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NOTA DO EDITOR O Cineplot encara como uma obrigação o resgate de uma forma de Cinema que vem se perdendo em um mundo de velocidade. Assim, lançamos esta que esperamos ser a primeira de muitas edições da Revista Cineplot. O papel que tomamos para nós – que não deve ser exclusividade nossa – é árduo. Nada é feito para durar, e assim está o Cinema, em uma constante morte da imagem. Estamos aqui para tentar, mesmo que a passos de formiga, recuperar o valor das imagens.
Revista terá, em cada uma de suas edições, uma temática diferente. Escolhemos O Cinema e o Mito em nosso primeiro número justamente por acreditar que não se pode viver sem mitos. Precisamos estar constantemente reproduzindo-os para que não deixemos que estes morram. Não deixem o Cinema morrer! Philippe Leão, Editor-chefe do Cineplot.
CONVIDADOS NESTA EDIÇÃO DIOGO SANTOS
ROMERO VENÂNCIO
MAYTE VIEIRA
Professor adjundo e pesquisador na Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.
Romero Venâncio, professor e pesquisador no Departamento de Filosofia e Programa de Pós-Graduação em Cinema da Universidade Federal do Sergipe.
Doutoranda em História na UFPR. Suas pesquisas tem enfase em Cinema, sociedade contemporânea, cultura e imaginário, em especial sobre Vampíros.
Atuante nas áreas de Filosofia Contemporânea (Marx e Nietzsche), Estética (Filosofia do Cinema) e Teoria da Religião.
Mayte desenvolve a temática, também, em seu site: www.mitoseimaginario.com.br
Especialista em Mito, tendo desenvolvido seus tranalhos acerca do Tempo, Conhecimento e Deus. É também coordenador do projeto Educação Poética.
PÁGINAS PARCEIRAS
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Nº 1 | JULHO 2017 |O CINEMA E O MITO
6 • ENTREVISTA COM O ESPECIALISTA 10 • O PAGADOR DE PROMESSAS - Um retrato do povo brasileiro. 12 • ONIBABA e a demonização do desejo sexual 14 • Murnau, NOSFERATU e o Mito 16 • Albert Camus e o Mito de Sísifo 18 • O GOLEM e o ser incompleto 20 • EXCALIBUR e a espada como representação de poder 22 • Jacques Demy e a fábula em PELE DE ASNO 24 • FUNERAL DAS ROSAS, Édipo e metacinema 28 • A BELA E A FERA e o mito da maldição
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REVISTA CINEPLOT
30 • MEDEIA e a desmistificação da vilania feminina 32 • PASOLINI E O MITO 36 • HAXAN e a moral patriarcal (ou a impossibilidade de uma vida livre) 38 • CONTOS DA LUA VAGA e a uniformidade de pensamento 42 • A sociedade vista pela ótica de KURONEKO 44 • ÉDIPO REI: solidão e abandono 48 • O imaginário sobre vampiros em DRYER 54 • A SOMBRA DOS ANCESTRAIS ESQUECIDOS e o fruto do amor proibído
58 • BARRAVENTO: Identidade nacional e o mito 60 • OS NIBELUNGOS, o mito heroico
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Este longo sonho que nos cerca... Obra de Diogo Santos cineplot. 6
Entrevista com o Especialista QUEM É O ESPECIALISTA?
Diogo Santos é graduado em Letras (Português e literaturas) e Letras (Português/Árabe) ambas pela UFRJ. Especializado em língua árabe e Mestre em Letras pela UFRJ onde desenvolveu sua dissertação acerca da essência divina dos heróis. Doutor em Letras também pela UFRJ onde desenvolveu a tese sobre Tempo, conhecimento e Deus. Diogo Santos é coordenador do projeto Educação Poética, parceiro das palestras e cursos do Cineplot. Professor e pesquisador na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Cineplot – O que é o Mito? Diogo Santos - Respondendo em linhas brevíssimas diria que a palavra mito tem origem no idioma grego antigo e nomeia, em seu sentido primeiro, a “palavra narrada” ou “palavra sagrada”, lembrando que narrativa, cultura e sagrado dizem sempre de uma mesma instância da relação da comunidade com sua tradição. Cineplot – Verdade e Mito se relacionam? Se sim, como? Diogo Santos - Não há possibilidade de instauração de uma verdade, seja ela política, artística, histórica, religiosa, burocrática ou científica, sem uma narrativa cosmogônica que a organize, fundamente e a naturalize no seio de uma tradição cultural. O direito moderno enquanto ciência e até mesmo como instituição é apenas possível graças a um conjunto de mitos das mais diversas origens. Mito é a palavra narrada, ou seja, movimentada, dinamizada, potencializada, que diz aquilo que é, como é. O mito diz, e dizendo responde como percebemos o que somos, da maneira que somos. Tudo aquilo que é, é apenas enquanto nomeado pela cultura. Curiosamente a filosofia ao nascer, tenta decretar o fim do mito, mas ao invés disso mata a si mesma. A filosofia é um natimorto, ao abraçar para si a teoria como prática, perde-se num mundo incapaz de criar. Acreditamos que nossa sociedade seja destituída de mitos e narrativas criadoras, acreditamos que vivemos na decadência e que precisamos resgatar uma década ou um século de ouro perdido nas areias do tempo.
Acreditamos que o lugar do pensamento, da arte, da música está sempre em um outro tempo, um outro lugar. O nascimento-morte da filosofia que inaugura o ocidente se empenha sempre e somente no ocultamento do mito, da narrativa. A filosofia é este Zeus, o filho parricida e usurpador. Cineplot – Como o Mito se relaciona com a memória, com a vida das pessoas? Diogo Santos - Poderíamos tentar iniciar agora o exercício de pensar uma sociedade futura destituída de seus mitos, um exercício narrativo que está tanto em voga hoje e chamamos de distopia. Pensar uma sociedade sem mito seria o mesmo que pensar em uma sociedade sem sociedade. É curioso perceber a prática comum, principalmente da classe dos intelectuais, da preocupação em proteger a cultura de seu país contra a invasão de práticas estrangeiras ou aquela busca por uma era de ouro, antes de uma decadência que nos teria levado para a era de “ignorância” na qual vivemos. Mas a cultura é aquilo que está sempre e necessariamente em constante mudança. Práticas de empréstimos ou assimilação cultural são constituidores da essência de qualquer cultura. O mito, a arte, a música, o cinema, como narrativas fundadoras, precisam, necessariamente, assumir formas novas, contemporâneas. Vejo, por exemplo, ressonâncias do mito da Torre de Babel na narrativa do filme Prometheus, de Ridley Scott. Percebo ali a constituição do conhecimento como algo negativo, destruidor. Há o Deus vingador, que odeia sua criação. Há a construção que leva a criatura ao
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encontro do criador e do saber máximo. Há, inclusive, o desmoronamento desta que é a maior empresa da humanidade. Será que realizadores do filme deliberadamente recorreram à narrativa bíblica? Não haveria uma necessidade absoluta, pois este mito foi por diversas vezes narrado, reatualizado, reestruturado, recontado: nos contos de Chtulhu, de Lovecraft, na Cidade de Vidro, de Auster, no mito do demônio da tradição sufi, em diversas narrativas indianas. Conhecemos este mito, antes mesmo de conhecê-lo. As narrativas perpassam todos os níveis de nossa cultura, podem se dizer de maneira mais explícita ou mais velada. Conhecemos as narrativas que nos constituem, pois elas dizem o que somos. Jorge Luis Borges nos diz que conhecemos as Mil e Uma Noites mesmo sem nunca ter lido, já faz parte de nossa memória coletiva. Cineplot – Como se da a origem de um mito e como se perpetua? Diogo Santos - Novas dinâmicas de criação surgem com a difusão de novas técnicas, suportes e materiais. O mito, historicamente, tem origem nas antigas narrativas orais, nos antigos épicos e poemas sagrados. Enquanto um fenômeno humano, o mito tem sua origem no conjunto de símbolos, personagens, músicas, canções, imagens, palavras, gestos, danças que constituem o repertório ficcional de qualquer cultura. Enquanto formos homens, haverá música, haverá mito. Cineplot – O que é o Sagrado e sua relação com o Mito? Diogo Santos - Dizem de um mesmo. Não há um sem o outro. Cineplot – As narrativas mitológicas por muito foram usadas no Cinema. Como enxerga as diferenças em Pasolini? Diogo Santos - Então... percebemos algo de mitológico, nas adaptações do Édipo, da Medeia, e também nas Mil e Uma Noites , de Pasolini. Sim, sentimos uma presença antiga nestas obras, algo como um canto das origens, digamos assim. Cla-
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ro que um criador consciente da questão simbólica saberá o que deve ser usado para se criar este clima, para evocar este sentimento, do antigo, do sagrado, do mítico. Ele saberá qual o tom é necessário que se deva dar a sua obra para se criar este resultado, que trilha sonora precisa ser usada no filme, qual indumentária, que locação, qual a prosódia que seus atores deverão conferir às suas falas. Todo criador é um alquimista. Percebemos algo de mitológico nesses filmes, mas todo filme, enquanto narrativa, é mitológico. Há poucas estruturas narrativas possíveis. Ouvimos, lemos e nos encantamos sempre com as mesmas histórias, vejo muito de Édipo em Anakin (Skywalker). Não há muitos heróis além do Odisseu que retorna ao lar ou da Antígona, no embate contra as novas leis de um novo estado. O mito, na verdade, diz muito pouco em seu argumento, mas muito mais no como é dito. O sentido reside sempre no como, na conjugação alquímica das partes – que são sempre maiores que o todo. Cineplot – Qual filme relacionado à temática indicaria e como se comunica, de maneira diferenciada dos demais, com o Mito? Diogo Santos - Toda obra de arte diz em si muito pouco, o que constrói sua riqueza, mais que uma super-valorizada intenção do autor, é a intenção do expectador. Não existe boa literatura, mas bons leitores. Não existe bom cinema, ou cinema de arte, ou cinema de autor, assim como não há filmes que sejam mais ou menos mitológicos, mais ou menos poéticos, mais ou menos trágicos. Podemos, ao invés disso, falar de leituras mitológicas, poéticas, trágicas, ou leituras técnicas de qualquer obra. Talvez o que comprometa hoje o nosso papel de criadores são a leituras já programadas. Há todo um exército de pregadores a nos dizer como devemos fazer, ler, assistir, ouvir. O que devemos perceber, e talvez, o mais assustador, do que devemos gostar. O mais difícil aprendizado é saber do que realmente gostamos.
“Não está morto o que para sempre pode jazer” - Obra de Diogo Santos cineplot. 9
Um Retrato do Povo Brasileiro entre Santa Barbara e Iansã multipremiado filme dirigido por Anselmo Duarte, O Pagador de Promessas, dialoga de forma intensa com a ideia do mito. Adaptado do livro homônimo de Gomes Dias, Anselmo Duarte traduz em imagens aquilo que é o desafio da narrativa mitológica brasileira: a multiculturalidade e o convívio de diversas narrativas distintas que constituem a nação.
O Pagador de Promessas. Diretor: Anselmo Duarte Brasil - 1962 Elenco: Antonio Pitanga; Canjiquinha; Carlos Torres; Dionísio Azevedo; Enoch Torres; Geraldo Del Rey; Gilberto Marques; Glória Menezes; Irenio Simoes; João Di Sordi; Leonardo Villar; Maria Conceição; Milton Gaucho; Napoleao Lopes Filho; Norma Bengell; Othon Bastos; Roberto Ferreira; Veveldo Diniz; Walter da Silveira.
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O filme contará a história de Zé do Burro, um homem humilde e ambicioso por concluir uma promessa à Santa Barbara: carregar uma cruz nas costas – como Cristo – até a igreja da santa na cidade. O motivo da promessa? Seu burro fora atingido por um raio e sua recuperação rendeu a homenagem.
Ao chegar à cidade, Zé do Burro encontra sua barreira. Se em um primeiro momento o Padre permite que a promessa seja cumprida, ao descobrir uma singela peculiaridade volta atrás em sua decisão. Já anunciada por Anselmo Duarte em uma belíssima cena de abertura, ao som e dança do Jongo entrecortado por uma montagem musicalizada, Zé do Burro havia feito sua promessa em um terreiro do candomblé, à equivalente de Santa Barbara, a Rainha dos Raios Iansã – conveniente, uma vez que seu burro fora atingido por um raio. Zé do Burro permanece sob a escadaria da igreja, faz greve de fome até que sua promessa possa ser realizada. Indignado, o humilde homem não entende o motivo pelo qual não pode concluir sua promessa.Não seria Santa Bárbara a mesma
coisa que Iansã? Por qual motivo o padre não permite que sua promessa seja concluída uma vez tendo prometido a Santa Bárbara? Zé do Burro é o retrato do Povo brasileiro! Afirma ao Padre ser um homem católico, frequenta o terreiro e adora seus santos. Sua ambição por concluir seus anseios provoca uma grande aderência popular. Zé é reconhecido como um guerrilheiro contra um poder hegemônico. A imprensa – a quem, em determinado momento é dito que todos temem – toma partido a favor de Zé. Para o povo um profeta, para a igreja um falso cristo coberto por feitiçaria, dominado pelo demônio – afinal, para uma das matrizes desta nação, a outra é condenável, amaldiçoada. A escadaria se torna, então, um símbolo de resistência. No alto de seus degraus um poder impositor. Abaixo, desejando ascender sob as costas de seu profeta, o Povo revoltado, a marca de uma nação miscigenada. Zé apenas quer cumprir sua promessa, mas sem querer diz o que grupos emergentes desejam falar. Em uma nação de múltiplas narrativas, Iansã e Santa Bárbara se confundem. Ambas fazem parte do imaginário de um povo de muitas dinâmicas que influem sobre sua espacialidade e hábitos culturais. O Pagador de Promessas, apesar de muitos assim interpretarem, não é um ataque à igreja católica enquanto narrativamitológica, mas a sua postura enquanto poder hegemônico a fim de aniquilar aquilo que é diferente. Zé do Burro, dessa forma, também não é um infiel querendo por abaixo uma das matrizes culturais provindas da Europa, mas um símbolo do que é nacional, brasileiro, uma mistura de narrativas que da voz à sua cultura.
