CIDADANISTA.COM.BR
ISSN 2526-4079
Nº 8 ANO 3 JULHO 2019 R$ 20,00
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Conheça o movimento RAiZ Cidadanista raiz.org.br
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POVOS ORIGINÁRIOS | CAPITALISMO CONSCIENTE? | VENEZUELA | ENTREVISTA: COLETES AMARELOS ECOSSOCIALISMO | TRANSEMPREGOS | COLONIZAÇÃO DIGITAL | O SOCIALISMO NÃO MORREU A MÍDIA E O 5º PODER | PARA QUE SERVE UMA ARMA? | COMO SURGE UM PARTIDO POPULAR
Carta do editor Ivan Zumalde
O QUE TE MOVE?
Itaquera 7h43: manifestantes ocupam avenida Radial Leste rumo ao metrô em dia de greve geral contra a reforma da previdência, cortes na educação e desemprego.
sse editorial foi escrito no dia 14 de junho de 2019, greve geral no país. O editor também está em greve, e adianta esse texto pela manhã, pois irá às manifestações previstas para ocorrerem no vão do Masp, logo mais, às 16h. Hoje, também faleceu o jornalista Clóvis Rossi, o Brasil estreia na Copa América contra a Bolívia no estádio do Morumbi e Sérgio Moro ainda é ministro da Justiça depois da “Vaza Jato”. Não creio que tardará por cair, e levará parte do ideário e bizarro governo Bolsonaro. Mas, não cabe aqui fazer futurologia sobre o início do fim. O que vier fará a roda girar. Seja por um, pelo outro ou por todos. O país segue se metamorfoseando e brasileiros se descobrindo uns aos outros, em uma nação que não cabe mais nos estereótipos de novelas das nove. A segregação existe, a desigualdade persiste, mas está se chocando com a realidade em transformação. O interregno é assombroso e imprevisível – assim como deve ser. Como nação seguimos desmascarando, em meio ao retrocesso, preconceitos e privilégios, e algo virá depois desse tsunami. Isso é certo. O que vai acontecer na maré baixa? Ainda não temos resposta para morte, placar de jogo de futebol e política nacional. E, mesmo assim, seguimos nos movendo. Então, o jeito é seguir e fazer o que tem de ser feito hoje: se mover.
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Sumário Julho | 2019
SUMÁRIO 10
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A revista Cidadanista é uma publicação independente e faz parte das ações do movimento RAiZ Cidadanista.
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6 - POVOS ORIGINÁRIOS Preservação 8 - ASSEMBLEIA Capitalismo consciente? 9 - 3 FATOS Venezuela 10 - ENTREVISTA 1 Coletes amarelos: Florence Poznanski 16 - ARTE DE RESISTÊNCIA Paulo Kalvo 18 - O QUE É? Ecossocialismo 20 - LGBTQ+ Transempregos 22 - TECNOPOLÍTICA Colonização digital 26 - ANÁLISE O socialismo morreu? 30 - COMUNICAÇÃO A mídia e o 5º poder 34 - REPORTAGEM ESPECIAL Segurança para quem? 46 - ENTREVISTA 2 UP: Leonardo Péricles 52 - OPINIÃO 1 Educação: Jane Marques 54 - OPINIÃO 2 Desigualdade: Eduardo Brasileiro 56 - HISTÓRIA Quem foi Luiza Mahin 58 - FIM Guto Lacaz
Editor: Ivan Zumalde (MTB) 29263 Conselho Editorial: Célio Turino e Ivan Zumalde Para entrar em contato com a redacão, envie e-mail para zumalde@mymag.com.br ou nas redes sociais da RAiZ Cidadanista revista CIDADANISTA
COLABORADORES:
Ilustração feita com exclusividade pelo cartunista Adão Iturrusgarai para a revista Cidadanista. O artista inspirou sua criação na obra “duchampiana” de autoria do próprio Adão.
Colaboraram também: Eduardo Brasileiro, Fernanda Patrocínio, Francis Duarte, Guto Lacaz,
FOTOS DIVULGAÇÃO
Jane Marques, Paulo Kalvo , Renata Siqueira e Susanne Sassaki
VINICIUS GOMES
PEDRO H. JATOBÁ
JORGE TARQUINI
GABRIEL SANTANA
Autor da matéria de capa, acaba de lançar o livro “Entre Espelhos e Fumaça” pela Editora Letramento. Será coautor na obra “Bernie Sanders e a eleição que não terminou”, que será lançado em breve.
Mestre em Gestão e Desenvolvimento Social pela Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Pedro H. Jatobá escreveu sobre “colonização digital”.
Mestre em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo, com especialização em Publishing pela Stanford University, Tarquini escreveu sobre mídia e poder na matéria “As novas leis do Universo”.
Estudante de Direito e integrante do movimento social RAiZ Cidadanista em São Paulo, Gabriel colaborou com uma análise sobre o socialismo no mundo, a partir das eleições americanas de 2020.
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Povos originários Preservação
VEJA AS FOTOS E TIRE SUAS CONCLUSÕES Povos indígenas preservam mais
Série de imagens feita por satélites do Google em parceria realizada com a Funai: a diferença entre o território indígena e a área não demarcada é prova da necessidade de preservação pelos povos originários.
ecossistemas em reservas do que brancos em torno delas. Ocupação urbana e agronegócio devastam mais e de maneira mais rápida.
XIKRIN DO RIO CATETE
Área desmatada ao redor da área de terras indígenas no estado do Pará
PARQUE DO XINGU
CAPOTO/JARINA
RESERVA DE KAYAPÓ
FOTOS GOOGLE EARTH
O Parque do Xingu foi o primeiro território reconhecido como terra indígena em 1961
A terra indígena de Capoto/Jarina fica no estado do Mato Grosso
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O território Kayapó está localizado dentro da região da Amazônia
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“PARA NÓS, O TERRITÓRIO É SAGRADO, PRECISAMOS DELE PARA EXISTIR. VOCÊS OLHAM PARA A TERRA INDÍGENA E CHAMAM DE IMPRODUTIVA. NÓS CHAMAMOS DE VIDA.” SÔNIA GUAJAJARA
Líder indígena da APIB em resposta à parlamentar Soraia Thronicke (PSL) em audiência pública sobre o povo indígena em Brasília
EM SÃO PAULO
O direito dos indígenas, às suas terras tradicionais, está previsto na Constituição Federal de 1988, no art. 231. O processo de demarcação é disciplinado pelo Decreto nº1775/96.
A terra indígena Rio Branco está localizada nos municípios de Itanhaém, São Vicente e São Paulo
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Assembleia Capitalismo consciente? “Capitalismo consciente, na minha percepção, é o entendimento que os negócios (as empresas) podem contribuir diretamente na solução de problemas sociais, ambientais , políticos, econômicos e habitacionais. É pensar nosso negócio como uma ferramenta de construção de uma cidade e uma sociedade melhor para se viver. É alinhar nossas crenças pessoais do que é um mundo melhor com as atividades do dia a dia da companhia. Missão, propósito e valores não podem estar ligados apenas ao retorno do investidor, à qualidade do seu produto/serviço e da perenidade da empresa. Devemos estar conscientes do nosso papel como companhia num ecossistema de stakeholders que se beneficia (ou não !) a cada ação ou estratégia no negócio. Para isso, devemos tomá-las, sempre, de forma consciente e com genuíno intuito de contribuir de dentro para fora.”
ANDRÉ CZITROM, 35 anos, é engenheiro civil e trabalha no setor de construção e incorporação há 19 anos. É sócio da MAGIKJC Empreendimentos, empresa com a certificação do Sistema B.
EXISTE CAPITALISMO CONSCIENTE? Fizemos a pergunta para um empresário e um estudante. Qual é a sua opinão sobre: um movimento de empresas que pensa em mudar o sistema?
GABRIEL SANTANA, 22 anos é estudante de Direito e ativista de movimentos de esquerda. É integrante da coordenação nacional da RAiZ Cidadanista e filiado ao PSOL.
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Eu acho que o capitalismo consciente é sempre preferível ao capitalismo predatório. Pensar em morador de periferia pobre se organizando para formar uma empresa consciente, que defenda pautas sociais e ambientais, seria ótimo. O que não pode é achar que esse tipo de empresa possa ser, sozinha, ferramenta para uma verdadeira transformação social. Quando o assunto são grandes empresas, tendo a ser ainda mais cético. Não há dúvida que algumas delas promovam esforços. Mas tem algumas pautas, como taxação progressiva ou mesmo coletivização dos meios de produção, que sempre estarão fora do escopo desses grupos. Até lembra o que ocorreu no fim da Idade Moderna com o despotismo esclarecido: monarcas absolutistas tentavam continuar populares com algumas medidas progressistas. Agora, você pode falar, mas é melhor um déspota esclarecido do que um déspota ignorante. Verdade. Mas melhor ainda seria um mundo sem déspotas (de qualquer tipo).
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3 fatos Capitalismo consciente Por Gabriel Santana
VENEZUELA EM 3 FATOS Misture rescaldos de uma guerra, petróleo e a polarização de dois líderes e ainda faltará muito para entender a Venezuela.
Guerra Fria II Para muitos repórteres, as tensões entre o atual presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, apoiado política e financeiramente pela Rússia, e o principal opositor, Juan Guaidó, apoiado em discursos por Donald Trump, pode representar um reavivamento das tensões entre Leste e Oeste (Rússia e Estados Unidos). Não é o primeiro conflito em que algo parecido ocorreu. Os conflitos na Ucrânia, por exemplo, também aumentaram as tensões entre as duas superpotências.
FOTOS WIKIMEDIIA
Sobre o petróleo Os interesses internacionais no petróleo venezuelano são, na verdade, difusos. Nos Estados Unidos, por exemplo, há de um lado setores da política, mais ligados ao petróleo extraído em solo estadunidense. Para eles, concorrer, em termos de preço, com o petróleo venezuelano não seria interessante. Há, de outro lado, outros setores da política do país com campanhas financiadas por empresas processadoras de petróleo, como a Exxon Mobil. Para essa empresa, e aqueles próximos a ela, seria interessante um governo venezuelano disposto a vender o seu petróleo a preços baixos. Nem Maduro nem Guaidó Segundo pesquisa feita pelo grupo independente Idea Big Data, no final de janeiro 78% da população dizia apoiar a destituição de Maduro. Entretanto, a situação de Juan Guaidó não é tão boa: apenas 39% o apoiam. Ademais, pesquisa de 26 de fevereiro do mesmo grupo revela que 52% da população ainda reconhece Maduro como presidente, ante apenas 21% da população que diz reconhecer o autoproclamado Juan Guaidó.
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Entrevista FLORENCE POZNANSKI Por Ivan Zumalde
COLETES AMARELOS
ENTREVISTA COM FLORENCE POZNANSKI
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movimento amarelo segue vivo nas ruas de Paris. Desde que começaram os protestos, em outubro de 2018, os coletes já redefiniram o jogo de xadrez da política francesa, ao mesmo tempo que mobilizavam outras forças em torno dos protestos contra o aumento do diesel e, claro, contra o governo de Macron. Nas trincheiras, está o Parti de Gauche, partido ecossocialista liderado por Jean-Luc Mélenchon e que luta contra o neoliberalismo. Em entrevista exclusiva à revista Cidadanista, Florence Poznanski, da direção nacional do partido, destaca as diferenças e semelhanças com o Brasil e lança suas apostas para o futuro do movimento. 10
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Florence Poznanski, 34 anos, ativista dos direitos humanos e membro da direção nacional do Parti de Gauche. Ela exerce o mandato de conselheira consular no Brasil.
