Revista Cineplot | Cinema Político

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NOTA DO EDITOR

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isto que vivemos um período conturbado com relação à política, entendi ser necessário uma abordagem política do Cinema. Por muito, e ainda hoje, o Cinema foi instrumento, meio para determinado fim político: nacionalismos, contra-cultura, período de independências e conflitos, entre outros. Assim como Nietzsche já nos alertava, tudo se constrói como um eterno retorno, reafirmado por Roland Barthes na política. Hoje, portanto, vivemos tempos sombrios. A cadela voltou a sangrar...

Participações especiais desta edição: Fábio Rockenbach, Fernanda Novaes, Filipe Pereira e Wallace Andriolli. Agradecimento especial ao entrevistado da edição, Flavio Ricardo Vassoler. Projeto e diagramação: Fábio Rockenbach

PÁGINAS PARCEIRAS


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Oser lutter (Jean-Pierre Thorn, 1969)

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Animal Político | Entrevista Flávio Vassoler

Terra em Transe: a arte brasileira e a profecia Leonardo Carvalho

The Hand e o poder pela violência Matheus Fiore

Doutor Jivago e a perda da individualidade Phillipe Leão

Cinema marginal, político por excelência Fernanda Novaes

Outubro: a multidão enquanto protagonista Leonardo Carvalho

Oliver Stone e uma história americana Filipe Pereira

S U M Á R I O

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Ensaio de orquestra e a rigidez do Estado Matheus Fiore

Sem Essa Aranha, ou amar o Brasil Matheus Petris

Michael Moore e uma filmografia que sempre suspeita Filipe Pereira

Depois de outubro, o cinema mudou.... Fábio Rockenbach

A Nouvelle Vague Tcheca e o fazer filmes sob o comunismo Wallace Andrioli

Arte, cultura e soberania nacional Phillipe Leão


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entrevista

ANIMAL POLÍTICO '

Doutor em teoria literária, Flávio Vassoler recusa-se a chamar a atual crise de “pós-moderna” e atesta: a apropriação da tecnologia deveria ser emancipatória, se realmente fôssemos uma democracia social

Philippe Leão - Já em 1930, Sigmund Freud afirma ser o homem dotado de impulsos violentos, agressivos – de certa forma já influenciado por Nietzsche – que, por sua vez, são controlados pela cultura/civilização a fim de fazê-lo sentir-se seguro. Para sentir-se seguro perante o coletivo, cerceia-se a individualidade. Como se dá o mal-estar na civilização pós-moderna? Flávio Ricardo Vassoler - Freud morre em 1939, pouco mais de duas semanas depois da eclosão da Segunda Guerra Mundial. O fundador da psicanálise não pôde ver o morticínio industrial de judeus, russos, poloneses, homossexuais e testemunhas de Jeová nos campos de concentração nazistas, mas refletiu com muita acuidade sobre as tendências primitivas e regressivas dos homens e mulheres que, para Freud – em um sentido nomeadamente hobbesiano –, seriam contidas, sublimadas e/ou ressignificadas pelo processo civilizatório. Entretanto, é preciso pensar sobre o processo de mal-estar na civilização em termos históricos, de modo a acompanhar suas transformações. Contemporaneamente, penso que é preciso alterar o título de uma obra de Freud de Psicopatologia da vida cotidiana para Sociopatologia da vida cotidiana, a fim de que possamos compreender o mal-estar como civilização. Na medida em que o capitalismo, sem uma grande antítese geopolítica desde o colapso da União Soviética, no fim de 1991, vai se apartando da democracia liberal burguesa e vai recrudescendo o processo de

Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis.

concentração de renda – os resultados de uma pesquisa recente da ONG inglesa Oxfam são estarrecedores: 8 bilionários têm a riqueza de metade da população mundial; no Brasil, 6 bilionários detêm a riqueza de 50% da população; na medida em que a ultracompetitividade neoliberal dita os parâmetros de identidade e pertencimento para o eu, em contraposição às possibilidades reais de as pessoas se mostrarem efetivamente solventes em termos sociais; na medida em que a depressão, na esteira dos interesses das grandes indústrias farmacêuticas, vai sendo diagnosticada em massa, o mal-estar como instabilidade e insegurança radical das relações se instaura. Só não diria que se trata de uma crise “pós-moderna”, pelo fato de, a meu ver, ela se mostrar radicalmente moderna: o capitalismo vai alcançando os estertores de seu processo de concentração de renda e esgarçamento das bases democrático-civilizatórias. Como não podemos decidir, coletivamente, que destino dar à produção social – tais decisões cabem ao clube restritíssimo dos donos do capital –, o amplo emprego de tecnologia promete tornar obsoleta boa parte das profissões atuais. Tal processo deveria ser um mote radicalmente emancipatório, se estivéssemos em uma verdadeira democracia social. Na sociedade atual, no entanto, em que o desemprego em massa implicará a precarização e a fragilização da sobrevivência da maioria da força de trabalho – ou pior, da força de desemprego/bico –, o mal-estar se instaura, social e psiquicamente, como condição para todos e cada um de nós.


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PL - Acerca do assunto é inevitável que se fale da ideia de medo. Em que ponto o conceito está relacionado à conduta civilizatória perante os tabus e o papel do Estado na consolidação de tais afetos, a fim de manter uma ordem moralizante? FRV - O medo parece ser, de fato, o afeto preponderante do reacionarismo. Guardadas as diferenças históricas, o período atual, para usarmos o famoso título de um filme do sueco Ingmar Bergman, choca o ovo da serpente: diante das fraturas sociais profundíssimas, grandes forças conservadoras – os oligopólios de comunicação de massa, setores financistas e industriais do capital, vastas parcelas dos aparelhos repressivos do Estado – apregoam que o caos e a balbúrdia são os responsáveis pela anomia contemporânea. Tais colocações são ideológicas (isto é, falseiam a realidade) por excelência: a barbárie da pobreza e a ruptura com a democracia não foram ocasionadas pela maior possibilidade de os movimentos sociais, negros, feministas e LGBTs alcançarem maior representatividade; na verdade, as políticas neoliberais aplicadas mundo afora – no Brasil, sobretudo após o golpe parlamentar de 2016 – foram as responsáveis pela fragilização de enormes contingentes de pessoas simplesmente expulsas de seus empregos e casas, pessoas desprovidas da base de sua própria dignidade. Mas o afeto do medo, sobretudo quando a maior parte da população é privada do instrumental para significação da realidade e de suas disputas político-sociais, tende a apregoar que, no passado – o passado hierárquico e assimétrico, o passado em que todos sabiam quem mandava e, sobretudo, quem devia obedecer –, no passado havia ordem e apaziguamento. Tal discurso autoritário implica que o caos benéfico da realidade – o caos da subjetividade indômita em sua pluralidade política, social, étnica, sexual e religiosa – seja responsabilizado por problemas sociais que têm origem, na verdade, na sanha pela manutenção dos privilégios. Assim, de forma reacionária – e sob a bênção da cruz e das armas –, é preciso fazer com que a sociedade tenha a identidade estanque e ossificada que a brutalidade da história glorificou: é preciso que cada segmento marginalizado entenda seu papel e não se revolte, daí a defesa meramente retórica da democracia por parte daqueles que a vêm esvaziando desde o impeachment golpista. Estimulado e manipulado por reacionários ciosos de seus privilégios, o medo que subjaz à expressão Make America Great Again (lema da campanha presidencial de Donald Trump) diz respeito à tentativa de colocar imigrantes (ilegais ou não), mulheres, afroamericanos, trabalhadores/as/desempregados/as e LGBTs em seus respectivos lugares de marginalização.

... há 4 filmes urgentes – a bem dizer, urgentíssimos – para que compreendamos o neoautoritarismo no mundo e no Brasil: A onda, dirigido pelo alemão Dennis Gansel, e Ônibus 174, Tropa de elite 1 e Tropa de elite 2, de José Padilha.

PL - Hannah Arendt afirma que o poder é algo que não é organicamente estabelecido, mas coletivamente instaurado, entregue por alguém a alguém, reflexivamente ou não. Na mesma medida, a autora afirma que a violência é, na verdade, a presença da perda de poder. A manifestação dos impulsos agressivos do ser, portanto, estariam vinculados à perda de ordem e sensação de segurança que aquele que foi incumbido de poder deveria prestar. Assim como ocorreu no início do século XX, vemos hoje uma nova ascensão totalitária nos impulsos de morte daqueles que sentem o mal-estar na civilização. Como se dão, então, os ciclos do poder em relação à violência, em especial nos dias de hoje? De onde vem essa onda conservadora ou reacionária? FRV - Creio que as respostas que concedi anteriormente tocam em aspectos da sua questão. Como estamos em uma revista virtual, gostaria de indicar para os leitores e leitoras da Cineplot dois trabalhos de minha autoria que procuram aprofundar a discussão sobre o neofascismo na contemporaneidade: o livro Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e uma entrevista que concedi, recentemente, ao programa Quem somos nós?, que vai ao ar pela rádio Eldorado FM (107,3) e é apresentado pelo publicitário Celso Loducca, que é um dos proprietários da Casa do Saber, em São Paulo. O vídeo completo da entrevista – a primeira da série O ovo da serpente – pode ser visto a partir do seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=Ul18Wv5Bnlg. Peço que os leitores e leitoras da Cineplot que assistirem ao vídeo leiam os comentários de muitos espectadores e espectadoras. Qualquer pessoa tem total direito de discordar de todas e cada uma das minhas análises e colocações. Agora, quando a discordância se faz não pela contraposição de ideias, mas pela desqualificação rançosa do outro que, no limite, pode prenunciar o ódio pela própria existência da alteridade, os atentados políticos no Brasil contemporâneo dão o tom para a barbárie parida pelo ovo da serpente. PL - Qual seria a relação da dicotomia radicalizada que vivemos hoje – esquerda x direita e outros exemplos – com os tempos pós-modernos (ou modernidade radicalizada) e sua relação com o fazer político? FRV - A polarização entre direita e esquerda remonta aos grupos políticos (e aos seus posicionamentos não só ideológicos, mas também físicos, isto é, aos locais que ocupavam) na Convenção Nacional em meio à Revolução Francesa. Jacobinos, dos mais


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6 extremados aos mais (taticamente) conciliadores, à esquerda; girondinos à direita; o pântano ao centro – quando pensamos no centro fisiológico da política brasileira composto pelo PMDB, sentimos a náusea da expressão “pântano”. É claro que, a depender do país e de suas contingências históricas, a polarização entre esquerda e direita pode variar radicalmente. O PT de 1989, por exemplo – ano da primeira eleição presidencial direta para presidente após o longo período de ditadura militar no Brasil –, estava bem mais à esquerda do que o PT de 2002 que, antes de levar Lula ao poder, fez publicar a famosa/famigerada Carta aos brasileiros para acalmar os ânimos das forças conservadoras do mercado. O PSDB, por sua vez, tem a social-democracia em seu nome. No entanto, se pensarmos sobre as práticas históricas do PSDB no poder – e penso, aqui, sobretudo a respeito dos anos do governo FHC –, os tucanos seriam menos (bem menos) um partido de centro-esquerda do que a representação à brasileira da vanguarda do neoliberalismo, que, a bem dizer, veio à tona com força pelo veio antiestatal e liberalizante de Fernando Collor. Nesse sentido, é preciso caminhar pelo sfumato que contrapõe as forças político-sociais, de modo a compreender suas várias nuances, metamorfoses (e cumplicidades). Isso posto, vale frisar que a polarização mais efetiva e radical em termos políticos tende a decorrer de crises agudas, como a que o capitalismo mundial vem

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É claro que, a depender do país e de suas contingências históricas, a polarização entre esquerda e direita pode variar radicalmente.

vivenciando desde meados de 2008 e como a que o Brasil trouxe à tona a partir do golpismo que se seguiu à eleição presidencial de 2014 – para sermos mais precisos, desde as complexas (para não dizermos contraditórias) manifestações de junho de 2013. Em nosso país, a polarização não se dá entre a extrema esquerda “comunista” – como apregoa o delírio de grupos reacionários que procuram insuflar o medo no (e como o) ideário despolitizado da população – e a mera direita que hasteia a bandeira da moral e dos bons costumes. A polarização se dá entre uma esquerda reformista – à exceção dos anacronismos de PCO e PSTU –, que entende que o capitalismo precisa ser organizado e contido por meio de políticas conduzidas pelo Estado, e uma direita que vai do ultraneoliberalismo ao neofascismo, e é duríssimo ver que, em um dos candidatos para o atual pleito presidencial, essas duas vertentes anticivilizatórias se aglutinam como um mesmo projeto de quebra da frágil rede de proteção social do Estado brasileiro e recrudescimento das estruturas de repressão. Ao dizer isso, então, proponho a noção de que, tanto no mundo quanto especificamente no Brasil, a esquerda se viu emparedada em suas propostas mais radicais, enquanto a direita foi se ramificando até abrir a tampa do bueiro que, após a Segunda Guerra, os reformistas/democratas pensaram ter vedado. PL - Entrando na esfera dos filmes – afinal, estamos em uma revista de cinema – temos dois bons exemplos das relações de poder e a esfera civiliza-

Liv Ullmann em o Ovo da Serpente, de Ingmar Bergman


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tória: O anjo exterminador, de Luis Buñuel, e O ovo da serpente, de Ingmar Bergman. No filme de Bergman há a discussão das origens do totalitarismo, o nascimento da serpente – associado à narrativa bíblica e, portanto, o nascimento do demônio, de formas fálicas. Em O anjo exterminador, da mesma forma, a casca fina da civilização, parafraseando Bauman, rompe a medida e já não faz sentido cercear seus impulsos, na medida em que a civilização já não oferece a segurança paterna. Relacionando ambos os filmes, como poderiam estar vinculados narrativamente à presença do totalitarismo? FRV - Peço licença para burlar o diálogo entre os mestres Bergman e Buñuel, já que, a meu ver, há 4 filmes urgentes – a bem dizer, urgentíssimos – para que compreendamos o neoautoritarismo no mundo e no Brasil: A onda, dirigido pelo alemão Dennis Gansel, e Ônibus 174, Tropa de elite 1 e Tropa de elite 2, de José Padilha. O tsunâmi neofascista que compõe A onda começa com uma colocação tão incauta quanto denegada pela contemporaneidade por parte de um dos alunos do professor de História Rainer Wenger: “Não é possível que a sociedade atual assista a uma nova experiência totalitária”. Pelas indicações que já fiz ao longo desta entrevista, friso que não é possível dizer que novas experiências totalitárias não possam acontecer, uma vez que as causas históricas para tais processos não foram mitigadas. O turbocapitalismo contemporâneo se estende ao âmbito mais recôndito da vida e transforma cada fração de nossa intimidade em mercadoria fungível – ainda que não possamos ser solventes, como o desemprego estrutural bem demonstra. O ódio à alteridade – o ranço em relação aos condenados da terra em seus mais diversos espectros – traz consigo a nostalgia (e a náusea) de uma tradição que quer restaurar épocas em que, supostamente, havia ordem – isto é, com (ainda) menos democracia, era possível (tragicamente, ainda é) eliminar fisicamente os inimigos públicos sem grandes alardes e celeumas. (Recomendo, também com urgência, a leitura do clássico Psicologia de massas do fascismo, que o psicanalista alemão Wilhelm Reich publicou em 1933, meses após a ascensão de Hitler ao Reichstag alemão.) A trilogia de José Padilha, por sua vez, nos leva a Sandro Nascimento, o jovem que assistira ao estupro de sua mãe no barraco em que tentava sobreviver; o jovem que lograra sobreviver ao massacre da Candelária; o jovem que tentou roubar um ônibus na avenida Atlântica, em Copacabana; o jovem que acabou fazendo uma refém – mais uma inocente ceifada pela banalidade do mal; o jovem que só conseguiu visibilidade social ren-

dendo um ônibus; o jovem que acabou degolado em uma viatura policial. Não é à toa que, de Ônibus 174 para Tropa de elite, José Padilha tenha mantido o sobrenome Nascimento para seus protagonistas, já que o Capitão Nascimento é o oficial dileto para prender – e, trágica e cotidianamente, eliminar – a legião de Sandros que o Brasil (isto é, os donos do poder à brasileira) insiste em desabrigar e relegar à inanição e à invisibilidade. Friso, por fim, que o policial Nascimento, que assume a patente de coronel em Tropa de elite 2, não me parece um fascista clássico, a despeito das práticas autoritárias e antidemocráticas de sua corporação. E afirmo isso pelo fato de que, quando depara com a corrupção generalizada como efetivo sistema de segurança pública – isto é, quando descobre, empiricamente (como vice-secretário de segurança pública), que grupos/milícias privadas se apropriam do aparato estatal não para proteger a população, mas para maximizar seus próprios interesses –, o Coronel Nascimento não se aferra aos dogmas de sua instituição. Ele se pergunta, de forma (auto)crítica e racional, “por que eu mandei tantos bandidos para a vala? Em nome de quem e do quê?” Ele pôde descobrir que a alcunha para os “bandidos” se tornara muito mais complexa diante dos crimes bem mais profundos e estruturais cometidos pelos donos do poder e seus apaniguados e asseclas.

