RASTROS E POÉTICAS

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Escritos em Artes Circenses

13 ANOS DE PESQUISA E CRIAÇÃO

Fortaleza - Janeiro 2021



TEXTOS E ORGANIZAÇÃO: SAMARA GARCIA COLABORAÇÃO: CIA. CLE DIAGRAMAÇÃO: DIOGO BRAGA PROJETO GRÁFICO E ILUSTRAÇÃO: DIOGO BRAGA

FOTOGRAFIA: KLEBSON ALBERTO(38) LEVI MOTA (08, 15, 18, 21) LUIZ ALVES (22, 25, 27, 35) MARÍLIA OLIVEIRA (16) MARINA CAVALCANTE (10) RUTH ARAGÃO (40) VÍTOR GRILO (30, 32)



1. Cia CLE: 13 anos de pesquisa e criação // Pag. 6 2. Um tiquinho de nada e A mulher mais forte do mundo: comicidade feminina ou feminista? // Pag. 8 3. E o trem partiu, em cada estação uma troca // Pag. 14 4. Erendira, mapa para os primeiros voos // Pag. 20 5. Atrás dos muros do quintal // Pag. 28 6. O conto da mulher água: eu só sou muitas // Pag. 36 7. Rastros deixados // Pag. 42 8. Referências // Pag. 48


13ANOS DEPESQUISAECRIAÇÃO A publicação RASTROS E POÉTICAS tem por principal desejo criar espaços de reflexões e produção de conteúdo sobre processos criativos com as artes circenses. Esta edição de abertura traz os principais trabalhos da Cia. CLE1, que é também propositora e cúmplice nessa trama. Inauguramos esse lugar de partilha e invenção a partir dos desdobramentos do projeto Poéticas Circenses: pesquisa e criação nos treze anos da Cia. CLE, fomentado com recurso da lei 14.017/2020 - Lei Aldir Blanc – por meio da Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (SECULTFOR). Desde 2007 nos debruçamos sobre a pesquisa das artes do circo na composição cênica de nossos trabalhos, o circo e sua multiplicidade nos alimenta e movimenta. Perseguimos a força imagética presente nas técnicas circenses para criar e inventar mundos possíveis. Nosso encontro na Escola de Circo do Espaço Cultural Vila e a posterior fundação da Cia. CLE em 2007, faz parte de um movimento de intensas transformações no fazer artístico com a linguagem circense na cidade de Fortaleza (CE). E aqui estamos para juntar os fios, para tecer uma rede com a linguagem circense a partir dos processos de criação da Cia. CLE, de nossa trajetória, é para isso que aqui abrimos esse espaço. Lugar de onde partimos com muitas perguntas: O que nos move, o que está presente e também ausente e ainda assim permanece em nossas criações? Caminhos motivados por reflexões e experimentações que partem de zonas fronteiriças.

Uma sigla homenagem póstuma à Acleilton Vicente, artista cênico e precursor da formação circense na cidade de Fortaleza. CLE, como sigla de Circo Lúdico Experimental. 1

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Em seus treze anos de atuação, a Cia. CLE vem desejando investigar e se aprofundar em seu trajeto por processos criativos que afirmam o corpo como um agente de comunicação, onde a cena, compreendida como lugar físico produz poesia no espaço, onde é capaz de criar imagens materiais que equivalem às imagens das palavras. A construção de uma dramaturgia circense no trabalho da Cia. CLE tanto parte de adaptações e inspirações literárias, como também se dedica a investigar as possibilidades de criar signos e gerar sentido a partir de seus próprios materiais, buscando perceber os elementos acrobáticos em sua potencialidade de afirmação do corpo - o corpo como dramaturgia. Partimos aqui em busca de uma partilha dos afetos que nos atravessam, memórias que se corporificam, nossos métodos de investigação, os caminhos que traçamos, que norteiam as nossas criações e que atuam como dispositivos para a construção do repertório de espetáculos e experimentações cênicas da Cia. CLE.