CIDADANISTA Como comparar as motivações dos coletes amarelos na França com a greve dos caminhoneiros no Brasil em 2018? Quais semelhanças e diferenças existem entre os dois movimentos? FLORENCE Não diria que são as mesmas motivações. Há uma coisa em comum, que é uma reclamação inicial em relação a um custo alto do combustível, mas a razão da insurreição e a forma que tomou são bem distintas. Primeiro pela razão. No caso dos caminhoneiros foi uma reclamação ligada à progressão do aumento que não parava de crescer (mais de 21% ao longo do ano) e a redução do imposto sobre o combustível. Tratou-se de uma reivindicação bem corporativa, que foi, inclusive, apoiada pelos próprios empresários. No caso dos coletes amarelos, o estopim foi de fato o aumento do custo do diesel (e não da gasolina como um todo) devido a uma taxa que o governo quis implementar por razões ambientais, já que esse combustível é o mais poluente e ainda o mais barato. A revolta nasceu dos trabalhadores, que, ao verem o custo do diesel crescer, viram ali a gota dágua que fez derramar as condições de vida já muito precarizadas. Não se tratou apenas de denunciar o aumento do combustível para uma corporação, mas de dizer que, com esse aumento, eles não teriam condição de ir ao trabalho, de fechar o fim do mês. Podemos de fato ver que, em ambos os casos, a sensibilidade com o combustível continua forte. Isso ajuda, inclusive, a entender o perfil do movimento dos coletes amarelos. À diferença do Brasil, a França tem uma grande rede ferroviária que coFOTOS WIKIMEDIA revista CIDADANISTA
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Entrevista FLORENCE POZNANSKI
necta a maioria das cidades do país. Mas há mais de uma década, muitas linhas regionais foram fechadas por falta de lucratividade. Junto com elas, muitos serviços públicos (escolas, maternidades, postos de bombeiros, agência de correio). Então, no caso da França, se o ponto de partida foi esse aumento do preço do diesel, a pauta principal que contribuiu para o movimento crescer foi a insatisfação generalizada de uma ampla camada da população que vive nas regiões rurais ou periurbanas das cidades e que está em situação de precarização avançada, com pouco amparo por parte do Estado. CIDADANISTA Acredita que a motivação ambiental em taxar os combustíveis fósseis é legítima ou apenas uma maneira de “suavizar” o aumento para melhorar a arrecadação do governo? FLORENCE É fundamental implementar alternativas para reduzir o consumo de combustíveis fósseis e principalmente o diesel, que continua sendo muito mais poluente que a gasolina. O que o movimento mostrou é a injustiça que essa taxa estava causando. Taxar o diesel pode ser uma opção, mas torna-se perversa quando isso passa a pesar de uma maneira discrepante nos bolsos da população mais vulnerável. Digo perverso, pelo menos, por duas razões. Uma é que não está se taxando o querosene, por exemplo, enquanto se sabe que o transporte aéreo é muito mais poluente que o transporte terrestre. A outra é que não está sendo dada a essa população outra opção que usar o carro, já que as linhas
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de trem e os serviços públicos de proximidade foram fechados. Essa visão ficou muito clara a partir do momento que os próprios movimentos ambientalistas se juntaram à mobilização. Isso foi algo muito importante, que contribuiu a mostrar o alto nível de apoio da sociedade com os coletes amarelos e a pertinência de suas reivindicações em convergência com outras lutas atuais. Houve várias marchas verdes e amarelas – não em homenagem ao Brasil, mas para juntar com as pautas ecológicas. E a palavra de ordem é perfeita para demonstrar isso : “Fim do mundo, fim do mês: mesma luta”. Ou seja, não vamos sacrificar os mais pobres para salvar o clima. Isso, inclusive, é algo profundo na nossa reflexão ecossocialista. Entendemos que a transição ecológica é um processo para tornar a sociedade mais igualitária. CIDADANISTA Como acha que a esquerda em geral e os partidos progressistas da França estão se relacionando com os protestos e os manifestantes? Acredita ser um movimento antissistema e/ou contra o capitalismo mundial? FLORENCE Acho que pode ser um pouco dos dois. Essa divisão é tênue porque o capitalismo é parte integrante do sistema. De fato, a principal dificuldade do movimento é a ausência de um projeto político alternativo claro. Mas quando a gente analisa o perfil dos coletes amarelos, entendemos claramente o porquê. A maioria das pessoas nunca tinha manifestado antes e já tinha deixado de votar há muito tempo. Ou seja, pessoas total-
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“A ESSÊNCIA DO MOVIMENTO NÃO É PROPOR UMA ALTERNATIVA AO MODELO CAPITALISTA, MAS APONTAR UMA COMBATIVIDADE RARA” mente afastadas da política, não necessariamente por escolha, mas porque o próprio sistema político já não atendia mais às suas necessidades: pessoas que têm emprego, mas não conseguem arcar com as despesas mensais, pessoas desempregadas há anos, etc. Por isso que, ao longo dos meses, o movimento conseguiu se organizar em torno de várias reivindicações e com algumas lideranças destacando-se. A essência do movimento não é de propor uma alternativa ao modelo capitalista, mas apontar uma combatividade rara, os limites do sistema capitalista e elitista atual. Sem sombra de dúvida, havia 50 anos, desde maio de 1968, que os governantes não sentiam com tanta amplitude a força da contestação social. E não é à toa se isso acontece com o governo Macron que, em menos de dois anos de mandato, ilustra mais do que ninguém seu desprezo para as classes populares. O movimento, sendo de oposição, ele tem a simpatia da maioria dos partidos. Muitos políticos tanto de esquerda quanto de direita foram às ruas em algum momento para apoiar. Mas, para a maioria, isso não vai muito além de um posicionamento tático devido ao fato que o movimento tem um grande apoio popular. Nem todos defendem as pautas dos coletes amarelos, que são principalmente a volta do
imposto sobre as grandes fortunas e a implementação do referendum de iniciativa popular. A direita, por exemplo, aproveita-se do caráter extremamente violento do movimento para condenar todos os manifestantes, junto com o governo, abrindo, inclusive, projeto para aprovação de uma lei de repressão ao direito de se manifestar. Por outro lado, alguns atos racistas ou antissemitas praticados por indivíduos do movimento, foram amplamente denunciados por todos os partidos. CIDADANISTA Como analisa a rejeição ao governo de Macron? Acha que é um desgaste contra o presidente e as políticas dele ou um movimento contra os políticos de maneira geral? FLORENCE Houve alguns pedidos de demissão que não estão sendo seguidos por todos os setores. Nós, por exemplo, pedimos que novas eleições parlamentares ocorram ou que Macron convoque uma constituinte. Macron é o atual presidente e, como já disse, seu comportamento e suas políticas justificam essa revolta. Mas é claro que as razões são mais profundas. O processo de redução das despesas públicas, que está causando progressivamente a precarização da sociedade, é algo em curso há mais de 30 anos, onde presidentes de esquerda, como Mitterrand e Hollande, têm sua par-
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Entrevista FLORENCE POZNANSKI
te de responsabilidade. Esse grito, que vem de muito longe, é a força do movimento, mas também seu principal perigo. Porque, depois de décadas de desgastes, muitos coletes amarelos não acreditam mais no sistema político e não estão dispostos a negociar pontualmente seguindo processos institucionais. Isso pode ser fértil para a vitória de um movimento político disruptivo como vimos aqui no Brasil com a chegada de Bolsonaro, mas pode também contribuir para que, mais para frente, algo mais revolucionário surja desses movimentos. Pois ele continua se organizando, com assembleias, brigadas locais, redes de apoio, coletivos de mídia e até a criação de micropartidos políticos. CIDADANISTA E como o Parti de Gauche está atuando no momento junto ao movimento e quais outras ações o partido tem planejado para o futuro? FLORENCE A principal dificuldade para os partidos é que o movimento dos coletes amarelos mostra-se descrente em relação a todos os partidos. Não se identifica nem com a direita, nem com a esquerda. Isso faz com que não possamos simplesmente apoiar ou procurar nos juntar. É preciso respeitar essa fronteira que nos está sendo colocada. Por outro lado, o movimento dos coletes amarelos é, por essência, um movimento agregador e de diálogo. Seus principais focos são, desde o início, as rotatórias das estradas, onde grupos ficaram durante todo o inverno acampados. A partir do momento que você veste um colete amarelo, você se torna parte dele. Isso faz com que haja lugar
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para várias lutas, várias redes se criarem dentro desse movimento. Foi assim que movimentos ambientalistas, estudantis e de professores, que estão reivindicando suas pautas específicas, também se agregaram ao movimento. Entendemos, assim, que temos dois papéis principais. O primeiro é entender e dialogar com os manifestantes. Foi assim, por exemplo, que a bancada da França Insubmissa apresentou um projeto de lei para implementar o referendum de iniciativa cidadã, que é uma das principais reivindicações do movimento. Não era uma bandeira do nosso programa político, mas entendemos que precisávamos dar voz a essa demanda na casa legislativa. O segundo é contribuir para politizar as pautas em torno de um projeto político, que é justamente o salto que o movimento dos coletes amarelos precisa fazer para incidir no sistema político. Mas, nossa principal atuação tem sido na base mesmo, participando do cotidiano da luta. Muitos companheiros nossos são coletes amarelos, vestem o colete com muito orgulho. Com isso, temos garantido presença quase permanente nos atos e nas principais atividades promovidas pelo movimento desde o início. Ultimamente, algumas lideranças do movimento têm procurado promover algumas convergências com centrais sindicais e partidos de esquerda. Tenho certeza de que teremos ainda muito para falar.
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A diferença nos une A RAiZ se faz por círculos cidadanistas. Conheça mais e crie o seu. Informações em raiz.org.br e nas redes sociais da RAiZ
Arte de resistência Paulo Kalvo
DESENHAR POR CAUSAS A arte de Paulo Kalvo serve às
causas em que ele acredita. Seleção do ilustrador mostra temas recentes e personagens brasileiros
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atural de Salvador, Paulo Kalvo, sempre se interessou pelo desenho. Ao descobrir o universo das histórias em quadrinhos, ainda na infância, decidiu tornar-se ilustrador. Suas obras abordam temas desde a cultura pop até o cotidiano brasileiro, suas regiões, seus personagens e sua política. Cursou Artes Plásticas na UFBA e Design Gráfico na UNIFACS. Atuou como designer e assistente de cenografia até que, em 2010, mudou-se para São Paulo para continuar os seus estudos em ilustração, histórias em quadrinhos e aprofundar-se na pintura digital. Em 2015, atuou como educador em um projeto social e, desde então, alia a sua arte ao seu ativismo político. Atualmente, trabalha como ilustrador, artista plástico, tatuador e ativista pelo MTST.
O artista tem trabalhos com forte apelo ativista, que publica em sua rede social: instagram.com/ paulokalvo
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O que é Ecossocialismo Texto originário de raiz.org.br
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O QUE É ECOSSOCIALISMO Pensamento é uma convergência entre ecologia e socialismo e um dos eixos fundamentais do movimento RAiZ Cidadanista
O Ubuntu, em comunhão com o ecossocialismo e Tekó Porã, formam os três pensamentos do movimento RAiZ
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cossocialismo é uma reflexão crítica que resulta da convergência entre reflexão ecológica, reflexão socialista e reflexão marxista. O capitalismo é insustentável, sua lógica de reprodução e lucro não prevê limites, extraindo tudo e todos à sua frente, incluindo sonhos. Caso siga o atual modelo de consumo, o planeta estará definitivamente exaurido em poucas gerações. Não temos o direito de seguir roubando o futuro dos que estão por vir. Para reverter esse processo, o único caminho é a Revolução Ecológica, cuja necessidade histórica parte de três premissas básicas: A) estamos em meio a uma crise ambiental global e de tal enormidade que a teia da vida de todo o planeta está ameaçada e com isto o futuro da civilização; B) a crítica ao modelo capitalista vigente e ao consumismo predatório e desenfreado; C) a crítica às revoluções sociais do século XX que tiveram por matriz ideológica o socialismo real, mas que apenas reproduziram o produtivismo predatório do modo capitalista“ de produção. A proposta de uma Revolução Ecológica baseada no ecossocialismo representa, ao mesmo tempo, o resgate dos ideários emancipatórios construídos pelos movimentos sociais contestatórios e a rejeição às ilusões dos que pretendem apenas reformar o sistema vigente. Ela incorpora os valores de convivência solidária do Tekó Porã (Bem Viver) e Ubuntu, com valores éticos profun-
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O ECOSSOCIALISMO PASSA PELA FORMAÇÃO DE CADEIAS PRODUTIVAS LOCAIS, APROXIMANDO PRODUÇÃO E CONSUMO E, SOBRETUDO, APROXIMANDO GENTE E DISTRIBUINDO RENDA
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O ecossocialismo carrega a premissa da preservação do meio ambiente
dos do comum, visando à construção de uma cidadania ativa e solidária. O atual sistema capitalista é incapaz de regular, muito menos superar, as crises que deflagra; isso porque fazê-lo implicaria pôr limites ao processo de acumulação do capital, uma opção inaceitável para um sistema baseado na regra “cresça ou morra”. É da lógica do sistema preferir “crescer e matar”. E assim estão matando o planeta, pois o sistema capitalista mundial é, na linguagem da ecologia, profundamente insustentável e, para que haja futuro, deve ser ultrapassado e substituído. O ecossocialismo passa pela formação de cadeias produtivas locais, aproximando produção e consumo e, sobretudo, aproximando gente e distribuindo renda. No lugar de seguir subsidiando a indústria automobilística, com créditos e incentivos fiscais para um transporte individual, de baixa escala e poluente, o incentivo ao transporte público, limpo, de qualidade e eficiente. Trens e hidrovias integrando o Brasil, metrôs, bondes e ciclovias, em transporte seguro, rápido e
barato. Ônibus elétricos de nova geração, silenciosos, confortáveis. Tecnologias sustentáveis para o saneamento básico, com água limpa e esgoto tratado, para todos, em um Brasil em que ainda há muito por fazer nesta área. Em vez de usinas de energia, destruindo rios e florestas ou poluindo a atmosfera com suas fumaças e radiações, unidades autossustentáveis, com matriz energética diversificada, limpa e renovável; até edifícios e casas podem produzir a energia que consomem, assim como é necessário estabelecer novos padrões de eficiência no consumo energético, bem como na geração, transmissão e distribuição de energia. Com a Revolução Ecológica baseada no ecossocialismo, decrescemos na concentração, na ostentação, no supérfluo e crescemos apenas onde é necessário. Tudo isso gera riqueza, cria empregos, tecnologia, conhecimentos e solidariedade.