O ódio à alteridade – o ranço em relação aos condenados da terra em seus mais diversos espectros – traz consigo a nostalgia (e a náusea) de uma tradição que quer restaurar épocas em que, supostamente, havia ordem...

PL - Como relacionar a corrupção sistêmica, tão questionada e que tanto nos indigna, com a corrupção endêmica? Mais, como o direito e, portanto, o Estado em sua legislatura, pode contribuir com o sistema corruptor? FRV - Seguindo as colocações de André Singer, professor de Ciência Política da FFLCH-USP, em seu ótimo livro O lulismo em crise (recém-publicado pela Companhia das Letras), refiro-me às características republicanas e facciosas da Lava-Jato. Em termos republicanos, a operação desvelou um amplo esquema de corrupção e colocou atrás das grades nomes que, até então, nós jamais imaginaríamos que pudessem estar sob o domínio da lei. Entretanto, é notório que as operações de combate à corrupção se concentraram sobremaneira em quadros do PT, a despeito de haver vasta gama de denúncias contra políticos e empresários ligados ao PMDB e ao PSDB, apenas para citarmos os maiores partidos brasileiros. Segundo Singer, tal caráter parcial gerou um profundo desequilíbrio para as disputas eleitorais e, portanto, para a própria dinâmica de nossa já frágil democracia. Sem deixar de lado a importância da Lava-Jato


8 para investigar e punir a corrupção à brasileira, é preciso observar que o Direito Penal não alcança as causas da corrupção, que, na (finada) democracia à brasileira, se ligam à cooptação privada dos agentes públicos (por meio, sobretudo, do financiamento das campanhas políticas) para que o Estado legisle em benefício de seus beneméritos. Com níveis atrozes de concentração de renda, como já pude mencionar nesta entrevista, é muito improvável que grandes grupos econômicos não procurem influenciar os rumos do Legislativo e do Executivo – isso para não falarmos sobre as influências que se exercem sobre o próprio Judiciário. (Neste sentido, peço aos leitores e às leitoras da Cineplot que leiam o seguinte artigo do site Diário do Centro do Mundo (DCM): “Delação da Odebrecht sem pegar Judiciário não é delação”: O título deste artigo é uma declaração de Eliana Calmon, ministra aposentada do Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Por fim, indico também a entrevista concedida por Maurício Dieter, professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP, ao programa Voz Ativa, da Rede Minas, ao longo da qual ele discute a corrupção estrutural no Brasil e reflete sobre as insuficiências do combate à corrupção apenas pelo vetor da punibilidade jurídica: https://www.youtube.com/watch?v=Ahv8TSF-RTM. PL - Em que ponto ainda faz sentido o uso da terminologia esquerda e direita para designar modos de práxis políticas diferentes? Em tese, qual seria, ainda hoje, a diferença entre ambos? Mas, principalmente, partindo de uma visão heracliana ou nietzschiana, onde se encontram? FRV - Ao longo desta entrevista, já pude contemplar a pertinência da terminologia que contrapõe esquerda e direita e suas diferenças. Mas, em suma, diria que, na ontologia histórica dos movimentos de esquerda, existe (ou melhor, resiste) a noção de que um outro mundo é possível; a noção de que é possível entrever e construir um mundo para além do atual estado de coisas; a noção

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de que a república platônica, a utopia de Thomas More, o falanstério de Owen, o quilombo de Zumbi e a sociedade emancipada de Marx e Engels, em meio à qual seria possível pescar durante o dia e fazer crítica literária à noite, podem descer do céu mitológico do Éden para o chão do cotidiano. Quando esquerda e direita se encontram de forma civilizada – e a democracia liberal burguesa do pós-Segunda Guerra pôde dar alguns exemplos (temporários) nesse sentido –, assistimos a debates e embates democráticos. Quando a normalidade institucional é afrontada por agentes políticos, juízes e pela exorbitância cada vez maior das Forças Armadas, não há propriamente um limite para os confrontos entre esquerda e direita – o caos da guerra civil é uma das imagens tétricas que a história nos vem legando. PL - Por fim, algo menos mecânico em nossa entrevista. Sugira ao leitor da Cineplot um filme com o tema de cinema político e o por que devemos assistir à obra. FRV - Como já indiquei 4 filmes ao longo desta entrevista, termino a nossa conversa com a sugestão de uma trilogia clássica: O poderoso chefão, de Francis Ford Coppola. Certamente, os leitores e leitoras da Cineplot já assistiram à trajetória de Michael Corleone dezenas de vezes. Mas, se quisermos compreender a (in)existência do livre mercado e da livre concorrência; a cumplicidade incestuosa entre as iniciativas privada e pública; em suma, a história da formação do capitalismo à estadunidense – e, guardadas as diferenças, à brasileira –, O poderoso chefão é uma verdadeira aula maquiavélica de política. Aliás, uma máxima de Don Corleone, o mafioso imortalizado por Al Pacino, parece-me radical e tragicamente atual para o contexto brasileiro em que as serpentes já romperam a civilidade tênue da casca de seus ovos há algum tempo: “Se a história já nos ensinou algo, é que é possível matar a quem quer que seja” n


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Terra em Transe

a arte brasileira e a profecia

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m Eldorado, um país fictício sul-americano, a desigualdade impera e a convulsão/ instabilidade política também. O pior de tudo é que os representantes, sendo um deles um pseudopopulista e o outro um elitista, um elitista que nunca chegou perto do povo para entender os seus anseios, não são nada confiáveis, e isso é provado, como será mais bem desenvolvido abaixo, através de alguns interessantes recursos. Com a política enquanto o principal motor narrativo, um jornalista, Paulo, está entre o seu papel de poeta e a sua vontade de trabalhar com a política. Aliado inicialmente ao elitista citado acima, este diz que Paulo será deputado em breve, por isso o rapaz imerge com tanta profundidade no ramo político e cria fortes alianças junto a sujeitos que já estão trabalhando nessa área e têm algum tipo de reconhecimento.

Leonardo Carvalho EMAIL Professor, crítico do CINEPLOT

Inclusive, para o personagem que parece estar recitando uma poesia o tempo inteiro, uma epopeia pelo seu tamanho, mas cheia de abstrações e não de tantas ações, a arte é uma forma de se ligar ao campo político, como faz retomando Castro Alves e discursa que a praça é do povo, assim como o céu é do condor. Conforme o tempo vai passando, entretanto, a poesia do sujeito vai se tornando cada vez mais melancólica e, através disso, utiliza a arte como uma maneira de resistir à despreocupação política frente às mazelas sociais. Nossa poesia, aproveitando o que foi dito, sempre foi marcada pela ligação da arte como uma forma de retratar a política junto ao contexto social. Vemos, por exemplo, Gregório de Matos, lá nos tempos de Barroco, com suas sátiras; os românticos de primeira fase na afirmação de um país recém-independente, com “Iracema”, de José de Alencar,


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10 sendo uma obra em que palavras naturalmente brasileiras, de origem indígena, são amplamente exploradas com o objetivo de divulgar a nossa língua, não a língua do colonizador; o já citado Castro Alves na luta contra a escravidão como poesia de panfleto, lembrando que a sua poética vai muito além de uma simples denúncia; os modernistas discutindo questões da desigualdade, como Graciliano Ramos e suas “Vidas Secas”. São inúmeros os autores que abrigam assuntos políticos em suas obras, e podemos pensar que, muitas vezes, o Cinema Novo fazia tal coisa, seja com “Ganga Zumba”, de Carlos Diegues, resgatando os males do passado escravista para que sejam refletidos no presente, seja com “Barravento”, de Glauber Rocha, uma sequência indireta de “Ganga Zumba” na reflexão do presente escravista, seja com o próprio “Terra em Transe”, também de Glauber Rocha, refletindo sobre os problemas da política sul-

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-americana, um filme profético, diga-se de passagem. Paulo, portanto, ao usar a arte como ferramenta de resistência e crítica política, é um personagem-homenagem à história da arte brasileira. Uma forma de criticar a política local é, em primeiro lugar, generalizar a América do Sul como um continente atrasado, em que políticos, em vez de pensar no bem comum, pensam em si mesmos, desviam dinheiro, são corruptos, não fazem o que é bom para o povo, mas o que é bom para eles mesmos. Na generalização, Eldorado é uma parte que representa um todo, um país fictício que representa todo um continente, e as misturas de nomes e sobrenomes tipicamente brasileiro-portugueses e espanhóis faz com que toda uma América do Sul seja representada em um único país. É possível observar, também, que os políticos são alvos de deboche, em que a caricatura está presente ao lado deles o tempo todo. O sarcasmo aparece sobre

Uma forma de criticar a política local é, em primeiro lugar, generalizar a América do Sul como um continente atrasado, em que políticos, em vez de pensar no bem comum, pensam em si mesmos


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É interessante notar que, já naquela época, Glauber Rocha via a mídia como um quarto poder, assim como Lima Barreto em suas “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, no momento de derrubar certos grupos.

eles, por exemplo, quando o elitista gesticula e fala de maneira exagerada, às vezes com frases tão exageradas que, de tanta abstração, são vazias, completamente vazias; do outro lado, o rival do político citado, o pseudopopulista, é acompanhado, durante uma caminhada, por uma trilha musical que mais lembra o circo, um instrumento de sopro bastante grave e com ritmo dançante. Diante de um cenário em que impera a falta de seriedade política e a desigualdade social, Paulo recita poesias cada vez mais pessimistas, coerentes de acordo com o contexto. O pior de tudo é que, com a utilização do plano-conjunto, enquadramento-chave do neorrealismo e de Glauber Rocha, vemos multidões com expressões de cansaço, mas completamente esperançosas, caminhando ao lado de políticos que fazem as suas passeatas em busca de votos. Na verdade, só Vieira, o pseudopopulista, faz isso, pois o elitista, Diaz, caminha soli-

tariamente para não manter contato físico com os pobres. É interessante notar que, já naquela época, Glauber Rocha via a mídia como um quarto poder, assim como Lima Barreto em suas “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, no momento de derrubar certos grupos. Quando quer destruir Diaz pela razão de este poder fazer mal para o país, Paulo faz isso pela imprensa, através de um amigo que é dono de uma vasta rede de comunicação. Por lá, uma breve biografia negativa sobre Diaz é transmitida, quando se percebe, ainda mais forte, o jogo de interesses que toma conta do político elitista, um político de alianças com multinacionais para receber dinheiro por fora, um político conhecido por suas traições ideológicas para apoiar aqueles que estão para vencer, um homem distante do povo. A mídia e o elitista, porém, no final do filme, que na verdade é o começo, quebrando a linearidade comum das narrativas do Cinema Novo, derrubam o político de cunho mais populista, e a mesma mídia, que antes serviu para negativar a imagem de Diaz, torna-se aliada deste, em um jogo de interesses, e torna-se rival do outro. Revoltado, Paulo tenta resistir, fura bloqueios policiais, e com o golpe político, representado por um tiro sofrido pelo jornalista, a poesia, representada pelo protagonista, morre pela entrada de um possível ditador, a poesia é oprimida com tais regimes, lembrando que “Terra em Transe” é realizado em plena ditadura militar, levado clandestinamente ao Festival de Cannes para ser lançado. Paulo morre logo após dizer que temos que resistir, é a morte como fé, não como temor, como um pensamento de alívio discursado pelos românticos de segunda geração, um alívio por sair de um meio forrado por tanta sujeira. Aliás, o longa-metragem é profético, em que a mídia é vista como um quarto poder, em que os dois lados políticos são aliados a jogos de interesse, em que a fome e o analfabetismo são vistos como aspectos extremistas, mas extremistas para os ricos, que veem um possível investimento nos dois elementos como uma ameaça, é muito do que acontece hoje em dia.


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Propostas para Cultura | Geraldo Alckmin Em seu documento “Diretrizes Gerais”, a Cultura é mencionada no terceiro “arco” de mudanças que o candidato tucano propõe ao país, chamado de “O Brasil da Esperança”. Alckmin promete desenvolver a “indústria 4.0”. Segue o trecho: Promoveremos o desenvolvimento da indústria 4.0, da economia criativa e da indústria do conhecimento, fomentando o empreendedorismo em áreas de inovação, da cultura, do turismo e, especialmente, em áreas onde já somos líderes, como a agroindústria. É importante ressaltar que o próprio documento avisa não conter o programa em sua íntegra. Porém, até o fechamento deste especial (17 de agosto), o site do candidato ainda não estava no ar. Mas já nessa versão compacta é possível perceber um viés mercadológico do candidato no que se refere à Cultura. Ela está contida num campo que trata de “atrair investimento privado e gerar emprego e renda”, diretamente associada ao fomento do empreendedorismo. Alckmin dá a entender que tratará a Cultura como um negócio e que seu governo reconhecerá manifestações culturais como parte de um modelo que ajude a desenvolver a economia. Ao verificar o que Alckmin fez pela Cultura nos anos de governador do estado de São Paulo, vemos que o discurso não é incoerente às ações: os investimentos públicos no setor foram irrisórios, e o tratamento dado variou de acordo com visibilidade e rentabilidade, valorizando a capital e, especificamente, os bairros nobres paulistanos. Recentemente, às vésperas de se desligar do cargo para cuidar da candidatura à Presidência, Alckmin reativou o programa “Pontos de Cultura“, descontinuado em 2013 (Alckmin era governador desde janeiro de 2011). Para acessar a matéria completa realizada por Gustavo Pereira, clique na imagem. *Matéria realizada pelo site Plano Aberto.


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The Hand e o poder pela violência

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iří Trnka viveu na República Tcheca justamente no período da cortina de ferro, após a Segunda Guerra Mundial. É nítido que seu contexto sociopolítico influenciou sua obra, como aconteceu com tantos outros artistas. No caso de “The Hand”, último filme de Trnka antes de dedicar-se exclusivamente à ilustração e à pintura, é perceptível seu descontentamento com a realidade em que vivia. O curta-metragem de 17 minutos

Matheus Fiore email Editor do site PLANO ABERETO e colunista do CINEPLOT e B9

feito em stop-motion acompanha um arlequim sem nome. Vivendo isolado em sua casa, o arlequim passa seus dias cuidando de suas plantas e utilizando seus talentos de artesão para esculpir vasos. Um dia, porém, uma mão gigante invade o lar do protagonista e insiste em contratá-lo para trabalhar para ela. É clara a simbologia carregada pelo arlequim, que representa não só Jiří Trnka, mas todos os artistas que estiveram à mercê de regimes totalitários. Aliás, a


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14 simples escolha de manter o personagem sem nome e a obra sem diálogos permite que tudo funcione metaforicamente, não limitando “The Hand” a ser apenas uma autobiografia. Trnka opta por utilizar muitos planos fechados, algo que obviamente ocorre em virtude das limitações do cenário construído para a realização do curta, mas que acabam evidenciando a situação de sufoco imposta pelo poderoso ser que antagoniza a história. No uso do vilão, é acertada a construção feita por Trnka: a mão, uma figura tão peculiar quanto o personagem principal. O fato de a primeira atitude da mão ser ir até a argila e transformar um vaso de planta numa pequena mão apontando para cima é uma escolha que, imediatamente, define a personalidade daquela figura imponente e cimenta a ideia do autor de que aquele modelo de Estado controlador interfere diretamente na arte e na vida do artista. No modelo de governo criticado na obra, a arte deve sempre curvar-se perante o Estado. O mais interessante de “The Hand” é perceber a visão que Trnka tem do governo comunista. A “mão-Estado” utiliza diversos recursos para convencer o arlequim a trabalhar para ele; alguns são mais óbvios, como sexo e dinheiro; outros são mais impactantes, como quando a mão puxa, de dentro de uma caixa, uma televisão que projeta, em sua tela, imagens de outras mãos como referências culturais e de poder – a mão que segura a tocha da Estátua da Liberdade, por exemplo, pode ser interpretada como um desejo daquele governo de reproduzir os monumentos de outras sociedades. Notamos também que os recortes feitos pelo governo, naquela televisão, são exclusivamente imagens de mãos, o que passa a ideia de que os governos comunistas alienam seu povo ao transmitir, deliberadamente, informações seletas e incompletas, a fim de ocultar o todo e permitir uma visão geral Uma grande sacada é a forma como Trnka estabelece a iluminação como elemento definidor da atmosfera de seu filme. Dispensando boa parte dos recursos