Apresentamos aqui rastros deixados pelo caminho, escritos entrecortados por imagens, depoimentos, memórias, reflexões, conexões e desejos. Adentramos algumas trajetórias dos principais trabalhos de nosso repertório: “Um tiquinho de Nada” (2008), “A mulher mais forte do mundo” (2016), “E o trem partiu” (2011), “Erêndira” (2011), “Quintal” (2016), e o mais recente e em processo, “O conto da mulher água” (2020); como um exercício de partilha do circo que fazemos e que diz respeito aos nossos modos de ser, estar e criar. As próximas páginas trazem um tanto de cada uma de nós que integra hoje a Cia CLE, é sobre Danielle Freitas, Mayara Maria, Nataniele Freitas, Rafaely Santos, Samara Garcia e Sâmia Bittencourt, mas também compõem essa rede cada uma e cada um das (dos) artistas que já estiveram conosco e que também imprimiram e deixaram suas marcas no decorrer destes anos de trabalho. Portanto, essa publicação é também sobre Eduardo Soares, Edmar Cândido, Emanuel Breno, Arnaldo Lima, Daniel Albuquerque, Sol Moufer, Davi Jucá, Eveline Nogueira, Carlos Hardy e Dayana Ferreira.

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COMICIDADEFEMININAOUFEMINISTA?

Ao partirmos em busca dos rastros deixados por esses anos de trabalho da Cia. CLE em Fortaleza, não poderíamos deixar de iniciar destacando a atuação de Sâmia Bittencourt que é, não só a diretora e fundadora da Cia. CLE, mas também referência na formação de muitas artistas circenses na cidade, tendo se destacado por sua pesquisa e atuação como palhaça, sendo uma das pioneiras em um ambiente marcado fortemente pela presença masculina.

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“(...) Um outro braço de estudo que segue lado a lado com a acrobacia cênica é a comicidade voltada para a palhaçaria e no caso da Cia CLE, a palhaçaria feminina/ feminista.

Tenho gosto em citar os espetáculos solos “Um tiquinho de Nada” (2008) e “ A mulher mais forte do mundo” (2016), que protagonizam a figura da palhaça criando uma dramaturgia própria e que traz como temas o ser mulher em suas várias vivências. O primeiro, fala da vida de uma artista da rua e na rua e sua forma de existir entre as buzinas dos grandes centros urbanos. O segundo, uma farsa clássica que narra a busca da palhaça pela proeza de conseguir o título de mulher mais forte do mundo, desafiando a todas e todos”. (Sâmia Bittencourt)

Que lugares a mulher comumente ocupa embaixo de uma lona circense? Em cena no picadeiro a vemos no corpo de baile, fazendo assistência no número do mágico ou do malabarista, nas performances excêntricas ou de fetichização e objetificação de seus corpos, ou como as volantes que percorrem o ar com suavidade e leveza para serem salvas nas mãos do portô que lhes assegura a vida, com sua força e virilidade. Assim como, estará presente realizando as funções

de manutenção do espaço e venda de comidas e brindes. São marcas do patriarcado, que deixa onde vai seu recado contundente em nossas subjetividades. Um tiquinho de Nada (2008) e A mulher mais forte do mundo (2016) são solos de Sâmia Bittencourt, que seguem em cena desconstruindo estereótipos, fortalecendo a diversidade, a igualdade de gênero e o anti-machismo no circo e na comicidade cearense.

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PALHAÇANADAVAI ÀFEIRA MEDIROCUSTO-RISO3 01/12/2013 | por Valmir Santo

Numa feira apinhada do Bom Jardim, na periferia de Fortaleza, a palhaça Nada puxa seu carrinho de bugigangas e disputa espaço com feirantes, fregueses, sacolas, bicicletas, motocicletas e outros carrinhos de mão improvisados como carreto. Nariz do tamanho de uma maça, peruca de fios encaracolados e macacão azul e amarelo não deixam dúvidas de que ela está na contramão do ambiente aparentemente informal, ao ar livre. Lugar de comprar, trocar e vender desde tempos medievais. Escudada por Nada, a atriz Sâmia Bittencourt provoca o riso, mas não o dá de barato. Como os feirantes que tentam atrair os passantes, ela intervém com brincadeiras e improvisos até fisgar a atenção de um ou de outro que se permitam contracenar, brincar e improvisar em troca de dinheiro, como ela diz, por meio da voz distorcida ou do gesto em que o dedo polegar esfrega a ponta do vizinho indicador. A abordagem é lírica ou festiva, contextualizada pela batida do triângulo ou pelo sopro da escaleta do músico Carlos Hardy, que acompanha as estripulias com desenvoltura. O desfecho de cada diálogo bem-sucedido vem sempre na forma da incisão. Para além da moeda do riso, há o vil metal. Eis a contingência do custo-riso.

