa jovem democracia e, a partir desta unidade, ir construindo formas políticas novas, que combinem, de uma parte, as relações horizontais de colaboração que já estão em vigor entre os movimentos sociais, nas grandes regiões metropolitanas, e, de outra, a força intelectual dos grupos dirigentes que estão se construindo nos partidos de esquerda, na academia e nas instituições do Estado, estes ainda de forma embrionária, através das nossas experiências de governo.
Sim, Boulos é o líder político desta geração, que demonstrou uma capacidade superior a todos os demais para compreender o que se passava no país e que o cerco a Lula era, na verdade, um cerco à democracia e às conquistas dos trabalhadores e de certos setores da classe média baixa, na última década. Soube se posicionar, na minha opinião, de forma correta, entendendo que a disputa pela hegemonia exige, no campo popular, mais "consenso" do que "demarcação" com outras forças democráticas de esquerda, que se esteriliza, quando erigida em forma de luta "pura", pela força hegemônica dos inimigos e adversários, em momentos de crise. Você apoiou novos movimentos políticos, como a Raiz. Qual seria a melhor estratégia para construção de uma força política de esquerda? Entendo que o futuro de todos os movimentos políticos de esquerda – sejam os mais tradicionais, sejam os mais heterodoxos – estão em aberto nos dias e, quem sabe, anos que correm. Não temos um paradigma confiável, para um largo período histórico, de uma forma de organização de esquerda capaz de enfrentar sozinha o terror e a violência semeados pelo projeto neoliberal. Penso que hoje deveríamos trabalhar com a expectativa de formar uma nova frente política, de natureza programática, capaz de enfrentar a conjuntura de crise e o golpis-
Na ausência atual de uma reforma política que traga mais participação do cidadão e eleja um Legislativo mais representativo, você vê alguma força ou mecanismo político capaz de transformar o sistema pelo voto dos eleitores? O mecanismo de transformação pelo voto é a Constituinte originária, livre e soberana, que só poderá ocorrer depois de uma ruptura com o modelo de sociedade liberal-rentista e com as suas formas de dominação política espúrias e ilegítimas. Como os governos progressistas poderiam aliar políticas públicas de crescimento econômico com investimento social dentro de um modelo ambiental que não seja predatório? O modelo principal de apropriação da naturalidade pelo sistema do capital e a devolução do equilíbrio "homem x natureza" só poderá ocorrer naquilo que Gramsci chamava de "sociedade regulada", ou seja, numa "sociedade conscientemente orientada". Penso que o que poderemos ter, nos tempos atuais – com um governo de esquerda apoiado massivamente pela ampla maioria da sociedade civil – é um modelo de melhor sustentabilidade, livre das amarras excludentes e violentas do capitalismo. Como imagina que deveria ser um eventual e hipotético terceiro mandato de Lula, caso ele concorresse e ganhasse? Penso que Lula, se o deixarem concorrer – se ganhar – deveria espelhar seu governo na experiência portuguesa, adequando-a à realidade brasileira, que seria muito mais difícil de gerir, dada a mentalidade escravocrata das elites dirigentes da direita brasileira, que só gostam da democracia quando ela ajuda imediatamente os seus negócios, tanto os lícitos como os ilícitos. E quando não gostam, golpeiam. CIDADANISTA
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POLÍTICA Entrevista
Por que é necessária e como vê a renovação política do país? A nossa classe política faliu. Há uma geração, salvo exceções, pessoas muito valorosas, que falhou, não abriu espaço, não formou gente. Nós tiramos das escolas a formação política, e as fundações dos partidos também não o fazem. Não executam formação política. Temos que entender a política como um caminho de saída, e penso que a nossa maior batalha é com a despolitização das pessoas. Nós temos que sair da zona de conforto e para de achar que todo mundo é despolitizado e conservador e ir conversar com essas pessoas, sabe? Ter paciência, trocar.