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A visão de Hannah Arendt reflete diretamente nos desdobramentos de “The Hand”, já que, se prestarmos atenção, a violência não é um recurso exclusivo do Estado; o próprio arlequim chega a utilizá-la como forma de defender-se e proteger sua arte

cinematográficos usuais por não ser uma narrativa comum, “The Hand” utiliza a luz e a sombra como forma de expressar o tom do diálogo entre o arlequim e a mão. Quanto mais a mão se torna impaciente diante da recusa do artesão em trabalhar para o Estado, mais agressivos são os movimentos do vilão e menos iluminadas se tornam as cenas, o que resulta em um gradual escurecimento da obra. É curioso que a mão não ache necessário convencer o arlequim a trabalhar para o Estado. Na verdade, o convencimento é apenas uma convenção social. Afinal, mesmo diante das recusas do artesão, a mão o escraviza e o obriga a cumprir a função. A violência, portanto, surge como última ferramenta do Estado para a manutenção de seu poder. O recurso final para garantir a ordem. Como disse Hannah Arendt em “Da Violência”, enquanto a violência é instrumentalizada, feita de meio para alcançar um fim, o poder é o fim em si mesmo. A visão da filósofa reflete diretamente nos desdobramentos de “The Hand”, já que, se prestarmos atenção, a violência não é um recurso exclusivo do Estado; o próprio arlequim chega a utilizá-la como forma de defender-se e proteger sua arte – o que mais seria o protagonista defendendo-se por meio de uma marreta se não esse uso da violência? Por ironia do destino, o falecimento de Jiří Trnka foi sucedido por um funeral com honrarias do governo tcheco, exatamente como ocorre com o arlequim de “The Hand”. Não foi por acaso, então, que, poucos meses após o falecimento de Trnka, seu filme foi proibido. Enquanto o legado de um Estado opressor é a brutalidade e o trauma – enquanto o diretor abandonou o cinema após o curta, seu protagonista apresenta dificuldade de readaptar-se à rotina após o abuso psicológico que sofrera do governo e acaba morto –, o de “The Hand” é o fato de ser um filme que, destinado à história, sempre merecerá ser revisitado para nos lembrarmos daqueles que, pela arte, nos fizeram refletir sobre os que nos subjugam e alienam. n


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Doutor Jivago

e a perda da individualidade

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m clássico em todos os sentidos da palavra, assim pode ser definido Doutor Jivago. O épico dirigido pelo mestre dos épicos, David Lean, é um romance adaptado da obra que valeu o prêmio Nobel da Literatura para o russo Boris Pasternak. O filme conta a história de Yuri Jivago, médico e poeta russo, um homem dividido entre duas mulheres. Sob pano desta paixão envolvendo os três personagens está a revolução russa que, a todo instante, quebra as expectativas dos personagens. São justamente essas expectativas que carregam os conflitos, são condutor narrativo a medida que Lean as usa como aberturas para novas possibilidades que apontam tanto ao passado como para o futuro. Tendo o livro abominado na antiga URSS e sendo o filme uma visão ocidental do livro – mesmo que seja bastante

Philippe Leão email Professor, editor e fundador do CINEPLOT

fiel a temática – o longa é duramente criticado por parte da esquerda. A primeira crítica está relacionado a atenção dada à Revolução. A Revolução Russa é comunicada, mas em segundo plano, como suporte para o desenvolvimento dos reais conflitos, ligados a individualidade (conceito execrado pelo coletivismo da esquerda). As motivações da revolução recebem especial atenção no primeiro ato. É interessante observar que neste primeiro momento do filme o personagem principal trabalha quase como um coadjuvante na história. A escolha é evidentemente um artifício narrativo para desenvolver, em primeiro lugar, personagens importantes e suas relações filosóficas com a revolução. O interesse está em como o evento histórico modifica as personas, os faz trocar as máscaras. Dessa forma conhecemos, entre outros,


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...as problemáticas envolvendo a falência das relações entre indivíduos é a real motivação, o que engrandece a obra ao desvincular-se do contexto historiográfico e adentrando na poesia e sua morte institucionalizada

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Yevgraf (Alec Guinness), irmão de Yuri Jivago (Omar Sharif) e narrador da história contada por flashbacks a partir da busca da filha do doutor poeta. Os antagonistas Victor Komarovsky (Rod Steiger) e Pasha Strelnikoff (Tom Courtenay), ainda um jovem sonhador nesse primeiro ato, sugado pela ideologia coletivista nos atos seguintes. Conhecemos, também, Tonya (Geraldine Chaplin), noiva do personagem principal e uma das envolvidas no triangulo amoroso conflituoso e impulsionado pelas mazelas da revolução. Em especial temos a presença de Lara (Julie Christie), motor principal deste primeiro ato motivado pelo estupro cometido pelo detestável Komarovsky. É importante perceber o desenvolvimento de personagem ligado a ambos os antagonistas. O primeiro, Pasha, começa um jovem cheio de sonhos e ideais de igualdade, mas se torna um tirano das paixões em nome das ideologias. O segundo, Komarovsky, é, inicialmente, um abominável político que se transforma em um elemento de fuga para os persona-

gens principais com o desenvolvimento da trama – é importante, porém, dizer que sua execrável presença jamais é apagada, mas sua funcionalidade se modifica a partir dos encontros. Os personagens são introduzidos, em um primeiro momento, em um contexto de pré-revolução, permitindo com que se elabore suas causas e suas filosofias. Contudo, as motivações da revolução pouco importam como conflitos daquela que é a verdadeira motivação de Doutor Jivago nos atos seguintes. As relações individuais diante de uma coletividade imposta como discurso oficial é o verdadeiro conflito. Assim, as problemáticas envolvendo a falência das relações entre indivíduos é a real motivação, o que engrandece a obra ao desvincular-se do contexto historiográfico e adentrando na poesia e sua morte institucionalizada. A Revolução Russa serve de alavanca para os conflitos narrativos, não suas causas, mas as consequências dos caminhos adotados. Entende-se, portanto, o motivo pelo qual este filme é tão criticado pela es-


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querda em geral – por um lado também por ser uma versão americana em meio a guerra fria, mas isso pouco importa se analisarmos a obra fora do contexto político em que foi criada. Doutor Jivago é um filme atemporal. Jivago demonstrava, em especial no primeiro ato, embora não fosse um grande entusiasta da Revolução, as discussões políticas. Entendia que a Rússia necessitava de profundas reformas e até mesmo admirava o movimento que culminou na revolução. Com o tempo, porém, os revolucionários parecem papagaios de ideias hierarquicamente prontas, propagavam como robôs memorizados o que escutavam. Portanto, aqui se estabelece mais uma crítica de Doutor Jivago, o clássico ataca o coletivismo imposto por determinado grupo, no caso, o Estado, um discurso oficial. A poesia do médico e poeta Jivago eram consideradas sentimentais, individualistas demais, perigosas ao Estado. E era! A verdade é que Jivago demonstrava maior apresso aos indivíduos. Justamente esse romantismo que alimentaria seu amor dúbio e irracional – e portanto ligado as paixões, as emoções individuais – por Tonya, um amor mais racional, e Lara, sua paixão mais romântica. As paixões e potências de Jivago seriam

logo assassinadas com a cristalização da ideologia soviética do coletivismo exacerbado e, portanto, a morte das paixões. Yuri Jivago não seria capaz de sobre-viver como indivíduo na URSS. Não é difícil trazer essa ideia para os artistas soviéticos do Cinema. Tarkovski e Parajanov, importantes cineastas – o primeiro russo, o segundo armênio – inseridos no contexto da antiga União Soviética, tiveram problemas relacionados à suas obras. Considerados individualistas e distantes do considerado “Realismo Soviético”, os cineastas eram nocivos ao Estado e perseguidos pela censura. Parajanov, inclusive, foi preso e subjugado a trabalhos forçados. No novo Estado em que deve sobreviver os homens não são tratados como indivíduos, mas como uma unidade, de muitos. Seu pensamento, de um poeta cheio de paixões, pouco importa para a legitimidade de um grupo. Doutor Jivago é um filme intenso, repleto de camadas a serem desmembradas e re-descobertas. Um filme sobre como uma ideologia anula as individualidades – por acaso se trata da antiga URSS, mas a transposição pode ser feita a qualquer – em prol de uma ideia de unidade coletiva, mecânica. Sobre a aniquilação das paixões primitivas e a exclusão de qualquer particularidade. Um filme para ser relembrado. n

Legenda falando algo sobre o filme, que traga alguma informação resumida sobre algum aspecto do artigo - o bom é usar o espaço da legenda quase como um olho, para comentar algo, em vez de apenas repetir o que há na imagem


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Propostas para Cultura| Ciro Gomes Duas das 62 páginas das “Diretrizes Para Uma Estratégia Nacional de Desenvolvimento Para o Brasil” são dedicadas à Cultura. Ciro Gomes, de forma similar a Guilherme Boulos, também a define como uma ferramenta de afirmação da identidade nacional. Ciro faz uma associação interessante entre o processo de globalização e a criminalidade. Como apenas o acesso à informação é universalizado, pessoas do mundo inteiro têm o desejo, mas não os recursos para satisfazer um “padrão de consumo sofisticado que elas conheceram pela internet”. Essa equação levaria à pirataria ou pior: a uma massa de jovens frustrados engrossando as fileiras do narcotráfico, em busca do poder financeiro necessário para consumir estes produtos. O resgate da cultura brasileira, por esse raciocínio, devolveria ao brasileiro um senso de pertencimento, que não precisaria ser substituído por um consumismo sem sentido. Dentre suas propostas, está a democratização ao acesso e ao consumo de bens e serviços culturais, fomento às culturas afro-brasileira e periférica, além da criação de um “sistema federativo de gestão da política cultural, descentralizado, capaz de garantir maior eficiência (evitando sombreamentos de funcionários e custos), maior capilaridade, maior adequação às realidades locais e, sobretudo, maior capacidade de cumprir sua missão nacional, evitando a concentração de recursos nos estados e cidades (as capitais do Sudeste) que já concentram a maior parte do investimento privado.” Ciro Gomes também prevê um “amplo debate com a classe artística” para atualizar a Lei Rouanet. Percebe-se em seu plano de governo ao menos a intenção de descentralizar o fomento à cultura e a atuação direta do Estado no estímulo ao pequeno e jovem empreendedor cultural. Para acessar a matéria completa realizada por Gustavo Pereira, clique na imagem. *Matéria realizada pelo site Plano Aberto.


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Convidada Especial | Fernanda Novaes

CINEMA MARGINAL, POLÍTICO POR ESSÊNCIA

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odos os movimentos cinematográficos da história, de alguma forma refletiram o que a sociedade estava enfrentando no momento. No cinema, um grande exemplo é o Expressionismo Alemão. As formas distorcidas e temas macabros foram influências diretas do contexto histórico e político de uma Alemanha da Primeira Guerra Mundial. Quando a arte cinematográfica chega ao Brasil, os filmes, em sua maioria, se desenvolvem pautados no âmbito da crítica, talvez devido às incongruências históricas e sociais pelas quais a região foi vítima. Desde os primeiros filmes, até as mais recentes obras, podemos perceber que, mesmo passando por várias fases e ciclos, o cinema brasileiro se consolidou como um cinema de crítica. Seja sobre a sociedade, política, cotidiano, relacionamentos, os filmes que marcaram o cinema do país quiseram dizer algo a mais, para além do entretenimento. Algo que talvez estivesse travado nas entrelinhas, ou mesmo que explicitamente. Se na primeira fase do Cinema Novo o objetivo era representar de forma crítica a cultura e sociedade brasileira, com fortes influências da Nouvelle Vague Francesa na forma, e do Neorrealismo Italiano no conteúdo, em sua terceira fase, próxima a estourar a repressão militar no Brasil, os filmes começaram a determinar ênfase na política vigente. Nasce então, com abordagens que permitia uma maior liberdade estética, o cinema marginal: à margem da sociedade de consumo e das grandes produções, filmes de baixo orçamento, simples, abordando temas incomuns e inesperados, realizando uma profunda análise do homem e seus valores. No final dos anos 60 o país aproveitou

Fernanda Novaes sempre esteve envolvida em projetos audiovisuais, seja apenas estudando sobre cinema quando ainda estava no ensino médio, participando como atriz em curtas metragens como no filme “Cão Maior” de Marcelo Leme; produzindo conteúdo sobre cinema no YouTube em seu canal “Moça, você é Cinéfila” ou fazendo roteiros e dirigindo documentários. Atualmente trabalha com fotografia e vídeo. Recentemente desenvolveu um projeto de curtas documentais em que o primeiro episódio já se encontra disponível no YouTube com o título “A Obra de Marcus Duchen” no canal de sua produtora, Se7e Movie. Esporadicamente escreve para dois sites de cinema: Cinéfilos Anônimos e Cabana do Leitor.

uma das melhores fases de produção cultural. O Cinema Novo e o Movimento Tropicalista influenciaram pessoas de todos os campos da arte, e especialmente a música. Por outro lado, o país enfrentava um regime militar que instaurou o fechamento político e reprimiu a liberdade de expressão das ideias nutridas durante a década. Junto com este desmoronamento e a consequente incapacidade para uma ação política nos termos anteriores estabelecidos, surge uma atmosfera carregada de tensão, onde o terror e a paranoia parecem dar o tom predominante. Porém, neste clima onde o delírio e realidade muitas vezes se confundem, o pano de fundo não se fez tanto pela revolta; mas pelo terror. E dentro do terror, o horror, principalmente o horror do dilaceramento corporal reflexo da tortura que aterrorizou as pessoas na época. Dentro desse quadro a questão da marginalidade ganha outra perspectiva. A postura marginal, antes pejorativa, ganha valoração positiva, constituindo um lema e bandeira de toda uma geração. Nos filmes, a figura do marginal era símbolo da revolta. Os criadores do movimento disseminavam a ideia da contracultura e da antiestética. Rejeitavam o cinema “bem feito” em favor da tela suja, contestavam os costumes e rompiam com a linguagem fílmica linear. Isso explica porque a maioria das obras “agrediam” o expectador que buscava a conclusão ou “a moral da história” tentando encontrar um encadeamento lógico das sequências. Os precursores do cinema marginal diziam que esse estilo era o mais apropriado para um país de terceiro mundo, por possibilitar a transformação das sobras de um sistema internacional dominado pelo monopólio capitalista do primeiro mundo.


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Dizer que o cinema marginal é político por essência, reflete o nascimento de um movimento durante a vivência do povo brasileiro com um regime repressivo

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Mas, mesmo contra tudo e contra todos, o movimento está inserido no grupo daqueles que procuraram experimentar, criar, inovar, ou até mesmo inventar um novo estilo, e para atingir esse objetivo procuraram explorar cada vez mais a “mise-en-scène”. A essência da arte cinematográfica está no fato de conseguir a compreensão, sentir pela mise-en-scène e pelo recurso da montagem, não necessitando de qualquer explicação externa como legendas, música, trilha sonora ou diálogos, de modo que a encenação ocorra de forma autoexplicativa. O cinema marginal deu voz a personagens inteiramente desestruturados que se encontravam à margem da sociedade. Prevalecia a estética do grotesco, onde o kitsch, o burlesco, as imagens sujas e desfocadas eram suas maiores características. Histórias e personagens estranhos, anti-heróis da realidade brasileira, como o bandido da luz vermelha, marginal que realmente causou um grande terror na cidade de São Paulo; Lula, o adolescente baiano que não fazia nada, mas era amigo de Glauber Rocha e queria ser cineasta, ou Sonia Silk, “a fera oxigenada”, rainha do trottoir na Rua Prado Jr., em Copacabana, que sonhava em ser cantora. A cada produção surgia um universo novo e repleto de se-

O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla

res peculiares. A principal fonte de inspiração foi o filme A Margem, de 1967, dirigido por Ozualdo Candeias, que antes de ser cineasta já havia trabalhado como caminhoneiro. O filme de Ozualdo possui um grande número de cenas rodadas às margens da avenida expressa da Marginal Tietê e locações repletas de quantidade de lixo urbano da cidade de São Paulo. A obra retrata o sistema capitalista de forma grotesca e irônica, mostrando a vida de pessoas que viveram à margem da sociedade na maior capital do país. Com uma narrativa não linear e entrecortado por pequenas histórias, o filme possuía elementos de estilo que definiram os moldes do que no futuro viria a se chamar “cinema marginal”. Dizer que o cinema marginal é político por essência, reflete o nascimento de um movimento durante a vivência do povo brasileiro com um regime repressivo. Significa dizer ainda, que todos os filmes produzidos durante essa fase, mesmo os mais fantasiosos, diziam nas entrelinhas, amparados por metalinguagem e metáforas, que a repressão não limitava o poder criativo dos artistas, e que inclusive, foi sob o regime ditatorial que o cinema marginal encontrou um solo fértil para se desenvolver.