. Crítica de Valmir Santos publicada no site Teatro Jornal >> O jornalista viajou a convite da organização do 9º Festival de Teatro de Fortaleza, em: https://teatrojornal.com.br/2013/12/ palhaca-nada-vai-a-feira-medir-o-custo-riso/#more-6669 3

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A dramaturgia aberta não problematiza tal sistema de troca simbólica numa situação prato cheio. A artista que responde ainda por concepção e direção desperdiça a oportunidade de tensionar o humor, de semear a crítica sobre o estado de coisas. Somente ao final da intervenção, longe dos olhos da maioria, ela repassa as moedas de bom grado ao grupo de crianças e adolescentes que a acolhe incondicionalmente durante todo o trajeto, inclusive sugerindo-lhe ações diante de um ou outro conhecido do pedaço. Se a palhaça não aprofunda a contradição, deixando o riso guiar-se pretensamente solto, o mesmo não acontece com interlocutores que reagiram com rispidez diante da presença da alegria. Um feirante armou aspereza, desconfiado de que a molecada liderada pela brincante fizesse um arrastão em sua banca. Um religioso que se pretende fervoroso esconjurou “esse demônio”, de chofre, sem ao menos lhe dar ouvidos. Nada, essa figura adorável, de fato diz a que veio. Como se propõe. Cativa, tem atenção perimetral, até dobra um ou outro ranzinza. Mas quando um artista ocupa o espaço público, a rua de uma feira, não dá para se conformar apenas com a simpatia alheia. É pouco. Houve quem a tratasse por “palhaçinho” ou por “pinguim”. Essa ambigüidade valiosa tem tudo para ser aprofundada. Pululam significações e ressignificações para quem está disposto a ir de encontro às multidões no Brasil atual. O palhaço, principalmente quando na pele de uma mulher, tem poder de instaurar também a discórdia e cutucar a paz presumida. Ou seja, conviria um pouco mais de intrepidez a esse espetáculo itinerante chamado Um tiquinho de Nada, da Companhia Circo Lúdico Experimental. Um piscar de olhos, dizem, às vezes move montanhas.

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EMCADAESTAÇÃOUMATROCA

O trem já está pronto para mais uma viagem. E na hora marcada o trem parte, deixando quatro mulheres distraídas, desoladas. E agora? À espera elas se distraem entre cambalhotas e galhofas. O mote para o surgimento d’E o trem partiu (2011) foi uma das cenas do filme Os Palhaços de Frederico Fellini, que acontece em uma estação de trem. As cores monocromáticas dos figurinos, das maquiagens e do cenário sugerem um tempo e um espaço não calculado, porém sugestivo. As personagens apresentam tipos bem diferentes, com características bem definidas, afetam e são afetadas pelas ações umas das outras. Os números acrobáticos costuram a narrativa e a virtuose se apresenta como elemento dramático. A música, executada por um músico-personagem, indica os acontecimentos, participa das ações e propõe a atmosfera da narrativa.

“E o trem partiu” traz consigo sinais de aprofundamento dos estudos sobre o corpo, a poética e a multiplicidade de nossos corpos em cena. Surge em um momento em que a companhia necessitava compartilhar, fazer trocas com outros grupos e artistas. Prova disso, é o surgimento de um projeto que foi muito prazeroso de realizar. Que nos proporcionou as trocas as quais necessitávamos, com grupos de cinco cidades do Ceará e com diferentes formas de trabalho”. (Danielle Freitas)

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E o trem partiu circulou por diversos espaços em Fortaleza, e em 2013 entra em circulação pelo estado, através do Prêmio Funarte Artes Cênicas na Rua (2012), ocupando as praças e espaços públicos de cinco cidades do estado, entre elas Itapipoca, Trairi, Maracanaú, Aracati e a própria capital. Em cada uma dessas cidades a Cia. CLE realizou residências artísticas com diferentes grupos cearenses que trabalham o circo em suas interfaces com outras linguagens artísticas, como o teatro e a dança.