ZÉ GUSTAVO O porta voz da Rede Sustentabilidade conta sobre sua experiência dentro do Congresso Nacional e a necessária renovação em Brasília
por IVAN ZUMALDE
A renovação também pode trazer perfis como o prefeito de São Paulo João Dória O Dória é um “gestor com jota”. Para mim, não é simplesmente renovar as caras; nós temos que renovar as práticas, né? Ter uma qualificação da renovação. Ele traz em si uma negação do poder público, que eu não acredito. Não acredito em Estado máximo e nem em Estado mínimo. Acredito em Estado que tem um propósito. Não é o antigo Estado provedor, pesado e que provê tudo e nem o Estado regulador, leve, que só monitora algumas coisas. É o Estado que mobiliza a sociedade para encontrar caminhos coletivos em conjunto. E o Estado que o Dória coloca é uma confusão: é uma negação do próprio Estado, e não se faz gestão pública como se faz gestão empresarial. Você se considera de esquerda? Não, não não considero. Eu me chamo esquerda porque as pessoas se denominam de esquerda. Mas eu não considero que uma análise do século XIX dê para explicar o nosso contexto brasileiro hoje. Não acho. Nem o brasileiro e nem o mundial. Não acho que direita e esquerda é pedagógico. Pelo contrário, você é reducionista. Prefiro dialogar com as pessoas que queiram dialogar. Então, vou dialogar com gente que se coloca de direita, se coloca de esquerda, desde que haja o espaço democrático do diálogo. Isso não pode se perder. Pra mim, ditadura de esquerda ou de direita é ruim. Como acha que será o Congresso em 2019? 2018 pode ser um portal. Pode ser um portal de monstros e pode ser um portal de coisas interes-
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santes. O Congresso Nacional de 2019 vai ser um Congresso Nacional, no mínimo, interessante. Os caras estão fazendo muita força, a amarração com os prefeitos e vereadores está sendo um negócio impressionante. Mas acho que se tivermos 20% de deputados com uma prática política de mandato diferente, a gente consegue fazer a transformação. E como imagina que deveria ser um mandato ideal? Que fosse novo e conectado com as pessoas? Tenho investido em pensar qual design de mandato que realmente vai ser inovador e que vai trazer uma outra prática de política. Como vai ser a distribuição de renda para cada parlamentar? São 15 milhões de reais por ano. Renovação não é 2018. O ano de 2018 é um portal. Se a gente não entrar e mantê-lo aberto para 2020, 2022, a máquina pesa. O sistema é foda, ele vai lá e vai fechar de novo. Mas eu tô desenhando e aprimorando tecnologias que já tinha desenvolvido, a dos codeputados, dos mandatos colaborativos. Acredita que teremos mandatos coletivos operando no Congresso no ano que vem? Acho que a ideia encanta, mas o método é construído no dia a dia. Pode ser que o meu mandato, se eu tiver um mandato de deputado federal e for colaborativo, talvez eu consiga coletivizá-lo ao longo do tempo. A gente tem que testar, não vão ser os mesmos caminhos que vão levar a coisas diferentes, entendeu? Esses testes são fundamentais. A gente entendeu que esse sistema só elege homem branco de classe média, de meia-idade. Então tá bom, a gente vai juntar entre homens, mulheres, negros e LGBT e vamos fazer um mandato coletivo. Isso dá força? Acho massa. Você passou esses dois últimos anos no Congresso. Como foi? Você se vê lá no futuro? É, eu teria todos os elementos do mundo pra te dizer que é o lugar no qual eu não gostaria de estar na minha vida, porque é hostil, é terra de ninguém, é campo de guerra, é batalha, ilha de engravatados. É um nível de preconceito, de subordinação, de disputa e com um nível de desconexão com a realidade muito grande. Um deputado faz a fala dele no Plenário, lá na banquetinha, e aí, vai ver no Jornal Nacional a fala dele, no telão que tem no cafezinho.