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a multidão enquanto

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ma série de cortes somados através de diferentes ângulos demonstra a totalidade de uma estátua construída em homenagem a um czar, Alexandre III. Alguns segundos depois, tudo isso na abertura do longa-metragem, uma sequência evidencia a queda desse mesmo monumento, uma derrubada que sucede através de um Leonardo Carvalho ritmo feroz em que uma multidão se reúne com EMAIL o intuito de destruí-la como uma forma de, Professor, crítico do CINEPLOT simbolicamente, derrubar o regime czarista da época. É iniciada, aqui, uma revolução, uma revolução bolchevique na instalação socialista na Rússia e na derrubada dupla em termos de política, primeiro da monarquia, depois do governo provisório. A sequência inicial é excelente para entendermos isso, e um dos fatores da derrubada está, deveras, relacionado à queda do monumento, enquanto o outro, podemos destacar, está aliado à ideia da utilização do intertítulo, ou legenda, na repetição do vocábulo “todos”, que ecoa no filme, um “todos”, sem dúvidas, dedicado ao espectador russo da época, senão participante da revolução, um membro desse novo mundo. Em “Outubro”, obra realizada com o intuito de comemorar os dez anos da Revolução Russa, as foices, durante um momento em que é constatado o começo da revolução, ganham o protagonismo de alguns quadros, lembrando que a foice, instrumento do trabalhador do campo, é um dos grandes elementos visuais da bandeira soviética. No louvor à nova política do país, também pelas legendas, são destacados os gritos de “viva o socialismo”, fora que as críticas ao capitalismo aparecem em muitas situações, quando é dito, por exemplo, que este é um sistema que não fornecerá, nunca,


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a paz, o pão e a terra. No longa-metragem dirigido por Sergei Eisenstein e Grigori Aleksandrov, as legendas não são poupadas, de praxe nos filmes do diretor de “A Greve”, e elas ambientam o espectador, ainda que de forma confusa, nos dois lados do grande conflito prestes a ser formado: a resistência e a revolução. Na verdade, após uma batalha sangrenta logo depois da derrubada do monumento do czar, quando um ritmo feroz é impresso e muitas mortes são desencadeadas, inclusive uma morte bizarra de um cavalo, toda a história se concentra nos preparos bolcheviques e mencheviques contra o regime político da época. Ao longo do desenvolvimento, sendo “Outubro” um filme dedicado ao proletariado, o plano geral é muitas vezes utilizado

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[...] a montagem paralela deixa estabelecido um conflito entre esses dois lados o tempo inteiro, um conflito em que a tensão é mantida do começo ao fim

para abrigar o grande personagem da história, o povo, o qual faz parte das multidões captadas durante as duas grandes batalhas evidenciadas na trama e durante as assembleias. Os indivíduos são representados por um enorme conjunto, não há muito espaço para a individualização, os diretores não estavam tão preocupados com a identificação psicológica individual em relação a algum personagem específico, por exemplo, mas estavam mais preocupados com o todo, com o povo, com o proletariado, com os bolcheviques, com o coletivo. Sabendo que a população vai à guerra, isto é, que no final daquela história uma guerra será realizada, o narrador, de forma curiosa, faz questão de ensinar o proletário a usar um fuzil quando, em planos-detalhe, um passo a passo sobre a forma como se


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manuseia uma arma vem logo depois da legenda que sugere o aprendizado. Nessa pequena passagem, além de indicar, de fato, um conflito que está por vir, dado que o aprendizado junto ao armamento é importante para uma futura guerra, a imagem da arma em diferentes ângulos firma o cine-punho superficialmente, pois seria mais profundamente concretizado na batalha final. Tratando-se de uma obra que divide os dois lados ao longo de toda a trama, o lado da resistência e o lado da revolução, a montagem paralela, mais abstratamente, deixa estabelecido um conflito entre esses dois lados o tempo inteiro, um conflito não tão intenso, não um nocaute como a cena final da tomada bolchevique em que um grande desfecho, de praxe em Einsenstein, é cristalizado, mas um conflito em que a tensão constante é mantida do começo ao fim. Finalmente, no grande conflito, visualizamos a alternância entre

Ao longo do desenvolvimento, sendo “Outubro” um filme dedicado ao proletariado, o plano geral é muitas vezes utilizado para abrigar o grande personagem da história, o povo

planos mais abertos e outros mais fechados, o que sugere muito sobre o cine-punho de Sergei Eisenstein, pois em grandes sequências, sobretudo as de batalha entre a revolução e a resistência, a abertura e o fechamento dos enquadramentos, somados aos muitos cortes, concede um verdadeiro soco no espectador por tudo ser muito intenso, deixa-o imobilizado, digamos assim. Não foram poupados gastos para a realização do longa-metragem brevemente analisado neste texto, desvios de trânsito chegaram a ser feitos para que uma homenagem ao décimo aniversário da Revolução Russa pudesse ser construída. A película abriga passagens históricas importantes, personalidades fundamentais do evento e, o mais importante, mantém o constante conflito entre os dois lados políticos, em um primeiro momento mais com a tensão ideológica, em um segundo momento mais com a tensão física, com a guerra sangrenta.


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Convidado Especial | Filipe Pereira

OLIVER STONE E UMA HISTÓRIA AMERICANA

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liver Stone é conhecido por no início de sua carreira, ter participado de alguns sucessos comerciais de Hollywood, em especial Conan - O Barbaro de John Millius e Scarface de Brian de Palma. No entanto sua postura política sempre foi a de um crítico duro ao imperialismo que sua nação impôs e impõe no mundo moderno das últimas décadas, seja em seus documentários com figuras consideradas persona non gratas para os governos dos EUA, como Hugo Chavez e Fidel Castro, ou por seus filmes que desconstroem o ideal tanto do American Way of Life quanto do antigo American Dream. Mesmo o primeiro de seus sucessos - que rendeu a ele um Oscar de Roteiro Adaptado - O Expresso da Meia Noite, filme de Alan Parker começa por praticar um exercício que para Stone era muito caro: o livre pensar sobre a jornada que sua própria pátria trilhou ao longo do tempo. A historia de Hayes não falava tanto sobre a política interna dos EUA até por se passar na Turquia, onde o personagem/escritor tentava viver um Tony Montana às avessas já que Al Pacino fazia um latino mal encarado que ia até a América do Norte para ter uma vida melhor e se tornaria um traficante enquanto Brad Davis como Billy Hayes era um americano que tentava traficar cocaína na Europa, em tempos de crise econômica. Essa dicotomia entre Hayes e Montana se mostra uma comparação justa ao mostrar o personagem americano sofrendo uma severidade que normalmente é amputada para estrangeiros na famigerada “Terra da Liberdade”, a brincadeira com essa hipocrisia é certeira ao apontar as incongruências de discurso que deve-

Filipe Pereira é jornalista, crítico de cinema e escritor, é editor do site Vortex Cultural onde também grava podcast sobre cinema e outras artes, participando também freqüente do podcast do Cine Alerta. Atualmente trabalha como roteirista, diretor e produtor da Brisa de Cultura, falando sobre cinema e poesia marginal e slamss, no programa Licença Poética.

ria agregar, mas na maior parte das vezes só segrega. Montana vira bandido entre outros motivos por não ter oportunidades de viver dentro da legalidade, o mesmo para Hayes e ambos tem em comum a paranóia da cruzada contra as drogas, variando entre os governos de Jimmy Carter e Ronald Reagan. O Expresso da Meia Noite fala pouco a respeito da política americana, mas nele se vê uma conexão com outra parte da filmografia de Stone, pois foi o presidente a época (Carter) que promulgou o perdão aos desertores da Guerra do Vietnã. Em 1986, já como diretor, dois filmes foram lançados, um deles foi extremamente elogiado e premiado. Platoon retratou muito bem o que foi a Guerra do Vietnã sob o ponto de vista do soldado raso, além de ser um filme de guerra extremamente emocionante e com personagens icônicos, em especial o Elias, de Willem Dafoe, o chamado soldado humanitário e o duro Sargento Barnes, de Tom Berenguer, um homem essencialmente cruel, que parecia só servir o


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exercito para cometer assassinatos. O primeiro nome dos créditos iniciais é o de Berenguer ou seja a figura vilanesca era o principal nome do elenco e essa ironia combina bem com a ótica do roteiro de Stone, que por sua vez deflagra que o esforço de guerra era inútil, uma desculpa eleitoreira que só servia para colocar americano contra americano. Apesar da parte politizada do filme ser bem curta, a exposição das incongruências e injustiças do campo de batalha serve para mostrar o quão cíclica é história bélica dos Estados Unidos, se assemelhando demais a Guerra Civil Americana, e esse argumento é bem mais explicitado no seriado. O parecer político mais agudo de Stone sobre o Vietnã viria na adaptação do livro de Ron Kovic, Nascido em 4 de Julho, estrelado pelo astro Tom Cruise vivendo o patriota e idealista Ron, um voluntario na guerra que seu país travava. Elementos aproximam esse filme de uma pseudo continuação de Platoon, a começar pela abordagem meio piegas e conservadora do inicio, a trilha sonora de John Williams e claro, o ethos incorruptível e ingênuo do personagem central, criado em uma família branca e tradicional do subúrbio, com comportamento parecido com o de Chris, personagem de Charlie Sheen no filme anterior. Não demora nem dez minutos de exibição para Cruise aparecer, motivadissimo fisicamente. Seu prêmio e sacrifico é atingir o ápice para se tornar o campeão de sua nação de sua família. Aqui

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já se nota a afeição de Stone foi cine biografia inusuais e que fogem da pecha de chapa branca. O roteiro, apesar de supervisionado por Kovic claramente debocha da sua ideia de sentir-se especial e de auto superestimar suas capacidades e o olhar comum conferido a si. Ele tem uma fé inabalável de que tem um chamado especial, seja em uma simples conversa familiar quando todos vêem tv ou a convocação padrão que o exercito faz nas escolas, com os fuzileiros navais já reformados, para ele a tola percepção de que aquela mensagem foi direcionada a para si faz um enorme sentido, mesmo que ela seja genérica e esse nem era um pensamento só dele, pois muitos meninos assim pensavam também. O Vietnã de fato aparece aos 28 minutos de exibição, e poderia ser filmado em qualquer locação, pois é um lugar fantasioso. A cena em questão é bonita, mostra um quadro desértico, com o sol produzindo uma imagem linda, com a luz deixando os soldados escurecidos, como vultos, como entes sem diferencial, sem alma, manipulados por um discurso que nem sequer é o deles e isso se torna ainda mais didático quando o infortúnio ocorre com Ron, primeiro ao alvejar um soldado com fogo amigo, e depois sofrendo um tiro perto da coluna. Kovic vai ao hospital e ele fica anestesiado boa parte do tempo, teoricamente por ele estar ferida, mas subiliminarmente o estado reflete sobre o descolamento do

Platoon retratou muito bem o que foi a Guerra do Vietnã sob o ponto de vista do soldado raso, além de ser um filme de guerra extremamente emocionante e com personagens icônicos


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Nascido em 4 de Julho, de Oliver Stone

mesmo da realidade em sua mente, que resulta também em seu corpo, uma vez que seus membros inferiores entram em falência, um reflexo de atrofiamento de seu próprio pensamento. Depois de tentar se auto enganar, de que voltaria a andar, Ron passa por estágios do luto, demora a se aceitar e evolui o pensamento, transformando-se em um progressista. A intimidade é muito bem explicitada e é impossível não se afeiçoar ao herói falido que é mostrado do alto de sua melancolia e no esforço para se reinventar. O longa mostra os republicanos sendo extremamente descorteses com os veteranos inválidos quando esses aparecem como opositores. O desfecho é um pouco apressado e atabalhoado, a transição para Kovic se tornando candidato não é fluida, mas a mensagem está ali de qualquer forma, e Stone de certa forma voltaria ao tema Vietnã, indiretamente em algumas cine biografias. Voltando a 1986, Salvador - o Martirio de Um Povo também foi lançado. Focado num jornalista que tenta ganhar dinheiro indo a El Salvador para flagrar a situação do país. A atmosfera apresentada aqui é sensacionalista a principio, mas aos poucos a trama se torna mais séria, embora tenha uma histeria que mostrava uma certa imaturidade do realizador – lembrando que este é lançado anteriormente a Nascido em 4 de Julho, JFK e Nixon. Aqui, há pouca ingerência da política americana, ao menos diretamente, mas há denúncia, já que ao final se explicita que o principal fornecedor de armas para o país da America Central é os EUA. Pouco tempo depois em 88, Talk Radio – Verdades Que Matam era lança-

do, um filme que mostra um radialista vivido por Eric Bogosian que dá muita vazão a teorias da conspiração em seu programa, e isso o faz alvo de estranhas organizações extremistas. Ambos, Salvador e Talk Radio são histriônicos demais e essa histeria combina pouco com uma analise mais fria de qualquer cenário político, no entanto o tom conspiratório prosseguiria nos sucessos posteriores de Stone. Mais até que Talk Radio, JFK – A Verdade Que Não Quer Calar divide opiniões demais. Diante do crivo da crítica da época, o filme varia entre o registro mais patriótico do diretor e o que dá vazão há uma visão mais crítica, ácida e até incrédula em fontes não oficiais. O registro histórico a respeito do turbulento período após o assassinato do presidente mais querido da América pós Abraham Lincoln foge demais da pecha de filme biográfico chapa branca. O inicio do filme é um pouco piegas, pois mostra os personagens históricos sob um prisma fantasioso e idílico vivendo felizes em sua rotina diária. O pé na realidade ocorre somente pelo peso dos casos mostrados, com assassinatos e julgamentos políticos mais severos. Há uma diferenciação muito clara de algumas cenas, no tocante a cor, enquanto os momentos coloridos mostram cenas de versões oficiais, as em preto e branco dão espaço para as tais versões de fala, enquanto as em cores são puramente oficiais. Quando algum acontecimento controverso é registrado, as cores também são modificadas, para uma versão mais saturada em tons pastel. Apesar de tratar de algumas teorias da conspiração, a abordagem do roteiro de Stone e Zachary Sklar é muito sóbria, não à


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JFK, de Oliver Stone toa foi indicado ao Oscar de Melhor roteiro adaptado a época, e isso dá ainda mais força a essa versão dos fatos. O tom detetivesco de Jim Garrison, autor do livro que deu origem ao filme junto a Jim Marrs, emula as duvidas do americano em geral, e Kevin Costner faz isso muito bem. A edição frenética e a fotografia de Robert Richardson que varia bem entre os tons ajudam a tornar o texto extremamente denso e repleto de informação em algo palatável. As mais de três horas de duração soam quase como uma metralhadora de referencias históricas. A descrição do crime feita por Garrison com maquetes, com cenas com atores reais e reconstituições beira a genialidade e fazem valorizar demais a montagem de Joe Hutshing e Pietro Scalia. A força do discurso que Costner propaga dá credibilidade para possibilidade levantada, e esse talvez seja o auge da filmografia de Stone, ao menos no quesito de tornar crível as obsessões de seu realizador. Pouco tempo depois em 1995, viria Nixon, cine biografia protagonizada pelo personagem titulo interpretado por Anthony Hopkins. A trajetória do presidente é mostrada como a de um homem fraco, falho e cheio de defeitos e inseguranças. Talvez só tenha acontecido essa abordagem por se tratar de um presidente que renunciou ao cargo, pois essa desconstrução não ocorreu sequer em JFK, que mesmo com tantos po-

Apesar de ser dedo na ferida (Snowden), fala da construção do ideário dos Estados Unidos, denunciando desmandos

dres e relações extra conjugais, ainda é tratado como um anjo, não só na opinião publica como no filme que tem seu nome. Parte da construção dessa fragilidade se vê nos flashbacks de quando era criança e nos conseqüentes traumas que sofreu. Quando menino era muito doente, e lembranças do passado afetam seu pensamento já adulto, já candidato, tanto nos debates da eleição que perdeu quanto no pós morte de JFK. Nos debates contra Kennedy, a própria equipe de Nixon o trata com desdém e desprezo, reclamam que ele está feio, com aparência de acabado, já que a própria equipe não o deixou descansar nada nos últimos compromissos. O republicano chega ao cúmulo de prometer a sua esposa não mais seguir a carreira política, mas obviamente muda de ideia, e com o apoio de seu par. Stone dá muita vazão a parte emocional, humanizando o personagem que hoje nutro muito ódio da parte do povo e o mergulho nessa intimidade ajuda a deslavar a hipocrisia do eleitorado, uma vez que o sujeito é hoje mal quisto foi eleito e reeleito pelo voto de muitos americanos. É completamente diferente de JFK no caráter, mas é igualmente certeiro, embora bem menos inspirado. Aos olhos de Dick Nixon, ele é vítima de perseguição de comunistas, e representa o americano médio dada a paranóia da Guerra Fria ele não está errado ao ponto de ser encarado como louco, só segue na esteira do pensamento político bem comum ao seu país. O retrato das representações presiden-


