3# CINEPLOT - Mestres Italianos

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Edição nº3 - Novembro de 2017

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CABÍRIA: O PRELÚDIO DO CINEMA ITALIANO

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CINEMA ITALIANO: DO NASCIMENTO ÀS RAÍZES TOTALITÁRIAS Sobre o autor: Donny Correia, poeta e ensaísta, é mestre e doutorando em Estética e História da Arte pela USP. Autor de, entre outros, Corpocárcere e Zero nas veias (poesia), e Cinematographos de Guilherme de Almeida (antologia). Contato: donnycorreia@usp.br A Itália que conhecemos, como uma nação unificada, é uma condição relativamente recente. Os vários reinos fragmentados dividiam-se ao longo do território ocupado por vários outros povos após o fim da era napoleônica, e somente a partir de 1860, quando Giusepe Garibaldi liderou sua Spedizione dei mille, uma espécie de milícia que visava à unificação do território italiano, algo parecido com um país surgiu. O apoio a Garibaldi a atendia a certas ideias nacionalistas que passaram à voga a partir de 1840 em várias partes da Europa, e zelar pela unidade e autonomia da nação era prioridade antes que se pudesse construir um sistema social satisfatório. O berço do maior império do ocidente e da arte renascentista adentrava o século 20 imbuído de ideais políticos, positivistas e modernas. Naturalmente, os italianos estavam afoitos pela chegada das novidades tecnológicas, sobretudo, o Cinema. *** Não se pode falar em cinema italiano sem mencionar a figura do pioneiro Filoteo Alberini, que por volta de 1894 trabalha num aparato cinematográfico chamado Cinetógrafo. Era mais um inventor, como tantos outros na Europa da época, que tentava obstinadamente dar movimento à fotografia. No entanto, seu projeto ruiu quando chegou ao seu país o Kinetoscópio de Thomas Edison e foi definitivamente quando da chegada do Cinematographo dos Irmãos Lumière. Daí por diante, o cinema passa ser uma das principais atrações populares no país todo,

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e principalmente em Turim.

Protótipo do Cinetógrafo, de Filoteo Alberini

Filoteo, não obstante, conquistou seu lugar de destaque na História do cinema italiano. Em 1905, realiza o primeiro filme de ficção no país, baseado em fatos verídicos, verdade. La presa di Roma, longa de 80 minutos, dos quais apenas 6 restam hoje, é uma reconstituição dos momentos finais nas batalhas que consolidaram a unificação da Itália. A figura de Garibaldi


ressurge no imaginário, agora como representação da grandeza nacional vista pelas lentas de uma câmera. O filme de Filoteo obedece a uma gramática básica comum ao cinema daquele tempo: planos fixos e abertos, episódios estanques que ainda carecem de paralelismo de montagem, e uma direção de arte convencional e típica do pré-cinema. Mesmo assim, o diretor arriscou cenas de batalhas muito bem elaboradas para a época, mostrando habilidade na re-

construção histórica e na direção de multidões. Ao analisarmos o que sobrou desse filme, identificamos um discurso bastante patriótico, de matizes nacionalistas. A última cena de La presa di Roma mostra uma mulher imponente, adornada, que

segura, solene, uma bandeira do país. Ela está ladeada dos personagens que foram decisivos na tomada do último reduto de resistência contra a unificação. Esta imponência diante do ideal da pátria seria algo patente nas aparições públicas de Benito Mussolini, sobretudo quando o cinema italiano passa a contar com prestígio internacional e a ditar normas de comportamentos e personalidades. Ao final da primeira década do século 20, o cinema italiano já produzia filmes ambiciosos, e por ser um dos polos da História da Arte, a herança cultural, sobretudo no que dizia respeito à composição de imagens, ganha especial destaque nas telas. O filme L’inferno (1911), de Francesco Bertollini, traz ao público uma representação do clássico de Dante Alighieri ambiciosamente amparada pela direção de arte e pelas ousadias nos planos e nos efeitos visuais. A estética do filme tomou emprestado o estilo de Gustave Doré, que ilustrara A divina Comédia no século 19. Assim, o que temos é um trabalho bastante peculiar para sua época. De novo, a referência a um orgulho nacional travestido de entretenimento fica patente. A língua italiana fora padronizada de acordo com o dialeto usado por Dante em sua obra, um dialeto muito parecido com o italiano que conhecemos. Sendo assim,

Ilustração de Gustave Doré (esq.) e cena de L’inferno (dir.).

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como é possível perceber, o cinema passa a refletir diretamente o estado de ânimos de um povo em seus momentos mais decisivo, sobretudo se colocarmos na perspectiva de um movimento de vanguarda nascido havia pouco, e que, por meio de um manifesto belicista, iconoclasta e misógino, seria a bula dos novos tempos numa Itália que havia conquistado destaque entre as potências colonizadoras e expulsado o exército turco na África, em 1912. Referimo-nos ao Futurismo. *** Filippo Tommaso Marinetti, maior voz do movimento estético futurista, pregava em seu manifesto, de 1909, uma truculência exacerbada em nome da nova arte. Alguns dos pontos mais polêmicos das ideias futuristas incluíam “mandamentos” tais como: “Não há mais beleza, a não ser na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças desconhecidas, para obrigá-las a prostrar-se diante do homem”. Ou

“Queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo –, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher”. Ou ainda “Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de toda a natureza, e combater o moralismo, o feminismo e toda a vileza oportunista e utilitária”. Não tardaria, portanto, para que estes ideais chegassem ao cinema, e que isto denunciaria uma tendência natural ultranacionalista. Muito parecido com o movimento inconsciente apontado por Kracauer em seu ensaio sobre o cinema alemão do pós-Primeira Guerra, De Caligari a Hitler. Este movimento involuntário e inevitável se cristaliza no monumental Cabíria (1914), de Giovanni Pastroni, cuja história tem como autor Gabriele D’Annunzio, reputado escritor que defendia uma austeridade social e moral, junto de seu amigo bem próximo, Benito Mussolini, que já não era mais um socialista militante contra a Guerra e, àquela altura surgia como um porta-voz fascista de peso.

Bartolomeo Pagano (esq.)

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À parte o fato de que Cabíria é a primeira super produção de que se tem notícia, que introduziu recursos sofisticados como o dolly e o travelling, que influenciou o cinema americano quando Griffith inspirou-se no colega italiano para realizar seu Intolerância, sua trama revela um paralelo sutil entre o épico e aquele presente vivido na Itália. Na trama de D’Annunzio, Cabíria é uma princesa romana sequestrada por bárbaros para ser vendida como escreva e dada em sacrifício ao deus Moloch. O herói Fulvio Axilla e seu fiel ajudante, Maciste, empenham uma cruzada para salvar a princesa. Tudo acontece no período da Segunda Guerra Púnica (218-202 A.C), quando Roma triunfou e varreu o último foco de resistência para que se consolidasse como Império. Os modelos heroicos de D’Annunzio refletem a grandeza de uma sociedade voltada à sua grandiosidade presumida. Já dissemos que em 1912 a Itália derrotou o exército turco nas colônias da África, e isto fez crescer o ego de seus cidadãos, sobretudo aqueles pertencentes a uma burguesia de grande influência.

Indiretamente, o filme prega a virilidade, o ímpeto heroico, a superioridade de uma raça descendente do grande Império Romano. O filme de Pastrone ressoou na cultura cotidiana do Italiano na medida em que ícones dentro do filme passam a representar certos arquétipos do coletivo. A atriz Itália Manzina inaugurou a imagem da sensualidade intrínseca das atrizes italianas. O imponente e forte Bartolomeo Pagano, que vive Maciste, personifica o líder perfeito que irá guiar o povo rumo à felicidade. Sua postura corpulenta é o vetor da imagem do Duce perante sua nação. De alguma forma, Cabíria sedimentou o caminho da projeção mundial do cinema italiano. A partir da ascensão do Fascismo, Mussolini usaria de forma recorrente a imagem do herói e as mazelas do povo para edificar seu regime e alienar o senso comum. Somente ao final da Segunda Guerra Mundial, quando a Itália se viu completamente destruída pela mesma mão que prometeu salvação, o mundo voltaria a ver um cinema italiano sério e esteticamente ousado. Eram os filmes neorrealistas.

) e Benito Mussolini (dir.)

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O NEORREALISMO ITALIANO

Durante o período da Segunda Guerra Mundial, é sabido que a Alemanha Nazista dominava o território italiano. Nesse período, em meio a um governo autoritário, a Itália produzia cinema, contudo, pautava-se com maior força em um cinema documental de onde um grande diretor iria emergir: Roberto Rossellini. Pôs-se fim à guerra, o país estava completamente abatido econômica, social e moralmente. A produção visual não queria mais as mentiras hollywoodianas. O momento histórico era desastroso, a verdade precisava subir ao palco onde vivia a mentira. Dessa forma, a Itália passa a produzir um cinema ficcional, mas que guardava semelhanças estéticas com o cinema documental que produzira, contudo, agora, havia um conteúdo crítico que seria a marca do movimento. Um cinema marxista. Rossellini foi responsável por aquele que seria considerado o primeiro filme do movimento: o imperdível, “Roma, Cidade Aberta”. Basicamente, o filme conta a história da ocupação nazista no território italiano, contado pela visão dos conterrâneos (antes apenas a visão nazista era permitida). A realidade plena jamais fora transmitida com tamanha verossimilhança como nos filmes italianos desse período. Talvez, a principal característica técnica, que faz ser isso possível, é a ausência de cenários montados, grandes sets de filmagens criados para a ficção. O mundo real é filmado e, mesmo antes ou depois da presença da câmera, este foi assim. Dessa forma a imagem tinha a capacidade de transmitir a ideia de realidade por meio das coisas. Sabe-se que a casa, a cidade, os objetos são uma extensão antropológica do humano, sendo esses transmitidos por meio da imagem como realmente são. Temos o neorrealismo, fortíssimo em seus signos. Sabida tal técnica, é possível analisar o que talvez seja o filme mais importante do movimento e um dos mais emblemáticos de todos os tempos: “Ladrões de Bicicletas”, de Vittorio de Sica. Conta a história de uma família no pós-guerra e um pai, que após um longo período, consegue finalmente um emprego. Para isto, era necessário uma bicicleta. A família vende todos os seus pertences para comprar o objeto e, no primeiro ponto de virada, esta é roubada. O objeto, mesmo ausente durante grande parte do filme, ganha vida. É importante saber que os atores, em sua grande maioria, eram amadores, isso para trazer maior noção de realidade. A estética do movimento é uma das mais influentes da história do cinema, inclusive para o brasileiro. Filmes como “Rio 40 Graus” e “Cidade de Deus”, que contam a história da favela carioca, utilizaram das técnicas neorrealistas para transmitir maior veracidade, trazendo moradores para contracenar nos filmes. Para todos os cinéfilos, amantes da sétima arte, o neorrealismo italiano é imperdível, mas saiba, não espere encontrar finais felizes, essa não era a realidade encontrada no país, à época.