E como é a dinâmica das votações? Na hora que eu vi o Cunha aprovando uma reforma trabalhista que tava havia onze anos sendo discutida, e o substitutivo tinha sido mudado três minutos antes de ser apresentado, eu disse: que loucura é essa? Os deputados federais começaram a votar sem ter o texto! Não tinham o texto em mãos! Esse é o clima. Aprendi que o Congresso Nacional é um lugar que representa muito os nossos preconceitos, preconceito contra a mulher, contra o negro, contra o jovem, tudo lá, muito materializado... Como é na prática esse preconceito contra a mulher dentro do Congresso? São muitas sutilidades.Tem muitas mulheres que são contratadas para coletar assinaturas de projetos de lei. Pra você abrir uma PEC, tem que ter um percentual, são 42 assinaturas. E aí o que o pessoal faz é isso: contrata uma 'menina bonita' pra sair coletando assinatura de deputados. São todos homens brancos, mais velhos, uma coisa maluca. Isso acontece, é essa a dinâmica dentro do Congresso Nacional. Olha a sutilidade e a agressividade desse negócio, entendeu? A gente tem que ocupar esse negócio com mulheres, com negros, com indígenas, seja nos cargos de tomada de decisão, seja como deputados, como assessores. A gente precisa transformar aquilo lá na prática.
POLÍTICA Entrevista
LARISSA GASPAR Em sua primeira experiência em um mandato político, a vereadora de Fortaleza Larissa Gaspar vem se destacando como uma voz crítica dentro da Câmara Municipal e de diálogo com os movimentos sociais fora dela.
por VITOR TAVEIRA
Como tem sido a experiência de um primeiro mandato? Quais as conquistas e dificuldades? Nosso primeiro ano de mandato foi bem produtivo e marcado pela proximidade com os movimentos sociais. Estivemos nas mobilizações populares contra os retrocessos, realizamos dezoito audiências públicas, apresentamos diversos projetos de lei, indicações, requerimentos e emitimos inúmeros ofícios. Desta forma, temos atuado na defesa das minorias, no fortalecimento das políticas de direitos humanos, proteção ao meio ambiente, defesa dos animais e garantia da moradia. Considero que nos consolidamos como um mandato popular, de esquerda. Temos enfrentado muitas incompreensões e boicotes por votar, às vezes, contra o governo. Isso tudo tem trazido aprendizados, mas certamente não irá mudar nossa visão de mundo; não modificaremos nossa atuação em troca de aprovação de projetos ou em troca de cargos na gestão. Nosso foco é a defesa dos direitos da população. É a defesa dos interesses da cidade. Como é ser uma vereadora feminista em meio a uma Câmara com maioria de homens? Eu diria que a dificuldade maior é ser uma vereadora feminista num Parlamento de pessoas conservadoras. Na Câmara, temos uma bancada religiosa que se contrapõe aos direitos das mulheres e da população LGBT, que insiste em misturar as doutrinas e os dogmas da fé com a atuação do poder público. A recente tentativa de obrigar o município a fazer campanha contra métodos contraceptivos é um exemplo dessa atitude. Temos defendido também a população LGBT, a população negra, a juventude que tem morrido nas periferias e as pessoas em situação de rua. Homenageamos no Dia Internacional da Mulher de 2017 uma mulher travesti, e esse gesto foi suficiente para muitas máscaras machistas e LGBTfóbicas caírem. Como fomentar a participação das mulheres na política e nas eleições? Para que as mulheres possam participar da política, muitas questões precisam ser modificadas, como a luta contra o machismo e a desigualdade de gênero, a começar pela injusta responsabilização das mulheres pelo cuidado com a casa e com os filhos, enquanto ao homem se reserva a atuação no ambiente público. Essas tarefas precisam ser divididas, para
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deve servir ou não seu coro, seus órgãos, lógica à qual não podemos jamais nos submeter. Amamentaremos nossos filhos onde e quando quisermos.
