2ª Edição - Boca do Lixo
CINEPLOT
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NOTA DO EDITOR:
A constante necessidade de preencher as angústias de nossas almas, que nos afligem cada vez mais rapidamente no mundo moderno, vêm tornando inviável um Cinema que não queremos deixar sumir. O papel que assumimos é árduo, mas necessário. Para isso, em nossa segunda edição optei por um resgate do que já foi produzido aqui, em nosso território. Um resgate do nosso Cinema, da Boca do Lixo. De lixo não havia nada, o obscurantismo das produções que de lá saiam é o maior mérito daquele lugar. Do que é obscuro nasce às dúvidas e dela, a verdade. Como disse Akira Kurosawa em uma carta à Ingmar Bergman, “Vamos resistir juntos pelo cinema”. Philippe Leão, Editor chefe do Cineplot.
convidados nesta edição Afrânio Vital
Alfredo Sternheim
Andrea Ormond
é Cineasta. Dirigiu 15 curtas metragens e 3 longas: Os Noivos, Longa Noite do Prazer e Estranho Jogo do Sexo. Sua carreira foi feita no Rio de Janeiro.
é Diretor de Cinema e crítico, tendo dirigido inúmeros filmes na Boca do Lixo. Entre seus filmes: Anjo Loiro e Violência na Carne.
é escritora, curadora e crítica de cinema. Autora da trilogia “Ensaios de Cinema Brasileiro – Dos Filmes Silenciosos ao Século XXI”. Mantém o site Estranho Encontro.
Beatriz Saldanha
Carlos Primati
Donny Correia
é pesquisadora, crítica e curadora de cinema. Mestra em Comunicação Audiovisual pela UAM e integrante da Aceccine, estuda o papel da mulher no terror.
é jornalista, tradutor e crítico, especializado em cinema fantástico em geral. Pesquisa o horror, a ficção científica e a fantasia no cinema brasileiro.
é poeta, crítico, mestre e doutorando em Estética e História da Arte pela USP. Membro do Cinemascope.
Páginas Parceiras
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nº2 |Agosto 2017 | boca do lixo
6 • BOCA DO LIXO: DO CULT AO PORNÔ FUTURISTA
8 • ENTREVISTA COM ALFREDO STERNHEIM
14 • O EROTISMO DISTÓPICO EM WALTER HUGO KHOURI
20 • RITUAL DOS SÁDICOS: A SEPARAÇÃO DO “EU REAL” E DO “EU FICTÍCIO”
24 • SUJOS E MALVADOS: ASSASSINOS PSICOPATAS E MULHERES FATAIS DA BOCA DO LIXO
28 • MULHER OBJETO: UM NOVELÃO SOB INFLUÊNCIA
30 • AMOR E REPRESSÃO EM VIOLÊNCIA NA CARNE
34 • A MULHER NO CINEMA POPULAR DA BOCA DO LIXO
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REVISTA CINEPLOT
38 • O PALÁCIO DOS ANJOS: EROTISMO QUE CHORA
40 • À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA: O NIILISMO EM ZÉ DO CAIXÃO
42 • SEXO E TERROR NO CINEMA PIONEIRO DE ROSÂNGELA MALDONADO
48 • FILME DEMÊNCIA: ANGUSTIA E FRACASSO
50 • SÃO PAULO S.A: O ASFIXIAMENTO DA CIDADE
52 • MEMÓRIAS: “A BOCA FORA DA BOCA”
56 • A ILHA DOS PRAZERES PROIBIDOS, MAS PRINCIPALMENTE DO SUSPENSE
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BOCA DO LIXO: DO CULT AO PORNÔ FUTURISTA Ao pensar a história do cinema nacional, é fundamental apresentar e contextualizar o período de intensa produção independente e autoral. Localizada no bairro da Luz entre, principalmente, as ruas do Triunfo, Vitória, dos Gusmões e dos Andradas, no centro de São Paulo, encontrava-se perto das estações de trem Luz e Sorocabana. Deste endereço saíram quase todos os filmes produzidos em São Paulo entre a metade dos anos 60 e final dos anos 80. Popularmente chamado de Cinema da Boca, a região da Boca do Lixo desde meados dos anos 20 e 30 já apresentava possibilidades de se tornar um polo cinematográfico. Distribuidoras como a Fox, Metro, Paramount e, mais tarde, Columbia, Warner, Paris Filmes e outras, se instalaram na Boca desde esse período. Aos poucos a região foi se tornando um ponto de referencia para lojas especializadas em equipamentos, fazendo com que empresas do meio se fixem também com seus escritórios, como o caso da Cinedistri e a produtora Servicine. Existia também uma concentração de estudantes, cinéfilos, jornalistas e profissionais da área a partir dos anos 60 no essencial Bar Soberano, localizado na Rua do Triunfo 145, berço dos primeiros encontros e debates dos cineastas, roteiristas, técnicos e aspirantes. Entre eles nomes como Jairo Ferreira, Carlos Reichenbach,
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João Callegaro e outros. É importante também relembrar que a região vinha sendo ocupada desde o final dos anos 40, por prostitutas e bandidos. Por conta deste convívio com elementos marginalizados, o cinema da Boca ficou estigmatizado como um local onde havia produções de baixa qualidade, com excessos de pornografia e narrativas que visavam o comercial. Estas críticas ao cinema da Boca vinham tanto da classe média, quanto dos críticos da época, um nicho que muita das vezes vangloriava o cinema europeu e as experimentações propostas pelo Cinema Novo. O cinema da Boca também ficou conhecido por produzir filmes de pornochanchada (uma junção das comédias de chanchadas agora com apimentadas cenas eróticas), porém, não se pode classificar o período apenas com esse termo pejorativo. Produções das mais diversas eram realizadas na região. O período pode ser colocado como o mais eclético em relação a produção intensa de diversos gêneros. É claro que em sua maioria o excesso dos corpos nus, (na maior parte ligado ao feminino) e o erotismo, acabaram sendo objetos essenciais para a apresentação dos filmes. Como Sternheim diz em seu livro: “sem erotismo, dificilmente tinha filme na Boca”, nos
Carlos Reichenbach
trazendo a noção de que o erotismo fazia parte da comunicação com o público no período, um cinema feito para as massas. No meio de todos esses aspectos comerciais e estruturais, destacam-se alguns cineastas com propostas mais experimentais e introspectivas. Com as múltiplas possibilidades do cinema da Boca, estes fizeram obras que carregavam elementos do erotismo, mas que o souberam utilizar como pano de fundo. A relação do eu, a conexão do homem com uma cidade grande em processo de reformulação, e os primeiros indícios de um consumismo exacerbado, foram mostrados, por exemplo, em São Paulo Sociedade Anônima (1965), de Luís Sérgio Person.
Reichenbach e cenografia de Campello Neto. Estudar e repensar esse período de grande produção cinematográfica brasileira é o interesse maior nesta edição da Revista Cineplot. Nos distanciamos dos clássicos clichês produzidos, visando um aprofundamento maior do que de mais autoral e inovador esse período acrescentou para o cinema nacional. Resgatando de certa forma, filmes e cine-
O luxo da prostituição também foi muito bem explorado por Walter Hugo Khouri. O cineasta trouxe diversos elementos do cinema europeu e, de certa forma, soube trabalhar consistentemente personagens femininos densos e complexos, fugindo dos estereótipos do corpo feminino apenas como objeto de desejo. Khouri, no âmbito crítico do cinema, poderia ser considerado em alguns pontos, como o Bergman brasileiro. Suas personagens costumam se camuflar em outras, apresentando personalidades em processo de mutação, como por exemplo no filme Noite Vazia (1964). Nos anos 80 o cinema da Boca, pode-se dizer, sofreu sua maior mudança estética. Sternheim coloca que o lançamento comercial de Império dos Sentidos (1976), do cineasta japonês Nagisa Oshima (filme polêmico que apresentava diversas cenas de sexo explícito), foi estopim dessa mudança estética. A produção da Boca inicia então a sua última fase, chegando ao final dos anos 80 produzindo filmes com uma narrativa mais desleixada, focalizando quase sempre nas relações sexuais explícitas, porém, construindo diversas situações de certa forma criativas para situar uma ambiência, quase sempre levada para o lado cômico. É o caso, por exemplo, da sátira ao western spaghetti, Um pistoleiro chamado Papaco (1986). Eram filmes que de certa forma enchiam as salas, apesar do exagero ao erotismo explícito, os cineastas conseguiam criar filmes com temáticas futurísticas e até sci-fi, como por exemplo em Gozo Alucinante (1985) de Jean Garret, com fotografia de
Jean Garret astas que foram essenciais para a evolução da linguagem cinematográfica brasileira, além contextualizar um período em que a sociedade vivia um intenso processo de luta, reformulação e procura de si. Catarina Almeida Cineasta, integrante do Coletivo Elviras e Crítica de Cinema no Cineplot.
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ENTREVISTA COM ALFREDO STERNHEIM Alfredo Sternheim é diretor e roteirista conhecido por filmes como Violência na Carne, Paixão na Praia, Lucíola e, principalmente, Anjo Loiro. A carreira de Sternheim iniciou ainda na antiga Vera Cruz, quando trabalhou como assistente do consagrado diretor brasileiro Walter Hugo Khouri. Assim sendo, Sternheim é um artista que migrou do cinema de estúdio para a Boca do Lixo, local onde, com muito esforço, construiu sua obra. Hoje o diretor permanece tendo a função de jornalista, sendo crítico de Cinema. O Cineplot, buscando o resgate do Cinema da Boca, realiza esta entrevista para buscar um pouco da obra de Sternheim e as dificuldades de se filmar naquele espaço e tempo. Cineplot - Como era o fazer Cinema na Boca do Lixo? Quais eram as peculiaridades encontradas por lá? Alfredo Sternheim - Apaixonante. Um ambiente de entusiasmo, de metas bem precisas, inclusive no uso do dinheiro. Existiam produtores e estes visavam fazer filmes com custos capazes de serem amortizados na bilheteria, junto ao público. Ao contrário de hoje. A preocupação de alcançar o espectador está diluída já que o mecenato oficial parece embutir certo lucro. As peculiaridades , se é que existiram, estão nessa pobreza material e nessa racionalidade. Mas, ao contrário do que muitos dizem hoje, existia diversidade no Cinema da Boca. Filmes com O Pagador de Promessas, A Margem e muitos outros provam isso. Cineplot - Você é um cineasta que trabalhou tanto na Vera Cruz quanto na Boca do Lixo. Quais eram as diferenças no fazer cinematográfico em ambos os lugares? O que os diferencia a nível de produção e público?