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ROMA, CIDADE ABERTA E O NEORREALISMO COMO RESISTÊNCIA Indiscutivelmente um retrato histórico. “Roma, Cidade Aberta”, o primeiro longa-metragem neorrealista italiano, o primeiro longa-metragem da trilogia da guerra de Roberto Rossellini. Junto ao término da Segunda Guerra Mundial, em 1945, a película foi lançada (as filmagens começaram dois meses após o término da batalha) com um grau de importância infinita em um documento encenado com grande nível de sensação de realismo. O realismo não é nem mesmo um termo que gosto de usar, é perigoso. Nem mesmo os documentários observativos são realistas, nenhuma obra arte é, ainda mais uma ficção. O neorrealismo está na fronteira de ambos, busca atores amadores, viventes do grande conflito mundial. Para aumentar a sensação do real, termo mais bem colocado, as locações são reais, não foram construídas artificialmente, portanto, estão o estilo está mais próximo, sim, do real, pois não parece, apenas não parece, ser encenado.

A paisagem é um fator fundamental no ci-

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nema neorrealista. Não é apenas por ser um aspecto da fotografia que choca, muitas vezes pelos destroços cristalizados no fundo da imagem, muito comum em “Ladrões de Bicicleta”, de Vittorio De Sica, mas pela forma como alguns recursos são instalados. A exemplo, em “Roma, Cidade Aberta”, a parte em que um prédio de habitantes locais é cercado pelos nazistas e a sensação dada é a de perigo extremo, de claustrofobia, medo, um recurso mais do que apavorante no cinema até os dias de hoje. Aliás, a película que está sendo analisada aqui é composta por uma gradação crescente de tensão. Já nos primeiros segundos, sem o espectador se acomodar em sua poltrona, Rossellini descarrega uma fuga de um italiano e a visita de soldados nazistas em busca do mesmo. A tensão já está implantada antes que possamos entender quem são os personagens e o que eles fizeram, se é que fizeram algo contra os dogmas nazi-fascistas.

Percebe-se, pouco a pouco, uma evolução


no suspense. Como uma vanguarda, ou seja, avant-garde, do francês, da parte frontal de um exército marchando em busca de seu objetivo de conflito, o filme parece seguir o mesmo ritmo. Cada vez mais, a sensação dada é a de que estamos nos aproximando de uma grande batalha, de que as coisas explodirão a qualquer momento. Após a cena descrita cima, a tensão resume-se, por um bom tempo, nos diálogos. Não deixa de ser menos tenso, mas não choca tanto, um fator utilizado por Rossellini para haver a calmaria da narrativa e poder, alternadamente, impactar com imagens fortes em pontos precisos. Depois de algum tempo de calmaria no ritmo, não em relação aos momentos dos personagens, pois há tensão o tempo inteiro pela sensação de medo lida e ouvida pelos diálogos, Francesco, uma das figuras principais, é capturado, e logo depois a personagem da gigante Anna Magnani, uma das poucas atrizes do elenco com experiência antecessora, é cruamente assassinada pelo exército nazista. É uma cena seca, surpreendente pelo o que acaba se desenrolando, chocante pela reação do menino Marcello, um inocente garoto, um inocente garoto que não sabe muito bem o que está acontecendo, ao mesmo tempo que participa da batalha e sabe quem é os inimigos. Diz mais ou menos assim ao padre em determinada situação: “Não há tempo para rezar, temos que nos unir contra os inimigos.”. A religião, aliás, é contestada durante aquele grande conflito. Será que deus existe? Por qual razão deus deixa com que tudo isso aconteça? Mais ou menos assim pensa a personagem Pina, de Anna Magnani, antes de sua morte, quando está perdendo sua fé. Até mesmo o padre tende a desejar o pior aos nazistas mais ao final, embora esteja arrependido logo depois de desejar o pior. De qualquer forma, a fé chega a ser balançada. A batalha retratada, tão forte na Itália, foi de deixar, pelo o que sabemos pelos filmes, livros literários e livros informativos, que a fé de qualquer um era cabível a ser balançada por causa dos extremos vividos pelos italianos.

para intensificar, sempre nas cenas mais chocantes ou nas cenas de maior insegurança. A exemplo, a parte em que um soldado nazista saca uma pistola quando está próximo ao padre, em uma mesa. Mais forte que a situação descrita acima é, sem dúvidas, o clímax. Um ápice igualmente tenso, marcado também pelo testemunho infantil, como na cena do assassinato de Pina, em uma quebra de expectativa imensa. O padre Pietro é condenado ao fuzilamento após descobertas feitas pelos militares nazistas. Ele reza e é rezado por um outro padre antes da execução. Os soldados hesitam em atirar, parece que o padre sobreviverá, mas um militar nazista de patente mais alta, de forma crua, assassina o padre e o filme é encerrado com os meninos, as testemunhas, indo embora do local. A imagem abre para uma vista geral de Roma em uma espécie de luto, sendo um recomeço, já que as crianças estão em soma com a cidade, ou seja, são o futuro daquela nação. O grau de realismo só contribuiu para que tudo ficasse mais impactante. A verdade é que aquele pontapé inicial de Rossellini no cinema neorrealista italiano expandiu-se para um dos estilos de época mais positivos da história do cinema. Não só nos filmes, mas a literatura de Alberto Moravia, principalmente a de Italo Calvino e a de Cesare Pavese, entre outros autores, foi uma forma de resistir à guerra e colocar a rezistenza partegiana no protagonismo. É preciso lembrar, é necessário lembrar, que até os dias de hoje a Itália revive, resiste ao conflito através das artes, a cultura italiana é muito marcada por tal batalha, com um sentimento muito abertamente falado, um evento traumático ao país da bota.

Leonardo Carvalho Crítico de Cinema pelo Cineplot e formado em Letras Italiano.

Em meio a isso, uma trilha musical é pontualmente reunida para compor uma dramaticidade ainda maior. Se a cena com a sensação de maior realidade já não bastasse, a música chega, ainda,

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LADRÕES DE BICICLETA: O PRECIPÍCIO PSICOLÓGICO DO SER Considerando todo o contexto sócio-político da Itália na década de 40, é difícil não ver Ladrões de Bicicleta como um dos mais relevantes filmes da história do cinema. Dirigida pelo lendário Vittorio De Sica, a obra não só é uma das principais faces do Neorrealismo Italiano como também a magnum opus do cineasta, que aqui, como em boa parte de sua filmografia, retrata a situação de miséria extrema que foi a realidade de boa parte do povo italiano na Itália pós-segunda guerra mundial. A trama - a mais simples possível - acompanha Antonio Ricci, um pai de família romano que consegue um emprego como colador de cartazes. Um dia, porém, sua bicicleta é roubada - e o item era obrigatório para manutenção do trabalho -, e então, Antonio parte em uma jornada pelas ruas da cidade em busca do item perdido a fim de manter seu emprego. A fotografia de Carlo Montuori é brilhante ao construir o clima de depressão da Itália da década de quarenta. Com muitos planos gerais que enquadram poucos prédios (geralmente abandonados) nas laterais do quadro, o foco é sempre mostrar paisagens vazias e solitárias, retratando o sentimento do povo daquela época. Também auxiliando a estabelecer tal

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relação, a escolha de De Sica de só trabalhar com atores amadores é eficiente. Com atuações simples mas extremamente emotivas, é natural que os atores tenham facilidade de demonstrar emoção, já que vivem na tela eventos que presenciaram em seu dia-a-dia. Trabalhando a tensão pré-furto, De Sica utiliza muitos planos que deixam a bicicleta no canto do quadro, quase desaparecendo e sempre em áreas externas, o que cria a sensação de que a qualquer momento ela pode ser perdida ou tomada. Também é interessante a escolha de sutis travellings que aproximam a câmera de Antonio enquanto ele conversa com alguém, fazendo com que a bicicleta, aos poucos, desapareça do quadro. Outra constante escolha de De Sica são os planos médios que mostram o olhar desamparado e perdido de Antonio, o protagonista, alternados por planos gerais que mostram as ruas de Roma lotadas de carros e pedestres, sem um ponto de fuga específico, o que ajuda a inserir o espectador na psique desorientada do protagonista. A insistência de fazer takes externos retratando grandes construções abandonadas ou depredadas em contraste com as pequenas figuras de Antonio e


seu filho, Bruno, também são imprescindíveis para estabelecer a fragilidade do país naquele momento como também a dos personagens, sempre apequenados diante da situação. E se toda a melancolia da situação de Antonio não for suficiente para comover o público, a construção de seu filho será. Sempre retratado como uma criança dócil e infeliz por não ter condições de viver sua infância de forma digna, Bruno cresce num mundo hostil e desigual, características bem retratadas em cenas como quando o jovem quase é atropelado enquanto acompanha seu pai na rua e quando é levado para jantar, sentindo-se incomodado por ver as crianças da mesa ao lado fazendo fartas refeições, enquanto seu pai não tem condições de lhe prover mais do que um simples macarrão. Ao longo de seu filme, De Sica constrói aos poucos o caminho para o clímax, quando o protagonista finalmente se torna um ladrão de bicicleta. O descaso da polícia com o furto e todas as pessoas em situação de miséria que passam pelo caminho do personagem aos poucos criam o terreno para que o próprio Antonio ceda ao desespero, que, ao fim do filme, o leva a tentar furtar uma bicicleta. De Sica, então, transforma sua narrativa em um ciclo com uma análise social, de como o desespero e a falta de perspectiva levam as pessoas à cometerem atos reprováveis (como o furto). E vai além ao sempre destacar os olhares desesperançosos e ame-

drontados de Bruno, uma criança que cresce e vive numa sociedade devastada emocionalmente, que deixará a melancolia como herança para sua geração. Com a manutenção de planos que sempre trazem Antonio e Bruno caminhando para locais fora do quadro, Ladrões de Bicicleta é brilhante ao retratar o labirinto sem fim que se tornou a jornada da dupla em busca da bicicleta. Sempre levando a muros ou paisagens abertas que não trazem perspectiva nenhuma. É natural, então, que o resultado seja vermos o protagonista na mesmíssima situação que um dos responsáveis pelo roubo esteve: observando uma bicicleta encostada, olhando para os lados pensativo, avaliando se deveria ou não furtá-la. O clássico plano com Antonio e Bruno sentados no meio-fio, procurando uma saída para o desespero que tomou conta de suas mentes, é um retrato perfeito de tudo que a obra tem a dizer. Histórico, criativo e emocionante, Ladrões de Bicicletas é um exemplar perfeito do cinema neorrealista de De Sica, que expõe a miséria humana de forma poética e questionadora. Matheus Fiore Crítico de Cinema pelo Cineplot e Plano Aberto

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ARROZ AMARGO: UM NEORREALISMO TARDIO Arroz Amargo, de Giuseppe de Santis – um dos idealizadores do movimento neorrealista na Itália – é um filme que se equilibra em uma linha entre o realismo social, provindo do Neorrealismo, e o cinema noir, policial. Os motivos para tal atravessam alguns problemas históricos que acabam interferindo o desenvolver narrativo de Arroz Amargo. Lançado no ano de 1949, o longa-metragem acaba ganhando características de um neorrealismo tardio. Após a queda do Partido Comunista Italiano e a entrada do PDC – Partido Democrata Cristão – houveram uma série de censuras nos filmes dentro do país que acabaram por provocar o esvaziamento do movimento. O partido então no poder passa a boicotar qualquer intuito de acusação social, acusando-os de apologia comunista. Nesse contexto surge Arroz Amargo. A corda bamba dita no início está relacionada justamente à sua característica de acusação mascarada de filme policial. O filme contará a história de plantadoras