que possamos ter tempo disponível para participar da vida política. O incentivo à nossa participação nos pleitos com o preenchimento de 30% de candidaturas femininas em cada chapa precisa ser real, e não apenas uma farsa para atender a um requisito legal. É preciso também dar condições para que candidaturas se fortaleçam e ter nas instâncias de direção dos partidos mulheres protagonizando o debate político. Entre suas pautas está a defesa do parto humanizado e da livre amamentação. Por que considera temas importantes para trazer para o debate? Por duas razões: uma técnica no que se refere aos benefícios científicos do parto normal e humanizado e da amamentação. E outra política, que diz respeito ao controle do corpo da mulher, que desnuda o machismo que nossa sociedade teima em não admitir. No parto normal, respeitamos o tempo do corpo da mulher para o nascimento do bebê, sua recuperação é bem mais rápida que na cesárea. Humanizar o parto é também combater a violência obstétrica. A amamentação é algo que precisa sempre ser reforçada. O leite materno fortalece o sistema imunológico do bebê, é o seu principal alimento. Em que pese todos os benefícios, a nossa sociedade machista ainda quer dizer para as mulheres que não amamentem em público porque é muito constrangedor, embora essas mesmas pessoas não achem constrangedor que as mulheres desfilem com os seios de fora no carnaval. Trata-se de mais uma vez querer exercer o controle sobre o corpo e a vida das mulheres, ditar para que
Você participa de movimentos como o Coletivo Bem Viver e RAIZ, que trazem ao debate a proposta dos direitos da natureza. Qual a importância de avançar nesse sentido? Compreendemos que nossa relação com a natureza deve ser de comunhão, respeito, gratidão e muita responsabilidade. Enfrentamos a lógica do consumo irracional e desenfreado, defendendo a manutenção do equilíbrio vital, a preservação das nossas espécies. Consideramos que não somos donos da natureza, e sim parte indissociável dela. Esse entendimento tem provocado a reflexão e a atuação sobre diversos temas em nossa cidade. Apresentamos um projeto de lei para assegurar a inclusão de alimentos orgânicos na merenda escolar e idealizamos uma proposta de alteração da Lei Orgânica do Município para formalmente contemplar os direitos da natureza. Como analisa a atual conjuntura da política brasileira? Que saídas enxerga para avançar? Não resta dúvida que a manipulação do discurso do combate à corrupção, do equilíbrio das contas públicas, do ataque aos direitos sociais, entre outros retrocessos, foi terreno fértil para construir uma indignação e um descrédito coletivo com o fracasso da política de conciliação de classes. Assim, o pensamento de direita ganhou significativo espaço na sociedade. O certo é que os avanços sociais dos últimos anos não foram estruturais e se diluíram rapidamente após o golpe. Acredito que a chave para a superação de todo esse retrocesso está na união das forças progressistas em torno das pautas que nos são comuns. É preciso o exercício da autocrítica para aprender a lição, promover a reorganização e avançar na luta. Teremos eleições nacionais este ano e, apesar do avanço da direita – ela não tem um nome forte para a disputa–, temos que ter maturidade para construir um projeto capaz de falar às massas, fazê-las acreditar na oportunidade de correção de rumos e enfrentamento dessa lama que se estabeleceu na política nacional através da relação espúria entre o Congresso Nacional e a Presidência. O desafio é grande, passa pelo fortalecimento da democracia direta, pelo uso de referendos revogatórios, mas acredito na capacidade de o povo brasileiro se organizar e superar os obstáculos que estão postos!
ENSAIO Carnaval
EXISTE CARNAVAL EM SP
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fotos ALICE VERGUEIRO
A fotรณgrafa paulistana Alice Vergueiro e seu olhar sobre o povo nas ruas ocupadas da metrรณpole
As imagens mostram irreverĂŞncia e protesto nas ruas da capital
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SEÇÃO Matéria
A fotógra e a lente por onde enxerga o mundo
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Alice percorreu quatro blocos na capital paulista: • blocolandia / Rua helvetia ate praça julio prestes / 09.02.2018 • bloco navio pirata baiana system / Av. 23 de maio / 17.02.2018 • bloco daniela mercury / Rua da Consolação / 18.02.2018 • bloco pilantragi / Av. Alfonso Bovero / 04.02.2018
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FRUTOS Hackers pela causa
por FÁBIO ST RIOS
O tempo da ingenuidade tecnológica da esquerda acabou O hacktivismo como prática de defesa
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inocência e a ingenuidade terminam quando o conhecimento surge, seja ele por qual for o motivo, se da prática e suas consequências ou de quando se adquire o conhecimento pelo estudo, formal ou não. Talvez a mais marcante alegoria ou metáfora sobre esse fato seja o mito da caverna de Platão. Pode parecer estranho citar filosofia quando o assunto principal seja tecnologia, mas, como elemento fundamental da vida humana desde o século XX, as tecnologias da informação deveriam ter mais importância por parte dos movimentos sociais e partidos progressistas brasileiros. Nesse aspecto, parece que nada mudou desde 1963. Permanecemos inocentes, ou ingênuos, da mesma maneira descrita por Darcy Ribeiro no programa Roda Viva, da TV Cultura, em 1991. Será que mudou alguma coisa de lá pra cá?
