Fevereiro, 2018 - Edição 5
CINEPLOT
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NOTA DO EDITOR Importante período na história do Cinema - tanto no avanço técnico, como na inventividade narrativa - os anos 20’ e a derradeira chegada no nazismo na Alemanha são objeto de análise nesta edição da Revista Cineplot. Em especial, esta edição é um tributo aos 71 anos de lançamento da obra máxima, o maior dossiê sobre o cinema alemão: “De Caligari a Hitler: Uma história psicológica do cinema alemão”, de Siegfried Krakauer. Eu, a equipe do Cineplot e importantíssimos colaboradores percorreremos desde o Expressionismo Alemão – o mais famoso movimento alemão dos anos 20’ – ao Kammerspiel, Nova Objetividade, a Comédia e a arte maldita do III Reich. F.W Murnau, Fritz Lang, Briggitte Helm, Robert Wiene, G.W Pabst, Leni Riefenstahl, Arnold Fanck, Paul Leni, Louise Brooks e outros, são alguns dos artistas lembrados e celebrados nessa que, ao meu ver, já é a melhor edição de nossa revista. Philippe Leão
PÁGINAS PARCEIRAS:
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Siegfried Kracauer - Um tributo aos 71 anos do lançamento de “From Caligari to Hitler”.
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DE CALIGARI A HITLER: UM TRIBUTO A KRACAUER As narrativas que compõem a História do Cinema são sempre mais instigantes quando colocadas em perspectiva com relação direta a momentos da história cultural e social. Desta maneira, é mais fácil e mais eficaz a compreensão do cinema soviético quando analisamos sua evolução diretamente ligada aos propósitos da Revolução, de uma arte engajada e comprometida com a formação do novo homem daquela época e daquele lugar. Siegfried Kracauer (1889-1966), há 70 anos, realizou um dos estudos mais importantes para o espólio histórico do Cinema, e sem dúvida o mais importante trabalho, até o momento, sobre o cinema alemão. Trata-se do volume de bastante fôlego From Caligari to Hitler: A psychological history of the German film. Um estudo hercúleo sobre o cinema na Alemanha entre o final da Primeira Guerra Mundial e a ascensão de Hitler em 1933. Não é um recorte aleatório. O autor faz questão de assinalar,
já no primeiro parágrafo de sua obra: “Não se trata de estudar o filme alemão de forma estanque, mas de ampliar nosso conhecimento sobre a Alemanha pré-Hitler de forma mais específica”. O comentário de Kracauer sintetiza o livro como um todo. O autor, filósofo e crítico, passou sua juventude envolvido com outros intelectuais de Frankfurt, como Adorno e Benjamin. A liberdade de pensamento naquele local, durante os anos de 1920, mesmo com a República de Weimar constantemente caminhando numa corda bamba, fez de Kracauer um arguto examinador das relações entre cultura e sociedade. Portanto, mais de vinte anos depois, quando empreendeu a obra aqui em questão, tinha absoluta certeza de que era possível prever a ascensão totalitarista do regime nazista por meio dos filmes realizados durante a década de 1920 e início dos 1930. O que ele queria dizer é que, num país arrasado por uma guerra que reconfigurou a
O Gabinete do Dr Caligari - Um aviso profético aos males do totalitarismo
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geopolítica de nações inteiras e a percepção social e cultural de seus cidadãos, o inconsciente coletivo apontaria diretamente para a crítica ao desmonte econômico, para a falta de ordem, e, no limite, para a necessidade de um líder onipotente capaz de manter o mal-estar daquela civilização numa camisa de força. Eis o mote central do estudo de Karacauer. O primeiro exemplo significativo desta tese apresenta-se já no primeiro clássico expressionista, O gabinete do Dr. Caligari (1920), de Robert Wiene. As pesquisas do livro nos mostram que aquele era o grande filme metafórico sobre a Primeira Guerra, e seus roteiristas, Hans Janowitz e Carl Mayer, que viram a morte de perto nas trincheiras onde lutaram, pretendiam mais. Queriam que sua obra fosse a metáfora sobre os perigos de se lançar às cegas a uma causa beligerante, por lealdade incondicional a um agente da autoridade cujos valores são, no mínimo, duvidosos. No filme, este manifesto está personificado pelos males que o hipnólogo louco, Dr. Caligari leva a uma pequena cidade quando passa a se apresentar numa feira de variedades exibindo um sonâmbulo, Cesare, que tem o dom de prever o futuro, sempre que despertado por ordem de seu senhor. Logo, a cidade pacata passa a ser o cenário de vários assassinatos misteriosos. O caos se instala e os moradores do local parecem tragados para um universo surreal de desordem incontrolável. No último ato, segundo Janowitz e Mayer, o Dr.Caligari é desmascarado, revela-se um louco que acredita ser o verdadeiro médico chamado Caligari, que séculos antes perambulava pela Europa com um sonâmbulo chamado Cesare. Preso a uma camisa de força, o, agora indefeso louco, é contido. Isto deveria comunicar ao espectador que qualquer tipo de controle sobre a massa é um sinônimo de desarranjo iminente, que deve ser contido e enclausurado, bem longe do convívio social. Acontece que se a mente alemã já apontava para a ascensão do regime hitlerista, então Caligari se tornou a maior prova sobre isso disponível. Explico: Erich Pommer, produtor executivo do filme e homem poderoso da Decla-Bioscope, decidiu juntar a ousadia
dos cenários expressionistas que encomendou para as filmagens com um recurso narrativo sofisticado para a época. Em sua versão daquela história, após descobrirmos que o falso doutor será preso num manicômio, uma reviravolta nos revela que Francis, o personagem central que investiga Caligari exaustivamente, ao longo do filme, é o verdadeiro louco obcecado pela figura do médico. Por conseguinte, ele é que é atado por uma camisa de força e posto aos cuidados do diretor do manicômio, o próprio Caligari. A inversão de valores do discurso nesta versão de Pommer nos diz que SIM, o que precisamos é de alguém com predestinação o suficiente para reger nossas vidas. Ainda, na seção dedicada ao estudo dos filmes expressionistas, Kracauer autopsia os despojos de Nosferatu (1922), de F.W. Murnau. Tudo nesta adaptação pirata de Drácula, de Bram Stoker tem um significado implícito diretamente ligado ao estado de coisas daquele momento. O Conde Orlok, vampiro de aspecto roedor, com incisivos – não caninos – projetados e longos, é um complexo misto de algoz e vítima, ao mesmo tempo. Ele é o portador da peste, da desestabilização, de novo, de uma pequena cidade pacata, das ameaças físicas e mentais. Mas, é ele, também, escravo das trevas por onde se alimenta e se nutre do mínimo impulso vital. Como um morto-vivo, já não pode haver qualquer possibilidade de gozo, sequer de desejo. Quando há o que se parece, finalmente, um dispositivo que ativa seu ímpeto, sua própria natureza o trai, o que significa seu fim. Na outra ponta da narrativa, Hutter é um presunçoso corretor imobiliário que se acha capaz de acender a uma burguesia local, prover o melhor à sua esposa, mesmo que seja preciso acabar com um vampiro. O resultado não poderia ser mais desastroso. Seu chefe enlouquece e passa a agir como discípulo de Orlok, os ratos trazidos pelo vampiro tomam a cidade e espalham a peste, os nobres da cidade tornam-se impotentes para agir contra o mal, e, pior, sua esposa entra num transe que a faz oferece-se em sacrifício para o vampiro.
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A Última Gargalhada - Um Kammerspiel de F.W Murnau
Seria demasiado longo analisar cada uma da ações e reações, mas nos basta dizer que a nação alemã da República de Weimar era um turbilhão de nacionalistas, anarquistas, comunistas e que tais, todos com sentimento de que foram traídos por seus líderes que assinaram rendição incondicional. Além disso, já havia um forte movimento antissemita e xenófobo pairando. O país era, então, predador à espreita da caça e uma presa fácil de todos os efeitos colaterais impostos pelo Tratado de Versalhes. Nesta esteira, outro exemplo da tese de Kracauer é o dístico cinematográfico de Fritz Lang, Os Nibelungos (1924). A monumental produção em duas partes é um épico inspirado pela mitologia e o folclore germânico. É uma adaptação das aventuras de Siegfried, típico herói que cruza florestas, mata dragões e desposa uma princesa. Mas é traído por outro cavaleiro e morto, ao final da primeira parte. Na segunda parte da saga, sua viúva moverá céus e terras para vingar a morte do amado. A força não só do homem, mas também da mulher germânica.
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No fim das contas, Os Nibelungos é a metáfora da superioridade germânica e de como é urgente que os heróis se insurjam contra os inimigos da raça. Não é de se espantar com o fato de que, 10 anos depois, o Ministro da Propaganda do Reich, Joseph Goebbels adotou o filme como símbolo da ideologia da raça ariana. Da mesma forma como se enamorou da obra de Fritz Lang, passou a odiá-la e tentar desqualifica-la a todo custo, quando seu diretor se recusou a trabalhar para o cinema de propaganda de Hitler, evadindo-se para a França. Sobre a forma como organizou seu livro, Kracauer o fez de maneira a acabar com as generalizações de que todo filme alemão produzido durante os anos 1920 são expressionistas. Os capítulos acompanham a situação socioeconômica da Alemanha e, por consequência, as transformações estéticas e narrativas dos filmes. Na realidade o Expressionismo não foi além de 1924, quando filmes com tendências menos escapistas e mais analíticas passaram a ganhar espaço. E deste período que se destaca A última gargalhada
(1924), também de Murnau, e A escada dos fundos, de Leopold Jessner e Paul Leni, que, embora produzido em 1921, é um Kammerspiel, nome de uma estética calcada nos dramas intimistas com foco na psicologia das personagens, em geral poucas. Kracauer também analisa a decadência deste cinema tão peculiar, sobretudo ao final da década, quando a economia nacional ruiu novamente, caso de Berlin, sinfonia da metrópole (1929), de Walter Ruttmann e M, o vampiro de Düsseldorf (1930), outro trabalho icônico de Fritz Lang.
Donny Correia é poeta e ensaísta, é mestre e doutorando em estética e história da arte pela USP. Autor de, entre outros, ‘Corpocárcere’ e ‘Zero nas Veias’ (Poesia), e ‘Cinematographos de Guilherme de Almeida’ (Antologia). Contato: donnycorreia@usp.br
A versão original de From Caligari to Hitler traz um ensaio, a título de posfácio, dedicado a examinar exclusivamente a linguagem e as narrativas propostas pelo cinema de propaganda nazista, trazendo à luz uma série de recursos usados sutilmente com o intuito de incitar o ódio por minorias, disseminar a ideologia do Füher, deturpar os conceitos de ética e moral e, até mesmo, tentar forjar uma nova versão do Cristianismo. O exame empreendido por Siegfried Kracauer tornou-se, como dissemos, uma obra seminal. É indispensável para se compreender não só a estética do cinema alemão na aurora deste suporte como verdadeiro veículo de genuína arte, mas também o contexto de uma geração, de um momento histórico que mudaria o curso da civilização. Trata-se de escrito que nos serve, hoje, para entender o que estava acontecendo durante os 11 anos que durou o breve armistício daquela que, na verdade, foi uma Guerra Mundial só. Kracauer, escreveria depois, outro livro indispensável a qualquer pesquisador de Cinema que pretendesse ser levado minimamente a sério: Theory of film: the redemption of the physical reality. Desta vez ele estuda elementos quase ontológicos inerentes ao cinema, desde sua constituição até as suas estéticas das mais narrativas às mais abstratas. Mas isto, infelizmente fica para uma próxima, porque não falta o que dizer! M, O Vampiro de Dusseldorf - Clássico de Fritz Lang
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O Expressionismo Alemão O Expressionismo foi um movimento artistico de vanguarda surgido na Alemanha no início do século XX. Arquitetura, fotografia, teatro, artes plásticas e literatura são alguns campos artísticos no qual o movimento esteve presente. Contudo, apenas no inicio dos anos 1920’ o expressionismo chega ao Cinema, tendo sido convencionado que O Gabinete do Dr Caligari (1920) como o primeiro dos filmes expressionistas. O expressionismo buscava a expressão do real, que só poderia nascer do artista, de sua visão do mundo e, por isso, surge como oposição ao impressionismo, que revelava uma impressão do real, veloz, mais realista. Nos Cinemas o movimento surge como reflexo da derrota na Primeira Guerra Mundial, o desastre econômico, social e moral. Além de revelar as angústias de seu tempo referente a acontecimentos do passado, o expressionismo alemão parecia prover de uma aura profética, tornando visível através da expressão do artistas os medos de um futuro incerto e da consequente ascensão do totalitarismo. Na imagem “Cavalos Vermelho e Azul” de Franz Marc (1912), pintor representante do grupo de artistas denominado Der Blaue Reiter, que tinha como representante, entre outros, Wassily Kandinsky. O movimento opunha-se ao racionalismo e ao consequente racionalismo implícito. Como princípio, Der Blaue Reiter pretendia ver a natureza e o homem a partir de suas experiências, que nascem de uma necessidade interior. Contemporâneo ao Der Blaue Reiter outro grupo artístico expressionista buscava a cisão ao racionalismo, Die Brücke. Inspirado em Nietzsche, o grupo intentava uma ponte entre a arte de seu tempo e a arte do futuro, renegando regras e cânones presentes na arte alemã neo-romântica, estabelecendo um contato íntimo com a realidade e natureza. Como veremos ao final desta edição, essa renegação à arte romântica foi um dos fatores para a delegação do expressionismo como arte degenerada com a chegada do Nazismo.
