Construção do Mundo

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Um conto de

Miguel Gontijo 1967


Para traçar um círculo, pode-se começar de qualquer ponto. Assim feito é só gritar: - Respeitável público: o que sou, o que serei e poderei ser são formas de minha vontade. Criei um mundo ao meu desejo e semelhança para nele regalar, confortar e projetar-me. A minha imagem inserida nessa criação, é Deus. (então: sou Deus!) Tudo que sei do mundo eu dei ordens para que surgisse do abismo do meu nada. Acontece que a ilusão que crio é tão perfeita que consegue enganar-me e, então, perco a noção dos limites do mundo que elegi, em relação ao mundo feito pelo meu próximo. (esse meu próximo é tão próximo que parece que já ouvi isso que acabei de narrar e fico sem saber se esses escritos são meus ou do vizinho ao lado.) - Respeitáááável Público: se falo assim, parecendo um mestre de cerimônia de circo, é porque estou sempre debaixo de uma lona, quer para viver, quer para narrar esta história e, com certeza, para morrer. TOC TOC TOC O texto que segue é uma tentativa de colocar a casa em ordem. (ou: o circo em ordem; ou o caos em ordem) É um texto a respeito do que acho da vida e subliminarmente - e principalmente - do que não acho dela. Para escrevê-lo, encontro, de cara, todas aquelas provas para testar a minha inteligência e minha limitada agilidade poética e prática. Como sou persistente, sigo e persigo, acreditando-me poeta e escritor. Afinal, não será esse texto, assim como a vida, um sistema coerente de loucura? Uma delirante organização do nada? (daqui a pouco você mesmo deduzirá)

Sigo. Mesmo sabendo que esses escritos são para colocar ordem no meu caos de mundo, eles também requerem o direito de enobrecer minha vida. Não sei se um dia essas palavras se tornarão pública, porém me resta e consola imaginá-las descobertas, publicadas e, daqui a cinco séculos, elas poderem desfrutar de todas as vantagens da glória. Por isso, sigo e espero matutando. Estarei sempre a esperar por alguma coisa e seguindo. **** Há quem admire Eisenstein, quem extasie diante de Velásquez, quem adore Guevara, quem colecione fotografias de Jeames Dean e, até, quem recite imensos versos de Camões. Já eu sou um adorador de estrelas. Meu mundo se resume nelas. Ou melhor: meu mundo se espalha nelas. Sou o personagem de Bilac, aquele que perdeu o senso. De todas as estrelas contidas no espaço, escolhi uma: Aldebaran. E lá fiz meu porto. É pra lá que estou(não seria “vou”?), sempre que a vida tornase enfadonha, repetitiva, pegajosa e perigosa. (Não sei por que elegi Aldebaran como minha estrela especial, como também não sei por que nasci em Santo Antonio do Monte. Coisas assim simplesmente nascem. Ervas daninhas.) Só depois de muito dormitar nesse meu astro, é que descobri que ele não é a maior estrela do universo. O tamanho dessa estrela não me impressiona, pois minha cabeça não sabe equacionar sua proporção, cujo raio é 44 vezes maior do que o tamanho do sol. ????????????????????????????? E, nem tão pouco, o que é 65 anos-luz de distância da Terra. ?????????????????????????????


O que me deixa intrigado é a utilidade (ou inutilidade?) desse gordo monstro girando no espaço. Esses assuntos abrem em minha cabeça interrogações, sem precisar de nenhuma formulação de perguntas. Fico horas absorto, fazendo-me Deus, de pé em meio a luzes bruxuleantes, mergulhado até os joelhos em constelações, só pensando pelo prazer de pensar. **** Certa vez, enquanto o professor ensinava algo cacete de aprender e eu estava em plena viagem astral, um colega bateu no meu ombro e disse: _ Vou te pegar e te cobrir de porradas! Esse meu colega é grande, gordo e brigão. Todos o temem. Sou um dos poucos da turma que ainda não apanhou dele. Agora, sem motivo algum, chegou a minha vez. Com esse aviso, ele buscou-me em Aldebaran, roubando, assim, todo meu universo e deixandome sem lugar onde refugiar. Ajeito-me na cadeira, fecho os olhos e espero o desfecho do soco. Faço devagar a contagem regressiva, sempre para trás... até zero... a fim de transformar o furacão dos acontecimentos vindouros em acordes. nove... oito... sete... **** O que posso lhes dizer o que sou quando nem eu sei? Estou nessa vida simplesmente à espera. (neste exato momento, à espera do soco!) Às vezes, canto velhas cantigas desse mundo para lembrá-lo de quando ele era jovem, à cata de uma