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de arroz e as acusações às duras condições de trabalho impostas na lavoura e um motor promovido pela luta de classes. Obviamente, contudo, uma temática como essa cairia na malha fina da censura. Para que tal demérito não ocorresse, foi acrescentado um contexto policial na trama, envolvendo o roubo de um colar de diamantes que, na verdade, pouco importa para o desenrolar da história. Assim, o realismo e a acusação social ficam em um segundo plano, nas entrelinhas. Quando aparecem, contudo, são as mais potentes cenas do filme. Em especial na lavoura, onde duas grandes cenas carregam uma carga dramática muito forte impulsionada pela estonteante Silvana Mangano e a vigorosa Doris Dowling. Pondo em primeiro plano, portanto, o roubo ao colar introduzirá o personagem do versátil Vittorio Gassman, que irá, em sua presença, criar uma dialética entre as duas personagens principais. De um lado Francesca (Doriz Dowling), cumplice de


Silvana Mangano marca o início da era das divas no cinema italiano. Walter (Vittorio Gassman) que chega à lavoura por acaso após uma perseguição policial. De outro Silvana (Silvana Gassman), que descobre o colar e sonha em uma ascensão social, deixando de lado princípios morais. Este jogo de máscaras narrativos na história de Arroz Amargo teve como resultado um excelente público que pode contar com uma trama divertida e, ao mesmo tempo, dramática. Algumas características do Neorrealismo ainda estão presentes: A denúncia de explorações de trabalhadores no campo, locações naturais e o uso de não-atores no núcleo coadjuvante. Contudo, é também um filme que marca a ascensão das grandes divas do Cinema Italiano, visando atingir um maior público. A valorização do corpo é mais uma característica que não está presente no realismo social italiano e que, em Arroz Amargo, ganha enfoque, dando caminho para um novo cinema no país.

em primeiro plano que, na verdade, funciona como segundo. Uma alternativa encontrada em meio a um contexto histórico conturbado que gerou um bom resultado em alguns momentos, mas em outros uma impressão de banalidade dos momentos noir – já que o segundo plano tem mais força que o primeiro. Ao trabalhar na corda bamba, Arroz Amargo é um bom resultado de um filme que acaba se tornando datado em meio aos conflitos de seu tempo.

Philippe Leão Crítico de Cinema e editor-chefe do Cineplot

A narrativa conta com uma montagem que, assim como as temáticas que propõe, varia características realistas e noir. A proposta cria certo estranhamento inicial, mas que, logo após, faz as cenas mais realistas ganharem força em relação as demais, tendo maior voz em meio às outras imagens.

Por fim, Arroz Amargo criará uma temática

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CONFIR E I U Q A E U CLIQ

A

DA S E M L I F E D LISTA NA A I L A T I A I D COMÉ

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AS MUSAS E A COMÉDIA ITALIANA

Os anos 1940’ foram de fundamental importância na produção cinematográfica italiana. O surgimento do neorrealismo marca um Cinema crítico perante às mazelas deixadas pelos governo autoritário e ocupação nazista que sucumbiram o país a uma depressão profunda. Grandes obras como Roma Cidade Aberta; Ladrões de Bicicletas; Alemanha Ano Zero; Paisà; Vítimas da Tormenta; foram realizadas, catapultando a Itália a um dos centros de produção cinematográfica do mundo.

Silvana Mangano Silvana Mangano foi um marco da transição do Neorrealismo para o “filme de personagem”. Seu papel em Arroz Amargo explorava sua beleza e levava a crítica social às entrelinhas em uma trama que misturava investigação policial e relações sociais de trabalho. Trabalhou com diretores como Federico Fellini, Vittorio De Sica, Pier Paolo Pasolini e Mario Monicelli. Na comédia esteve em A Grande Guerra, de Mario Monicelli e outros.

A chegada do Partido Democrata Cristão, porém, provocou uma censura que pôs fim ao movimento neorrealista. A perseguição a tudo que pudesse fazer referência ao comunismo era uma prática. Contudo, muitos artistas começaram a mascarar as críticas sociais em seus filmes. É o caso de Arroz Amargo, de Giuseppe de Santis. Entre outras máscaras, o surgimento das musas italianas foi marcante no cinema à época (no caso de Arroz Amargo, Silvana Mangano). A beleza feminina é explorada, enquanto a crítica social fica nas entrelinhas, passando pelos censores.

Sophia Loren A carreira da atriz começa nos concursos de beleza, mas é justamente na comédia que arranca seus primeiros sucessos. Em O Ouro de Napóles, de Vittorio de Sica, Loren contracena com o lendário Totó e emplaca o começo de uma grande carreira. A Embaixatriz do Amor; Carrocel Napolitano; A Mulher do Rio; O Signo de Vênus e, claro, suas personagens em Ontem, Hoje e Amanhã representam sua vasta participação na comédia italiana. A atriz será, assim como Magnani, mais uma a vencer o Oscar por Duas Mulheres (Vittorio de Sica).

Com o passar dos anos, a censura constante fez surgir um novo cinema na Itália. As comédias ganham força com as mulheres tendo papeis de destaque, as divas tem, então, seu grande ápice.

Claudia Cardinale Claudia Cardinale foi uma das mais emblemáticas atrizes do cinema italiano na época de ouro de seu país. Muito além de sua beleza, Cardinale mostrou-se uma grande atriz tendo trabalhado com grandes diretores reconhecidos mundialmente como Federico Fellini, Valerio Zurlini, Mario Monicelli, Luchino Visconti e Sergio Leone. Sua estreia no Cinema foi justamente em uma das melhores comédias de seu país: Os Eternos Desconhecidos.

Anna Magnani Anna Magnani não era considerada bonita, mas mais importante que isso, a atriz era considerada uma das melhores de seu tempo. Sua capacidade dramática e expressividade lhe renderam grandes papéis ainda no cinema Neorrealista, como em Roma, Cidade Aberta. Mais tarde seu rosto ganha destaque em filmes como Mamma Roma (Pier Paolo Pasolini) e Belíssima (Luchino Visconti). Magnani foi conhecida por representar mulheres fortes, tendo sido a primeira atriz estrangeira a ganhar um Oscar (A Rosa Tatuada). Na comédia a atriz também faz carreira com filmes como; Nós, as mulheres; Ladrão Apaixonado e Esses Italianos.

Giulietta Masina Assim como Magnani, Giulietta Masina não era considerada uma musa, mas seu talento transbordava qualquer esteriótipo. Casada com Fellini, a atriz teve papéis em que podia mostrar toda sua capacidade dramática mas que, ao mesmo tempo, encantava com suas inspirações circenses e chaplinianas de movimentação corporal. Essa mistura rendeu filmes como Noites de Cabíria.

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O INCRÍVEL EXÉRCITO DE BRANCALEONE: ESCULPINDO A IDADE MÉDIA Grande clássico do cinema italiano, O Incrível Exército de Brancaleone é também um dos maiores filmes de Mario Monicelli, mestre da comédia em seu país e história. O ano é 1.000 d.c, um bravo cavaleiro parte da França para tomar posse de suas terras. No caminho, este é assaltado e assassinado por foras-da-lei que roubam a escritura e decidem ir atrás do feudo em questão. Para isso, eles precisariam de um cavaleiro para ajuda-los nessa jornada, encontrando no atrapalhado Brancaleone de Nórcia a pessoa perfeita. O filme resgata a essência do espírito da Baixa Idade Média, um prato completo para professores de história. É raro um longa-metragem que retrata o período de maneira tão verdadeira: sujo e decadente, utilizando um humor negro bastante peculiar para, de forma prazerosa, contar, narrar os acontecimentos da jornada do herói. Trata-se de uma paródia de Dom Quixote de Cervantes que, porém, não nega

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seu viés autoral. São diversas as passagens que remontarão à época. Há, como toda narrativa deve ser, um transporte de tempo do passado ao presente, de maneira bastante fidedigna, porém, satirizada, ficcional. São demonstradas através de uma fotografia suja – o que não é um aspecto negativo, afinal, contribui com o que planeja ser contado – a decadência das relações sociais no mundo feudal, o poder da igreja católica nos mais diversos aspectos, a cisma pela conquista do oriente, o grande medo da peste que se alastra e a ameaça turco-otomana. A história da loucura de Foucault é debatida, também, empoderado por um humor único. Segundo o filósofo, na Idade Média a loucura era tratada de maneira positiva, sendo os loucos visionários. Essa afirmação é evidenciada pela passagem do missionário que deseja chegar à terra santa, em nome de Deus.


Vittorio Gassman, astro do cinema italiano que da vida à Brancaleone Profetizando palavras e discorrendo sobre missões que nem o mais louco dos loucos do nosso tempo seguiria, mas que àquela época era divino. Os heróis juntam-se ao missionário em determinado momento e, a partir daí, percebemos diversos obstáculos no caminho dos fieis ao oriente. Pontes não muito confiáveis que os seguidores, convencidos pelo missionário, devem atravessar. “A ponte está sendo segura pelas mãos de Deus”, diz o profeta, entre outras situações que os seguidores aceitam cegos pela fé. A jornada dos heróis parece interminável. A narrativa dá voltas, desvios através de linguagens que esculpem o tempo de maneira que nos conta séculos em apenas duas horas. A Idade Média é contada através da aventura dos satíricos heróis nada gregos. Brancaleone e seu exército querem as terras prometidas pela escritura, mas, por diversas vezes, o alvo de desejo se modifica: fortunas que seriam prometidas pela venda de um prisioneiro e a promessa de levar uma donzela a seu prometido, o encontro com o missionário, a chegada em uma cidade fantasma devas-

tada pela peste e etc. Assim, a narrativa torna-se a busca pela busca, que nunca será encontrada. O Incrível Exército de Brancaleone é o trabalho que melhor conseguiu ridicularizar o conceito de honra dos livros e filmes medievais, onde vemos heróis sempre muito grandiosos, que nunca nos fizeram questionar se realmente fora assim, ou se não havia algo diferente. Seriam todos os nobres cavaleiros medievais poderosos e destemidos? Após Brancaleone, como diz a própria capa do filme, nunca mais verás O Senhor dos Anéis com os mesmos olhos. “Branca, Branca, Branca ! León León León!”

Philippe Leão Crítico de Cinema e editor-chefe do Cineplot

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EO DE D Í V M E E S I L VEJA ANÁ

O D R A P O E O L ino Visconti de Luch

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O LEOPARDO:

A POLÍTICA COMO UM CÍRCULO O Leopardo é reconhecido como um dos maiores filmes já feitos. Dirigido pelo mestre do Cinema italiano, Luchino Visconti (Obsessão), trata-se de um épico histórico situado na Sicília as vésperas da unificação da Itália. Como pano de fundo a revolução garibaldiana. Assim como em Doutor Jivago, porém, a revolução é “apenas” um gatilho para os conflitos morais de uma aristocracia decadente. Visconti trabalha a revolução de forma a tornar o filme muito mais do que sobre acontecimentos históricos, mas o desdobrar destes nas individualidades e nas classes sociais, em especial a dominante aristocracia. Para isso, o personagem principal, Príncipe de Salina (Burt Lancaster), não é mais que um voyeur do que estaria se tornando a Itália. Não se trata de um grande herói que tenta, a qualquer custo, a revolução, ou impedi-la, mas um agente mais observador do que ativo da atuação revolucionária que, de uma forma ou de outra, mudaria em definitivo as estruturas aristocráticas.