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Tekó Porã é uma palavra indígena de origem Guarani que significa Bem Viver, ou em quéchua, Sumak Kawsai
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LGBTQ+ Transgênero Por Fernanda Patrocínio
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TRANSEMPREGOS FOMENTA INCLUSÃO DE PESSOAS TRANSGÊNERAS Criado em 2013, o projeto TransEmprego tem como foco a empregabilidade de transgêneros no Brasil
“ISSO SE DÁ PORQUE ANTES SÓ HAVIA EXCLUSÃO. AO MESMO TEMPO EM QUE ESTE FATO ‘É UMA ALEGRIA, REVELA TAMBÉM O ATRASO. HÁ PESSOAS QUE MORRERÃO SEM TER DIREITO AO EMPREGO”
m exercício mental prático: quantas pessoas gays, lésbicas ou bissexuais trabalham com você? “Se eu olho para LGBTs, eles também estão em cargos de liderança, mas não necessariamente se assumem no ambiente de trabalho. Nem sempre falam sobre a sua orientação sexual e, mesmo quando falam, são muito comuns as situações de preconceito e todo tipo de violência nas organizações”, alerta Ricardo Sales, consultor da Mais Diversidade. Retomando o exercício mental: e quantas pessoas trans trabalham com você? “E se a gente fizer o recorte pensando nas pessoas trans aí, de fato, temos uma exclusão muitíssimo grande”, ressalta Sales. Os números não mentem essa realidade, pois, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), a partir do estudo Mapa dos Assassinatos de Travestis e Transexuais no Brasil em 2017, “90% de travestis e transexuais utilizam a prostituição como fonte de renda e possibilidade de subsistência”. Além disso, 13 anos é a idade média em que travestis e pessoas transgêneras são expulsas de casa. Segundo dados do projeto Além do Arco-Íris, da AfroReggae, apenas 0,02% dos trans estão na universidade, 72% não possuem o Ensino Médio e 56% não concluíram o Ensino Fundamental. Dentre as consequências desse quadro, que reflete exclusão social, familiar e escolar, relacionam-se às dificuldades de inserção de travestis e pessoas transgêneras no mercado formal de trabalho.
INCLUSÃO É A CHAVE Iniciativas como o TransEmpregos auxiliam na inserção da população trans e não binária em empresas. Criado em 2013, o projeto tem
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como foco a empregabilidade de pessoas transgêneras, fazendo a intermediação entre candidatos e empresas, bem como preparando empresas e corporações para praticar a inclusão, de fato. Maitê Schneider, consultora de diversidade e uma das fundadoras do TransEmpregos, conta que, há 16 anos, em Curitiba, ela fundou a ONG Transgrupo Marcela Braga e que, por intermédio deste grupo, houve incentivo para cursinhos preparatórios exclusivos para pessoas trans. “Elas começaram a estudar, terminaram o Ensino Fundamental, Médio e também as graduações. Só que começaram a reclamar de um problema: apesar das qualificações educacionais, nas mais diversas áreas, não havia emprego/acesso a elas”. E desse problema, após diálogos entre Schneider e nomes como Márcia Rocha e Laerte Coutinho, surgiu a ideia do TransEmpregos. Ao dialogarem com as empresas, a con-
sultora afirma que era comum ouvir respostas como: “Não sabia que tinha gente qualificada” e “Achei que todas eram prostitutas”, numa reprodução de estigmas e preconceitos. Ela cita, em alguns casos, que há homens e mulheres trans que têm conseguido seu primeiro emprego formal somente agora, com mais de 50 anos. “Isso se dá porque antes só havia exclusão. Ao mesmo tempo em que este fato é uma alegria, revela também o atraso. Há pessoas que morrerão sem ter direito ao emprego”, afirma. O trabalho do TransEmpregos hoje se dá em três movimentos. O primeiro é receber currículos de pessoas trans gratuitamente (é possível fazer o cadastro no site www.transempregos.com.br) e fazer essa ponte com as empresas que estejam aptas para a inclusão. É muito importante que a organização esteja pronta. É aí que entra o segundo movimento da TransEmpregos, que é a realização de consultorias para preparar as empresas a serem inclusivas, na prática, e não somente no discurso. “Dialogamos com CEOs, lideranças e funcionários para estarem lidando com a diversidade humana e a variedade de pessoas”, explica a fundadora. Este trabalho demanda tempo e, só depois que a empresa está pronta é feita a ponte entre candidato e organização. O terceiro movimento da TransEmpregos vai além da empregabilidade. “As próprias empresas querem ir além, pois sabem que diversidade traz inovação. Quando a meta é a criatividade, traz retorno produtivo para a empresa”, afirma Schneider. “As empresas estão mudando realidades sociais, cada uma dentro de suas missões e seus valores, trazendo um novo pensamento para melhorar o entorno social”, elucida.
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Tecnopolítica Colonização digital Por Pedro Henrique Jatobá Cooperativa EITA (www.eita.coop.br) Rede das Produtoras Culturais Colaborativas (www.colaborativas.net)
COLONIZAÇÃO DIGITAL Bem-vindo ao futuro! Novos tempos trazem novos “espelhinhos”
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imagem de espelhos trocados pela extração do pau-brasil entre portugueses e os povos originários do nosso território, durante a colonização lusitana, define bem o mito da cordialidade que permeia o imaginário brasileiro como se, nesta terra de gentilezas, a socialização e trocas culturais preponderam sobre as chacinas e doenças que dizimaram significativa parte da população indígena. A madeira pau-brasil, que, no século XV, inspirou o nome do nosso país pela sua cor vermelha, foi considerada o bem mais valioso da colônia, resultando num grande índice de exportação. Nos séculos seguintes, como consequência da evolução e demanda das outras nações que comercializavam com o Brasil colonial, foi ultrapassada por outras riquezas, como a cana-de-açúcar, o café, o ouro, os metais preciosos e, após a República, pelos minérios de ferro e petróleo.
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Na esteira do tempo, as revoluções industrial, eletrônica e das telecomunicações contribuíram para criar novas riquezas, disparidades tecnológicas e, consequentemente, novas formas de colonização. O fim da escravidão, a conquista da escolha de representantes por regime democrático e a liberdade de expressão, no entanto, não encerraram por completo o ciclo de domínio de nações ricas sobre as nações em desenvolvimento, aquelas, apenas, adaptaram o seu modus operandi. Atualizando o Brasil colônia aos tempos de hoje, 519 anos depois das caravelas lusitanas atracarem em praias baianas e inspirarem nossa primeira “fake news” à brasileira, é possível encontrar outros navios multinacionais ancorados em ilhas dos atuais shoppings centers, abundantes em toda a costa brasileira. O interesse da colonização atual é semelhante ao do século XV: conseguir o máximo de riquezas, custe o que custar. Contudo, o colonialismo do século XXI não se limita a extrair riquezas naturais, mas visa também minerar dados. Nesta troca mútua, onde a tecnologia é oferecida a baixo custo ou, algumas vezes, através de serviços gratuitos, o que se deseja em troca é algo, mais uma vez, abundante e que pode ser fornecido sem custo por nós: dados e informações. Estes dados isolados parecem insignificantes, porém, se agrupados por território, idade, gênero, classe social, produzem conhecimento sobre a colônia e sua população, de modo que a terra papagalli pode ser manipulada e controlada e suas outras riquezas conquistadas sem a necessidade de sangue. A massificação de dispositivos eletrônicos estrangeiros que rodam sistemas fecha-
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ANGEL BOLIGAN
dos e com serviços gratuitos através da internet, se apropriando dos dados por meio de licenças e termos de uso que são aceitos sem nenhum entendimento, demonstra o sucesso do novo tipo de colonização a que estamos expostos. Com o lançamento recente do primeiro computador quântico comercial pela IBM, teremos, muito em breve, um sistema de inteligência artificial computando em uma velocidade, nunca antes vista, uma quantidade absurda de dados gerados pelas colônias, ampliando a capacidade de grandes corporações incidirem ainda mais diretamente na opinião e escolhas dos povos colonizados. Na era da informação, onde os dados são o novo pau-brasil do século XXI, ainda estamos abobalhados com a modernidade dos espelhos e a capacidade de retratar nossa própria imagem. Cegos pelas comodidades dos aplicativos, não percebemos
O COLONIALISMO DO SÉCULO XXI NÃO SE LIMITA A EXTRAIR RIQUEZAS NATURAIS, MAS VISA TAMBÉM MINERAR DADOS que estamos entregando a riqueza do momento, mais uma vez, pelo simples fato de ela ser abundante. As novas gerações que convivem com celulares desde que nasceram não conseguem, por exemplo, conceber o mundo sem estes dispositivos. Sua constituição de sujeito passa pela criação de “laços afetivos” e apelidos para os aplicativos “inofensivos” que, sem que eles saibam, se apropriam dos seus dados, monitoram suas ações e manipulam suas escolhas. O problema é que quem nasceu em cativeiro pode não conseguir sentir falta da sensação de liberdade que nunca foi vivida.
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Tecnopolítica
NA VIDA HUMANA, HÁ UM TIPO DE SERVIDÃO QUE É VOLUNTÁRIA E EXPRESSA UM AFETO IMPORTANTE: O MEDO.
NÃO HÁ ALMOÇO GRÁTIS NO BANQUETE WEB Apesar da situação alarmante, a solução passa longe de abrirmos mão das facilidades que as tecnologias da informação nos trouxeram, afinal, uma proposição para os problemas do século XXI não deve se pautar no retorno ao modo de vida do século XX. Precisamos da cabeça aberta para aprendermos um conjunto de tecnologias que nos emancipem como seres humanos, em detrimento daquelas que facilitam a vida “gratuitamente” para, na verdade, extrair o máximo de informações sobre nós através da nossa interação. A inteligência artificial que, hoje, “deseja aprender com você” saberá, em pouco tempo, mais sobre você do que seus próprios familiares. Ela poderá induzir desejos de forma personalizada e identificar oportunidades lucrativas para quem as controla. A solução para se libertar do colonialismo digital está no uso efetivo das tecnologias livres da informação. Para contemplar isso, existem diferentes tipos de ferramentas livres desenvolvidas, mantidas e traduzidas por comunidades de desenvolvedores e usuários. Softwares como o sistema operacional GNU/ Linux e suas inúmeras distribuições, ferramentas gráficas, editor e transmissor de áudio e vídeo, hardwares livres como Arduino e Raspberry PI são exemplos das reais conquistas tecnológicas da nossa sociedade. Programadores e usuários de todo o mundo se reúnem em comunidades virtuais para garantirem a manutenção e o desenvolvimento dessas aplicações, facilitando o acesso a essas tecnologias de modo que elas se tornem um bem comum. Em tempos de inovação, o uso de softwares livres permite a abertura de negócios da eco-
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nomia criativa e da cultura digital sem recorrer a grandes investimentos em licença de software e sem funcionar de forma clandestina com cópias ilegais destes aplicativos. Estas tecnologias possuem seu código fonte aberto que pode ser adaptado e modificado a qualquer realidade; podem ser acessadas gratuitamente em sites confiáveis, além de produzirem vasto material didático, como tutoriais, fóruns de usuários e aulas em vídeo para quem realmente desejar sair da pirataria do software proprietário. Na vida humana, há um tipo de servidão que é voluntária e expressa um afeto importante: o medo. O medo de faltar água, alimento, ou de como será o dia seguinte promove o apego ao conhecido. Assim, é melhor viver em cativeiro, onde, apesar da indignidade, o básico está “garantido”. As pessoas não experimentam as tecnologias livres porque estão habituadas às comodidades de um cativeiro. No colonialismo digital, contudo, não sentimos o peso da corrente porque ela é wi-fi, aparentemente, leve como as ondas no ar. As comunidades de tecnologias livres, no entanto, representam atualmente os quilombos brasileiros dos séculos passados e são frutos da união de pessoas que prezam e lutam por sua liberdade. #deQueLADOvocêQuerSAMBAR?
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Você sabe o que é Consenso Progressivo? Estenda a mão e baixe o guia que preparamos
GISELAATJE
http://www.raiz.org.br/media/uploads/2016/02/23/consensov1.pdf
A palavra “consenso” tem origem no latim “consensus” (conformidade ou concordância), que, por sua vez, deriva de “consentio”, que significa literalmente “sentir junto”. E é essa nossa intenção: tomar decisões coletivas sentindo junto, crescendo junto, construindo junto.