De maneira não reflexiva, Zé é um brasileiro por excelência. Ao imaginário de diversas narrativas o herói é fruto de Santa Bárbara e Iansã, uma unidade de duas. Do alto de seu poder e conhecimento, a hegemonia não compreende o que o senso comum é capaz de produzir, a beleza em seus hábitos. Do senso surge a verdade de um Povo. Da força alienadora vem a capacidade de indivíduos que apenas identificam o que os separa e não o que os une. Por fim, tem-se o fim do mito sob a morte de seu herói. Suas conquistas, porém, atingem níveis simbólicos de grande força imagética. A figura do profeta à brasileira encontra seu espaço ao cumprir sua promessa. Da morte de seu herói, nasce o mito de uma nação. Philippe Leão Editor-chefe do Cineplot, crítico de cinema, palestrante, professor e Geógrafo.
“A força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une.” - Milton Santos
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Onibaba e a Demonização do Desejo Sexual
Onibaba Diretor: Kaneto Shindo Japão - 1964 Elenco: Nobuko Otawa, Jitsuko Yoshimura & Kei Sato
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O sexo é tratado como tabu em boa parte das culturas ao redor do mundo. Na sociedade ocidental, o tema tem sua discussão travada principalmente graças aos valores judaico-cristãos que ditam a moral da maioria da sociedade. No Japão há a mesma censura, e a liberdade sexual e o prazer (principalmente femininos) acabam sendo transformados em demônios intocáveis que devem ser temidos. Em Onibaba, o diretor Kaneto Shindo trata do tema por meio de uma trama simples mas recheada de alegorias e banhada por uma brilhante fotografia. Em um período não especificado, durante uma grande guerra, duas mulheres vivem em uma mata, caçando os homens que por lá passam para matá-los e vender seus pertences. A dupla é composta por uma jovem que aguarda o regresso de seu marido, Kichi, que desapareceu na guerra, e a mãe do
próprio Kichi. Certo dia, a dupla recebe a visita de Hachi, que informa à mãe que seu filho morreu em combate. A esposa, então, começa a se aproximar de Hachi, o que irrita sua sogra, pois ela teme a possível perda de sua companheira de roubos. Onibaba sabe trabalhar a construção do desejo. A aproximação de Hachi e a viúva, por exemplo, é muito orgânica. Começa quando o rapaz vê a moça trabalhando na beira do lago e acaba observando uma abertura na roupa que o permite ver parte do corpo dela. A cena alterna a câmera subjetiva que passeia pelo corpo da jovem e demonstra como Hachi passa a deseja-la, enquanto no contra-plano temos o olhar do personagem enquanto ele se apoia em sua lança e a segura como se fosse um pênis ereto, representando sua excitação. Ainda embeleza o filme a lindíssima cinematografia de Kiyomi Kuroda, que utiliza as luzes para dese-
nhar os contornos dos personagens, que dão um visual digno dos mangás japoneses e conseguem ajudar na construção da mise-en-scene, que poderia ser prejudicada pelo excesso de tomadas externas noturnas. A direção de Shindo é inteligente ao retratar a relação entre os três personagens. Enquanto Hachi passa a desejar a viúva, que por sua inocência demora a perceber, vemos a mãe de Kichi mudar seu posicionamento no quadro gradualmente, percebendo o desejo de Hachi. Em certo momento, a vemos entre os outros dois personagens, com olhares de lado desconfiados que nos contam sua vontade de manter o rapaz longe de sua nora. Em certo ponto do filme, porém, é inevitável que a paixão se torne uma relação carnal. Resta à senhora, então, tentar separá-los de qualquer jeito. O curioso é que o medo da Mãe ao ver o florescer do amor entre Hachi e a Viúva vai além da possibilidade de ficar sozinha, mas é justificado também pela enorme inveja que a senhora expressa pela juventude de sua nora. Ao ver Hachi se aproximar da jovem, por exemplo, a Mãe tenta intervir e seduzir o moço. Quando rejeitada, então, decide utilizar o medo para impedir que a dupla de jovens se torne um casal Entra em cena, então, um samurai que, fugindo da guerra, perdeu seu rumo e pede para a senhora ajudá-lo. Utilizando uma máscara de Oni que o faz parecer um demônio, o guerreiro é enganado pela Mãe e acaba morto. Entra aqui outro elemento que torna Onibaba um filme único: a alegoria da máscara que se torna o rosto. Enquanto caminhava pela mata com a idosa, o samurai afirmou que não mostraria seu rosto por este ser muito bonito. Mas, quando morto, a personagem vai até seu cadáver e, ao remover a máscara, encontra um rosto totalmente deformado e queimado. É como se a máscara de demônio que o rapaz
vestiu na guerra tivesse se tornado sua própria face, diante de todos os horrores que ele viveu e proporcionou em combate.. E se a máscara de demônio tornou-se o rosto do samurai, era lógico que o mesmo aconteceria com a Mãe a partir do momento que ela passa a usar a mesma máscara para assustar sua nora. Em suas tentativas de encontrar Hachi, a Viúva sempre era impedida pelo “demônio” que assombrava a mata, que na verdade era apenas a Mãe fantasiada. Mas, aqui, o mais interessante é ver como mesmo diante de algo que a jovem acredita ser uma entidade maligna, a personagem persiste na busca por seu amor e consegue enganar a Mãe. A montagem insere planos que trazem a mata sendo soprada pelo vento enquanto a moça corre em direção ao seu amado, nos mostrando como o amor é uma força instintiva, natural, que supera as barreiras do medo e do tabu. Onibaba entrou para a história como um filme de terror, mas seu grande mérito é retratar o uso do medo para tira a liberdade sexual, a construção do mito do pecado supostamente presente no desejo sexual, ao mesmo tempo que, de forma poética e sutil, consegue acrescentar à narrativa a força do amor que transcende os julgamentos e medos. Um filme com uma narrativa extremamente poética pela forma lúdica como é fotografado e pelo peso do som da natureza presente principalmente nas cenas de amor entre a Viúva e Hachi, estabelecendo a força natural da paixão vivida pelo casal. Uma obra seminal no estudo da formação dos tabus sexuais. Matheus Fiore Crítico de Cinema no Cineplot e fundador do Portal Plano Aberto.
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Murnau, Nosferatu e o Mito Murnau é cinema: em pouquíssimos minutos, em apenas duas cenas, Murnau faz com que conheçamos a personalidade de dois personagens quase que completamente. O protagonista e sua amada. Ele, ingênuo e deslumbrado como aparenta, arranca flores de um jardim para levar à sua amada. Ela recebe as flores com anseio e, acariciando-as, explica: Mataste as flores. Ela sabe porque ele o fez mas, mesmo assim, sabe que suas ações são inconsequentes. Que ele a ama, é inquestionável. Há também uma cena posterior que reforça suas personalidades: quando o protagonista reconhece, junto a seu patrão maléfico para nós desde o início -, que existe uma possibilidade de “enriquecimento” na venda de uma casa, casa essa que fica
Nosferatu Direção: F.W Murnau Alemanha -1922 Elenco: Alexander Granach; Eric Van Viele; Fanny Schreck; Georg H. Schnell; Greta Schröder; Guido Herzfeld; Gustav Botz; Gustav von Wangenheim; Hardy von Francois; Heinrich Witte; John Gottowt; Max Schreck; Ruth Landshoff
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em frente a sua. Ele retorna para casa com seu natural ânimo para contar à esposa, que novamente o recebe com certo anseio, pois sabe das limitações do amado. Ele não enxerga isso ou qualquer coisa a sua volta, prefere continuar nessa ideia sugerida pelo seu patrão e, sem nem questionar, buscará o misterioso comprador da casa. Em sua jornada, o mito estará presente desde o início, desde sua primeira parada. Em um bar, pergunta aos que ali estão se conhecem a pessoa que ele busca. Nitidamente, todos se assustam com a pergunta, tentam apartar a situação e ao mesmo tempo impedi-lo de continuar, usam do próprio mito para tentar pará-lo. Usam como argumento a noite, e os lobisomens que podem estar soltos. A própria noite sempre foi sinal de perigo. A escuridão sempre esteve
atrelada à negatividade, ao mal. Em suma: sempre buscamos nos apegar aos próprios medos e superstições. Murnau usa a própria sociedade, que culpa os mitos, as superstições, o azar, tudo que conseguirem culpar para não reconhecerem seus próprios erros. Antes mesmo de conhecermos o mito que leva o título do filme - tirando os momentos das passagens dos créditos iniciais - já fomos apresentados a outros anseios humanos, que buscam esses contos como base para se justificarem.
e a morte - que pode ser tanto ele próprio quanto a peste. Ele em breve toma conta da cidade, bem como disse Bénard: A imagem mais surreal da história do cinema? É no famoso plano em que o mar (navio, Nosferatu) entra na cidade e dela se apossa.
Matheus Petris Critico de Cinema no Cineplot
A chegada do protagonista ao castelo de Nosferatu comprova aquilo que estava evidente na cena do bar e, mesmo assim, o protagonista, com toda sua ingenuidade, não consegue percebê-lo. Murnau insere uma gag dentro desse horror assombroso mas, nem assim, o protagonista se dá conta. O aspecto maléfico, tanto do patrão - que na realidade é um subordinado de Nosferatu -, como de Nosferatu é evidenciado a cada momento em cena; é apenas no momento em que o protagonista vê, com os próprios olhos, que ele na verdade se trata de um vampiro, que enfim consegue perceber que sua amada corre perigo e, aqui, a preocupação não será com o terror provocado na cidade, mas apenas com sua própria amada, algo que desde o início é reforçado: ele a ama sobre todas as coisas
“Aqui Drácula chama-se Orlok, e é Nosferatu, o não-morto, aquele cujo nome ressoa como um grito de ave de rapina e que tem o poder de obscurecer as imagens.” - João Bénard da Costa
Mas o que importa em Nosferatu não é o romance, longe disso. É pura e simplesmente o cinema. É a sociedade. É o humano. É a poesia. E, consequentemente, a própria morte.. Sob o signo da peste, daquilo que tornaria o mito em realidade, em algo palatável. Nosferatu traz consigo a morte, ele o navio cineplot. 15
SĂsifo, de Tiziano, 1549 cineplot. 16
No mito, Sísifo é castigado pelos Deuses a realizar um incessante e repetitivo trabalho por toda a eternidade. A figura mitológica deve rolar uma pedra até o topo de uma montanha e, ao final do dia, todo o seu trabalho não fará qualquer sentido a medida que pedra rolará montanha a baixo para que no dia seguinte tenha que ergue-la novamente. Os Deuses acreditavam que não há castigo mais severo do que o trabalho inútil e sem esperança. Dessa forma, já para os Deuses, não há nada mais torturante para os homens que o absurdo. Albert Camus propõe em sua filosofia um resgate de uma perspectiva trágica na condição humana a medida que a vida é um eterno retorno do absurdo. Também nós, humanos, dedicamos uma vida a trabalhos sem sentido e a busca deste sentido para que, ao final, sejamos esmagados pelo absurdo e pela morte. Portanto, em Camus, a vida em si é o absurdo. A força do Mito usado por Camus resiste ainda hoje. O mito condiz com nossa própria condição absurda. Sísifo trabalha repetidamente, dia após dia, com a ideia inevitável da morte. - Texto extraído
da lista de filmes inspirados em Albert Camus Filósofo existencialista francês - do Cineplot.
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O Golem e o ser incompleto A introdução de “O Golem” constrói, de maneira rápida e precisa, o início de uma maldição prevista por um sábio ao observar as aproximações e os afastamentos dos astros. Ele diz que enxerga um futuro complicado para uma pequena vila judaica, partindo, imediatamente, para uma conversa com os anciãos locais.
O Golem Alemanha - 1920 Direção: Carl Boese, Paul Wegener Elenco: Paul Wegener, Lyda Salmonova, Albert Steinrück.
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ordens de seu dono, ainda que possa tornar-se um perigo, dependendo da configuração dos astros.
Essa é a primeira das duas viradas importantes para o desenvolvimento e conclusão do longa-metragem. O imperador do território anuncia que não suporta mais os modos de vida dos habitantes daquela vila, portanto, acabará com os privilégios e trará punições severas ao ambiente dos judeus, uma atitude anti-semita.
A história do longa-metragem expressionista apoia-se justamente na narrativa mais famosa sobre a criatura. Ela acontece no século XVI, em Praga, com a invocação do homem de barro para proteger a sua aldeia contra investidas anti-semitas. Alguns questionamentos sobre a criação do golem, porém, fazem com que nós tenhamos dúvida de qual/quem é a verdadeira maldição àquela vila. A profecia vista pelo sábio é correta em relação ao imperador ou seria uma visão de que a própria criatura construída para a proteção se voltará contra seu povo?