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ciais ganha outro capitulo pela ótica do diretor. W. é um retorno às origens do realizador, que consegue se restabelecer como um cineasta relevante após alguns tropeços, incluindo aí o terrível Torres Gêmeas. Novamente o foco é em um republicano, com megalomania e crença de que poderia ser amado pelo povo. Nesse ponto, Bush filho feito por Josh Brolin tem os mesmos desejos de Nixon, embora tenha mais devaneios , superestimando a popularidade que poderia ter. A parte do senso comum que afirma que Stone consegue abordar bem suas próprias paranóias se contradiz nesse longa, pois para grande parte dos apreciadores, não há qualquer sentido de conspiração infundada em W. e sim uma ideia crítica elevada a uma potência alta, já que George W. Bush é controverso mesmo em seu eleitorado. Daí o que é detratação pode ser somente encarado como uma adjetivação severa de seus defeitos. O filme é um bom regresso de Stone, onde mais uma vez ele convence seu espectador a não demonizar uma figura questionável, mostrando o presidente como alguém frágil e que tenta se provar como algo a mais que um homem a sombra dos feitos políticos de seu pai e que tenciona não parecer um mimado. As brincadeiras com os sonhos de George baseball me faz perguntar se Stone fosse responsável pelas biografias de ex-comandantes em chefe brasileiros, se poria Dilma Rousseff sonhando em ser uma

Diante do crivo da crítica da época, o filme (JFK) varia entre o registro mais patriótico do diretor e o que dá vazão há uma visão mais crítica, ácida e até incrédula em fontes não oficiais.

bailarina, o Luiz Inácio Lula da Silva sonhando em ser um jogador de futebol...de qualquer forma, essa faceta mais palpável é favorável demais ao biografado, que passa ser encarado como um homem. Houve um outro filme, mais recente de Oliver, chamado Snowden, onde ele bravamente dá uma versão favorável a figura de Edward Snowden. Apesar de ser dedo na ferida, fala da construção do ideário dos Estados Unidos como Talk Radio, Salvador e outros filmes mais antigos da filmografia, denunciando desmandos – agora de forma mais assertiva – mas pouco discute o social de fato. O desenho que Stone pinta sobre o mapa do Estados Unidos da America é bastante discutível, não há como negar que ele é um patriota e que enxerga os pecados dos que governaram os Estados Unidos com um olhar crítico, e talvez ele seja um pouco complacente com os chamados liberais e democratas, mas o fato de enxergar como expansionista a maior parte das ações internacionais da “América” torna a sua obra até aqui como um excelente mea culpa, que obviamente não espia os mal feitos dos governos que levam as cores listradas em azul, vermelho e branco, mas demonstra que ao menos um dos expoentes da Nova Hollywood não assiste incólume as injustiças praticadas interna e externamente na política e no social americano. n


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Ensaio de Orquestra e a

RIGIDEZ DO ESTADO

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Matheus Fiore email Editor do site PLANO ABERETO e colunista do CINEPLOT e B9

caos é um elemento constante na filmografia de Federico Fellini. Em seu maior sucesso, o antológico Oito e Meio, de 1963, o caos se manifesta em uma narrativa que estuda o processo criativo desde sua origem, no inconsciente humano. Em Ensaio de Orquestra, de 1978, Fellini volta a usar o caos como ferramenta de estudo, mas dessa vez em um filme mais político e alegórico, ainda que a arte e o processo criativo estejam lá. Acompanhamos, por 70 minutos, as discussões de uma orquestra com seu maestro, um líder demasiadamente rude

e com traços ditatoriais. O interessante aqui é perceber como tudo, na obra de Fellini, funciona de maneira simbólica. Há, por exemplo, uma introdução que nos apresenta o estúdio onde a obra se passa. Descobrimos que, no passado, o lugar era uma capela, e, conforme somos informados de que hoje é o lar da orquestra, os instrumentos se materializam no plano, como se um universo estivesse sendo formado diante de nossos olhos. Aliás, a impressão de que o ambiente passa a, de fato, só existir quando a câmera chega, existe também pelo fato de o plano que nos apresenta ao estúdio começar no escuro, e a luz chegar aos poucos, de forma gradual – algo que, décadas depois, Aro-


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nofsky veio a emular em seu Mãe!, e inclusive muito aprendeu com Ensaio de Orquestra. Fellini ainda opta por construir seu filme como falso documentário, colhendo depoimentos dos músicos que ali ensaiam ao longo da trama. Quando os músicos começam a se expressar é que a obra começa a, de fato, deixar suas ideias transparecerem. Músicos começam a falar sobre seus instrumentos com carinho, enquanto um violinista começa a afinar suas cordas aqui, um flautista sopra seu instrumento ali... E logo percebemos que há certa organização naquela bagunça. Personagens com visões diferentes coexistem pacificamente, em harmonia. Tudo muda, porém, quando o maes-

De acordo com Roland Barthes, fascismo não é impedir alguém de manifestar-se, é obrigar alguém a dizer algo

tro chega. Imponente desde o primeiro momento, o homem que não desce do tablado exige muito de seus músicos. Logo, a relação de amor entre os artistas e seus instrumentos se torna algo tortuoso. Fellini nos mostra isso não só pelas expressões apreensivas dos atores, mas também pelo posicionamento da câmera, que passa a filmar os músicos de baixo, com as lentes próximas ao chão, fazendo com que o elenco ocupe apenas a parte inferior do plano – e, por isso, percebemos que há um peso no vazio da parte inferior do plano. A quebra da ordem reflete até na temperatura do ambiente: notamos que os músicos passam a se despir de seus coletes e casacos, além de enxugar suas testas.


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32 O teor político do filme se torna manifesto quando a orquestra, nitidamente descontente com o tratamento dado pelo maestro, inicia uma rebelião no lugar. Instrumentos são quebrados, cadeiras arremessadas e paredes são pichadas. Brigas se tornam algo constante, e todos gritam para que o maestro abdique de sua postura ditatorial. A situação só é resolvida quando uma bola de destruição invade o lugar, ponto uma parede abaixo. “Pacificados”, os músicos sentam-se em seus lugares e começam a ensaiar sob as ordens do maestro. É interessante observar que, se analisarmos Ensaio de Orquestra sob o pensamento de Roland Barthes em seu Aula, o método do maestro para coagir seus músicos a tocarem é uma manifestação nítida do fascismo. De acordo com Barthes, fascismo não é impedir alguém de manifestar-se, é obrigar alguém a dizer algo. O maestro de Ensaio faz justamente isso, não tentando em momento algum cercear a liberdade de seus músicos, mas obrigando-os a tocar por meio da ameaça física representada pela bola de demolição. A grande sacada de Fellini, porém, não é representar o fascismo por meio da figura de poder de sua obra, mas sim mostrar a submissão dos músicos, que passam a tocar como máquinas, desprovidos de qualquer emoção, após a ameaça. Se formos ao ensaio sobre Da Violência, de Hannah Arendt, encontraremos a filósofa refletindo sobre como a violência é o último recurso para a manutenção de poder, que é exatamente o que faz o maestro da obra de Fellini. Curioso também é o fato de o estúdio do filme ser transformado num ambiente quase ritualístico durante os protestos dos músicos. Com luminosidade baixa, músicas mais tribais e calcadas na percussão – excelente trabalho de Nino Rota, que faleceu pouco depois – e muitas velas, o estúdio se transforma em uma verdadeira caverna. Não pode ser por acaso, portanto, que uma das imagens mais destacadas do momento é a projeção das sombras de uma mão em uma folha de

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Se formos ao ensaio sobre Da Violência, de Hannah Arendt, encontraremos a filosofa refletindo sobre como a violência é o último recurso para a manutenção de poder, que é exatamente o que faz o maestro da obra de Fellini

partitura, como se Fellini fizesse alusão à caverna de Platão. Dessa caverna, porém, os músicos não puderam escapar. Usando a violência como forma de estabelecer a ordem e defender o poder, o maestro, que pode ser interpretado como um símbolo para qualquer líder opressor, garantiu que seus músicos continuarão alienados e subservientes. Ao fim de Ensaio de Orquestra, a ordem é restaurada e a repressão do agressivo líder recomeça – e continua mesmo quando as luzes se apagam. Em um de seus filmes menos cultuados, Fellini compõe uma música em forma de filme, com direito a intervalos, movimentos e clímax. Mas a música é apenas um meio, pois o mestre italiano consegue ir além, e fala sobre poder, política e sociedade. Ensaio de orquestra é um estudo tanto sobre a opressão de governos ditatoriais, como também sobre a falência de um modelo de política e de sociedade, que destina as pessoas a baixar a cabeça e continuar trabalhando, mesmo que isso custe a felicidade e o prazer dos nossos passatempos favoritos, como a própria arte.


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Propostas para Cultura | Jair Bolsonaro Em 81 páginas, seu “Projeto Fênix” tem uma menção à cultura, que é: Países, que buscaram se aproximar mas foram preteridos por razões ideológicas, têm muito a oferecer ao Brasil, em termos de comércio, ciência, tecnologia, inovação, educação e cultura. Esse trecho é o último tópico do campo “O novo Itamaraty”, onde Bolsonaro expõe seus planos para a política internacional brasileira. Não há exemplos de quais seriam tais países “preteridos por razões ideológicas”, ou mesmo quais seriam estas razões. Fazendo um esforço de boa vontade, podemos falar do “marxismo cultural” que, segundo Bolsonaro, “se uniu às oligarquias corruptas para minar os valores da Nação e da família brasileira” nos últimos 30 anos. É importante esclarecer ao leitor que o chamado “marxismo cultural” foi o nome dado por grupos conservadores – principais apoiadores de Bolsonaro – para “denunciar o verdadeiro objetivo” da Escola de Frankfurt: destruir a cultura ocidental. Uma das formas de “minar os valores da Nação e da família brasileira” seria, precisamente, o multiculturalismo. Este ataque a moinhos de vento do candidato do PSL abre um precedente para boicotes institucionais a manifestações culturais que seu governo considere “ameaçadoras” a tais valores. De certa forma, a verborragia de Bolsonaro remete ao Macartismo americano da década de 1950. Jair Bolsonaro já defendeu publicamente a extinção do Ministério da Cultura. Para acessar a matéria completa realizada por Gustavo Pereira, clique na imagem. *Matéria realizada pelo site Plano Aberto.

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“Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil. Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.” - Oswald de Andrade

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É preciso ressaltar a beleza de “Sem Essa, Aranha”. Não uma beleza pregada como universal e formal, de maneira quase didática. Há belezas de outros tipos, não apenas as sacramentadas. Beleza também é: essência do ser ou daquilo que pode incitar uma sensação de êxtase. É justamente isso que Sganzerla nos concede em “Sem Essa, Aranha”? sem qualquer tipo de pudor, não estando alocado em tradições estéticas formais e sem compromisso com os “manuais” de roteiro ou mesmo de escrita, criando uma

Matheus Petris

Crítico de Cinema pelo Cineplot.


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crítica em seu tempo, mas não. Parece-me que a “turminha” mais jovem ainda não conseguiu entender suas ideias. “Os filmes têm que ser políticos, mas podem sê-lo de outras maneiras, não somente como Rocha e Saraceni. Não se pode nem tentar imitá-los. É preciso que a turminha de hoje, mais nova, abra os olhos e enverede por outras saídas”. Não quero fazer uma alusão ao cinema-novo de maneira a combatê-lo com o cinema marginal, mas sim grifar um ponto importantíssimo a ser sim combatido, “Os filmes têm que ser políticos, mas podem sê-lo de outras maneiras”. E de que maneira poderia mostrar esse Brasil multi-facetado, senão confrontando as classes mais distintas? Utilizando suas próprias contradições? José Loredo é Aranha, que é também Zé Bonitinho, um personagem criado por Loredo uma década antes. É curioso notar como a escolha de Loredo pelo nome “Zé Bonitinho”, pode ter relação direta com essa ideia de Brasil. Ele o escolheu após conhecer um cozinheiro de um restaurante de beira de estrada, que, por ser muito feio, era chamado de Zé Bonitinho. O que é feio? O que é bonito? Novamente, o ponto não é esse, e sim toda a carga de verdade que esse personagem carrega. Mesmo que esse

Os filmes têm que ser políticos, mas podem sê-lo de outras maneiras... Sganzerla

personagem do filme seja “ficcional”, Loredo parece ter agido com certa liberdade na junção de seu personagem com o personagem proposto pelo filme Alguns dos personagens sequer possuem camadas ideológicas, apenas repetem determinadas frases, que não corroboram para uma narrativa linear, apenas exprimem suas falas de maneira a exasperar: “Quem foi que cuspiu na escada?” / “Que dor de barriga, eu tô com muita fome!” Em um texto sobre seu filme (O Bandido da Luz Vermelha, 1968) Sganzerla disse: “Meus personagens são, todos eles, inutilmente boçais, aliás como 80% do cinema brasileiro.” Aranha é também um boçal. Um homem com poder e, ao mesmo tempo, sem senso algum de moral. Um personagem que pode ser comparado a um Doktor Plirtz (interpretado por Jô Soares) do filme antecessor (A Mulher de Todas, 1969), em que a todo tempo proclama: EU SOU UM BITOLADO! Aranha se expressa de maneira diferente, mas no final das contas, pode ser entendido como outro bitolado: “Não sou católico, nem Brasileiro. Não compreendo às leis, não tenho senso de moral. Sou um BRUTO! Mas ainda posso salvar o amor...” Justamente no final desse monó-


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36 logo, a personagem com dor de barriga e muita fome, grita estridentemente. São as duas realidades se convergindo. E por falar em realidade, a ida de alguns desses personagens à favela revela justamente essas diferenças tão claras. Não há pudor na captação daquele meio e das pessoas que ali vivem. Elas são brasileiras, fazem parte desse Brasil tão distinto; elas se amontoaram nesse processo do êxodo rural e foram deixadas de lado, esquecidas, à margem, assim como o próprio cinema marginal. O Brasil é a favela, como também é o calçadão de Copacabana. Isso também pode ser evidenciado no momento em que Sganzerla filma uma família que, conforme suas rotinas e tradições, almoça e cantarolam suas músicas. No meio delas, uma criança, com um prato de comida na mão, está catatônica, sem ideia do que está acontecendo. Na mente dela, talvez exista um questionamento: o que será esse objeto apontado pra mim? Sganzerla capta isso, mas também sua refeição. O plano-detalhe de seu prato é também uma forma de entendermos aquela realidade. Esses momentos nos arrabaldes cariocas, que muitas vezes são acompanhados de enormes multidões curiosas, parecem ser também confrontados com o ineditismo, trazendo novamente à tona a realidade do brasilei-

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Quem não gosta do Brasil, jamais poderia ter filmado Sem Essa, Aranha

ro; mas um que poucos conhecem e que poucos tiveram o destemor de filmar. Realidade essa também confrontada num ambiente familiar, como nas discussões de um casal a trocar xingamentos e ameaças em casa. Aquela acusação infundada - ainda tão popular - que rotula as mulheres como loucas apenas por exprimirem seus ideais. Os dois entram em casa, gritam, fazem barulho, ele grita: “ESSA MULHER É LOUCA”, ela retruca, “UM DIA EU ME MATO”. Dizem que as obras-primas continuam atuais. Obviamente, este é o caso. Em mais um monólogo provocativo, outro grande representante de nossa cultura: Luiz Gonzaga. Acompanhado de sua sanfona, o Rei do Baião põe em pauta outro sintoma tão vivo e atual: “Não sei se já perceberam, estamos vivendo um momento de anti-Brasil. Não sei o que vai acontecer, nem onde vamos parar.” No final, fica claro: é necessário um sentimento para entender esse filme. Aqui, parafraseio Carlos Reichenbach quando ele fala sobre (Documentário, 1966), primeiro filme de Sganzerla: “Quem não gosta de Cinema, jamais poderá entender Documentário.” Quem não gosta do Brasil, jamais poderia ter filmado Sem Essa, Aranha. E jamais poderá entendê-lo.