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CALIGARI CONVITE AO IMAGINÁRIO Em sua primeira cena, o filme insere dois personagens conversando: um apresenta ao outro a possibilidade de escutar uma história. Sendo o cinema uma arte que dialoga essencialmente por meio de narrativas, salientar que estaremos acompanhando essa sua memória dá ao filme um tom ainda mais fantástico. Iremos partilhar do imaginário dos próprios personagens, conhecendo seu mundo intimamente. A negação da realidade, isto é o expressionismo alemão, sua considerada obra-máxima o demonstra, seja de modo introdutório ou conclusivo. Todas suas nuances nos farão duvidar da realidade, assim como do próprio imaginário daqueles personagens em sua cidade de arquitetura tão peculiar, suas portas que abrem de todos os lados ou para cima, seus caminhos sinuosos, os becos e vielas, além das mais variadas janelas, e tudo isso aliado a um fundo em pinturas de certo modo maneiristas... A direção de Robert Wiene também adiciona corpos estranhos ao quadro, como ao abrir
lentamente num círculo um plano ocupado por um macaco; isso se repete, sempre aliado à arquitetura da cidade e seu povo como fundo. Essa arquitetura e essas pinturas abarrotadas de tanto significado que nos é impelido como uma camada onírica, adquirindo um tom ainda mais fantasioso, são particularidades que se tornaram intrínsecas a esse cinema que tanto nos fascina. A “chegada” de Dr. Caligari à cidade é o catalisador de todo o espetáculo, desde sua apresentação como personagem, na qual busca a autorização para exibir seu “número”. O maneirismo de seu intérprete torna Dr. Caligari quase que irreal, assim como o próprio “Sonâmbulo”, que será revelado futuramente - dotado de poderes ditos proféticos. O maneirismo de seus movimentos - de Caligari e seu “instrumento” -, sendo a fisicalidade insólita de seus corpos em movimento um elemento ainda mais idiossincrático de suas realidades, que se tornam
As formas tortuosas na paisagem de O Gabinete do Dr. Caligari - Um convite ao pesadelo.
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cada vez mais distantes das nossas. Caligari busca a autorização do seu espetáculo na cidade, o que o leva até um escritório, em que falará com uma pessoa específica. O responsável por autorizar ou não o número de Caligari basicamente o ignora, deixando-o inquieto e, depois, desdenhando de suas intenções. Ignora sua presença e não se incomoda em dialogar com ele, passando a palavra a outro, a quem autorizará seu número na cidade. A primeira morte acontece, justamente a daquele que duvidou das intenções do espetáculo. Por um momento, tem-se a certeza de que a chegada de Caligari e de seu espetáculo, de algum modo, causou essa morte, e isto é reafirmado no momento em que conhecemos os poderes do sonâmbulo, que anuncia a futura morte de um espectador. O homem, evidentemente, fica ansioso e com receio, mas tenta ignorar. Ele retorna para casa, acompanhado de um amigo, e nesse momento conhecemos rapidamente a história dos dois, que rivalizam o amor pela mesma mulher. Esse relato desenvolve um questionamento no momento de suas mortes: um matou ao outro? A visão era verdadeira? Durante a consumação da visão, vislumbramos todo o contraste das sombras expressionistas, o irreal se torna real naquele mundo, a morte é um fato.
bater contra aqueles que tentam prendê-lo em um quarto - que contém boa parte dos elementos arquitetônicos e maneiristas mencionados anteriormente. Quando o plano passa a ser médio, um círculo de sombra encobre-o, de maneira a evidenciar seu estado; retorna-se a um plano aberto, a porta se fecha, provida justamente de pinturas que lembram nuvens ou ondas. Ele conseguiu, provou que Caligari estava louco quando o plano se fecha em seu rosto, sua feição de alívio toma conta das sombras. Mas a realidade não é palpável e a ilusão, na verdade, estava na cabeça daquele que contava. Ou na nossa? Seu trancafiamento é operado na mesma sala, só que com uma diferença gritante: todos os desenhos agora estão esfacelados, com aspecto de que foram lixados. O tempo fez isso com ele? Ou eles sempre foram assim? Tudo se esvaiu, a história e o filme estão prestes a acabar.
Nos dias de hoje, tornou-se comum retratar no cinema o rompimento da sanidade através de uma obsessão. A dúbia relação entre sanidade e insanidade é também uma questão filosófica e, em Matheus Petris é crítico de Caligari, essa relação se intensifica conforme o filme Cinema pelo Cineplot. avança. A descoberta de que Caligari é Doutor e diretor de um manicômio produz mais uma incerteza, direcionada a nós e também àquele que conta e viveu a história. O real/irreal é novamente questionado, a obsessão por Caligari fez com que ele tivesse imaginado toda essa história? A incansável busca pela verdade e pelo real fez com que essa barreira fosse literalmente rompida? São muitas interrogações, assim como a da própria realidade.
Em um plano aberto, vemos Caligari se de-
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O HOMEM QUE RI
DE PAUL LENI
A capacidade de Paul Leni criar milagres visuais é indiscutível, não era pouco o que ele sugeria, graficamente, às suas obras. De cenários maiores captados por um plano-geral a um plano-detalhe em um simples objeto, mas de um valor narrativo fundamental, passando por um close-up em que a maquiagem se destaca amplamente. Leni, em seu último grande filme rodado na Alemanha antes de ir morar nos Estados Unidos e trabalhar para a Universal, criou o que talvez seja o maior milagre visual do cinema dos anos 1920, “O Gabinete das Figuras de Cera”. Não é a melhor narrativa de um modo geral, em sua plenitude, mas o longa-metragem de melhor figurino, maquiagem, direção de arte. Durante as três histórias do filme, é possível perceber tais aspectos, todos fundamentais para a construção de uma obra riquíssima. Em “O Homem que Ri”, uma de suas obras americanas pela Universal, Leni repetiria tal façanha ao compor um belo filme em que os aspectos visuais seriam o grande destaque. Em primeiro lugar, sem
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sombra de dúvidas, a maquiagem que destaca o sorriso perpétuo do protagonista; em segundo, a composição da paisagem de diferentes modos em diferentes momentos; o terceiro finalmente, os figurinos de época, importantes para efeitos de ambiência da obra baseada no livro de Victor Hugo. A maquiagem forte, muito comum nos teatros expressionistas, é resgatada aqui por Paul Leni. Ela compõe o principal traço de Gwynplaine, a principal atração de um circo: um sorriso que nunca sai de seu rosto, o que na verdade é uma mutilação, vítima dos costumes de uma comunidade de ciganos que foi expulsa da Inglaterra pelo rei James II. A maquiagem, aqui, traz um elemento que é muito marcante nos filmes da Universal dos anos 1920, a presença do traço da criatura. “O Homem que Ri” não é um filme de terror, como não é “O Corcunda de Notre Dame”, da mesma época, mas há um comum elemento do gênero do terror, a presença da criatura. Gwynplaine é alvo de risadas, de deboche, de desrespeito, é resumido e classificado
como uma aberração por onde passa, é a estrela de um freak show, e isso fica marcado, na composição, pela maquiagem, um belíssimo aspecto visual. Para destacar uma importante cena do longa-metragem, a maquiagem casa com a fotografia e uma organização capaz de jogar toneladas de dramaticidade nas telas. Enquanto se apresenta como um dos espetáculos do circo, Gwynplaine é focado com um close-up, o que demarca bem a maquiagem na composição do riso perpétuo. Todos riem dele, o público adora, mas o personagem, embora sempre rindo, está, na verdade, em estado melancólico. A cena seguinte, mais escura, menos agitada por estar praticamente só ele na cena e não haver o barulho dos espectadores no fundo, marca a sua melancolia, o seu estado de fragilidade. Agora, falando sobre a paisagem, deve-se dizer que é um elemento constantemente bem trabalhado por Paul Leni. Os cenários são grandiosos, compõem bem dois aspectos primordiais no desenvolvimento da película, a nobreza inglesa e o circo. Mais presente o segundo, lonas são estendidas, pôsteres com os nomes das atrações estão à vista, vemos até leões enjaulados, é muito um resgate de “O Gabinete das Figuras de Cera”, um filme que também tem o circo como o principal ambiente. Uma verdadeira multidão toma conta das poltronas daquele entretenimento, tudo para ver o homem que ri. O grande destaque de tudo o que envolve a cenografia, porém, está nos arredores do clímax. Nesse momento, observamos os planos mais abertos na fuga do protagonista que está sendo perseguido por homens do estado. Ele corre pelas altas torres, debruça em portões altíssimos com espetos nas pontas; a soma da fotografia e da direção de arte, aqui, é ótima para construir intensidade e ameaça a Gwynplaine, uma forma de fazer com que o espectador roa as unhas. Ilustrando para o leitor, há uma parte em que ele quase cai de alturas consideráveis durante uma perseguição, e toda boa parte da sensação de ameaça chega por conta dos cenários. É interessante notar que, ao longo do ápice rítmico da obra, existem diversas viradas, surpresas e a máxima
exploração gestual do ótimo Conrad Veidt no papel do protagonista, que em boa parte da obra estava mais contido na representação de um sujeito melancólico. É notável, outrossim, que os citados planos mais abertos, muito explorados próximo ao desfecho, seriam importantes para captar, posteriormente, situações-limite de fuga e correria nos próprios filmes da Universal, como “Frankenstein”, por exemplo. Se em “O Gabinete das Figuras de Cera”, retomando-o mais uma vez, os figurinos eram geniais, ricamente detalhados e importantes para conferir traços aos personagens, aqui é também fundamental. Em “O Homem que Ri”, os trajes compõem a realeza inglesa do século XVII e a difere dos inúmeros figurantes, das pessoas comuns, que vão ao circo conferir o freak show, é um aspecto importante em termos de ambiência. Uma mistura de aventura e drama, “O Homem que Ri”, como foi dito acima, se aproxima de um milagre visual, é extremamente eficaz em sua proposta, reafirma o poder gráfico das obras de Paul Leni. Também, entende-se a importância alemã para o futuro da Universal, em que uma espécie de legado foi deixado para os anos 1930 dos monstros universais “Frankenstein”, “Drácula”, O Homem Invisível” -, do terror universal. “O Homem que Ri” é certamente uma produção americana, mas com um quê alemão, de Paul Leni em sua mais popular direção, de Conrad Veidt em seu mais famoso papel.
Leonardo Carvalho é formado em Letras italiano e crítico de Cinema no Cineplot.
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Fritz Lang (1890 - 1976) Um dos artistas mais influentes do perĂodo, autor de filmes como Metropolis e Os Nibelungos.
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FRITZ LANG: AS COMPLEXAS RELAÇÕES ENTRE SEU CINEMA E A IDEOLOGIA NAZISTA É conhecido o convite feito por Joseph Goebbels a Fritz Lang para comandar a indústria cinematográfica alemã após a ascensão do nazismo ao poder, em 1933, e a recusa do diretor – que em seguida se exilou e, no contexto da Segunda Guerra Mundial, fez filmes de propaganda antinazista. O Homem que Quis Matar Hitler (1941) e Os Carrascos Também Morrem (1943) são os mais emblemáticos nesse sentido: no primeiro, um caçador inglês (Walter Pidgeon) é acusado de tentar matar o líder alemão e, perseguido incessantemente pela Gestapo, se torna, ao final, instrumento de propaganda do esforço de guerra de seu país (na última cena, o protagonista salta sobre território inimigo com seu rifle, acompanhado do hino da Inglaterra e de uma narração em off que diz: “e de agora em diante, em algum lugar da Alemanha, está um homem com um rifle de precisão e o alto grau de treinamento e inteligência necessário para usá-lo. Pode levar dias, meses ou até anos, mas dessa vez ele claramente sabe seu propósito e com firmeza enfrenta seu destino”); já o segundo, acompanha as consequências para a população tcheca do assassinato, pela resistência, do cruel oficial nazista Reinhard Heydrich.