memória que mora em mim. Sou um mesclado de memória e nevoeiro. Às vezes, desmancho-me como chuva em um poço, choro, choro. Enquanto lacrimejo, vozes distantes me acalentam, falando em uma língua estrangeira inteligível. Sou triste, velho e permaneço sempre em vigília. E esperando. Esperei sete abortos para me produzir pessoa e me fiz pessoa por encantamento. Explico: minha mãe teve sete filhos natimortos. Para que eu nascesse, ensinaram a ela tomar uma infusão de capim santo, açúcar e três crisálidas recém-capsuladas em um pé de manacá, durante três noites consecutivas. Nessas três noites, antes da beberagem, ela deveria saltar três vezes sobre a chama de uma fogueira, dizendo: “Meus defuntinhos enterrados nessa terra santa, dê ao vivo o respiro e ao morto seu conforto.” É fato que mamãe bebeu o chá e acendeu a fogueira. Porém, assim que o fogo crepitou, entre um pulo e outro, ela descobriu que não eram seus olhos que contemplavam o mundo, e sim o oposto. O mundo é que a via. Assim sendo, envergonhada de sua atitude ridícula, sentindo-se observada, desistiu de dar o terceiro pulo. Foi a falta desse pulo que me fez nascer morto para esta vida mundana. _ O mundo é que olha para dentro de nós! - ensinou-me ela muitos anos depois. _ A luz que vejo de uma chama é apenas uma sensação de claridade. O que o fogo derrama sobre a terra são apenas ondas magnéticas e não temos meios de sabermos se são realmente luminosos. A luz que vejo está apenas dentro de mim. Nos nervos não flui luz, mas sim uma corrente que irá produzir a sensação de claridade. (eu, que no futuro serei pintor, nunca esqueci. E aprendi que estou preso e amarrado dentro dos cinco sentidos que a natureza me presenteou.)


Foi nesse dia de clarividência, bem antes de eu nascer, que mamãe acertou com os arcanos do tarô. Aprendeu a ler cartas e linhas da mão. Quando já estava crescidinho, para me divertir, mamãe fazia malabarismos com laranjas, sem nunca conseguir equilibrá-las no ar. É de sua constituição fazer desaparecer e aparecer coisas, chegando a comprar cartola e capa e se autodenominar Mandraka, rindo não sei se de seu talento mágico, ou de sua mágica desorganização. Emoldurou seu herói – Mandrake – (um desenho de Lee Falk em tamanho natural) e o entronou na parede da nossa sala. E é esse o único ponto fixo e estável de nossa casa, onde tudo muda e tudo se perde num passe de mágica. Essas palavras que escrevo são apenas para justificar o tipo de cérebro com que fui contemplado: desorganizado, introspectivo e desconexo. Minha casa, minha mãe, eu e meu pai somos um caos. Meu pai trabalha em um laboratório no qual um desavisado pode morrer de mil modos, dependendo de onde tropece, ou corte o dedo. Para você ter uma ideia, certa vez, ele comentou com mamãe que, sempre que ia produzir um novo invento, perdia a fórmula, fazendo-o eternamente medíocre. Está sempre atrasado quinze minutos, ou a um minuto que antecede a uma grande descoberta (ou um terrível cataclisma). E minha mãe replica, consolando-o: _ E eu, que nunca sei onde estou?!... Aí me situo. Filho único, assentado em um banco escolar, querendo fugir para Aldebaran, segundos antes de levar um soco de um colega troglodita. ****

Senhoooooras e senhores! Enquanto espero esse soco, é como se a fita do filme de minha vida tivesse rompido e a projeção na tela ter se petrificado. Sou um John Wayne caindo do cavalo e preso no ar. A imagem fixou-se no punho do meu agressor, pouco antes do soco ser desferido. Claquete! Tempo para que eu vá para Aldebaran! Procuro no meu cérebro um rasto para a fuga, mas só encontro informações, como estas, que não servem para nada: a) Aldebaran é uma estrela tipo espectral K5III e que na Grécia era conhecida como “tocha” ou “facho”.