Como uma afirmação de cultura e identidade, um mágico tem a ideia de construir um homem feito de barro, que através da magia pode ganhar vida e defender o seu povo através da sua força sobre-humana. Só através do poder oculto esse ser artificial consegue seu nascimento e, consequentemente, obedecer às
É um tipo de mito diferente, muito particular da cultura judaica. Se levarmos em conta a tradição da mitologia grega ou da religião cristã, podemos ver algumas coincidências em relação ao místico, mas é discrepante do mito de fábulas e contos de fada. Aliás, ainda que possamos traçar semelhanças com religiões ocidentais, de-
ve-se dizer que a forma de proteção e encantamento da lenda do golem é mais próxima de rituais de invocação. Já o formato da criatura, é algo distinto de tudo o que já vimos. No interior da narrativa, percebe-se que a história mítica da profecia se apoia na exatidão, tudo isso pela razão de o enredo tratar a astrologia como uma ciência exata na visão de um acontecimento. É um mito de proteção, mas que aos poucos vai se tornando uma construção tenebrosa e ameaçadora, uma lenda de um povo que necessitou de uma criação através de uma composição de parábolas. Ele é um ser incompleto, uma substância sem totalidade, como dizem as definições. Perfeito, o próprio diretor no papel da criatura concede movimentos brilhantes na composição do grande centro da película. A representação dessa incompletude é ótima, com muita rigidez para gesticular-se e locomover-se. O monstro parece mesmo incompleto se comparado à fluência física do humano. É preciso reconhecer que o figurino e a maquiagem ajudam nisso tudo, é uma caracterização ótima em termos de solidificar os membros do homem artificial. A sensação dada é de que estamos vendo claramente um ser enrijecido, de pedra, com movimentos limitados de uma figura mítica e longe da representação humana, tenebrosa aos olhos dos indivíduos daquela aldeia por sua aparência monstruosa, como mais tarde viria ser o monstro de Frankenstein. O formato da película baseia-se em uma montagem paralela. A primeira trama é excelente, voltada aos sábios e suas preocupações proféticas, além de uma tentativa de construir um ser salvador. Ela desenvolve-se com uma fluência muito interessante no suspense, em que expectativas são criadas para saber o que e como aquilo acontecerá. O suspense é ainda melhorado na apresentação do monstro. Nada é apressado nesse sentido; primeiro vemos o golem através de imagens e desenhos em uma parede, como o processo de criação do sábio; depois, com o passar dos capítulos da película, a criatura já está pronta, mas adormecida, então criamos ansiedade em vê-la em funcionamento; finalmente, já com vida, podemos entender a razão do título da narrativa e enxergar os efeitos no desenvolvimento da obra. É uma composição de paciência muito válida à
proposta de trazer um personagem um tanto excêntrico, por isso é liberado vagarosamente. É bom que se destaque, também, a parte mais voltada ao visual da película. Em primeiro lugar, a iluminação expressionista, com detalhes de escuridão excelentes para climatizar o horror da lenda, além de haver alguns elementos mínimos que complementam a estratégia tenebrosa, como as sombras pontudas que aparecem no fundo da imagem. A utilização de closes nas expressões de pavor do velho mago e da monstruosidade do golem também são bem-vindas na intenção de provocar medo. Continuando com a parte visual, destacam-se os efeitos especiais práticos, muito bem elaborados através dos cortes e do espaço cênico. Chega a impressionar a qualidade das imagens em relação ao poderio de magia, como uma dança de chamas e o envolvimento da invocação da criatura, em que o espectador é convidado para embarcar na história daquela lenda. Com os cortes, é proporcionado à narrativa que círculos de fogo apareçam subitamente; com o espaço cênico, os artifícios mágicos são acionados, ora com o sábio invocando as entidades espirituais com gestos teatrais, ora com o complemento da dança das chamas dita anteriormente, tudo isso trabalhado com um enquadramento mais aberto na tentativa de completar todo o ambiente com elementos místicos. Mais ao final, temos a última, e mais forte, virada da narrativa, quando o mito do golem fica completo no momento em que a criatura se volta contra seu próprio criador devido à passagem do tempo e à mudança dos astros. Com um toque de humor, a finalização acontece, mas é preciso reconhecer que em boa parte da película o terror é encontrado, ainda mais se o espectador acompanhar o filme com uma música do expressionismo. É um expressionista pouco lembrado, mas fundamental para a evolução do cinema alemão naqueles primeiros passos do cinema. Leonardo Carvalho Crítico de Cinema do Cineplot.
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Excalibur e a espada como representação do poder Sendo a espada mais famosa da história da literatura, a Excalibur já inspirou, junto ao lendário rei Arthur e ao cálice sagrado, dezenas de histórias nas mais diversas mídias. Poucos, porém, conseguiram sintetizar os elementos arturianos e utilizar a lenda para construir uma narrativa tão única e apaixonante quando Excalibur, filme de John Boorman lançado em 1981. Como o nome sugere, a trama não foca tanto em Arthur ou algum de seus cavaleiros, mas na espada, e para tal, há um tom mágico, quase onírico, que permeia toda a longa metragem do filme
Excalibur EUA- 1981 Direção: John Boorman Elenco: Nigel Terry, Helen Mirren, Nicholas Clay, Cherie Lunghi, Paul Geoffrey, Nicol Williamson, Robert Addie, Gabriel Byrne & Keith Buckley
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O filme dedica seu primeiro ato a construir o universo fantástico de Camelot. No meio de uma grande guerra, o rei Uther conta
com o auxílio de Merlin, um poderoso mago, para conseguir a espada Excalibur, afim de vencer o combate e manter seu poder. Uther caminhava para vencer a guerra sem perdas, mas acabou se apaixonando por Igrayne, esposa de um de seus aliados. Cego por sua sede por poder, acabou fazendo um pacto com Merlin: o mago o auxiliaria a ter Igrayne se, em troca, recebesse do casal a criança fruto do relacionamento. A ganância do rei acaba conduzindo-o à sua morte, deixando o reino sem um líder e Excalibur perdida. Anos depois, eis que Arthur, o filho de Uther que Merlin entregou para um camponês criar, acaba retirando a espada da pedra e sendo, então, proclamado rei. Mas engana-se quem pensa que a partir
daqui o filme passaria a acompanhar a trajetória do rei. A narrativa desloca-se sobre vários dos personagens, desde Lancelot à Perceval. O foco acaba sendo menos os elementos lendários arturianos e mais um enredo sobre ascensão ao poder, corrupção e queda. O poder, simbolizado pela espada, é extremamente volúvel, e nem Arthur se mostra pronto para administra-lo por longo tempo. Há na fotografia e nos figurinos a criação tanto de símbolos nas roupas dos personagens quanto a manutenção de um tom fantástico. As vestimentas trazem muitos adereços cromados e brilhantes, que refletem feixes de luz e trazem os próprios reflexos dos personagens. Auxiliados por um véu embaçado que cobre boa parte do filme, constróem um tom onírico que não só é perfeito para a proposta do filme, mas que quando quebrados pelas cenas mais violentas e sangrentas dos combates, conseguem criar uma dualidade visual (fantasioso limpo x realista violento e sujo). Ainda na cinematografia, há o uso de uma constante luz verde que traz uma aura mágica para o filme. Curiosamente, essa luz verde só está presente enquanto Merlin está em cena. Quando o mago desaparece, no meio do segundo ato, tal recurso é reduzido, como se sua ausência deixasse o mundo mais cinza.
e escudo. Merlin é, no meio de uma sociedade corrompida por ganância e racionalidade, o escapismo artístico e surrealista. Excalibur não é um épico de proporções gigantescas como Ben-Hur ou Spartacus, mas é uma perfeita adaptação dos contos originais que, por focar sua narrativa na espada, consegue desvencilhar o ponto de vista do espectador da ótima de Arthur, Uther ou Merlin, possibilitando que o público veja a história de forma cíclica e passageira, sem apontar defeitos e julgar os personagens ou suas escolhas, mas retratando de forma fantástica uma gama de personagens, situações e elementos que são alegorias para questões civilizatórias reais. Uma obra que, por meio do fantástico e de sua estrutura narrativa, torna-se atemporal.. Matheus Fiore Crítico de Cinema no Cineplot e fundador do Portal Plano Aberto.
E falando de Merlin, há de ser enaltecida a construção do personagem. Não só pela memorável atuação de Nicol Williamson, que vai da candura ao cruel com maestria, representando as várias facetas do poderoso mago, como pelos simbolismos trazidos por sua figura. Os já mencionados adereços cromados estão presentes por todo o figurino do filme, sendo em espadas ou armaduras. Mas, em Merlin, o único adereço prateado é uma simples proteção prateada em sua cabeça, entregando que sua fome por pensar é sua espada cineplot. 21
Jacques Demy e a Fábula
Excalibur EUA- 1981 Direção: John Boorman Elenco: Nigel Terry, Helen Mirren, Nicholas Clay, Cherie Lunghi, Paul Geoffrey, Nicol Williamson, Robert Addie, Gabriel Byrne & Keith Buckley
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Sob o prisma da fábula contida em Pele de Asno, notamos um Demy que pensa o passado pelo viés do presente. Mistura os tempos. Eles se completam, falam entre si. Enquanto o “passado” possuía os valores pitorescos - numa visão contemporânea -, o futuro deles traria o “conhecimento”, o amadurecimento social; esse conceito paradigmático é visto através da personagem da “Fada Lilás” (La Fée des Lilas). E mesmo que Peau d’âne esteja longe de ser um musical, é possível enxergar diversos aspectos que poderiam muito bem ser retratados num típico musical Demyniano. Os planos iniciais do filme corroboram o conto épico, eles nos transportam àquela ambientação fabulesca que é também relaciona-
da a reis, rainhas, princesas e castelos. Os créditos podem soar metalinguísticos, o que seria como uma auto-afirmação de estarmos prestes a assistir um mito, um conto de fadas. A morte está também presente, é um elemento inicial, que fará com que a narrativa do filme flua e, mesmo que usada melancolicamente, a verossimilhança fica nítida com relação a família presente. E, também, algo que sempre se repete em contos, fábulas e seus derivados: a promessa. A palavra como força motriz que o fará o rei ser ou buscar aquilo que prometeu. A promessa do Rei à Rainha a princípio pode ser interpretada como fútil, assim como num diálogo rápido um dos conselheiros do rei afirma isto a ele. Mas não. A força da promessa e a busca pelo quase inalcançável é que fazem com que o conto exista,
e não a “futilidade” da beleza em si. A busca por uma nova rainha é como a escolha de uma peça de roupa, de um objeto qualquer. Através de quadros que retratam as mulheres, o rei busca pela beleza superior; ele insiste em cumprir a promessa feita a sua falecida esposa. A mise-en-scène é como a essência deste filme e, principalmente nesta cena, podemo-lo notar com total clareza. O controle de Demy sobre os corpos denota a insatisfação de todos, as idas e vindas do Rei, os constantes retratos jogados em cena, até o momento em que ele encontra e, como pára em cena, a vida para ele também pára: irá conseguir cumprir a tão dificultosa promessa. Mas o choque é inevitável, a mulher mais bela que sua esposa é sua própria filha. Eis que surge o conflito, estaria ele disposto a casar-se com a própria filha? O plano em que ele a observa pela janela, de longe - em um plano geral - e que aos poucos fecha o quadro, enquanto a música tocada no piano ressoa, nos mostra que ele estará sim disposto a casar com ela - mas seria em prol da promessa?
E se o fim é tão típico quanto, no qual a felicidade impera e todos alcançam seus objetivos, Demy não se contenta com isso, volta a relacionar todos os tempos, quando a Fada Lilás chega nas festas finais de helicóptero. Tudo se auto-completa. Nas palavras de Inácio Araújo: Para Jacques Demy, uma princesa, um poema, um helicóptero são todos entes imaginários. “O mundo de Demy (o meu também, suponho) é melancolia instantânea. Não há mundo perdido, nenhum ideal que se foi, nenhum estado prévio pelo qual nos lamentamos.” - Serge Daney Matheus Petris Critico de Cinema no Cineplot
[...] O cineasta investiga o relacionamento amoroso, baseando-se no conflito entre o amor sonhado, idealizado, romântico, de príncipes encantados e de princesas virginais que seus personagens tanto anseiam, e o amor real, possível, com encontros e desencontros, amarguras e incertezas. [...] -
Paulo
Ricardo
de
Almeida
Abdicando de seu reino, conforto e comodidade, a princesa (Catherine Deneuve) se torna uma criada sob o disfarce da pele de um asno - fugindo do desejo incestuoso do pai. O amor também pode habita Demy, e assim acontece: uma paixão visceral, real e instantânea, bem como as descrições fabulescas. cineplot. 23
Funeral das Rosas, Édipo e Metacinema O Cinema experimental de Toshio Matsumoto, infelizmente, nos proporcionou pouquíssimos filmes. O material escasso em longas-metragens, contudo, não é um empecilho para que o diretor pudesse figurar em um dos mais transgressores movimentos cinematográficos: A nuberu bagu, ou Nouvelle Vague Japonesa.
Funeral das Rosas Direção: Toshio Matsumoto Japão - 1969 Elenco: Pîtâ; Osamu Ogasawara; Yoshio Tsuchiya; Emiko Azuma; Yoshihiro Katô; Koichi Nakamura; Masato Hara.