No entanto, as relações entre o cinema de Lang e o nazismo têm início bem antes. Siegfried Kracauer, no livro De Caligari a Hitler, mapeia o expressionismo alemão para encontrar, nas imagens de horror e nas repetidas referências ao exercício de poder tirânico sobre outros homens, uma espécie de prenúncio da ascensão nazista. Ao menos quatro filmes de Lang feitos entre as décadas de 1920 e 1930 possuiriam essas características: Dr. Mabuse, o Jogador (1922) e sua continuação O Testamento do Dr. Mabuse (1933), cujo sinistro protagonista é um manipulador de mentes (por meio de avançadas técnicas de hipnose) que atua em prol do estabelecimento de um “império do crime”; Metrópolis (1927), em que um cientista mentalmente perturbado cria um robô com o objetivo de instaurar o caos na futurista cidade título; e M – O Vampiro de Dusseldörf (1931), protagonizado por um assassino de crianças. Esses homens monstruosos, psicopatas, recorrentemente presentes no cinema expressionista, seriam, para Kracauer, sintomas da psique alemã durante a República de Weimar, propensa à queda na barbárie. No caso dos filmes de Lang, é possível ser um pouco
Dr Mabuse, o Jogador - Um prenúncio a ascenção do totalitarismo nazista
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mais específico. Kracauer identifica espécie de protofascismo em Metrópolis, na forma como Lang organiza sincrônica e geometricamente os corpos dos trabalhadores em cena. Os operários como ornamento de massa. Mesmo a estruturação do conflito social no filme aludiria à alternativa nazista que se fortalecia naquele momento: a solução para o caótico embate entre classe trabalhadora explorada e o poderoso senhor da cidade está na figura de um mediador, capaz de conscientizar as elites da necessidade de se reformarem moralmente (reduzindo a exploração) e apaziguar os de baixo amotinados, promovendo a conciliação de classes. De acordo com Ismail Xavier, em análise sobre a alegoria de Babel em Metrópolis, “passivos, os operários alimentam o sistema; ativos, só podem gerar a catástrofe [...]. O gesto que salva vem do elemento extra-sistema, das figuras do coração, pois razão (mestre) e desrazão (massa) se complementam, tanto no pesadelo da ordem quanto na anarquia destrutiva da revolta”. Haveria aqui, portanto, semelhança com o discurso de Hitler, ao mesmo tempo anticapitalista e de rechaço total à luta de classes como motor da sociedade. O historiador francês Marc Ferro, dialogando com Kracauer, enxerga em M – O Vampiro de Dusseldörf
semelhanças entre o grupo de criminosos que atua subterraneamente na caça ao assassino de crianças e o movimento nazista que, no início da década de 1930, agia na República de Weimar como um poder paralelo, contrassociedade dentro da sociedade oficialmente estabelecida. São os criminosos, com ajuda de um “exército” de mendigos, que eficientemente capturam o psicopata e levam-no a julgamento sumário – interrompido pela polícia, representante do Estado burguês, que garante ao detestável protagonista os devidos procedimentos legais (algo criticado no filme por meio da frase que encerra a narrativa: “e agora devemos vigiar nossas crianças”). Ferro encontra também semelhanças entre os trejeitos do líder dessa organização criminosa, Schränker (Gustaf Gründgens), e os de Hitler: “de fato, apaixonado por cinema, Hitler sentiu-se fascinado pelo personagem de Schränker, e um olhar atento em relação às atualidades cinematográficas de 1931-1934 pode constatar que ele adotou certas posturas e até mesmo alguns gestos de Schränker, por exemplo o modo como pousava o cotovelo, ou sua maneira de se interromper durante uma fala”. Se há vestígios da ideologia nazista no expressionismo alemão, que, como quer Kracauer, poderiam ser atribuídos à psique coletiva dos últimos anos da Re-
Metropolis apresenta uma narrativa que sustenta a proposta de reconciliação das classes.
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pública de Weimar, nesses dois filmes eles também podem ter origem no trabalho de Thea von Harbou como roteirista. Casada com Lang entre 1922 e 1933, ela se filiou ao Partido Nazista (NSDAP) em 1932 e permaneceu leal ao regime comandado por Hitler durante toda sua existência. É claro que é difícil mensurar o grau de nazificação de von Harbou, ou seja, o quanto sua adesão ao NSDAP foi sincera ou oportunista, diante do crescimento visível do nazismo – até porque ela própria, em momento posterior da vida, buscou negar a sinceridade de tal adesão, algo, aliás, compreensível e esperado num contexto de desnazificação da Alemanha e mirada condenatória para o passado recente do país. Mas, conforme observa outro historiador francês, Christian Ingrao, o próprio momento da filiação ao partido já é um indicador significativo nesse sentido. E, no caso da roteirista, ela se deu no ano anterior à chegada de Hitler ao poder, o que reforça a impressão de adesão ideológica ao NSDAP. Parece possível dizer, portanto, que Metrópolis e M – O Vampiro de Dusseldörf foram escritos por uma nazista (também é de von Harbou o roteiro de Dr. Mabuse, o Jogador, filme realizado, no entanto, em momento anterior a constituição do nazismo como movimento político). Vale considerar algumas nuances que constituem essas duas obras-primas de Lang, evitando o risco de simplesmente classificá-las como estando a serviço da ideologia de Hitler. Sobre Metrópolis, é importante dizer que se trata de uma distopia social, crítica à opressão dos trabalhadores pela própria instituição do trabalho (vista como danação, destaca Xavier). Espécie de filme inaugural de um subgênero que teria, posteriormente, o nazismo como referência histórica privilegiada, já que símbolo concreto da capacidade humana de construir regimes políticos opressivos. Em M, por sua vez, o papel positivo desempenhado pelos mendigos, captores de fato do protagonista psicopata, faz lembrar que essas figuras marginais seriam duramente perseguidas e eliminadas na ditadura de Hitler, sob a aprovação dos “homens de bem” da sociedade alemã. Referindo-se à construção dos primeiros campos de concentração na Alemanha, em 1933, o historiador norte-americano Robert Gellately comenta que “a identidade social de quem poderia ser mandado para lá era bastante previsível. Os prisioneiros seriam os vários tipos de marginais sociais. Os campos foram
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apresentados como instituições educativas que serviriam de correção e advertência aos comunistas e aos descritos como ralé social, ou seja, os marginais sociais, como criminosos reincidentes, desempregados crônicos, mendigos, alcoólatras, homossexuais e agressores sexuais contumazes, todos seriam reabilitados ou, no mínimo, mantidos longe das ruas em campos de aparência militar”. À guisa de conclusão, merece destaque o lugar ocupado nessa relação de Lang com o nazismo pelo segundo filme da trilogia Dr. Mabuse, O Testamento do Dr. Mabuse. Lançado nos cinemas no mesmo ano da ascensão de Hitler ao poder e do divórcio entre o diretor e von Harbou, ele foi censurado pelo governo, acusado de fazer alusão pejorativa ao nazismo por meio da organização criminosa subterrânea presente na narrativa. É curioso como esse elemento frequentemente utilizado por Lang – há grupos semelhantes em M, As Aranhas (1919/1920) e, claro, no primeiro Dr. Mabuse – ganhou aqui outro sentido político, diverso, sobretudo, daquele atribuído a ele em M. Nos dois filmes, seria possível associar tais organizações aos nazistas, no entanto, nesse novo contexto, a ideia de uma contrassociedade no interior da sociedade alemã, representada aqui de forma bastante negativa (seu objetivo é, como dito anteriormente, estabelecer um “império do crime”), já não soava bem aos agora donos do poder. Pouco depois, Fritz Lang partiria para seu longo exílio. Wallace Andrioli é historiador de formação e crítico de cinema. Começou a escrever em blogs na internet em 2003, mantendo, desde 2008, sua atual página, Crônicas Cinéfilas. Desenvolveu pesquisas relacionadas à história do cinema brasileiro no mestrado e no doutorado e atuou como crítico no site Papo de Cinema, contribuindo também, esporadicamente, com a Revista Escuta e com o Almanaque Virtual. Atualmente, escreve regularmente na Revista Moviement.
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FAUSTO
DE F.W MURNAU Fausto, um alquimista de idade avançada, vê sua cidade ser consumida por um surto de peste negra. Limitado pelos recursos da época em crise existencial pela finitude da vida, o alquimista descobre um livro que fala sobre um pacto com o Diabo. Desesperado, Fausto o invoca e, após ser seduzido por poder, glória e as respostas que busca, assina o pacto. Baseado na lenda alemã, que já ganhou incontáveis adaptações para variados formatos, Fausto é a versão cinematográfica de F.W. Murnau para o mito, que traz uma disputa entre o diabo Mefisto e um anjo pelo coração do homem para falar sobre a relação humana com o conhecimento e com a fé. O foco de Murnau é a tentação e a salvação de Fausto. Para isso, o alemão constrói em seu filme uma narrativa que mescla o terror e a fantasia, criando o pavoroso cenário de uma cidade tomada pelo medo, o que justificará as atitudes desesperadas de seu pro-
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tagonista. Com um jogo de luz e sombras magistral, Murnau cria uma atmosfera assustadora, que ganha ainda mais peso pelas ilusões criadas, que trazem cenas como a do Diabo abraçando a cidade, como se sua capa escura simbolizasse a peste trazida. Fausto tem uma aspiração heróica, mas sua irracionalidade o leva para o trágico: é um homem que cede aos instintos e trilha caminho oposto ao da luz. Por sentir-se anacrônico, troca o conhecimento pelo desconhecido, a fim de conseguir respostas absolutas (coisa que a ciência nunca oferece por estar sempre limitada ao conhecimento humano da época) para questões relativas. É, então, quase uma queda para um estado de dissonância cognitiva do personagem, que deixa de viver para o que acredita. Há uma curiosa relação com a fé no filme. Apesar de ser elemento definidor de caráter na sociedade re-
tratada, é justamente a relação humana com a fé que desencadeia momentos trágicos na vida de Fausto (como quando o personagem é apedrejado por renegar a cruz), o que não só permite uma interessante análise da irredutibilidade cristã , como também é uma engrenagem da narrativa que imprime verossimilhança ao pacto entre Fausto e o Diabo, dando mais camadas à transição de “homem do conhecimento” para “homem das trevas”. A obra ainda retrata um Deus que é alheio ao sofrimento de suas criações, algo que é destacado quando um fiel esbraveja que a fé é a única salvação da peste, momentos antes de ser a próxima vítima da doença. Com isso, todos os lados do místico são mostrados como falhos. Fausto é uma tragédia sobre a limitação humana e nossa busca por respostas. Uma obra-prima fantástica, nos dois sentidos da palavra. Trata o obscuro, o desconhecido e místico, como algo sedutor por sua promessa de eternidade, enquanto o conhecimento
oferece apenas a realidade, o fato. O pacto com o diabo Mefisto é, portanto, quase um surto de irracionalidade do protagonista, que abraça o caminho das trevas por não se sentir satisfeito com a realidade.
Matheus Fiore é crítico de Cinema pelo Cineplot, Plano Aberto e Revista Moviement. Também participa do podcast Cinemático.