Uma estação de trem como um lugar de passagem, como um não lugar, nos permitiu experimentar uma dramaturgia que a cada cidade se moldava ao encontro, abria-se para o inesperado. As residências que realizamos com a Cia. Os Trapolias, de Itapipoca, a Cia. FLEX do Trairi, o Grupo Garajal de Maracanaú, a trupe do projeto Canoa Criança em Aracati e o Grupo Fuzuê em Fortaleza não só estavam pensadas como espaço de troca, mas também como de criação. A cada cidade e com cada grupo E o trem partiu apresentava e partilhava novas narrativas.

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MAPAPARAOS PRIMEIROS VOOS Em Erêndira (2011), espetáculo inspirado no conto “A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua vó desalmada”, o trabalho da Cia. CLE começa a ganhar novos matizes. As linhas do realismo fantástico de Gabriel García Márquez são transcritas por uma dramaturgia corporal criada em função de uma qualidade de movimento que diz respeito ao tônus do corpo do acrobata, trazendo a obra para o movimento e para a sensação corporal. O público comunga do mesmo espaço da cena, buscando aproximação, preenchendo lacunas, propondo intimidade. A música, executada por um músico que também está dentro da cena, dá o tom lírico, apresenta a trajetória de Erêndira. Em cada novo processo criativo, deparamo-nos com métodos de composição distintos. Em Erêndira, por exemplo, utilizamos na preparação corporal alguns exercícios apresentados comumente em oficinas e workshops ministrados pelo LUME Teatro (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP), como o treinamento energético através da exaustão ― entendendo treinamento energético como aquele capaz de dinamizar e permitir o fluir de energias que se encontram em estado potencial no indivíduo (BURNIER, 2001:64).

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Dessa forma, a direção do espetáculo e a composição da cena estavam fundadas em um treino técnico acrobático e em um treino energético através da exaustão. A escolha por esse caminho, dentre outras possibilidades, se deu de forma presente, corporificada. A história de Erêndira é marcada pelo cansaço, pela exploração, pela repetição - pela exaustão. Caminhos e contextos vão se apresentando no decorrer da experimentação; temos ideias de onde queremos chegar com nossas proposições cênicas, mas os caminhos e objetivos não estão predefinidos de antemão - vão se apresentando no caminhar. Como discute Fayga Ostrower (1999), ao pensar os nossos encontros com o acaso na criação:

É difícil avaliar de onde nos vem uma certa coerência de ser. Olhando para trás, foi sem dúvida um caminho coerente, ou, digamos, um caminho que parece ter constantes referências, como se tivéssemos uma bússola dentro de nós. Por que, em dado momento, se escolhe um rumo e não outro? E por que, em seguida, se rompe e não se vai em frente? A vida é muito misteriosa, é uma aventura, a cada momento algo de novo pode acontecer (OSTROWER, 1999:4).

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“O processo de criação de Erêndira foi muito intenso e pra mim uma revolução enquanto entendimento de método de criação artística. Tudo o que conhecia até então era a possibilidade de juntar imagens acrobáticas com uma história e criação de personagens. Nada sobre dar sentido à movimentação ou desconstruir a técnica para poetizar o processo. Foi difícil, muito difícil, principalmente em receber os comandos sem que racionalmente aquilo fizesse sentido pra mim. E as dificuldades não foram só em termos psicológicos e emocionais, mas também físicos. Sempre tive facilidade de aprender técnicas de acrobacia e de dança. Contudo aquilo foi muito além de técnica, todas as minhas facilidades viraram debilidades, eu não poderia mais acreditar naquilo que tinha como certo. As “pontes”, as “estrelinhas”, as “cambalhotas”, as “rondadas”, nada executado de forma “limpa” tecnicamente falando, valia, não para a cena”. (Danielle Freitas)

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Em Erêndira torna-se evidente os recursos e procedimentos criativos que a Cia. CLE vinha se apropriando e experimentando. Como parte desse processo, investimos na pesquisa da técnica acrobática para constituir uma poética de composição da cena, para a construção de uma dramaturgia do corpo, bem como para ampliar o campo de reflexão sobre os processos de criação com a linguagem circense. O circo trabalha, tradicionalmente, com a perfeição técnica, com a virtuose, com o risco enquanto elementos fundantes de sua linguagem. Para nós, vale pensar de que forma estamos utilizando a técnica, o virtuosismo e a perfeição na cena. Interessa-nos assumir o risco como também nossas imperfeições, nossas diferenças, nossos anseios, dúvidas, para pensar e experimentar a potência cênica e poética da técnica circense. Sem esquecer do que fundamenta a linguagem, sem colocar de lado o que foi acumulado enquanto saber específico de cada modalidade, pelo contrário, são estes os nossos materiais de trabalho.