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Propostas para Cultura | Marina Silva No texto um tanto quanto genérico do plano “Brasil Justo, Ético, Próspero e Sustentável”, Marina Silva fala em democratizar “o acesso a espaços e atividades culturais”, numa abordagem mais descentralizada, chegando a zonas periféricas. Há uma atenção especial com o fomento da Educação Artística dentro das escolas, de forma que os alunos incorporem Arte e Cultura a seus currículos estudantis. Marina se preocupa com a preservação das tradições brasileiras, deixando isso expresso na intenção de valorizar “detentores de conhecimentos tradicionais, como os mestres de cultura popular, do maracatu, do bumba-meu-boi, artesãos, bordadeiras, entre outras”. Não diz exatamente como pretende fazê-lo, mas se compromete a fomentar a produção cultural “por meio de editais, bolsas e premiações” e a “oferecer condições de funcionamento a museus, arquivos e bibliotecas”. O documento também discorre sobre investimentos para incentivar a economia criativa (o termo, também presente no programa de Geraldo Alckmin, aqui é definido como “a fusão da economia da cultura com a economia do conhecimento. Abrange diversos setores, como artes visuais, artes cênicas, games, software, moda, design e arquitetura”), o apoio ao empreendedorismo e a “plena garantia do direito à liberdade de expressão”. Para acessar a matéria completa realizada por Gustavo Pereira, clique na imagem. *Matéria realizada pelo site Plano Aberto.

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MICHAEL MOORE

E UMA FILMOGRAFIA QUE SEMPRE SUSPEITA É difícil qualquer pessoa que tenha críticas a política praticada nos Estados Unidos – ou mesmo os que tem Sindrome de Estocolmo e acham a postura do nosso vizinho do Norte correta – não conhecer ao menos alguma obra de Michael Moore, e esse pretende ser um pequeno guia introdutório a filmografia deste documentarista, que é premiado e é considerado por muitos como inimigo de sua própria pátria.

Filipe Pereira é jornalista, crítico de cinema e escritor, é editor do site Vortex Cultural onde também grava podcast sobre cinema e outras artes, participando também freqüente do podcast do Cine Alerta. Atualmente trabalha como roteirista, diretor e produtor da Brisa de Cultura, falando sobre cinema e poesia marginal e slamss, no programa Licença Poética.


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á em seu primeiro trabalho, Roger e Eu, lançado em 1989 há um tom acusatório. O longa falando da infância de Michael e da ligação familiar que tinha com a GM – General Motors, já que seu pai trabalhava lá e sustentava sua família com esse trabalho. Aqui o próprio assume que é um sujeito que não se encaixa facilmente na sociedade, e não tem vergonha de assumir isso, e tal qual quando era mais moço, o documentário também é tímido em comparação ao restante da filmografia, e mesmo a entrevista com o presidente da empresa Roger Smith há uma postura sóbria e pouquíssimo teatral. A denuncia morava no anúncio da quantidade exorbitante de fábricas fechadas, incluindo as da sua cidade natal Flint, mesmo tendo superávit milionário nas mesmas. O retrato que ele faz da cidade que teve 30000 desempregados é sui generis e essa revolta localizada serve bem como gênese de suas indagações em formato de cinema. Um pouco depois em 97, era lançado Cortando Custos, que mostra Moore em uma turnê de divulgação de seu livro, Downsize This. Nesse ínterim ele expõe algumas das muitas irregularidades cometidas por em-

presas grandes, além de tornar público atos de alguns políticos que claramente usam a demagogia como norte. A coisa mais engraçada do filme é a discussão com um dos chefões da Nike, que utiliza mão de obra barata na Indonésia ao invés de utilizar o povo das cidades americanas que precisa de empregos para fabricar tais tênis, mas obviamente não o faziam, utilizando a falácia de que os americanos não iriam querer trabalhar fabricando seus próprios calçados, mas um povo pobre e de terceiro mundo, sim. O acerto indiscutível do cinema de afronta de Moore viria com o oscarizado Tiros Em Columbine, em 2002. O roteiro usa de um artifício que se tornaria marca no cinema de Michael, que é começar o filme com algo engraçado, no caso uma alusão a tradição do boliche, já que um crime hediondo aconteceu em um dessas pistas para depois ir ao ponto central. Esse maneirismo já se via nas fitas anteriores, mas aqui acerta seu alvo de uma forma mais contundente, unido é claro a anedotas, como a de um caçador que vestiu seu cachorro com uma espingarda – e que acertou uma pessoa – unicamente porque era uma boa “fantasia”. A sequencia envolvendo o animal é na verda-

Tiros em Columbine


40 ade uma válvula de escape, um clichê que serve como o artifício onde o riso é mecanismo de defesa, onde a piada visa aliviar a sensação de dor e culpa da tradição americana de alvejar pessoas e manter-se sempre carregado de balas. Para quem não está acostumado com o pensamento do americano médio (ou para quem só é sensível mesmo) a frase “Acabe com intermediários, cuide da sua família você mesmo” dita por uma mulher, mãe de uma família soa agressiva, apesar de não haver qualquer falta de naturalidade no tom que a personagem militar emprega ao ser entrevistada. Ao descrever os desmandos internacionais dos governos americanos, como os golpes na America Latina dos anos 60 e 70 que foram apoiados extra-oficialmente pelos governos presidências dos EUA, ou os aportes financeiros nos anos 80 a Bin Laden e Saddam, Moore escolhe o clássico de Louis Armstrong, What Wonderful World como se fosse um videoclipe bem no formato dos visos na MTV, e nem a música doce quebra a sensação de estranheza e o nó na garganta ao se deparar com a tradição intervencionista e óbvia dos Estados Unidos.

Fahrenheit 11 de Setembro

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Até então Tiros em Columbine foi o mais incisivo dos filmes de Moore, e seria o inicio de uma espécie de trilogia de desconstrução da perfeição do modo de pensar americano, e um deboche certeiro da lógica de tradição família e propriedade. Ainda nele há um momento infeliz, onde Moore entrevista Charlton Heston, que era garoto propaganda de alguns comerciais armamentista. Esse momento é obviamente mais uma tentativa de soar teatral, mas o fato de acusar Heston é como atacar o sintoma, e não a doença, sem falar que de certa forma, emula muitas semelhanças com a postura sectária comum a boa parte do ativismo de gritaria incessante com foco basicamente em espantalhos ao invés de direcionar para o foco do mal perseguido. Fahrenheit 11 de Setembro, de 2004 começa com a suspeição da eleição presidencial em 2000, onde George W. Bush venceu Al Gore de maneira apertada, colocando o anúncio da Fox News de que ele venceu na Florida como um ardil que pesou na apuração dos votos. Esse capítulo da trilogia é especulativo ao extremo, e até viajandão em alguns pontos. Moore utiliza o depoimento de Britney Spears para exemplificar a


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Sicko

ça que o capitalismo é uma boa opção. Para provar seu ponto, Michael cita a própria família Moore, pois seu pai trabalhava na General Motors e ele pôde desfrutar de uma vida abastada, com viagens, estabilidade financeira, férias remuneradas, já que a concorrência no ramo, as produtoras de carros alemãs e japonesas, foram destruídas durante a guerra. A concorrência desleal é apenas uma das muitas crítica de Moore, e ele engrossa o crive sobre o governo de Ronald Reagan, que antes de ser presidente ascendeu de astro de filmes B de Western para propagandista da indústria como cabeça dos comerciais. A política do presidente incluiu o esmagamento dos sindicatos, congelamento do salário dos trabalhadores – mesmo aqueles que faziam hora extra, conceito esse que tecnicamente nem poderia ser chamado assim já que ela não era paga – aumento nos gastos familiares, endividamento gigantesco das famílias superando somado até o PIB do país. A severidade de Michael é algo necessário, visto que o senso comum dos estadunidenses não permite discutir a fundo o Status Quo. O segundo filme a ser citado, é O Invasor Americano, lançado em 2015. Moore mostra uma invasão a um país

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europeu, a Itália, onde conversa com um casal que está de férias, e explicam para ele que recebem um décimo terceiro salário. O diretor parece genuinamente surpreso com isso, algo comum por exemplo ao Brasil, um país de terceiro mundo. O intuito do filme é mostrar ao americano alternativas de vida, é como se ele seguisse a risca a dica do fraco argumento de que para criticar é preciso sugerir uma solução imediata, pois bem, aqui tem alguns hábitos culturais que não seria difíceis de ser empregados no modo de viver dos EUA. Próximo do final, uma entrevistada diz que não gostaria de viver em solo americano nem se fosse paga, por conta do tratamento que inferem aos seus vizinhos, e ao modo como tratam de assuntos comuns como saúde, mas uma vez referenciando Sicko. Sem perceber Michael Moore mostra na fala dessa entrevistada uma síntese de sua filmografia, que tem como tese base o amor incondicional e patriótico, mas que não se permite ser condescendente com as muitas injustiças sociais praticadas por parte dos governos e da sociedade civil, que fora vez ou outra, normalmente abraça o imperialismo e a desordem social do país mais rico da zona americana do globo.


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CONSTRUTIVISMO RUSSO

Depois de outubro o cinema mudou... Cinco jovens entre 22 e 29 anos promoveram, há quase um século, a mais influente e assombrosa revolução que o cinema já viu


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s grandes transformações do cinema surgem da ruptura e da juventude. Talvez a maior delas tenha unido essas duas características a uma série de acontecimentos que contribuem para tornar os tempos da Escola Soviética como os mais importantes e representativos do cinema em todos os tempos. No tempo em que as condições para seu surgimento se estabeleceram, seus artífices eram “moleques”: três anos depois da fundação da Escola de Moscou, Eisenstein, tinha 24 anos. Lev Kuleshov, tinha 23. Dziga Vertov, 26. Dovzhenko, 28 e Pudovkin, dos jovens o mais “velho”, estava com 29 anos. Houve outros, inclusive um solitário remanescente do primeiro período do cinema russo, Protazanov. Um olhar superficial à história dirá que eles produziram um cinema panfletário ao lado vitorioso da revolução de 1917. Vai muito além disso: a relação é simbiótica. A começar pela própria “acusação” de serem panfletários. O cinema, por si só, é sempre político, a depender pelo viés que se observa. Deleuze já descreveu o cinema como uma máquina de guerra. Benjamin ressaltou o poder do cinema no inconsciente do espectador, uma constatação possível pela simples observação histórica. Hitler investiu pesado no cinema como ferramenta de disseminação de suas ideias. A América contra-atacou com o esforço de guerra dis-

Fábio Rockenbach fabio@upf.br Jornalista, especialista em cinema e mestre em produção literária. Coordena o Núcleo de Estudos em Cinema e o projeto Ponto de Cinema na UPF - RS, onde é professor nos cursos de Jornalismo e Artes Visuais

pendido pelos estúdios, grandes diretores e grandes astros durante a segunda guerra. O mesmo cinema transformou certos gêneros em metáforas das ideias antagônicas da Guerra Fria. O cinema espanhol da era Franco é altamente politizado, e mesmo após o tempo do ditador, ainda reverberam obras contextualizando seu tempo. O cinema de ação dos anos 80 é identificado com o discurso da Era Reagan. Cineastas como Pontecorvo e Costa-Gavras fizeram do cinema uma ferramenta da contestação, da crítica e resistência. Filmes foram banidos por representarem ideias perigosas no seio de regimes totalitários. O cinema americano é político. O cinema de autor é político. O blockbuster permite uma leitura política. O cinema bancado pelo Estado é político. O cinema, como arte, é discurso, e representa seu tempo, de forma direta ou indireta. Posto o contexto, voltemos ao período único em que um grupo de jovens recebeu poder, influência e liberdade criativa sem a necessidade de se preocupar com retorno financeiro para unir teoria e prática de uma forma nunca vista antes.

Um cinema compromissado com o passado Literalmente, os diretores da Escola Soviética foram os artistas certos no lugar certo no momento certo, porque a despei-


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44 to do lugar-comum que rege a ideia de um cinema nacional servindo a demandas do estado soviético, esses jovens tiveram um nível de liberdade criativa coletiva que nenhum país ofereceu ao longo do século. É até irônico: no tempo em que esses teóricos/diretores exerceram seu ofício, no país que seria conhecido posteriormente como uma terra de restrições, eles tiveram total liberdade formal enquanto na América, a terra da liberdade, os diretores começavam a entrar em um sistema de produção regido por regras e gêneros nos estúdios que, de certa forma, impunha limitações formais que poucos conseguiram driblar para criar uma marca autoral própria. De certa forma, o cinema soviético começou com uma consciência histórica bem delineada. Ainda que tenha influência das obras de arte literárias – notadamente Gogol, Dostoievski e Tolstoi - o cinema nacional russo, já no primeiro filme lançado em 1908, Stenka Razin, de Vladimir Romashkov,se baseia em fatos históricos e recria o famoso cossaco rebelde e seus seguidores em seus 10 gloriosos minutos. Quatro anos depois, Vasilii Goncharov dirige o primeiro longa russo, The Defence of Sevastopol, recriando a heróica defesa da fortaleza russa durante a Guerra da Criméia. Como se vê, desde seus primórdios, o cinema russo enxerga a recriação do passado como uma parte vital de sua própria cultura representativa. A relação entre história e cinema adquire um componente político direto poucos anos depois. É assustador perceber que apenas nove anos após o primeiro filme feito por uma companhia russa, toda a indústria cinematográfica do país se transforma.

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Um olhar superficial à história dirá que eles produziram um cinema panfletário ao lado vitorioso da revolução de 1917. Vai muito além disso: a relação é simbiótica.

A mais importante das artes Em 1919, em um manifesto oficial nacionalizando a indústria cinematográfica, Lenin declara ser o cinema “a mais importante das artes”. Não é possível ignorar que parte dessa declaração reside na sabida dificuldade de comunicação com o proletariado, com a classe simples, trabalhadora e em um nível ampliado, analfabeta. Arte puramente visual naquela época, de fácil assimilação, o cinema era a arte, portanto,

POSTER de Stenka Razin, primeiro filme produzaido por uma companhia russa. Desde o início, o cinema russo já olhava para sua história

perfeita aos desígnios do Estado. Foi um cinema nascido da guerra, e que a ela prestou referências durante seu período dourado. A afirmação do cinema como arte também vem ao encontro do que a própria história permite perceber do papel da arte no movimento político das nações. A arte na Revolução Francesa, por exemplo, enaltecia a burguesia. A arte construtivista e o cinema da revolução de 1917, por outro lado, enaltece o proletariado. Até a época do construtivismo nenhum movimento tinha sido tão influente numa realidade revolucionária ou tinha mostrado o papel social da arte como uma questão política de forma tão forte como aconteceria na Rússia. Como disse Marcuse, nos anos 70, a arte pode, de fato, tornar-se uma arma na luta de classes, ao promover mudanças na consciência predominante. Por sua qualidade subversiva, está normalmente ligada à consciência revolucionária. Quando essa característica intrínseca se junta aos próprios conceitos construtivistas se percebe, cem anos depois, como as peças da engrenagem funcionavam todas juntas no momento certo, fundamentando a era de ouro do cinema russo sob a égide do regime recém implantado.


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A GREVE, de Eisenstein, já apresenta boa parte dos conceitos básicos que ilustrariam as tipificações de montagem criadas pelo diretor Esse período da era de ouro do cinema russo, segundo historiadores, compreende o tempo entre o lançamento de The Extraordinary Adventures of Mr. West in the Land of the Bolsheviks, de Lev Kuleshov, em 1924, até o último grande filme mudo soviético, Terra, de Alexander Dovzhenko, lançado em 1930. O movimento para o surgimento dessa era de ouro é influenciado diretamente pelo cenário político. Primeiro pelo manifesto oficial de Lenin, que resulta na criação da Escola de Cinema de Moscou. No mesmo ano, em 1919, ocorre a criação da Repartição de Cinema no Comitê Nacional de Política e Educação – aos cuidados de Nadežda Krupskaya, esposa de Lênin. A existência do comitê é simbólica também: ele deriva do Comitê Skobelev, criado por Nicolau II. Com pouca produção, preso à propaganda dos czares, o comitê foi transformado por Lênin após a tomada ao poder com uma função adequada aos novos tempos e aos novos discursos.

Uma geração de ouro Outro aspecto importante para o sucesso desse movimento em torno da indústria cinematográfica está na renovação de seus artífices. A indústria russa teve pouco tempo para se empolgar com o início de suas próprias produções em 1908, já que a primeira guerra, a partir de 1914, mudou totalmente o cenário. Com a ascensão da

guerra, os custos proibitivos dizimaram a produção local, restrita, então, à exibição de filmes estrangeiros. A pá de cal, porém, veio com a revolução e a ascensão ao poder dos bolcheviques, em 1917. A quase totalidade dos diretores da primeira era do cinema russo fugiram do país, o que permitiu a ascensão de uma geração de novos nomes que, insuflados pela Escola de Moscou, passaram a pensar e a realizar o cinema. Um dos raros momentos da história em que o ato de teorizar a linguagem cinematográfica foi acompanhado do ato de efetivamente praticar esse cinema, seja para atestar seus postulados, como também colocá-los em xeque. Assim, esses “moleques” citados

É até irônico: enquanto o cinema bancado pelo Estado soviético oferecia liberdade formal e apoio criativo, o cinema americano, na “terra da liberdade”, impunha regras em um nascente sistema quase industrial de produção regido por repetições de fórmulas e gêneros.