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Ernst Lubitsch (1892 - 1947) Representante máximo da comédia alemã, Lubitsch, assim como muitos outros cineastas do país, fez muito sucesso em Hollywood com filmes como: Anjo, Ninotchka e Ser ou não Ser
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A BONECA DO AMOR A marca do cinema mudo é a expressividade dos seus filmes e o poder desta habilidade comunicativa na transmissão das emoções e sentimentos. Segundo Lotte Eisner, “o expressionista já não vê, tem visões” (1985, p.19). O mundo apresentado em suas obras nunca é mostrado de forma naturalista, como se fosse uma realidade concreta e estéril. O artista expressionista deforma as ilusões propositalmente para denotar os aspectos sensíveis da realidade, dramas, paixões, acentuando justamente a força das imagens mostradas, pois a imagem é rarefeita pela exposição de si mesma, da sua força involcrua na mis-em-scene que Ernst Lubitsch apresenta. Como Edshmid aponta: “Agora não existe mais a cadeia dos fatos [...] Os fatos tem significado somente
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até o ponto em que a mão do artista o atravessa para agarrar o que se encontra além deles” (1978, p.105). A Boneca de Amor (Die Puppel) de 1919 demonstra em sua própria premissa a força dos filmes de Lubitsch, a universalidade de suas películas, como o próprio diretor afirmava: “Jamais perdi de vista, durante minha carreira, esta ideia de que um filme deve evitar ao máximo situações e concepções que só podem ser apreciadas e compreendidas por uma parcela determinada e limitada de espectadores”, assim utilizando-se do melodrama, dos aspectos teatrais e de uma mis-em-scene que privilegia a concentração humana cotidiana de suas figuras, seja num ambiente que explora o contexto histórico
como Madame Dubarry filme do mesmo ano, seja em suas comédias posteriores em Hollywood, seu foco é o humano das relações, mesmo com toda a suntuosidade de alguns de seus filmes, “Tentei “desoperizar” meus filmes e humanizar meus personagens históricos. Dei o mesmo valor às nuanças íntimas e aos movimentos de massas e procurei fundir estes dois elementos”, sua influência de Max Reihardt foi sempre latente. Lancelot (Hermann Timmig), herdeiro único de uma fortuna vê-se obrigado, por seu tio, rei e dono da fortuna, a casar-se com uma mulher do vilarejo, tão logo é feito um anúncio por toda a região. Quarenta jovens são apresentadas a Lancelot. Assustado com as formas bruscas do ataque feminino, o rapaz refugia-se num convento. No dia em que as candidatas aparecem no castelo, ele se sentindo pressionado foge para um mosteiro, é lá junto com os monges monta uma farsa para se dar bem com a fortuna, Contornado o problema, ele pede a um fabricante de brinquedos, Hilarius (Victor Janson), que faça uma boneca de aparência real, para passar por sua noiva. A filha do fabricante, Ossi (Ossi Oswalda), quebra a boneca e toma o lugar dela. Em conivência com os monges, Lancelot leva-a ao convento e lá descobre a verdade. Nesta altura, estão apaixonados um pelo outro. O filme começa com um resgate sobre a própria dinâmica de construção do cinema como manufatura de sonhos, a figura do diretor na construção de uma casa de maquete dentro do plano cinematográfico e a história ali se desenrolado num espaço fabricado, numa casa de boneca. A mis en scene mágica mistura esses “puppets” à realidade cênica, junto com cenários e desenhos a mão. Tal espaço cênico mistura-se entre realidade e fantasia, algo caro ao cinema mudo e especialmente alemão da época. A metáfora de construção de um cenário de bonecos, como já dissemos, é analoga ao próprio trabalho do diretor de criador e condutor, autor pleno como Lubitsch permanecia. Apesar de não ser relacionado em efetivo com o expressionismo alemão, a disposição dos cenários, gestual das personagens, cenários fabrica-
dos, nada corresponde ao real expresso, a inserção de desenhos ao longo da película corroboram essa aura de fantasia, o embate da própria alegoria do aparelho cinemático à constante transmutação de sonho em realidade. Toda a arquitetura evoca um calligarismo latente, toda pantomima arquetípica do período. Lancelot é o jovem desajeitado, deslocado dentre todos os costumes, que recebendo a noticia da necessidade de seu casamento iminente, despertando nessa obrigatoriedade um sentimento de inadequação, algo que para esses jovens da Belle Èpoque eram as amarras que tanto buscavam desvencilhar-se. É sintomática a chegada de Lancelot ao monastério, pois as tradições o cercam, dentre sua herança burguesa e todo aparato de sustentação que as constela, casamento e religião. Lubitsch faz da burguesia sua própria refém. A aliança programada dos padres ambiciosos e o burguês fugitivo das pretendentes, servindo à alegoria para toda uma História pregressa que marca tal aliança, um síntese do próprio processo paradoxo de embate de forças entre tais entidades. A caricatura não só da pantomima, mas das personagens e seu gestual, relega aos sarcedotes toda a carga cômica, mas ao mesmo tempo anedótica de acomodação, retratados como glutões. A solução apresentada pelo filme de construir uma boneca para Lancelot se casar, entra em consonância com diversos dos temas caros ao Expressionismo Alemão, a manufatura seja mágica ou científica de um constructo, seja a partir de um elemento fantasioso como em Golem (Der Golem) de Carl Boese e Paul Wegner, seja um vampiro como em Nosferatu de F,W, Murnau, ou uma androide em Metropoles de Fritz Lang. Quase como uma busca da época por (re) criar a essência do humano, uma perfeição pleiteada. A figura ainda de um criador, um mestre detentor do conhecimento de criar algo sintético, e ao mesmo tempo à semelhança do humano, quase como um alquimista, pois a própria imagem do mago e cientista se misturam no expressionismo, talvez pelas próprias teorias da época que muitas vezes equacionavam ambos. A questão da farsa nos filmes de Lubitsch são recorrentes, não à toa talvez seu maior fã declarado
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Billy Wilder explorava esse mecanismo de roteiro em todos os seus filme, Quanto mais Quente melhor (Some Like Hot) por exemplo dialoga diretamente com A Boneca do Amor, quando as personagens.de (Tony Curtis) e (Jack Lemmon) se travestem de mulheres para fugir de mafiosos, ou (Ginger Rogers) em A Incrível Suzana (The Major and The Minor) onde uma mulher mais velha, cansada de ser tão assediada, se passa por una adolescente. Lubitsch usará bastante esse recurso em seus filmes.posteriores de Hollywood, talvez o mais famoso deles sendo Ser ou não Ser (To be or Not to Be). Para referenciar ainda tal trajetória imagética perpétua, ainda assistimos uma cena perto do fim de Boneca do Amor, onde a noite, num plano geral, avistamos diversas janelas dispostas, com iluminações variantes, sendo impossível não transportamo-nos à Janela Indiscreta filme de Alfred Hitchock, denotando um processo reteoalimentar de Lubitsch como autor refletido em diversos diretores. Lubitsch se utiiza ainda de muitos efeitos arrojados à época como inserção de desenhos animados, téc-
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nicas avançadas de trabalho fotográfico manipulando a película simulando efeitos temporais, closes de atores recortados, em algum grau sua aproximação e aprimoramento das técnicas de Georges Méliès são extensivas e pioneiras, destacando-se dentre uma miríade de diretores do próprio Expressionismo Alemão, que tanto se destacavam como artesãos destas bricolagens cinematográficas.
Neylan Porto é crítico de Cinema pelo Cineplot e Cronologia do Acaso.
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METROPOLIS
ENTRE O EXPRESSIONISMO E A NOVA OBJETIVIDADE O Expressionismo Alemão nasce no cinema na década de 1920 a partir de uma visão subjetiva de seu tempo-espaço. Nesse período, a Alemanha vivia um momento de instabilidade política, econômica, social e moral após a eminente derrota na Primeira Guerra Mundial, cenário ideal para a emergência do movimento, pessimista e sombrio por natureza. O movimento expressionista é, talvez, aquele que melhor representa seus sentimentos presentes na paisagem. A afirmação se sustenta na máxima expressionista dita por Lotte Eisner em sua clássica bibliografia “A Tela Demoníaca”: “a imagem do mundo nele se reflete em sua pureza primitiva, a
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realidade é criada por nós, a imagem do mundo só existe em nós”, ou seja, o que é transmitido em tela nada mais é que uma expressão do artista sobre o mundo real, uma visão deste, que apenas existe nele. Sabendo que a arte nasce, também, da inquietação que o artista tem em relação ao seu meio, nada mais comum que surja uma adoração pelas sombras, pelo obscuro, pelo pesadelo presente na estética expressionista e na paisagem extremamente contemplativa devido às longas tomadas abertas. No momento em que se assiste a constituição visual de Metropolis deve-se ter em mente que esta é uma visão de uma paisagem distópica que, porém, é uma expressão do real. As intencionalidades presentes ganham valor
de acusação da perversidade do momento. Contudo, Metropolis, dirigido por Fritz Lang, é um filme de 1927, momento em que a Alemanha já vinha se recuperando das mazelas deixadas pela derrota na Grande Guerra. O terror vinha sumindo e, assim, o movimento expressionista encontrava-se em queda. Porém, a percepção sobre o obscuro ganhou outro alvo. As máquinas, que cada vez mais ganhavam força no território alemão, tornaram-se o novo assombramento. Se o movimento expressionista, para muitos, teria findado por volta do ano de 1925 com a volta da prosperidade, Metropolis tornou-se um filme que caminha no limiar entre o movimento que levou os filmes alemães ao mundo e a Nova Objetividade. O curioso é que a Nova Objetividade foi um movimento nascido em contraposição ao cinema expressionista que se produzia no território alemão e, ainda assim, é possível ver o diálogo entre ambos em Metropolis. Como característica, a Nova Objetividade propunha cortes realistas na exposição de suas imagens, o exato oposto do expressionismo. Com a ascensão das máquinas pós 1925, aquilo que havia de mais obscuro ganharia luz através da prosperidade trazida pela máquina. Eis que surge, então, um novo pesadelo, mas nascido do concreto. Os medos demonstrados pelos expressionistas migram da decadência moral escancarada pela derrota da guerra e as mazelas sociais que dela foram consequência para os medos impostos pela relação do homem com as máquinas. Não há nada mais concreto que a máquina, nada melhor para a Nova Objetividade. Não há, contudo, nada melhor para o expressionismo do que os medos provenientes delas. Em uma cena bastante emblemática, uma máquina filmada com cortes bastante realistas que se assemelham a uma fotografia objetiva transforma-se em um deus devorador. A exemplificação imagética do limiar. Entre o Expressionismo e a Nova Objetividade. Promove-se uma metáfora de espaços fragmentados ou uma alusão a segregação socioespacial. Homens caminham em direção ao elevador após o fim do expediente de trabalho como se caminhassem para campos de concentração, de cabeças
Na primeira imagem uma fotografia da Nova Objetividade de Hans Gunter Flieg. Em seguida a máquina de Metropolis que, ao demonstrar os pesadelos, transforma-se no Deus devorador, como mostra a terceira imagem.
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baixas, sem qualquer individualidade. Na paisagem o concreto, na alma o obscuro. Confirma-se o fato ao descerem para o submundo e encontrarem uma paisagem também concreta, que não demonstra qualquer apresso pelo individuo, que milimetricamente apresenta as janelas, lado a lado. Mais uma vez o concreto demonstra o obscuro. Enquanto isso, no “céu”, o ambiente dos aristocratas, uma paisagem divina, olímpica, que mais tarde será aproveitada por Leni Riefenstahl e pela estética nazista. O objetivo aqui, porém, não é fazer uma análise completa de Metropolis, mas de seu contexto de inserção entre dos movimentos artísticos teoricamente opostos. O encontro dos dois movimentos fez com que surgisse uma nova estética promovida por Fritz Lang que, também distinguindo o filme dos demais filmes expressionistas, fez culminar um épico de direção de multidões. O concreto se junta ao onírico, a ciência aos sonhos, e a atração pelo obscuro e pelo indeterminado ganha novas formas.
Philippe Leão é crítico e professor de Cinema, fundador e editor chefe do Cineplot e Especialista em Cinema Alemão, em especial Expressinista e Nazista.
Na primeira imagem os homens caminham, sem qualquer individualidade, ao elevador. Em seguida o submundo, o inferno na metáfora de Metropolis. Na terceira imagem o “céu”, olimpiano em sua paisagem.