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“O ano é 2011 (ou 2012), me arrumo e sigo para o Alpendre, espaço de manifestação e fruição artística, vou assistir “Erêndira”, espetáculo da Cia. Circo Lúdico Experimental. Nesse momento eu me questionava sobre o fazer artístico. Como criar? A partir de que? O que é ser artista? O que é ser artista circense? Nessa época eu já dialogava com o universo circense e suas técnicas, mas entendia muito pouco sobre caminhos de criação, sobre caminhos pessoais, caminhos coletivos. Distintas formas de caminhar com o objetivo de criar algo significativo, algo significativo quer dizer algo que dialoga com questões pertinentes a nossa existência humana, que toque, que nos leve a sentir algo, a refletir. Criações que perpassam pelas técnicas mas não se limitam a ela.

Criar em circo ou criar com circo ou para circo? Assistir “Erêndira” me fez fazer todas essas indagações, me levou a um mundo de novas reflexões, de inquietações. Desde então acompanhar o trabalho da Cia. CLE foi um exercício de formação artística, acompanhar as criações e entender os diversos dispositivos que a Cia. utiliza nas suas criações é uma forma de alimentar a vontade de criar e de entender a importância de ser artista e das criações pertinentes a nossa caminhada nessa rota, toda a entrega e responsabilidade que essa escolha acarreta”. (Mayara Maria)

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Em Erêndira reafirmamos nosso trabalho na investigação da técnica acrobática a partir de um recorte dramatúrgico, entendendo a dramaturgia como um fio que tece, ata e dá sentido ao processo criativo (GREINER, 2005). É, portanto, este recorte que nos coloca diante das possibilidades de pesquisa do movimento, é neste contexto onde se acionam as conexões entre nossos corpos e o mundo, onde as imagens corporais emergem a fim de se relacionar com o contexto da criação.

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ATRÁS DOMURO Em Quintal (2016) a obra de Manoel de Barros (1916-2014) em seu horizonte repleto de possibilidades poéticas, fruto de uma natureza pensada por imagens e reveladas no universo lúdico do “idioleto manoelês”, se traduz em material de trabalho. É a partir de sua leitura que são experimentadas as qualidades, tensões e intenções que permeiam os gestos, movimentos e ações pesquisados durante o processo. É através do encantamento e da imaginação criadora presentes na obra de Manoel de Barros que adentramos este processo criativo. “Repetir até ficar diferente” é um recorte de um verso presente no poema Uma didática da invenção que compõe O livro das ignoranças (1993). Como método de composição, como forma de acúmulo e organização do que foi sendo experimentado, partimos de uma perspectiva da técnica como investigação. Sendo esta a base de composição do espetáculo Quintal aliada a outros procedimentos investigativos fundamentados em elementos-base para a improvisação: o encadeamento de elementos acrobáticos; e a pesquisa de movimentos e ações a partir das imagens evocadas na obra, através da poesia de Manoel de Barros. Vamos arquivando as experimentações que, desenhadas e memorizadas, transformam-se em material, objeto de trabalho para composição da obra cênica, permitindo-nos experienciar a liberdade de utilizar este conteúdo de formas variadas, alterando dinâmica, tempo, ritmo. “Repetir, repetir - até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo”. (BARROS, 2010)

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Com esta criação, propusemos fisicalidade, imagem e movimento à poesia de Manoel de Barros que também é física, imagética e dinâmica. A dramaturgia que tecemos na criação do espetáculo Quintal evoca imagens acionadas através do corpo, compondo o gesto, fazendo submergir uma rede de signos que se entrelaçam à obra do poeta ― e, dessa forma, dando novos sentidos às figuras e movimentos acrobáticos. Poeta das grandezas do ínfimo, Manoel de Barros afirmava que “poesia não é para compreender, mas para incorporar. Entender é parede: procure ser árvore” (BARROS, 2010). Durante o processo de criação do espetáculo, que se inicia por volta de setembro de 2015, nos deparamos com múltiplas possibilidades da poesia de Manoel de Barros, mas ali algo já ressalta e para nós tornou-se central no processo de composição do espetáculo: fazer palavra virar corpo, fazer palavra virar gesto, ação, movimento. Nossos corpos no espaço desenhando a poesia.