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A.S - Não cheguei a dirigir filmes na Vera Cruz, apenas como assistente direção do Khouri, trabalhei naqueles estúdios nas filmagens de A Ilha e Noite Vazia. Como cineasta e crítico, vejo que a Vera Cruz “viajou” nos gastos (algo que, muitas vezes, acontece hoje na área da cultura). Fez uma produção de alto nível técnico e artístico, mas descuidou da distribuição, não tinha (e não lutou) pela reserva de mercado. Daí a catástrofe de O Cangaceiro e Sinhá Moça : rendeu muito no Brasil e no exterior, mas esse dinheiro foi quase todo para a distribuidora Columbia. A produção da Boca era bem mais modesta e os realizadores estavam mais atentos as preferências do público. E sabiam fazer a publicidade adequada . (a palavra marketing não existia). Seja nos cartazes e principalmente na escolha dos títulos. Cineplot - Você foi assistente de Walter Hugo Khouri. Quanto seu cinema te influenciou? Como? A.S - Tematicamente, não me influenciou. Ele tinha
ou passou a ter preocupações mais autorais sobre a existência humana. Eu, embora tenha preferência por histórias de amor e repressão, estava aberto a outras propostas de histórias, a outros gêneros (quis fazer musical). Já no conhecimento da linguagem cinematográfica, do uso dela na direção de um filme, o Khouri foi um mestre. Tive muita sorte em trabalhar com ele, aprendi muito nesse sentido. Cineplot - Em “Paixão na Praia” o personagem de Ewerton de Castro, contracenando com Norma Bengell, diz querer “brincar de Cinema Sueco”. A personagem de Norma, por sua vez, irônica, diz querer “brincar de cinema americano”. Qual seria a diferença nas brincadeiras? A.S - “Brincar de cinema sueco” era uma referência irônica do personagem do Ewerton para discussões existenciais que estavam surgindo naquele inesperado encontro. A frase seguinte, da Norma, é uma reação seguida de bebida jogada na cara. Afinal, o cinema americano é pródigo na ode a violência, na porrada. Cineplot - Como seria “brincar de Cinema Brasileiro”? A.S - Hoje, seria encaixar em tom de comédia a feitura de um filme bem cerebral com intérpretes de costas para a câmera na maior parte do tempo. O cinema da nuca que também existe em longas dos Dardenne. Um menosprezo aos atores e ao público que paga um ingresso e fica sem ver a cara dos intérpretes, inclusive em sequências que deveriam ser impactantes. Uma conduta que deveria ser mais combatida pela crítica. Exemplo recente: Redemoinho. Mal se vê a Dira Paes. Na longa cena do estupro, o trem aparece mais. Cineplot - É recorrente em sua obra personagens, na posição de vilão, mas que apresentam uma certa carga utópica, rebelde, anti-burguesa. Quais suas inspirações para construção desses personagens (tanto em Paixão na Praia como em Violência da Carne)? Tiveste problema com censura devido a este fato? A.S - Gostei da observação. Não tinha atentado para essa semelhança. Acho que isso se deu inconsciente-
mente. Criei para externar certa revolta que me atormentava na época. De fato, tanto o Ewerton como Zé Carlos de Andrade (magnífico) em Violência na Carne têm uma aura de inconformismo social. O do Ewerton me deu mais problemas com a Censura da Ditadura que, durante um tempo, proibiu a exibição do filme. Depois, liberou. Mas cenas com ele foram cortadas. O Violência passou sem problemas, talvez porque já estava em 1980 e o outro foi em 1971 Cineplot - Em “Violência na Carne”, sinto haver inicialmente uma presença das ideias do amor livre - um dos personagens chega a citar Sartre. Com o desenvolver da narrativa percebemos que aquela liberdade no amor vai sofrendo com uma terrível repressão no cárcere. Sendo um filme político, como desenvolveu essa dualidade e o que representa o amor entre os personagens de Helena Ramos e Zé Carlos de Andrade? A.S - De fato, há uma defesa do amor livre ou talvez de um amor menos possessivo, menos apegado as regras ou padrões de fidelidade carnal, sexual. E creio que deixo claro que esse viés não inclui relação forçada, violenta, como algumas que ocorrem na narrativa por atos de dois dos bandidos. O único que não força a barra é o personagem de Zé Carlos de Andrade. Um idealista em conflito com aquela violência e principalmente com o mundo em que vive . Ele quer “ficar livre desse insensato mundo”, como diz a certa altura. A atriz vivida por Helena também está insatisfeita com o seu mundo, com a sua incapacidade de se relacionar plenamente. Esse desencanto aproxima os dois para um amor total. De todos os meus filmes, o final que eu mais gosto é de Violência na Carne, justamente com Helena e Zé Carlos. Não sei te dizer se e como resolvi essa dualidade, mas acho que consegui inserir essas questões existenciais com o lado político do argumento. Cineplot - Por falar em censura, como o Cinema da Boca sofreu com esta? Como driblavam esse sistema? A.S - Sofremos muito. E creio que o pseudo moralismo da Censura Federal durante o governo do Garrastazu, quando a Polícia Federal chefiada pelo General Antonio Bandeira proibiu ou mutilou mais de 40 filmes nacionais e estrangeiros, fez isso também (ou
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pelo menos em relação ao cinema nacional) para “atender” sugestões de distribuidoras americanas que não encaravam com bons olhos o sucesso dos nossos filmes. Em 1973, Anjo Loiro em um mês e com apenas 40 cópias e ainda inédito em algumas capitais (o Rio, por exemplo) já que os lançamentos eram segmentados por regiões, alcançou mais de um milhão de espectadores. Ai, veio a interdição que interrompeu a carreira de sucesso. Cineplot - Quais acredita ser os filmes mais representativos de sua obra? Por qual motivo? A.S - Não sei dizer. Gosto muito de Lucíola, fazê-lo foi um desafio. Rodar um drama de época em 35 dias e com muitas locações e figurinos , e um orçamento apertado, foi uma proeza. E fiquei feliz quando foi selecionado para a exibição no IVº Festival Internacional de Teerã. Mostra onde convivi com Antonioni, Lina Wertmuller, William Holden, Charlotte Rampling, Yves Boisset, Gian Carlo Giannini, Rex Harrison e outras celebridades que admirava. Mas gosto muito de Violência na Carne (é um filme político), Corpo Devasso (foi ousado na época), Tensão e Desejo (modéstia inclusa, um bom “noir”) e de Sexo em Grupo, Sexo dos Anormais e Borboletas e Garanhões. Esses três e mais uns outros me possibilitaram mostrar que sabia fazer comédias. Adorava ir aos cinemas para ouvir as risadas. Cineplot - Quais motivos você diria que foram cruciais para a queda da Boca do Lixo? A.S - O declínio começou quando a porcaria do governo Sarney fechou os olhos para o cumprimento da lei de reserva de mercado. Os exibidores fizerem pouco do nosso cinema, o servilismo a Hollywood ficou maior e passamos a ter menos espaço. A Embrafilme surgida na calada da noite (pelo menos para São Paulo) durante a Junta Militar acabou criando guetos, favoreceu minorias, facilitou superfaturamentos e descuidou do mercado. Como distribuidora, tia Embra anulou as distribuidoras de filmes brasileiros que existiam (Cinedstri, Brasil , etc). Uma tragédia completada por Collor que fechou a Embra e o Concine e não criou nada no lugar. Um presidente arrogante como se viu logo no confisco da poupança com o apoio do Congresso.
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Cineplot - Como vê o presente e o futuro do cinema nacional? A.S - Péssimo o presente. Claro, há bons filmes. Nunca tivemos tanto dinheiro para a produção e nunca tivemos tantos lançamentos (cerca de 140 em 2016) e tantos fracassos. Ninguém parece atentar que os custos subiram MUITO e as respostas do público diminuíram MUITO. De cerca de 140 filmes, apenas dez ou doze alcançaram um milhão de espectadores com lançamentos que, em muitas ocasiões, contam com 100 ou 200 cópias. O uso da renúncia fiscal com pro labores altos em muitos casos, está criando uma casta de cineastas ricos que colecionam vários fracassos. O custo tem que ser compatível com a renda média. Não é. Um filme que custou 7 ou 9 milhões tem que faturar bem mais de 20 milhões . Fatura? E em termos de linguagem, há um excesso de cineastas cabotinos que não dominam a linguagem. No passado, o que pesava mais no custo de um filme era o preço do negativo virgem e da revelação em laboratório. Hoje, com o digital, esses itens não existem mais, as filmagens puderam ser mais ágeis . Mesmo assim, os custos triplicaram. Alguém explica? Caso surja um governo radical ou a necessidade de se reduzir os subsídios, como fica nosso cinema? Acho que, vários, foram com muita sede ao pote. Menos esbanjamento, mais equilíbrio, por favor. Cineplot - Há algo em que a crítica especializada deveria estar expondo, com o objetivo de valorizar nosso cinema? A.S - Gostaria de falar da preservação e difusão de nossos filmes. Um aspecto que a imprensa especializada precisa abordar com mais frequência. O passado do cinema brasileiro é pouco conhecido, a Cinemateca Brasileira e outros órgãos não conseguem acirrar a difusão de nossos filmes. Não basta só preservar, tem que mostrar. E em época de DVD e digital, isso é mais fácil, embora tenha custos. As autoridades poderiam diminuir as verbas para a produção e aplicar na de difusão, criar subsídios para tal. Cineplot - Acredita que há de se investir na construção de um público? Partindo pela difusão de nosso cinema na história e uma estética nacional, para que não fiquemos vendidos às produções hollywoodiana? Acredito que não há uma construção de público
no Brasil, como houve recentemente na Argentina. Não há um costume à nossa estética, não assistimos ao nosso próprio cinema. A.S - Realmente, não assistimos ao nosso próprio cinema. E é preciso reconhecer que somos muito colonizados culturalmente. Isso nos mais variados níveis sociais. Em vez de “entrega”, se vê delivery, em vez de liquidação se vê sale, em vez de aula magna se vê masterclass, impeachment em vez de impedimento e por ai vai. E o preconceito com o cinema nacional , de certa maneira foi acirrado pelo excessivo número de filmes cerebrais. Mas, independente disso, é preciso investir na difusão do cinema brasileiro em todos os tempos. A Cinemateca Brasileira tem que se inovar, não pode só fazer cópias de preservação, tem que investir na difusão. E em termos de grana, em algumas épocas ela já recebeu muita do governo federal. Só que, mesmo assim, o nosso público dificilmente deixará de ficar mais atento as superproduções de Hollywood. Estas encontram amplo espaço na mídia especializada. Por isso, acredito que boa parte de nossos subsídios para a produção cultural poderia ser aplicada no público, na aquisição de ingressos. Cineplot - Hoje, em uma nova lógica da indústria cultural, os cinemas saíram das ruas e foram aos shoppings. Junto a isso a experiência de ir ao cine-
ma vem se dissolvendo e os ingressos ficando mais caros. Nesse novo modelo, como criar um Cinema mais barato e que se sustente diante, também, da explosão dos blockbusters? A.S - O ingresso do filme brasileiro poderia ser subsidiado e , assim, ser mais barato. Ao mesmo tempo, taxar lançamentos por número de cópias. Os brasileiros pagariam menos que os estrangeiros, claro. Cineplot - Para finalizar de maneira mais descontraída, conte-nos uma história que aconteceu na boca ou na (pós)produção de um de seus filmes... A.S - Há várias situações engraçadas, mas envolvem pessoas que já partiram. De minha parte, gosto de lembrar um aspecto místico , o céu estava a meu favor nas nem sempre fáceis filmagens. Por exemplo, no doc Flávio de Carvalho, tinha planejado filmar a série de 9 desenhos em que ele registrou a morte de sua mãe. Estavam em um museu. A diretora autorizou, mas frisou que só tinha oito. O número 2 tinha se extraviado há anos nos Estados Unidos. Ao concluir a filmagem dos oito no Museu, chega uma Kombi da Varig trazendo encomenda vinda dos States: fiquei esperando a diretora abrir. Era o número dois. Ela ficou espantada. Filmei, claro
Anjo Loiro, filme de Alfredo Sternheim vivido por Vera Fischer
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Noite Vazia, de Walter Hugo Khouri cineplot 12
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O EROTISMO DISTÓPICO EM WALTER HUGO KHOURI
Quem é o especialista?
Donny Correia é poeta, crítico, mestre e doutorando em Estética e História da Arte pela USP. É autor de, entre outros, Balletmanco (prosa poética, 2009), Zero nas veias (poesia, 2015) e Cinematographos de Guilherme de Almeida (organizado em parceria com Marcelo Tápia, 2016). Membro do Cinemascope. O diretor paulista Walter Hugo Khouri (1929-2003) é o ponto fora da curva na renovação do novo cinema brasileiro, processo iniciado na Bahia e no Rio de Janeiro no final dos anos 1950, que mostrou ao mundo Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Carlos Diegues e outros. Considerado pequeno burguês e elitista, Khouri empreendeu um projeto de cinema até mesmo mais hermético e complexo que seu colega paulista Luiz Sérgio Person.
Os que conhecem, mesmo que de passagem,
a obra de Khouri, conseguem perceber a raiz de tanta crítica. O cineasta não voltou suas câmeras necessariamente para realidades sociais brasileiras e suas carências calcadas nas favelas e no banditismo do sertão. Não interessava à sua poética a repressão política dos anos de chumbo ou os contrastes de uma civilização colonizada. Formado em filosofia e estudioso da psicanálise, Khouri sabia que o cerne das questões mais gerais de qualquer sociedade passa por certas posturas estritamente pessoais. Por isso, em quarenta anos de uma produção intensa, dedi-
Odete Lara em Noite Vazia - Walter Hugo Khouri
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cou-se a esmiuçar a psicologia social por meio de seu personagem, um alter ego, Marcelo Rondi. Cada passagem de seus roteiros ilustra muito bem o destempero emocional que advém de um erotismo mal-ajambrado, que George Bataille estudou a fundo e concluiu que este mesmo erotismo é a causa, e às vezes efeito, dos instintos de morte que nos rodeiam. Neste artigo, eu gostaria de me dedicar a uma breve retrospectiva de sua obra máxima, Noite vazia (1964), para resgatar a memória deste filme icônico na cinematografia brasileira, e apontar alguns elementos que fazem de Khouri um examinador da arte de produzirmos autodestruição a partir um sentimento de distopia e falência moral, algo característico de uma pós-modernidade gestada pela geração de babyboomers abastados e enfastiados com a vida na metrópole. A noite que nunca termina São Paulo é um útero abortivo. A vemos explodir em ofuscantes golpes de luz em meio ao escuro de uma barbárie verticalizada. A noite vazia surge como se o universo se expandisse. Os pratos da trilha sonora de Rogério Duprat sugerem um parto difícil. Mas, ao cabo, damo-nos a conhecer Luís Mário Benvenutti), marido, pai, herdeiro de muitas posses, sem o menor respeito por si ou pelo outro. O bastião da burguesia paulistana quatrocentona sai para “flanar”. Antes, é preciso buscar seu coadjuvante, seu “escada”. Trata-se de Nelson (Gabriele Tinti), depressivo, embotado, que chama muito mais a atenção das mulheres por sua ausência extremamente atraente. Sua culpa infinita.