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Diferente de seus companheiros de movimento como Yoshishige Yoshida e Nagisa Oshima, Toshio Matsumoto imprimia a transgressão proposta pela nova onda do cinema japonês através de uma plasticidade curiosa. Os abruptos cortes somados a uma narrativa em ciclos criam uma estranheza que comunica com os interesses da forma como deseja apresentar sua história. Não há
qualquer linearidade na transgressão de Funeral das Rosas O filme contará a história de Eddie, uma bela travesti hostess em um famoso clube noturno no submundo gay japonês. Apesar de profissional, a jovem mantém uma relação obsessiva com o proprietário do clube noturno onde trabalha, um homem que se relaciona com outra travesti que, por consequência, vive enciumada com a relação dos dois.. A proposta narrativa, ou seja, a maneira de contar tal história, apresenta flashbacks confusos não só para o espectador, mas para a personagem em questão. A intenção é clara, a confusão que sente aquele que assiste deve ser a mesma que a persona exibida. Somado a isso, Matsumoto justapõe sua habilidade documental em sua ficção
transgressora em sua temática – essa é, talvez, a primeira vez que vemos de maneira tão desnuda a realidade homossexual, em especial a transgenero, no cinema – e técnica. Portanto, a confusão do espectador se amplifica à medida que, além dos confusos flashbacks, cenas documentais sobre a difícil vida no submundo homossexual de um Japão ainda tradicional. Os paradigmas devem ser quebrados, assim propõe a Nubaru bagu. A documentação de Funeral das Rosas introduz ao filme algo que o faz estar além de uma ficção comum. Há uma metalinguagem representada por estas partes já ditas. A todo instante Matsumoto mistura de maneira excêntrica a história com o que os atores – desnudos da máscara de personagens – estão pensando da mesma. O constante embate faz com que o novo peça passagem ao clássico. Não só o cinema japonês deve ser modificado, mas o que ele mostra. Assim, a contra-cultura de Funeral das Rosas é clara a medida que busca quebrar paradigmas tanto narrativos – em sua forma técnica de contar a história – como temáticos. Pois bem, o que havia nos flashbacks de Eddie além de tal confusão? De maneira bastante nebulosa vemos os encontros de nosso personagem com um mundo de ausência paterna e estranhas relações com sua mãe. Contudo, Eddie guarda uma fotografia de sua família com seu pai, porém, de rosto queimado, ato feito por sua mãe. Esta memória estática guardada dentro de um livro intitulado “O Retorno do Pai”. Um complexo de Édipo as avessas – não é atoa a semelhança do nome de nosso personagem principal. Aqui temos uma travesti desejando o retorno de seu pai, em constante conflito com a mãe. Haveria de ser, talvez, um complexo de Elektra, se não fosse o constante
jogo de máscaras introduzido por Matsumoto. “Cada homem tem sua própria máscara, a qual esculpiu durante muito tempo. (...) As pessoas sempre usam máscaras ao enfrentar as demais. Apenas veem máscaras. Mesmo que as retirem, raras vezes suas faces expõem, pois pode haver uma segunda camada de máscaras.” A confusão dos mitos é proposital. A própria ideia do ser transgênero é a máscara mais aparente no filme. Há de se entender, porém, que a ideia de máscara não está associada ao falseamento do ser, mas da constante mudança pela qual o humano passa para introduzir-se socialmente e consigo mesmo. A máscara é, portanto, o que somos. Vestimos novas máscaras a cada dia e Eddie, em sua condição, a vestiu. Uma Édipo travesti. Ao nascer, uma coisa, ao construir sua existência uma nova máscara. Com um humor peculiar, induzido por uma trilha muitas vezes cômica e uma plasticidade que alterna cortes abruptos e linguagem cartunesca, a mistura da história de Eddie com o Mito vai ganhando contorno. O desejo inconsciente de Eddie proferido no livro que guarda a foto da família – “O Retorno do Pai” – enfim é realizado. Não houve, porém, qualquer retorno, esteve sempre ali. Cega por não ter percebido seu pai, Eddie automutila os olhos em meio ao julgamento de outros japoneses sem identidade, vestido de máscaras sociais que moralmente julgam aquilo que Eddie construiu em sua essência. Os olhares para o agora cego pretendem aniquilar a máscara e as individualidades. Philippe Leão Editor-chefe do Cineplot, crítico de cinema, palestrante, professor e Geógrafo.
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A Bela e a Fera e o mito da maldição “A Bela e a Fera”, conto inúmeras vezes parodiado e feito de pastiche nas mais linguagens da arte e da comunicação, aborda o mito em interpretações diferentes. Não são interpretações complexas, muito viáveis até mesmo para um espectador que busca a fonte do entretenimento na película
A Bela e a Fera França - 1946 Direção: Jean Cocteau, René Clément. Elenco: Jean Marais, Josette Day, Mila Parély, Michel Auclair. cineplot. 28
Em primeiro lugar, é bom lembrar que o mito está relacionado a um tipo de história fantástica, de heróis, deuses ou fadas, de mágica, geralmente com algum tipo de verdade em sua profundidade. “A Bela e a Fera” possui um formato em seu enredo, seja na literatura ou no cinema, que abriga justamente essa ideia de um fundo real, geralmente moralista, usando a mágica como roupagem.
Ademais, é preciso dizer que um dos mitos descritos abaixo não é válido para qualquer composição artística. “A Bela e a Fera”, seja em qualquer versão, acolhe um final de fábula, em que uma moral da história, à lá Esopo, é acionada para que faça o espectador refletir. Sendo subjetivo, é um aspecto que me incomoda bastante, em conceder moral, mas é inevitável pelo conhecimento paratextual da obra que será analisada aqui. De outro ponto de vista mitológico, lembramos do mito da maldição na história. Fazendo oposição com a benção, a maldição serve como uma adversidade, também, ao pacífico momento espiritual do indivíduo que, após ser atingido pelo ato maléfico sobrenatural, tem sua paz destruída. No
caso do filme, um homem guerreiro e muito bonito, o verdadeiro herói ocidental, é atingido por uma maldição em que ele é transformado em uma fera. A partir disso, um outro mito é criado, mas um tipo mitológico voltado aos personagens no interior da narrativa. É o mito da crença de um povoado em classificar a tal fera como um ser ruim, muito disso por causa das suas expressões tenebrosas e de seu castelo com uma decoração igualmente assustadora, arcaica e escura. Pegando um pouco do conceito de mito, há um fundo de verdade nisso, já que a magia fez com que o feroz homem-animal carregasse, como uma consequência, uma gigante ira contra os curiosos locais. Por fim, deve-se dizer que há o mito em toda a construção fantástica de “A Bela e a Fera”. Toda a estrutura de um conto de fadas é enfatizada na película, com elementos mágicos de castelo, uma representação de princesa e príncipe, o medo, a coragem, o bem contra o mal e personagens fantasiosos, como as personificações humanas de objetos inanimados: a vela, o bule, os bustos. O castelo, então, pode ser entendido através de um pensamento em que há uma personificação de vida naquele local. As paredes parecem ter olhos e ouvidos, é uma função panóptica a favor da fera que reina o castelo, em que a vigia é seguida, em determinados momentos, de punições. A decoração do castelo é brilhante, diga-se de passagem. A antropomorfização dos objetos condiz com o caráter assustador da mansão, aparentemente, assombrada. Há um estilo expressionista, de jogo de luz e sombra a favor do horror, e a música ajuda a criar a atmosfera macabra.
castelo. Quando entramos no lugar junto a um personagem, nos primeiros passos de um indivíduo na mansão da fera, o tic-tac do tempo em um som bastante grave é essencial para que haja o ambiente de suspense. A direção de arte é impressionante, com alguns adereços pontudos, lembrando a paisagem gótica, e, mais uma vez, ajudando na coerência e na afirmação do clima. A fera também é tenebrosa, muito bem caracterizada, sobretudo em figurinos demasiadamente chamativos. Uma pena que as atuações não sejam tão boas, não só sobre o homem-animal, mas sobre os outros personagens principais. Elas são caricatas demais, ainda que a proposta seja teatral. A tentativa de comicidade é escorregadia por haver muito exagero, longe da boa representação do suspense; quando há a necessidade de haver dramatização, a hipérbole volta a aparecer em vez de haver representações mais contidas. Um outro ponto ruim é a extensão da narrativa em diálogos entre os dois protagonistas. Os primeiros momentos são ótimos, em debates sobre aparência, por exemplo, mas depois ficam enjoados, cansam o ritmo, e voltam a ficar bons apenas na conclusão, mas só após um hiato de qualidade. Mesmo assim, a obra dirigida por Jean Cocteau e René Clément deve ser reconhecida por sua maior parte poética e as boas coordenações técnicas. Leonardo Carvalho Crítico de Cinema do Cineplot.
É interessante reparar no relógio do cineplot. 29
Medeia e a desmistificação da vilania feminina Na adaptação da mitológica tragédia grega, vemos a história de Medéia (Maria Callas), mulher que, após assassinar seu irmão, foge com Jasão (Giuseppe Gentile), seu grande amor. Um dia, Jasão abandona Medeia para casa-se com uma princesa. Inconformada com o abandono, Medeia recorre à seu avô, Helio, o Deus Sol, buscando vingança sobre seu ex-companheiro.
Medeia Itália - 1969 Direção: Pier Paolo Pasolini Elenco: Maria Callas, Massimo Girotti, Laurent Terzieff, Giuseppe Gentile, Margareth Clémenti & Paul Jabara
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Antes de estabelecer a paixão entre o casal protagonista, o italiano busca construir a evolução de Jasão. Trazendo monólogos do centauro vivido por Laurent Terzieff, o filme alterna diferentes momentos da vida de Jasão através de cortes simples, que vão desde a infância à vida adulta do rapaz, nos mostrando uma longa construção feita pelo ser fantástico através da vida do humano. Já Medeia, a principal do filme, só mostra as caras após a primeira meia hora de
projeção, já é, em sua primeira aparição, uma personagem pronta e grandiosa. Pasolini brinca com a relação do humano com o divino durante todo o filme. O sol e a lua, por exemplo, são presença constante em cenas da protagonista. Em certo momento, durante à noite, Medeia é incapaz de mover um móvel de lugar, demonstrando impotência. Em outras passagens, diante do sol (que, na mitologia, é seu avô, o deus Helio), a bela mulher chega a pedir por ajuda para tirar vida de terceiros e é atendida. Tal diferença nos mostra que, em sua hereditariedade semi-divina, Medeia encontra mais poder do que nos momentos em que sua parte humana domina. O poder e influência de Medeia estão presentes em outros momentos do filme. Cenas como a que Medeia dá ordens à um grupo de mulhe-
res enquanto se desloca em um grande salão, de um lado para o outro, enquanto todas as moças ao redor acompanham seus movimentos, sugere a força da manipulação da protagonista, que ali guia as mulheres. A força do que não é expresso, palpável ou verbalizado, inclusive, é um elemento chave do filme. A aproximação de Medeia e Jasão, por exemplo, ocorre em um momento em que o enquadramento coloca a cabeça da protagonista na frente de uma grande rachadura no chão, o que sugere sua fragilidade emocional e mental. Jasão, então, a conquista por estar ao seu lado no momento certo A relação entre o externo e o interno da protagonista também é construída pela iluminação. Notamos, por exemplo, que em alguns momentos o rosto de Medeia é dividido em luz e sombra, enaltecendo os dois lados da personagem de Maria Callas. Já nos enquadramentos e movimentos, Pasolini alterna entre planos gerais que inserem seus personagens no meio de belos cenários (naturais e artificiais) e outros que adotam uma estética quase documental, passeando pelos rostos de todos que estão em cena. A câmera, aqui, é quase uma entidade viva e independente, um ser que nos permite ver por seus olhos a tragédia retratada.
meira metade do filme traz pouquíssimos diálogos (a não ser os monólogos do centauro que abrem o filme), e confiam na força das imagens para funcionar. Auxiliando, a estranhíssima (mas linda) trilha musical é eficiente, principalmente pelas melodias que seguem um tom árabe (principalmente pela presença de uma sitar) que não soa tão encaixada no filme, o que é justamente o objetivo de Pasolini, desejando causar estranheza no público. Não tendo sido bem recebido na época de seu lançamento, Medeia acabou se tornando um filme com certo reconhecimento posteriormente. Pasolini aqui aproveita a tragédia grega para construir uma história sobre poder e vingança, onde o humano e o divino se cruzam. O consciente e o inconsciente lutam pelo poder através da construção do arquétipo da vilania feminina. Tudo harmonizado por uma narrativa poética e subjetiva, onde as palavras cedem lugar às imagens e o mito ganha vida. Matheus Fiore Crítico de Cinema no Cineplot e fundador do Portal Plano Aberto.
Pasolini também foca na desmistificação da figura feminina como vilã, pois, assim como na história de Medusa, Medeia é demonizada e condenada por agir como a humana que é. A narrativa tem o cuidado de construir todo o esforço de Medeia para conquistar Jasão para, posteriormente, mostrar o egoísmo, ganância e descaso que levam o rapaz a trocar sua amada por uma princesa. As atitudes revoltadas da protagonista, então, não são maldades planejadas, mas respostas aos golpes emocionais que sofreu, que fortalecem sua humanidade sem a errônea pretensão de apontar heróis e vilões. Pasolini desconstrói o conceito platônico de “verdade” e nos mostra que o mundo não é (e nunca foi) tão binário quanto pensamos. Há tons de cinza.
A estrutura de Medeia é peculiar. A pri-
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PASOLINI E O MITO QUEM É O ESPECIALISTA? Romero Venâncio, professor e pesquisador no Departamento de Filosofia e Programa de Pós-Graduação em Cinema da Universidade Federal do Sergipe.