A percepção da decadência e a tentativa de manutenção do poder diante da inevitável mudança é o cerne em um primeiro momento. Tancredi (Alain Delon), sobrinho de Don Fabrizio, o príncipe de Salina, torna-se um revolucionário assim que a Revolução Garibaldiana desembarca na Sicília, – interessante perceber que o herói da história, o personagem principal, não é o agente ativo, mas o sobrinho – não como um entusiasta, um sonhador, suas intenções são claras: “se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”, frase que profere a seu tio. É evidente desde a abertura construída por Visconti – vemos membros da família reunidos em um cômodo rezando aterrorizados com a revolução que do lado de fora germinava – que a aristocracia temia a perda de poderes. Para que isso não acontecesse tudo precisava mudar, e permanecer como antes. A construção da cena em questão estabelece uma riquíssima capacidade imagética de conduzir os sentimentos. O uso

O casamento arranjado entre Angélica (Claudia Cardinale), filha do burguês Don Calogero (Paolo Stoppa), e Tancredi (Alain Delon) representa a união entre a velha aristocracia e a classe em acensão, a burguesia.

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do plano onde apenas os aristocratas amedrontados são mostrados exclui qualquer elemento externo da imagem, mas os introduz através do som. Do lado “de fora da imagem” escuta-se os tiros, a presença se faz ausente aos olhos, mas perceptível aos amedrontados agentes dominantes incrédulos perante ao seu iminente desaparecimento enquanto classe. Mesmo diante a essa histeria, Don Fabrizio reconhece a importância da revolução para a manutenção de seus interesses. A circularidade nas relações de poder é apresentada de forma magistral, ao mesmo passo em que Don Fabrizio repudia o novo mundo que está por nascer, sustenta seu sobrinho na revolução e reconhece ser este o único mundo possível, ao tempo que vê a decadência da aristocracia. Mais uma vez o Principe de Salina não é mais que um articulador, um observador do que pode vir a ser. Lutar contra a unificação política seria inevitável. Então em um ato extremamente simbólico de defesa, a aristocracia em decadência se une a classe em ascensão, os burgueses. O casamento arranjado entre Tancredi e Angélica (Claudia Cardinale) criaria um novo signo ao constante olhar voyeur de Don Fabrizio. Visconti irá abusar do Efeito Kuleshov para sugerir o olhar observador de seu herói-passivo. A articulação da câmera entre um plano no rosto do Príncipe e, em seguida, o que ele observa é uma constante para ampliar o sentimento de ambíguo entre a necessidade do novo mundo e o repúdio ao mesmo.

O conflito descrito provoca uma dialética em constante movimento. Ao contrário das personagens femininas ao longo do filme, Angélica é uma mulher diferente não apenas por sua beleza também explorada, mas por seus hábitos em oposição a solidez da etiqueta aristocrata, sua força e vontade de potência. Desde o primeiro momento sua presença é percebida e suas diferenças exploradas. Em uma atuação brilhante, a personagem de Claudia Cardinale ri alto em um jantar aristocrático. Angélica é o novo e, em sua presença, o antigo passa despercebido na cena mais marcante da obra, o baile. Em meio a muitas mulheres sem individualidades, corrompidas por uma moral aniquiladora das vontades, revestidas por máscaras sociais agora ultrapassadas pelo que é novo, Don Fabrizio concede uma dança a jovem. O ímpeto de Angélica convence a velha aristocracia a dançar conforme a música, o novo pede passagem, e a ele foi dado.

Philippe Leão Crítico de Cinema e editor-chefe do Cineplot

Em uma das cenas mais belas da história do Cinema o novo pede passagem ao antigo e este dança conforme a música da história!

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OITO E MEIO “O cinema deve ser, entre todas as formas e expressões artísticas, aquela que se parece mais com a vida.” - Federico Fellini Falar de um filme como 8½, geralmente concebe-se críticas, sejam elas positivas ou negativas. Ele é sempre lembrado dentro da cultura cinéfila, seja por meio de debates, textos ou mesmo listas, algo muito comum dentro do estudo do cinema. Por esses detalhes e, principalmente, pela complexidade e profundidade do filme, torna-se um enorme desafio; Buscar coisas não ditas, não escritas, é realmente possível? É justamente nisso que concerne o x da questão. A profundidade dos personagens torna essa possibilidade alcançável. Afinal, são dessas magnitudes que são compostos os grandes filmes. Por falar em personagens, eles são muitos, todo qual com sua idiossincrasia. Os dilemas pessoais muitas vezes nem são configuráveis - pelo menos de imediato - mas são cruzados e esclarecidos. Mastroianni é Guido, que para muitas interpretações, são como projeções de Fellini. O mesmo já negou essa teoria. O que pode soar contraditório, vindo “do grande mentiroso”. Mas a questão aqui é Guido, que passa pela terrível sensação do “não saber”, ou, no caso mais extremo dele, de não fazer a mínima ideia. A crise criativa é como um fantasma que assombra qualquer ser, mas principalmente aqueles que vivem sob a tutela de tais “criações”.

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Toda essa incerteza é maximizada no ritmo da montagem, na mise-en-scéne e, também nos diálogos que são intensos e fugazes. Guido, como diretor, é cercado o tempo todo, questionado, desafiado, encurralado, entre outros tantos momentos, mas a questão é: quanto mais buscava paz e silêncio, o inverso se estabelecia, indo de encontro com conflitos pessoas de um âmbito sentimental intenso, como sua relação com amante e esposa. o que intensifica ainda mais suas incontáveis dúvidas. O cansaço também é extremo, Guido tentará (ou já está dormindo?) dormir inúmeras vezes, em alguns momentos seus sonhos (ou alucinações?) são explicitados, em outros não. O que é ficção, onirismo e metalinguagem? O seu cansaço, sonhos e mazelas se misturam com suas lembranças, elas estimulam e o confundem ao mesmo tempo, fazendo com que sua crise não só se intensifique, como se alternam entre vislumbres de possíveis ideias. A religião - como em quase todos os filmes de Fellini - está bem presente em 8½, algo que pode ser novamente relacionado a Guido e Fellini, ambos católicos, foram educados e doutri-


nados dentro desses ideais. O que nos volta ao questionamento: Fellini e Guido são paralelos? Damien Pettigrew em entrevista - que posteriormente foi editada e publicado como livro - questiona Fellini sobre o seguinte: - O senhor possui inteiramente a estrutura ou a forma de um filme antes de começar a escrever? - Sem dúvida. Um filme, mesmo se sua realização é muito complexa e demanda muito tempo pode, com efeito, existir dentro de uma sensação, uma suspeita, uma antecipação: pode ser como um flash de luz, um som… É o discurso habitual que fazemos a propósito de uma obra de arte que pode fazê-la antecipar-se anunciar-se a seu autor, mesmo por um perfume. Dizem-se tantas coisas… Mas creio que é verdadeiro, mesmo se a ideia é um pouco romântica. A vida inteira pode ser sugerida pelo tremor de uma folha, que contém o universo inteiro. mas não é somente assim. É certo que um filme pode nascer da nuance de um cor, de uma lembrança, de uma voz, de duas notas de música. Entretanto eu tenho necessidade de criar tudo isso, de construir verdadeiramente os personagens, os objetos os ornamentos, a cenografia, e mesmo as paisagens. [...] Essa resposta consegue mesclar sinteticamente os anseios de Guido, e ao mesmo tempo contradizer novamente a relação dele com Fellini. Se Guido, não esteve em nenhum momento com o filme estabelecido em sua cabeça, ao mesmo tempo isso traz um pouco da relação pessoal de Fellini com o cinema - quando Guido tenta construir sua narrativa por meio de lembranças, por exemplo.

“A fuga” é não só a desistência de Guido, como o momento de catarse, sua desistência de tudo. Ele se colocará abaixo de uma mesa, onde comete suicídio. Do ponto de vista Freudiano, a metáfora pode soar como a desistência do Guido real, não do sonho. Se ele se suicida no sonho, é por simplesmente saber que não será possível concluir ou chegar ao menos próximo de seu objetivo. Se pensarmos na teoria dos sonhos Freudiana, mesmo que sinteticamente, conseguimos vislumbrar uma relação direta entre Guido e seus desejos e anseios. “O sonho é a realização dos desejos reprimidos quando o homem está consciente” (Freud, 1900). A catarse é rompida, o sonho revelado, mas a realidade também lhe é dura, o filme não acontecerá, foi tudo em vão, todo o cenário, com sua construção monumental será desmontada, assim como o próprio sonho de filmar. A mistura metalinguística - ocorre literalmente - o elenco se junta e dançam embalados com a mesma trilha que se repete diversas vezes ao longo do filme, sempre perpassando os sentimentos de Guido, mas aqui, tudo isso tem um sentido diferente, a forma é outra, o círculo se abre e todos cantarolam e encerram o filme, o filme sobre Guido, o filme de Fellini, aquele que consegue - como poucos - transmitir seu amor ao cinema.

Matheus Petris Crítico de Cinema pelo Cineplot

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SERGIO LEONE: O GÊNIO QUE PAROU NO TEMPO Sobre o autor: Fabio Rockenbach é jornalista, com especialização em Cinema e Linguagem Audiovisual e mestrado em Produção e Recepção Literária, ex-editor cultural do Grupo Diário da Manhã (RS) e da revista online Cinefilia. Desde 2011, é professor da Faculdade de Artes e Comunicação na UPF-RS, conduz o projeto Ponto de Cinema e o Núcleo de Estudos em Cinema, na mesma universidade, e faz parte da redação permanente da Revista Moviement. Pesquisa cinema nas áreas da teoria, narrativa, interpretação e análise fílmica. Sergio Leone pode ser considerado um outsider. Uma curva fora da estrada que, por seus méritos, transformou esse desvio em um novo caminho para um destino que, até hoje, somente ele conseguiu alcançar. Isso porque Leone, tanto cinéfilo como cineasta – atributo dos diretores que realmente marcaram a história do cinema, a de serem antes apaixonados pela sua arte e depois criadores – parece estar perdido entre dois mundos. É um italiano que de tal forma prestou homenagem ao cinema americano que soterrou fundo suas raízes italianas. Tão fundo que elas desaparecem em qualquer de seus filmes, quando se observa o que há do lado de lá da tela. Não há rastros de nada que ligue suas histórias ambientadas no oeste americano ou no Lower East Side à sua terra natal. Ele próprio foi na contramão do que se produzia na