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CRIAÇÃO DE VIDA ARTIFICIAL CIÊNCIA, MAGIA E ALQUIMIA NAS SOMBRAS DE WEIMAR
O cinema foi a última das artes onde chegou o Expressionismo, um movimento artístico e cultural de vanguarda que surgiu na Alemanha no começo da década de 1910 e rapidamente se manifestou na arquitetura, literatura, pintura, escultura, fotografia, música, teatro, dança. Coincidiu com a eclosão da grande guerra mundial que devastou a Europa – e em especial a própria Alemanha – entre os anos 1914 e 1918; o Expressionismo chegou às telas de cinema precisamente nesse período pós-guerra, com O gabinete do Dr. Caligari, em 1920, com seus ângulos oblíquos e sombras pintadas em ziguezague. E trazia nesta gênese um traço cultural tipicamente germânico: a inclinação por contos de terror e narrativas fantásticas, de morte, pactos diabólicos, relações mórbidas e macabras, da superstição e do destino trágico e inevitável. A predileção temática remete à literatura gótica alemã do final do século XVIII, que influenciaria escritores britânicos e criar alguns dos grandes clássicos do horror e da fantasia, como Frankenstein e Drácula. Um novo e renovado gênero cinematográfico surgiu quando “os fantasmas, que antes tinham povoado o romantismo alemão, se reanimaram tal como as sombras de Hades ao beberem sangue”, conforme
resumiu Lotte H. Eisner, uma das principais teóricas do movimento expressionista e autora do indispensável livro A tela demoníaca. É um esforço inútil (e que traz poucas respostas aproveitáveis) tentar mapear as origens do horror cinematográfico, mas é inegável a contribuição germânica à consolidação do gênero como uma manifestação de imenso poder artístico e emocional, responsável por alguns dos primeiros filmes de longa-metragem do horror mundial, e por estabelecer os alicerces técnicos e psicológicos que resultariam na formatação do gênero nas telas. A Alemanha, vivendo então sob ordens de um governo provisório que ficou conhecido como República de Weimar, foi cenário de uma efervescência cultural sem precedentes para a estética do cinema, de um modo geral, e para o gênero fantástico mais especificamente. Dentre tantos temas que dominaram as telas neste período, um dos que mais rendeu obras marcantes e influentes foi a criação de vida artificial: quer seja pela ciência, magia ou alquimia, ou como manifestação sobrenatural, os artistas envolvidos nessas narrativas pareciam sugerir que Deus havia se tornado substituível em sua capacidade soberana da criação da vida. Estátuas de barro, réplicas de metal ou mulheres inumanas geradas artificialmente – a
Doppelgänger em Metropolis, Maria e seu Duplo malígno em forma de máquina
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vida fabricada pelas mãos dos homens se tornou uma obsessão no Expressionismo. Doppelgänger Talvez a origem do fascínio germânico pela capacidade de replicar a vida humana venha do folclore do doppelgänger, o duplo maligno sobrenatural que surge para assombrar sua contraparte boa e humana. A linguagem narrativa das imagens em movimento ainda era muito rudimentar – e anos antes do cinema descobrir o Expressionismo – quando foi realizada a primeira versão de O estudante de Praga, em 1913. O filme, com direção de Stellan Rye e protagonizado por Paul Wegener, que alguns anos depois ficaria imortalizado pela imagem icônica do Golem, causou imenso impacto e serviria como um dos alicerces do cinema de terror mundial. A história do estudante que vende seu reflexo a uma figura sinistra em troca de riqueza para conquistar seu grande amor teve pelo menos mais duas versões clássicas: em 1926, com direção de Henrik Galeen e estrelado por Conrad Veidt e Werner Krauss (a mesma dupla de O gabinete do Dr. Caligari) e novamente no período sonoro, em 1935, com direção de Arthur Robison. O tema do duplo fantasmagórico está presente ainda em filmes como Der andere (O outro), dirigido por Max Mack em 1913 (refilmado em 1930, por Robert Wiene), e obras desaparecidas, como O pavor (1920), uma adaptação do livro O médico e o monstro (1886), de Robert Louis Stevenson, com direção de F.W. Murnau que, com a mesma temática, realizou Fantasma (1922) e a versão de O retrato de Dorian Gray – baseada na obra de Oscar Wilde – dirigida por Richard Oswald em 1917, no qual o duplo maligno é representado pela pintura que se degenera. Talvez a mais famora das obras sob a tutela do doppelgänger seja Metropolis (1927), de Fritz Lang, e o duplo androide malígno de Maria. O Golem e a Mandrágora Dois personagens se destacam entre as criaturas não-naturais do Expressionismo: o Golem, uma estátua de barro animada por meio de magia, e Alraune, a mulher sem alma nascida por meio de uma experiência científica cruzando uma prostituta com uma raiz de mandrágora. A primeira versão cinema-
O Golem, assim como a réplica andróide de Maria em Metropolis, um representante famoso das criações não naturais de vida.
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tográfica do Golem foi lançada em 1915, com direção de Henrik Galeen e tendo Paul Wegener no papel da imponente criatura de barro que ganha vida e causa destruição. Restaram apenas alguns poucos fragmentos deste filme, que tinha sua trama ambientada no cenário contemporâneo, ou seja, no começo do século XX. Dois anos depois, Wegener repetiu o papel na comédia Der Golen und die Tänzerin, na qual interpreta um ator que se veste de monstro, em referência ao filme anterior; a obra, porém, desapareceu sem deixar vestígios. Em 1920, Paul Wegener voltou ao papel do monstro pela terceira e última vez na versão que se tornou clássica e mundialmente conhecida, dirigida pelo próprio ator em parceria de Carl Boese. Uma obra-prima expressionista em todos os detalhes, com cenários impressionantes criados pelo arquiteto Hans Poelzig, o filme segue de maneira mais solene a lenda tcheca sobre um rabino do século XVI que cria uma estátua de barro para proteger os judeus na cidade de Praga e lhe dá vida por meio de um encantamento. No entanto, o monstro foge do controle e se torna uma ameaça, sendo derrotado somente quando uma criança inocente retira seu “coração” artificial. Tendo como subtítulo “como ele veio ao mundo”, o filme pode ser considerado umas das primeiras prequel do cinema mundial.
O romance de terror Alraune, escrito por Hanns Heiz Ewers (1871-1943) e publicado pela primeira vez em 1911, conta a história do cientista Jakob ten Brinken, que estuda as leis da hereditariedade e realiza uma experiência em seu laboratório, impregnando uma prostituta com o sêmen de um assassino condenado que morreu na forca. Desta relação antinatural nasce uma menina, a qual o professor dá o nome de Alraune, que não conhece conceitos morais e leva uma vida de perversidade e obsessão sexual. O livro se baseia vagamente numa lenda alemã da Idade Média sobre a raiz – de forma humanoide – da mandrágora, que se acreditava nascer no solo abaixo de uma forca pelo sêmen derramado de um condenado (alquimistas alegavam que o homem enforcado ejaculava depois de ter o pescoço partido, impregnando a terra abaixo). O primeiro filme alemão chamado Alraune foi feito em 1918, codirigido por Eugen Illés e Joseph Klein, mas é uma história de bruxaria e fantasma que não tem relação com o livro de Ewers; a mandrágora é usada na história apenas para fazer uma poção de cura. No mesmo ano, na Hungria, foi realizado outro filme com o mesmo nome, com direção de Mihály
Brigitte Helm é destaque em Alraune: doce e sedutora, mas também fatal e impiedosa
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Kertész (ou Michael Curtiz) e Edmund Fritz, mas a obra se perdeu e não se sabe o quanto é próximo da história original. A versão cinematográfica de Alraune considerada como sendo a definitiva foi realizada em 1928, com direção de Henrik Galeen e estrelada por Paul Wegener, no papel do Prof. Jakob ten Brinken, e Brigitte Helm como a perversa Alraune. Na trama, o médico geneticista decide investigar a cientificamente a superstição para ver se tem algum fundamento, mas a criatura que a mandrágora gera é fria como a morte, sem coração. O filme foi refeito apenas dois anos depois, com o advento do som, dirigido por Richard Oswald e estrelado por Albert Basserman no papel do cientista, novamente com Helm como Alraune. O destaque de ambos os filmes é a personalidade dominante de Brigitte Helm, doce e sedutora, mas também fatal e impiedosa. O papel mais famoso de sua carreira não difere muito de Alraune: ela é a Maria de Metrópolis (1927), de Fritz Lang, que é duplicada em forma de robô para controlar os operários de uma cidade futurista numa distopia épica de ficção científica que é considerada uma das obras-primas do cinema. Semelhante a Alraune em sua questão moral da vida artificial ser incapaz de compreender o amor, a saga Homunculus, formada por seis episódios dirigidos por Otto Rippert em 1916, narra a história de um ‘homúnculo’ criado artificialmente em laboratório por um grupo de cientistas. O ser cresce como um humano normal, mas torna-se cada vez mais frustrado pela falta de bons sentimentos, e quando chega à idade adulta, descobre sua verdadeira origem e se rebela contra a Humanidade. Apesar de sua proposta ambiciosa e a importância histórica, Homunculus é pouco comentado e menos ainda assistido. Somente o quarto filme da saga ainda existe (numa cópia em péssimas condições), porém uma versão condensada da série (com 76 minutos de duração), lançada na Itália, também foi preservada. Embora ainda preso ao formalismo do melodrama da época, é uma obra instigante. Para o bem e para o mal Outras histórias – com propostas mais leves e cômicas – sobre criação de vida artificial incluem
adaptações (no período pré-expressionista) de um conto de E.T.A. Hoffman (1776-1822) sobre uma boneca mecânica, nos filmes Contos de Hoffman (1916), de Richard Oswald, e A boneca do amor (1919), de Ernst Lubitsch, que destaca a deliciosa atuação de Ossi Oswalda como a filha de um fabricante de bonecas que se finge de uma de suas autômatas, depois que a original quebra. Revisitando todo o período histórico e considerando os acontecimentos trágicos provocados pela ascenção do Nazismo, que eclodiriam na Segunda Guerra Mundial, é inevitável que nos venha à mente as controversas experiências genéticas conduzidas pelos nazistas com cobaias humanas, como as atrocidades do famigerado Dr. Josef Mengele. O cinema expressionista em parte previu isso, e na tradição do conto de terror, condenou moralmente a interferência com as leis naturais – invariavelmente, o destino das criaturas artificiais (e de seus criadores) é a destruição. Convencionou-se que o movimento expressionista surgiu com Caligari e definhou no início do período sonoro, cessando em decorrência do êxodo de seus principais realizadores em virtude da ascensão nazista. Alguns teóricos consideram expressionistas somente as obras com cacoetes caligarianos, mas nos parece muito mais interessante observar que os conceitos da fantasia, do horror e da magia dominavam o cinema germânico desde seus primórdios, e depois se alastrariam pelo resto do mundo numa grande variedade de monstros destruidores e mulheres fatais. Criaturas imortais que continuam habitando o cinema até os dias de hoje.
Carlos Primati é crítico de cinema, curador e tradutor especialista em Cinema Fantástico.