O tema do Mito é um marco na obra escrita e cinematográfica do italiano P. P. Pasolini. Tomo referência para justificar essa afirmação uma longa entrevista de Pasolini publicada em português com o seguinte título: “As últimas palavras do herege” onde encontramos no capitulo - “elogio da barbárie, nostalgia do sagrado” – uma breve síntese do seu pensamento sobre o mito/sagrado. Estamos num momento privilegiado para os estudos da obra de Pasolini no Brasil atual. Seus filmes estão quase todos em dvd pela Versátil home vídeo, sua obra continua sendo comentada em dissertações, ensaios, artigos, eventos e polêmicas. Saiu em 2015 uma coletânea de poesias suas organizadas cronologicamente por Alfonso Berardinelli e Mauricio Santana e no mesmo ano sai uma rara biografia do poeta italiano assinada por René de Ceccatty pela editora L& PM editores. Nesse sentido temos uma ideia da obra e da importância desse intelectual italiano que marcou época na sua Itália e se tornou referência para toda uma geração. Uma posição fundamental de Pasolini: “Defendo o sagrado porque é a parte do homem que menos resiste à profanação do poder, que é a mais ameaçada pelas instituições das igrejas” Aqui temos o núcleo central da posição do escritor e cineasta italiano: uma leitura “política” da dimensão mítica fundamental do humano: o sagrado. Há uma forte influência nesta leitura do historiador das religiões Mircea Elia-
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de. Primeiro, o sagrado não se confundo com Religião instituída, transcende. É força originária. A obra poética e cinematográfica de Pasolini tá carregada dessa concepção... “As cinzas de Gramsci...”, “as ruinas de refazer a vida”, “entre dois mundos, a trégua em que não entramos...”, “entre os míseros galpões...” – versos e trechos poderiam se multiplicar aqui e teríamos uma ideia de como o mito em sua forma “arcaica” (de arché) tem sentido profundo na obra do poeta italiano... Porém, a síntese melhor dessa posição do poeta está no poema: “Eu sou a força do passado. Só na tradição consiste meu amor. Venho dos escombros, das Igrejas, Dos retábulos, das aldeias Abandonadas nos Alpeninos... Eu, feto adulto, perambulo Mais que qualquer moderno A buscar irmãos que não existem mais.” O Mito em Pasolini tem essa dialética: “força do passado” e “mais que qualquer moderno”. O passado para o poeta não é apenas aquilo que passou, mas aqui que permanece enquanto obra subterrânea. Somos levados a uma situação nova: a “Nostalgia do sagrado” diante de um mundo pobre e desencantado desse “neo-capitalismo”, desses “jovens tristes”, das “cinzas de Gramsci” – Só um passado e sua força nos redime... A inflação de fetichismos religiosos ou não dessa lógica do Capital, destrói o sagrado para Pasolini. Religião demais não significa sa-
grado, para o nosso poeta... Desde o seu primeiro filme “Accattone”, que o sentido do sagrado/mito se exprime através da “fascinação física” que nos remete a um sentimento pela terra e pelos valores profundos que dela emanam. O cinema de Pasolini é marcado por uma representação em uma “forma obsessiva de topologia”. Reparemos: aqui cinema e poesia se encontram num “cinema de poesia” na radicalidade de Pasolini. Moderno e contra o moderno: “Muito simplesmente, sou alérgico à civilização tecnológica, ao nosso mundo racional demais.” – Pasolini usa toda sua capacidade de criação estética para denunciar esse esvaziamento de um “sagrado originário” (aquele que matem sua força mítica). A posição de Pasolini sobre o Mito é, radicalmente, política em pleno mundo moderno e numa Itália que se torna atual do capitalismo central numa situação trágica. Diz Pasolini: “É preciso restituir a este decadentismo o seu sentido histórico e não moralista. Neste sentido, ele não é nem positivo nem negativo. É simplesmente a expressão de uma recusa, da angústia diante da verdadeira decadência saída do binômio razão-pragma, divindade bifronte da burguesia.” Temos aqui a leitura de que o poeta faz do seu (nosso!) mundo contemporâneo e sua posição crítica diante do que olha, experimenta e reage. Recuperar a força mítica não é cair num moralismo reacionário tolo, mas assumir uma força que vem e vive no arcaico e que nos impulsiona enquanto sentido para uma vida cada vez mais distante de algum sentido... Sendo assim, o poeta italiano entra naquela lista de pensadores, antropólogos e historiadores do Século XX que assumiram a batalha intelectual de recuperar a palavra “Mito”, livrando-a de uma anacronismo da leitura do positivismo e de tecnocratas das academias que assumiram uma leitura teleológica da burguesia triunfante. Na obra de Pasolini, o mito tem força revolucionária.
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HAXAN e a moral patriarcal (ou a impossibilidade de uma vida livre) Em estilo semidocumental, o narrador irá construir primeiramente a defesa de seus argumentos, amparado por uma seleção de suportesimagéticos e enxertos textuais que favoreçam a visualização do espectador de como certas crenças foram pensadas por quem as praticava ou via estudo de especialistas. Ao longo do filme teremos a representação cênica dos fatos históricos, assim como sua posterior ruptura.
HAXAN Dinamarca - 1922 Direção: Benjamin Christensen Elenco: Astrid Holm; Benjamin Christensen; Clara Pontoppidan; Elith Pio; Emmy Schonfeld; John Andersen; Tora
Teje
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A abordagem cultural e histórica que o autor nos propõe se inicia por um viés anti religioso, onde afirma a necessidade do homem em explicar aquilo que lhe é estranho por meios místicos, criando assim um saber que cobre a lacuna de uma real ignorância sobre aquilo que se tenta explicar. Resultado de um medo em lidar com a alteridade, surgem crenças em demônios e
espíritos malignos como um alerta àquilo que não pode ser compreendido por vias racionais. Ilustrações que nos são passadas pelo autor apresentam criaturas antropomórficas produzidas nas antigas culturas egípcias e persa, como símbolo de uma mistificação ancestral adotada de modo universalizante pelo homem. A impossibilidade de um fundamento científico maduro privilegiaria a explicação mística e/ou religiosa de mundo que logo nos é centrada, ainda no primeiro dos sete capítulos, na temática da bruxaria e em todo um aparato moral assegurado pela Igreja na perpetuação de um discurso místico baseado na ignorância e no preconceito, condenando tudo aquilo que não lhe é espelho aos piores tipos de experiência, que levariam à tortura e à morte.
Os “objetos” privilegiados onde recairá a ação violenta institucionalizada são, é claro, os desprivilegiados. Isso nos remete a um evidente recorte de classe, onde os miseráveis já serão suspeitos a priori e a um evidente recorte de gênero, onde o estranhamento em relação a uma “essência” feminina (ou, se preferirem, um devir feminino) fará sangrar muitas mulheres. Cabe lembrar que os agentes dessa carnificina religiosa são todos homens e usam de seu saber moral para condenar àquilo que lhes é estranho. Por mais que homens também sejam condenados por participações satanistas é na mulher que percebemos a figura central onde recairá essa violência e um saber que se inscreve em seus corpos. Suas supostas reuniões com outras mulheres já suscitam uma suspeita desproporcional, tomando quase como certo um encontro visando o mal, a discórdia e um uso livre de suas sexualidades, algo visto com pavor e associado a uma conjugação carnal com o próprio satanás em suas orgias rituais. O medo frente ao desconhecido como legitimador de todas as violências. O homem em seu aspecto mais paranoico e reativo, destruindo tudo que não pode apreender e reter em sua jaula de aço. Algo distante de nós? Acho que não. Benjamin Christensen, diretor e roteirista do filme, também não enxerga essa distância e promove uma ruptura temporal que nos leva para seu tempo presente, onde tece uma crítica às instituições psiquiátricas que, agora em nome da ciência, ainda são alimentados por toda uma moral social ainda na justificação de uma violência perante aquilo que não compreende, mais um forte e evidente sinal de falta de empatia. Aqui ainda temos o papel predominante do homem enquanto juiz da moral e único possível detentor de um saber médico que clinica patologicamente (podemos ler das duas maneiras: um anseio patológico em clinicar e
diagnosticar aquilo que escapa de sua apreensão normativa; e a mais simples, a de diagnosticar aquilo que lhe escapa como “patologia”) tudo que foge de sua percepção de normalidade. E a mulher? Esta é a histérica agora. Não que o fenômeno da histeria nas mulheres fosse exclusivamente um discurso, também não devemos entender como um fenômeno que se dá exclusivamente nelas. E, caso haja um predomínio de mulheres em casos diagnosticados como de histeria isso merece no mínimo duas explicações. A primeira seria o mesmo preconceito judicativo que levou inúmeras mulheres à fogueira no passado. A segunda seria reflexo de um trauma em muito estimulado pelas violências de uma sociedade ainda eminentemente patriarcal. Há então uma virada intelectual preciosa no decorrer do filme por volta de seus 20 minutos finais, que se inicia com a brincadeira que o autor faz sobre sua própria narrativa focando na representação que fez sobre o cotidiano dessas mulheres perseguidas, apresentando-as agora como atrizes, seres pensantes e ativos, seja enquanto profissionais ou como agentes de sua própria autorepresentação enquanto mulher. No decorrer final temos o deslocamento da crítica da religião tomando-a como sobrevivência de um resquício de pensamento primitivo afastado da ciência para uma crítica do próprio uso da ciência como mais um dos modos de se legitimar a moral e a violência por meio de uma ignorância latente no que diz respeito à empatia: a fina sabedoria de saber se colocar no lugar do outro. Fernando Boechat Cientista Social e mestrando em Artes Visuais. Crítico de Cinema no Cineplot.
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Contos da Lua Vaga e a uniformidade de pensamento Nesta obra de Kenji Mizoguchi, acompanhamos dois personagens e suas respectivas famílias, Genjuro e Tobei. Durante um período extremamente conturbado devido à guerra, os personagens se vêem obrigados a abandonar suas vidas em seus pequenos vilarejos para fugir da morte certa. Em certo ponto da fuga, porém, ambos acabam tendo que abandonar suas famílias. Genjuro e Tobei, então, vão em busca de realizar seus sonhos. O primeiro almeja enriquecer e no caminho acaba se apaixonando pela misteriosa Lady Wasaka. O segundo tenta se tornar um respeitado samurai e, cego por seus desejos, acaba deixando de lado sua esposa.
Contos da Lua Vaga Direção: Kenji Mizoguchi Japão - 1953 Elenco: Machiko Kyoo, Mitsuko Mito, Kinuyo Tanaka, Masayuki Mori & Eitaro Ozaa
Inicialmente, a obra finca-se na realidade. Os planos de cineplot. 38
movimentos discretos e as seguidas cenas que acompanham os personagens trabalhando e comentando sobre suas dificuldades financeiras crava os pés de Contos da Lua Vaga no mundo real. Mas quando os personagens chegam no rio, a narrativa é coberta por um véu onírico e lúdico. Não só figuras com aparências quase sobrenaturais passam a fazer parte da narrativa, como os protagonistas passam a se portar de forma mais leve, algo que é acompanhado pelos enquadramentos mais soltos, com movimentos constantes mas sempre suaves. O tom fantástico está presente também nas cenas de guerra. Ao inserir um verdadeiro coro de sofrimento no fundo (os gritos de dor dos que participam da guerra), como se os personagens estivessem
passando pelo purgatório, a obra torna sua narrativa ainda mais imersa em acontecimentos dignos de um sonho (ou pesadelo?). Até nos cenários há a sugestão do fantástico. Em algumas cenas de Wasaka, por exemplo, notamos como os planos médios que a enquadram sentada em seu lar fazem suas paredes parecerem uma paisagem graças às pinturas de montanhas, rios e nuvens. Pelo fato de tais artes terem uma estilização infantilizada, aprofundam ainda mais a aura onírica do filme. Na trama de Tobei, notamos como Mizoguchi utiliza seu anseio por tornar-se um samurai como um símbolo da necessidade de ascensão social. Muito além da imponência pela habilidade de combate, os samurais eram, afinal, os pilares morais da sociedade japonesa naquele período, servindo de espelho para os outros. O curioso é que, ao focar-se em tornar-se um grande exemplo, como eles, Tobei se desvirtua de sua própria personalidade, não percebendo como sua trajetória se torna um caminho de autodestruição. Sua esposa, por exemplo, é abandonada, acaba sendo estuprada e torna-se uma prostituta para sobreviver, totalmente desamparada por seu esposo. Já em Genjuro, que acaba se apaixonando por uma figura fantasmagórica como Wasaka, vemos a exteriorização dos sentimentos e instintos reprimidos. Historicamente, o Japão é uma nação muito controladora e disciplinadora, e a relação deste personagem com a figura de Wasaka pode ser vista até como uma projeção de seus desejos inibidos. A facilidade com que o personagem se desvirtua de sua meta inicial (que era enriquecer) é uma forma de mostrar o quão rasa era sua motivação, que desmoronou diante de uma bela mulher. Mizoguchi entrega uma conclusão dura e muito simbólica. A obra abre com uma pa-
norâmica que percorre o vilarejo onde os personagens residem. Na conclusão, o mesmo movimento de câmera registra o mesmo vilarejo. Os personagens, então, estão na mesma situação do começo do filme. Seus esforços foram em vão. Suas motivações e sonhos os levaram ao sucesso. Genjuro termina o filme ainda sem ter sua riqueza, mas dessa vez, sem Miyagi ao seu lado. Sua obsessão o cegou e, quando percebeu o resultado de suas escolhas, já era tarde para salvar sua amada. Os diálogos finais com o fantasma de Miyagi são ainda mais duros: resta ao personagem aceitar seu trágico destino e seguir sua melancólica vida. Dura e de ordem moral, a conclusão é condizente com a narrativa, comovendo pelo sofrimento de seus personagens, impotentes diante de seu destino, que é permanecer onde sempre estiveram por toda sua vida, sem o poder de realizar o que sonhavam. Contos da Lua Vaga é uma lúdica alegoria sobre a manutenção de um pensamento uniforme existente no Japão, que cria no povo a mentalidade de aceitar situações adversas por crer que não é possível ir além. “Eu não morri. Ainda estou ao seu lado. Sua desilusão chegou ao fim Você é você mesmo novamente E está no lugar onde pertence Onde seu trabalho lhe espera” Matheus Fiore Crítico de Cinema no Cineplot e fundador do Portal Plano Aberto.
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Cena do Lago em Contos da Lua Vaga - Kenji Mizoguchi (1953)
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A Sociedade vista pela Ótica de Kuroneko O Japão sempre foi conhecido por seus mitos, lendas e superstições; tais elementos ultrapassam gerações e até hoje possuem forte apelo popular e social na nação nipônica. Dentro da área das artes, isso sempre influenciou os artistas e, obviamente, com o cinema não é diferente. Quando se fala em lendas, um dos primeiros nomes que podemos pensar é Kaneto Shindô. Shindô sempre esteve preocupado em falar sobre a sociedade, os mitos e o ser humano - retratando-o da forma mais verdadeira possível.