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Itália nos anos 60, e trocou as comédias de costumes, tão em voga, pelo western, já decadente do outro lado da América. Para quem apenas assiste aos seus filmes, Leone é tão italiano quando Scorsese é russo. Seria Leone o menos italiano dos cineastas? Ou seria ele o mais italiano dos diretores americanos? Sua trilogia dos dólares foi gravada no deserto de Tabernas, na Almeria, sul da Espanha, e rezam lendas de bastidores que, durante a gravação de Por uns dólares a mais, já respaldado internacionalmente pelo sucesso de Por Um Punhado de Dólares, Leone pôde se dar ao luxo de encomendar toneladas de areia vermelha do Arizona para dar credibilidade ao oeste que ele recriava nos estúdios da Cinecittá, em Roma. Por mais que possa parecer exagero, seria de


se esperar do homem que, mais do que qualquer cineasta italiano, manifestou sua admiração pela história e pelos costumes norte-americanos, e a mestres como Ford e Kurosawa. Sua admiração a Kurosawa foi a extremos. O diretor jurava que o enredo de Por um punhado de dólares era baseado em “Arlequim, servidor de dois senhores”, de Carlo Goldoni, mas perdeu o processo movido por Kurosawa porque não era apenas a história que se assemelhava demais a Yojimbo, obra fenomenal do diretor japonês. Até mesmo nas escolhas estéticas e nos enquadramentos percebe-se que há muito do filme de Kurosawa no filme de Leone.

adoeceu, e dirigiu, no ano seguinte, O Colosso de Rodes. São dois exemplares de um sub-gênero chamado peplum, cuja produção se avolumou na Itália após o sucesso dos épicos grandiosos feitos nos anos 1950 nos Estados Unidos. A ironia é que, nesses filmes, o cenário é sempre italiano, a Roma Antiga dos imperadores e do tempo de Cristo. Aqui temos uma cópia barata feita na Itália de um sub-gênero norte-americano que se espelhava na história italiana. Mais adiante há o western de Leone acusado de plágio por um japonês que se inspirou nos westerns americanos. Uma salada de gêneros e referências que explica muito do estilo de Leone e de como ele influenciaria tantos outros.

Mas há algo mais. A questão da autoralidade e da referência é cara à car É desse tempo, reira deste italiano também, a participaque nasceu em 1929 ção de Leone como e cresceu, desde cedo, diretor de segunda em contato com o ciunidade de Sodoma nema, filho de um pai e Gomorra. Se o épique faz parte da históco religioso, uma coria do cinema italiano. -produção entre ItáVincenzo Leone, tamlia e EUA, não entrou bém conhecido como para a história, é posRoberto Roberti, foi sível que algo tenha ator, escritor e diretor surgido da convivênprolífico nos primeicia de Leone com o ros tempos do cinediretor do filme, o ma (dirigiu de 1912 O Monument Valley eternizado por Ford e a ponte sobre norte-americano Roa 1950 mais de 60 fil- o East River em Era uma vez na América: símbolos da ad- bert Aldrich. Aldrich mes, entre curtas e miração de Leone pela história e as tradições da América é um dos mais subeslongas). A mãe, Edvitimados e esquecidos ge Valcarenghi, atuou diretores do cinema entre os anos 1910 e 1920 em alguns poucos filmes. de ação norte-americano dos anos 40 a 70, assinando Aos 30 anos, Leone já trabalhava em filmes cumprinobras como Os Doze Condenados, A Dez Segundos do diferentes funções em obras de DeSicca – aparece do Inferno, A Morte num Beijo, O que aconteceu com até como ator em Ladrões de Bicicleta - e Mervyn LeBaby Jane? e O Imperador do Norte. Dirigiu também Roy, diretor de Quo Vadis? Leone vangloriava-se de westerns como O Último Bravo, O Último pôr-doter dirigido a sequência de bigas de Ben Hur (1959), -sol e, principalmente Vera Cruz. E Aldrich pode ser mas é sabido que ele ajudou na sequência, mas não a visto como um dos cineastas a fazerem a ponte entre dirigiu. os temas e o tratamento formal do western clássico com a fase final do gênero, no final dos anos 60. Em Assumiu a direção de Os Últimos Dias de filmes como Vera Cruz, já existem lampejos do traPompéia (1959) quando o diretor Mario Bonnard tamento que se perceberia abundando justamente

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num sub-gênero que nasceria das cinzas do cinema clássico americano. Aldrich é um dos pioneiros não citados do próprio spaghetti western e suas tramas episódicas, onde a ambição e a glória de personagens ambíguos se sobressaem, mesmo nas entrelinhas, aos motivos nobres e coletivos. Coincidência ou não, foi depois do trabalho com Aldrich que Leone entregou ao mundo Por um Punhado de Dólares, um sucesso tão inesperado que surpreendeu também Clint Eastwood: o ator conhecia o filme que terminara de gravar por outro nome e não percebeu o sucesso que ele fazia fora da Itália porque não sabia que aquele western que estava dando o que falar era justamente o seu filme. Ali, entre o plágio e a homenagem, entre as cinzas de um gênero e o despertar de um sub-gênero, no começo dos anos 60, era da desilusão do espectador com os temas clássicos e sua adesão a um mundo mais realista e menos inocente, nasce também o cinema de Leone. E nasce longe da própria tradição do cinema italiano. O que há de italiano nos westerns de Leone? O que há de italiano nos gângsters de Era uma vez na América? Nem então, ao abordar a máfia, um tema de tão profundas raízes na Itália, Leone fez a ponte entre América e sua terra natal. A máfia que ele retrata é a máfia judaica, composta em sua maior parte por irlandeses e seus descendentes. De outro lado, Leone diferencia-se entre os americanos por ter a audácia de não esquecer de deturpar, de certa forma, o gênero que mais amava. O curioso é que esses dois mundos – Itália e América - fazem questão de idolatrá-lo, ignorando qualquer possível motivo para criticar o diretor, porque ele alcançou tal eminência no cinema que seus filmes se tornaram, mais do que uma obra audiovisual, um manifesto completo. Se o cinema americano exaltou a chegada do progresso no western clássico, Leone parece referenciar a ele com tom melancólico – uma marca presente em outros cineastas da época como o próprio Aldrich e Peckinpah. Diferente de outros cineastas que marcaram seu nome no sub-gênero spaghetti, como Corbucci e Solima, Leone parece ter sido o único a perceber com certa tristeza que aquela era uma festa com hora de encerramento

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marcada. Talvez por isso, à medida que passa o tempo e a cada novo western, ele parece querer esticar o tempo até que ele pare, uma característica que alcança seu ápice justamente no ponto mais alto da carreira, Era uma vez no Oeste. Diferente de seus primeiros westerns, episódicos, repletos de jovialidade e de uma tensão surgida naturalmente pela falta de ambição original, seu filme – cuja tradução mais correta seria “Era uma vez o oeste...” - dá lugar à melancolia e à tristeza. Mas é uma tristeza linda demais. Segundo José Gerald Couto, em Era uma vez no oeste Leone “entrega um cinema que une as várias pontas de uma arte ao mesmo tempo popular e sofisticada, em que andam juntas a alegria do circo e a solenidade da ópera.” Operístico talvez seja a melhor definição para uma das maiores obras-primas da história do cinema, um elogio ao qual a trilha de Morricone – provavelmente a mais operística que ele jamais compôs – faz coro. Leone, aliás, faz parte do time de gênios que nunca foi laureado com algum prêmio reconhecido pelo público. Não ganhou Globos de Ouro. Sequer foi indicado ao Oscar – não que faça falta hoje, já que, como outros mestres, Leone é mais reconhecido à medida que o tempo passa.

“...Leone parece ter sido o único a perceber com certa tristeza que aquela era uma festa com hora de encerramento marcada. Talvez por isso, à medida que passa o tempo e a cada novo western, ele parece querer esticar o tempo até que ele pare...” Antes de sua tour de force referencial em 1969, Leone ofereceu uma visão externa, suja e realista do gênero, e parecia interessado em acompanhar seus personagens deslocados – sobreviventes, talvez a palavra correta – em tramas episódicas. Os objetivos das narrativas da trilogia dos dólares sempre passaram longe de qualquer raiz nobre. Eram, antes, a respeito de sobrevivência e, principalmente, de egoísmo. Bateu de frente com a dicotomia bási-


ca que norteou a maior parte dos filmes produzidos no gênero – e foram várias dicotomias necessárias no abecedário do western, a do bem contra o mal, a civilização e o progresso, a lei e a ordem. Nos filmes de Leone, a fronteira entre bem e mal sempre foi mal sinalizada, e seus protagonistas – e antagonistas – sempre dividiram o mesmo lado da rua. No ambiente árido do deserto, somente os egoístas e impassíveis sobrevivem – e há personagens, na história do gênero, mais impassíveis do que os representados por Eastwood e Bronson? Aqui percebem-se as primeiras diferenças do western clássico hollywoodiano: elementos básicos de uma narrativa, como personagem, objetivo, conflito e antagonista, constituem um grupo de elementos muito diferente daqueles que povoaram os filmes feitos na terra do Tio Sam. Se há outro elemento – e nem entramos, aqui, nos aspectos formais pelos quais ele é mais reconhecido, ou na simbiose entre ele e o monstro Ennio Morricone – que pode ampliar essa pequena lista de obviedades destruída por sua filmografia, está o papel da mulher em um ambiente tão seletivamente masculino como o western. A Jill de Claudia Cardinale subverte o que se espera de uma mulher não apenas no cenário diegético, mas também no comportamento esperado em um filme do gênero. Indo além do classicismo de poucos filmes que demonstraram personagens femininas fortes no gênero, como Almas em Fúria ou Johnny Guitar, a ex-prostituta interpretada por Cardinale é a

força que une todas as pontas e histórias soltas de Era uma vez no Oeste. É por ir contra o que se espera de uma mulher em tal ambiente que semeia e mantém os conflitos que iniciam a trama, e em torno dela transitam todos os demais personagens – em menor grau e impacto, também é em torno da Deborah de Jennifer Connely/Elizabeth McGovern que transitam os personagens de Era uma vez na América. Diferente de Ford e Hawks, que não sabiam como inserir a mulher e tratá-las em suas tramas, mostrando um visível desconforto, as mulheres nas tramas de Leone não são apenas um enfeite ou um alívio. A cena final de Era uma vez no Oeste, em que Harmonica e Jill se despedem sob o olhar triste de Cheyenne é de uma beleza ímpar e sutil, uma aula de encenação em uma mise-en-scène apurada. Pouco lembrada, é uma das cenas mais lindas da história do cinema. A frase final de Cheyenne, “Deixe que eles a vejam”, que poderia ser vista como uma ode ao machismo, ganha contornos de poesia pura. Nada mais coerente com uma personagem, um cenário e uma história tão ricas. É nesses pequenos momentos de genialidade – e não apenas nas cenas imageticamente famosas de sua filmografia – que reside o grande legado de Leone. Ele não foi grande apenas por filmar grande. Ele foi gigante porque, como o tempo faz às grandes óperas, criou um conjunto de obras que mesmo em seus mais sutis momentos, tem sido amaciado e acariciado pelo tempo. Leone parou o tempo, mas o tempo não parou de fazê-lo crescer.