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A VIDA E OBRA DE G. W PABST Vivemos numa época em que o comportamento público e a vida particular de artistas são mais importantes que as suas respectivas obras. Diante de realizações artísticas, críticos e especialistas de determinadas áreas preferem prestar atenção ao que é dito ou feito externamente em vez de analisar as características e julgar valores de um objeto específico. No entanto, esse não é um fenômeno novo e, embora tenha um dos seus picos na atualidade, ele já deu as caras em outros momentos. Na história do cinema, ainda na primeira metade do século XX, a principal vítima desse julgamento inquisitorial foi Georg Wilhelm Pabst, cineasta cuja filmografia fora completamente ofuscada pelos filmes que dirigiu
para o ministério de propaganda do regime nazista. Claramente, não estou dizendo que isso deve ser aceito ou visto como algo irrelevante, apesar de ser necessário levar em conta certos aspectos, como o fato de Pabst ter se arrependido posteriormente, a versão oficial da história afirmar que ele fez filmes para o regime de Hitler porque não conseguira escapar da Áustria e alguns dos longas que dirigiu no fim da carreira possuirem uma nítida aversão ao nazismo. Porém, todos os elementos dessa situação devem ser julgados sob uma outra luz, a qual pouco ou nada tem a ver com os seus filmes, principalmente com a fase mais relevante de seu trabalho (a ini-
Injustamente esquecido, Georg Wilhelm Pabst é um dos principais diretores alemães da primeira metade do século XX
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cial) e que se coloca inteiramente distante de propagandas políticas ou ideológicas. Portanto, para que a filmografia do diretor seja analisada novamente através de uma perspectiva crítica, torna-se essencial reapresentar o sujeito e a obra para o público. Nascido no dia 27 de Agosto de 1885, numa provícina do Império Austro-Húngaro, Georg Wilhelm Pabst ainda era novo quando a família se mudou para Viena, cidade na qual iniciou os seus estudos elementares e acadêmicos. Frequentou a faculdade de engenharia até 1902, quando decidiu mudar o campo de aprendizado e se tornar um aluno da Academia de Artes Decorativas de Viena. Em 1904, começou a trabalhar como ator, o que fez com que viajasse para vários países. Em Nova York, foi uma figura importante no Teatro Germânico, embora tenha retornado à Europa quando a Primeira Guerra eclodiu e virado prisioneiro. Nessa época, chegou até a improvisar uma companhia de teatro com outros detentos, a qual durou até 1918, ano em que foi para Viena. Na cidade em que viveu a maior parte de sua juventude, foi membro de um teatro vanguardista onde encenou peças expressionistas. Em 1920, já morando em Berlim, optou por se arriscar no mundo do cinema e explorar as possibilidades de uma arte que não tinha sequer três décadas de existência. Inicialmente, foi ator nos filmes do cineasta Carl Froelich. Posteriormente, em 1923, começou a sua carreira como diretor. O seu primeiro longa metragem chama-se O Tesouro e conta a história de um grupo de personagens buscando desenterrar o ouro que se encontra debaixo de uma casa. Como o Expressionismo reinava na Alemanha da década de 1920, a estreia de Pabst por trás das câmeras ainda possui características parecidas com as principais obras dessa escola estética. Entretanto, também é possível notar alguns atributos do Kammerspiel, movimento cinematográfico surgido na década de 1920 e cujas características (realismo, poucos diálogos e austeridade dramática) eram uma espécie de resposta aos expressionistas. Essa predileção pela abordagem realista, aliás, guiou o diretor pelos anos seguintes. Quando alguns artistas decidiram que a vida devia ser mostrada de forma nua e crua, Pabst se trans-
formou no principal nome do movimento (intitulado de Nova Objetividade). Rua das Lágrimas, filme que o cineasta dirigiu depois de A Condessa Donelli (longa há muito tempo perdido), talvez seja o exemplo perfeito. Mostrando um grupo de personagens profundamente modificados pelo contexto social e econômico da República de Weimar, Pabst compôs um retrato denso e relevante da Alemanha que estava prestes a sofrer mudanças históricas definitivas (além, é claro, de revelar Greta Garbo ao mundo). Porém, uma vez que Pabst foi um desses diretores livres, que não gostavam de ficar presos a uma série de regras ou preceitos estéticos (como todos os grandes artistas), logo no seu filme seguinte ele abordou a psicanálise. Foi, inclusive, o primeiro a fazer isso. É verdade que a teoria analítica criada por Sigmund Freud esteve presente desde os primórdios do cinema, mas, até então, ela tinha aparecido de maneira implícita ou como um componente estruturante da realidade cinematográfica. Em Segredos de uma Alma, a abordagem de Pabst é realista e direta (mesmo tendo alguns elementos surreais e oníricos), o que fez com que novos territórios fossem desbravados e o seu cinema atingisse outros patamares. Pode até se dizer que pavimentou o chão sobre o qual ergueria suas três obras-primas seguintes: A Caixa de Pandora, Diário de uma Garota Perdida e Guerra, Flagelo de Deus. A primeira é considerada por muitos historidadores como o grande filme do diretor. Narrando uma história brutal de perdição e morte (além de conter uma performance inesquecível de Louise Brooks), Pabst realizou um dos filmes definitivos da história do cinema, de tal modo que a primeira e mais importante fase de sua carreira costuma se confundir com esse longa. De todos os filmes do diretor, esse é o que manteve a fama com o passar dos anos e se estabaleceu como um clássico definitivo do cinema. A segunda obra-prima, por sua vez, é um retorno ao realismo social, mas, ao mesmo tempo que trilha caminhos similares às da primeira, também consegue apresentar qualidades únicas e especiais (muito em razão das possiblidades dramáticas de sua história). Por fim, a terceira (e minha preferida) é sobre a Primeira Guerra Mundial (um assunto pessoal e muito caro ao diretor) e trata-se de um retrato inesquecível dos males e dores inerentes
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às guerras. Juntos, esses filmes representam o coração da filmografia pabstiana. Todas as suas qualidades como diretor estão presentes em cada um desses longas. Nos anos seguintes, ele até fez filmes que repercutiram positivamente entre o público e a crítica - a adaptação cinematográfica de A Ópera dos Três Vinténs, o título seguinte da chamada “Trilogia Social”, Comradeship, e uma versão de Dom Quixote -, mas são esses três filmes os responsáveis pela eternização do diretor. Sim, no turbilhão histórico, político, econômico, social e cultural que marcaria a Europa das décadas de 1930 e 1940, Pabst fez três obras para o regime nazista e os longas lançados depois da Segunda Guerra Mundial (alguns dos quais seriam feitos em outros países) não apresentaram o mesmo nível de sucesso e aclamação (embora The Comedians tenha saído premiado no Festival de Veneza), mas nada disso parece capaz de apagar o que fora conquistado anteriormente na seara artística. Recentemente, passou a existir um interesse maior pelos filmes do cineasta. Já é possível enxergar um certo movimento tímido por parte de críticos em direção a uma melhor compreensão do que foi o cinema de Pabst. O dado curioso é isso esteja acontecendo numa das épocas em que a censura moralista e não-artística se mostra fortíssima
(como os casos envolvendo nomes quentes da indústria hollywoodiana deixam claro). Contudo, independentemente disso, os filmes do cineasta estão adquirindo uma nova vida entre a cinefilia contemporânea. E faz sentido que assim seja, uma vez que o cinema alemão foi riquíssimo durante as duas metades do século XX e renegar ou não dedicar atenção a um dos sujeitos que foi responsável por esse estado de coisas é um amadorismo analítico inaceitável. Falar sobre o começo do cinema é falar sobre cinema germânico e falar sobre cinema germânico é falar também de Georg Wilhelm Pabst. E não há nada capaz de alterar esse fato.
Miguel Forlin é crítico de Cinema pelo Estado da Arte, site Bastidores e Formiga Elétrica.
A Caixa de Pandora, Diário de uma Garota Perdida e Gerra, Flagelo de Deus. As obras-primas de G W Pabst
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DIÁRIO DE UMA GAROTA PERDIDA DE G.W PABST
Diário de Uma Garota Perdida é a segunda adaptação cinematográfica do best-seller de Margareth Böhme. A obra, que critica o moralismo da sociedade alemã e retrata decadência da burguesia naquele tempo, ironicamente rendeu muitas acusações para sua autora, que passou a ser vista como prostituta (além do próprio livro, que afirmavam ser uma autobiografia). O filme de Georg Wilhelm Pabst mantém o tema central da obra literária, mas adiciona um toque de ironia sobre a inerência da tristeza na vida humana. A trama do longa mudo gira em torno de Thymian Henning (Louise Brooks, em sua segunda parceria com Pabst após A Caixa de Pandora, lançado mais cedo, no mesmo ano). A jovem, filha de um farmacêutico, é estuprada por Meinert, assistente do comércio de seu pai. Thymian, então, é expulsa de casa e vai viver em um reformatório, e sua criança é entregue para a adoção. Por se tratar de uma obra pertencente ao Kammers-
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piel, movimento contemporâneo ao Expressionismo que prezava por diálogos econômicos, Diário de Uma Garota Perdida aposta mais na força das atuações. Aqui, há um elemento central para que os atores alcancem seu potencial em cena: a câmera de Pabst. O diretor escolhe utilizar sempre planos frontais com seus atores centralizados, dando ênfase aos olhares, que, graças ao alto nível das atuações de Louise Brooks, Fritz Rasp, Josef Rovenský e demais, são capazes de transmitir toda as emoções e nuances psicológicas diante dos conflitos da trama. A estrutura dos acontecimentos da narrativa também tem característica peculiar. Os momentos mais intensos da obra sempre são sucedidos por passagens leves, como quando após um funeral, a história continua diretamente para uma tarde na praia, onde vemos personagens brincando e se divertindo. Mesmo com esse choque de tons, porém, os momentos de alegria e respiro sempre são subvertidos
e transformados em tragédia. Com isso, cria-se uma sensação de inevitabilidade da melancolia, como se a tristeza fosse inerente à condição humana. Já o texto foca principalmente na decadência daquela sociedade. O pai de Thymian, por exemplo, tem um histórico de agressões sexuais com as empregadas da casa, o que, transformando-o num sujeito mau caráter, destaca sua hipocrisia e falso moralista por crer que, enquanto sua conduta sexual é perdoável, a filha merece ser castigada por ser vítima de um estupro. Além disso, todo o processo de “correção” da filha, que é mandada para o reformatório, prova-se extremamente falho e violento: o lugar mais mascara as personalidades das meninas que lá moram do que qualquer outra coisa. Não há uma “transformação”, apenas o uso de coerção para sufocar as meninas. Diário de Uma Garota Perdida é uma adaptação perfeita. Transporta para as telas toda a força do texto da obra de Margareth Böhme ao passo que, nas
mãos (e olhos) de Pabst, ganha ainda uma análise da condição humana muito mais abrangente, dando uma irônica aura de inevitabilidade ao trágico. Há sua dose de moralismo nos diálogos finais, mas que são compreensíveis quando analisamos a obra dentro de seu contexto cultural.
Matheus Fiore é crítico de Cinema pelo Cineplot, Plano Aberto e Revista Moviement. Também participa do podcast Cinemático.
Louise Brooks é a estrela desse clássico Kammerspiel. A segunda parceria da atriz com G.W Pabst
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GENTE NO DOMINGO “Um filme sem atores”, é o que indica a legenda nos primeiros segundos de “Gente no Domingo”. Quem seriam, então, aquelas pessoas por trás da câmera? Pessoas sendo captadas espontaneamente pelos mais diversos enquadramentos explorados ao longo da película? Um cinema realista? A verdade é que, quando se trata de arte, as mais diferentes noções de realismo devem ser questionadas com muita severidade, mas muita mesmo. Acontece que, em primeiro lugar, não existe realismo na arte, dado que esta é, ou pode ser, uma representação simbólica da realidade, mas nunca (impossível!) captará a realidade tal como ela é, pois a realidade só é realidade enquanto vivida no momento. Mesmo que seja um documentário – o senso comum pensa que o documentário é sinônimo de verdade –, o plano da arte sempre estará envolvido na ficção. Enquanto muitos pensam dois extremos, de um lado o documento e do outro a própria ficção, é possível pensar que, na verdade, tudo é ficção, e o documentário seria, “apenas”, um subgênero dentro desse grande globo da arte: a ficção. O mesmo serve para a literatura, não separando a ficção da biografia, pois esta seria um subgênero da ficção.
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de Robert Siodmak
Em “Gente no Domingo”, um filme sem atores, a câmera capta os movimentos comuns do dia a dia. É como a câmera de Dziga Vertov, bisbilhoteira, que parece observar aquele dia a dia comum dos atores sociais, sem qualquer intervenção dos mesmos personagens da imagem por algum tipo de encenação. Sem dúvidas pode existir a ideia de não atores pelo modelo tradicional, mas, só por estarem nas imagens, ainda que espontaneamente, são atores, são agentes, estão performatizando de alguma forma. Se a performance é quase que um modo de comportamento inclinado a uma situação específica, muito como pensa a linguística de William Labov, os atores sociais, de qualquer forma, estariam atuando. Esse pensamento é ainda mais afirmado se pensarmos na ideia de manipulação da linguagem, pois o cinema, com os seus recursos próprios, consegue manipular até mesmo o cotidiano natural de um animal na natureza selvagem, como diversas emissoras costumam fazer. A estética fílmica manipula através de cortes, através de enquadramentos, através da trilha musical, entre outros elementos. “Gente no Domingo”, então, é um filme de atores,
e aquela legenda inicial é uma grande brincadeira. Uma grande brincadeira introdutória de uma grande porção de humor, é um filme que ditaria a sua proposta engraçada através da observação do comportamento humano em um dia de domingo até o final. Naquele começo dos anos 1930, quando o cinema era ainda um bebê, “Gente no Domingo” foi, de fato, um dos primeiros trabalhos cinematográficos em seu gênero, o falso documentário. Por qual razão um falso documentário? Falso documentário pela razão de camuflar-se na proposta de documentário, sendo que em muitos momentos está havendo uma encenação. É, de fato, um filme híbrido, em que existe uma intenção de filmar aquele cotidiano como se fosse o mais natural possível, e em cenas de planos mais abertos, como a vista de cima sobre a movimentação da cidade, ou até mesmo a cena de um parque rodeado de famílias em um piquenique, há a naturalidade de um documento, sem encenação de atores, apenas com a encenação dos cortes e do enquadramento na manipulação da imagem. Em outros diversos momentos, porém, a performance é tradicional, de atores que gesticulam muito, baseados em personagens criados na pré-produção. Claro, “Nanook, o Esquimó”, muito antes de “Gente no Domingo”, embarcaria nessa ideia de flertar a invenção junto ao testemunho, o documentário faz muito isso, é um subgênero híbrido, mas traz uma proposta de ser “real”, geralmente mais didática, quer ser mais “testemunho” do que “invenção”, até mesmo nos documentários poéticos, não quer camuflar o documento em uma ficção. Ao contrário, o filme alemão traz movimentos de testemunho, quer se aproximar deste, mas a proposta é mais encenada, ou melhor, mais explicitamente encenada, apenas complementada por cenas documentais, como as citadas no parágrafo acima.