O Gato Preto Direção: Kaneto Shindo Japão - 1968 Elenco: Hideo Kanze; Kei Sato; Kichiemon Nakamura; Kiwako Taichi; Nobuko Otowa
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Kuroneko tem como estrutura uma antiga lenda japonesa. Com a leitura e interpretação de Shindô, temos uma análise da sociedade Japonesa - clássica e contemporânea ao mesmo tempo -, que nos faz repensar os próprios seres humanos que ali habitam, suas ações e particularidades.
Mais do que a lenda, a “presença” do ser humano na sociedade é o ponto chave de Kuroneko. Notamos desde o princípio do filme que a guerra trouxe e evidenciou suas piores características possíveis, resultou naquilo que o ser humano tem de pior. As “necessidades“, mostram a verdadeira faceta de alguns, que permitem que eles ultrapassem barreiras e mostre seu verdadeiro eu, algo que sem a guerra não seria possível, pois em teoria somos “regidos” por leis. O que para alguns pode ser a verdadeira vontade humana, no final das contas nos torna como outros animais. Animais estes diante dos quais tentamos a todos custo provar nossa superioridade. Logo em uma cena introdutória, Shindô faz com que conheçamos a sociedade em sua relação naturalista: Os samurais invadem a casa, se alimentam de toda comida que alcançam e, sem pes-
tanejar, estupram e matam as duas mulheres que ali vivem. Fazem-no como ritual, como se estar vivendo uma guerra os permitisse. A presença do gato, seus miados, o fogo que toma conta da casa inserem o elemento mítico, a lenda. O gato preto pode ressoar para alguns como a culpa, o que contradiz a própria maldade do ser humano e enaltece sua fajuta superioridade. A guerra também traz consigo outros problemas: tira de suas famílias homens que não estão e nunca estiveram preparados para matar - como é o caso do protagonista. A guerra muda-o, faz com que sua percepção do mundo seja alterada, mas o baque principal ocorre quando descobre que sua mãe e esposa foram mortas durante a guerra - nunca explicitamente. Seu triunfo como guerreiro samurai é como uma redenção perante a guerra, mesmo que isso não acalme seu coração calejado. Suas inúmeras recusas em assassinar os demônios, como foi ordenado, mais que pelo apelo sentimental. Através do apelo humano, há sempre uma questão social embutida, como a demonstração de insignificância dos camponeses, que são toda a base da sociedade feudal japonesa. Shindô consegue criticar tudo isso, e o faz utilizando uma lenda como base, como mencionei noutro momento. Como muitos poderiam pensar, ele não é pessimista ou cruel, ele lida com a realidade. Existem também momentos de demonstração de afeto, como o sacrifício da esposa do protagonista, apenas em prol de estar com ele durante alguns dias. O amor também existe. Ao mesmo tempo que a crítica está presente o tempo todo, também existem resquícios do que podemos ler como esperança. Esse é o cinema de Shindô, ele retrata o mundo como é. E o faz da maneira mais visceral e verossímil possível. Pode ser uma forma de
mostrar sua própria esperança, ou no mínimo tentar resgatar os lados positivos de nossa sociedade. Criticar e focar no lado negativo pode ser tão proveitoso quanto enaltecer o pouco de bondade que nos resta, e essa é a máxima do cinema de Shindô. Shindô também fez assim em Onibaba. Utilizou de um mito para mostrar problemas bem maiores, mais complexos, mostrou o quão cruéis nós seres humanos podemos ser - ou somos? Se em Onibaba Shindo mostrou como a sociedade pode vir a se tornar, em Kuroneko ele a mostra tal como realmente é.
Matheus Petris Crítico de Cinema no Cineplot
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Édipo Rei Direção: Pier Paolo Pasolini Itália - 1967 Elenco: Ahmed Belhachmi; Alida Valli; Carmelo Bene; Francesco Leonetti; Franco Citti; Giandomenico Davoli; Giovanni Ivan Scratuglia; Julian Beck; Laura Betti; Luciano Bartoli; Ninetto Davoli; Silvana Mangano
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Édipo Rei: Solidão e abandono
Temos a interdição de um objeto como motor para o desenvolvimento do desejo. Interdição daquilo que se deseja aumentando o desejo que se tem pela coisa à medida que aumenta sua interdição. Há também a proibição enquanto lei, uma lei que proíbe o incesto no caso. Recalca-se assim o desejo no inconsciente e uma busca por esse objeto perdido passa a te guiar, claro, inconscientemente. Sim, o velho caso de Édipo. Nos 10 minutos inicias do filme podemos perceber algumas escolhas de enquadramento e posicionamento da câmera que reiteram uma perspectiva psicanalítica de abordar o arquétipo (universal?) de Édipo. Devo sublinhar, portanto, que não me aterei com fidelidade conceitual e me darei à liberdade de utilizar livremente meus parcos conhecimentos alinhados a uma visão subjetivista de mundo. Comecemos então. A narrativa do filme é não linear, a saber, não ocorre através de uma sucessão cronológica de acontecimentos. Se assim o fosse, x, x’, x” representariam o início do filme (x), seu desenvolvimento em um tempo posterior (x’) e o desfecho como um ponto posterior aos outros dois (x”). Não é o caso desta película. Começamos o primeiro plano do filme com uma câmera vacilante que focaliza um monolito onde se lê “Tebas”, para nos próximos dois planos já sermos situados em um momento mais atual em relação ao ano de filmagem, mesmo que seguramente represente um passado em relação a este. O momento intermediário revela o nascimento de um menino em planos mais distanciados como a de um espectador da história, mas se alterna para planos que remetem ao ponto de vista do menino, ainda uma criança de colo, que no momento em que suga os peitos da mãe é logo apresentado imagens de baixo para cima enquadrando as árvores em combinação com o céu de forma que remete a uma imagem abstrata, ainda não capaz de diferenciações como na vida adulta, e principalmente a um sentimento oceânico e de entrega ao prazer, tendo a mãe como veículo para alcançar esta sensação trans-
bordante. Em uma atmosfera sombria (em seu termo subjetivo, mas também alcançado pela escolha de uma iluminação escassa, por vezes em penumbra) sentimos uma angústia que envolve o filho, mãe e pai. Mas principalmente, e privilegiadamente pela narrativa, temos o pequeno “Édipo”* pressentindo um mal que lhe assolará. Sua mãe parece adotar uma postura ambígua, ao mesmo tempo em que é fonte de um prazer intenso e supre suas necessidades fisiológicas, dando-lhe alimento através de seu próprio corpo e garantindo-lhe a vida, relaciona-se de forma entregue a seu pai, que passa a ser um obstáculo para realização em tempo integral de seu desejo. Para piorar a situação, temos neste obstáculo natural que é seu pai, uma pessoa que manifestamente o odeia, algo que na verdade é escondido de sua mãe, mas que aparece muito claramente nas expressões de forte incômodo e raiva que este tem para com o pequeno menino. De certo modo a estrutura afetiva de seu pai é similar à dele, enquanto o pequeno quer a mãe inteiramente para si, seu pai quer sua esposa de modo integral, sem que ela precise dividir seu tempo para cuidar da criança. Logo após os primeiros planos do filme teremos uma elipse temporal que nos arremessará em um tempo mítico, na qual a criança é amarrada como um animal, no cabo de madeira da ferramenta de um agricultor e depois deixada à morte sobre a areia do deserto. Experimentamos aqui, através desse brusco hiato temporal, algo que já se sinalizava no primeiro plano do filme: o reencontro com um vestígio ancestral. Exprimindo assim a vivência daquela criança tomando por base sua origem estrutural (ou a origem que a estrutura), a realização imensurável de uma experiência que agora se reencontra com seu mito fundador. Um pastor o salva da morte e o entrega direto nas mãos do rei de Corinto. Mesmo com o amor de seus novos pais, Édipo é atormentado frequentemente por pesadelos e pressente que há algo
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errado em sua vida e que deve consultar o Oráculo, pois os deuses parecem querer lhe dizer algo. É através desse sentimento de inadequação, mesmo nas condições mais favoráveis possíveis, que ele irá buscar uma resposta para suas angústias. Sai de Corinto em direção a Delfos e de lá ouve que seu destino é matar seu pai e se deitar e casar com sua mãe. Desolado, parte de modo infantil, cobrindo seus olhos e girando para tomar um caminho aleatório e enganar o destino (como se estivesse brincando de cabra cega), chegando finalmente à Tebas onde concretiza seu destino. “Pobre Édipo, talvez nunca saiba quem é”, foi o que disse sua mãe (e esposa) Jocasta logo que descobriu a verdade percebida por Édipo e também encaminhada de ser revelada pelo mesmo destino que já havia lhe imposto à tragédia. Todo um semblante de normalidade é rompido se aproximando assim do real, onde toda aquela angústia inconsciente agora retornaria de uma forma visceral que levaria posteriormente Jocasta a cometer suicídio e Édipo a se cegar e a furar seus ouvidos para não ouvir mais verdades após vislumbrar o corpo nu enforcado de sua mãe. A frase ainda dialoga com a incessante busca de Édipo por construir seu próprio caminho e seu inevitável fracasso nessa empreitada. Mesmo ao perceber a verdade, ainda beija eroticamente Jocasta, num ato de desespero por perceber que está fadado a perder aquela que foi seu único objeto de desejo. Esta por sua vez fitava o vazio com uma expressão atônita. Pouco antes da verdade ser revelada aos dois, o rosto de Jocasta aparecia enquadrado de forma que metade estava luminoso e a outra metade sombreado, denotando os dois lados que ela desempenhava em sua vida: uma fonte de prazer e de desgraça. E por mais que Édipo tenha tido tantas facilidades na vida (coroado rei duas vezes!), em uma época em que todos os outros eram miseráveis, mesmo assim foi um dos mais infelizes dentre os homens. É como se essa violência primeira que marcou seu nascimento este o carregasse dentro de si como uma maldição de início inconsciente e depois insuportável demais para seguir com a vida de forma normal, passando a perambular como um zumbi e vivendo de esmolas.
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O final é enigmático, e agora sim retrata o contemporâneo, com o mesmo ator que representou Édipo na Antiguidade agora como pedinte, espécie de espectador cego na vida acompanhado pelo até então mensageiro de Tebas, que agora desempenha papel de guia e fiel escudeiro. A câmera percorre a paisagem de modo contemplativo e temos uma trilha sonora serena e melancólica encerrando a película. Ao refletir sobre o filme eu passei a me questionar se a busca do desejo é o que por fim leva a ruína do homem. Édipo estava decidido a seguir seu próprio destino, ter autonomia e uma vida fora das facilidades que o destino havia lhe propiciado ao ser adotado por um rei. Logo ele, filho genético de um rei, é adotado por outro rei e mata seu próprio sem saber conscientemente e torna-se, enfim, rei. A cena em que ele mata seu pai se dá por um motivo quase gratuito e isso foi uma decisão muito acertada do diretor. Enquanto ele caminhava pela estrada de terra seu pai vinha em uma carruagem acompanhada de soldados e ordenou que ele saísse de seu caminho. Mesmo não sendo uma ordem em tom tão rude, Édipo foi tomado por uma grande revolta, é como se no fundo de seu íntimo ele houvesse reconhecido seu pai e seu tom de voz tivesse trazido à tona uma série de sentimentos reprimidos, inconscientes, que agora entravam em erupção mesmo que ele continuasse a não saber conscientemente o motivo de sua revolta em tal grau. O motivo de tanta desgraça e, principalmente, a dúvida se Édipo poderia ter seguido outro caminho menos infeliz fica tão nebuloso quanto o desfecho do filme.
Fernando Boechat Cientista Social e mestrando em Artes Visuais. Crítico de Cinema no Cineplot.
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Cena do Ceifador em O Vampiro - Carl Theodor Dreyer Uma entre muitas das representações da presença da morte.
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O Imaginário sobre Vampiros em Dryer O mito dos vampiros e das criaturas sugadoras de sangue é tão antigo quanto a própria humanidade. Surgidos a partir das dúvidas em relação à morte e seus processos e, até mesmo, pela questão fundamental que assombra o homem: de onde viemos e para onde vamos? Como não sabemos, definitivamente, o que acontece conosco após a morte surge o medo dos mortos que retornam – entre eles os vampiros – e que abundam como lendas e mitos de assombrações e monstros em todas as civilizações e épocas até nossa atualidade informatizada em que, teoricamente, assombrações já deveriam ter sido “desmascaradas”. Por conta das transmissões orais em cada geração, os vampiros permaneceram presentes até serem apropriados pela literatura gótica do século XIX e, mais tarde, no cinema. Há registros de filmes tendo vampiros como personagens desde o início do século XX. Entre os primeiros longas metragens está o clássico Nosferatu de Friedrich Murnau, lançado em 1922. Desde então, o vampiro é figura constante no cinema em diferentes adaptações. Contudo nosso foco aqui é Vampyr lançado em 1932 e dirigido por Carl Theodor Dreyer. Este é o primeiro filme sonoriO Vampiro zado de Dreyer, utilizando de Direção: C. T. Dreyer grandes intromissões de textos devido a sua natureza dos filmes mudos – Vampiro foi filmado Dinamarca - 1932 na transição da Era do Som. Os diálogos no filme são mínimos, Elenco: Julian West; Albert restritos ao necessário e foram Bras; Henriette Gégravados em três diferentes rard; Jane Mora; Jan idiomas: francês, alemão e inHieronimko; Maurice glês, o que demandou três difeSchutz; Rena Mandel; rentes edições e dublagens para Sybille Schmitz permitir a sincronia.