(pra que lembrar isso, agora? Isso não me serve para nada!) (coisa alguma livrará a minha sina de ganhar o soco!) Minha cabeça continua a procurar uma rota de fuga e começa a pensar nos streghe,

b) ou bruxos, que reúnem-se à noite para adorar Aldebaran e assim adquirirem o poder do magnetismo do olhar e impregnar as pessoas.

??????? (quem sabe eu tenho esse dom e posso usá-lo agora, olhando bem dentro dos olhos do meu futuro agressor e assim intimidá-lo?) As pessoas sempre elogiam meu olhar! É claro, quase amarelo, brilhante e de grande formato. Devo ser um menino bonito! Pelo menos minha mãe acha, pois ela está sempre besuntando meus cabelos com brilhantina Glostora para que fique parecido com o Tab Hunter. Mas, minha mãe é volúvel! Não posso confiar nela. Outras vezes diz que estou parecido com o Neil Sedaka. Só sei que cheguei a ser Rodolf Valentino pela manhã, Sal Mineo ao entardecer e acabei dormindo Jeames Dean. Com quem será que pareço agora? (com esse olhar medroso e revirado, com certeza, Pablito Calvo)


Deverei intimidar meu agressor com o meu olhar? Devo abrir meus belos olhos, fixá-los forte dentro dos dele, produzir um sorriso enigmático e desafiador, suspirar altivo, forte e, então, poder ver o punho do meu agressor desviar-se e ganhar como prêmio uma palmadinha solidária no ombro? E ter o prazer de ouvi-lo dizer: _ OK, você venceu! Ou nada disso? Devo é enfiar a mão no meu estojo escolar, retirar meu canivete com cabo de madrepérola e sete lâminas, tesoura, abre-latas e saca-rolhas e enfiar na barriga desse fedaputa? (Não! A lâmina não! O saca-rolha. Dói mais!) Sou um menino quieto, como todos aqueles que estão sempre a esperar alguma coisa. Gosto do silêncio e sei que ele é sagrado. Sei também que é nele que o diabo se manifesta. Instintivamente procurei, com a mão, o meu estojo. Claquete. **** Meu futuro agressor chama-se Almagesto. Nome estranho para um garoto balofo, burro e pobre. Não posso imaginar como sua mãe achou esse nome. Embora pertencendo a uma classe social inferior, ele sempre se manifestou como o centro de todos nós que o tememos. (com certeza, é a influência do seu nome.) Na minha cidade, os pobres são tidos como “bichinhos de estimação”. Todos os sábados, rabinhos abanando, eles aparecem com um sorriso agradecido a buscar sua ração. Alguns chegam a dizer, orgulhosos, voz melosa, cabeça revirada para a direita: _ Sou pobre, porém criado do Sr. Otaviano. O Sr. Otaviano é o mais rico da cidade e ele elegeu o maior número de fiéis “animais de estimação”. A família do Almagesto pertence à casa do Sr. Otaviano. Sente-se, por isso, privilegiado.

**** Aldebaran está relacionada no catálogo de estrela do Almagesto. (claro, no livro de Ptolomeu!) Aldebaran pertence à constelação de Touro. É a maior estrela dessa constelação e é a estrela que brilha no olho esquerdo do touro. Para os cabalistas, essa estrela é associada à letra inicial do alfabeto hebraico – Aleph – e, portanto, é a primeira carta do tarô. Eu sou do signo de Touro. Talvez, por isso, essa minha fixação por Aldebaran. Certa vez, li que pessoas desse signo têm uma natureza animal, instintiva e de rica sensorialidade. Não entendi bem isso, mas entendi que pessoas de touro gostam de cheirar, provar, apalpar, ver e escutar. É! ... ... acho que eu e toda a humanidade, não? E assim vou descobrindo o mundo. Tenho outra forma de conhecer o mundo que é associar as pessoas aos seus pertences. Por exemplo: a) b) c) d) e)

a cartola de mágico à minha mãe; o vaporizador de asma à minha avó; o perfume “Madeira do Oriente” à minha tia; a revista “O Cruzeiro” ao meu pai; a mão branca de giz à chata da professora que não para de falar; f) o riso do meu avô à sua dentadura.