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“A procura insistente pelo que pode ser antropofágico, ser um corpo que se movimenta, que traz consigo sua história, fundada dia a dia. Fluxo contido, controlado, encadeando um a um os movimentos. Sequência mas, antes de tudo, presença. Para ouvir o pulsar que me leva sempre a querer ver o mundo de cabeça pra baixo, mesmo que de passagem. Espaço direto, foco na execução de cada ação por vez, elevar-se, conter-se, reverter, deslizar. O tempo, variante, como o deslocamento das dunas, que dependem do vento. O impulso necessário dá ao tempo sua qualidade.

Peso forte, tônus do corpo acrobata que apesar do esforço quer encontrar-se com a leveza e nessa quase esquizofrênica busca encontra sua expressividade.” (Samara Garcia)

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“Quintal adentra os universos do escritor Manoel de Barros e sua escrita brincante, então as orientações: mergulhar de fato na vida e obra do autor, assistir documentários, assistir, e reassistir e assistir novamente o vídeo do espetáculo apresentado anteriormente na caixa cênica, fazer anotações no diário de bordo, ler a obra do autor e partir paras as investigações corporais repetindo-as e repetindo-as, ainda que em casa sozinha sem a presença das demais integrantes da companhia, apenas gravando e enviando para a diretora ir repassando orientações, já que essa era a única forma possível do processo acontecer, o mais importante era não parar de investigar. Tudo isso, toda essa metodologia, para tentar ao máximo apreender as palavras de Manoel no corpo. Na busca de transformar suas metáforas, palavras e visões em circografias.

Uma tentativa de transver o mundo com o corpo, e assim levar toda essa apreensão para a cena. A grande ironia, era que o palco e a sala de ensaio, nesse momento em especial, eram de fato nossos próprios quintais/nossas casas, já que estávamos no período maior de isolamento social e era a câmera que se encontrava com o público na forma de vídeo”. (Rafaely Santos)

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Nesse contexto libertador que é a obra do poeta algo nos impulsionava ao encontro, e fomos, assim, aproximando a poética de Manoel de Barros à poética da linguagem circense ― talvez ingenuamente, pois para o poeta essa relação é antiga quando diz que “aprendera no Circo, há idos, que a palavra tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria de rir” (BARROS, 2010). Fomos juntando os cacos, os pedaços, os rastros, as pistas para pensar que se para Manoel sua poesia deve chegar a grau de brinquedo, é em nossos corpos que essa brincadeira se materializa.

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“O Quintal é um respiro diante de tanta loucura. Tive a oportunidade de assistir a esse trabalho em 2017, um ano antes de estar na Cia. CLE, fiquei encantada! Não fazia ideia de que um dia estaria em cena.

Incorporar a poesia de Manoel de Barros foi desafiador pelo pouco tempo, mas quando trabalhamos juntas, quando temos o apoio umas das outras tudo funciona, acontece. E estar nesse espetáculo foi uma experiência maravilhosa, me trouxe a espontaneidade e a liberdade do olhar de uma criança. Minha experiência com arte foi por muito tempo como aluna, participei do Circo Escola do Bom Jardim por mais de 10 anos e como era um projeto social não tínhamos incentivo e nem formação para sermos artistas, as pessoas ao meu redor diziam que viver de arte não era uma opção segura. Desisti, mas sempre que assistia a um espetáculo sentia que meu lugar não era só na plateia mas também na cena. E fui chegando devagar, pulei o muro quando o portão do quintal já estava aberto, só pela traquinagem, pelo desafio, pela brincadeira.” (Nataniele Freitas)

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O quintal é esse lugar para experimentar. Uma pausa no fluxo intenso da cidade para ampliar o olhar para a pequenez das coisas, pés descalços, balanço, fazer brinquedo com as palavras, fazer palavra virar corpo. A poesia de Manoel de Barros nos ajuda a pensar: até onde o movimento acrobático pode nos levar em nossa pesquisa, não como um fim em si mesmo?