Análise SOCIALISMO PARA VIVER Por Gabriel Santana
O SOCIALISMO NÃO MORREU ... e não deve morrer tão cedo. Segue vivo e crescente nos EUA e nas mentes de um mundo cada vez mais dividido
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m 2020 a esquerda passará por um novo gargalo: as eleições presidenciais nos Estados Unidos. A população poderá escolher entre o conservador autoritário Donald Trump, o fantoche da velha política Joe Biden, ou o socialista democrático Bernie Sanders. A batalha e os candidatos não estão totalmente definidos e é impossível saber ao certo o que acontecerá. Mas muitos se atentam a uma eleição que simboliza a força de uma nova esquerda insurgente – nos Estados Unidos e também no mundo inteiro. A popularidade do socialista não é relevante apenas para os estadunidenses. A situação serve também como um termômetro dos humores de um novo pensamento global. As pessoas estão desencantadas com o status quo. As promessas de prosperidade, felicidade e crescimento infinito simplesmente não estão mais
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convencendo o povo, que sofre com a atual realidade econômica. A situação no mundo é de polarização entre campos da direita e da esquerda, que competem o sentimento antissistêmico da população. Na França, por exemplo, é notável as presenças socialistas e anarquistas nos protestos dos coletes amarelos, reação ao descontentamento com políticas de direita promovidas pelo governo de Macron; no Reino Unido, em meio ao caos político do Brexit, disputam forças conservadoras na
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Tio Sam socialista: o império contra-ataca e vê nascer uma esquerda no berço do capital
esteira da saída de Theresa May e um campo mais à esquerda, representado pela liderança socialista/trabalhista do político Jeremy Corbyn. Na Espanha o Partido Socialista Operário Espanhol ganha maioria, enquanto disputa a governabilidade no parlamento com a extrema direita em ascensão, representada pelo partido “VOX” e, mesmo no Brasil, as pessoas já se percebem descontentes com as reformas propostas por Bolsonaro. Ao mesmo tempo, o PSOL se consolida e se
fortalece como força de resistência ao atual governo, tendo duplicado sua bancada no congresso nacional. Como reação à direita, e na busca por competitividade em um cenário polarizado, ressurgem no mundo propostas socialistas. Ideais de luta por igualdade e dignidade. E parte do povo percebe nesses ideais a esperança por um mundo melhor. PAUTA COMUM As propostas de socialistas como Bernie Sanders, Jeremy Corbyn ou o Partido Socialista Operário da Espanha são, surpreendentemente, homogêneas. Estão na retaguarda pelos direitos de minorias viverem vidas plenas, sem se preocuparem com discriminação. Propõem aumento do salário mínimo, moradia como um direito e não um privilégio, e uma plataforma econômica sólida baseada em investimento públicos em setores estratégicos de alta tecnologia e produtos de alto valor agregado. No meio ambiente, o objetivo é claro e urgente: a redução a qualquer custo das emissões de gases do efeito estufa, única forma de a humanidade sobreviver às próximas gerações. E isso é socialismo. A noção básica, e racional, de que todos merecemos viver nossas vidas para o seu maior potencial. De que podemos ser livres para sermos quem quisermos, independentemente de classe social, gênero, cor, ou opção sexual. O entendimento de que, com todas as
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Análise
nossas diferenças, nós somos inerentemente iguais, e que ninguém merece viver às custas dos outros. A análise de pesquisas de opinião mostra que a maioria das pessoas quer essas propostas. Repousa, entretanto, a questão: por que, então, essas pessoas votaram massivamente na extrema direita? COMO A DIREITA USOU A TEMÁTICA ANTISSISTÊMICA PARA CONSEGUIR PODER Por anos, governantes e a elite econômica mundial manipularam a população. Discursos sobre como são necessários sacrifícios, de que é preciso confiar no que já está posto. Explicações sobre “economia ganha-ganha”, mesmo em governos de centro-esquerda a ideia de que os donos do poder são bons samaritanos que ajudariam a todos se não fosse o Estado. Daí a resposta é o cansaço. Uma aversão total à política, um sentimento contra “tudo o que está aí”. Apenas justo em um mundo onde todos os poderosos parecem estar contra o povo. Não significa que não hajam alguns ganhos. Nos Estados Unidos, Barack Obama conseguiu passar o Obamacare, o que na verdade foi, também, ótimo para as seguradoras privadas. No Brasil, o bolsa-família salvou milhões de pessoas da pobreza extrema, também, razoável dentro de uma perspectiva de aquecer a economia para a entrada de multinacionais. Na França, a antiga presidência do dito “Partido Socialista” freou, um pouco, as reformas econômicas impostas pela direita. Mas esses ganhos pequenos, mesmo que significativos, sempre pareceram ter os
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donos do poder em primeiro plano. E isso tem cansado a população. É também necessário reconhecer que algum moralismo impulsionado pela esquerda, mesmo que quase sempre justificável, foi combustível para a aversão das massas. Muitos não queriam ouvir sobre feminismo ou de quais piadas devem rir (não estou menosprezando as temáticas, mas tratando sobre como muitos reagiram a elas). Estavam preocupados se iam ou não conseguir dinheiro para comprar pão. É difícil em meio a tanta brutalidade, parte da vida e pobreza de muitos, encontrar espaço para reflexões identitárias (insisto, não menosprezando essas pautas fundamentais). O que foi preponderante para muitos foi perceber um governo que parecia não se importar com a vida da maioria. A população voltou-se para alguns que se diziam diferentes. Falavam as coisas “que outros não têm coragem de falar”. Extremamente cansados, se voltaram para líderes de língua inflamada. Desprezíveis em todas suas propostas, esses líderes expressavam o sentimento do momento: chega! E por isso ascenderam ao poder. A temática populista de extrema direita foi útil para, mais uma vez, fazer as pessoas irem contra os seus próprios interesses. A arrogância da esquerda e de parte do status quo, que se recusou a levar tais ameaças à democracia a sério, foi útil para os extremistas fingirem ser contra as tradições políticas. Mas assim que eleitos, os políticos de direita fizeram (e fazem) tudo em seus poderes para diminuir os direitos da popula-
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“A PANELA DE PRESSÃO ESTÁ PRONTA PARA ESTOURAR. SÃO BONS TEMPOS PARA SE TORNAR SOCIALISTA.” ção. Seguiram-se cortes de direitos em todo o mundo: no Brasil tentam reformar a previdência; nos EUA a nova política fiscal, mais do que nunca, tira dos pobres para dar aos ricos; na Inglaterra o Brexit serviu na prática apenas para fortalecer a direita conservadora; na França Macron, que mesmo sem ser a extrema direita se aliou a ela em nome da governabilidade, empurra diminuições de impostos para os ricos e repressão policial contra a esquerda. Em suma, pautas de direita ganharam espaço nas políticas de muitos países – o que apenas aumentou a indignação da sociedade. UMA NOVA ESQUERDA Mas toda a ação tem uma reação. Grande parte do povo agora percebe que não pode confiar em salvadores da pátria. Aderem a iniciativas que tentam, verdadeiramente, trazer o povo para a política. E o caminho é aberto para o que há de realmente inovador: iniciativas locais, inclusive para além de pleitos presidenciais, pessoas que insistem em se indignar. O povo percebe que, se quiser mudanças reais, terá de, mais do que ressoar os ideais transmitidos por lideranças, participar ativamente da política. Alexandria Ocasio-Cortez, em
Nova York nos Estados Unidos, por exemplo, atua como voz de diálogo com a população e enfrentamento contra os interesses dos poderosos; no Reino Unido, ativistas jovens tentam mobilizar uma “primavera verde” em campanhas de desobediência civil pela redução de emissões de gases tóxicos. E aqui no Brasil, a esquerda ainda se reorganiza. Já existem exemplos de lutas pelo socialismo que ganham força e legitimidade. Desde grupos como o “Muitas” e o “Juntas”, que desejam hackear a política em nome de mandatos socialistas e feministas, até iniciativas como a RAiZ Cidadanista, que ganha força e inserção como agregador de lutas por um socialismo ecologicamente responsável. Previsões ainda não são possíveis, mas é certo que o povo brasileiro se cansa. Ainda calado, é incubadora de uma nova onda antissistêmica. Mas dessa vez quer falar por conta própria, e não por porta-vozes. Impossível prever ao certo os resultados do que vemos hoje. Mas, apesar de tudo, o que é certo é que se constrói à nossa frente um horizonte de luta contra a opressão. Nesse contexto de extrema polarização entre grupos em total desacordo com os desejos do povo, e outros que tentam lutar por mais direitos, chegamos a um ponto em que nunca foi tão fácil escolher um lado. Alguns ainda insistem na má escolha, mas más escolhas fazem parte da democracia. Aos poucos, o povo percebe que, no fundo, foi enganado. A panela de pressão está pronta para estourar. São bons tempos para se tornar socialista.
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Comunicação MÍDIA E O 5º PODER Por Jorge Tarquini
Esqueça a lógica que reinou no planeta da comunicação e do jornalismo: tudo indica que há vida inteligente em outros cantos do cosmos
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U
m novo big bang. Eis a maneira mais precisa de descrever o que representa a Apple ultrapassar a marca de US$ 1 trilhão – e abrir caminho para uma lista de outras empresas que seguirão “no vácuo”, com Alphabet (leia-se Google) e Facebook puxando a fila. É como se, depois da barreira do som, fosse quebrada a da luz. E com ampla vantagem numérica. Quais são os efeitos dessa nova ordem de fenômenos sobre pessoas e empresas? Quem vai sobreviver ao impacto gigantesco desse “feito”? Como se comportará o ecossistema da comunicação depois disso? Como Einstein descreveu na Teoria da Relatividade, viajar à velocidade da luz faria o tempo parar para o viajante – enquanto todos os demais continuariam no tempo. Em suma: muda tudo como conhecemos. E, no mundo das comunica-
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WIKIMEDIA/REPRODUÇÃO
AS NOVAS LEIS DO UNIVERSO
O que Einstein falaria para Whindersson Nunes?
ções, os efeitos disso tudo talvez sejam mais visíveis e aconteçam mais prontamente que em outros planetas. Essa sensação (ou seria uma realidade?) de que tudo se alterou decorre do fenômeno que transformou tudo em “conteúdo”: jornalismo, serviços, publicidade, entretenimento, redes sociais e até mesmo o e-commerce se abrigaram sob esse guarda-chuva. Um ecossistema completamente desconhecido. Com essa nova lógica, o padrão industrial da comunicação e do jornalismo industrial, baseado na venda de publicidade, simplesmente vira pó. Ou melhor: pulveriza os negócios mais tradicionais. O MEIO NÃO É A MENSAGEM. E NEM DEPENDE DELA... Quando entendemos que Google e Facebook já são o destino de mais de 20% da publicidade mundial, e que a Amazon já
aparece no terceiro degrau do pódio, lutando por uma fatia igualmente suculenta do bolo, percebemos que entramos numa dimensão paralela em todos os sentidos, a começar pelo sentido de que a mídia importa – e não mais quem produz o conteúdo. Afinal, o que produzem Google e Facebook? E a Amazon? E o estranhamento prossegue com questões de escala. No campo do jornalismo, fica evidente nosso descompasso com a nova lógica quando o maior jornal do planeta, o New York Times, comemora efusivamente 3,4 milhões de assinantes digitais (com planos para chegar a 10 milhões em 2025), enquanto o canal de YouTube de um brasileiro, falado em português, tem 29,9 milhões de seguidores. Exemplos dessa desproporção não faltam... Outro efeito criado pelas “novas leis universais” do ecossistema da comunica-
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Comunicação
ção também pode ser descrito pelas ideias de Einstein, como a dos buracos negros: as megaempresas se tornam tão grandes (densas) que basicamente nada (mesmo aquilo que viaja à velocidade da luz) consegue escapar delas – e tudo acaba sendo absorvido por elas. E vemos cada vez mais empresas saudáveis sendo absorvidas por outras, maiores. Disney pode ser um bom exemplo disso: já trouxe para sua órbita (ou seria absorveu?) Pixar, Star Wars, Marvel, X-Men, Simpsons, Avatar, ESPN, Fox Sports, ABC e National Geographic. HAVERÁ VIDA INTELIGENTE (OU NÃO) FORA DOS BURACOS NEGROS? Nesse ecossistema aparentemente condenado a desaparecer diante da força avassaladora criada pelo novo big bang, talvez quem mais corra riscos de absorção ou extinção sejam as empresas que, ao longo do século XX, se tornaram os tais “impérios da mídia”. Haverá forças rebeldes com poder de salvar a galáxia? Veremos “o império contra-ataca”? Enquanto derretem a olhos vistos modelos tradicionais de negócios em comunicação, bem como as grandes empresas que cresceram nessa lógica, olhos mais atentos percebem um movimento oposto. Contracultura, resistência, subversão... Uma guerrilha que promete redesenhar a correlação de forças. O que vemos florescer, aqui e ali, mos-
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NÃO SE TRATA MAIS DE UM CONTRA O OUTRO, UM OU OUTRO: SÃO ECOSSISTEMAS QUE COABITAM. EM PAZ? TALVEZ... tra garra, mas também graça, frescor, novas ideias e um engajamento capaz de chegar aos limites do universo conhecido. Assim como sementes que germinam nas frestas de viadutos e paredões de concreto, projetos inovadores (mas infinitamente menores) que as megacorporações do bilhão e do trilhão, alcançam a luz do dia. E, contra todos os prognósticos, oferecem soluções inovadoras em forma, conteúdo e modelo de negócio. NUNCA ANTES VS. NUNCA MAIS No meio da nuvem de poeira cósmica, observamos que, enquanto supernovas explodem, pequenas estrelas ocupam seu espaço – e seu público. Com narrativas multimídia diferenciadas, dialogando na base de listas, de gamificação, de stories, de posts, novos formatos surgem e proliferam. Estamos falando de Nexo, Vice, Meio, Jota, Wadada, cuja forma de entregar conteúdo praticamente customiza o conteúdo (generalista ou especializado, mas sempre pautado pelo recorte do público). Outros, como Agência Pública/Reportagem Pública, Repórter Brasil, Jorna-
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listas Livres, promovem associações focadas na informação sem a tutela de uma grande corporação. E prometem inovar no modelo de negócios. Se a maioria nasceu (ou se sustenta por um tempo) por meio de crowdfunding, e outras ainda dependem de investidores, sponsors e mecenas, ou de formatos branded (por mais que o consumidor da informação não se atente às letras pequenas, como no caso do Info Money, vinculado à XP Investimentos), é impossível não perceber que o principal valor dessas novas experiências de resistência não vem propriamente da monetização. Menos ainda se a fonte for a publicidade. Então, por que tanto barulho? O alcance e o poder de estabelecer diálogo com as novas gerações? A liberdade para experimentar, que os “grandes” não podem ter (pois é alto o custo de “errar”)? O domínio das novas lógicas do ecossistema da informação? O que sabemos é que não tem preço existir informação de qualidade circulando fora do meio tradicional (e dos formatos de negócios, idem). Claro que a pergunta que não quer calar, para a quase totalidade dos exemplos
citados (exceto as claramente patrocinadas e as de financiamento coletivo), é a mesma: de onde vem/virá o dinheiro? O fato de serem uma alternativa à concentração absurda de poder das megacorporações, não significa que sobrevivam de vento ou de boas intenções (como ingenuamente muita gente pode crer...). Difícil dizer se e por quanto tempo essas experiências todas vão sobreviver – e no que vão se transformar. Mas uma coisa é fato: é alvissareiro saber que elas existem e, neste momento, nos dão o alento de saber que não vamos depender somente dos monopólios cada vez maiores das empresas do trilhão, como negócio e como visão de mundo. Não se trata mais de “um contra o outro”, “um ou outro”: são ecossistemas que coabitam. Em paz? Talvez... E, para finalizar, apenas lembro de mais uma lei da Física: após vencer a velocidade da luz, quanto mais rapidamente um objeto se move, mais aumenta sua massa. Pela teoria de Einstein, sua massa se tornaria infinita. O que exige energia infinita para mover tal objeto. O que, sabemos, é impossível...