Nessa mesma cena do fotógrafo e seus modelos, ainda, é necessário destacar a ideia de muitas pessoas olharem diretamente para a câmera, quebra com a tal da espontaneidade de um documentário comum, é um filme muito à frente do seu tempo em utilizar tal tipo de representação de frente para o narrador. “Gente no Domingo” é um filme impressionante em diversos quesitos, principalmente na ideia de ser uma grande aula informal, isto é, muito bem humorada, sobre os limites performáticos no campo do cinema. A película faz também uma variedade de planos enorme. Explora com maestria os planos mais fechados e os planos mais abertos. O enquadramento de conjunto é muito encontrado ao longo da narrativa, muito bem-vindo ao trazer a ideia justa de conjunto, pois não há um personagem principal, o grande protagonista é toda aquela gente no domingo, é o conjunto. Além disso, o plano detalhe é muito explorado, importante para trazer alguns detalhes da construção de personagem, muitas vezes focado em cigarros ou cinzeiros, traz a impaciência de uma certa figura da história. O longa-metragem que está sendo analisado aqui é, sem sombra de dúvidas, um experimento em diversos aspectos. No final, mais uma brincadeira do longa-metragem, de que quatro milhões de pessoas na Berlim da época, ao chegar segunda-feira, dia de trabalho, esperam ansiosamente pelo dia de domingo. É a questão de uma das vias de pensamentos de Albert Camus, de que o homem precisa empurrar a pedra para o topo da montanha, depois ela cairá, e depois o homem terá de empurrá-la novamente, é o eterno retorno. No caso do filme, o homem precisa trabalhar e esperar o domingo, dia do descanso, e a câmera bisbilhoteira capta a encenação-observação do comportamento humano de uma sociedade em ascensão industrial em um dia de folga.
Ainda sobre a performance da encenação, por exemplo, em uma das cenas mais interessantes do longa-metragem, um fotógrafo, em um parque, tira fotos de diferentes pessoas. Muito do que acontece em frente a sua câmera é encenado, encenado pelas poses feitas pelos personagens, muitas vezes com uma careta na afirmação da proposta cômica, criando, também, uma brincadeira nos entornos da questão da representação, é um momento Leonardo Carvalho é forde autorreflexividade, como diria Robert Stam, mado em Letras italiano e o filme pensar/comentar sobre o próprio código. crítico de Cinema no Cineplot.
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Leni Riefenstahl (1902 - 2003) Uma das grandes artistas alemãs, apesar de sua ligação com a arte maldita do III Reich, foi de fundamental importância para o desenvolvimento da técnica documental.
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LENI RIEFENSTAHL E O NAZISMO: DAS PAIXÕES ROMÂNTICAS AO RACIONALISMO Não é preciso contar a história do Nazismo na Alemanha, em especial no III Reich. O fato histórico é amplamente conhecido em seu âmbito comum (mesmo que vez ou outra o espírito totalitário emerja nos dias de hoje). Poucos sabem, porém, as motivações para um regime tão devastador. Antes que falemos de Leni Riefenstahl, demos um breve apanhado filosófico sobre o assunto. Dentro dos estudos filosóficos e políticos, por muito tempo – e ainda hoje – ligou-se o Nacional Socialismo à filosofia Romântica. É simples, as paixões motivavariam as políticas de Estado no período, o que não é verdade, motivados que foram por um motor extremamente racionalista. Em um contexto histórico, é importante que percebamos que o Romantismo nasce na Alemanha, de certa forma, em oposição à emersão da razão no Iluminismo francês (e isso é importante para que entendamos o resto). O homem vinha se colocando em um pedestal do qual não pertencia, acreditava poder tudo explicar. Os avanços da ciência são positivos, mas os românticos alertavam os seus limites, apontavam para a destruição da condição humana à medida que tentamos mensura-la. Assim, a poesia, as coisas como
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elas são, a natureza, o espírito e o corpo são enaltecidos no movimento romântico. Nas pinturas: montanhas, nacionalismo, e um culto ao corpo como ele é. Na literatura: sociedades secretas buscam o desconhecido no conhecido, uma clara crítica à razão que a tudo quer explicar. As expedições românticas de Herder não buscavam catalogar de maneira científica seus povos, mas adentrar em sua alma, desvendar o espírito dos lugares sem que sejam esclarecidos, mas enaltecidos. Para isso colecionou canções populares, poesias, músicas e paisagens. O Nazismo, movimento nacionalista, obviamente, se utiliza do pensamento romântico, mas ao contrário do que normalmente se associa, de maneira vulgarizada. Não há nada de romântico no Nazismo. O Romantismo é um pensamento intrinsicamente alemão e, por isso e devido a isso, o Estado buscava as raízes do Povo para constituir a Nação Germânica (assim como fez Herder em suas expedições, no Nazismo havia a mesma busca). Contudo, esse romantismo servia a uma intencionalidade. Não se tratava da busca do povo germânico, mas da implementação de um racionalismo técnico, perverso capaz de mobilizar massas em torno de uma ideo-
logia racial. O pensamento romântico não passava de uma máscara que visava esconder o que por trás residia. Homens transformam-se em máquinas de guerra, morrem por uma ideologia, tornam-se máquinas do Estado. Não há nada de romântico no Romantismo de Aço descrito por Goebbels. Não há nada mais racionalista e científico do que as câmaras de gás. E o corpo? Assim como é até hoje, não há culto ao corpo no Nazismo. O que há é um culto ao que pode ser, a uma idealização, ao que não existe, portando ao não-corpo. Cultua-se uma impossibilidade, uma mentira a ser alcançada de maneira científica, biológica, uma utopia que mata. Assim como acusavam os românticos do passado e os que por ele foram influenciados, a razão saiu impune da catástrofe Nazista. Cria-se a culpa no romântico, e como um dos mandamentos declara: À razão nenhuma culpa, afinal, como estabelecido pelos iluministas, os homens são o que são devido a ela, somos o suprassumo da evolução das espécies. Como culpar a razão de tal barbárie? Leni Riefenstahl, assim como muitos outros alemães, caiu no conto do “Romantismo de Aço”. Bem sucedido nesse ponto, o Nazismo transpareceu bem suas intencionalidades perversas de maneira romântica. Como é lindo desejar um corpo que não te pertence, como é linda a busca por uma raça superior, e como é perfeito dizimar aqueles que entre essa não está. Ao analisar a filmografia da diretora que revolucionou o posicionamento de câmera e o modo de fazer documentário, percebe-se que mesmo antes da chegada do regime a presença da estética romântica era visível. Riefenstahl encantou-se pelo lado romântico do Nazismo. Em Luz Azul (1932), logo no início da película, nos é apresentada uma narrativa que se desenvolve a partir de uma montanha e seus mitos. Antropogeograficamente (Ratzel se faz presente) percebemos que o ambiente que os cercam constituem seus costumes. Não há nada mais romântico. A imagem transborda tal filosofia. Após a introdução, uma sequencia de imagens muito bem compostas e fotografadas – como Riefenstahl sabe fazer – apresenta o vilarejo e toda a cadeia monta-
A narrativa de A Luz Azul se desenvolve a a partir de mitos da montanha nhosa que a cerca, a cachoeira, e a mulher a qual a narrativa intenciona mostrar. Os planos não são vazios, são preenchidos de poesia, tanto a montanha como a cachoeira tem significados além delas. Com a chegada do Nazismo e o, infelizmente, natural encantamento de Leni Riefenstahl a este, a diretora teve que lutar para conquistar espaço até se tornar a documentarista oficial do partido. Albert Speer em seu livro “Por Dentro do III Reich” diz que havia, no inicio, uma forte resistência à Riefenstahl principalmente por esta ser mulher em um partido de maioria absoluta masculina. Conta também que, porém, Leni não se abalava e depois dos resultados obtidos em O Triunfo da Vontade (1935) foi alçada a um patamar de respeito entre todos. Era vista como uma mulher, sobretudo, forte. Em O Triunfo da Vontade o romantismo também está presente. Os posicionamentos de câmera dão aos líderes um caráter divino. Da mesma forma, a câmera em mega contra-plongè acentua a megalomania edificada das construções, inspiradas nos impérios do passado, nazistas. Em seu documentário sobre os Jogos Olímpicos de Berlim está, talvez, a cena mais marcante de sua obra (presente em Olympia II – Vencedores Olímpicos (1938)). Os saltos ornamentais são filmados com posicionamentos de câmera capazes de entregar ao corpo dos atletas uma aura superior. O con-
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Não há intenção alguma em tirar à culpa de qualquer pessoa as barbaridades ocorridas, mas demonstrar a banalidade do mal implementada por tal regime totalitarista que, como uma marionete, manipulou as paixões. Quase cinquenta anos depois, surpreendendo a todos, Leni lança seu último filme: Impressões Submarinas (2003). O romance agora mergulha.
As cachoeiras tem presença marcante em A Luz Azul tra-plongè apresenta uma composição em que vemos apenas a silhueta dos atletas, ao fundo, o céu. Não só isso, o movimento da câmera ao passo que os atletas praticam o esporte faz com que estes pareçam estar voando. A repetição das cenas, em diferentes ângulos, demonstra a valorização do corpo. Contudo, como visto no inicio, mesmo que Leni Riefenstahl exponha, o culto é a uma idealização e, portanto, inalcançável. A poesia transborda em Riefenstahl. Após o fim do regime, como muitos alemães, a diretora se retrata. De um dia para o outro aquilo que até então havia sido orquestrado com valores estéticos repletos de intenção, pareceu completamente irreal, não demorou muito para que as pessoas não mais quisessem se reconhecer naquilo que até pouco tempo eram. Como em um romance, romântico por excelência, o livro teve seu fim, a obra de arte declinou-se e a máscara caiu, revelando o que havia atrás. Contudo, dez anos após a queda do III Reich, Leni Riefenstahl realiza o que, para muitos, teria sido o último filme de sua carreira. Ainda assim o Romantismo estava presente. As cachoeiras, o cinema de montanha, estava tudo ali, de novo. O Nazismo saiu, mas o romantismo jamais deixara a diretora. O filme não tem o mesmo sucesso que os outros, sua qualidade está bem abaixo, mas serve como um documento histórico da paixão da diretora alemã.
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Uma dança divina desenhada pelas acrobacias nas imagens de Leni Riefenstahl em Olympia II
Philippe Leão é crítico e professor de Cinema, fundador e editor chefe do Cineplot e Especialista em Cinema Alemão, em especial Expressinista e Nazista.