Por mesas e mesas, bares dos mais exóticos
ambientes, esses dois empreendem uma grande tortura sobre si mesmos. Sabem que ali não deveriam estar, mas se regozijam quietos e pacientes na dor de um mundo tão indiferente quanto eles o são. De tropeço moral em tropeço moral, o ego expansivo de Luís faz com que os dois se choquem com Regina (Odete Lara) e Mara (Norma Bengell), duas prostitutas de luxo, a face feminina da dupla masculina errática. A primeira delas, um ser ciente de sua estética privilegiada, por isso uma pedra de gelo calculista. A outra, visivelmente oprimida pela primeira e carente de autoestima, afina-se com a presa acuada e conformada que é Nelson. Ainda que o espectador já anteveja a impossibilidade de uma noite de libertinagem, Luís e Nelson conduzem Regina e Mara a uma garçonieire. Neste momento, o sexo não é mais moeda de troca. É arma de fogo. As lentes de Khouri, como sempre, desnudam com raramente tão afinada beleza, na fotografia do húngaro Rudolf Icsey, o vácuo que se desvela nos olhos vazados de cada um dos quatro blocos de concreto armado, mas que andam e falam. Aliás, até creem que são capazes de sentir algo. Walter Hugo Khouri nos mostra, então, o belicismo do erótico jogo de agressões entre os casais. Um tripudiando sobre o outro, tirando vantagem, rebatendo provocações. Um cenário em que as investidas sexuais chegam a sufocar o voyeurismo de nós, observadores da angústia alheia. Regina não se importa com as posses de Luís, sai-se muito bem do jogo machis-
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ta da opressão pelo poder e pelas posses. Mara é a submissa que, ao fim da noite ganhará uma gorjeta extra pelo seu “espírito de colaboração”. Nelson... nem está lá, ainda que seu corpo esteja. Pela manhã, quando Nelson e Mara chegam a ensaiar uma aproximação minimamente afetiva, Luís castra o amigo ao decidir-se por sair daquela jaula. Antes, ele passara alguns minutos sozinho, na sala, venho o sol nascer e lendo notícias do mundo em revistas de atualidades. É quando vemos que Luís percebe que não está sozinho no mundo, que o mundo não existe para servi-lo, que aquelas mulheres se importam menos com ela, do que ele com elas. Percebe que o exotismo depressivo de seu amigo, que nem mesmo tem cacife para afogar a infelicidade, é mais atraente que o poder de sua carteira. Esta noite acabou, em cacos, como se mais cacos fossem possíveis, mas o vazio é para a vida inteira, tanto que Luís e Nelson foram fundidos num personagem só: Marcelo Rondi, que, em 1968, surge como um estudante universitário desiludido e cético quanto aos movimentos estudantis de sua época, em As amorosas (1968) depois é um jovem apático que descobre os dissabores do jogo de sedução, como em O último êxtase (1973), um cineasta nostálgico, delirante e ressentido, como o Marcelo de Paixão e sombras (1977). E, finalmente, torna-se um homem de negócios, um herdeiro da elite paulistana, entediado com a esposa, entediado com o mundo, obcecado apenas por um motivo maior, sua filha Berenice. O leitor, a esta altura, pode estar se perguntando quando vou entrar na polêmica de Amor, estranho, amor (1982). Não vou. Trata-se de um filme importante demais para ser tratado à luz de um fato tão pífio. Para lapidar seu Marcelo Rondi e dar-nos o melhor exame de consciência do erotismo humano como arma de autoflagelação, Khouri atravessou com maestria a era de ouro das pornochanchadas. Abriu mão, permitiu tomadas mi-
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sóginas demais, mas o fez para poder ter de seus produtores, sobretudo Antônio Polo Galante, o orçamento necessário para desenvolver seu cinema de autor. Chegou a declarar que, se pudesse, reeditaria alguns de seus filmes, fazendo-os mais de acordo com o real objetivo de seu projeto de cinema. O sexo incomodo Com o cinema de Walter Hugo Khouri apendemos que sempre é possível magoarmos a nós mesmo espelhando nossa angústia no corpo nu de quem desejamos. Aliás o corpo nu, é só um subterfúgio para a máscara do gozo posta por sobre o rosto inquisidor da malícia destrutiva da qual fazemos uso quando nos damos conta de que o erótico é a imagem de nossa própria rédea. Como, apropriadamente, aponta uma das aventuras de Rondi, O prisioneiro do sexo (1978), não se trata de uma patologia corrigível com terapia e psicotrópicos. O sexo como prisão não foi erigido para ser permeável. Em Khouri, é uma jaula de ossos cercada de orgasmos lacerantes. Em Eros, o deus do sexo (1981), não existe deidade alguma. O que existe, de fato, é o desejo de se aniquilar numa metrópole sanguinária, nos desejos escusos e afiados como a adaga da mesma noite vazia, quando Luís e Nelson fundiram-se para se tornarem os olhos em primeira pessoa de cada um daqueles sentados em frente à obra fílmica. Assistir a uma obra de Walter Hugo Khouri é ser testemunha de como é natural estragar a própria vida antes de estragar a vida do outro e, assim, estragar o sistema. O que os partidários de Glauber não compreenderam é que a alegoria febril nos filmes sobre a vida social coletiva desagregada nasce no desprezo de uma expansão desenfreada do sexo como forma de perpetuação, seja pela arte, seja pela posse. No final, o gozo esguicha sangue.
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Icônico personagem de José Mojica Marins,
Zé do Caixão
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Ritual dos Sádicos: a separação do “eu real” e do “eu fictício” Autopreservação. Não há dúvidas de que José Mojica Marins é um dos grandes injustiçados da nossa cinematografia. Resumido apenas como o personagem Zé do Caixão e pelos títulos dos seus filmes, que causam ridicularizações para a maioria, a figura do diretor acabou sendo direcionada a maus olhares através do senso comum. Não há problemas em enxergar José Mojica Marins como um diretor ruim, como um cineasta de pouca contribuição, entre outros aspectos, mas a forma como o taxam que é o grande perigo, sem argumentos, apenas pelo o que foi dito no parágrafo acima. Não só agora, mas também antigamente, esse tipo de associação perigosa ocorria, não é por me-
nos que em “Ritual dos Sádicos” uma quebra imensa pela metalinguagem é utilizada para o cineasta se autoafirmar como um diretor importante na filmografia brasileira. Se pegarmos “Ritual dos Sádicos” como exemplo, observamos centenas de elementos brilhantes na condução de Mojica. Entre esses elementos está a metalinguagem, em que pensamos na forma como o diretor se autopreserva. Criador e criatura estão no interior da narrativa, Mojica e Zé do Caixão. Isso acontece pela razão de, na mesa redonda com figuras intelectuais ao longo da trama, um dos indivíduos se referir a Mojica como Zé do Caixão, em que ele logo responde: “Zé do Caixão ficou no cemitério, sou um cineasta, José Mojica Marins”.
Cena de Ritual dos Sádicos - A psicodelia de José Mojica Marins
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A separação entre as figuras é uma afirmação clara do cineasta brasileiro de que o paratexto Mojica, o “eu real”, não é a mesma coisa que o intratexto, como chamo aqui, Zé do Caixão, o “eu fictício”. Mais ao final, ao entendermos a proposta da película e do experimento feito por um médico daquela mesa redonda, percebemos a grande distinção entre ambos. Um é o personagem, o outro é o autor. Tudo isso parece muito óbvio, mas o que foi falado acima acerca de haver um discurso perigoso sobre taxação do diretor em seu personagem, por exemplo, precisa de esclarecimentos quase que desenhados. Mojica é o diretor reconhecido do cinema brasileiro, reconhecido até mesmo por Glauber Rocha e Anselmo Duarte. Zé do Caixão é a figura tenebrosa, o mal personificado nas obras de Mojica, um dos grandes ícones do cinema de terror. A autopreservação não é, portanto, gratuita. É um “meio didático” de explicar, pelos pôsteres, por exemplo, que o Zé do Caixão é um personagem macabro nas obras de Mojica. A autopreservação aparece, outrossim, como um meio de reforçar toda a importância acerca de Mojica e Zé do Caixão. Para isso, uma marchinha com o nome do personagem é colocada como fundo sonoro em certo momento da narrativa. Quando vemos o cineasta na mesa de debate, vemos, sim, a figura intelectual, ele não é Zé do Caixão, este está no cemitério, no cemitério cenográfico de obras fictícias. O mal internalizado. A mesa de debates que acontece em um programa fictício discute a mente humana através dos meios biológicos, sociais, psicológicos. Vemos palavras que remetem aos três campos citados acima, mas tudo isso com base nos tóxicos, como os grandes influenciadores, em um primeiro momento, do mal humano. Toda a narrativa é ditada através de pequenos contos, para os intelectuais em discussão são
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relatos, de perversidade de homens contra mulheres sobre a ideia de que o tóxico, as drogas, influencia a mente humana para seu lado perverso, colocando sempre o lado feminino para o lado oprimido e o lado masculino como o lado opressor. Assim pensa o diabo, assim pensa o Zé do Caixão dos delírios, não pensa Mojica. Em todos os relatos que assistimos junto ao pessoal da mesa redonda, fazemos parte dela, percebemos interpretações diferentes para o que está acontecendo, e nós, espectadores, também tiramos nossas conclusões. Junto a eles percebemos que existe a ideia do machismo imperando sobre, muitas vezes, à fragilidade da mulher, sobretudo em um momento de necessidade. É preciso pensar que nada disso é forçado, tudo é muito implícito, o espectador precisa pensar muito para tirar tais conclusões. Depois de o médico revelar a verdadeira forma como trabalhou, no grande ápice da narrativa, através de placebos, percebemos duas coisas: a primeira é a de que o ser humano pode ser considerado um simples animal, pois ainda que racional, é pautado por seus instintos, está baseado em suas mais fortes necessidades, portanto, é mais irracional do que racional; o segundo ponto está ligado à ideia de que existe um mal internalizado, como vemos em “Senhor das Moscas”, de William Golding, trazendo “Leviatã”, de Thomas Hobbes, com a ideia de que sem o contrato social, sem o controle de uma instituição, um estado, os seres humanos são propensos a não possuir qualquer tipo de organização, fazendo com que a espécie seja, na verdade, um vírus, um ser vivo capaz de destruir a vida a sua volta. O tóxico para estimular o mal, então, é apenas uma desculpa, pois o mesmo mal já está, naturalmente, em nós, inerte. Nosso inconsciente, para finalizar este tópico, é simbolizado como um verdadeiro inferno mojiquiano, ou seja, recheado de partes surrealistas, de figuras deformadas, cores misturadas e uma sensação de delírio. Precisamente, o cineasta acerta na utilização de muitos cortes, planos aproximando e desaproximando o tempo inteiro e muitas figuras sendo vítimas, o que deixa tudo com uma atmosfera
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sombriamente surreal. Esse inferno de delírios é o inconsciente humano, o inconsciente que nos dita a fazer o mal não só através dos impulsos das drogas, mas pelo impulso natural humano. Conclusão. Nada convencional, “Ritual dos Sádicos” brilha ao trazer o sujo na direção de arte, a dor pelos olhares dos atores e a montagem extremamente acelerada, fora as questões filosóficas e psicológicas. Nada convencional pela temática abordada, nada convencional pela forma como a temática é construída. Nada convencional pela nudez confrontada com o instinto humano, nada convencional pela proximidade que vemos uma agulha sendo injetada na pele. Perturbador. Por isso foi censurado no Brasil em épocas de ditadura militar, época tão sombria quanto o tal do inconsciente infernal humano discutido acima. Só lançado em 1982 como “O Despertar da Besta” em mostras muito particulares, o público pôde, finalmente, enxergar um cineasta complexamente primitivo, pois com os poucos recursos, com as barreiras da época de se fazer cinema no Brasil (aí está o primitivo, a limitação primitiva), Mojica, brilhantemente, concede-nos uma obra-prima. Através do que foi falado ao longo do texto, devemos repensar em algumas questões sobre a cultura brasileira. Se não nos resumimos em samba e futebol, devemos pensar que nosso cinema não se resume em filmes de comédia superficial e em filmes sobre a favela. Nosso cinema é brilhante, temos terror, temos poesia e direções que vão muito além dos estereótipos colocados pela maioria.
Leonardo Carvalho Crítico de Cinema pelo Cineplot, letrado e professor.