A ESCOLA DE MOSCOU hoje. Criada em 1919, ela concentrou em suas dependências uma das mais felizes reuniões de teóricos da linguagem cinematográfica


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anteriormente encontraram um cenário único: uma indústria incipiente, desprovida de velhos maneirismos, aberta a experimentações, sem influências externas, com autonomia formal, reconhecimento estatal e investimentos. Foi o paraíso para Eisenstein, Kuleshov, Pudovkin, Dovzenko e Vertov. Eles não precisama se preocupar com retorno financeiro, podendo se concentrar na forma e no sentido do filme, desde que atingindo ao objetivo estabelecido pelo Estado: o de comunicar suas ideias ao proletariado.

A pedagogia do olhar A contribuição de Vertov, Kuleshov, Eisenstein e os demais ao cinema do século é conhecida e reproduzida aos quatro cantos. A ideia de abolir a vida cotidiana burguesa e a simples representação, ou a invisibilidade da montagem de Griffith em prol da montagem discursiva, do “perceber o filme”. A ideia de que um plano é interpretado pela sua relação com os planos imediatamente anterior e posterior. O postulado de que toda arte está na montagem, não na encenação, manifestando assim a intenção do realizador. O poder do choque dos planos para não representar a realidade, mas, sendo percebidos, provocar uma interpretação. Pode ser curioso perceber que mesmo contemporâneos como Eisenstein e Pudovkin tinham maneiras distintas de observar a montagem, e como ambas acabaram servindo bem aos propósitos do novo regime. Ambas funcionaram em suas intenções. Ao contrário de Eisenstein, Pudovkin via mais importância na fragmentação do plano, e não necessariamente no choque entre planos. Chamava os planos de “unidades gramaticais” que, fragmentadas, podiam ser ordenadas a formar um vocabulário próprio, assim como letras formavam palavras. Nesse contexto, não era necessariamente o choque entre eles o produtor de sentidos, mas o sentido construído pela sua ordenação. Funcionavam, ambas. Tais ideias eram, para Eisenstein, a oposição à ima-

...esses “moleques” encontraram um cenário único: uma indústria incipiente, desprovida de velhos maneirismos, aberta a experimentações, sem influências externas, com autonomia formal, reconhecimento estatal e investimentos.

Koyaanisqatsi - Uma Vida Fora de Equilíbrio de Godfrey Reggio (1982) compara a massa coletiva humana no dia a dia, indo para seus afazeres, com produtos de uma linha de produção industrializada. É a oposição das imagens n e o sentido dado pelo movimento e pelo ritmo que permite a leitura do discurso embutido na montagem

gem da massa coletiva de grevistas sendo atacados pela polícia chocada ao plano que mostra a execução de animais em um matadouro. Ou a oposição dos grevistas espremidos no campo, cercados pelos cavalos da polícia enquanto longe dali, burocratas espremem laranjas para fazerem o suco que bebem no almoço, ambas as cenas em A Greve. O princípio básico do choque entre planos sem continuidade lógica atravessa o século, sendo utilizado desde Chaplin, em Tempos Modernos (a cena de abertura mostrando ovelhas indo para o abate em oposição aos trabalhadores dirigindo-se às fábricas) à Coppola em Apocalypse Now (a morte do Coronel Kurtz cortada pelo abate de um boi). Eram, para Pudovkin, a imagem pungente da mãe, representando a mãe Rússia, ostentando a bandeira antes segurada pelo filho morto, sendo ela também abatida, enquanto vemos as imagens do gelo derretido no rio de água corrente, uma metáfora ao próprio movimento de contestação ao


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Os burocratas donos das indústrias espremem uma laranja para extrair seu suco, enquanto os policiais “espremem” a massa coletiva que protesta por melhores condições de trabalho em A GREVE

regime czarista, em Mãe. Ou, no caso de Kuleshov, o poder de sugestão oferecido pela alternância dos planos, expresso 60 anos depois em Os Eleitos, de Kaufman, mostrando o astronauta precisando desesperadamente urinar, porém preso à cápsula espacial, alternado com diferentes cenas (e sons) de água, que sugerem ao próprio público uma vontade incontrolável de ir ao banheiro. De todos, o mais citado sempre foi Eisenstein, principalmente a partir de sua clássificação dos tipos de montagem – uma teorização que ele aplica na prática a seus filmes mais famosos, desde A Greve até O Velho e o Novo, passando pelos emblemáticos Encouraçado Potemkim e Outubro. Dos seus cinco tipos de montagem – métrica, rítmica, intelectual, tonal e atonal – talvez os três primeiros sejam os que mais resistam ao tempo, uma vez que a montagem atonal é um amálgama das demais e a montagem tonal depende, basicamente, de elementos de composição do quadro, quase uma dependência da mise-en-scène, deixando o processo de montagem, em si, em segundo plano. Mas como não reconhecer a importância da métrica e da rítmica num tempo regido pela construção de sensações pela montagem? Eisenstein usou a métrica casada à velocidade da trilha, assim como faz Zinneman em “Matar ou Morrer”, quando o trem está prestes a chegar á cidade e, ao ritmo das badaladas do relógio, promove uma montagem em que cada imagem de tensão evolui com a trilha e permanece exatos quatro segundos em tela, acompanhando a trilha, até explodir com o apito do trem Boa parte dos pressuspostos da monta-

gem intelectual, que constrói significados pela oposição de planos lado a lado, podem ser resumidos com um olhar sobre dois filmes, “A Greve” e “Outubro”, mas também é injusto relegar a Eisenstein apenas a ideia de que esses planos só adquirem sentido a partir do olhar distanciado. O segredo também está neles. Ian Christie, autor de “Eisenstein Rediscovered”, de 1993, chama a atenção para um aspecto pouco mencionado quando se fala no cinema de Eisenstein. Enquando há quase um século se discute e estuda os aspectos referentes ao choque entre planos, Christie chama a atenção para a composição dos planos, antes de olhar unicamente para a relação entre eles.

A GREVE contrapõe a massa grevista cercada pela polícia com a execução de um boi em um matadouro. Encerra com o animal morto e a multidão, morta. A montagem intelectual que permite a leitura de um significado pelo choque de imagens que não têm uma “ordem narrativa” normal everbera ainda hoje. Em 1979, Coppola contrapõe o assassinato do Coronel Kurtz, em Apocalipse Now, à execução de um boi fazendo com que o movimento dos golpes no coronel coincidam com os golpes que matam o animal


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60 anos depois de Kuleshov, OS ELEITOS (1983) traz uma amostra simples de como o cinema pode provocar não apenas a compreensão, mas produzir sensações: às imagens do astronauta “apertado” para ir ao banheiro, imagens e sons de mangueiras, chá escorrendo, copos d’água e ruídos de descargas amplificam as sensações e provocam reações no espectador.

“Há dois pontos a se considerar. O primeiro é quase filosófico, sobre o relacionamento conceitual entre montagem e composição do plano, quando se clama que a primazia reside no plano e não na montagem. Em outras palavras, o compromisso fundamental de Eisenstein é com o tipo de plano e não a uma significação da concatenação de planos. Além disso, esses aspectos são conceitualmente uma só peça: a escolha de um leva ou é determinado – e a escolha do verbo aqui é importante – pelo outro. Eisenstein entendeu isto de alguma forma quando ele se recusou a permitir que um plano fosse um simples elemento na montagem, mas, ao invés disso, fosse uma “célula” da montagem. O vocabulário biológico sugere que a conexão que ele buscava fosse uma necessidade natural. Em outras épocas, ele mencionaria o plano como sendo uma “molécula” da montagem. Seu desejo de conectar inseparavelmente o plano da montagem, recusando permitir

Eisenstein também tinha a preocupação, apontada pelo autor, de que a composição do plano permitisse uma abertura para a interpretação, base em cima da qual Eisenstein formula uma espécie de anti-realismo que fossem chamados de elementos, mas atentando a ligá os termos conceitualmente e teoricamente. “ Eisenstein também tinha a preocupação, apontada pelo autor, de que a composição do plano permitisse uma abertura para a interpretação, base em cima da qual Eisenstein formula uma espécie de anti-realismo. O espectador, em determinado ponto, deveria poder perceber essa construção significatória no plano – e não apenas no choque entre eles. Reside aqui parte da famosa dialética usada por ele, principalmente, na famosa sequência da


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Uma rápida explicação sobre a dialética usada por Eisenstein: Um plano — tese — dos soldados descendo a escadaria se choca com o seguinte — antítese — do povo fugindo — e gera uma síntese: opressão pelo Estado. Essa idéia permanece na cabeça do espectador, que no plano seguinte choca-se com outra imagem, de um velho se protegendo, gerando outro sentimento: abandono, fraqueza e fragilidade. Com a ideia do estado opressor atacando o povo frágil, segue-se nova imagem das tropas atirando contra o povo, gerando a ideia de brutalidade e covardia do regime. E assim por diante. DePalma não trabalha dialética dessa forma na montagem, apenas presta reverência e insere um elemento inocente — a criança no carrinho — em meio ao caos para acentuar a tensão.

escadaria de Odessa em O Encouraçado Potemkim. O princípio básico da dialética, essencial na construção do conhecimento, guia toda a sequência. Se é famosa a manipulação do tempo – a montagem torna a descida da escadaria mais longa do que seria na realidade, ampliando a tensão e a imersão naquele momento – e a aplicação de praticamente todos os tipos de montagem conceituados por ele – o movimento no quadro direcionando o seguindo, o ritmo do corte enfatizando o aumento da tensão, etc – a interpretação dialética da cena a torna ainda mais impactante. A dialética, de uma forma simplista, é a constituição de ideias a partir da oposiçao ou contestação delas. É um princípio que rege a construção do conhecimento há eras. Para cada ideia surgida e defendida (a TESE) surge, em certo momento, uma oposição ou contestação (a ANTÍTESE). A partir do choque entre ambas as ideias, surge uma SÍNTESE. Essa síntese, em tempo, se torna uma nova TESE. Que será, em breve, anteposta a uma ANTITESE, gerando uma nova SÍNTESE, que se torna TESE e ad infinitum. O conhecimento evolui, as ideias se proliferam, o conhecimento se constrói. O objetivo da cena – ressaltar o poder czarista implacável e cruel com o povo – é alcançado pela dialética na montagem da cena. À imagens que mostram o Estado poderoso (TESE), surge uma imagem de alguém do povo reduzido, amedrontado, fragilizado (ANTITESE). Após, uma imagem dos soldados marchando, disparan-

Se, para o Estado, eles eram um meio, igualmente para eles o Estado era um meio para atingir um fim.

do, o close nas botas, no cano, na arma. Forma na mente do espectador a ideia de que o Estado é cruel, implacável, covarde (a SÍNTESE). Mais do que a mensagem passada, do que qualquer tipo de panfletarismo, está nessa pedagogia do olhar perpetrada pelos cineastas da Escola Soviética o grande legado de seu tempo. A história legou a esses nomes a importância na evolução da linguagem, e não sua adesão às ideias políticas. Se, para o Estado, eles eram um meio, igualmente para eles o Estado era um meio para atingir um fim. De alguma forma, ambos foram usados pelo outro lado, e ambos usaram o outro lado. Em um período de união e experimentação entre teoria e prática como o cinema jamais viu igual, ofereciam um SENTIDO à revolução através da representação dos sentidos das imagens pelo filme, mas, sobretudo, fizeram evoluir o cinema como linguagem, discurso e arte de maneira mais incipiente do que jamais aconteceria novamente. É a partir dessas ideias que a grande herança desses cineastas, suas teorias sobre montagem, invadem a teoria cinematográfica do restante do século e se manifestam ainda hoje. Nosso cinema, hoje, se constrói a partir dessas duas visões separadas por um oceano: a representação de uma narrativa clássica usando, aqui e ali, conceitos de criação de significados representados pela montagem. Bem vindos ao cinema contemporâneo, cem anos atrás.


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Propostas para Cultura | Fernando Haddad O documento “O Brasil Feliz de Novo” foca na “retomada de políticas construídas entre 2003 e 2016, além da formulação de novos programas que possam atender as atuais demandas do setor e garantir o desenvolvimento cultural para toda a sociedade”. Assim como dito nos programas de Boulos e Ciro Gomes, o plano do PT para a Cultura envolve descentralização e flexibilidade. Como diferencial, se compromete a aplicar no vídeo sob demanda uma política similar à da TV por assinatura, além de “democratizar o acesso do público brasileiro à produção fomentada com recursos públicos”. O programa também fala de atualizar a legislação de direito autoral, de forma a melhor remunerar artistas e criadores. Para o estabelecimento de um plano de metas sólido, um eventual governo Haddad planeja um amplo debate com a classe artística brasileira. Mais do que simplesmente analisar as propostas do PT para a Cultura, é importante ver o que o partido de fato fez nos treze anos em que esteve no poder. Os governos de Lula e de Dilma Rousseff ficaram marcados pela Lei Rouanet e pela Lei 12.485, a “Lei da TV por Assinatura”. É curiosa a associação da primeira ao partido, pois foi sancionada em 1991. Já a segunda, que foi fortemente atacada por operadoras de TV por assinatura, aumentou a produção de conteúdo independente no país. Uma das principais críticas ao atual formato da Lei Rouanet é a “terceirização” do fomento à produção cultural no Brasil. No momento em que uma obra recebe o aval para captar recursos provenientes de renúncia fiscal, são empresas privadas que decidem em quais projetos investir. Dessa forma, produtores independentes sofrem concorrência com nomes consagrados e mais interessantes a nível mercadológico. A Lei da TV por Assinatura, por sua vez, obriga as operadoras e veicular uma cota semanal de produção brasileira, além de oferecer um número mínimo de canais nacionais em cada pacote. Isso cria demanda por profissionais, emprego e mídia para veicular o que se produz.

Cabem questionamentos ao PT, assim como a todos os partidos que se propõem a ouvir a assim chamada “classe artística” para orientar suas políticas públicas, sobre quem serão os representantes ouvidos. A “classe artística” não é um “saco de gatos”, em que um pode falar por todos. Os anos de Lula/Dilma foram de avanços na área, mas não sem críticas. Valorizar os acertos menosprezando os erros é o caminho mais curto para a estagnação, ou mesmo o retrocesso. Para acessar a matéria completa realizada por Gustavo Pereira, clique na imagem. *Matéria realizada pelo site Plano Aberto.


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CINEMA, DITADURA E TRANSGRESSÃO

A NOUVELLE VAGUE TCHECA E O FAZER FILMES SOB O COMUNISMO

O cinema ocidental nos acostumou com as imagens dos nazistas derrotados por norte-americanos e britânicos ao fim da Segunda Guerra Mundial, mas vale lembrar que a União Soviética foi a outra grande vitoriosa do conflito e, como tal, expandiu sua área de influência para o leste europeu. Países como Hungria, Polônia, Romênia, Bulgária e Tchecoslováquia, invadidos pelos nazistas ou aliados deles nos anos anteriores, passaram ao domínio comunista. Tornados ditaduras de partido único, eles também acompanharam os soviéticos no campo artístico, engajando-se no realismo socialista, estilo erigido a serviço do comunismo, responsável por celebrar a grandiosidade dos trabalhadores, do partido e de seus líderes. No caso específico e emblemático do cinema da União Soviética, desde os anos 1930, sob Stalin, se abandonou as experimentações vanguardistas de diretores como Sergei Eisenstein e Dziga Vertov. O cinema correto passou a ser aquele capaz

de se comunicar de forma mais direta com o público (majoritariamente analfabeto) do país, entretendo-o e, ao mesmo tempo, educando-o nos valores da ideologia vigente. É sempre instigante observar como filmes inventivos e politicamente potentes foram produzidos sob ditaduras (das mais diversas orientações ideológicas) ao longo do século XX. No próprio período stalinista, Eisenstein realizou as duas partes de Ivan, o Terrível (1944 e 1948), por exemplo, ainda que a segunda só tenha sido lançada em 1958, dez anos após a morte do diretor. De qualquer forma, já na primeira, que agradou a Stalin, é possível perceber certas fissuras no discurso oficial, com a representação do czar do século XVI remetendo criticamente a características do então Secretário Geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). No entanto, foi após a morte de Stalin (em 1953) e especialmente o XX Congresso do PCUS (em 1956), no qual o

Wallace Andrioli Guedes é historiador e crítico. Estudou temas ligados à história do cinema brasileiro no mestrado e no doutorado. Ama os filmes de Alfred Hitchcock, Billy Wilder, F.W. Murnau e Edward Yang.