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EUSÓSOUMUITAS Por volta de cinco anos atrás a Cia. CLE tornou-se um coletivo só de mulheres circenses. Partindo desse contexto, algumas questões emergiram e se tornaram urgentes, necessárias, questões que atravessam a criação. A proposição da montagem deste que é o mais recente trabalho parte de inquietações tais como: O que faz uma mulher desaparecer, assim como desaparecem os rios? Um processo criativo que visa dar a ver a trajetória de mulheres que tornaram-se invisíveis, ou melhor, que foram invisibilizadas. Mulheres que ultrapassam, atravessam o apagamento para emergir, para ir das nascentes às quedas das cachoeiras, para percorrer os córregos em direção ao mar e que entre o risco e a margem emergem em O conto da mulher água. Um trabalho ainda em processo e que experimentamos no final do ano de 2020 em um formato audiovisual4, e sobre o qual temos nos debruçado para pensar seus desdobramentos para o espaço cênico.

O conto da mulher água está na programação virtual do Zona de Criação do Porto Dragão em: https://www.youtube.com/watch?v=qPwfm0u7hps 4

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“Do nosso lugar de mulher, artista, resistente na cena circense, pensando e dialogando sobre nossa caminhada, e os lugares e situações de intercessão com todas as outras mulheres que não falamos os nomes, mas falamos da história delas, da nossa história.

O que queremos falar sobre ser mulher? Que ângulos queremos enxergar e exaltar da nossa caminhada? Decidimos falar do nosso lugar de potência, de reverenciar as reinvenções diárias da nossa luta, da nossa caminhada, dos caminhos outros que tomamos em busca da nossa liberdade de sermos o que quisermos ser. A partir de diálogos sobre nós mesmas, nossos anseios, medos, vontades, revoluções. A partir do nosso olhar sobre as mulheres que perpassam pelas nossas vidas, sejam em contos, em matérias de revista, de jornal, seja em temas musicais, sejam essas mulheres quem quer que sejam, mulheres resistindo e em resistência. Foi um processo, que pra mim, acessou muitos lugares de potência, de reafirmação, de pertencimento, de sororidade. A importância de estar juntas, nesse momento tão necessário de reafirmar nosso lugar, nosso poder enquanto mulher e artista”. (Mayara Maria)

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Nos inquieta saber o que move tão fortemente as mulheres na luta pela liberdade. O que nos faz resistir? O que nos mantém firmes? Que instinto é esse? Quais suas formas arquetípicas? Tentando responder a perguntas como essas é que criamos mitos e erguemos totens. É através de perguntas e imagens que a Cia. CLE pretende adentrar este processo criativo. O conto da mulher água é história marcada no corpo. Ela desapareceu, foi vista na beira do mar dois anos depois, virou totem quando a maré baixou, se desfez e refez em muitas. É para ela que construiremos totens na encruzilhada entre a terra e o mar, e perseguiremos as encruzilhadas entre o asfalto e os arranhas céus para chegar onde queremos estar e ficar. Dispositivos de significâncias coletivas. Totens, que consagram o corpo e a liberdade do corpo. Um conto que se corporifica em travessia, a mulher água em seus percursos, quando infinitas vezes de costas se lança e a força das marés a traz de volta à terra para seguir levantando totens, inventando mitos e construindo narrativas onde está no centro da história.

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ARQUIVOPESSOALDE FOTOGRAFIAS DACIACLE

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BARROS, Manoel de. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010. BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. São Paulo: Editora da Unicamp, 2001. GARCIA, Samara do Nascimento. Repetir até ficar diferente: índices de uma experimentação acrobática e cênica com a Cia. Circo Lúdico Experimental - CE. 2017 - Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Ceará, Instituto de Cultura e Arte, Programa de Pós-graduação em Artes, Fortaleza (CE), 2017. GREINER, Christine. O corpo: pista para estudo indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005. OSTROWER, Fayga. Acasos e criação artística. Rio de Janeiro: Campus, 1999. Santos, Valmir. Palhaça Nada vai à feira medir o custo-riso. [online] Disponível em:https://teatrojornal.com.br/2013/12/palhaca-nada-vai-a-feira-medir-o-custo-riso/#more-6669, acesso em 20/01/2021

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