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SUJOS E MALVADOS: ASSASSINOS PSICOPATAS E MULHERES FATAIS DA BOCA DO LIXO Quem é a especialista? Carlos Primati é jornalista, tradutor e crítico, especializado em cinema fantástico em geral. Pesquisa o horror, a ficção científica e a fantasia no cinema brasileiro. Organizou a obra de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, e idealizou as mostras Horror no Cinema Brasileiro e Macabros: O Novo Cinema de Horror Brasileiro. Colabora com diversas coletâneas e catálogos e escreveu sobre cinema brasileiro nas revistas Filme Cultura, Preview e Trip. Vagabundos, trambiqueiros, golpistas; ambulantes, desempregados, mendigos. Homossexuais, travestis, prostitutas; bandidos, retirantes. Assassinos, marginais, artistas. A fauna urbana que populou a Boca do Lixo durante décadas era formada pela escória da sociedade: fracassados e miseráveis que tentavam uma oportunidade na vida, prendendo-se a alguma frágil esperança, para quase sempre quebrarem a cara. Vidas sem rumo e sem perspectiva que desembarcavam na estação da Luz. Buscavam uma vida ao menos digna; alguns sonhavam com fama e fortuna; muitos (sobre)viveram na marginalidade, alguns – os com melhor sorte – conhecendo os dois lados da moeda: não são raros os personagens da Boca do Lixo que, trinta ou quarenta anos atrás, experimentaram algum lampejo de fama e fortuna, e hoje definham no ostracismo e na pobreza. É impossível disassociar o quadrilátero da Boca do Lixo – formado pela Rua do Triunfo, a Rua Vitória e adjacências – de seu cinema. De fato, se existe uma atmosfera de poesia decadente relacionada a esse termo, muito se deve aos filmes produzidos na região desde o final dos anos sessenta até meados da década de oitenta. Invariavelmente realizados por artistas e técnicos de origem humilde – desde autodidatas até meros quebra-galhos – e lidando com temas populares, os filmes da Boca eram ignorados pela crítica quando foram lançados e tinham divulgação praticamente nula na imprensa. Uma quantidade significativa dessas produções investia em gêneros de muito apelo com a classe menos exigente de frequentadores de cinema: eram filmes de ação, policial, faroeste e terror. Mas nem sempre isso ficava claro: os títulos, cartazes e fotos promocionais
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pouco informavam sobre o enredo ou o gênero em questão – exceto que eram filmes que apelavam para a nudez, erotismo e sexo em todas as formas; este era seu chamariz. Somente depois de entrar na sessão o espectador sabia do que se tratava – e quando nos referimos a alguns dos mais violentos filmes de terror feitos na região, não é difícil imaginar a surpresa e o choque que devem ter causado. Os filmes da Boca em sua maioria se filiavam ao chamado “cinema de exploração”, faziam o circuito dos cinemas-poeira (o equivalente nacional do grindhouse, antro do entretenimento barato e apelativo), com tudo que esse tipo de filme sempre ofereceu em doses exageradas: sexo e violência. Outro aspecto importante desses filmes era dar visibilidade para personagens que – por mais típicos que sejam em metrópoles como São Paulo – geralmente passam despercebidos no cotidiano, cidadãos invisíveis que só são notados quando se tornam vítimas ou perpetradores de crime e violência: travestis, prostitutas, cafetões e bandidos. E isso nos leva aos filmes sobre assassinos psicopatas, um dos temas mais recorrentes em meio à produção do gênero horror no cinema brasileiro. Viúvas negras e mulheres-feras Claramente moralista e abertamente sexista, o cinema da Boca destila machismo e misoginia em doses generosas. Isso pode ser conferido em maior ou menor escala em praticamente tudo o que se produziu na região, e fica particularmente notável nos filmes sobre psicopatas sexuais. No entanto, se por um lado a fórmula da superioridade masculina e a submissão da fêmea possa parecer inevitável a um
cinema popular direcionado ao público formado predominantemente por homens adultos, é notável o ciclo de filmes de terror e suspense da Boca do Lixo com mulheres assassinas. Muitos fatores podem justificar isso: no aspecto narrativo, funciona ao mesmo tempo como um fetiche por mulheres sedutoras e um alerta quanto ao perigo que elas representam; na questão prática, não podemos esquecer que o star-system da Boca do Lixo apoiava-se em suas musas – Aldine Muller, Helena Ramos, Patricia Scalvi, Nicole Puzzi, Zilda Mayo, Zaira Bueno etc. – e não em astros, portanto cabia a elas o papel de cativar e castigar a plateia. A tradição das mulheres belas que são predadoras sexuais vem pelo menos desde As noites de Iemanjá (1971), de Maurice Capovilla, no qual uma doce e meiga Joana Fomm tenta compensar seu casamento enfadonho tendo casos amorosos que culminam na morte de seus parceiros em pleno ato sexual. O modelo se repete na comédia de terror Belas & corrompidas: sexta-feira as bruxas ficam nuas (1978), de Fauzi Mansur, com a bonita e elegante Maria Isabel de Lizandra como uma psicopata sedutora que se inspira no assassino francês Henri Landru (o “Barba Azul”) para matar seus amantes de maneira violenta e sádica – também durante o sexo. Esta, aliás, é claramente a arma mais poderosa das mulheres: em Ninfas diabólicas (1978), primeiro longa-metragem de John Doo, duas moças (Aldine Muller e Patricia Scalvi) se passam por colegiais para pedir carona e seduzir suas vítimas, homens casados com quem elas fazem sexo e depois matam
cruelmente. A ferramenta da revanche é anunciada no título de Sexo, sua única arma (1983), um ótimo filme de suspense dirigido por Geraldo Vietri, com a sempre excelente Selma Egrei no papel de uma moça que se passa por cega para vingar-se friamente de uma família inteira, responsável por desgraçar seus pais no passado. O inevitável clichê do “trauma sexual” sofrido na infância que transformou a mulher numa adulta problemática é o ponto de partida para as psicopatias de Liliam, a suja (1982), com Lia Furlin no papel de uma secretária que sai à noite seduzindo e matando homens depois de praticar sexo, e Nicólli, a paranoica do sexo (1982), com Danielle Ferriti no papel de uma moça perturbada que mata seus parceiros. Mesmo quando mergulhou no sexo explícito, a Boca do Lixo seguiu abordando mulheres fatais, como em O beijo da mulher piranha (1986), de J.A. Nunes (Jean Garrett), com uma mulher fatal que se excita com uma piranha que ela coloca dentro da banheira e depois seduz homens até matá-los de tanto sexo. O mau gosto ganha um novo nível com A famosa língua de ouro (1987), de Mauri de Queiroz (Tony Vieira), na qual duas moças fazem uma coleção com os pênis que decepam de seus parceiros de orgias. O diretor chinês Juan Bajon, nascido em Xangai, quando não estava fazendo pornô com cavalos – tem pelo menos dez filmes desse tema no currículo – filmava histórias de mulheres fatais: um dos primeiros, sem sexo explícito, é Fantasias
A Próxima Vítima, de João Batista de Andrade
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sexuais (1982), que inclui um episódio como uma “mulher-abelha”; depois, quando aderiu ao pornô, fez Loucuras sexuais (1983), Penetrações profundas (1984) e Bonecas do amor (1988), sobre esposas sexualmente insaciáveis que matam seus maridos de tanto transar. Estupradores e matadores sexuais É de Juan Bajon também um dos principais filmes de serial killer do cinema de terror brasileiro: O estripador de mulheres (1978), sobre um psicopata que mata mulheres na cidade de São Paulo, ao estilo de Jack the Ripper. O assassino é vivido por Ewerton de Castro, que já havia feito um psicopata problemático em Ensaio geral: a noite das fêmeas (1976), de Fauzi Mansur, no qual envenena as atrizes de uma peça de teatro. Os dois primeiros filmes de Jean Garrett – A ilha do desejo (paraíso do sexo) (1975) e Amadas e violentadas (1976) – também contam histórias de psicopatas que matam mulheres por quem se sentem atraídos. Em muitos destes filmes, algum trauma sexual no passado eventualmente surge como explicação (justificativa?) para o comportamento psicótico, como é o caso também de O matador sexual (1979), de Tony Vieira, no qual ele próprio faz o papel de um estuprador e assassino, e A hora do medo (1987), de Francisco Cavalcanti, com supervisão de José Mojica Marins, no qual um rapaz traumatizado é ajudado pela própria mãe a encontrar suas vítimas de estupro e homicídio. Os filmes eróticos em segmentos, populares no comecinho da década de oitenta, têm algumas das melhores histórias de psicopatas feitas na Boca do Lixo, tirando o máximo proveito do caos urbano e da violência imprevisível característicos de São Paulo. Certamente o mais impactante desses episódios é O pasteleiro (1981, parte do filme Aqui, tarados), de David Cardoso, com John Doo no papel de um chinês pasteleiro que leva uma prostituta (Alvamar Taddei) para sua casa, onde ao longo da noite ele lentamente executa um ritual macabro que envolve tomar chá de jasmim, fotografá-la e pintar seu corpo, para depois matá-la, praticar necrofilia e sodomia, e enfim esquartejá-la, moer sua carne e usar como recheio de pastel.
Outros filmes contribuíram com o tema,
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Ato de Violência, de Eduardo Escorel como Noite das Taras Nº 2 (1983, com o episódio Solo de violino, de Ody Fraga, com Ênio Gonçalves como um estrangulador de prostitutas), Bonecas da noite (1982, com os episódios A noite do estrangulador, de Antônio Meliande, e Noite infinita, de Mário Vaz Filho), e até mesmo um exemplar no estilo slasher, semelhante aos filmes de matança estrangeiros: Shock (1984), de Jair Correa, sobre um assassino que mata pessoas depois de uma festa realizada por um grupo de jovens. O fascínio por psicopatas da vida real resultou em dramas criminais filmados por cineastas com ambições mais sérias. Ato de violência (1981), de Eduardo Escorel, com Nuno Leal Maia no papel de um assassino e esquartejador que mata duas mulheres – sem que nem ele mesmo saiba os motivos. A história é inspirada no caso real de Francisco da Costa Rocha, o “Chico Picadinho”, que matou duas mulheres em 1966 e 1976. A próxima vítima (1983), dirigido por João Batista de Andrade, é um suspense
policial inspirado no caso verídico do “Vampiro do Brás”, com Antônio Fagundes no papel de um repórter que tenta desvendar uma série de assassinatos de prostitutas no bairro paulistano. Mais recentemente, O maníaco do parque, filmado em 2002 e lançado somente em 2009, dirigido por Alex (ou Rubens) Prado, é baseado na vida do motoboy Francisco de Assis Pereira, conhecido como “Maníaco do Parque”, que estuprou e matou várias mulheres na cidade de São Paulo. A redescoberta de um cinema de excluídos Se a Boca do Lixo é mesmo o “quadrilátero do pecado”, a terra das ilusões despedaçadas, da decadência moral e da ruína humana, nada simboliza melhor esse pesadelo do que o psicopata anônimo que transforma promessas de prazer e êxtase num grito de desespero que culmina num orgasmo de morte – situação que se repete ad nauseam ao longo das mais de vinte obras mencionadas aqui. Muitos desses filmes não são mais do que medíocres; alguns são crônicas sublimes de uma metrópole do amor, do ódio, do caos e da catarse. E se por um lado podemos cogitar que a intenção dos cineastas da
Boca do Lixo nunca foi fazer arte, a descoberta de algumas pérolas obscuras perdidas em meio a um cinema considerado totalmente desprezível é o que tem mantido o interesse renovado nesta filmografia. Esse resgate vem acontecendo pelo menos nos últimos quinze ou vinte anos, com filmes sendo salvos de velhas fitas de VHS, gravações da TV e cópias raras que circulam entre colecionadores. Existe uma nova visão que tenta mapear a produção – algumas centenas de longas-metragens – oriunda da Boca do Lixo por cerca de duas décadas de realização ininterrupta. Um desses recortes é o cinema de horror – e na Boca é onde se praticou mais assiduamente o gênero, desde Zé do Caixão a Jean Garrett, Juan Bajon, John Doo, Fauzi Mansur e tantos outros. A Boca hoje é tema de mostras, exposições, documentários, reportagens, livros, dicionários biográficos, teses acadêmicas e todo tipo de resgate que busca dar um sentido novo (e mais justo) a uma manifestação popular que no auge esteve entre as maiores bilheterias do cinema nacional, e que ao longo do tempo se confirmou como o único ciclo cinematográfico brasileiro que verdadeiramente foi capaz de se sustentar sozinho.
O Estripador de Mulheres, de Juan Bajon
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MULHER OBJETO: UM NOVELÃO SOB INFLUÊNCIA Silvio de Abreu, diretor de Mulher Objeto, foi conhecido por fazer as melhores novelas da época. Talvez por isso a obra em questão carregue muito da linguagem das telinhas levada ao Cinema. Mas aqui há algo além do que era produzido em massa na lógica do erotismo da Boca do Lixo. Mulher Objeto trás certa influência de dois grandes diretores e filmes que fizeram carreira nos anos 60: Roman Polanski e Alfred Hitchcock. A proximidade com Polanski está relacionada com a temática desenvolvida muito mais do que com a narrativa, o como. O filme do qual podemos traçar algum paralelo é Repulsa ao Sexo (1965). Neste temos uma personagem – vivida de forma marcante por Catherine Deneuve – que é reprimida sexualmente. Enquanto isso, Helena Ramos, uma das musas das chanchadas, é uma mulher que não sente prazer no ato sexual em Mulher Objeto. Mais uma vez, a maneira de conduzir o tema diferencia um do outro. Enquanto um internaliza os problemas, trabalhando no lado mais escuro, onde reside a dúvida, o outro, Mulher Objeto, busca tornar aparente, levar à luz as problemáticas inconscientes de sua persona-
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gem de maneira progressiva. Reside justamente aí a grande diferença temática entre os dois filmes (mais uma vez, narrativamente ambos são muito diferentes, incomparáveis). A busca por trazer a luz os problemas internalizados de Regina (Helena Ramos) transforma a obra em um filme de investigação do inconsciente, a busca pelos motivos quais a personagem não sente prazer no sexo. Há em ambos os filmes uma aparente pressão social que envolve a ausência do prazer, afinal, tratam-se de mulheres que “não estariam cumprindo seu papel reprodutivo e/ou o dever de dar prazer ao homem”. Em diversos momentos esta situação é exposta em Mulher Objeto, tanto nos comentários de Hélio (Nuno Leal Maia), marido de Regina, como da família da personagem principal. Há, contudo, uma peculiaridade na personagem de Helena Ramos. O prazer é bloqueado por problemas que se evidenciam mais à frente, mas o desejo sempre esteve presente. Em especial, o que ronda a problemática está relacionado aos seus sonhos, Regina sonha tendo relações sexuais com ou-
tros homens, mas jamais com seu marido, nem no campo das ideias, nem no real, mesmo assumindo ama-lo. Há um bloqueio de ordem psicológica. Nem mesmo nos sonhos, porém, ela sente prazer no ato sexual. No momento em que seus desejos estão tomando conta das imagens de seus sonhos, relances de algumas outras imagens atordoam seus desejos e a bloqueiam de cumpri-los. Fica evidente, então, que algum acontecimento em sua vida fez com que Regina se reprimisse sexualmente. Nestes flashs de imagens que irão se justapor algumas figuras são recorrentes: imagens de uma menina presa atrás de uma espécie de grade e pombos atordoados. Chega, enfim, a figura da analista, que ajudará Regina a trazer à tona as respostas aos problemas que a atordoam, desvendar as imagens de seu inconsciente.
questões de ordem religiosa. A personagem descobre, enfim, que algumas de suas imagens vêm do orfanato de onde veio. Lá era reprimida fisicamente por seus desejos, castigada. Em um primeiro momento acreditamos que os problemas estão encerrados. Seus prazeres eram bloqueados ao trazer à tona as imagens dos castigos que a impediam que suas vontades se realizassem. Os pombos atordoados, talvez, uma imagem do Espírito Santo sob forte agitação, e a menina presa impedida de realizar suas vontades. Mais tarde essa teoria, contudo, vai se desconstruindo. A desconstrução, porém, não é um abandono total de sua validação, ainda faz parte dos problemas de Regina. Isso acontece porque descobrimos o real motivo, presa atrás das grades, dentro de um pombal. As imagens do inconsciente finalmente tornam-se consciente.
Chegamos à ligação com o segunO filme é um grande do diretor mencionovelão. Há um reHelena Ramos - Musa do Cinema na época nado no inicio deste quinte na forma de se texto, Alfred Hitchcofazer, apesar da nudez ck. Fica evidente a referência de Os Pássaros quan- explicita que, se grande parte fosse cortada, poderia to a questão dos pombos. A forma de criar suspense render um material bem melhor. Diferencia-se das acerca dos pássaros carrega clara influência do mes- novelas por ter o desenvolvimento temático mais tre britânico. Para sacramentar tal influência per- aprofundado e, também, uma linguagem que, em cebemos em certos momentos que Silvio de Abreu alguns momentos, se aproxima do Cinema. reutiliza trilhas sonoras de Psicose para desenvolver a atmosfera e, por final, algumas cenas, como a do Philippe Leão banheiro, também referenciada em Mulher Objeto. Como já dito, há um objetivo na obra de Silvio de Abreu: investigar e tornar consciente os problemas que reprimem Regina. Para tal, com o desenvolvimento da trama vamos descobrindo que a origem de seus problemas sexuais tem relação com
Crítico de Cinema e Editor-chefe do Cineplot.