O olhar triste de Chayenne - vivida por Claudia Cardinale - em Era uma Vez no Oeste

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BLOW-UP DEPOIS DAQUELE BEIJO O que é que quis dizer? Eis a pergunta que me é posta com mais freqüência. Sinto-me tentado a responder: quis fazer um filme, é tudo. - Michelangelo Antonioni A forma como Blow-Up inicia e se encerra, automaticamente me faz lembrar da palavra: incomunicabilidade. Palavra essa, sempre atrelada a Antonioni e também a sua trilogia. Aqui, o que é valido ressaltar, é curiosamente a contradição entre essa palavra e os mímicos que estão presentes no início e no final do filme. A mímica é justamente uma forma de comunicação humana, nem sempre compreendida, às vezes banalizada e ignorada, mas continuando a ser uma importante manifestação artística. A presença de Thomas (David Hemmings) em cena, sempre elucida um caráter misterioso, desde seu primeiro momento no filme. É possível enxergá-lo a uma longa distância, segurando algo em uma embalagem escura, o que em alguns países estaria relacio-

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nado diretamente ao consumo de álcool, que poderia ali estar escondida. Porém, em uma cena posterior, ela se revelará uma câmera fotográfica. Fotografia é sua paixão. É sua forma de comunicação, de expressão, método diferente dos mímicos, que pela primeira vez tem suas rotas convergidas com ele. Thomas chegará atrasado para o ensaio que tem agendado, trata a modelo como se fosse um nada, ele não está lá para ser simpático, carinhoso ou qualquer coisa do gênero, está ali exclusivamente para tirar fotos. Essas ações, aliadas ao próprio conjunto de atuação de Hemmings, poderiam demonstrar certo desinteresse pela sua profissão, mas a mise-en-scène construída por Antonioni mostra justamente o inverso: a total paixão por aquilo que faz. A entrega dos atores em cena, a sensualidade de seus corpos no ensaio e a intimidade que parecem ter, apenas corroboram para a conclusão de que não só Thomas está feliz em fazê-lo, como ela também - mesmo que seja tratada com indiferença. Thomas estará em movimento durante todo o filme, as direções estão sempre se alternando, ele caminha,


dirige, adentra em muitos locais diferentes, alguns dos locais que simplesmente não fazem o menor sentido para nós, mas para seu eu, fazem. Ele visita uma espécie de antiquário, é completamente mal atendido, persiste em buscar objetos antigos pelo estabelecimento, desiste e vai embora. Em uma cena posterior, ele retorna. Atendido por outra pessoa, busca por objetos, até encontrar e comprar uma hélice. Sem qualquer função aparente deseja levá-la o quanto antes, até ser convencido de ter o objeto entregue em casa. Ao ser entregue: o objeto é basicamente ignorado. Como se tivesse sido comprado por puro e simples impulso. O que é importante? esse questionamento pode ser sempre apontado como catalisador em BlowUp, outra cena icônica é um exemplo disso: Thomas entra em um show, com a maior naturalidade e sem demonstrar qualquer reação. Ele simplesmente entrou em um show dos “The Yardbirds”, uma das bandas mais importantes da história do Rock. Mas o “problema” não estará apenas em Thomas, todos os jovens que estão presentes no show, também parecem estarem sem vida, todos observam o show atentamente sem mexer um músculo sequer, coisa que nos tempos de hoje seria simplesmente impossível - estariam todos dentro de um processo de alienação? O único lapso de euforia está no momento em que Jeff Beck quebra sua guitarra e arremessa ao público, que como animais tentam ganhar para si os destro-

ços de uma guitarra, não uma simples guitarra, mas a guitarra de Jeff Beck. Thomas consegue levar um pedaço da guitarra, mas com qual propósito? Afinal, qual era o propósito dos envolvidos no show? Quão fútil e indiferente pode ser um objeto como esse? Isso é justamente exemplificado no momento em que Thomas saí da casa de shows e joga na rua o destroço. Uma pessoa que está na calçada se intriga e vai buscar o objeto, quando percebe que é simplesmente um pedaço de uma guitarra - por que não seria? - , e acaba jogando fora. O que realmente interessa a nós? Todas as questões filosóficas, contradições, paixões e ações dentro do filme, estabelecem justamente aquilo que Antonioni falou certa vez em uma entrevista: Seus filmes tratam de fatos internos e não externos. O filme se inicia com a câmera e se encerrará com ela. Thomas reencontra os mímicos, que fazem com que ele acredite naquilo que está “vendo” ou não vendo. Thomas se esvaí.

Matheus Petris Crítico de Cinema pelo Cineplot

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O POSTO: SISTEMATIZAÇÃO INDUSTRIAL

Como um grande nome e protetor do cinema italiano, Ermanno Olmi chegou a bater de frente com o cinema hollywoodiano quando este vivia grande momentos em sua história. Mantendo traços neorrealistas (classificado, inclusive, como um autor de segunda fase neorrealista), como em “O Posto”, obra que será analisada aqui, o cineasta organiza a narrativa de uma forma bastante equilibrada em sua proposta. São pedaços de vida que estão sendo narrados em “O Posto”. No protagonismo, Domenico é um garoto comum com uma vida comum, precisa arrumar um emprego para ajudar seus pais. Ele sai de um pequeno vilarejo em busca do trabalho, vai à cidade grande, Milão. No começo as coisas acontecem rapidamente, a obra já introduz o garoto na busca pelo emprego, ainda que saibamos que ele é lento, um garoto simples, muito calmo. Ele está assim o tempo todo, embora se adapte às situações do sistema industrial, conhece uma menina e a acha interessante, sai de sua posição mais passiva ao estar próximo dela. Em meio a uma cidade caótica, com cenários em construção, cenários reais, recurso neorrealista, o garoto passeia pela cidade e acompanhamos os seus passos. Por lá, britadeiras racham o solo, prédios são levantados, entre outros movimentos de progressão em uma cidade. A paisagem é um aspecto mui-

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to importante para a evolução do cinema italiano. Se o neorrealismo foi importante na busca de arquivar aqueles cenários urbanos reais em sua filmografia, “O Posto” faz o mesmo, ainda que não busque paisagens destruídas pela guerra, mas paisagens de construção, de levantamento de uma cidade grande, como é Milão. Pensamos, através disso, até onde essa progressão é boa. Tudo bem, a progressão emprega milhares, constrói centros culturais, a progressão é fundamental para isso, mas a lógica industrial é perigosa na forma sistemática de como distribui os trabalhos. Mais ao final da narrativa, um homem reclama que por mais de vinte anos está trabalhando de frente para uma luminária, aquilo o está cegando, e os indivíduos de cargos mais altos pouco se importam com isso, estão mais preocupados com a carga produtiva, mal sabem quem é aquele sujeito. O ritmo lento da película é capaz de fazer com que o público entenda muito bem as lógicas dos grandes centros empresariais, desenvolve com facilidade toda a sistematização. Desde o começo, entramos nas companhias junto ao garoto, entendemos o processo de seleção, a forma como contratam, que na verdade é um processo de exclusão, não de inclusão.


O mesmo ritmo lento da película é capaz de fazer com que o público perceba o grande equilíbrio da obra. Por um lado temos os movimentos mais rápidos nas avenidas, na própria companhia, na cidade grande, enquanto que do outro lado temos o garoto da cidade pequena, muito calmo, na maior parte das vezes passivo, tímido, mal se aciona para dançar na festa de ano novo, não indaga quando troca de posição com o citado homem que reclama da sua vista em processo de extinção. Ausência de música, ausência de diálogos na maior parte do tempo, uma câmera que se movimenta lentamente, um ritmo muito bem preenchido em sua falta de intensidade, de poucos cortes. Acompanhamos cada passo do garoto em busca daquele trabalho, o trabalho da elipse de tempo é propositalmente leve, já que os deslocamentos temporais estão longe de ser bruscos, a sensação dada é a de que estamos vendo cada segundo daquele pedaço de vida do garoto, cada passo naquele começo de carreira, como se não houvesse saltos temporais. Para que a obra não ganhasse uma forma tão dura de ser digerida, Olmi aciona as suas dinâmicas satíricas, o que causa, mais uma vez, um equilíbrio de acordo com o ritmo, arremessa picos em sua montagem. “O Posto” parece ser uma obra ingênua ao mostrar apenas a vida aquele jovem rapaz, mas este serve como uma inserção em um meio muito sistemático, e o longa-metragem abusa das piadas contra a lógica industrial. Já no processo de seleção, no começo da obra, uma mãe responde pelo seu filho na chamada dos jovens que estão na mesma seleção, uma piada ao evidenciar a falta de maturidade de um garoto prestes a mergulhar no mercado de trabalho, a falta de independência do mesmo, que precisa trabalhar já naquela idade, ainda que seja levada em conta a época. Em outro momento, com críticas diretas ao sistema, um homem diz que testes tranquilos seriam aplicados, mas pronuncia um enunciado embolado, confuso. Ainda sobre as questões mais satíricas, o processo médico é um tanto engraçado, inexplicável na forma como os dois indivíduos encarregados ao trabalho medem as habilidades sensoriais dos jovens. Com o passar da metragem, o que entendemos, também, é que os personagens são levemente caricatos, tal como a figura de um grande homem em um alto posto na empresa, taxado como a fi-

gura do chefão, bebendo seu café, mal olhando para os olhos do entrevistado, um chefão cheio de atitudes fortes com o intuito de induzir o rapaz. A lógica empresarial pode conceder festas em comemorações, mas ela não se importa muito com os anos de trabalho de uma pessoa que sai da empresa, seja por ter morrido, seja por ter abandonado o cargo. Mais ao final, uma mesa de contador é desocupada, dando espaço ao jovem Domenico. Enquanto alguns funcionários recolhem papéis pessoais e papéis da empresa, os indivíduos de cargos mais altos querem rapidamente desocupar o local para que um próximo empregado possa produzir imediatamente, pouco se importanto com o legado de um funcionário. Para Karl Marx, a “alienação” é um processo em que o cidadão fica alheio aos acontecimentos propriamente sociais, não reconhendo que está submetido a uma sistematização do trabalho, muito do que acontece em “A Hora da Estrela” com Macabéa, de Clarice Lispector, e com as figuras da obra que está sendo analisada neste texto. A alienação foi muito percebida no período da Revolução Industrial, no século XVIII, quando o trabalhador começou a se igualar a uma máquina, trabalhando repetidamente, sem o conhecimento sobre o que estava produzindo, e caso acontecesse algo com o mesmo, de não poder mais exercer aquela função, era facilmente substituível, como ocorre, exatamente, na parte descrita acima com o personagem em “O Posto”. A mão de obra é facilmente substituída, nada é marcante em um setor de trabalho em cargos baixos e medianos. A brincadeira da nuvem na festa de comemoração da empresa, próxima ao desfecho, nos faz entender que ela tampa a lâmpada rapidamente e sai; é como o movimento da indústria, rapidamente substituível, rapidamente produtivo quase não dá tempo de respirar, quase não dá tempo de se fixar.

Leonardo Carvalho Crítico de Cinema pelo Cineplot e formado em Letras Italiano.