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REPRODUÇÃO GOOGLE
Quem é Betina?
Reportagem especial SEGURANÇA PARA QUEM? Por Vinicius Gomes
PAra que serve UMA arma?
No país em que mais se mata com armas de fogo, políticas de segurança pública, direito à legítima defesa, abertura do mercado às armas estrangeiras e o Estatuto do Desarmamento são colocados à prova sob o governo de Jair Bolsonaro
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e muitas maneiras, os dias 13 e 14 de março ficarão marcados na história da política brasileira, na discussão sobre segurança pública e no debate sobre as flexibilizações do posse e porte de arma no país. Foi em 14 de março de 2018 que a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) foi assassinada em um ataque premeditado e realizado por, todas as evidências indicam, grupos milicianos no Rio de Janeiro. O motorista Anderson Gomes também foi uma vítima fatal do ataque. Numa triste coincidência, um dia antes de suas mortes terem completado um ano, dois ex-alunos da Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, cerca de 50 quilômetros da capital paulista, entraram ar-
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Reportagem especial
mados na antiga escola e protagonizaram um dos episódios mais trágicos de nossa história recente, ao assassinarem sete alunos e funcionários, além de deixar onze feridos. O assassino mais velho tinha 25 anos, o mais jovem, 17. A semelhança com os massacres a que frequentemente assistimos ocorrendo nos Estados Unidos – onde há cidades em que se podem comprar armas e munições até mesmo em supermercados – era perturbadora. Entre todos os problemas de violência que a sociedade brasileira precisa conviver, crianças e adolescentes sendo mortos dentro de suas escolas não eram um deles. Ao menos, ainda. Nesse mesmo dia, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) apresentava seu primeiro projeto no cargo. Tratava-se do PL 1451/19 em que se autoriza a instalação de fábricas civis destinadas ao fabrico de armas e munições de guerra no país, revertendo a legislação atual (decreto 24.602, de 1934) em que se proíbe tal cenário. O projeto do senador diz que, ao existir uma licitação para compras e contratações por órgãos da administração pública, fica vedado o estabelecimento de qualquer condição que represente monopólio ou reserva de mercado, “de modo a restringir ou inviabilizar a participação de empresas estrangeiras”. Em sua essência, ainda que não expressa, a proposta de lei do senador pode ser mais uma medida que visa quebrar o chamado “monopólio da Taurus”, algo que todos os políticos eleitos da família Bolsonaro já se manifestaram a favor, incluindo o atual presidente. Em um vídeo publicado pouco após sua eleição, Jair
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Bolsonaro aconselha apoiadores a não comprar armas, pois, com um “decretão”, ele acabaria com o monopólio. Presumivelmente, ele se referia à Taurus. A discussão sobre o comércio de armas e os direitos envolvidos a ele é uma das questões mais polarizadoras no Brasil.Não haveria como ser de outra maneira em um país que registra mais mortes por armas de fogo do que qualquer outro no planeta – incluindo aqueles envolvidos em conflitos armados. O debate, porém, ganhou ainda mais força com a eleição do atual presidente, cuja própria identidade tornou-se quase indissociável das armas, tendo no gesto universal com os dedos indicadores e polegares, o seu maior símbolo. Para discutir esses temas, a reportagem buscou instituições, especialistas, políticos e indivíduos ligados ao comércio de armas a fim de compreender melhor o cenário em que o Brasil se encontra e para onde ele pode rumar.
A questão dos decretos
Não foi exatamente como os mais entusiasmados com a ideia esperavam que acontecesse. Considerado, de certa maneira, tímido, o decreto presidencial de Jair Messias Bolsonaro sobre o direito de posse de armas, em 15 de janeiro, retirou a discricionalidade dos delegados das Polícias Federais em conceder ou não a autorização pela posse, sendo necessário apenas o cumprimento de seus requisitos para tal: ter mais de 25 anos, não ter antecedentes criminais e comprovar residência.
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ALGUMAS ALTERAÇÕES SOBRE PORTE DE ARMAS NO ESTATUTO DO DESARMAMENTO Lei 10.867/04 - Porte de armas às Guardas Municipais, quando em serviço, de cidades com mais de 50.000 habitantes; Lei 11.501/07 - Porte de armas a auditores da Receita Federal e auditores-fiscais do Trabalho ; Lei 12.694/12 - Porte de armas a servidores das áreas de segurança dos tribunais e Ministério Público; Lei 12.993/14 - Porte de armas a agentes prisionais. Fonte: Instituto Sou da Paz
O passo mais ousado viria na primeira semana de maio, com o decreto presidencial 9.785 facilitando o porte de armas e estendendo o direito a categorias profissionais aleatórias, como políticos eleitos, advogados, caminhoneiros e até mesmo a jornalistas que fazem cobertura policial. Não demorou, todavia, para que logo se encontrassem fissuras em sua legalidade. Ao fazer um decreto que contraria uma lei já existente sobre o tema, Bolsonaro tornou o decreto 9.785 inconstitucional. Ainda assim, essa medida de Bolsonaro talvez tenha sido a mais ousada rumo ao desmantelamento do Estatuto do De-
sarmamento (Lei 10.826/2003), e que, desde que foi aprovado no final do primeiro ano do governo de Luís Inácio Lula da Silva, vem sofrendo constantes desidratações em suas medidas de controle de armas e munições. (veja no boxe ao lado). Até o momento, 362 propostas de lei foram apresentadas com intenção de alterar o estatuto; 187 seguem em tramitação. Para seus defensores, o Estatuto é uma legislação onde se inaugura uma política de controle de armamento de fogo e munições, tratando-se de importante política de segurança pública no combate às mortes violentas causadas por armas de fogo. Para seus detratores, a política desarmamentista é ineficaz, e a maior prova disso está cristalizada no Estatuto, pois, desde sua aprovação, o número de homicídios deveria ter baixado, não aumentado. Mas de acordo com David Marques, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), uma vez que se analisa o ritmo do crescimento de homicídios pré e pós-Estatuto, as evidências apontam na direção contrária desse argumento. “O que é possível verificar é que, se não houvesse o Estatuto do Desarmamento, teríamos uma taxa de homicídios ainda maior”, afirma. As estatísticas mostram que, entre 1980 e 2003, o crescimento dos homicídios por arma de fogo foi sistemático e constante, 8,1% ao ano, e cujo ritmo foi interrompido apenas em 2004, com uma queda registrada nos primeiros anos, e uma oscilação controlada nos seguintes (veja boxe na página seguinte). Segundo especialistas, o Estatuto e a Campanha do Desarmamento constituíram fatores de-
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terminantes para tal. É somente em 2012 que há uma retomada na taxa de homicídios por armas de fogo, com um salto para 40.077, e um crescimento contínuo a partir de então, chegando a 44.475 em 2016. Curiosamente, o fato de o Brasil ser o país onde mais se mata com armas de fogo no mundo, deixando para trás países que, há anos, estão envolvidos em conflitos armados (veja boxe na página ao lado), é utilizado como argumento em ambos espectros da discussão. “Foi sob a égide desta restritiva legislação que o Brasil alcançou o topo do ranking de homicídios do mundo”, afirma o deputado federal Rogério Peninha (MDB-SC), e autor da PL 3722/12, considerada, até então, a medida mais abrangente para o fim do Estatuto. Para o deputado, são esses números que sedimentam sua proposta: “As famílias, ano após ano, estão cada vez mais trancadas em suas próprias casas, sem poder se defender. Ninguém vai sair distribuindo armas. O que nós queremos é oferecer a opção de escolha para os cidadãos de bem”. A questão da legítima defesa é outro ponto nevrálgico na discussão do tema. Para o capitão da Polícia Militar e deputado federal Guilherme Derrite (PP-SP), é disso que tratam as flexibilizações. “A flexibilização da posse e do porte de armas não é uma questão de segurança pública, mas, sim, de legítima defesa”, afirma o deputado. “Em todas as legislações do mundo ocidental existe a figura da legítima defesa, assim como há em nosso Código Penal, em seu artigo 25, o que, em verdade, é um direito fundamental das pessoas de protegerem a sua própria existência”.
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TAXA DE HOMICÍDIOS POR ARMAS DE FOGO NO BRASIL 1980 – 6.104 1983 – 6.413 1993 – 17.002
Fonte: Mapa da Violência / IPEA
Reportagem especial
2003 – 36.115 2004 – 34.187 2005 – 33.419 2006 – 34.921 2007 – 34.147 2008 – 35.676 2009 – 36.624 2010 – 36.792 2011 – 36.737 2012 – 40.077 2013 – 40.369 2014 – 42.755 2015 – 41.817 2016 – 44.475
Há quem, no entanto, enxergue as facilitações do acesso às armas mais para veneno que remédio. Em seu mais recente anuário, o FBSP encontrou evidências de que há uma migração bastante alta de armas compradas legalmente indo parar, de uma maneira ou de outra, no mercado ilegal. Na pesquisa, verificou-se que em 2017 quase 120 mil armas foram apreendidas em todo o país pelas polícias. Nesse mesmo ano, quase 14 mil armas foram registradas pelos proprietários como perdidas, furtadas, roubadas ou extraviadas. De acordo com o estudo, esse foi o equivalente a 11,5% do total de armas apreendidas no mesmo ano. Comparativamente, é como se um mês de trabalho das polícias tivesse se perdido, porque novas armas
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Fonte: A Guerra do Brasil (O Globo) / Fórum Brasileiro de Segurança Pública / IPEA
COMPARAÇÃO DE MORTES VIOLENTAS ENTRE BRASIL E GUERRAS E ATENTADOS TERRORISTAS
brasil
(2001-2017)
883.177
828.808
passaram para a criminalidade. Segundo Marques, é justamente nessa corrida armamentista que as flexibilizações possibilitarão que mais armas terminem na ilegalidade – armas que, no fim, são vetores de cometimento de mais crimes. “71% dos homicídios cometidos no país são com arma de fogo. Nos roubos, a mesma lógica se aplica: quase todos os roubos realizados são com armas de fogo”, argumenta. Outra consequência levantada pelo pesquisador é o potencial aumento nas ocorrências com desfecho letal, citando como os próprios policiais costumam ser muito mais vitimados em folga ou realizando algum “bico”, do que no próprio serviço, estando na maior parte das vezes armados. Um estudo recente realizado pela ouvidoria da Polícia de São Paulo comprova que confrontos armados e a própria atividade operacional da polícia são o que menos vitima policiais em São Paulo.“Em 2017, a cada 10 policiais militares que morreram, 9 não estavam na atividade policial”, afirma o chefe da ouvidoria Benedito Mariano. “Para se ter uma ideia
TERRORISMO: (2001-2016): 238.808 IRAQUE (2003-2017): 268.000 SÍRIA (2011-2017): 330.000 TOTAL: 828.808
do que isso representa, naquele ano, ocorreram três homicídios de policiais em serviço. Ao mesmo tempo, 33 policiais morreram na folga. Dez vezes mais mortes fora do trabalho policial stricto sensu”. É por isso que, para o ouvidor, as flexibilizações são demagógicas. “Eu não acho que vai diminuir a violência. É uma iniciativa que pode, a curto e médio prazo, aumentar a violência no país”, afirma Mariano.
A questão da Taurus
Antes da fatídica noite de 14 de março de 2018, data em que Marielle foi assassinada, o mercado de armas do país já movimentava seu lobby. Cerca de oito meses antes, a Ruag, fabricante de armas suíça, havia sido autorizada pelo então governo de Michel Temer a instalar uma fábrica de munições no Brasil. Tudo mudou com os mais de dez tiros disparados contra o veículo da vereadora. Alegando temer uma imagem da Suíça ficasse arranhada, o governo – que é o único acionista da Ruag Holding–, aconselhou à mesa de diretores da empresa a desistir do negócio.