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“’Mas veja só que coisa gozada.’ Eu falava com o Jango pelo telefone com um misturador. Eu tinha um misturador e ele tinha outro. Mas nós nunca prestamos atenção, que os dois eram norteamericanos [risos]. É evidente que eles estavam cansados de saber o que nós falávamos. Era um governo incapaz de se defender porque era um governo inocente.” A prova de que nada mudou foi a surpresa do governo Dilma, quando surgiu uma nova figura na geopolítica mundial, Edward Snowden. Na ocasião, o espião hacker da NSA (agência de espionagem digital da CIA), arrependido de espionar toda e qualquer pessoa no mundo, violando os direitos fundamentais da individualidade e Estados soberanos, veio a público revelar, dentre outras atrocidades, a espionagem contra a Petrobras e o governo do PT, no Brasil. Parafraseando o próprio Darcy Ribeiro, “era um governo incapaz de se defender, porque era um governo inocente”. Toda essa nossa falta de “malandragem”, em parte, vem do que chamamos do nosso sentimento de vira-lata. Essa, por sua vez, é a forma como a síndrome afeta o pensamento progressista no Brasil. Essa mesma “síndrome de vira-latas” está escondida na pergunta que corriqueiramente fazemos: Por que vão nos espionar, não temos tanta importância assim? Por outro lado, a falta de esclarecimento das pessoas em movimentos sociais e partidos progressistas, incluindo
congressistas, acaba por refletir em atitudes que chegam a ser cômicas, como colocar uma fita adesiva na câmera do notebook ou do celular, mesmo quando desligados. Dentre outros, está o receio de usar o whatsapp como telefone, quando, na verdade, é bem mais seguro utilizá-lo dessa maneira do que mandar mensagens escritas ou áudio. O motivo é que enquanto as mensagens gravadas ou escritas permanecem nos celulares ou em backups na nuvem, e enquanto há dados gravados, há o perigo humano, além da possibilidade de infecções por vírus, que podem roubar dados. Já no uso como telefone, não constam registros de vírus que roubem dados transmitidos ao vivo, e a criptografia ponto a ponto do whatsapp garante a privacidade. Para se ter uma ideia, a chave gerada pela criptografia ponto a ponto levaria cerca de oitenta anos em supercomputadores para abertura dos dados, segundo o desenvolvedor da tecnologia. Essa negligência institucional é comprovada nos movimentos sociais pela inexistência de brigadas ou setores de inteligência.
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"...certamente, pessoas como Guilherme Boulos e outros líderes sociais, já são espionados e estudados, tanto por setores de risco do mercado, quanto agências de inteligência"
Não é uma questão de informática ou, como gostam de dizer, “setores de TI”. Trata-se, portanto, da criação de Brigadas de Informação e não de informática (T.I.), que tratem do trânsito seguro das informações, com medidas de contraespionagem e garantia de privacidade das mensagens, bem como orientações em manifestações. Trata-se, acima de tudo, de uma questão de conscientização e de identificação das ferramentes e comportamentos realmente seguros na rede, cujas direções dos movimentos e partidos adotem como forma de garantir que não haja uma escuta no meio do caminho, ou que os dados sejam roubados de algum dispositivo. Movimentos como o MTST ou MST, por exemplo, são
fundamentais no jogo político, tanto que um dos pré-candidatos à Presidência da República é um líder de movimento social. Como o Brasil é uma das dez maiores economias do mundo, certamente pessoas como Guilherme Boulos e outros líderes sociais já são espionados e estudados tanto por setores de risco do mercado, quanto por agências de inteligência de países interessados nos ricos recursos econômicos e naturais do Brasil. Definitivamente, o tempo de ingenuidade acabou.