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AMOR E REPRESSÃO EM VIOLÊNCIA NA CARNE A cena do carro em chamas no ato de abertura de Violência na Carne pode parecer algo deslocado do tom do filme, mas há uma mensagem implícita. Se analisarmos a obra em seu contexto histórico, na fase final da ditadura militar (começo dos anos 80), a escolha do diretor Alfredo Sternheim serve como um aviso para o espectador. Por trás do erotismo e da simplicidade com que se constrói e desenvolve a trama, há um grito de liberdade, uma busca por beleza na rebeldia, estabelecida pelo bonito piano que acompanha a imagem do fogo consumindo o automóvel. Na história, um grupo de amigos repousa em uma casa de praia até que um trio de bandidos, fugitivos da cadeia e portando uma mala com 4 milhões de cruzeiros, faz a turma de refém enquanto traçam o plano para fugir do país com a grana. Até no roteiro, então, podemos ver a expressão do necessário escapismo da época, já que durante a ditadura, o desejo de muitos dos brasileiros era a fuga para
outros países, que é justamente o projeto dos vilões. O escapismo também é presente no erotismo. Com exceção das cenas de estupro, a escolha de Sternheim é impor sensualidade às imagens e expressar o prazer dos personagens, como se o sexo (principalmente o homossexual) fosse uma ferramenta de libertação em tempos de repressão. Ainda trabalha-se a Síndrome de Estocolmo, conforme uma das mocinhas do filme se aproxima do líder dos bandidos, quando a identificação surge cimentada pela desilusão latente dos dois. Os conflitos internos dos personagens acabam servindo para distanciar o filme de uma visão binária, explicitando como enquanto alguns dos vilões são essencialmente cruéis, outros são fruto dos contextos sociais nos quais cresceram. Em termos de técnica e linguagem, o filme não possui grandes pretensões. Podemos destacar como Sternheim cria boas composições no terço final da projeção, principalmente, utilizando pla-
Cena inicial com o carro queimando
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nos conjuntos que retratam todo o grande elenco do filme e sabendo retratar com imagens o abalo
ro, consegue deixar sua marca principalmente por utilizar temas que imprimem beleza (assim como na cena do carro) às cenas de sexo, o que volta a enaltecer o tom libertador da obra.
Após cena a cena de estupro de sua parceira, a montagem sugere, do ato, um “filho de Rosemary” psicológico de alguns dos personagens que mais sofrem ao longo da história, isolando-os no canto menos forte do enquadramento (o inferior esquerdo) e com pouca iluminação. Destaque mesmo merece o uso da música, que mesmo com as limitações da edição e mixagem de som do cinema brasilei-
Indo muito além de interpretações mais “duras”, que limitariam o filme às suas cenas de sexo, Violência na Carne é um grito de liberdade de uma geração que viveu sufocada por um regime militar durante décadas. Uma legítima e admirável expressão artística oriunda da Boca do Lixo que evidencia a necessidade de escapismo do brasileiro que viveu a ditadura. Mais do que um bom filme, um documento de nossa história, um registro de uma necessária abstração em forma de filme. Matheus Fiore Crítico de Cinema no Cineplot e editor-chefe do site Plano Aberto.
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Norma Bengell foi um grande nome no Cinema produzido na Boca do Lixo
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A MULHER NO CINEMA POPULAR DA BOCA DO LIXO Quem é a especialista? Andrea Ormond é escritora, curadora e crítica de cinema. Autora da trilogia “Ensaios de Cinema Brasileiro – Dos Filmes Silenciosos ao Século XXI”. Mantém desde 2005 o blog Estranho Encontro, exclusivamente sobre cinema brasileiro. Escreve na revista Cinética, além de colaborar na Folha de São Paulo, tendo participado das revistas Filme Cultura, Rolling Stone, Teorema e em diversas coletâneas e catálogos de mostras. Existem duas maneiras de se assistir a um filme da Boca do Lixo. A primeira, inútil e destrutiva, é prendendo-se ao ponto frágil das obras: repetição esquemática de situações que induzem ao sexo. Uma segunda, generosa e inteligente, é analisar o que aqueles filmes guardam de bom, apesar da necessidade dos jogos sexuais, chamarizes de público. Não se trata de fecharmos os olhos para um elefante em uma loja de louças; trata-se de enxergar as sutilezas da loja, apesar do elefante ali plantado, dando sopa. Estamos falando de pessoas com uma qualidade rara no Brasil: faziam cinema com seu próprio dinheiro, risco e sem a proteção estatal ou de pseudo-escolas. Que precisassem colocar mulher nua na tela para sustentar uma usina de talentos, oportunidades e criatividade, em nada diminui o interesse que ainda proporcionam. Neste contexto, a mulher – toda-poderosa, objeto de exploração e cobiça – merece ser rediscutida e repensada. Sempre perseguidos pelo estigma da misoginia, os filmes produzidos na Boca entre as décadas de 70 e 80 – excluindo-se o período pornográfico – oferecem um amplo espectro de tratamento à figura feminina – e, em uma visão simplista, mapeavam o ânimo da sociedade brasileira sobre o assunto.
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A mulher da Boca do Lixo era múltipla. Poderia ser, digamos, a tentativa mal sucedida de patricinha – “O Trote dos Sádicos” (1974), direção do cirurgião plástico e pintor Aldir Mendes de Souza, mostra a bela tomando banho de sol em uma piscina de fundo de quintal, quase descampado. Poderia ser, igualmente, a mãe dominadora, repulsiva, vivida por Wanda Kosmo no episódio “Solo de Violino” (1982), dirigido por Ody Fraga; ou, ainda, a fálica heroína Tallulah, da obra-prima de Jean Garrett “A Mulher Que Inventou o Amor” (1979). Coadjuvantes ou protagonistas, elas muitas vezes renegaram sua condição de escada para as peripécias masculinas e assumiram o controle das coisas. Ecos de feminismo à la Susan Sontag, lesbianismo e igualdade entre os sexos disseram presente com muito mais assiduidade do que o generalizante – a versão cômoda dos fatos – consegue supôr. Evidente que nem tudo eram flores. Se colocarmos em perspectiva a repressão que dava o caldo cultural de um país que aguardou 1977 para aprovar a singela Lei do Divórcio, faz sentido a tensão entre liberdade artística e preconceito. Ser atriz ou militante do pólo cinematográfico da Boca implicava num tor-
cer de narizes, numa falsa idéia de que o local em que trabalhavam daria a entender serem habituais do trottoir. Propostas não faltavam – aceitas ou recusadas, no livre-arbítrio de cada um –, feitas por transeuntes e mecenas equivocados. Lembre-se, aliás, que as verdadeiras meninas da vida (nada) fácil, os Hiroitos Joanides, os Quinzinhos e os afins se misturavam nessa pólis especialíssima. Serviam de figurantes, davam infra-estrutura, compartilhavam o território e por vezes recepcionavam os novatos que iam para a Rua do Triumpho na ilusão do estrelato.
rigir desembestadamente pela estrada, levando uma trupe de garotas para uma fazenda no interior do país. Assim fez David Cardoso, na aventura erótica “Dezenove Mulheres e Um Homem” (1977), estrelada por Patricia Scalvi, cujo título talvez represente a maior quantidade de deleite masculino per capita. Já no embalo do fenômeno pornô-soft “Emmanuelle”, as mocinhas entraram na linha prafrentex, esquecendo as caretices do cotidiano em mansões cobertas por vasos de samambaias. “Mulher Objeto” (1981), direção do roteirista de telenovelas, Silvio de Abreu, une essa estética emmanuellina – que inclui tête-à-tête com outras mulheres, “sem culpas” – à histeria e ao rictus facial doentio da personagem de Helena Ramos, frígida e insatisfeita no casamento. No ano anterior, Galante produzira um exemplar bem menos requintado dessa linhagem de quase vamps: “A Filha de Emanuelle” (1980). Direção de Osvaldo de Oliveira, hoje um cult pela absoluta falta de recursos e sutilezas nos diálogos.
Inebriados pela presença feminina, os filmes abrigavam tantos gêneros e pastiches quanto a demanda do público exigia. Na linha da reinvenção de matrizes cinematográficas, floresceu aqui, por exemplo, o WIP (“Women In Prison”), subgênero de cinema extremo, com fortes tintas sadomasoquistas. Pelas mãos de Osvaldo de Oliveira, “A Prisão” (1981) representou o estado de arte, com um grupo de presidiárias Angelina Muniz em Karina, Objeto de Prazer Quando a mulher dos anos que eram atacadas por ou70 começava a se emancitras, por guardas e por carcereiras. Em “As Prostitutas par, vinham de Jean Garrett alguns dos melhores ardo Dr. Alberto” (1981), Alfredo Sternheim utilizava roubos feministas da Boca. “Karina, Objeto do Prao filão misturando-o com uma pitada do blockbus- zer” (1981) traz o encontro – e o raríssimo caso de ter norte-americano “Meninos do Brasil” (1978), es- desfecho amoral e feliz – da protagonista (Angelina trelado por Gregory Peck. No calor da hora e da en- Muniz) com sua advogada-protetora (Rosina Malcomenda feita pelo produtor Antonio Polo Galante, bouisson). Quase toda a obra de Garrett foi permepara reaproveitar a cenografia de outros sucessos com ada por esta obsessão de vitória sobre a manipulação o mesmo conteúdo. machista. “A Mulher Que Inventou O Amor” (1979), roteiro de João Silvério Trevisan, aborda a inversão Afinal, na medida em que êxito e fracasso eram su- de papéis, com a prostituta oprimida vingando-se portados por quem tirava dinheiro do próprio bolso, dos homens através do fetiche de vesti-los de noiva. nada mais justo do que pensar rápido. Reaproveitar Em “Tchau, Amor” (1982), a rica e mimada Rejane cenários, utilizar apartamentos de amigos, comprar (Angelina Muniz) desconta no pobre radialista Paulo utensílios na 25 de Março ou pegar um ônibus e di- Reys (Antonio Fagundes) a delícia de um pai super-
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protetor, por quem é nitidamente fascinada. Outros nomes, como José Miziara e o simbólico roteirista-diretor Ody Fraga, jamais alcançaram as delicadezas garrettianas. As mulheres de Ody abraçavam o estilo “escada”; e Miziara, apesar do flerte com a crônica de costumes – “Embalos Alucinantes” (1978) misturava discoteca e troca de casais – dava ao macho a primazia da vitória sobre mulheres muito burras ou insuportáveis. Cercando o lesbianismo em “As Intimidades de Analu e Fernanda” (1979), Miziara deixou a mensagem de que o relacionamento das protagonistas era fruto de um terrível desequilíbrio emocional. Walter Hugo Khouri e Carlos Reichenbach também trabalhariam na Boca a questão feminina. A Servicine – de Alfredo Palácios e Galante – produziu “As Deusas” (1972), uma das obras-chave para se compreender a inquietação khouriana, na qual Liliam Lemmertz e Kate Hansen digladiam suas angústias e incertezas. Pensando nas bilheterias, Khouri realizou no alvorecer da década de 80 o saboroso “Convite ao Prazer” traindo a atmosfera de convescote chauvinista por um final que remete aos dos filmes de Garrett. Carlos Reichenbach em “Amor, Palavra Prostituta” (1981) e “Anjos do Arrabalde” (1986) iluminava a mulher da periferia, tema central de seus trabalhos recentes. No episódio “A Rainha do Fliperama” (1982), fez certa concessão ao estilo clássico da pornochanchada, mesmo que a viciada em pinball, Reginéia (Zilda Mayo), seja uma mocinha exuberante, exercendo controle sobre seus pretensos dominadores.
Poucos sabem, ainda, que algumas atrizes – Scalvi, por exemplo – ajudavam na preparação das cenas, dirigiam institucionais e assim foram dragadas pela magia do cinema, pelo clima de comunhão, pelas brigas e pela efervescência da Boca. Esta “Boca dos Sonhos” – como apelidou a musa maior, Helena Ramos – pode ser encontrada visualmente em “Bocadolixocinema ou Festa na Boca” feito por Ozualdo Candeias às vésperas do revéillon de 1976/1977. Gravado em preto-e-branco, 12 minutos, nele encontramos alguns dos rostos, realizadores e divas que fizeram história. Contraponto à visão agregadora, de celeiro de oportunidades, persistem opiniões ácidas e menos otimistas, como a de Matilde Mastrangi – par constante de David Cardoso, nas produções da Dacar. Em depoimento ao pesquisador Nuno César de Abreu, afirmou que “talento ali ninguém tinha (...). O David Cardoso fica danado porque não faz mais nada, mas nós não temos talento para continuar”. É fácil discordar de Mastrangi quando deparamos com o interesse que a Boca e seu cinema provocam; e como os artistas – principalmente as atrizes – que ali fizeram carreira, são lembrados por multidões de cinéfilos e curiosos. Nos últimos anos, nossa geração de jovens críticos criou o imperativo de que a história do cinema brasileiro precisa ser reescrita. Dentro disso, uma perspectiva mais atenta à produção paulista, principalmente à dos anos 1960, 70 e 80, é necessária. Fugir dos estereótipos, da figura da mulher explorada por rufiões cinematográficos, contribuiria em muito para o amadurecimento de opiniões. Como disse no início, a mulher vista pela lente da Boca era múltipla. Separar o trigo neste joio pode ser empreitada árdua, mas a satisfação de fazê-lo engrandece o pesquisador e ilumina aspectos obliterados da cultura nacional. *Originalmente publicado no catálogo da Mostra Retrospectiva do Cinema Paulista - Da Vera Cruz à Retomada. CCBB-SP, janeiro de 2009.