Coisas simples. Explico melhor: veja de quem eu estou falando: uma garota que usa um capuz encarnado, tem cestinha presa nos braços e... sabe de quem falei? Essas características, fora da sua partitura original, sempre será Chapeuzinho Vermelho, seja lá onde as encontrar. Associo Almagesto a um embornal puído e nojento. Por isso meu medo do soco. E se suas unhas sujas e compridas ferissem meu rosto e eu morresse de tétano? A proporção de sua babenta mão em relação à minha cara poderia provocar um grande estrago,


levando em consideração o pequeno tamanho da minha cabeça. Parto então a fazer analogias com o meteoro que extinguiu os dinossauros, diante da dimensão da Terra. O que esse soco extinguiria em mim? A dignidade, eu tenho certeza!

Devo ter importunado-a muito com minha presença a ponto dela dizer: _ Vá brincar, menino! Pare de andar atrás de mim. Triste sina a minha! Além de estar próximo da morte, estava sendo escorraçado pela minha mãe. Eu, que só queria morrer junto!...

Não posso precisar o motivo que me leva a essa surra. Almagesto tem essa índole de troglodita e o que despertou nele esse ódio por mim pode ser o meu “Uniforme Oficial” do Batman, que acabei de ganhar, e todos os amigos estão a invejar. É um uniforme maior do que eu cuja máscara é difícil de equilibrar no rosto, pois a minha visão fica sempre fora da órbita dos buracos furados para os olhos. (isso quando não me embaraço nas barras da capa.) Com certeza, esse uniforme seria o número certo do manequim do Almagesto e eu o presentearia, com prazer, para livrar-me do soco. Como disse, isso aí que acabo de escrever é apenas suposição.

Procurando um sinal no céu que anunciasse o fim, percebo ao lado da lua uma luz piscando. Sim! Era o fim. Meu coração disparou e eu busquei ajuda em minha vó. Ela colocou os óculos, olhou, franziu a testa e simplesmente falou: _ É uma estrela. _ Mas como, vó, se agora é dia?! Nem me lembro o que ela falou, mas sei que ela me abandonou com o meu pavor. Também não sei quanto tempo durou esse medo. Com certeza, até ele cair na monotonia. Só lembro é que, nessa noite, na solidão do meu quarto, para amenizar meu medo e a minha insônia, fui povoando-o de personagens reais e inventados, sentando-os à borda de minha cama para falarem comigo e me contarem suas experiências. Todos, chegando lá de longe, devagarzinho e moldando, assim, a minha própria mitologia.

O que tenho certeza nesta história é a minha fixação em Aldebaran. Aldebaran é a minha “área de lazer”. E essa minha fixação tem dia e hora para iniciar: três de novembro de 1957, quando a União Soviética mandou a cadela Laika para o espaço, no Sputnik II. Tinha quase oito anos e, num domingo nem muito suave nem muito ácido, nem muito quente nem muito frio, pela manhã, fui assistir à missa com minha mãe. O padre, um alemão fugido da guerra, em seu sermão alerta a todos que o fim do mundo está próximo e que estamos brincando com o poder de Deus. E, aos berros, com seu sotaque cheio de “erres”, diz furioso que Deus irá pegar esse foguete que estamos enviando para o espaço e atirá-lo, tal qual uma flecha, de volta sobre a Terra. E ele rasgará em fogo todo nosso planeta, eliminando-nos para sempre. Ouvi aquilo com pavor. Voltei para casa agarrado a mão de mamãe e passei todo o dia andando atrás dela, pois queria companhia para morrer.

Vivendo entre histórias verdadeiras e inventadas, catapultei-me para fora da Terra, estiquei meus braços entorpecidos e respirei fundo para ficar, eternamente em outros mundos. A buscar resposta para sanar minhas indagações, comecei desvendar o céu. E, tal qual meu pai, estou sempre a quinze minutos que antecede a uma grande chegada. Creio que, quando tiver visitado quinhentos mundos e tiver oitenta anos, vou perdê-los numa fração de segundo. E ficarei com meus oitenta anos, solitário, biologicamente imperfeito, frustrado e sem saber “nada de nadica”. ****


...enfiei a mão no meu estojo e segurei firme meu canivete com cabo de madrepérola. Evitei qualquer pensamento que pudesse me deter. Abandonei Aldebaran e cruzei o limiar frio que é aportar-me de volta à Terra. Destravei o saca-rolhas e lembrei-me de Jeff Chandler a descer do cavalo e disparar, num silêncio absoluto dos filmes do cinema mudo, e os índios caírem no chão aos montes, sem que se ouvisse um gemido sequer. Almagesto não passa de um pobre suarento e burro! Em escala cósmica, ele nem existe e agora não passa de um fruto do meu pensamento a me atormentar. Um espinho.