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Vampyr foi baseado na obra Carmilla, do escritor Sheridan Le Fanu, publicada em 1872, ou seja, 25 anos antes de Bram Stoker publicar Drácula. Entretanto, Dreyer usou Carmilla somente como ponto inicial para sua história que, ao longo do filme, sofre inúmeras alterações. “Esta é a história das estranhas aventuras do jovem Allan Gray, que se envolveu em estudos sobre demônios e vampiros. Mergulhado em superstições de séculos passados, ele se tornou um sonhador para quem a linha entre o real e o sobrenatural se tornou indistinta. Suas peregrinações sem rumo o levaram, numa noite, a uma isolada cidade chamada Courtempierre, situada à beira de um rio.” - Com este texto inicia Vampyr. Todo o filme é construído numa atmosfera de sonho, ou melhor, de pesadelo que angustia o espectador por sua incoerência e rupturas narrativas que acabam por causar estranhamento. Apesar disto e, provavelmente por conta disto, assisti-lo se torna uma experiência única. É mantida uma atmosfera constante de tensão e suspense, afinal o que está acontecendo é real ou o protagonista, Allan Gray, está sonhando já que a história inicia dizendo que ele é um sonhador? Allan surge caminhando a beira de um rio com uma rede de caçar borboletas, uma representação do sonhador, idealista, caçador de sonhos. Logo encontra uma pousada e, enquanto aguarda atenderem à porta, vê um homem no píer tocando um sino para chamar o barco. O homem já é idoso e carrega uma foice. Allan olha para ele assustado e ao chegar ao quarto, vê-o pela janela novamente e a fecha. Ao observar o homem pensamos imediatamente no ceifador. Estaria ele chamando o barco de Caronte? O famoso barqueiro da mitologia grega que
transporta os mortos para o submundo de Hades atravessando os rios Estige e Aqueronte? Ao fechar as cortinas e examinar o quarto em que está hospedado, Allan observa um quadro na parede que mostra um moribundo em seu leito tendo um esqueleto à sua cabeceira, eis mais uma forma de representação da morte. Estes momentos já dão o tom do filme e soam como um aviso, a morte espreita aquele lugar e nele a algo de maligno e sinistro.
Seu sono é agitado e difícil por conta de uma sensação crescente e inexplicável de medo. No meio da noite, sua porta é aberta – ele a havia chaveado e vê a chave sendo girada na fechadura – e um homem entra em seu quarto, o encara e diz: - Ela não deve morrer. Após isto deixa em sua mesa um pacote com um aviso de que só deve ser aberto depois que ele morrer. Sai do quarto e fecha novamente a porta atrás de si. Sem entender o que está acontecendo, um assustado Allan examina o pacote e decide buscar explicações. E os fenômenos inexplicáveis continuam e, a partir daí, ele é sugado para uma série de situações bizarras e assustadoras. Ao caminhar a beira do rio, ele observa uma sombra do outro lado da margem, mas não há sombra a projetá-la. Logo depois, chega a um prédio que assiste um animado baile de sombras também sem corpos a projetá-las, além de uma sombra de um soldado que vaga até chegar ao corpo ao qual pertence.
Este trabalho magistral em luz e sombras tem uma forte influência do expressionismo alemão. A atmosfera do filme, angustiante e onírica, traz elementos do surrealismo. Além disto, há também as questões das superstições e mitos em relação as sombras, há antigas crenças de que o que é projetado é a alma, portanto, as sombras que dançam sem haver o que as projete remetem a ideia de serem almas errantes, mortos que estão vagando que nas antigas lendas também podem se transformar em vampiros. Todo aquele que morre sem os sacramentos, sem os ritos adequados, se suicida ou é verdadeiramente mal em vida, ao morrer, pode se transformar em um vampiro e voltar para assombrar os vivos, pois é um ser das trevas.
Dreyer utilizou-se do conhecimento de antigas lendas que explicavam o vampiro por diversos vieses, ele é um morto retornado, uma alma que vaga em busca de vítimas por não ter tido a paz após a morte. Todo tipo de morto pode ser um vampiro, não somente aqueles que são mordidos por outro. Quando Allan encontra uma casa afastada e isolada, descobre que o homem que visitou seu quarto vive lá com suas duas filhas e alguns servos, sendo que uma delas está gravemente doente. Ao chegar, Allan vê o homem ser morto pela sombra do soldado, após isto ele decide abrir o pacote e descobre que é um livro sobre vampiros. Há nele explicações sobre o que são os
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vampiros, como se alimentam e como identificar suas vítimas.
O livro é uma compilação de fatos e relatos que falam sobre a antiga mitologia que foi deixada para trás e esquecida pelo cinema. Muitas das representações atuais, sequer existem nas lendas ou foram distorcidas. Em Vampyr o vampiro é destruído de acordo com as instruções do livro: uma estaca é atravessada em seu peito enquanto ele está em seu túmulo para que morra definitivamente. Nos relatos antigos era necessário atravessar uma estaca no corpo até que alcançasse a terra, não somente o coração. A ideia era prender o corpo à terra, pois, sendo o vampiro um morto que retornava, se ele estivesse preso ao chão não conseguiria sair da tumba. O filme é repleto de metáforas e simbolismos, além de trazer uma clara representação maniqueísta da luta do bem contra o mal absoluto, os seres das trevas (vampiro, espíritos errantes em busca da paz e o médico que vendeu sua alma). A narrativa é a jornada do herói mitológico que vai ao submundo, passa nos testes e retorna com a recompensa: Leone é salva e Gisele é resgatada. A parte final é emblemática, mostra Allan e Gisele atravessando o rio em um barco envoltos em uma densa neblina tentando encontrar o caminho até a margem. Quando finalmente conse-
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guem desembarcar, caminham em direção aos raios do sol que despontam entre as arvores. Não há como não lembrar os diversos heróis gregos que retornam dos domínios de Hades. É a luz que, enfim, vence as trevas.
Enfim, Vampyr é uma obra subestimada de Dreyer que é muito mais lembrado por clássicos como A paixão de Joana D’arc (1928). Entretanto esta obra é de uma beleza ímpar por seus jogos de luz e sombra, sua atmosfera de sonho e principalmente, a angústia que transmite ao espectador, sendo um excelente representante do gênero terror.
Mayte Vieira Doutoranda em História na UFPR, pesquisadora sobre imaginário e vampiros no cinema. Site: www.mitoseimaginario.com.br
“O mito do vampiro, seja literário ou cinematográfico, se mantém sobre a tríade: sangue, sedução e morte.” - Claude Fierobe
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A sombra dos ancestrais esquecidos e o fruto do amor proibido O amor e a paixão são “coisas” instigantes e o modo como a sociedade lida com elas também. A princípio a mais bela das manifestações, algo que parece ser concedido por uma graça divina, um presente temporário, mas que não pertence a nenhum nem outro da relação, mas a essa energia cósmica que resolveu agraciar a ambos. A Sombra dos ancestrais esquecidos Sergei Parajanov Rússia - 1964 Elenco: Ivan Mikolajchuk; Larisa Kadochnikova; Leonid Yengibarov; Nikolai Grinko; Nina Alisova;
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Mas se o amor é uma concessão não é a toa que as pessoas sofram tanto. Imagine que algo sobre-humano te concedeu um presente, uma condição temporária, não é uma doação, esta concessão sequer tem um tempo estipulado como uma concessão pública que te permite administrar uma ponte através de um processo de concorrência via edital, não, é algo concedido sem que você tenha pedido e retirado com uma permissão ainda menor,
na maioria das vezes realmente contra a sua vontade. Estamos, então, em um terreno extremamente perigoso na qual, infelizmente, muitas vidas se perderam por conta disso. Vamos tentar sentir o mito: Adão e Eva no paraíso. Paraíso? Será? Fato é que estão no terreno do interdito. Dois jovens ingênuos engatinhando e tateando a vida, descobrem o prazer e comem do fruto proibido. Onde estavam os pais dessas crianças? Por que deixaram que se envenenassem, que tornassem seus corações corrompidos? Se olhavam por elas, por que não intervieram?! É certo que o Pai havia proibido, mas mais certo ainda é ser da natureza da criança a curiosidade e a desobediência. Alguns dirão: É o livre arbítrio. Muitos dirão que não são pais, apenas
um Pai, nisso me questiono se são órfãos de mãe. Coitada dessas crianças, tratadas como adultas e que colocam veneno na boca e o pai assiste a tudo impassível, o mais duro dos homens e isso com seus próprios filhos. E seria mesmo pecado, ou uma invenção desse pai que não tem compaixão por seus filhos? E a vergonha, teria vindo do fruto ou da consciência e do medo em ter desobedecido o pai tirano? Dizem da mãe solteira, principalmente, que ela é pai e mãe ao mesmo tempo, o que é uma grande virtude, mostra a dedicação em dar uma formação completa a seus filhos. O sujeito oculto do discurso é a ausência desse pai, um aborto por omissão. Mas esse Pai, ele existe, sequer pode ser ausente, pois é infinito em extensão. Mas esse Pai não soube ser mãe, na verdade nem conhecia uma mulher para poder se inspirar, teve que criar uma a partir da costela de Adão. Ele que é todo poderoso podia ter apenas criado de forma autônoma, mas por alguma misoginia misteriosa, preferiu proceder dessa forma. Percebemos que os mitos envolvendo a sexualidade revelam certos traumas de infância. Particularmente me dá certo mal estar refletir sobre isso. Ao mesmo tempo é libertador percorrer o passado desse tortuoso caminho para se pensar pai e mãe de si em uma direção que só cabe a você decidir quais rumos seguir. O afeto e o amor realmente podem ser muito perigosos, não à toa Deus os puniu e os homens o punem ao longo de milênios. Essa estrutura patriarcal é rígida demais, dura demais com seus membros, impõe muitas leis, muitas restrições. O amor já é algo flexível, tentamos nos adaptar a essa alteridade, amar esse desconhecido, num sentimento que se sabe mais sublime do que qualquer lei. E se essa lei quer impedir esse amor, essa lei será transgredida. Com isso o pai se ofende, sente-se impotente em legislar e não ser obedecido, daí ergue o chicote com sua mão impiedosa para aplicar o castigo. Óh, pai! No fundo você é apenas um menino contrariado que desaprendeu a amar. Óh, pai! Você vai chorar ao matar seu próprio filho que como pecado teve apenas o amor.
Óh, pai! Mais duas crianças mortas em nome de seu orgulho ferido. Óh, pai! Você prefere a morte à vida. Quando seus filhos não se matam por fora, se matam por dentro, buscando te agradar, carentes de seu amor. Buscando entender porque és tão duro com eles que sempre clamaram por seu amor. Suas lágrimas silenciosas no escuro não te redimem do mar de sangue em que está envolvido. Óh, pai! É momento de se libertar e de libertar também seus filhos. Abre essa mão, larga o chicote, abre também um sorriso, faz um carinho. Ivan, protagonista desta película, parece viver algo similar. A trama se desenvolve na parte ucraniana da região montanhosa dos Cárpatos e o filme foi realizado homenageando o centenário que se completava em 1964- na data de realização do filme- do nascimento do escritor Mykhailo Kotsiubynsky, da qual é adaptado seu roteiro de um livro homônimo ao filme. Ivan, protagonista desta película, parece viver algo similar. A trama se desenvolve na parte ucraniana da região montanhosa dos Cárpatos e o filme foi realizado homenageando o centenário que se completava em 1964 - data de realização do filme - do nascimento do escritor Mykhailo Kotsiubynsky, da qual é adaptado seu roteiro de um livro homônimo ao filme. Não há como não notar algumas características básicas de identificação com Romeu e Julieta. Em ambas as histórias, estamos diante um grande amor entre jovens que veem seu amor fortemente dificultado pela questão de suas famílias serem rivais e não aceitarem a manifestação e prosseguimento de seu interlúdio amoroso. Assim como em ambas, haverá uma transgressão dessa proibição e um desfecho trágico. Se pensarmos a tragédia como um desenvolvimento dialético, entenderemos que isto ocorre claramente em Romeu e Julieta pela forte
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oposição em que se encontram seu amor frente o ódio que suas famílias nutrem. A partir disso, eles transgridem as proibições impostas em nome da realização desse amor, o que culmina na morte dos amantes e na posterior resolução do conflito entre as famílias unidas pelo luto de seus filhos e em respeito do sacrifício destes. A situação muda um pouco de figura em As Sombras dos Ancestrais Esquecidos, as oposições não são tão marcadas, apesar de lutarem contra a proibição de casamento. O amor de Ivan e Maricka surge logo após o pai dela matar o pai dele. O que começa como um ato de revolta de Ivan frente à pequena menina por conta de seu pai ter matado o dele, se desenvolve rapidamente em uma grande paixão, onde as duas crianças descobrem o amor da forma mais pura possível, sem nenhuma restrição ou pudor, correndo nuas por dentro da floresta. Este amor puro e envolto por uma aura mística permanece mesmo quando depois da morte que ocorre com Marichka, onde se afoga buscando resgatar uma ovelha desgarrada do rebanho. A pureza e ingenuidade de Ivan talvez seja a condição principal de seu sofrimento. Seu luto é intenso e carregado de autopenitência, vive agora esfarrapado e sem posses, perambulando sem rumo, ostentando sua melancolia e sendo alvo da piedade alheia, se tornando famoso pela dor que carrega em seu luto. Um transeunte, ao se aproximar de Ivan, comenta com um amigo: “É vergonhoso o que o amor fez com ele.”. Ao passo que Rousseau em algum momento disse: “Quem cora já está culpado; a verdadeira inocência não tem vergonha de nada”. De fato Ivan preservou sua inocência e com isso viveu sua alegria e sua dor sem se importar com o que pensavam os outros. É como se ele não houvesse se civilizado por completo, nisso residia sua inocência e também seu sofrimento. Mais tarde uma mulher (Palagna) desperta seu desejo, algo casual, mas resolve se casar, seguir os protocolos, mas é um péssimo marido para ela, pois nunca esqueceu o seu antigo amor.