Anjos do Arrabalde - Carlos Reichenbach
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O PALÁCIO DOS ANJOS: EROTISMO QUE CHORA Palácio dos Anjos é dos filmes mais imponentes na obra de Walter Hugo Khouri. Um resgate de sua obra, contudo, há de ser feito em um cenário de total esquecimento de nosso próprio cinema. Um diretor autoral como poucos, que buscava os conflitos do homem de seu tempo e que, porém, era acusado de pseudo-burguês por sua imponente linguagem cerebral, existencialista. Khouri filmou na lógica da Boca do Lixo, com produtores da Boca e, por muito tempo, por isso, considerado um diretor de “pornochanchadas” (título por demais vulgarizado). Contudo, o diretor, em sua maioria, realizou grandes dramas com certa distância do que era feito pelos demais. A diferença está na percepção de relação seu tempo. Khouri filma mulheres como ninguém havia feito e fez em território nacional e, por isso, traça-se semelhanças com o diretor sueco Ingmar Bergman. O erotismo imposto em suas obras está longe de uma exposição descompromissada e vulgarizada do corpo feminino, o sexo dói, aprofunda-se e chega aos mais ínti-
mos desejos do inconsciente humano. Walter Hugo Khouri se vê obrigado a assumir a lógica do erotismo explícito, mas jamais torna-o característica oficial de sua linguagem. O diretor sabe usa-lo a partir do incômodo. Assim é Palácio dos Anjos, “O filme que estremeceu o festival de Cannes” em 1970. Na verdade, o filme ainda não estava sob a lógica dos produtores eróticos, mas já mostrava o interesse de Khouri em filmar mulheres. Esta característica fez o diretor conseguir significativo interesse do público – que ia aos cinemas para assistir aos filmes eróticos – e também imprimir seu cinema autoral dentro desta lógica. Palácio dos Anjos contará a história de três mulheres que trabalham em uma empresa de empréstimos e investimentos. Logo no início somos apresentados a uma “caixa de tesouro” deste lugar, uma espécie de arquivo que cataloga a elite, poderosos endinheirados, expondo suas relações e características pessoais. A personagem principal, Bárbara
Olhar inquisidor de Geneviève Grad interpretando Bárbara.
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– que ganha vida sob os olhos de Geneviève Grad – está insatisfeita com sua condição no trabalho. Ao ser convidada para uma reunião no apartamento de seu chefe, Bárbara recusa a investida do patrão que tenta abusa-la sexualmente. Pela recusa, a personagem é demitida. É importante que se regresse a algo que temos desde o primeiro plano do filme. Há um constante uso de close-ups que nos introduzem no intelecto, nos pensamentos mais profundos de seus personagens. Uma constante no filme é, por assim dizer, uma cena em que sua Bárbara observa um navio partir do cais. Sob sinais sonoros marcantes oriundos do navio, a justaposição imposta por Khouri nos faz, desde o princípio, acreditar que há algo de importante a ser dito ali. Muito mais que isso, porém, a constante presença da cena é um aviso signatário, estamos em uma complexa viagem de algo que parte, do interior de sua personagem. Com o decorrer da história, uma desconhecida oferece carona à Bárbara, caminhando sozinha pela calçada. A desconhecida nomeia-se Rose (Joana Fomm). A personagem, então, oferece um emprego à Bárbara em um bordel, prometendo-lhe independência financeira em pouquíssimo tempo. Em um primeiro momento há um constrangimento provindo da personagem principal que se transforma em um conflito movido por seu interesse. Bárbara é uma mulher obstinada. Após uma conversa com suas duas amigas – Mariazinha (Rossana Ghessa) e Ana Lúcia (Adriana Prieto) – que ainda trabalham na empresa de investimentos, todas resolvem visitar o local. Rose afirma saber que sabia que iria receber tal visita, mas as três não gostam do que veem, em especial devido à forma como as mulheres são expostas como produtos à venda. Daí surge a ideia do Palácio dos Anjos, um espaço que seria administrado pelas três amigas sob suas regras. Elas decidem, então, roubar o banco de dados da empresa e, se no bordel haviam de ter muito lucro, agora tratavam com as pessoas mais ricas. O dinheiro é imediato e, a partir disso, Bárbara – que apresenta uma aptidão pelas artes - começa a
mostrar um caráter autoritário ao gastar uma grande quantia no Palácio, uma quantia constante, sempre há o que fazer. No local as três arrecadam satisfazendo as fantasias sexuais de seus clientes. Há, contudo, conflitos existenciais permanentes em cada uma das personagens. Mariazinha, mulher do interior com uma forte moral provinda de sua família, angustia-se com o que estava se tornando. Desde o primeiro momento sentimos sua repulsa ao que passara a exercer, mesmo estando, agora, ganhando o que jamais poderia ter ganhado em qualquer outro lugar. Khouri constrói a angústia de Mariazinha em planos imponentes, sob close-ups no rosto desesperado da personagem durante o ato sexual. Como dito no início do texto, ao contrário de grande parte dos filmes eróticos produzidos na época, o sexo em Khouri é violento, incômodo, não se trata de exploração. Ao retornar a sua família, os olhos de julgamento da família de Mariazinha é também explorado. Por outro lado, Ana Lúcia é uma personagem em constante conflito direto com Bárbara. Ana está insatisfeita com os gastos de sua colega, não permitindo que, enfim, possam lucrar o quanto deveriam. O conflito entre ambas é explorado a fundo por justaposição entre rostos conflitantes. O semblante desesperançoso e desconfiado de Ana Lúcia contrapõe-se em no plano seguinte ao olhar vorás e inquisidor de Bárbara. O autoritarismo da colega faz, por fim, Ana Lúcia abrir seu próprio espaço. Por fim, Bárbara, a personagem principal que, inicialmente obstinada por um futuro que poderia construir, vê se esvair pelas mãos seus desejos pelo apego a luxuria. Seu materialismo deixa escapar, ao som da despedida, o navio de seus mais obstinados sonhos. Philippe Leão Crítico de Cinema e Editor-chefe do Cineplot.
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À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA: O NIILISMO EM ZÉ DO CAIXÃO “O homem procura um princípio em nome do qual possa desprezar o homem. Inventa outro mundo para poder caluniar e sujar este; de fato só capta o nada e faz desse nada um Deus, uma verdade, chamados a julgar e condenar esta existência.” - Friedrich Nietzsche O que é a existência? Indaga José Mojica Marins em uma rápida cena que antecede os créditos iniciais do filme “À Meia-Noite Levarei Sua Alma”. A definição que ele dá a vida, é uma ideia quase que de sentido biológico in natura, no sentido dessa opinião ser mais eficiente do que todo os mistérios que cercam a “vida”. Essa é base de todo o ceticismo de “Zé do Caixão”. Mojica, encarnado em Zé do Caixão, é como um próprio niilista.
Logo após os créditos iniciais, temos o contato com o sobrenatural e o mítico, em resumo, contra tudo aquilo que Zé do Caixão acredita (ou desacredita). A “Bruxa”, faz contato com o público, essa quebra da quarta parede, que hoje em dia de tão difundida pelo cinema contemporâneo acabou se tornando banal e quase sempre usada de forma gratuita, aqui tem outro objetivo - funcional, inclusive -, ela serve como base ao absurdo, ao horror, a tudo aquilo que o filme de Mojica propõe. É uma apresentação, ela nos alerta do que está por vir, e reforça se tratar de um filme. Com a devida ideia introduzida e um universo categorizado, acompanhamos Zé do Caixão despreocupado em um enterro, como se banalizasse a vida ou simplesmente aceitasse seu fim. Chega em casa, reclama dos presentes e de toda essa frequência, bravejando pelas pessoas se importarem tanto com esse final tão tolo e óbvio. Na mesma cena, ain-
À Meia-Noite levarei sua alma - José Mojica Marins
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da é possível entender um pouco daquele personagem, que serve como evidência a tudo aquilo que antecedeu aos créditos: a total descrença e despreocupação com o sentido da vida e, principalmente, contrário às ideias religiosas. Enquanto alguns não comem carne em respeito a sexta-feira santa, Zé, como é chamado pela mulher, vai atrás de carne, busca consumir aquilo que ele gosta, pura e simplesmente pelo prazer de comer. E é neste sentido contrário que um plano singelo e bem explicativo denota: Zé do Caixão comendo carne com as mãos, quase como um animal, e olhando os “crentes” lá fora, realizando seus cultos - um inclusive que nota o “desrespeito” praticado por Zé do Caixão.
e não a deuses e crenças. Os mitos e superstições também estão rodeando toda a trama, como a próprio cor preta, o gato preto, andar no cemitério a noite, entre outras
E é justamente esse mesmo Zé, despreocupado, descrente e que simplesJosé Mojica Marins como “Zé do Caixão” mente leva sua vida sem nenhum temor, é também temido por toda a coisas que Zé população do bairro. Eles que “acreditam” em toda brinca e se diverte demonstrando sua coragem. O e qualquer superstição, dado religioso ou derivados, mesmo só é desafiado pelo próprio sobrenatural, se espantam com Zé e sua descrença, suas falas e que mesmo o enxergando, o encontrando, continua seus trejeitos. Ele aproveita dessa deixa, esse pré pela busca de uma explicação lógica e racional, toda padrão estabelecido por eles, e abusa, multiplica-o, a estrutura e apresentação de ideias é rompida e como se fizesse questão de que todos acreditem em abortada, assim alternando para o sobrenatural, de sua maléfica “personalidade”. todo o absurdo anunciado. É aí que reside a crítica. A bruxa do início, que nos alertou, alerta também os integrantes daquele universo - a mesma é obviamente ignorada por Zé, demonstrando aquilo que já fora evidenciado e corroborado. Toda essa desconfiança, pode ser tida por muitos como “ódio”, mesmo não tendo relação nenhuma. Como bem disse o próprio personagem: “Eu não posso ter descrenças, quando nunca tive crenças.” E esse é justamente o ponto, a crença é atribuída por uma construção social e não intrínseca ao ser-humano. Novamente parafraseando-o: devemos temer a vida
Todas as mortes e os exageros desembocam justamente nesses planos finais, nesse aspecto sobrenatural, sombrio e fantasmagórico que toda a base ceticista resolveu mostrar e evidenciar. Matheus Petris Crítico de Cinema no Cineplot
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SEXO E TERROR NO CINEMA PIONEIRO DE ROSÂNGELA MALDONADO Quem é a especialista? Beatriz Saldanha é pesquisadora, crítica e curadora de cinema. Mestra em Comunicação Audiovisual pela UAM e integrante da Aceccine, tem artigos publicados em livros de cinema e catálogos de mostras, como Curta Circuito e Outros Cinemas. Estuda o papel da mulher nos filmes de terror e a contribuição das realizadoras brasileiras ao longo da história. Assinou a curadoria das mostras Trash Goiânia e Olhar do Ceará. Atualmente escreve para as revistas eletrônicas Interlúdio e Rocinante. Rosângela Maldonado é uma artista de caráter único. Nascida no interior paulista, fez fama no Rio de Janeiro como radialista e atriz e, apesar de sua condição já de veterana e de pertencer a uma geração mais velha que a maioria dos realizadores da Boca do Lixo, encontrou ali naquela região paulistana uma forma de se expressar. Somando-se ao erotismo, o principal ingrediente dos filmes que eram feitos na Boca desde os primórdios, Rosângela conseguiu combinar uma série de elementos fantásticos e pitorescos nos dois filmes que realizou como cineasta e produtora, tornando-se a primeira mulher brasileira a dirigir um filme de terror. Rosângela nasceu em 13 de agosto de 1928, na cidade de Franca, em São Paulo. Sua carreira
artística teve início no rádio, veículo no qual trabalhou como locutora e atriz, desempenhando papéis em radionovelas. A partir dos anos cinquenta, ela passou a integrar elencos de peças de teatro e de dramas na televisão. Foi também neste período que Rosângela estreou no cinema, sendo citada pelos jornais apenas pelo primeiro nome, que foi como acabou ficando muito conhecida do público da época. Ao longo de sua carreira, que atravessou três décadas, ela atuaria no total em cerca de vinte filmes (embora tenha afirmado em entrevistas que participou de mais de cinquenta filmes, informação que não é confirmada pelas fontes disponíveis). Seu primeiro papel relevante foi na adaptação da novela radiofônica cômica Milagre de amor (1951), mas também pode-se destacar neste momento inicial o
A Deusa de Mármore Escrava do Diabo, de Rosângela Maldonado
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drama religioso Almas em conflito (1953). Muito querida pelo público, Rosângela foi eleita Rainha do Carnaval Carioca em 1954 e, a partir de 1955, obteve reconhecimento como atriz, colecionando faixas de Rainha do Cinema Brasileiro por cinco anos seguidos. Sua carreira na tela grande é formada ainda por filmes como Deu a louca no cangaço (1969), dirigido por Fauzi Mansur, e O pornógrafo (1970), único longa-metragem realizado por João Callegaro, com roteiro do crítico e cineasta Jairo Ferreira, e no qual Rosângela faz uma participação especial. Ambos os filmes foram a porta de entrada da atriz na Boca do Lixo, onde, não seria exagero afirmar, realizaria uma façanha inédita no cinema brasileiro. Foi se aventurando na Boca do Lixo que Rosângela conheceu a excêntrica figura de José Mojica Marins, um dos mais originais e destemidos dos cineastas brasileiros, e que àquela altura já havia fincado a bandeira de principal representante do horror nacional, tendo explorado seu personagem mítico Zé do Caixão em três longas-metragens: À meia-noite levarei sua alma (1964), Esta noite encarnarei no teu cadáver (1967) e O estranho mundo de Zé do Caixão (1968). Ele já havia sido feito, inclusive, O ritual dos sádicos (1970), um meta-filme delirante e impetuoso no qual Mojica filosofa sobre sua própria criação e sobre os estados alterados do corpo e da mente. A primeira parceria entre Rosângela e Mojica se deu em Finis hominis (1971), um filme atípico de Mojica, uma tentativa extravagante de se afastar de seu já consolidado alter ego, já que, opostamente ao de Zé do Caixão, o objetivo de Finis é combater diversas situações de violência física e moral (embora no final fiquemos sabendo que ele não passa de um louco que fugiu do hospício, não muito diferente de Zé do Caixão). Em Finis hominis, Rosângela desempenha um pequeno papel, mas ganhou maior destaque em sua próxima colaboração com o diretor: Sexo e sangue na trilha do tesouro (1972), sobre um grupo de aventureiros que se entrega à própria sorte no meio da selva amazônica em busca de um suposto carregamento de ouro que estaria dentro de um avião acidentado na mata. O título do longa-metragem não poderia ser mais justo,