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Reportagem especial
Até a eleição de Jair Bolsonaro, esse parecia ser um dos mais promissores passos à abertura em um mercado virtualmente monopolizado pela Taurus Armas, maior fabricante de armas no país e da América Latina. Atualmente, o Brasil é o terceiro maior fabricante de armas leves e munições no mundo, ficando atrás apenas de EUA e China, tendo como principais destinos Colômbia, Venezuela, Malásia, Indonésia, Arábia Saudita e, principalmente, os próprios EUA, onde a Taurus é a quarta principal. Estima-se que o valor de vendas ultrapasse 500 milhões de dólares. Nos primeiros nove meses de 2018, a empresa faturou R$ 623,5 milhões. A empresa gaúcha é acusada de deter o monopólio da venda de armas no Brasil por conta da nossa própria legislação, na qual a Taurus se mantém como a principal fornecedora de armas às Polícias e Forças Armadas do país. Essa dominação do mercado brasileiro encontra guarida no Artigo 190 do R-105, o regulamento do Exército para produtos controlados – nos quais armas e munições são categorizadas – onde se lê que “o produto controlado que estiver sendo fabricado no país, por indústria considerada de valor estratégico pelo Exército, terá a importação negada ou restringida”. Outras sustentações jurídicas para tal situação são a Portaria 620/06, do Ministério da Defesa, onde uma regra define que “a importação de produtos controlados poderá ser negada, quando existirem similares fabricados por indústria brasileira do setor de defesa”; e a Lei 12.588/12, beneficiando um seleto grupo de empre-
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14.3.2018 Rio de janeiro
Local do assassinato de Marielle e Anderson no RJ
sas, classificadas como Empresas Estratéticas de Defesa (EED) ao isentá-las do pagamento do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), o PIS/PASEP (Programa de Integração Social/ Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público) e COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), assim como a suspensão de impostos na importação de matéria-prima para sua produção e empréstimos concedidos pelo BNDES – além de contarem com preferência em processos licitatórios junto ao governo brasileiro. A Taurus encontra-se na lista EED. Por tudo isso, Robert Muggah, diretor de pesquisa e cofundador do Instituto Igarapé, diz que não foi por acaso que o Brasil se tornou um importante player no comércio internacional de armas, ao mesmo tempo em que é visto como um mercado frustrante para investimento estrangeiro no setor: “O Brasil há muito tempo
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FOTOS AGÊNCIA BRASIL / REPRODUÇÃO
13.3.2019 Suzano
Dia do massacre na escola Raul Brasil
Pistola Taurus PT 24/7
adota uma posição protecionista em relação à sua crescente indústria de defesa”. De acordo com Muggah, enquanto algumas empresas estrangeiras conseguem perceber a oportunidade no Brasil, “elas também estão atentas ao legado de protecionismo do país e os desafios de se fazer negócio por aqui”. Os primeiros passos para uma abertura do mercado à competição estrangeira veio na presidência de Michel Temer. Em abril de 2017, o então ministro da Defesa Raul Jungmann afirmou que o BNDES abriria uma linha de financiamento internacional voltada a países interessados em comprar os produtos de defesa do Brasil.
Nessa mesma medida, estava prevista também a facilitação para que empresas estrangeiras do setor pudessem instalar fábricas no Brasil. Em 5 de setembro, um dia depois de conceder a autorização à Ruag para tal, o governo Temer emitiu um novo decreto facilitando ainda mais a importação de armas e munições. Muitos estados brasileiros aproveitaram para ir às compras. O governo do Ceará comprou 4.140 pistolas da SIG Sauer alemã, e a austríaca Glock venceu um edital do Gabinete de Intervenção Federal para fornecer 27.424 pistolas às forças de segurança do Rio de Janeiro. Essas facilitações aconteceram em larga medida por conta das sucessivas denúncias de que as armas da Taurus, em especial a pistola 24/7, tinham problemas gravíssimos de disparos acidentais. Secretarias de Segurança Pública em 19 estados brasileiros reportaram ter tido problemas técnicos com as armas da Taurus. Em 2017, o Ministério Público Federal abriu uma ação contra a empresa. Em São Paulo, a Taurus está impedida de participar de qualquer licitação até o final desse ano. No Congresso Nacional, o nêmesis da empresa parece estar na recém-criada Frente Parlamentar Armamentista (FPAR). Segundo seu presidente, o deputado federal Loester Trutis (PSL-MS), “a quebra do monopólio foi um dos principais objetivos da FPAR, sendo esse o objeto de maior esforço das atividades até agora”. Contando com a assinatura de 223 parlamentares, o deputado afirma que a finalidade da Frente é “aprimorar, analisar e fomentar o setor armamentista, visando implementar
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Pistola SIG Sauer alemã comprada pelo governo do CE
diretrizes de uso e comercialização das armas, com o propósito de garantir segurança e qualidade para o setor, além de gerar desenvolvimento, arrecadação, emprego e renda”. Em matéria publicada no portal UOL, em março, especialistas estimaram que o mercado brasileiro armamentista poderia representar acima de R$ 1 bilhão por ano. No entanto, fontes ligadas ao comércio legal de armas afirmam que, apesar das sinalizações positivas acerca do tema com decretos flexibilizadores, as empresas estrangeiras não têm interesse em montar fábricas no Brasil. “Quem é que quer vir para cá e ter que pagar um monte de imposto?”, questiona uma fonte que também prefere permanecer anônima. “O mercado brasileiro tem um potencial enorme de consumidores, mas, hoje, vir se instalar aqui não compensa”. Em sua linha de defesa, esse também é o argumento da Taurus. Procurada, a empresa não respondeu às perguntas da reportagem, mas, em outras oportunidades, a empresa já afirmou que a entrada de fabricantes de armas estrangeiras no país acarretaria numa concorrência desleal por conta das políticas regulatórias e tributárias. De acordo com André Oliveira, ex-gerente de marketing da Taurus, a questão tributária é um dos pontos-chave na questão. “Para a Taurus, seria até mesmo saudável ter uma concorrência, traz
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um novo peso em não poder falhar, mas é preciso que seja em condições de igualdade”. Em sua visão, qualquer empresa estrangeira que queira montar uma fábrica no Brasil não sobreviverá por conta dos impostos. “No valor final de uma arma, 65% são só imposto”, diz. “Por isso eles só botam um escritório administrativo aqui no país, mas o produto é importado. Não gera mão de obra, não gera desenvolvimento”. O ex-funcionário também aponta outros fatores que podem criar uma competição desigual entre a empresa e fabricantes estrangeiras. “Todo armamento que é fabricado no Brasil e vai ser colocado à comercialização, precisa passar por testes e aprovação pelo Exército”, explica. “Existe um protocolo a ser seguido, existe uma pontuação mínima onde as armas precisam atingir, onde várias partes da arma serão submetidas a exame e existe uma tolerância de falhas para que o armamento possa ser aprovado. Caso essa tolerância seja ultrapassada, há a possibilidade de a empresa corrigir os problemas e apresentar uma nova arma”. Segundo ele, até uma arma poder ser homologada e posta à comercialização, o processo pode levar mais de um ano, enquanto uma arma importada não passaria por toda essa bateria de teste. “As armas importadas não têm o mesmo rigor no sentido de apresentar todo um laudo de testes feitos aqui dentro, porque não se exige isso”, afirma Oliveira. “Existe a questão dos impostos, das licitações que, em muitas vezes, a fabricante estrangeira é isentada fiscalmente, a falta da instalação da fábrica para garantir a reposição de
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peças para as armas, a falta de geração de emprego e de compartilhar tecnologia. Todos esses são pontos que a Taurus sempre se baseou, dizendo ‘venham, mas venham nas mesmas condições”. Em tese, toda pessoa que possuir um CR (Certificado de Registro) junto ao Exército pode comprar armas estrangeiras, desde que também conte com um representante legal ou agente credenciado para registrar a Licença de Importação (LI) e um Certificado Internacional de Importação (CII) válido. Por conta da extensa burocracia envolvida, os interessados costumam procurar por importadoras especializadas e autorizadas para tal. No entanto, um dos grandes entraves – para além do tempo de desembaraço fiscal e alfandegário – era a impossibilidade de tais importadoras manterem um estoque de armas estrangeiras. Assim, elas atuavam basicamente conforme a demanda. Isso mudou com o decreto 9.758 de Bolsonaro. Estariam, então, relacionados esses dois cenários, dos decretos flexibilizadores de posse e porte e a possibilidade de abertura do mercado às armas estrangeiras? O deputado Loester Trutis afirma que sim. “Existe, sim, uma ligação entre a flexibilização do porte de armas e a quebra do monopólio”, afirma o deputado. “O Brasil entrará em uma fase que tornará
possível o acesso ao armamento de qualidade não só à segurança pública, mas ao cidadão de bem, conquista de elementar importância aos objetivos da Frente Parlamentar Armamentista”. Para Muggah, no entanto, mesmo com toda a família Bolsonaro se colocando favorável à abertura do mercado à fabricantes estrangeiras, o embate não será fácil. “Há sinais de que alguns lobistas e parlamentares apoiados pela indústria de armas brasileira resistirão a isso”.
A questão do controle
Na mesma matéria do UOL avaliando em até 1 bilhão de reais o potencial consumidor do Brasil, avaliou-se que, com a política armamentista de Jair Bolsonaro, o número de armas legalizadas no país poderia triplicar em até quatro anos: de 7 milhões para 21 milhões. Como a atual estimativa de armas ilegais em circulação é de 15 milhões e considerando a recorrência de armas legais que vão parar na ilegalidade, uma simples regra de três pode sugerir o tipo de Brasil para o qual estamos caminhando. Diante disso, vêm algumas perguntas: haverá controle sobre esse enorme afluxo de armas de fogo em nossa sociedade? De acordo com o deputado Peninha, o controle será feito da mesma maneira que
“com a política armamentista de Jair Bolsonaro, o número de armas legalizadas no país poderia triplicar em até quatro anos: de 7 milhões para 21 milhões” revista CIDADANISTA
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“Esse é um problema clássico da política de controle de armas. Não se trata de uma opção, não se trata de uma vontade do administrador público, é uma coisa que a lei determina” hoje. “Com a diferença que o cidadão de bem estará armado, não apenas o bandido. Quem quer andar na clandestinidade não registra sua arma, ou você acha que os bandidos têm registro daqueles fuzis que eles gostam tanto de exibir?”, questiona o deputado. “Cidadão de bem compra, registra, faz todos os trâmites. Se ele usar com irresponsabilidade, a polícia vai saber quem é o proprietário”, garante o deputado. E a facilitação do acesso às armas de fogo não poderia contribuir para a elevação da já enorme taxa de homicídios? Para o deputado Derrite, não. “Pois a concessão de porte e de posse de armas de fogo para as pessoas de bem nada mais é do que dar ao cidadão honesto a possibilidade de se defender da criminalidade”, afirma. “Assim, sou a favor de um regramento rígido para a aquisição e manipulação de armas de fogo, por meio de uma legislação administrativa e criminal condizente, o que somente favorecerá a sociedade de bem e inviabilizará a atuação de delinquentes armados”. Não obstante, apesar das promessas de maior rigor na punição a quem abusar do seu direito de posse/porte de armas, o próprio Estatuto do Desarmamento, tão combatido pelos setores armamentistas, já possui diretrizes com medidas de controle que podem mitigar o aumento da
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violência com armas de fogo. O problema, dizem os especialistas, sempre residiu na sua efetiva implementação. Um exemplo dessas medidas nunca empreendidas é a integração do Sistema Nacional de Armas (SINARM) e do Sistema de Gerenciamento de Armas de Militares (SIGMA). Enquanto a primeira é controlada pela Polícia Federal e possui informações completas sobre todos os armamentos legais no país, incluindo os de civis e empresas privadas de segurança, a segunda é controlada pelo Exército e reúne os dados sobre equipamentos de bombeiros, Polícias e Forças Armadas, assim como dos CACs (Caçadores, Atiradores, Colecionadores). A integração dos dois bancos cadastrais é considerado um dos grandes problemas na implementação efetiva do Estatuto do Desarmamento, mesmo sendo uma determinação legal. Auxiliariam as forças de segurança na localização de armas que poderiam ser utilizadas para cometer crimes. “Esse é um problema clássico da política de controle de armas. Não se trata de uma opção, não se trata de uma vontade do administrador público, é uma coisa que a lei determina”, afirma Felippe Angeli, coordenador de relações institucionais do Instituto Sou da Paz. “Ou seja, a administração, enquanto não cumpre essa de-
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terminação legal, está agindo à revelia da lei, e é muito frustrante – enquanto cidadão e profissional da área – ver que o Estado há 16 anos basicamente se recusa a cumprir a lei”. Assim, explica Angelli, o fato de esses sistemas não estarem integrados, representam um problema muito relevante para a própria investigação policial. “Ou seja, o Estado, além de não cumprir a lei, não toma as medidas para que se possa de fato realizar um bom trabalho de investigação policial e oferecer um bom serviço de segurança pública à população, além de dar uma resposta aos familiares e fazer justiça às milhares de vítimas de homicídio no país. Então, é absolutamente deplorável esse problema”.
AFINAL, UMA ARMA SERVE PARA MATAR OU SE DEFENDER?
Evaldo dos Santos Rosa, 51 anos, dirigia um carro branco com sua esposa e a filha de 7 anos, a caminho de um chá de bebê quando foi alvejado por 80 tiros e morto por militares RJ: “O Exército não matou ninguém, não”, afirmou o Presidente Jair Bolsonaro.