O filme é repleto de simbolismos religio-
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sos, a maioria de origem cristã, onde é reforçada a noção de sacrifício, pureza, devoção... mesmo assim a natureza tem um papel crucial, é ali que se desenvolve o amor e também onde a vida se encerra ao sabor do destino. A câmera percorre com velocidade os campos e se entrega muitas vezes a um enquadramento experimental que acentua a força dessa natureza e os mistérios da vida. As árvores também ganham um enquadramento, amiúde, favorecido. Em um dos planos, uma câmera baixa sobe em espiral entre seus troncos, o que remete, a meu ver, à serpente que percorria os galhos da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, a que possui o fruto proibido.
A tragédia, portanto, se constitui de forma múltipla e complexa, seja pela natureza que rouba vidas, como pelo ódio dos homens, que muitas vezes é reforçado por alguma moral estabelecida há milênios que impõe uma defesa de honra que os leva a se matarem. Ainda assim, talvez haja espaço para escolhas, mas a verdade é que não sabemos, pois a paixão também é uma força misteriosa que toma o personagem e não sai dele. Fernando Boechat Cientista Social e mestrando em Artes Visuais. Crítico de Cinema no Cineplot.
Cena de Sombras dos Ancestrais Esquecidos - Sergei Parajanov
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Barravento: identidade nacional e o mito
“Barravento” é o primeiro longa-metragem de Glauber Rocha, um dos maiores e mais importantes cineastas do cinema brasileiro e do que conhecemos como o movimento artístico mais conhecido do Brasil, o Cinema Novo. Já em sua estreia, o diretor baiano já captava em seu estilo quase documental, muito próximo do anterior neorrealismo italiano, as identidades nacionais, sobretudo da Bahia. A referencia de “Barravento” está, acima de tudo, na composição do Barravento mito através das religiões afro-brasileiras, trazidas da África em navios neBrasil - 1962 greiros nas épocas do comércio de escravos. São costumes que entraram no Direção: Glauber DNA brasileiro, fazendo parte, hoje, da Rocha. história do país. O nome “barravento”, embora explicado no começo do filme Elenco: Antonio como uma mudança súbita na vida de Pitanga, Luiza Ma- um indivíduo, muito em relação às forranhão, Lidio Silva. ças naturais, está ligado, também, ao ritmo acelerado da percussão, utilizado na capoeira, no candomblé e na umbanda.
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estão em focos nacionais. O ambiente é passado na Bahia. Na história, um jovem vindo da cidade encontra seus velhos companheiros da aldeia, mas estes não o recebem da melhor forma possível, visto que não concordam com a nova forma que Firmino, o protagonista, de pensamento e vestimenta, desprezando qualquer forma de crença após refletir sobre a condição do homem negro na sociedade. Naquela pequena aldeia baiana tudo é ditado conforme as vontades divinas. As justificativas são dadas através, por exemplo, de uma mãe de santo que diz que o santo quis que tal ato acontecesse. Isso lembra muito a narrativa de Jorge Amado em “Mar Morto”, em que as causas de tragédias marítimas para com os barqueiros, também na Bahia, são ditadas conforme a vontade de Iemanjá.
O místico é enxergado como uma forma de sabedoria por parte dos deuses, eles sabem o que fazem. Firmino, no entanto, ao voltar à cidade, ao ver a simplicidade naquela vida pacata, ao ver que tudo aquilo não está indo para frente, está estacionado no tempo, diz A música e a temática religiosa que o candomblé não resolve nada, é o grande empecilho à evolução daquela pequena popu-
lação, o que acaba desencadeando um confronto de ideias entre o protagonista e diversos outros moradores do local. Firmino torna-se manipulador após o contato com a cidade grande. Estaria ele certo ou errado? Glauber nos coloca em frente a diversos acontecimentos que criam conflitos: a rejeição pela religião que cria um insulto por parte dos moradores mais antigos; a justificativa por parte dos religiosos; a ideia que se deve trabalhar e esquecer totalmente a religião. Somos testemunhas de tudo o que está sendo narrado, tiramos as nossas próprias conclusões acerca do que está sendo apresentado pelos personagens. O mito seria um empecilho à mudança de vida? Ele é positivo por ser um conforto, uma crença de que as coisas vão melhorar, a afirmação de uma cultura? Existem diálogos muito marcantes ao longo da narrativa para demonstrar tais pontos de vista pelos personagens principais, seja um Firmino, o descrente, ou um crente daquela aldeia. São frases que marcam os momentos, como o entendimento de que o pós-escravidão é apenas uma ilusão, de que o direito do homem negro é trabalhar, entre outras frases muito importantes para ditar a intenção do filme. Já em seu filme de estreia, o cineasta baiano mostra uma grande maestria em compor frases, é um grande frasista. O que podemos ver no forro de “Barravento” é uma proposta antropológica, comum no que veríamos posteriormente em filmes do Glauber Rocha. Nesta obra, diferente, ele preocupa-se em carimbar a cultura afro-brasileira tão marcante na identidade brasileira. Saímos do samba à capoeira, da capoeira às religiões vindas da África. O Brasil, afinal, é um país de muita diversidade cultural, sendo a identidade nacional criada justamente por essas misturas, sobretudo na questão do mito. Se em um “Brasil” virgem de interferências de outros continentes havia as crenças indígenas, houve, depois, a chegada dos portugueses junto ao catolicismo, e mais tarde, completando a principal tríade religiosa, a umbanda e o candomblé. Portanto, deve-se entender que dois dos três mitos citados anteriormente são de religiões migratórias misturadas à crença indígena local, uma mescla de religiões em território brasileiro.
Glauber tem a proposta de contar a história de
um grupo de negros no interior da Bahia, com foco no candomblé. A construção feita por ele para demonstrar o misticismo local é excelente. Não apenas pela questão da paisagem natural ou pela utilização de atores sociais, ou seja, aqueles que vivenciam no cotidiano o que fazem na frente das câmeras, como diz Bill Nichols, mas também pela direção de “Barravento” saber criar uma atenção acerca do místico. Glauber tem a proposta de contar a história de um grupo de negros no interior da Bahia, com foco no candomblé. A construção feita por ele para demonstrar o misticismo local é excelente. Não apenas pela questão da paisagem natural ou pela utilização de atores sociais, ou seja, aqueles que vivenciam no cotidiano o que fazem na frente das câmeras, como diz Bill Nichols, mas também pela direção de “Barravento” saber criar uma atenção acerca do místico. Quando há um ritual, por exemplo, no primeiro quarto da película, vemos que o som dos batuques vai ficando cada vez mais intenso, vemos que Glauber utiliza diversos cortes para demonstrar a intensidade nos sons e no encontro entre o humano-medium (o meio entre o plano terreno e o plano místico) e o santo que chega ao corpo com um forte impacto. A imagem carrega essa turbulência, é distorcida, justamente para captar essa ideia do místico como o além-mundo, como algo mais forte. Além disso, a utilização dos mesmos cortes rápidos e da imagem distorcida demonstra a força que a religião possui na vida daquelas pessoas. Por fim, colocando as entidades divinas como o grande corpo do longa-metragem, como a grande força, uma força que rejeita a ideia de Firmino e garante a afirmação, pelo menos naquela aldeia, a narrativa nos oferece seu ponto mais alto, a poesia vista pelos fatores naturais. O filme, de maneira inteligente, demonstra uma natureza calma mais ao início, ela é harmônica junto à população local, mas próximo ao desfecho, o que vemos é uma natureza forte, turbulenta, maior que o homem, revoltada pelo ato imperdoável de Firmino com suas manipulações. Pensamos, então, que o homem da cidade está contaminado.
Leonardo Carvalho Crítico de Cinema do Cineplot.
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os nibelungos, o mito herรณico Fritz Lang, 1924 (Alemanha) cineplot. 60
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Fritz Lang é um dos diretores mais cultuados do cinema alemão. De sua fase muda, muito se fala de Metropolis, que para público e crítica talvez seja a maior de suas obras. Contudo, pouco se fala do épico dividido em dois filmes que antecedeu sua mais aclamada e lembrada película. Trata-se de Os Nibelungos, adaptação do Mito que tornou-se símbolo, narrativa potencializadora de pretensa união germânica. No primeiro filme (Os Nibelungos: Siegfried) o grande herói é apresentado e suas características desenvolvidas em um processo de unificação. Há aqui uma esperança pela presença do jovem que luta pela liberdade e união dos homens que, contudo, culmina na morte do herói. Em um segundo momento (Os Nibelungos: A vingança de Kriemhild), depois da morte do símbolo da libertação heroica e da unificação dos homens, chega a decadência da esperança. Há todo um contexto histórico rondando o uso de Nibelungos. Em especial, falemos da filosofia romântica na importância do resgate do Mito. É característica fundamental dos pensadores e exploradores românticos a busca por canções, poesias, narrativas e Mitos provenientes do solo, das mais diversas culturas. Com A Canção dos Nibelungos – como originalmente é conhecido o mito – não foi diferente. Muito mais que isso, com este os românticos reali-
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zaram um sonho antigo, um sonho posto em prática por Richard Wagner em sua adaptação O Anel dos Nibelungos, um ciclo de quatro obras épicas que intentavam criar um espírito heroico no povo germânico. O feito de Richard Wagner não para por aí. Diziam os românticos que o resgate e a criação de uma nova mitologia deveriam partir da arte. Eis que o compositor realizou. A partir das buscas dos poderes originais do solo, daquilo que faz emergir as culturas, o mito deveria ser criado, inventado, para que organicamente possa emergir nas pessoas e seus hábitos. O surgimento do novo mito não acontece ao acaso. Em meio a um contexto burguês pós-iluminista – movimento pelo qual os românticos foram explicitamente contrários – de um espírito egoísta e utilitarista sobre as coisas, a criação de um mito seria primordial para devolver a sociedade, carente de narrativas originais. Unir os homens em uma percepção comum era o projeto. A chamada “ditadura da razão” imposta pelos utilitaristas burgueses teriam desmistificado a arte e os mitos, os assassinado. Contudo, não se concebe uma vida sem mito. Daí a importância da obra máxima de Richard Wagner.
Se o surgimento do mito deveria vir da arte,
A Morte de Siegfried em seu ponto fraco, localizado nas costas.
a força da união não seria provinda das religiões. A ideia do homem livre tende a tomar o lugar das religiões. A figura de Siegfried é uma imagem prática da personificação da liberdade dos homens libertos dos Deuses. A ideia do homem livre proposta por Wagner, um homem das possibilidades que a vida pode oferecer, é também um ultimato às forças divinas. Essa potência significada pela figura de Siegfried vem da força de união do herói que vai lutar com o dragão, torna-se quase imbatível (há um ponto frágil, assim como em Aquiles na mitologia grega), conquista o ouro e os entrega novamente aos donos. Não vem dos Deuses a salvação, rompendo com um círculo vicioso de poder. No primeiro filme de Fritz Lang, há um claro espírito de aventura que rodeia os acontecimentos do herói. Mesmo que com limitações provenientes da época, as cenas heroicas de Siegfried contra o dragão, a vitória nos desafios da Valkiria Brunhild, são belíssimas a medida que encaram o mito com o real. Há na obra de Fritz Lang a proximidade do mito com as coisas da vida, as indumentárias, as paisagens, os movimentos, fatos que se perderam nas novas adaptações mitológicas, onde a exuberância desloca o mito e o coloca em um mundo das ideias, evidenciando-o como uma mentira. Contudo, o mundo dos Nibelungos, que dá nome ao mito, é o oposto do mundo de amor, liberdade e união de Siegfried. Se o herói vem para unir os povos – expostos em cenas como a luta para casar-se com Kriemhild, a disputa com Brunhild e o pacto selado com o Rei Guntário – os Nibelungos são tomados pela ganância, pelo ouro e relações de poder viciosas. É justamente desse espaço de ganância que, dentre outros, Richard Wagner põe em obra seu asco pelos Judeus, povos degenerados a seus olhos, que circundam o dinheiro e não se libertaram de uma figura divina. Para Wagner, os judeus são a personifi-
cação do homem do comércio, do dinheiro. Inserido nesse mundo degenerado, o forte, porém, ingênuo Siegfried não é experto o suficiente para perceber a ganância que o circundam. A sociedade dos Nibelungos é uma metáfora do mundo moderno utilitarista. Em um primeiro momento há um selamento de paz que dá esperança por uma sociedade unida em uma percepção comum, mas Siegfried é assassinado. A morte de Siegfried carrega uma série de significados, dela nasce o fim da esperança e a vingança utilitária contra aqueles que o matou. Da morte de Siegfried vem a queda dos Nibelungos, afundados em um egoísmo terrível. As cenas que narram a queda dos Nibelungos são das mais emblemáticas que Fritz Lang jamais criou. A posição fatal de Kriemhild observando o palácio ser consumido pelo fogo da vingança é demonstrada em uma justaposição de planos. A impiedade na expressão de Kriemhild e o fogo da queda de uma sociedade inteira é um símbolo narrativo de grande potência. Por fim, é importante salientar que a lógica a qual Richard Wagner cria o mito é semelhante ao momento histórico em que Fritz Lang realiza seu épico. Temos aqui a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial e um povo desmoralizado. Havia de se criar um espírito heroico que novamente partia da arte. Mau interpretado, este espírito viria se tornar, anos depois o Nazismo. Philippe Leão Editor-chefe do Cineplot, crítico de cinema, palestrante, professor e Geógrafo.
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NA EDIÇÃO DE AGOSTO ...
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