Enquanto ele se estrebuchava no chão, eu levantei meu canivete, exibindo a todos o meu troféu. _ AiiiiÔ!!!!! Soltei meu grito de guerra. .... Urra! Urra! Urra! - todos gritaram em coro.

Antes de tomar qualquer atitude, fiz um pacto com as andorinhas que vi passarem voando pela janela. Explico: minha vó conta que as andorinhas têm grande prestígio com Deus, pois foram elas que retiraram os espinhos da coroa do Cristo. Então, pedi a esses pássaros que retirassem esse espinho que Almagesto cravou e que atormenta meus pensamentos. Porém, o que senti é que elas humilharam-me ainda mais, cagando em minha carteira, num voo rasante, teatral e triunfante por toda sala.

Aconteceu, sim! Porém com outro garoto que tem os mesmos olhos meus, o meu nome, usa cabelos revoltos ao vento e mora em Aldebaran. Um garoto cujos pais vivem momentos de intensa organização. Casinha arrumadinha, comidinha na mesa, mamãe de penteado e papai de terno e gravata e que, à noite, estendem-se na cama muito corretamente, tal qual a caneta e a lapiseira John Faber nos sulcos de seu estojo. Lá, em Aldebaran, também tem um Almagesto. Raquítico, rabugento e com os cabelos melecados de brilhantina. Este, sim, está agora debatendo-se numa poça de sangue. Por lá, as coisas tranquilas é que são trágicas. Por isso todos aplaudem e pedem bis. Eu, o de cá, não feri Almagesto.

Foi então que desferi o primeiro golpe, acertando-o bem na barriga. Senti a espiral do saca-rolhas entrar rasgando suas banhas e um líquido pegajoso molhar minha mão. Olhei procurando sangue, mas não o vi. Queria-o! Sei que ele escorre mais fortemente no pescoço e, desembainhando o canivete de sua barriga, cravei-o bem na sua jugular. O sangue jorrou shiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii forte. Esguichou longe, pulsando no ritmo do coração e sujando toda a sala e os colegas. Almagesto tinha sangue demais e meu braço se tornou radiante com o brilho úmido do vermelho.

É claro que isso não aconteceu! Eu não feri Almagesto. ... minto. Aconteceu, sim! (vou... volto... escrevo em zigue-zague, chuleando e caseando, “que nem” a vida)

Eu, o de cá, nesse momento em que acabo de me desejar um assassino, sou o único criminoso que jamais abandonará o local do crime e ficará eternamente velando um túmulo vazio. Eu, o de cá, quero muito mudar para Aldebaran e fundir-me ao meu espelho, que é o menino de lá. Eu, o de cá, sei de uma história de um escritor famoso que disse que os historiadores, que dizem só verdades, evocam meros fantasmas, enquanto os romancistas criam gente de carne e osso. Eu, o de cá, li a história desse romancista e quis


muito ser um dos quatro mosquiteiros do rei, porém só consegui uma espada de madeira de ponta rombuda. Já o Eu de lá matou D’Artagnan, assumiu sua identidade e nunca levou a sério essa coisa de “um por todos e todos por um”. Pra dizer a verdade, conheço o Eu de lá melhor do que conheço a história do meu pai. Quantos episódios da vida dele me são desconhecidos! Quantos pensamentos meu pai nunca me revelou, quantas vezes ele ocultou suas dores, seus dilemas, suas fraquezas? Já o meu Eu de lá revela-me todos os aspectos de sua natureza. O que o Eu de cá faz é encostar o ouvido numa concha e ficar ouvindo, não o ruído do mar, mas os leves passos de Fred Astaire e Ginger Rogers dançando Cheek to cheek, per secula seculorum, até que anoiteça para sempre ou que minha mãe, com sua capa do Mandrake, faça um gesto mágico e... **** Tente entender estas duas histórias que vou contar agora:

1- uma vez, cismando junto às estrelas, meu pai disse: “em escala cósmica, somente o fantástico tem a possibilidade de ser verdadeiro.” Mas, quem disse isso não foi ele. Fui Teilhard de Chardin.

Fantástico, Não?

2- Veja também: li num jornal que Adolf Hitler matou-se e seu corpo foi queimado em um bunker em Berlim. Li também que a Chapeuzinho Vermelho foi comida por um lobo.

Fantástico, não?