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FRUTOS União homoafetiva
por FRANCIS DUARTE
Casamento homoafetivo. Todo amor é sagrado. Um pastor evangélico e a saga contra a intolerância
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niciamos este texto partindo da premissa de que a concepção de casamento e família evoluiu ao longo do tempo e apresenta não mais apenas uma ideia de procriação ou estrutura rígida entre homem, mulher e filhos. Uma família, segundo os próprios elementos jurídicos atuais, indica uma nova feição, agora fundada na ética, na afetividade e na solidariedade, independentemente do sexo. Esse novo balizamento evidencia, portanto, um espaço privilegiado para que os seres humanos como um todo se completem. Vale ressaltar que, assim, se o próprio Direito não se manteve estático e acompanhou tal processo de transformação social, a família, ponto fundamental e inicial de inserção do homem na sociedade, teve sua estrutura modificada e entendida como grupo social fundado em laços afetivos, promovendo a dignidade do ser humano, no que toca a seus anseios, no que diz respeito a seus sentimentos, de modo a se alcançar a felicidade plena.
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No Brasil, o casamento entre pessoas do mesmo sexo se tornou realidade após o reconhecimento da união estável pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011 e a aprovação da habilitação de casamento em cartórios civis sem a necessidade de autorização judicial dada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2013. Porém ainda há um longo caminho para vencer os olhares conservadores e preconceituosos, que, além de negarem a justiça, insistem em não respeitar o amor alheio e utilizam, para isso, questões até mesmo religiosas. Nesse âmbito, temos pastores progressistas que subvertem essa ordem perversa e combatem visões obtusas e que acabam negando os valores humanitários do cristianismo. O pastor José Barbosa, de Belo Horizonte (MG) é, felizmente, um deles. Em 2017, o pastor foi convidado a participar da Parada Gay, em São Paulo, e num trio elétrico proferiu um emocionante discurso no qual pediu desculpas à comunidade LGBT pelos ataques que eles sofrem constantemente, além de afirmar que figuras evangélicas extremamente conservadoras, inclusive no cenário político, não representam todos os evangélicos do Brasil: “Malafaia e Feliciano não representam todos os evangélicos do Brasil. Os evangélicos amam, sim, e estamos aqui para dizer que toda forma de amor é abençoada por Deus”. O pastor José Barbosa faz parte da criação do Movimento Jesus Cura a Homofobia, com um ato na Avenida Paulista, em 2015, e já contando com dezenas de
voluntários espalhados por cinco estados brasileiros. Vale destacar que o intuito é alcançar todo o país e propagar que é possível, sim, ser gay e cristão (ao mesmo tempo), excluindo a condenação comum em igrejas tradicionais. Mas e o casamento homoafetivo? Como esse grupo cristão que vem rompendo concepções tão rígidas e preconceituosas se relaciona com a união entre pessoas do mesmo sexo? O próprio pastor Barbosa, em dois relatos emocionantes, reforçou o quanto “todo amor é sagrado”, e em 9 de dezembro de 2017 publicou, em uma de suas redes sociais, a foto da primeira celebração homoafetiva que realizou. Em outro momento, descreve uma cerimônia de casamento em que ele e sua esposa foram convidados e se sentiu honrado por presenciar um momento de amor tão sublime partilhado entre familiares e amigos do casal, dois homens. O pastor, em seu relato, demonstrou o quanto o ambiente era de alegria e respeito, rompendo com estatísticas preconceituosas e a falta de diálogo.