visto que alterna muitas sequências de sexo e assassinatos cometidos por ganância. Desta maneira, o grupo vai dissipando, até que resta apenas um membro inusitado. Aos 42 anos (o filme foi rodado em 1970), a loura e curvilínea Rosângela se entrega à sensualidade proposta pelo filme, transmitindo conforto e naturalidade na cena em que aparece nua. A morte de sua personagem é tipicamente mojicana em sua aflição e sadismo: ela é picada por um escorpião peçonhento ao calçar um par de botas. Alguns anos depois, quase no final da década de setenta, empenhada em promover seu próprio trabalho, Rosângela decidiu seguir os passos do “mestre” Mojica e abriu a produtora Panorama Filmes do Brasil, pela qual realizou e lançou, ambos em 1978, os filmes A mulher que põe a pomba no ar e A deusa de mármore: escrava do diabo. Estes dois filmes, baratos e independentes, a colocaram na posição de primeira mulher a dirigir terror no cinema brasileiro. A artista entregou-se por completo às suas produções, cuidando pessoalmente do roteiro, figurino, maquiagem e de outros aspectos técnicos; além, é claro, da direção, compartilhada com José Mojica Marins. A comédia erótica fantástica com elementos de terror e ficção científica A mulher que põe a pomba no ar chegou aos cinemas em abril de 1978, e traz a própria Rosângela no papel de uma cientista que, após ser traída pelo marido, dedica-se à invenção de um método para se vingar de homens adúlteros. Ao descobrir uma maneira de transformar pessoas em criaturas aladas, faz com que duas jovens se tornem mulheres-pombas e as utiliza como armas para atacar os maridos infiéis no meio do ato sexual com suas respectivas amantes. Outras mulheres vítimas de traição e interessadas em punir seus companheiros se unem à cientista em seu mirabolante plano de vingança. Por sua vez, em A deusa de mármore: escrava do diabo, lançado em novembro de 1978, Rosângela interpreta uma mulher de dois mil anos de idade que faz um pacto com o diabo (“Seu Sete Encruzilhada”, interpretado por Mojica), oferecendo a ele em sacrifício as vidas dos homens com quem
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José Mojica Marins e Rosângela Maldonado ela faz sexo, recebendo em troca a capacidade de permanecer sempre jovem. No final ela é castigada por sua vaidade e tem a aparência revertida à sua verdadeira idade. Infelizmente, ambos os filmes passaram despercebidos pelos cinemas, despertando pouco interesse de público e crítica. O primeiro, embora de difícil acesso, encontra-se preservado na Cinemateca Brasileira, mas é provável que do segundo tenham restado apenas seu pôster de cinema e alguns foto-cartazes coloridos. Ainda que estes filmes tragam consigo o mérito de um avanço para a luta feminina no cinema nacional – uma mulher brasileira no comando de filmes de terror –, ambos não conseguem escapar das marcas do machismo difundido nos filmes da Boca do Lixo e no país como um todo, inclusive em sua cultura. Ou seja, em termos de representação feminina, não há novidades; pelo contrário, os filmes reforçam clichês e estereótipos frequentemente associado às mulheres, como o medo da traição e do envelhecimento e a necessidade de sempre estar atraente para merecer a companhia masculina. Tal situação soa ainda mais triste ao sabermos que Rosângela acabou tendo o mesmo destino de muitos artistas de menor expressão e recursos, especialmente aqueles que de certa forma dependem de sua aparência: depois dos anos de glória,
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mergulhou num ostracismo, a ponto de parecer que sua história está sempre sendo contada pela primeira vez. Consta que Rosângela foi acometida por um ferimento durante uma filmagem que acabou resultando na doença de chagas, tendo que viver desde então com as complicações trazidas pela enfermidade. Em 2012, época em que apareceu pela última vez na mídia, numa reportagem da Rede Record Rio Preto no programa Balanço Geral, uma envelhecida e fragilizada Rosângela revelava sua situação atual, aposentada e reclusa, dividindo com o marido uma pequena casa em Guarani d’Oeste, uma cidadezinha com menos de dois mil habitantes localizada no noroeste do estado de São Paulo, perto da divisa com Minas Gerais. Numa época tão próspera, em que, a cada ano que passa, as mulheres têm tomado as rédeas na direção de filmes de terror no Brasil (nomes celebrados e consagrados como Juliana Rojas, Gabriela Amaral Almeida e Anita Rocha da Silveira, para citar apenas algumas), parece-me justo nos lembrarmos de Rosângela Maldonado, realizadora de A mulher que põe a pomba no ar e A deusa de mármore. Ainda que seus filmes tenham a marca dos vícios morais e imperfeições técnicas como vemos frequentemente no cinema popular feito na Boca do Lixo (o que certamente compõe o seu charme, em vez de esvaziá-lo de interesse), nada pode tirar o mérito de sua ousadia e pioneirismo.
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CARLOS REICHENBACH É UM DOS GRANDES DIRETORES DA boca do lixo
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FILME DEMÊNCIA: ANGUSTIA E FRACASSO
Baseado na lendária obra Fausto, de Goethe, Filme Demência traz um protagonista atormentado por seu fracasso profissional: a falência da companhia de cigarros da qual era presidente e que havia sido fundada por seu pai. Nascido e criado em uma sociedade robotizada, onde o trabalho é estabelecido como prioridade máxima da vida do indivíduo, Fausto se vê desiludido e perdido. O personagem, então, embarca em uma soturna viagem pelas ruas da cidade em busca de entorpecimento mental e de respostas para seus dilemas. Desde o começo, o filme escancara a situação psicológica de Fausto. A primeira cena após os créditos iniciais, por exemplo, traz o protagonista sentado em seu sofá assistindo a um filme. Aliás, ao final de um filme. O corte para a televisão, estampando os dizeres “THE END” em preto e branco sinalizam o fim da projeção e o esgotamento mental do
ex-empresário. A escolha de retratar o ator abaixando a cabeça e falando para si mesmo “eu falhei” ainda evidencia mais sua sensação de derrota.
A reação cabisbaixa do protagonista o persegue por todos os 90 minutos da metragem de Filme Demência. Mesmo quando enquadrado no contra-plongée, em close-ups que mais parecem invadir sua privacidade, a direção sempre faz questão de enaltecer sua expressão desesperançosa e fria, que só sobrevive no mundo pela força do dinheiro acumulado. A trilha sonora corrobora o clima desolado do protagonista, trazendo arranjos de jazz calcados no saxofone e no piano para criar um clima de perdição bem semelhante ao que se vê em Taxi Driver, por exemplo. Outro destaque de Filme Demência é a fotografia, pelos close-ups invasivos, mas, principalmente, pela manutenção
Filme Demência - Carlos Reichenbach
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de uma aura sombria trazida pela baixa iluminação que acompanha boa parte do longa, quando a escuridão que domina os planos e cenas retratam a solidão que assombra a mente do personagem.
ca o sexo fácil (algo almejado e não conquistado pelo personagem), e o amigo capaz de esquecer todos os problemas e encontrar diversão na dor.
Destaca-se ainda que, diferente da obra original de Buscando salvação nos seus instintos, Goethe, Fausto não aceita o trato proposto pelo deFausto percebe, então, que perdeu também o afeto mônio que o aborda (que, aliás, por sua teatralidade sua esposa, que não demonstra mais atração sede e visual pálido, lembra a Morte de Bergman em xual por sua figura. Restando a violência, o protaO Sétimo Selo). Curiosamente, em uma das vezes gonista torna-se agressivo por todo o resto do filem que o demônio tenta seduzi-lo em troca de sua me, quando mais de uma vez comete homicídio e alma, o protagonista brada que não possui uma, gradualmente torna-se mais rude com as pessoas ressaltando o vazio que vê em sua própria exiscom quem convive. tência. Mesmo que Aqui, a montagem viaje pelas estradas também beneficia, com seu carro verprincipalmente por de (que ressalta o conectar algumas último resquício de cenas por meio do esperança em sua uso de curtos plabusca), Fausto não nos que trazem compreende que o uma televisão estáparaíso que busca tica, que remete à é inalcançável - o demência do perpróprio demônio sonagem principal. diz que o Eden só Também demonsé acessível ao abratrando a busca pela çar a morte - se vontade de viver, tido como objetivo Fausto também principal, podendo decide expor seu ser contemplado corpo à violência, apenas por aqueles como quando seque o vêem como o gura uma lâmina trajeto. de barbear em seus As Influencias da obra de Goethe em Filme Demência lábios, correndo o risco de se cortar para, talvez, sentir-se vivo. Matheus Fiore Se o objetivo de Carlos Reichenbach, que dirige e assina o roteiro em parceria com Inácio Araujo, é mostrar o avanço da demência do protagonista, trazer aparições de personagens bem lúdicos - quase fantásticos - é uma escolha acertada. Aos poucos, essas aparições quase espirituais levam o filme de um lamento sobre fracasso para uma viagem em busca de autodescoberta. Vale ressaltar ainda que muitas dessas figuras representam questões interiorizadas do próprio Fausto, como a jovem da praia que bus-
Crítico de Cinema no Cineplot e editor-chefe do site Plano Aberto.
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SÃO PAULO S.A: O ASFIXIAMENTO DA CIDADE São Paulo SA ou São Paulo Sociedade Anônima é, entre muitas outras coisas, um filme sobre São Paulo, e verdadeiramente sobre São Paulo, uma cidade em ascensão, seja lá o que essa palavra possa significar para os meros peões no jogo da indústria automobilística. Por mais óbvio que o título possa parecer, além de um retrato sobre a cidade, o filme é um retrato sobre o ser-humano inserido naquela sociedade em desenvolvimento constante, sob total pressão, e, também, o seu problema em adaptar-se e construir algo, alcançar os tais “objetivos”. Person constrói no plano inicial quase tudo aquilo que mencionei no parágrafo anterior. Em plano geral, ele exibe um casal por detrás de uma grande janela de vidro, completamente transparente, o casal discute, escutamos os gritos totalmente
“abafados” pela cidade, cidade essa que no reflexo desse vidro, podemos enxergar os diversos prédios que os cercam, que os asfixia. A discussão termina com contatos físicos, Carlos (Walmor Chagas) jogada objetos ao chão e logo em seguida, joga Hilda (Ana Esmeralda) violentamente contra o chão, naquilo que dita uma espécie de encerramento, de desistência de tudo. Logo após sua saída do local, e ainda com Hilda no chão chorando, a câmera que estava fixa até o presente momento, começa realizar um movimento lento, até trocar de eixo e mostrar a cidade apenas pelos olhos da câmera. No silêncio, a movimentação continua, até o momento do corte, e quando São Paulo toma o quadro para si - em mais um plano asfixiante - no qual prédios são mostrados em contra-plongeé, enquanto a câmera continua a movimentar-se sobre seu eixo, em seguida a
Eva Wilma em São Paulo SA
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trilha sonora começa, pesada, forte e perturbadora, tal como todos os minutos que acabamos de assistir. Devidamente introduzida, a relação entre a cidade e os personagens tomará corpo durante todo o filme. Há ainda mais planos de São Paulo, além de prédios. Há principalmente pessoas - e muitas delas. A periferia é também filmada - não tão profundamente como Sganzerla, mas ele o faz, um outro momento bem comum dentro de um país industrializado, também: a saída dos funcionários de suas fábricas, o que pode ser lido como uma referência a própria história do cinema. Dentro de todo essa lógica de industrialização do Brasil, que como todos bem sabemos, chegou muito tarde por aqui, existe um fator vindo dos Estados Unidos inexorável a esse período pré-ditatorial, no qual sua cultura ia sendo aos poucos transmitida a nós, não só diretamente, como indiretamente. Dentro do filme, as aulas de inglês oferecidas pelas empresas e os próprios diálogos entre os personagens, evidenciam a conhecida cultura do “americano”. É curioso notar que toda essa industrialização que emergiu a classe média, aqui também é pincelada, como exemplo a cena filmada em uma galeria de arte, um local de não tão fácil assim anos antes. Toda a construção em volta da sociedade paulista é feita da forma mais completa e competente possível, para só assim avançar aos âmbito individual dos personagens, de seus problemas e do que a cidade vem causando a eles.