Conclusão: tudo isso são verdades, assim como essas quatro primeiras notas escritas por Beethoven na Quinta Sinfonia:

Não tem como provar que o Mickey Mouse não é namorado da Minnie; nem que meu pai não tenha dito em primeira mão o que Teilhard escreveu como verdade; nem que Almagesto não seja um livro de Ptolomeu e um nome próprio de alguém que habita na face dessa terra. Fantástico, não? **** Fantástico será intimidar meu futuro agressor com o meu olhar magnético. ... então abri os olhos, mirando profundamente dentro dos seus.................................................... meneei a cabeça lentamente ............................... e produzi meu sorriso enigmático, desafiador e superior .............................................................. enchi os pulmões de ar ..................................... e pude perceber o soco se desfazer lentamente a minha frente. Fui eu que dei uma palmadinha no ombro dele, quando ele virou e me abandonou com meu soberbo magnetismo. É bem provável que me torne o ator principal de minha rua a partir de agora. Minha lenda correrá rapidamente por toda a escola, toda a cidade; e, se aperfeiçoar esse meu poder de encantamento, poderei aportar até em Aldebaran. Sim! Esse é o caminho. Foi nesse momento que a campainha soou, avisando o horário para a merenda. Quando cheguei ao pátio da escola, vi Almagesto encostado num pilar. Ainda pude vê-lo caminhar pesado e cambaleante em minha direção. Não disse nada e desferiu o seu prometido soco. Ele apenas o adiou. Claquete: última cena


Dei por mim rodeado de professores. Parecia que a escola tinha convocado todo seu corpo docente e eles observavam-me constrangidos e parvos. Tentei levantar e sair dessa cena do crime. Não me permitiram, segurando, no meu olho, uma bolsa de gelo. Já disse aí que sou do signo de touro e que Aldebaram é a estrela que marca o olho esquerdo desse animal, em seu mapa celeste. Pois bem, Almagesto acertou justamente o meu olho esquerdo, deixando-me por muitos dias como se fosse parte de um tratado astrológico. O roxo do meu olho é uma marca indefinível e ambígua que separa o meu Eu de cá do meu Eu de lá e que comunica entre ambos, não me permitindo que fale em “dignidade ontológica” em face de um mundo “objetivo”. Claquete. **** Senhoras e senhores: Essa é uma história cuja única serventia é sair marcando o chão com pedrinhas, para não me enganar no caminho do regresso. Como a única seriedade que concebo é aquela que permite todas as fantasias, minhas pedrinhas são astros, que derramo sobre esse meu chão, nessa noite de poças d’águas que não reflete nada, nem rostos, nem gestos, nada, a não ser o peso da minha presença. RespeitÁÁvel público! Aqui esse pretenso artista se despede, debaixo dessa rota lona do circo que é minha vida. Lona esburacada, cheia de furos, em que o dia, com o reflexo do sol, se faz céu estrelado e a noite é só o oco do mundo. Estou saindo de cena sobre meu pangaré, que não passa de dois palhaços embutidos em um pano, de andar trôpego, desacertados e vou sumindo ao longe desse picadeiro, que mede nada mais do que uns 12 metros de raio, até desaparecer num curvado de céu, sempre seguindo a trilha que aponta para Aldebaran. ... de vez em quando, paro para redesenhar de car-

vão meus lindos bigodes pretos e marcar o chão com mais uma pedrinha. Aqui acaba a história que pretendi escrever. Desaba a lona, soltam-se os leões, galopam os cavalos, _ FOGO NO PICADEIRO! Chamusca meus bigodes, queima o livro de Ptolomeu, a fumaça atinge Aldebaran, meu pai desarrolha uma nova invenção para salvar o mundo, minha mãe grita a palavra mágica e ... eu viro artista. Acabei fazendo um círculo, começando a traçá-lo, elegendo um ponto ao acaso e já estou pronto para iniciar novos e novos círculos, que se emendarão em paralelas. A nossa tradição exige que acrescente uma moral para fazer essa narrativa pedagogicamente aproveitável. Porém, não tenho moral nenhuma para oferecer. Meu mundo é impermeável a todos os valores.



Parte integrante da exposição Almanaque realizada na Casa FIAT de Cultura em junho de 2016. Curadoria da exposição: Robson Soares Texto e pinturas: Miguel Gontijo Fotografias: Gustavo Djalma Design: Clara Gontijo Foram impressos 200 exemplares numerados e assinados pelo autor. Apoio cultural

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