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"Malafaia e Feliciano não representam todos os evangélicos do Brasil. Os evangélicos amam sim e estamos aqui para dizem que toda forma de amor é abençoada por Deus”
Ele viu no amor daqueles jovens que um novo mundo é possível. Para além de héteros e homoafetivos compartilhando direitos, espaços e olhares, eram seres humanos unidos pelo amor e respeito absoluto e perceptível nas palavras dos pais que destacavam o quanto os jovens venceram preconceitos, assumiram um sentimento puro contra tudo e todos e, assim, estavam partilhando a vida deles. Verdadeiramente, ensinavam para todos os presentes o que seria o amor. Assim, o pastor progressista, tomado de emoção, se mostra incapaz de condenar ou dizer que tal sentimento seja pervertido e conclamou que sua oração é que um amor jurado seja vivido sempre. Aliás, amar a vida e as pessoas, independente de sexo, é enterrar de vez preconceitos pessoais e viver de
forma pura e plena. Fica a reflexão de que o amor, assim como a flor do famoso poema de Carlos Drummond de Andrade, furou o asfalto de uma sociedade que tenta impor valores morais, religiosos, em um país que deveria ser constitucionalmente laico. Rompeu o tédio das vozes preconceituosas. Confrontou o nojo de conservadores que insistem em rejeitar sentimentos de amor pleno e enfrenta, de peito aberto, o ódio alheio. Uma flor nasceu no asfalto! O amor vencerá mais uma vez!
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RENOVAÇÃO movimento convidado: Acredito Ítalo Alves, 25 anos, é líder do Movimento Acredito no Ceará. Mariana Lopes, 21 anos, é líder do Movimento Acredito em Pernambuco. Israel Rocha, 22 anos, é líder do Movimento Acredito em Santa Catarina.
"Um Congresso com a verdadeira cara do Brasil"
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uando se fala de eleições presidenciais, muitos vestem as camisas de seus candidatos favoritos, produzem bonecos gigantes, outdoors e páginas com milhões de seguidores nas redes sociais. As raízes de um Estado aristocrata e escravocrata nos acostumaram com as infinitas promessas de um salvador da pátria que virá com a solução para todos os nossos problemas. Porém, por que não vemos o mesmo tipo de mobilização nas ruas e nas redes no que tange às mais de 1.500 candidaturas ao Congresso Nacional e Assembleias Legislativas? O cálculo sobre o sucesso provável de um governo deve considerar toda a estrutura formada por senadores, deputados federais e deputados estaduais. O Executivo sem um Legislativo funcional, formado por pessoas éticas e comprometidas com as pautas do país, não conseguirá garantir a implementação de suas propostas. Portanto, não é possível falar sobre engajar a população ignorando a importância da renovação do nosso Legislativo. De acordo com o Instituto Locomotiva, 96% das pessoas não se sentem representadas pelos seus atuais líderes políticos. Este dado revela a predominante crise 76 CIDADANISTA
de representatividade e aponta ainda que uma renovação do Congresso não é mais uma proposta partidária, mas um fator imperativo para a garantia da democracia brasileira. Desde 2013, os protestos contra o aumento das passagens seguidos por aqueles contra a corrupção fizeram a sociedade se unir e polarizar diversas vezes. O que se mostrou essencial é a necessidade de qualificar a renovação da nossa política. A renovação qualificada significa que não serão apenas novas caras, mas pessoas com novas práticas e princípios que representem verdadeiramente suas bases eleitorais. É essa pirâmide que sustenta a motivação de existência do Acredito. Um Congresso com a verdadeira cara do Brasil, repleto de pessoas com práticas e princípios baseados na ética, na transparência e na autêntica vontade de servir o país. Atuamos baseados no seguinte tripé: Conteúdo: Definimos nossos posicionamentos sobre temas prioritários através do diálogo com a base social, respeito aos contextos locais e evidências que nos apresentem os resultados da tomada de decisão.
Engajamento: Buscamos engajar a sociedade na internet e nas ruas para romper com o sentimento de apatia que domina as mentes e fazer a mudança estrutural que o país precisa. Um trabalho de formiguinha que pode chegar em dimensões de transformar o Brasil. Renovação: Identificamos e apoiamos novas lideranças políticas que estejam alinhadas com nossos valores e posicionamentos para reduzir as barreiras de entrada em um sistema injustamente muito fechado em si mesmo. Acreditamos que os próximos quatro anos serão o reflexo do trabalho que colocarmos na pauta da renovação hoje. Buscamos fugir de extremismos e discursos polarizados reconhecendo que estamos conectados. Fazemos assim a nossa parte, para garantir que a composição do governo brasileiro seja cuidadosamente protagonizada não por menos, mas por mais democracia.