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O MUNDO COMO OBRA DE ARTE A Arte enquanto Utilidade a Serviço do Estado Nazista
A concepção política nacional-socialista pressupunha um arranjo das coisas do mundo sob valor estético. Não apenas na arte como um todo, mas a vida das pessoas deveria carregar uma aura ligada ao belo. Os anos que seguem a Primeira Guerra Mundial, porém, são singulares para a Alemanha. A derrota na guerra, a vergonha nacional proporcionada pelo Tratado de Versalhes, a atmosfera conturbada provocada por altos índices de inflação e o pesadelo das mortes nos campos de batalha trouxeram aos alemães uma tendência a tratar do misticismo, dos sonhos, dos pesadelos e da magia nas artes. Movimentos artísticos abstratos começam a conquistar relevância durante o período Weimar, desde as pinturas e esculturas até o cinema. Filmes importantes como O Gabinete do Dr. Caligari (1922) – representante máximo do chamado Expressionismo Alemão nos Cinemas – expressavam com curvas
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tortuosas os mais terríveis pesadelos daquela nação abalada moralmente tanto economicamente como em seus aspectos sociais. Um grupo político em especial começa a surgir em meio a toda desconfiança social, entendendo ser o mundo moderno nocivo, presumindo ter a arte assumido um papel que apequenava uma nação que nasceu para ser grandiosa. A partir de 1925, porém, o advento das máquinas entrava no território alemão e a prosperidade voltava a se configurar. Depois da crise de 1929, porém, há uma nova queda econômica no país, com nova tendência à crise econômica e social, e a população buscando alternativas novas para o regime. O Partido Nazista, ainda acanhado, tem uma grande ascensão política nesse momento, passando de doze deputados eleitos em 1928 para duzentos e trinta deputados em 1930. Inicia-se o pesadelo mascarado
por ideais de grandeza nacional. A arte não deveria mais representar os males, mas estimular o que há de melhor no Povo, transformando o mundo em uma bela obra de arte. Se nos anos 1920 a arte representava uma expressão do artista sobre o real, com a ascensão do nazismo era a arte que deveria construir o mundo. O mundo se tornaria a própria obra de arte nas mãos de seu pintor, o líder político. Assim, a arte se torna fundamental na construção política nazista que, mais tarde, fundamentaria a paisagem cotidiana do Povo. Contraditoriamente, assim como o que vinha acontecendo na acepção do mundo moderno, a arte deixa de ser o fim e torna-se técnica, um objeto passível de utilidade, um meio para um propósito final: o quadro maior, a Alemanha. Sendo fundamental na consolidação política e social do nacional-socialismo, haveria de se determinar o que era arte válida no esculpir nacional. A adoração de Adolf Hitler – alçado à grande liderança nacional com a vitória dos nacionais-socialistas – à Antiguidade foi determinante, portanto, para o que se desejava na composição da paisagem do grande quadro alemão. Embora pintor fracassado na sua juventude, já em seus quadros há de se perceber sua admiração por esse regresso. O regresso não viria ao acaso e, portanto, as influências do projeto cultural nazista partem de uma rica filosofia de origem alemã. O Romantismo Alemão, em sua concepção nacionalista, busca as origens do povo, suas singularidades e narrativas que constituiriam a ideia de nação. Na gênese do romantismo, o filósofo e etnólogo Johann Gottfried Herder foi à busca da origem das nações, do espírito dos lugares, e para isso colecionou canções populares, literatura, linguagens, narrativas que constituem a cultura dos lugares para onde levava suas expedições. Através dessa busca, as individualidades dos povos apareceriam e, soberanamente, se distinguiriam de maneira democrática, ou seja, em suas singularidades deveriam viver em harmonia. As sociedades criam documentos e normas de convivência de acordo com as narrativas de suas regiões: mitos e tradições familiares, por exemplo. A poesia e a arte, portanto, seriam de suma importância na
consolidação de um espírito nacional à medida que oficializavam a cultura. É evidente que em toda oficialização há uma escolha do que é a verdade a ser seguida. A ligação dos românticos com a arte era próxima, e assim fez o nazismo ao regressar aos antigos para consolidar uma arte oficial, um modelo que viria para mostrar aos germânicos a sua grandeza, tal como nos impérios do passado. O projeto político nazista, porém, se apropria de tal filosofia de maneira vulgarizada. O nacionalismo nazista, ao contrario do proposto por Herder, não era nada democrático uma vez que tentava impor como verdade absoluta suas concepções em uma relação violenta de poder, estabelecendo seus iguais – o que é ser alemão – e oprimindo os diferentes, segregando em guetos, expulsando-os do território e, como já conhecido, até mesmo exterminando. O projeto político era o de uma Alemanha judenfrei, livre de judeus. Caso outros países fossem mais hospitaleiros com os judeus, para lá seriam enviados – e houve, inclusive, uma tentativa de enviar os judeus para ocupar a ilha de Madagascar, projeto este fracassado devido a distância e espaço necessário em navios para transportá-los. Contudo, aparentemente não só a Alemanha queria se livrar dos judeus, não havendo qualquer país aberto a recebê-los. A acepção da filosofia romântica fez com que houvesse uma maior preocupação na busca pelo passado germânico, trazer as narrativas do passado glorioso para uma nação que, segundo Hitler, estava em decadência moral na República Weimar. Ao regresso em um passado glorioso se adicionaria um biologismo racial perverso. A arte nazista deveria ser pura tal qual seu povo. O culto ao corpo, portanto, era constante na representação nazista. De um lado expunha o interesse do nazismo aos tempos antigos, – as esculturas greco-romanas eram abertamente admiradas – por outro, interessava por representar um símbolo de superioridade da raça ariana. Hitler faria questão de trazer para a Alemanha muitas dessas obras, em especial se destaca O Discóbolo de Míron. Estimu-
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laria, também, a produção daquela que seria uma das vertentes do que se considera arte oficial, assim como as esculturas de Arno Breker, artista de claras influências na cultura clássica grega. Se a arte de Breker não carregava influências alemãs, essas passariam a ser oficialmente nacionais. A oficialização de uma cultura pautada nos gregos seria agora uma importante ferramenta de poder, massificando os corpos e transformando as formas da paisagem, mais tarde, em máquinas de controle social. A representação do homem grego estaria associada à ideia do homem puro ariano e, não obstante, as influências gregas passariam a ser também alemãs, empenhando a imagem de um homem impulsivamente físico, agressivo e pronto para a guerra. Uma série de exposições de arte alemã se espalha por todo o território, ostentando nomes como Sangue e Solo ou Forças Básicas da Formação da Vontade Alemã. Os nomes já demonstravam a íntima relação da arte com a formação do espírito com o solo. Em especial, outra exposição foi montada na Haus der Deuchen Kunst (Casa da Arte Alemã), e também associava a arte à nação: A Grande Exposição de Arte Alemã.
Enfim, à arte atribuiu-se o papel de representar e inspirar o espírito alemão e a megalomania nazista apenas se iniciava. No cinema, assim como nas exposições de arte, o regresso aos antigos se faz também aparente. Nos cinemas os valores do culto ao corpo e os legados deixados pelos antigos permaneciam nas imagens. Em especial uma artista, considerada a cineasta oficial do Partido Nazista, ganha destaque por sua relevância técnica e desenvolvimento da linguagem documental: Leni Riefenstahl. Em seu documentário sobre os Jogos Olímpicos de Berlim – Olympia II – Vencedores Olímpicos (1938) - está, talvez, aquela que é a cena mais marcante de sua obra. Os saltos ornamentais são filmados com posicionamentos de câmera capazes de entregar ao corpo dos atletas uma aura superior. O contra-plongè – quando a câmera fica abaixo do nível dos olhos dos personagens, voltada para cima – apresenta uma composição em que se vê apenas a silhueta dos atletas e, ao fundo, o céu. Há uma clara intenção de divinificar os corpos que parecem estar voando à medida que a movimentação de câmera se desenvolve repetidamente. Contudo, apesar de haver uma busca por um ideal, o culto ao corpo é uma mentira
O Triunfo da Vontade (1935), de Leni Riefenstahl
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trazida como verdade, pois não há culto ao corpo no nazismo. O que há é um culto ao que pode ser, a uma idealização, ao que não existe e, portanto, ao não-corpo, porque não dizer, uma atopia. Cultua-se uma impossibilidade, uma mentira a ser alcançada de maneira científica, biológica, uma atopia que mata em busca de uma limpeza social. Já em O Triunfo da Vontade (1935), as influências nos antigos também estão presentes. A confluência dos corpos harmonicamente compostos em uma fotografia complementada pela megalomania edificada filmadas em mega plongè demarcam as inspirações nos grandes impérios do passado. O alemão parece estar constantemente sob os olhares da paisagem que molda os comportamentos, cria uma mecânica que busca uma sociedade forte, pura. Enfim, uma última característica estética que deveria se seguir na grande pintura alemã. As paisagens de montanhas eram uma constante nos quadros selecionados por Hitler nas curadorias das grandes exposições de artes alemãs. Nos cinemas, os filmes de montanha eram um gênero fundamentado na Alemanha desde os anos 1920. Arnold Fanck foi um importante diretor do gênero que, ao contrário dos demais na época, filmava as cenas de montanha nos Alpes e não em estúdios. Também Geólogo, o diretor seria responsável pelo lançamento de Leni Riefenstahl aos cinemas em A Montanha Sagrada (1926). Em Luz Azul (1932), logo no início da película, Leni Riefenstahl apresenta uma narrativa que se desenvolve a partir dos mitos provindos da montanha. Assim como concluíra Ratze, percebe-se que o meio que cerca um vilarejo de camponeses estabelece seus costumes, alemães por natureza, ou seja, não há nada mais romântico do que uma imagem dessas. As paisagens de montanhas nos filmes do gênero remontavam um imaginário alemão que deveriam ser redescobertos. Com a chegada do nazismo, muitos dos diretores do gênero são aproveitados por já retratar a chamada verdadeira arte alemã, ligada aos poderes originais do solo. Assim, a fusão dos filmes de montanha aos filmes nacionalistas, nas palavras de Krakauer, formaram um
novo impulso na formação de uma cultura nacional. Se havia uma consolidação do que é a cultura oficial que deveria ser seguida – que estaria incessantemente presente na vida das pessoas através, também, da paisagem -, nasce por consequência o que deveria ser abominado. Hitler inicia um combate incessante sob o que chamara de degeneração moderna. A visão estética sobre a política fez com que o nacional-socialismo usasse a arte para construir uma ideia de sociedade. A arte serviu, antes de tudo, para reerguer a moral do alemão, abalada devido aos então recentes acontecimentos históricos. A Alemanha havia de ser grande novamente, vontade abraçada pelo povo. Em oposição à lógica de construção da grandiosidade alemã através de uma beleza cênica e ariana, a arte moderna seria um espelho da degeneração do mundo. A busca por um mundo estético partia de uma limpeza daquilo que havia se degenerado. Juntamente às grandes exposições de arte alemã, nascem àquelas que deveriam ser combatidas. Em primeiro lugar deve ser dito que o modelo artístico vigente nesta época, para o nazismo, representava uma decadência refletida do que se via no mundo. Como o nome de algumas das exposições: Espelhos da Decadência na Arte, Câmara de horrores da arte, Imagens do Bolchevismo Cultural, A Arte a serviço da decadência. Em seguida, uma análise do que significa esta decadência no mundo moderno se faz necessária. A arte e arquitetura, a qual Hitler e o nacional-socialismo acreditavam ser de suma importância na construção de um espírito nacional, não estaria representando a grandeza do povo, mas sim aquilo que deveria ser exterminado. Em uma primeira análise, as pinturas abstratas dos grandes pintores alemães e estrangeiros eram comparadas a patologias psicológicas, a doenças mentais e físicas. Em uma nação que se busca a construção do imaginário do alemão forte e puro, esse modelo artístico seria degenerativo. Havia, portanto, uma acepção biológica no comportamento político nazista.
O comportamento de um esteticismo pau-
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tado em um biologismo atingia, também, uma ordem racial-política. A arte moderna era acusada de ser bolchevique e, sobretudo, judaica. As influências desses dois grupos – muitas vezes acusados como um único – estaria intimamente ligado à degeneração e esta deveria ser a luta dos alemães, a destruição de algo que não deveria perdurar em seu território,
em prol de uma raça dita superior. Artistas que, em sua estética, apresentavam características abstratas logo eram taxados de ter algum tipo de distúrbio, seriam aquelas imagens de uma mente impura. Estes modelos artísticos logo foram categorizados como produtos não alemães, que
A Montanha Sagrada, de Arnold Fanck
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A ligação da arte moderna, chamada de Arte Degenerada, com patologias psicológica deveriam ser exterminados para que não contaminasse a nação – “a arte moderna, conforme muitos polemistas nazistas da época afirmavam, era sobretudo produtos de influências estrangeiras. A arte tinha que retornar à alma alemã”, como diz Richard J. Evans sobre o pensamento nazista. Percebe-se uma origem nacionalista na imposição de uma utilidade à arte. A consolidação de um mundo estético pautado nos antigos traria o que é ser alemão e, junto a isso, o que não deve ser compreendido como tal. A busca gloriosa por um mundo esteticamente belo, pautado nos grandes impérios do passado estava correlacionado à abominação do mundo moderno. A fundação de uma arte oficial estava intimamente ligada à destruição daquilo que, para os nazistas, vinha assombrando o território alemão. O caráter cosmopolita da arte moderna não entregava à arte um espírito concentrado no solo, mas em uma característica desalmada que a qualificaria como moda. A luta contra a generalização artística, para Hitler, estava muito além de um simples imperativo do que é ser ou não ser arte, mas uma limpeza cultural. Limpar da degeneração moderna era, antes de tudo, por fim à destruição da cultura germânica.
rido ao mesmo discurso, que busca uma função na arte, porém, provocou a catástrofe de perseguição àquilo que, segundo seus preceitos, não seria uma arte válida. Por fim, permito-me deixar uma máxima: À arte nenhuma finalidade, ela é o próprio fim.
Philippe Leão é crítico e professor de Cinema, fundador e editor chefe do Cineplot e Especialista em Cinema Alemão, em especial Expressinista e Nazista.
Sendo a arte de suma importância na consolidação do Estado, o caráter cosmopolita da arte moderna era em si danoso para a formação de uma Alemanha forte. Há verdades no discurso enquanto a banalização da estética na arte moderna, as consequências de um utilitarismo racionalista ade-
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