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SALÒ E A BRUTALIDADE NEOFASCISTA A brutalidade pasoliniana muito conhecida por causa de “Saló, ou os 120 Dias de Sodoma” começa na fala de um soldado nazi-fascista: “as coisas são boas quando usadas em excesso.”. Aparentemente aquilo não parece ser brutal; com o passar do tempo, porém, entendemos a frase, mesmo que por vias diferentes de interpretação. Mais tarde o leitor entenderá as razões pelas quais a frase é tão marcante, pelo menos com uma via de interpretação específica. Pier Paolo Pasolini, não só um homem do cinema, mas em primeiro lugar da poesia, do pensamento social ocidental, um grande observador das transformações preocupantes da língua italiana junto aos dialetos. Suas palavras são fortes para compor suas obras, como é o caso de “Saló”. Isso não ocorre somente pelas parolacce, mas também pela maneira de compor frases agressivas, muito diretas em suas intenções, desconsertantes em alguns casos pela forma como os donos da mansão protagonista da película ordenam seus escravos sexuais a realizarem tais atos grotescos. Se nas palavras existe a dureza necessária para chocar o espectador, o mesmo da agressividade está nas

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imagens, sendo um fator ainda mais brutal, pois a imagem, naturalmente, choca mais do que a fala, e de acordo com a lei do cinema, uma imagem vale mais do que mil palavras. Em primeiro lugar, não há modos de poupar a nudez, ela é explícita. Não que o nu seja algo agressivo, mas a forma como a escravização sexual é feita faz com que a nudez seja, sim, um fator de brutalidade. As imagens, também vão, pouco a pouco, tornando-se mais fortes. Em uma gradação crescente, cada vez mais a trama evolui em seu nível de tensão, por isso é duro digerir “Saló, ou os 120 Dias de Sodoma” até o final. A dificuldade ocorre por toda a composição estranha, que está, em primeira mão, pelas imagens fortes e pelas situações sugestivamente fortes. Uma delas, por exemplo, é a rápida cena em que uma menina come um alimento, uma espécie de um bolo, com pregos em seu interior. A cena é curta, é verdade, mas extremamente impactante. Os poucos segundos que a menina demora para colocar a comida na boca nos faz criar agonias, expectativas de uma brutalidade sem tamanho. Os poucos segundos transformam-se em longos minutos. Quando ela mastiga, então, e o sangue passa


a escorrer pelos cantos da boca, há o grande choque. A mais forte cena, porém, em termos de imagem, é a sequência de tomadas com as fezes sendo o grande elemento da situação. Bizarro, grotesco, nojento, mas poético. É uma poesia extremamente incômoda pela ideia de que os limites são ultrapassados até que se extrapole ao máximo a condição humana. A sequência de tomadas é relativamente longa, e se levarmos em conta que os personagens, as vítimas principalmente, estão sendo forçadas a ingerir o excremento, tudo fica ainda mais difícil de assistir. Pior, pedaços das fezes ficam penduradas ao redor do rosto das pessoas, o que alonga as fezes como o elemento principal da imagem, além de mostrar, inteiramente, o esterco em bandejas e pratos. Não é nada gratuito, Pasolini não compõe dessa maneira somente como uma forma de impactar através da náusea causada pelo momento, mas tudo isso possui fundo poético, como já foi dito, sobre a ultrapassagem dos limites humanos, tendo, no caso do filme, um plano de fundo relacionado ao conteúdo sexual. Os caminhos podem ser pensados em diversas formas, como algumas das interpretações abaixo. “Saló” é, sem dúvidas, duríssimo, apenas se houvesse as descrições acima. O filme é difícil, também, pela razão de haver metáforas soturnamente brutais. “Saló” não se resume à perversidade sexual, mas à perversidade humana, à falta de liberdade. O sadismo está, também, no que o próprio Pasolini chama de neofascismo, um fascismo pós-guerra, aquele que nos obriga, direta ou indiretamente, a consumir cada vez mais, a tornarmo-nos padronizados, tornamo-nos máquinas; cada um de nós é uma célula que serve de alimento a um forte mercado de consumismo; somos a cidade de Leônia em “As Cidades Invisíveis”, de Italo Calvino, ao empilharmos o lixo; somos os destruidores dos muros de Sana’a, no Iêmen, como Pasolini mesmo documentou com um forte tom melancólico. Não estamos satisfeito somente ao consumo, buscamos o consumismo, o excesso, ultrapassamos os limites em diversos sentidos para sermos o padrão. Não somos livres, pelos menos a maioria não é, pois somos coordenados pela indústria do consumo, somos um padrão, seguimos o que é ditado para que um indivíduo seja o padrão em termos de be-

leza, em termos de materiais, entre outros fatores. Quem não é padrão, de alguma forma, é punido, seja por uma autopunição ou por uma punição por terceiros. Os indivíduos comuns são vigiados e punidos, quem não é padrão é, naturalmente, errado, torna-se um escravo da indústria, não há liberdade. Lembramos, com isso, de “O Olho mais Azul”, de Toni Morrison, em que uma ideia de inferioridade é instalada por uma menina negra que quer ter seus olhos tão azuis quanto os olhos das pessoas de beleza padrão. O “azul” do título está simbolizado, também, na tristeza. Lembramos, outrossim, do panoptismo linguístico, em que não temos a liberdade para falar da forma mais livre possível, temos que nos moldar em nossas conjugações verbais e na pronúncia das palavras, caso contrário, somos taxados como os errados, precisamos seguir, mais uma vez, o padrão. O neofascismo faz com que tenhamos de ser um padrão. O resultado de toda essa falta de liberdade está nas expressões dos jovens raptados para o interior daquela mansão. Expressões de pavor, de desespero e tristeza. Não é preciso haver um close-up para entendermos tal expressão, pois mesmo no fundo de um enquadramento é possível entender as faces traçadas de dor. Aliás, a satisfação do sadismo só funciona enquanto o indivíduo passivo não sente prazer nas brutalidades feitas pelo sádico, elemento muito focalizado na figura do duque, um dos responsáveis pelos atos ocorridos na mansão. Alguns dos principais problemas já presenciados por Pasolini enquanto estava vivo, muitos problemas vistos logo no cenário pós-guerra, foram marcados por símbolos sujos e desconsertantes ao longo de uma das obras mais difíceis e duras da história do cinema. “Saló” foi o último longa-metragem do cineasta italiano, um epitáfio poético muito interessante se pensarmos no que foi traduzida a vida do diretor, de lutas e mais lutas nos mais diversos campos sociais. Leonardo Carvalho Crítico de Cinema pelo Cineplot e formado em Letras Italiano.

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O CONFORMISTA O plano de abertura de O Conformista talvez seja um dos mais exemplares do cinema no que diz respeito à capacidade de sintetizar o clima de uma obra por meio de um plano. Com um enquadramento fechado no protagonista, Marcello, este clássico de Bernardo Bertolucci começa trazendo o personagem inquieto, alternando entre a escuridão e uma iluminação vermelha, uma imagem que, que alinhada à melancólica flauta da trilha de Georges Delerue (Platoon) imediatamente transportam o espectador para um cenário violento, sombrio e coercivo cenário da Itália fascista. A obra acompanha Marcello Clerici, jovem italiano que, a fim de ascender no partido fascista, tem a missão de aproximar-se de um militante anti-fascismo, um velho amigo e professor do protagonista. A mando de Mussolini, Clerici deve ganhar a confiança do professor e ajudar a orquestrar seu assassinato. A obra divide-se entre a viagem de Marcello para executar sua missão e flashbacks que mostram sua vida e interação com o professor antes da execução do plano.

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Com O Conformista, Berlolucci analisa como os traumas se mantém vivos na psique humana ao ponto de criar cidadãos frios e cruéis. Por exemplo, em uma das cenas em que acompanhamos Clerici a caminho de seu professor para executa-lo, a montagem alterna entre sua viagem e imagens de sua infância, mostrando o abuso que sofreu quando criança. Também há momentos que desenvolvem sua relação com seu pai, paciente de um manicômio. Semelhante ao que Vittorio De Sica fazia, Bertolucci usa seu cinema como análise da condição humana, e a forma como a montagem insere seus flashbacks, de forma seca e quebrando planos nos quais Marcello surge pensativo, tornam as cenas uma viagem às memórias do protagonista, que ajudam o público a compreender a frieza e até a crueldade que, aos poucos, Clerici demonstra. A fotografia do lendário Vittorio Storaro dá o tom do filme: enquanto nos flashbacks prevalece o uso de cores naturais e avermelhadas, com planos mais móveis, o tortuoso caminho até a execução do plano traz enquadramentos estáticos e frios, tanto pela iluminação mais esbranquiçada quanto pelos cenários preen-


chidos por neve. Nos flashbacks, a presença da trilha também é mais constante. Já no presente, quando acompanhamos a execução da missão do protagonista, O Conformista utiliza o silêncio como opressão para um personagem que parece destinado à tragédia. Mesmo que guiada por uma narrativa calcada em uma amálgama de espionagem, noir e cinema político, O Conformista ainda se destaca pelo arrojo técnico de Bertloucci, que tinha somente 29 anos quando lançou a obra, e mesmo assim consegue imprimir uma nuance de gêneros admirável. Quando ocorre a aproximação entre Clerici, sua noiva Giulia, o professor Quadri e sua noiva Anna, o longa ganha sensualidade pela criação de tensão sexual entre as mulheres do filme - que só funciona graças aos inteligentes movimentos de câmera, que isolam o protagonista do quadro e aproximam as duas mulheres -, e a crescente paixão de Clerici por Anna. Com a entrada do professor Quadri, a narrativa ainda ganha contornos filosóficos com a referência ao Mito da Caverna, de Platão, que se mostra uma alegoria perfeita para retratar a relação de Clerici com a realidade da Itália fascista, em que o personagem, por uma ilusão de poder e estabilidade social - almejada pelo casamento com Giulia, jovem de família rica, e pela ascensão profissional no partido fascista -, afasta-se da própria humanidade em uma trágica jornada de deterioração moral.