Até o fechamento, o decreto 9.875 de Jair Bolsonaro continuava em vigor. Sua aparente inconstitucionalidade ainda não fora derrubada pelo Congresso Nacional, nem anulada pelo Supremo Tribunal Federal. De qualquer maneira, o debate certamente está longe de terminar. Enquanto ninguém rejeita a doença da insegurança pública, os diversos setores da sociedade divergem sobre qual o melhor remédio para se chegar ao objetivo: um país mais seguro para se viver. Para isso acontecer, seria ter mais armas de fogo em circulação, ou menos? Leis mais frouxas sobre o acesso às armas ou mais rígidas? Numa questão tão vital ao Brasil quanto essa, o ideal é se buscar evidências por meio de dados e uma discussão séria sem achismos ou crenças construídas a partir de correntes de WhatsApp – tanto de um lado, quanto de outro. Certamente, o caminho mais indicado para se achar uma resposta se daria com uma melhor conversação do governo com a sociedade – como foi o próprio referendo de 2005 sobre o artigo do Estatuto quanto à proibição ou não do comércio de armas, por exemplo – e não o uso de decreto como imposição unilateral de uma determinada agenda. Afinal de contas, para a construção de uma sociedade saudável, o diálogo sempre será a melhor arma.
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Entrevista LEONARDO PÉRICLES ROQUE Por Ivan Zumalde
ENTREVISTA COM LEONARDO PÉRICLES
UP (UNIDADE POPULAR PELO SOCIALISMO)
COMO SE FAZ UM PARTIDO POPULAR
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eonardo Péricles Roque e mais 1 milhão e duzenas mil pessoas assinaram fichas para fazer a UP (Unidade Popular pelo Socialismo) virar partido. Do total das assinaturas realizadas entre 2017 e 2018, 492.091 estão aptas nos cartórios eleitorais, número suficiente para legalização. Péricles está esperançoso para ver a legenda e os candidatos da UP nas próximas eleições municipais, enquanto ainda aguarda análise do TSE. O “partido dos pobres e para os pobres” está nascendo em um ambiente conservador com um presidente da República contra o socialismo. Desafios não faltam, mas o primeiro passo foi dado.
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CLAUDIANE LOPES E THAIS
CIDADANISTA Como foi o processo de construção da Unidade Popular do início, passando pela coleta de assinaturas, até o congresso realizado em março? A expectativa de legalização da UP é para concorrer nas próximas eleições municipais? PÉRICLES Iniciamos o processo de coleta de assinaturas em 1º de outubro de 2016. Foi uma campanha que partiu de movimentos sociais que já existiam, como o Movimento de Luta nos Bairros (MLB), do qual faço parte, o Movimento de Mulheres Olga Benario, o Movimento Luta de Classes (MLC) e a União da Juventude Rebelião (UJR), além de ex-militantes de várias agremiações de esquerda. Priorizamos o trabalho junto ao povo pobre, à classe trabalhadora, realizando as coletas de assinaturas nas vilas, favelas, ocupações, trens, metrôs, ônibus, portas de escolas, empresas, fábricas e universidades. Contando apenas com nossos próprios e poucos recursos, coletamos 1 milhão e 200 mil assinaturas. Por imposição da “nova” Lei de Formação de Partidos, que dificultou ainda mais este processo ao estabelecer o prazo máximo de dois anos para a campanha de coleta e entrega de assinaturas aos cartórios, no dia 14 de setembro de 2018 completamos o pri-
“CONTANDO APENAS COM NOSSOS PRÓPRIOS E POUCOS RECURSOS, COLETAMOS 1 MILHÃO E 200 MIL ASSINATURAS”
Imagens da Assembleia geral da UP realizada em BH no último mês de março
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Entrevista
meiro ciclo do pedido de registro da UP. Desde então, aguardamos a finalização da análise destas assinaturas e agora estamos muito próximos de atingir os 492 mil apoiamentos aptos necessários para solicitarmos o registro definitivo junto ao TSE. Em seguida, demos a largada a uma grande campanha de filiações e estamos revisitando todas as regiões e locais em que coletamos assinaturas. Além disso, realizamos nosso 1º Congresso Nacional na cidade de Belo Horizonte, nos dias 23 e 24 de março. Este congresso contou com delegados e delegadas representando 20 estados, chegando a 51% de mulheres e 53% de negros e negras do total de participantes. Deste modo, trabalhamos para legalizar o partido ainda neste ano para que possamos estar em plenas condições de disputar as eleições municipais de 2020 em todo país. CIDADANISTA Por que o socialismo pode ser uma alternativa real e popular no Brasil nos dias de hoje? Durante o processo de assinatura, como foi a reação das pessoas sobre a ideologia socialista? PÉRICLES Antes de fazer política, religião, ciência, o ser humano precisa do básico, se alimentar devidamente, ter um local para morar dignamente, ter acesso à saúde e educação de qualidade, etc. O atual sistema capitalista no Brasil e no mundo não conseguiu garantir o básico para todos, pois menos de 1% da população concentra enormes riquezas e este grau de acumulação faz com que milhões sejam impedidos de exercer sua condição plena de seres humanos, sem contar a
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degradação imensa da natureza. Nas periferias vemos a continuidade da ditadura, pois lá o fascismo e o autoritarismo escravocrata e racista nunca deixou de atuar, pois as Polícias Militares continuam a praticar a tortura e a potencializar os assassinatos, a repressão e a violência sobre nosso povo negro e pobre. Portanto, defendemos o socialismo como o antídoto a todos estes males. Num país como o Brasil, de tamanhas riquezas naturais e econômicas, que há mais de 500 anos servem às classes dominantes para ficarem cada dia mais ricas, cabe à maioria da população não mais aceitar esta condição. O caminho é inverter a lógica dominante, colocar os pobres, a classe trabalhadora e o povo oprimido no centro do processo. Que as fábricas, as terras, as usinas, os bancos sirvam para garantir vida em abundância para todos. Deste modo, o país pode caminhar para uma verdadeira democracia popular. As pesquisas mostram que no Brasil o que mais as pessoas querem é saúde, educação e segurança, justamente o que o socialismo melhor pode garantir. Outra questão é que o socialismo nunca foi implementado no Brasil, então cabe trabalharmos para vivemos esta experiência. Nas coletas de assinaturas para a legalização da UP, falávamos permanentemente sobre o socialismo, encontramos alguma pouca resistência junto a setores médios, mas, junto ao chamado “povão”, fomos muito bem recepcionados, nas favelas, vilas, ocupações, trens, metrôs e portas de empresas, pois as pessoas querem mudanças que melhorem efetivamente a vida delas.
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“O CAMINHO É INVERTER A LÓGICA DOMINANTE, COLOCAR OS POBRES, A CLASSE TRABALHADORA E O POVO OPRIMIDO NO CENTRO DO PROCESSO” CIDADANISTA Uma das intenções da UP é juntar a esquerda na base, mas historicamente o campo sempre teve dificuldades de união. Como a UP quer fazer isso e com quais legendas e movimentos? PÉRICLES Para a unidade da esquerda ser efetiva, ao invés de ser pautada pelos espaços de gabinetes, deve ser pautada nas lutas sociais. Os momentos em que melhor conseguimos unidade foram quando os interesses coletivos ficaram no primeiro plano e daí veio uma grande mobilização popular. Um dos maiores exemplos dos últimos anos foi na realização da Greve Geral, de 28 de abril de 2017, quando 40 milhões de trabalhadores cruzaram os braços em todo o Brasil e derrotaram a Reforma da Previdência de Temer. Portanto, a unidade da esquerda passa pelo povo, pela unidade da classe trabalhadora. Estamos dispostos a trabalhar em unidade com todos e todas que tiverem como objetivo colocar as lutas pelos direitos do povo a frente de suas ações.
CIDADANISTA Como a UP enxerga a ascensão do neofascismo e a eleição de Bolsonaro? Existe alguma estratégia para conquistar eleitores que votaram nele e que começam a abandoná-lo, sejam mais pobres ou pertencentes à classe média? PÉRICLES Em meio a uma enorme crise econômica, ataques aos direitos do povo, desemprego crescente e domínio do capital financeiro, dos bancos, o povo votou em Bolsonaro, identificando-o como um candidato antissistema. Isso mostra uma disposição do nosso povo para as mudanças sociais. No entanto, na prática, o povo está vendo cada dia mais que Bolsonaro, na verdade, é o contrário, não tem nada de antissistema e muito menos patriota, é um submisso aos bilionários, aos banqueiros, aos interesses dos Estados Unidos, um entreguista e filhote da ditadura. O símbolo de arminha com as mãos que fez durante a campanha simboliza o aumento ainda maior da violência dos muitos ricos, dos latifundiários contra o povo pobre que se organiza e luta. Mas não nos esqueçamos de que a Operação Lava-Jato e a campanha absurda dos meios de comunicação passando uma ideia de que todo mundo é corrupto, criaram certo desânimo do povo com a política. Somos um partido de esquerda e, como tal, não recebemos dinheiro vindo dos que dominam, de grandes empresas e empresários e, ao invés de conciliar com eles, precisamos combatê-los. E precisamos combatê-los também porque, além de muito ricas, estas classes dominantes são socialmente brancas, racistas, machistas e extremamente auto-
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ritárias. É impossível superar a situação que vivemos no país sem rompermos com estas classes. O problema do Brasil não são apenas os “políticos”, como muita gente fala. São, sim, os políticos, mas não todos, são os que estão a serviço destas classes dominantes. Mas aí teve gente que, tentando fazer frente a essa traição, assumiu um discurso aparentemente radical, que, na prática, não consegue dialogar com a classe trabalhadora ou que prioriza a classe média, com foco apenas eleitoral. Um partido que possa ganhar novamente a confiança de milhões e milhões de pessoas, mulheres e homens, negras e negros, LGBTs, indígenas, comunidades tradicionais, sobretudo os que vendem sua força de trabalho para viver, a imensa maioria da população, a classe trabalhadora vai precisar, na prática, superar todos estes problemas através de uma postura combativa e de luta ao lado destes setores. CIDADANISTA Como a UP dialoga com a questão movimento social versus partido institucional? Como se dará a relação entre o partido e os movimentos? PÉRICLES Primeiro defendemos um partido sem privilégios para nenhum de seus dirigentes ou militantes. Uma de nossas regras é que devemos fazer política porque acreditamos, não para ganhar dinheiro. Política é um instrumento para transformar a vida da classe trabalhadora e da maioria do povo, então entendemos a atuação nos espaços institucionais com esta postura. Se assim procedermos, teremos condições de ter moral
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“POLÍTICA É UM INSTRUMENTO PARA TRANSFORMAR A VIDA DA CLASSE TRABALHADORA E DA MAIORIA DO POVO, ENTÃO ENTENDEMOS A ATUAÇÃO NOS ESPAÇOS INSTITUCIONAIS COM ESTA POSTURA” junto ao conjunto dos movimentos sociais. Vários movimentos diretamente participaram da construção da UP e, para que estes sejam coerentes com o que defendem, devem dar continuidade a suas lutas, garantindo, inclusive, que sua independência não seja perdida. E cabe ao partido ser a representação institucional direta dos movimentos populares, ser expressão das lutas sociais e caminhar junto em todos os momentos. CIDADANISTA A desigualdade é um dos piores problemas do país e a UP tem no seu programa acabar ou diminuir a diferença entre pobres e ricos. Caso sejam eleitos, seja no Executivo ou no Legislativo, como pretendem implementar o programa? PÉRICLES Falta à esquerda mais ousadia. Sendo eleitos, temos de usar todos os
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instrumentos institucionais possíveis para melhorar a vida do povo pobre, pois a maioria do povo vê entrar e sair governos e sua vida basicamente permanece a mesma. Ao invés de querer ter maioria no parlamento apenas, devemos priorizar a mobilização popular para implementar medidas históricas que nunca foram aplicadas no Brasil, como reestatização de empresas estratégicas que foram privatizadas, taxação das grandes fortunas, suspender o criminoso pagamento de juros e amortizações da dívida pública, que consome bilhões do orçamento público, e outras medidas, como a reforma agrária, urbana, a taxação das grandes fortunas, medidas essenciais para termos condições de eliminar a maioria dos problemas sociais que nosso povo passa. Nosso “público-alvo” é a classe trabalhadora, com toda sua diversidade e amplitude; os que não são donos dos grandes meios de produção, sobretudo os trabalhadores e trabalhadoras que têm exclusivamente sua força de trabalho como fonte do seu sustento. A força de um partido de esquerda esta aí, deve procurar se enraizar nas vilas, favelas, ocupações urbanas, bairros populares, onde mora e vive a maioria da população. Este setor, quando se mobiliza na política, decide o jogo. Muitos “teóricos” tentam atribuir um papel secundário à classe trabalhadora ou operária nos últimos anos. Os superricos nada produzem, vivem de rendas ou da riqueza que extraem do que os trabalhadores produzem. Nunca foram tão supérfluas as classes ricas, são menos de 1% da população e só,
em 2017, abocanharam 82% de toda a riqueza produzida no mundo. E quem pode fazer frente a isso? Os milhões de operários, de trabalhadores e trabalhadoras organizados. CIDADANISTA Como vê o Brasil no futuro? PÉRICLES Estamos em um país de dimensões continentais, com imenso litoral, com Sol o ano todo, com a maioria do nosso povo extremamente criativa, inteligente e trabalhadora. Não temos dúvida que esta maioria irá encontrar o caminho para sairmos da situação de caos em que vivemos e superar o atual momento político de retrocessos e avançarmos para a criação de uma verdadeira democracia popular e de uma pátria socialista, que somente pode se tornar realidade quando a classe trabalhadora e o povo governarem este país.