ÍCONES Bertha Lutz
“As mulheres juntas serão uma força”
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uito já se ouviu falar do sanitarista Adolfo Lutz e seus estudos sobre medicina tropical, pioneiros na área da epidemiologia, porém sua filha, Bertha, tem um papel tão importante quanto o do pai, sendo vanguardista na luta feminista e para a participação da mulher na área da ciência. Bertha Lutz nasceu em 1894, estudou fora do Brasil, mas retornou em 1918, já formada como bióloga e tomada de ideais feministas. Ela se tornou responsável pela articulação política que proporcionaria o voto às mulheres brasileiras e a igualdade de direitos durante as décadas de 1920 e 1930. Formada na Sorbonne, na França, Bertha trabalhou por mais de cinquenta anos no Museu Nacional, se aposentando como chefe do setor de botânica, em 1964. Sua trajetória na luta feminista teve início, no Brasil, em 1919, quando participou da criação de uma Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher, o embrião da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (1922). Vale ressaltar que representou o Brasil na assembleia geral da Liga das Mulheres Eleitoras, nos Estados Unidos, e foi eleita vice-presidente da Sociedade Pan-Americana.
Sua vertente sufragista, durante o tempo de estudante, foi ligada ao movimento no Reino Unido, com as primeiras ativistas do feminismo durante o século XIX. No solo brasileiro, iniciou esforços por um movimento semelhante. Sua luta era por um feminismo, como a reforma social das mulheres pela educação, trabalho digno e bem remunerado e, sobretudo, igualdade de direitos políticos. Também organizou o primeiro Congresso Feminista do Brasil, defendendo ações de proteção ao trabalho feminino, na Organização Internacional do Trabalho e na Conferência Internacional da Mulher de Berlim, em 1929. Esses projetos foram sua base de resistência ao assumir uma cadeira na Câmara Federal, pela Liga Eleitoral Independente, em 1936, e acrescentando proteção ao menor e licença de três meses para a gestante trabalhadora. Antes disso, após a Revolução de 1930, viu Getúlio Vargas assinar o Decreto nº 21.076, de 24/2/1932, que garantia o voto feminino e a igualdade de direitos políticos entre homens e mulheres. Bertha Lutz afirmava em seus discursos que a luta feminista deveria abranger todos os direitos sociais e todas as classes: “São mulheres que trabalham, as mulheres que vivem
imagem: reprodução/wikipedia
por FRANCIS DUARTE
de seu próprio esforço, as mulheres que precisam rodear-se de garantias e amparos na luta pela vida, que compete dar o primeiro passo na vida associativa. (…) As principais vantagens dessas associações seriam a defesa coletiva de interesses, a assistência à maternidade, à enfermidade e à invalidez, a difusão da instrução. Por que nada disso existe? Por falta de iniciativa. Por inconsciente egoísmo das mulheres cultas e ricas, que ainda não pensaram em tornar mais fácil a vida de suas irmãs pobres” (O Jornal, fevereiro de 1919). Em 1950, recebeu o título de Mulher das Américas e, posteriormente, já aposentada do Museu Nacional, em 1975, participou da delegação do Brasil no 1º Congresso Internacional da Mulher, no México. Faleceu aos 82 anos, em 1976, no Rio de Janeiro. Bertha Lutz nos deixou um legado de luta e resistência durante um período em que uma mulher se destacar entre setores profissionais, políticos e sociais não era visto com bons olhos. Resistiu não apenas por sua brilhante e forte carreira, mas para que gerações futuras, de elite ou não, pudessem escolher o caminho que fosse desejado. Fica seu espírito vanguardista e a mensagem: “As mulheres: divididas são fraqueza; juntas, serão uma força”. CIDADANISTA
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INSPIRA por Guto Lacaz
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