Quando Bertolucci visa a canonizar a monstruosidade do protagonista, é brilhante a escolha de pontos de vista que o diretor faz em prol da tensão. Diante de uma cena extremamente violenta, que ganha peso graças à ausência de trilha musical e uso de planos longos, que até variam de planos médios para close ups a fim de destacar o sangue e a agressividade projetados, O Conformista alterna entre os olhares de uma testemunha, que tenta cobrir seu rosto, amedrontada e totalmente entregue ao desespero, e os olhares de Clerici, que, antagonicamente, curva seu rosto para ter um ponto de vista mais claro diante da violência que se manifesta. O Conformista é uma prova do altíssimo nível técnico e estético do diretor Bernardo Bertolucci, mostrando-se uma combinação arrebatadora de gêneros, temas e estilos, capaz de conquistar pela lascividade do jogo de conquista, bem como pela força da narrativa mafiosa ou pelo peso da análise psicológica de uma nação que, no período retratado, estava doente, fadada à tragédia, bem como seu protagonista. Matheus Fiore Crítico de Cinema pelo Cineplot e Plano Aberto

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HORROR ITALIANO: DIÁLOGO ENTRE O CULT E O POPULAR Quando pensamos no cinema italiano, lembramos imediatamente de Fellini e o onírico; de Pasolini e sua performance de estranhamento poético; Leone e os spaghetti western; os neorrealistas de De Sica, com a figura do pobre idoso e da pobre criança em uma devastada Itália, e Rossellini com a abertura de Roma, o recomeço da Itália no pós-Segunda Guerra Mundial e o retrato doloroso da destruição na trilogia da guerra. Quando pensamos no terror, lembramos imediatamente, e cronologicamente, dos clássicos da Universal dos anos 1930 e início dos anos 1940; de Alfred Hitchcock e a ascensão do suspense; dos slashers dos anos 1980; dos found footage na afirmação pós-2000. É difícil pensarmos imediatamente no terror italiano. É preciso pensar, todavia, que o horror cinematográfico da bota é um dos mais apreciados do mundo, tendo diversos diretores, com uma tríade principal – Dario Argento, Lucio Fulci e Mario Bava – de muito reconhecimento, chegando a um bom nível de popularidade. Os filmes italianos do gênero conduzem um diálogo perfeito entre o rebuscado, o cult por sua estética, e

o popular, contendo boas doses de suspense perfeitamente plausíveis para quem busca o entretenimento. Como um subgênero, o horror italiano é mais conhecido como o giallo. “Amarelo” em italiano, os gialli são baseados nos antigos livros policiais de capa amarela que eram lançados na Itália, por isso os filmes que continham elementos do livro eram classificados como “giallo”. Se houvesse um assassino em série, um detetive, um suspense conduzido por assassinatos brutais e uma revelação final surpreendente, era um giallo. Mais ou menos como os noir dos anos 1940 e 1950 nos Estados Unidos, os gialli ganharam forças nos 1960 e 1970 com alguns dos diretores citados no parágrafo acima. A verdade é que os slashers estadunidenses foram amplamente inspirados pelos gialli. Se houve uma representação de influência dos noir sobre os gialli, é verdade que estes influenciaram, e muito, os slashers de Michael Myers, Jason e Freddy. Não pela questão da monstruosidade, do encontro com o fantástico, mas pelas cenas agonizantes pautadas por mutila-

Black Sabbath - As Três Máscaras do Terror, de Mario Bava

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Suspíria, de Dario Argento ções brutais. Sobre os três ícones do terror popular, Michael Myers é o que mais se aproxima dos gialli, sendo uma figura misteriosa, cruel e com uma presença incalculável para causar tensão. Muito existe em comum entre os subgêneros, o slasher e o giallo. O sucesso dos gialli foram tão expressivos que conquistaram bilheterias relativamente grandes, na Itália e fora dela. Além disso, alguns dos filmes italianos do gênero contaram com a participação de figuras lendárias do horror, como Black Sabbath – As Três Máscaras do Terror (1963), com a ilustre participação do britânico Boris Karloff, ícone nos monstros da Universal dos anos 1930. Barbara Steele, também britânica, chegou a trabalhar com Roger Corman, com David Cronenberg, mas foi no horror italiano que a

mesma ficou reconhecida, sobretudo por seu trabalho com Bava em A Maldição do Demônio (1960). Em termos mais estéticos, Mario Bava era um exímio explorador da fotografia em todos os sentidos. Com excelência, entendia a iluminação como poucos, resgatou o expressionismo alemão no jogo de luz e sombra, isolava, por vezes, o fundo de um cômodo do cenário para que colocasse, mais iluminado e em primeiro plano, a monstruosidade revelada de uma figura. Um outro recurso fotográfico, trabalhado em conjunto com a direção de arte, era a utilização de cores, muitas vezes avermelhadas para contrastar com a escuridão, vermelhidão que indicava um ambiente bizarro, de indicação de sangue e assassinato. Por fim, deve-se focalizar na uti-

A Maldições do Demônio, de Mario Bava

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Tenebre, de Dario Argento lização de planos, em que os enquadramentos mais fechados eram incríveis para saborear a imagem de horror, justamente pela aproximação extrema, de close-up, também para haver uma ênfase em uma revelação monstruosa, às vezes para captar o pavor, como fez junto às performances de Barbara Steele.

carreira do cineasta. É nele que há a maior exploração de sequências pesadas muito bem pautadas pela maquiagem, recurso extremamente importante para que mutilações sejam construídas, aspecto essencial no gore, a violência gráfica, a nojeira explícita, um tipo de filme em que é preciso ter estômago forte.

Falando em vermelho, Dario Argento – um dos roteiristas do irreparável Era um Vez no Oeste (1968) –, era um dos mais técnicos diretores dessa leva gótica italiana, soube hiperbolizar com perfeição a utilização dos vários tons do vermelho em Suspiria (1977). O longa-metragem, importante expoente do horror da bota, banhou as telas de vermelho, um vermelho que lembrava todo o clima inseguro, de alerta, naquela casa onde ficavam reunidas diversas meninas praticantes da dança. Por lá, no fundo (no duplo sentido da palavra), existia uma seita satânica, fazendo com que o vermelho fosse mais uma vez acionado, para lembrar o fogo, o inferno. Aliás, a bruxaria da película é de causar uma atmosfera tão grande de medo como poucos souberam criar.

Na altura dos anos 1980, o terror italiano foi perdendo o seu prestígio, mesmo com a presença de Fulci e Argento em alguns casos. Surgiram obras nem tão positivas do ponto de vista técnico, mas revolucionariamente corajosas, como Holocausto Canibal (1980), de Ruggero Deodato, mas tudo parou por aí. Holocausto é um found footage, o pioneiro do subgênero no terror, polêmico por ser acusado de ser um snuff – subgênero em que as pessoas realmente morrem nas filmagens –, mas desmentido depois de inúmeras acusações. Mesmo com uma queda brusca no pós-1980, a verdade é que o horror italiano no cinema é um dos mais importantes do mundo em todas as suas vertentes, no giallo, no terror mais tradicional, no gore.

Para finalizar a tríade, não podemos esquecer de Lucio Fulci. Considerado um dos grandes nomes de um outro subgênero do horror, o gore. Embora o italiano seja importante na popularização dos gialli, fez muitos deles, foi no gore que se afirmou. Zombie 2 (1979), com uma jogada de marketing genial, esperado mundialmente como a sequência de um dos clássicos de George A. Romero, é o filme mais notório da

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Leonardo Carvalho Crítico de Cinema pelo Cineplot e formado em Letras Italiano.


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TENEBRE E O GIALLO Tenebre é um filme insólito em meio ao restante da filmografia de Dario Argento. Mesmo se tratando de um giallo, ele o rege de forma tão fleumática que, em alguns momentos, é possível esquecer que se trata de uma obra sua. Porém, rapidamente nos lembramos pelas marcas do próprio subgênero que abarca o filme. Ainda que comedido, sua competência se torna clara e objetiva, o que torna Tenebre um filme díspar, mas tão eficiente como os outros. Esse diferencial pode ser também exemplificado em uma comparação feita por Ruy Gardnier (da extinta Contracampo) entre Argento e Chabrol quanto a essa simplicidade que faz a narrativa fluir naturalmente. Paralelo esse que também aconteceu nos filmes mais recentes de Chabrol, que manteve sua potência apesar de se distanciar de suas características. O design de produção também é ponderado, conforme notamos, por exemplo, na distribuição parcimoniosa dos objetos cênicos e de figurino vermelhos, presentes em praticamente todas as locações. Tais elementos são trabalhados de maneira hábil, como bom giallo que é, a criar um clima de suspense logo de pronto. A apresentação da personalidade do assassino é feita de forma natural e compassada, mesmo que suas intenções sejam ostensivas. A psicopatia é inerente ao giallo. A busca por sangue, pelo prazer alcançado somente por meio do assassinato. A visão subjetiva do assassino intriga e

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espanta enquanto ele manipula suas luvas de couro, as quais, além de ocultar pistas, tentam esconder seu verdadeiro ser. Em Tenebre, principalmente, pois o assassino não quer reconhecer sua própria insanidade enquanto um problema, mas como solução. Talvez diferentemente da literatura que influenciou e criou esse subgênero, sendo as luvas utilizadas apenas como uma característica em comum. As justificativas para cometer um assassinato são verdades absolutas aos assassinos seriais. Seus métodos deixam claras suas reais intenções e o ódio que nutre seu desejo em matar e que, principalmente, lhe traz prazer. Ao fazer com que suas vítimas se sufoquem com páginas do livro que ele julga subversivo, ele sente um prazer dobrado. O assassino julga a obra como depravada e imoral. Ao cometer esses atos, age como que por vingança. Em uma cena inexplícita, a relação de subversão e depravação por parte do protagonista é simbolizada por uma adolescente que adentra o local onde ele está hospedado com a função de ajudá-lo nos problemas que ali podem ocorrer. A roupa que lhe é escolhida é sensual, com a mise-en-scène buscando justamente chamar a atenção do protagonista e nos fazer questionar suas reais intenções com ela. Relações essas que são escrachadas pelo jornalista e crítico, que parece não suportá-lo, demonstrando um preconceito com raízes no seu próprio extremismo religioso.


A relação da arquitetura é também uma curiosa característica de Tenebre, que em determinados momentos nos transporta a uma Roma inabitual, que de tão estranha, não nos permite identificar em qual época se passa. Em algumas arquiteturas futuristas, com prédios sempre chamativos, Argento consegue provocar uma sensação de estranheza também pela cenografia. Há também um momento inesquecível no filme em que, utilizando esses mesmos prédios vulgares e excêntricos, somos apresentados a um dos melhores usos de grua na história do cinema. Adentramos em um prédio juntos a câmera, e como bons ‘voyeurs’, conhecemos mais um pouco daqueles que ali habitam e de suas escolhas como seres. É urgente a relação entre espectador e personagens, o que preconiza ainda mais a tensão – embalada por sua trilha inesquecível. Se o “O Cão dos Baskerville” é citado, é também metaforizado nesta cena que amplifica ainda mais o instinto violento e animalesco do filme. Instinto que muitas vezes é utilizado como justificativa. Por mais que sejamos racionais e “desenvolvidos” em teoria, as ações do assassino provam o contrário – e elas não são ligadas só a ficção, estão também presentes em nossa sociedade. “Comportamentos aberrantes”, “perversão humana”: trechos de diálogos citados durante o filme sintetizam muito bem a personalidade do assassino que percorre a história. Os diálogos acima citados não justificam o contexto em que foram expostos. Fazem o contrário: corroboram para a fundamentação de

um outrem. Outro trecho que comprova a relação entre a psicopatia e o pseudo-naturalismo: “Não sentia ansiedade nem medo, mas liberdade. Cada humilhação que lhe barrava o caminho, podia ser varrida por um ato simples de aniquilação: o homicídio”. É curioso como a troca do objeto a ser usado nos assassinatos demonstra uma outra faceta do assassino. A brutalidade toma conta daquele que demonstrava ser apenas metódico e frio. O tom onírico é frequente na carreira de Argento, não sendo diferente em Tenebre. Aquilo que pode soar como uma justificativa, é também um mistério. A mulher que é morta inúmeras vezes em uma lembrança ou sonho, que usa sapatos vermelhos, que parece buscar a depravação, afeta o assassino de forma ao levá-lo a loucura. O que seria ela? Os gritos ecoam, o desespero toma conta do recinto, as cortinas se fecham, e não sabemos ao certo quem era realmente insano. “O improvável, neste caso, mais uma vez, como no livro… É certamente estranho, inacreditável. Mas possível. ”

Matheus Petris Crítico de Cinema pelo Cineplot

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