Ensinar e/ ou aprender: potencialidades da teoria e da prática
Jane é professora na EACH-USP e faz parte do Conselho de Direção Estratégica da Habits Incubadora-escola. É doutora em Filosofia (Ph.D) em Comunicação e Estudo de Mídia pela USP
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ara falar em educação é necessário recuperar o educador e filósofo Paulo Freire, que defendia que “não há docência sem discência”, na obra Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa, cuja primeira edição foi publicada em 1996. Ambos os processos se complementam, e a prática docente consiste basicamente em se ter humildade de reconhecer que não se sabe tudo, e sabedoria de reconhecer que se aprende quando se transfere conhecimentos. A grande dificuldade atribuída aos que decidem pela carreira da docência, em especial aos que optam por atender ao ensino público, é a de instigar a curiosidade e o senso crítico dos discentes, cada vez mais apáticos frente às adversidades e às poucas perspectivas de um futuro melhor ou mais interessante. Mas o que pode motivar os mais jovens a aderirem ao processo de aprendizagem? Há muito tempo, a educação deixou de ser prioridade a muitos indivíduos, em alguns casos por falta de recursos financeiros, ou por ter
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Opinião EDUCAÇÃO Jane Aparecida Marques
“Entre ensinar e aprender é preciso cultivar as duas práticas!” outras prioridades, ou mesmo por não perceberem o quanto isso pode agregar valor, especialmente aos considerados millennials. Conforme definição adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e Banco Mundial, estes se constituem em indivíduos que estão na faixa etária de 15 a 24 anos de idade. No Brasil, no entanto, jovem é todo aquele que está na idade entre 15 e 29 anos, de acordo com o Estatuto da Juventude, conforme Lei n. 12.852/2013. Embora se admita que as gerações não podem ser limitadas à idade do indivíduo, esta variável tem sido considerada para determinar o público-alvo em alguns estudos. Pesquisa do IBGE, como a pesquisa PNAD Contínua de 2017, apurou que 23% dos jovens na faixa etária de 15 a 29 anos nem trabalhavam, nem estudavam e nem buscavam uma colocação profissional. Esse percentual vem aumentando nos últimos anos, pois em 2016 era de 21,8%. Condições educacionais pouco atraentes aos alunos, por exemplo, têm favorecido a formação de uma geração conhecida por “nem, nem, nem”; ou seja, que nem estuda, nem trabalha, nem busca emprego. Outra pesquisa realizada na América Latina e no Caribe pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entre 2017 e 2018, com jovens residentes em áreas urbanas, de 15 a 24 anos de idade, verificou a mesma condição de jovens ‘ociosos’, não que isso seja uma opção pessoal. Isso ocorre, em sua maioria, com mulheres, de baixa renda, baixa escolaridade e por esses atributos não conseguem
uma colocação profissional. Entre nove países pesquisados pelo Ipea, os piores indicadores ficam com os brasileiros e chilenos. Para os jovens que nem estudam e nem trabalham, embora estejam na faixa economicamente ativa, resta depender de apoio familiar. E quanto menor a escolaridade dos pais, menos estes estimulam seus filhos para os estudos regulares e/ou técnicos para que possam conquistar sua independência financeira, o que resultaria em condições mais aprazíveis à família e mesmo para a economia local. Cabe ao professor garantir a atenção e interesses de jovens que se enquadram nesse contexto e frequentam a escola, em diferentes níveis, do Ensino Fundamental ao Superior. O docente tem de estar disposto a lidar com as diferenças individuais e entusiasmado a agregar conhecimentos; ao mesmo tempo que é desafiado a promover o interesse dos discentes, que nem sempre estão dispostos a adquirir novos hábitos. Para que isso se efetive, é preciso oferecer aos docentes melhor remuneração, mais oportunidades de qualificação, aquisição de conteúdos e aperfeiçoamentos (teorias), bem como autonomia para o exercício didático (práticas). Para reduzir as desigualdades não se pode também pensar a educação à parte do poder público, pois estão estreitamente relacionados, principalmente quando se pensa em inovação curricular associada ao desenvolvimento profissional. Entre ensinar e aprender é preciso cultivar as duas práticas!
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Desigualdade intergeracional
Eduardo Brasileiro é bacharel em Sociologia e Política pela FESPSP e membro CEBS, além de coordenador do IPDM - Igreja Povo de Deus em movimento, coletivo com base em Itaquera
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ponto central que une a Campanha da Fraternidade é um projeto de superação das desigualdades que assolam milhares de brasileiros. Porém, essa questão tem um elemento diferente, pois ela constituiu a nação que temos. Ela não é um acidente de governo X ou Y (porém, há aqueles que aprofundam), ela é promotora do que configura o país, cidade, bairro. Ela não existe por falta de planejamento, é, sim, um projeto na construção das cidades. Primeiro desafio para superá-la é notar que existe uma predeterminação política sobre a trajetória de determinados corpos nas cidades. Tristemente, pessoas negras, mulheres e pobres vivem em senzalas urbanas. Segundo os dados do Mapa da Desigualdade de 2018 da Rede Nossa São Paulo e o relatório “A distância que nos une” de 2016 da OXFAM, seis em cada dez pessoas têm uma renda mensal de R$ 792,00. Observando o dado em dimensão nacional, no Brasil 80%, ou seja, 165 milhões de pessoas têm uma renda per capita inferior a um salário mínimo.
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Opinião DESIGUALDADE Eduardo Brasileiro
Do outro lado, os 10% mais ricos do país têm uma renda média per capita de R$ 4.800,00. Um trabalhador que ganha mais ou igual a esse coeficiente está entre os 10% mais bem remunerados do país. Quando se afunila e vê apenas o 1% dessa população, esses detêm renda média mensal per capita de 40 mil reais. Analisando a desigualdade pela raça, em 2015 a população branca ganhava em média R$ 1.589,00 mensais, enquanto a população negra recebia uma média de R$ 898,00. Se mantidas as políticas públicas e investimentos nessa velocidade e distância atual, a desigualdade racial só será superada no ano de 2088. Por ironia, 199 anos depois da dita “abolição da escravidão”. Ainda nessas eleições candidatos que negam que exista racismo no país, e, sobretudo, dizem querer acabar com mecanismos de redução de desigualdades como as cotas, por exemplo, foram inúmeros e muitos inclusive estão eleitos. Quando o recorte é sobre a desigualdade entre mulheres e homens, o rendimento médio do homem é de R$ 1.508,00 mensais, e o rendimento da mulher é de R$ 908,00 mensais. Se mantidas as políticas públicas e investimentos nessa velocidade e distância atual, para se ter a superação da desigualdade entre homens e mulheres, somente em 2047 terá equiparação salarial. Quando é distribuição socioespacial, aí que a desigualdade impera. No relatório é possível ver que a idade média ao morrer em Moema, bairro nobre da cidade, é de 80 anos. Já no Jardim Ângela, a idade média de morte é de 55 anos, e 30 anos de vida separam o
morador de Itaquera do Jardim Paulista. No acesso à cultura por exemplo, em 53 distritos da cidade não existe aparelho cultural. Quando analisados os 1% mais ricos, vê-se o segundo desafio. Em São Paulo, por exemplo, esses detém 25% de todo o patrimônio imobiliário e 45% de todo o valor imobiliário da cidade. O país tem um déficit fiscal de 100 bilhões de reais não arrecadados em impostos dos mais ricos. O IPTU é bastante desacreditado. É normal criar políticas de tributação maior, a fim de desestimular a concentração de patrimônio. Na França, por exemplo, se você tem um imóvel, paga uma quantia, mas, se você tem mais, aumentam progressivamente os impostos. Esses dados desnudam uma brutal violência contra o povo, que ao não ter acesso a direitos mínimos são escanteados também das decisões políticas. Não é acidente ou erro de cálculo. Esse projeto da desigualdade brasileira há 500 anos disputa o poder via golpes militares, manipulação midiática ou não aceitando resultados eleitorais. No atual estágio das desigualdades brasileiras e com um governo franco atirador contra as reduções de desigualdades, cabe à sabedoria e eficácia produzir o pensamento contra- hegemônico capaz de desenvolver pessoas críticas e propositivas em busca da resistência. É hora de dizer um basta nessa maldita transferência intergeracional da pobreza, e percebermos que esses dados, por mais duros e desanimadores que sejam, são formuladores de caminhos: políticas públicas. Organizemos nossos bairros para, mais do que resistir, termos projeto e utopia de sociedade.
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História LUIZA MAHIN Por Francis Duarte
Quem foi LUIZA MAHIN
A Francis Duarte é professora da rede pública, mestre em Língua Portuguesa pela UFRJ. Militante do MTST e de causas das mulheres
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luta nunca acaba para as mulheres negras! A conjuntura atual só reforça o quanto, no passado, mulheres negras, que sofreram inúmeras tentativas de silenciamento por uma história eurocêntrica, serão sempre um marco de resistência contra o genocídio que reverbera e sangra nas periferias, contra a exploração do latifúndio e na demarcação de terras indígenas e quilombolas. São as lideranças negras em ocupações e assentamentos espalhados pelo país, os arrimos de famílias, as trabalhadoras que lutam por seus direitos e os braços erguidos em coletivos na busca pela valorização da identidade e ancestralidade africana. São as
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REPRODUÇÃO
As mulheres negras nunca param de lutar
vozes que ecoam na invisibilidade das ruas e tornam ainda mais vivas as lideranças negras e históricas como Luiza Mahin. Luiza Mahin foi uma força combatente contra a escravidão no Brasil. Nasceu na Costa da Mina, África, de origem do povo Mahi, que lhe deu o sobrenome Mahin. Seu povo era de uma nação do Golfo do Benin, noroeste africano e que, no final do século XVIII, foi dominada pelos muçulmanos, vindos do Oriente Médio. Veio escravizada para o solo brasileiro, mas comprou sua alforria em 1812, passando a viver na Bahia. Em Salvador, trabalhou de quituteira, mas jamais calou a mulher questionadora e dona de um olhar crítico aos escravocratas. Teve um filho, o abolicionista e poeta, Luís Gama, que a descreveu sendo uma mulher de estatura baixa, magra, bonita, de dentes “alvíssimos como a neve”, altiva, generosa, mas sofrida e vingativa aos horrores da escravidão no Brasil. Há várias versões históricas de que Mahin teve um papel fundamental na Revolta dos Malês, em 1835, e na Sabinada, em 1837, com a sua voz de insubmissão às senzalas. Além disso, nossa guerreira negra esteve na articulação de todas as revoltas e levantes de escravos que movimentaram a província da Bahia, logo nas primeiras décadas do século XIX. Vale ressaltar que, de seu tabuleiro de quitutes, inúmeras mensagens em árabe eram distribuídas pelos meninos que compravam e entregavam seus doces, construindo, assim, a resistência.
“O destino de Luiza Mahin é apenas sugerido, quase um mistério, mas sua voz pode ser ouvida na luta de toda mulher negra que se ergue em insurreição pelo direito à vida, à cidade e ao futuro” Sofreu inúmeras perseguições, mas jamais se curvou, foi para o Rio de Janeiro, sendo obrigada a se separar de seu filho, com apenas 5 anos, e deixá-lo com o pai. Alguns relatos afirmam que Luiza Mahin foi presa e deportada para Angola. Porém, há uma versão heroica em que traz sua fuga das mãos do opressor e indo parar no Maranhão, onde teria desenvolvido o chamado “Tambor de Crioula”. Mahin é um somatório de guerreira, um verdadeiro mito histórico, mulher à frente de seu tempo. Foi uma negra livre, da nação nagô, pagã, tendo seu corpo uma verdadeira fortaleza e que sempre recusou o batismo cristão que escravizava e obrigava os negros a abandonarem sua ancestralidade. O destino de Luiza Mahin é apenas sugerido, quase um mistério, mas sua voz pode ser ouvida na luta de toda mulher negra que se ergue em insurreição pelo direito à vida, à cidade e ao futuro. É memória viva e a certeza de que as mulheres negras nunca param de lutar! Luiza Mahin, presente!
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Fim Por Guto Lacaz
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Guto é renomado artista e ilustrador brasileiro e tem intervenções urbanas nas cidades de São Paulo, Rotterdam, entre outras. Já ilustrou mais de 15 livros, sendo seu trabalho marcado por surpresa e humor
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FOTO FELIPE PAIVA/R.U.A COLETIVO
O problema não é a política. É a falta que você faz nela.
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JÉROME SAINTE-ROSE
Somos “parte” da natureza e, para nossa própria sobrevivência como espécie, há que romper de uma vez por todas com a ideia de que podemos continuar vivendo “à parte” da natureza.
Bem Viver, conceito político, econômico e social que tem por referência a visão dos povos originários da América: Sumak Kawsai em quéchua; Suma Qamaña em aymara; Tekó Porã, em guarani. Conheça mais em raiz.org.br e nas redes sociais da RAiZ