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novo líder político do país, Nikita Kruschev, denunciou os crimes cometidos por seu antecessor, que cineastas e artistas de outras áreas começaram a ter maior liberdade para tensionar os limites do realismo socialista. O cinema soviético desse período viu nascer Andrei Tarkovski, Kira Muratova, Larisa Sheptiko e Elem Klimov e filmes como Quando Voam as Cegonhas (1957), de Mikhail Kalatozov, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, e A Balada do Soldado (1959), de Grigoriy Chukray, indicado ao Oscar de melhor roteiro. Nos países da esfera de influência da União Soviética, a liberdade alcançada a partir da segunda metade da década de 1950 foi ainda maior. Os cinemas polonês, húngaro e da Alemanha Oriental desses anos, por exemplo, são recheados de obras com olhar aguçado para conflitos existenciais e políticos presentes no interior dessas sociedades, indo de encontro, portanto, à harmonia triunfalista do realismo socialista. Nesse sentido, aliás, cineastas como Andrzej Wajda (na Polônia), Miklós Jancsó (na Hungria) e Konrad Wolf (na Alemanha Oriental) não buscavam com seus filmes atacar diretamente o comunismo, defender a destruição do regime, mas aprimorá-lo, inclusive reproduzindo alguns de seus valores centrais nas narrativas. A trilogia da guerra de Wajda (1955-1958), Os Sem Esperança (1966) e Vermelhos e Brancos (1967), de Jancsó, ou Estrelas (1959), de Wolf, são marcados pela valorização da luta dos oprimidos contra os opressores, sejam esses últimos nazistas, membros do exército branco durante a Revolução Bolchevique ou

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O Baile dos Bomobeiros

alguns dos mais prestigiados realizadores da geração da dita Nouvelle Vague tcheca apostaram em postura mais agressiva em relação ao estado das coisas comunista e num experimentalismo vanguardista plenamente sintonizado com a contracultura ocidental, em voga na década de 1960. Dois exemplos são bastante emblemáticos disso: Vera Chytilová e Milos Forman

aristocratas do século XIX. Na Tchecoslováquia, no entanto, se foi um pouco além. Mesmo que obras-primas como A Pequena Loja da Rua Principal (1965), de Ján Kadár e Elmar Klos, e O Cremador (1969), de Juraj Herz, tenham atacado diretamente o nazismo (inimigo histórico do comunismo e associado pela ideologia oficial ao ocidente capitalista), alguns dos mais prestigiados realizadores da geração da dita Nouvelle Vague tcheca apostaram em postura mais agressiva em relação ao estado das coisas comunista e num experimentalismo vanguardista plenamente sintonizado com a contracultura ocidental, em voga na década de 1960. Dois exemplos são bastante emblemáticos disso: Vera Chytilová e Milos Forman. Ela, em filmes como As Pequenas Margaridas (1966), Fruto do Paraíso (1970) e Panelstory – O Nascimento de Uma Comunidade (1979), fragmentou a linguagem de forma ultramoderna para desconstruir valores morais e comunitários do comunismo tcheco. Ele, em Os Amores de uma Loira (1965) e O Baile dos Bombeiros (1967), ambos indicados ao Oscar de filme estrangeiro, confrontou abertamente instituições do regime, ridicularizando-as como forma de gritar por liberdade. Em seguida, Forman migrou para Hollywood. Lá, de Procura Insaciável (1971) a Sombras de Goya (2006), fez filmes absolutamente condizentes com o que defendia nos tempos de Tchecoslováquia. Sua obra é atravessada pela crítica às mais diversas formas de opressão, em diferentes momentos da história, pela defesa das artes e do comportamento livre. O talento avassalador de Mozart (Tom Hulce) em Amadeus (1984), confrontado pela inveja destrutiva de Salieri (F. Murray Abraham); a luta pela liberdade de expressão de Larry Flynt (Woody Harrelson) em O Povo Contra Larry Flynt (1996); a anarquia artística altamente criativa de Andy Kaufman em O Mundo de Andy (1999); o ataque à irracionalidade da Inquisição e à permanência da perseguição ideológica no período pós-Revolução Francesa em Sombras de Goya. Mas talvez sejam Procura Insaciável e Um Estranho no Ninho (1975) que melhor exemplifiquem essa constante na filmografia de Forman. Em determinado momento


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do primeiro, os pais da transgressora geração dos anos 1960 se reúnem numa aula de consumo de maconha, caminho encontrado para acessar de alguma forma os filhos, separados por um abismo comportamental. Já no epílogo do segundo, após o personagem McMurphy (Jack Nicholson) ser lobotomizado, Chief (Will Sampson), seu silencioso companheiro de claustro, arrebenta com um bebedouro as janelas do manicômio em que estão internados e corre para a liberdade. Forman levou para os Estados Unidos os valores políticos já presentes em sua obra tcheca e, mais que isso, no cinema de toda uma geração. O discurso crítico às instituições de Um Estranho no Ninho se assemelha em alguma medida ao de O Baile dos Bombeiros, no entanto, a ironia demolidora no tratamento da família de Procura Insaciável remete mais diretamente ao comportamento anárquico das protagonistas de As Pequenas Margaridas. De toda forma, trata-se de um conjunto de diretores e diretoras cujos filmes representaram, no seu campo, as tensões políticas e sociais que culminaram na Primavera de Praga e na brutal repressão pelo Pacto de Varsóvia, em 1968. Portanto, todo o cinema desses cineastas tchecoslovacos realizado a partir do início da década de 1960, sendo A Pomba Branca (1960), de Frantisek Vlácil, o provável pontapé inicial, apontam para esse impulso renovador da linguagem, que, aos poucos, se misturou a pretensões de crítica política e social mais aberta. A ascensão de Alexander Dubcek ao comando do Partido Comunista da Tchecoslováquia no início de 1968 alimentou esperanças num socialismo menos burocratizado, dotado de face humana. O fracasso desse projeto político pode aparentar também certo enfraquecimento de seu equivalente cinematográfico. Forman partiu para Hollywood logo depois. Kadár também migrou, ainda que sem obter o mesmo sucesso nos Estados Unidos. No entanto, vale observar que a maior parte dos diretores tchecoslovacos permaneceu no país após o endurecimento do regime comunista. E realizando filmes. Uma pista para compreender esse tipo de escolha está em análises de realidades próximas à da Tchecoslováquia. Sobre a Polônia e a

De toda forma, trata-se de um conjunto de diretores e diretoras cujos filmes representaram, no seu campo, as tensões políticas e sociais que culminaram na Primavera de Praga e na brutal repressão pelo Pacto de Varsóvia, em 1968.

As Pequenas Margaridas

Alemanha Oriental, por exemplo, as pesquisadoras Anna Misiak e Caroline Moine, respectivamente, destacam a estabilidade financeira proporcionada por uma carreira cinematográfica subsidiada pelo Estado. No comunismo, o cinema era menos submetido a uma lógica de mercado que à reprodução de certos valores políticos, culturais e sociais e à busca por prestígio em festivais internacionais. O polonês Wajda e o húngaro Jancsó são citados por elas como possuidores de uma série de privilégios no interior de seus respectivos países em razão do êxito internacional de algumas de suas obras (Cinzas e Diamantes do primeiro, vencedor do prêmio da crítica no Festival de Veneza, Os Sem Esperança do segundo, indicado à Palma de Ouro). A análise do cinema realizado no mundo comunista após a Segunda Guerra Mundial permite, portanto, compreender as complexidades existentes nas relações entre ditaduras e artistas, para além de dicotomias às quais frequentemente se recorre. No caso da Tchecoslováquia, ou mais especificamente de Milos Forman como representante de uma geração de cineastas do país, permite também observar o contato direto entre o cinema moderno europeu e seu equivalente norte-americano, de forte atuação a partir do final da década de 1960. A Nouvelle Vague tcheca, portanto, fez-se presente na celebrada Nova Hollywood.


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ARTE

Philippe Leão email Professor, editor e fundador do CINEPLOT

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CULTURA

E SOBERANIA

NACIONAL

O Brasil está passando por um período de intensa histeria política onde até mesmo a arte vem sendo afetada. Ficou famoso o caso do filme Aquarius, dirigido pelo cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, que ao pisar no tapete vermelho do maior festival de cinema do mundo, Cannes, com chances, inclusive, de sair vitorioso, denunciou o golpe que, até aquele momento, não havia sido concretizado. O acontecimento bastou para que o filme fosse boicotado na disputa em uma vaga no Oscar. Não é sobre Aquarius, contudo, esta matéria – filme que, inclusive, não tenho grande afeição, mas acreditava ser o melhor candidato em relação a possibilidades, de vitória inclusive – mas sobre uma das acusações que o filme sofreu: o financiamento público para a arte.


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m primeiro lugar, sim, a Arte deve ser financiada com dinheiro público. Enquanto houver gente achando que cultura e cinema nacional autoral não deve ter incentivo público, o Brasil não desenvolverá soberania. A arte é, também, uma questão de defesa nacional. Todas as nações soberanas no mundo investiram pesado em cultura e, consequentemente, em seu Cinema Autoral. Estados Unidos, França, Japão, Alemanha e, hoje, a Coréia do Sul. E porque é papel do Estado o investimento em cultura? Em primeiro lugar o investimento privado não atenderia aos interesses intrinsicamente nacionais. Para que a cultura seja arma de defesa de interesses nacionais a níveis globais ela precisa atender a uma identidade nacional. A medida que o Estado investe qualitativamente em um cinema autoral, cria uma barreira natural à tomada de um imperialismo cultural. Isso não significa a ausência do que vem de fora, mas a força do que é feito dentro. É simples, a cultura é um dos princípios civilizatórios, de se encontrar o que há em comum naqueles que pertencem a um determinado território. Portanto, cultura é antes de mais nada um princípio de autopreservação e, como já afirmava Thomas Hobbes, “A força da oferecer tal seguranalienação vem ça é papel do Estadessa fragilida- do. Sem cultura não de dos indiví- há defesa. duos, quando É justamente apenas conse- essa alienação conguem identi- servadora, que esficar o que os braveja com uma separa e não o ignorância sem limites, que expõe que os une” esta fragilidade inMilton Santos dividual. A força da alienação coletiva enfraquece o Povo e deixa vulnerável a soberania nacional à medida que não cria uma identidade, algo que o una, permitindo que um país assuma e vanglorie a cultura de outros em sua exclusividade.

É simples, a cultura é um dos princípios civilizatórios, de se encontrar o que há em comum naqueles que pertencem a um determinado território. Portanto, cultura é antes de mais nada um princípio de autopreservação e, como já afirmava Thomas Hobbes, oferecer tal segurança é papel do Estado. Sem cultura não há defesa.

Isso é uma questão de defesa, sim, à medida que um Povo assume a cultura estrangeira como absoluta e superior, este abre margem para um domínio cultural e, até mesmo, territorial. Veja bem, o domínio forçado estadunidense no Afeganistão já está toma dimensões culturais. A Coréia do Sul sofre com um processo de ocidentalização estética – as famosas cirurgias plásticas para ocidentalizar os olhos – que, porém, vem sendo combatida. É função do um ministério da cultura, mas atende à soberania de um país, à defesa. As respostas negativas de um determinado grupo à Aquarius demonstram claramente a fraqueza de nossa soberania, como somos frágeis, em especial, ao que vem dos Yankes. Afinal, somos um país onde filme estadunidense nem mesmo é considerado “filme estrangeiro” para o senso comum. Isso se chama domínio. Hoje cultural, amanhã, territorial – tropas americanas, com o discursos dos mais variados, já se instalam na Amazônia brasileira afim de uma proximidade estratégica com a Venezuela. Um exercício simples seria substituir esta ocupação por outro Estado, imagine Cuba. Apenas um atiçaria os impulsos mais selvagens brasileiros. O nome disso? Hegemonia cultural já estabelecida em território nacional. As hegemonias culturais, desde sempre, se aproveitaram das fragilidades das soberanias de um Povo apoiando regimes totalitários e assim ganhar mercado. Esse é o colonialismo moderno, não se trata de dominar e instituir um governo estrangeiro se trata de impor uma cultura. Um país onde “Cinema Nacional” tornou-se gênero. Cópia de modelos fáceis de comédias escrachadas de baixo custo vindo do exterior, filme estadunidense produzido em território brasileiro. Essa é visão do nosso Povo ao nosso Cinema. Não se pode afirmar sob hipótese alguma, nessas condições, que não há necessidade de investimento público em cultura e cinema. Nosso cinema está vendido! E aqueles que produzem algo que, de fato, representa algo de interesse


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56 nacional respiram com dificuldades. O Cinema Novo trazia o Brasil e conquistou o mundo. O Cinema Marginal uma estética bastante específica ao nosso cinema que influencia até hoje uma gama de cineastas autorais em nosso território. Nos anos 90 e 2000 o Cinema da Retomada chega, um pouco americanizado, é verdade, e por isso conquista um público relevante – volto a dizer, não temos soberania cultural (o que não significa que não temos cultura) e por isso somos vulneráveis ao que vem de fora. Hoje é a vez do Cinema Pernambucano, que vem revelando um filme mais fantástico que o outro, ano após ano: Baixio das Bestas; Cinema, Aspirinas e Urubus; Amarelo Manga; A Febre do Rato; O Som ao Redor; Uma História da Eternidade, Aquarius. Apesar do sucesso artístico, o sucesso de público não é garantido e, quando algum deles conquista holofote é o mesmo momento em que uma massa conservadora – que não cultua a cultura de sua nação – tenta boicota-lo e torna-lo obscuro.

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Em qualquer Estado que se deseje instaurar soberania, em primeiro lugar deve-se ter em mente a ideia de identidade cultural.

Em qualquer Estado que se deseje instaurar soberania, em primeiro lugar deve-se ter em mente a ideia de identidade cultural. Assim, até mesmo e principalmente Estados ditatoriais investiram pesado em Cultura, o Nazismo e a Ditadura Militar do Brasil são exemplos. Contudo, é necessário que se faça a distinção dos mesmos. Há uma clara criação de uma cultura conveniente a um governo manipulador, uma cultura aos moldes de interesses governamentais. Portanto, o investimento público em cultura deve apontar para a cultura livre, autoral, não levando em consideração os interesses de determinados grupos políticos ou sociais. Grupos oligárquicos já perceberam a fragilidade do Povo e sua predisposição em consumir o igual, o protótipo, a fórmula. O investimento, por isso, deve se dirigir ao cinema intrinsecamente nacional, autoral. Não necessariamente deve falar de Brasil, mas demonstrar um novo modelo estético, Brasileiro. Ao assistir a um filme Sul Coreano contemporâneo –


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para aqueles que o conhecem minimamente – logo o identificamos como tal. Não indo tão longe, o Cinema Novo e o Cinema Marginal antes faziam o mesmo com nossa sétima arte. Uma estética brasileira por excelência, contudo, já existe, engatinha presa por uma corrente que a impede de avançar mais forte. Infelizmente o Cinema brasileiro jamais pôde contar com a mídia para que tivesse força seus movimentos. Tanto o Cinema Novo como o Marginal tiveram que crescer da base – que hoje não busca o cinema nacional autoral, apenas aqueles que conseguem chegar aos holofotes por alguma ocasião inesperada, caso de Aquarius – foram grandes, mas ainda assim recebiam menos público que os filmes das mesmas oligarquias à época. Contudo, para que se tenha uma maior dissipação de tal cinema, considerando as dimensões territoriais brasileiras, há uma terrível dificuldade na

O número de salas por aqui está bastante abaixo do necessário para se desenvolver um efetivo investimento em cultura para todos.

distribuição cinematográfica. O número de salas por aqui está bastante abaixo do necessário para se desenvolver um efetivo investimento em cultura para todos. No geral concentradas nos grandes centros próximos ao litoral e, mesmo nestes, os espaços destinados à Arte autoral é bastante reduzida devido à explosão dos shoppings centers e os grupos de exibição que nestes se instauraram a partir dos anos 80, praticamente extinguindo o cinema de rua. É importante, portanto, que o investimento traga um maior número de salas onde estas são ausentes. É necessário, porém, que seja um investimento público ou privado subsidiado, onde se estabeleça regras de distribuição para que se estabeleça um cinema autoral por todo território. Caso contrário, os interesses dos grandes grupos partirão por distribuir o que já é distribuído na maior parte das salas espalhadas pelo país, cultura estrangeira (norte americana, em especial), de massa, os blockbusters.


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