A poluição de todo esse país emergente, no sentido figurado e literal, evidencia também um outro lado do Brasileiro: o lado corrupto. Essa corrupção existe das duas formas, as corrupções corriqueiras, tão “bem aceitas” pelo mundo capitalista e seus empresários e, claro, as questões mais complexas. E o que toda essa pressão fez com Carlos? O esgota, o desanima, o incapacita. O “destino” dele é a fuga, a desistência, é aquilo que virá logo após o fim da discussão - que é o início do filme. O início é também o momento de decisão, é a escolha em tentar fugir daquilo que lhe incomoda, que não faz mais sentido para si. As possibilidades do crescimento profissional em São Paulo não são suficientes; O estilo de vida americano não é tão bom assim; A selva de pedra oprime, sufoca e esgota os que estão em seu meio e, até provocam uma ação desesperadora, fazem com que Carlos roube um carro e fuja, mesmo que sem destino, apenas escapar de todo o caos que se tornou sua vida e São Paulo… Matheus Petris Crítico de Cinema no Cineplot
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MEMÓRIAS: “A BOCA FORA DA BOCA” Quem é Afranio Vital? Autor do texto, Afranio Vital é Cineasta. Dirigiu 15 curtas metragens e 3 longas: Os Noivos, Longa Noite do Prazer e Estranho Jogo do Sexo. Esta sendo homenageado pelo conjunto de sua obra, este ano, na atual mostra do Curta Circuito em Belo Horizonte além de ter sido motivo da biografia Esfinge Negra a História do Cineasta Afrânio Vital pela Editora Laços de Carlos Ormond
Sou um homem de 69 anos, com meio século de vida dedicado ao cinema. Quando meus netos ou outras pessoas jovens me perguntam como é São Paulo, sempre defino assim: imaginem 3x mais. Nas esquinas como as daqui debaixo do meu prédio circulam em São Paulo 3 x mais pessoas que aqui. Os botecos de lá tem sempre 3 x mais fregueses, assim como os shoppings, e por aí vai... O fenômeno da Boca do Lixo em São Paulo, o de um grupo de pessoas reunidas profissionalmente em torno de um cinema popular, teve também uma correspondência no Rio, em proporção 3x menor, mas que poderíamos definir como uma “Boca fora da Boca”. Quando iniciei em cinema após o cineclubismo, fazendo meus primeiros curtas-metragens, o “Stil” – Pedro Ernesto Stilpen, cartunista, animador, escritor e roteirista, que fazia filmes de desenhos animados, me indicou para que distribuísse meus curtas, o Nascimento, João Baptista do Nascimento, que tinha um escritório na Rua Senador Dantas, na Cinelândia em pleno Centro do Rio. Ali na Havaí Produções Cinematográficas, depois
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dele ter me instruído como conseguir o certificado de qualidade para o Curta Ataulfo Alves, entreguei-o à distribuição na firma do Nascimento. Muitos curtas vieram e muitos foram distribuídos pela Havai, mas o mais importante de tudo, era que no entorno da Havai, na Cinelândia, desfilava todo um universo do cinema carioca, tanto dos curtas como dos longa metragens. Distribuidoras, técnicos, diretores, exibidores, roteiristas, atores, produtores, enfim... O quadrilátero básico na Cinelândia onde circulavam , era o das Ruas Senador Dantas, Alvaro Alvim, Alcindo Guanabara e Francisco Serrador. Ali se encontravam a Condor Filmes, o Severiano Ribeiro, em cima do Cine Odeon, A Havaí, A Duilio Mastroianni Produtora, a Art Filmes. Na esquina da Rua Sta. Luzia com Av Rio Branco ficava a Agedor, produtora de Paulo Bastos Martins, a Cinefor de Sergio Santos, o Livio Bruni e muitos outros. Nos bares e restaurantes das cercanias, tais como: o Amarelinho, o Verdinho, o Oxalá e outros, se discutia cinema durante todo o dia e algumas vezes noite adentro. Lembro-me que muitas vezes aparecia o Jô Soares saindo de um dos teatros como o Dulcina, o Rival ou o Brigite
Blair e ficava ali papeando com a turma. De São Paulo vez por outra aparecia também o Toninho Meliande, o Claudio Cunha entre muitos. Nesse quadrilátero se encontrava os técnicos necessários para se fazer um filme, além de alguns atores que por ali circulavam, tais como o Procópio Mariano, o Ibanez Filho e era, a grosso modo, uma “boca do lixo” carioca, guardadas as devidas proporções. Quando fiz meu primeiro longa, o escritório da produtora associada era na Lapa, na rua Joaquim Silva, não muito distante dali. A Scorpius Filmes, co-produtora de “Os Noivos” assim como muitas outras produtoras estavam nas proximidades e as reuniões fora dos escritórios terminavam sempre nos bares da Cinelândia entre chopes intermináveis... No mesmo prédio da Scorpius Produções, do Adnor Pitanga e Rita Benchimol, ficava a redação de “O Lampião da Esquina” pioneiro jornal
Gay. O Antonio Crisóstomo, um dos redatores, e muitos outros artistas e intelectuais, também por ali circulavam em torno dos cinemas e teatros, fazendo parte dessa fauna multifacetada. Voltando a Havai Distribuidora; naquela sala dividiam o escritório a Batuque Produções (de curta-metragens), a Duilio Mastroianni Produções , do autor de “Copacabana Zero Hora” , “Elas atendem pelo Telefone” e “24 Horas no Rio” e o ator produtor e diretor Marcos Lira, que estava produzindo “O Garanhão no Lago das Virgens” com Marta Anderson, Marta Moyano e Fernando Reski. Entre outros atores que me lembro de memória, circulavam Haroldo de Oliveira, Fernando Palitot, Claudioney Penedo, que trabalharam comigo em dois longas, além de Sávio Rolim de “Menino de Engenho” que colaborou comigo no roteiro de
Afranio Vital na produção de Anjos e Demônios
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“Longa Noite do Prazer”. De memória me lembro também de Elio Vieira de Araujo, marido da atriz Olivia Pineschi, diretor e produtor de filmes como “7 Homens vivos ou Mortos” dirigido pelo Leovigildo Cordeiro o “Radar”. Élio era também amigo de Miguel Borges além de roteirista e produtor de “As Escandalosas”, filme dirigido por Miguel. Outro que também circulava pelo quadrilátero era o Geraldo Miranda, Ast. de Direção e Diretor, quase sempre acompanhado de Wilson Silva, grande freqüentador da área e diretor de diversos filmes, tais como: “Cristo de Lama”, “Só Restam as Estrelas” e “Depois do Carnaval” ; todos da Wilson Silva Produções Cinematográficas. Alí conheci também o saudoso Kiko, o lendário Francisco Severiano Ribeiro, figura gentil e produtor muito querido, com quem tive o prazer de trabalhar como Ast. de direção de um filme de sua produção “O Homem de Seis Milhões de Cruzeiros contra as Panteras” dirigido pelo Luiz Antonio Piá tendo como protagonista o cômico Costinha, coadjuvado pelas atrizes Elke Maravilha e Adele Fátima. Como pode se ver a “Boca dentro da Boca” não era tão pequena assim. Procurarei de memória lembrar de mais nomes, filmes e figuras que circulavam na Álvaro Alvim, Senador Dantas e cercanias. Osiris Parcifal de Figueroa foi também uma figura constante. Antigo programador do Cineac Trianon e ex-funcionário da Pelmex ,começou a produzir a partir de 1967 filmes como “O Sabor do Pecado” (Dir. Mozael Silveira) “Enfim sós com Outro” e “Uma Garota em Maus Lençóis”, ambos dirigidos por Wilson Silva. Através de sua firma O.P. de F. Cinema e Diversões, produziu ainda: “Um Brasileiro Chamado Rosa Flor” ( Dir. Geraldo Miranda), “Os Amores de um Cafona” além de “O Fraco do Sexo Forte” filmes que co-dirigiu. Desses nomes os mais assíduos durante os anos 70 e 80 foram: Mozael Silveira e Wilson Silva, que se tornaram figuras quase folclóricas ao lado do não menos lendário Nilo Araújo Machado, o famoso “Nilo Machado” que apesar de ter seu estúdio “Adelana” no subúrbio de Ricardo de Albuquerque comercializava seus filmes por ali. Entre muitas produções suas me lembro de memória de “Ter-
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ra da Perdição”, “Tuxaua... o Maldito”, “A Psicose de Laurindo”, “Aconteceu no Maracanã”, “Traição Conjugal”, “Emanuelo... o Belo” entre dezenas de filmes que dirigiu e produziu. O que marcava bem a dicotomia entre os produtores da elite e os que faziam filmes para o povão era a localização de suas produtoras. As de elite, por bairros na Zona Sul, notadamente no bairro de Botafogo. Ali ficavam as produtoras do cinema novo como a Difilm, a L.C. Barreto e outros, sendo que seus pontos de encontro não eram na boca da Cinelândia, mas sim no bar da Lider, assim chamado por ser em frente ao Laboratório Cinematográfico Lider, na Rua Alvaro Ramos. Nessa rua se encontravam também os Estudios Bataglin e a Nelsom, ambos estúdios de som e dublagem. Mas, de qualquer forma muitos tinham um escritório também no quadrilátero da Cinelândia, como a Difilm na Rua Senador Dantas, pela proximidade dos de exibidores tais como: a Condor, o Livio Bruni, a Art Films e o Luiz Severiano, entre muitos. Tão importante quanto a minha formação universitária em Filosofia na UFRJ e em Comunicação na então recém criada Faculdade Estácio de Sá, e ainda meu aprendizado trabalhando na Difilm e na Luiz Carlos Barreto Produções Cinematográficas, ali naquele quadrilátero, da “Boca da Boca” , principalmente no escritório da Havai Produções, fiz um grande e importante estágio de formação técnica em cinema durante muitos anos. Ali, em conversas com Duilio Mastroianni, Reinaldo Cozer, meu sócio na Aleph Filmes, Mozael Silveira, Ramon Alvarado, João Baptista do Nascimento, Aladir Araújo Wanzeloti, Wagner Papette, Ivan de Souza, Still, Marcos Lira, Miguel Borges, muitos saudosos amigos e ainda outros tantos técnicos, que não me recordo, pois me trai a memória, na “Boca da Boca” conheci pessoas que em mim deixaram marcas importantes tanto quanto escreveram seus nomes na história do cinema brasileiro, notadamente nos anos 70 e 80.
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A ILHA DOS PRAZERES PROIBIDOS, MAS PRINCIPALMENTE DO SUSPENSE Muitos espectadores, de boca em boca, encaixam “A Ilha dos Prazeres Proibidos”, filme clássico da Boca do Lixo, em gêneros simplesmente relacionados ao erótico ou ao drama, o que é verdade, dado que ambos os estilos estão presentes no interior da narrativa. Deve-se pensar através do molde fílmico, todavia, que o grande tom da película, indubitavelmente, é o molde de suspense, embora não pareça por causa de alguns fatores. Esses fatores atrelam-se, por exemplo, à nudez. O nu dos atores do longa-metragem parece direcionar, ou melhor, resumir, os olhares do público ao campo do erótico, elemento muito presente em todos os momentos do filme. Parece que tal tipo de percepção, um pré-julgamento, digamos assim, faça com que um olhar mais desatento caia, apenas, na sedução de um dos prazeres proibidos, do fruto proibido no continente, mas super liberal na ilha. Concretizar o olhar apenas nisso, porém, é um equívoco colossal, posto que a nudez serve apenas como um complemento da proposta, sendo o suspense, portanto, o vasto desenvol-
vedor da narrativa em seus nós e aberturas. É verdade que há certos momentos em que a nudez torna-se o primeiro plano, mas é necessário que haja esse espaço, pois o nu está na essência daquele local isolado e paradisíaco. Independente do volume erótico, a tensão gerada por diversos meios técnicos é o principal motor da obra. Pelo começo, sem quaisquer enrolações, sem prólogo ou qualquer coisa do tipo, Carlos Reichenbach traz um diálogo de uma mulher – quem viria a ser a protagonista – com um homem, explicando muito diretamente, ou seja, sem muitas apelações em justificações ou esclarecimentos para que o suspense seja rapidamente cultivado dali em diante, que ela irá para uma ilha. Ela estará disfarçada de jornalista para poder entrar na ilha e fazer uma reportagem sobre o local misterioso, mas, na verdade, é uma contratada por um grupo de extrema direita para assassinar pessoas específicas no lugar paradisíaco. Um suspense está criado. Não sabemos muito bem o que acontece naquela ilha, quem está
A Ilha dos Prazeres Proibídos, de Carlos Reichenbach
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lá e por qual razão estão lá. O que é essa ilha? Aos poucos vamos coletando algumas informações importantes sobre o local de destino da personagem principal e sobre a função dela naquele meio; interrogações são criadas com mais força quando ela recebe uma arma para que possa fazer suas execuções – isso antes de sabermos que ela foi contratada; quando a protagonista encontra duas pessoas envolvidas com a ilha, pessoas que a levarão até lá por uma quantia proposta, tudo vai ficando mais claro, embora a grande chave do suspense esteja para acontecer, sobre o que/ como é aquela ilha e o que vai acontecer por lá. Ela vai se passando pela jornalista e se passando por uma mulher sedutora. Utiliza seu corpo, como andar de biquíni em frente ao homem que a levará ao local, ou até mesmo já na ilha, andando nua, para conquistar as pessoas locais e conseguir, vagarosamente, o que quer. É bom lembrar que um tipo de suspense acontece, também, sobre o próprio corpo da mulher, pois ela só aparece desnuda após muita metragem de narrativa e após muitos olhares de desejos e expectativas por parte das figuras masculinas na trama. O mesmo acontece com a ilha, demora a aparecer, o deslocamento ao local não é dos mais apressados. Antes de entrar no local, o diretor cria expectativas no espectador. Ele não joga os personagens rapidamente no ambiente, cria barrerias para que a expectativa de chegada ao principal cenário seja aumentada. Primeiramente, prende os personagens numa espécie de fronteira, o que os retarda; em outro momento, o homem que leva a protagonista até o local descobre que a moça está com uma arma carregada; existem outros fatores para que o espectador fique na ansiedade para que chegue a grande esfera do filme, a ilha dos prazeres proibidos.
al, respiram a poesia, a literatura, diferente do que acontece no continente com a opressão militar. Logo na chegada ao principal cenário da narrativa, pensamos que aquele local será rapidamente dizimado pela mulher, visto que a maioria dos personagens parece estar sempre com sorrisos, quase nunca com desconfianças; a sensação dada é de que estão despreparados para intervenções mais bruscas. No entanto, aos poucos ela parece estar sendo seduzida pela liberdade local. Apenas parece. Mais um suspense, com isso, é criado, pois não sabemos ao certo o que está acontecendo: ela está realmente bem naquele local ou isso não passa de uma camuflagem para poder exercer sua função de assassina? Ficamos com essa dúvida até o final, quando Ana, a protagonista, mostra-se bastante agressiva e executa alguns membros daquela ilha, criando como consequência um belo desfecho, uma surpresa para uma obra que veio trabalhando o suspense com diversas aberturas ao longo da narrativa. Se aos poucos o filme foi trabalhando a dupla articulação da personagem, vagarosamente gerando dúvida, se ela estaria ou não seduzida pela vida local, o que vemos no final é um verdadeiro nocaute, já que a noção dada próxima ao desfecho era de que ela estava mais próxima dos prazeres proibidos do que de seu contrato.
Leonardo Carvalho Crítico de Cinema pelo Cineplot, letrado e professor.
Quando chegamos ao local, a narrativa nos apresenta as principais características daquela ilha, que pulsa o instinto sexual. Tudo é muito feliz por lá, não há preocupações, apenas espaço para os prazeres. O ambiente e belíssimo, uma praia deserta, povoada por poucas pessoas que refletem sobre a vida, vivem a liberdade sexual e intelectu-
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