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Miguel Gontijo




Curadoria: Robson Soares Design Gráfico: Ideiário Design - Clara Gontijo Fotografias: Juninho Mota - pgs. 13 a 21, 28, 32, 34, 35 Sérgio de Souza - pgs. 66, 67 Clara Gontijo Textos: Carlos Alberto Ratton Gilda de Castro Manfred Leyerer Miguel Gontijo Obras dos colecionadores: Leandro Bolelli Peres (RN) Manfred Leyerer (MG) Rodrigo Ratton (MG) © Copyright 2014, Miguel Gontijo Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização do artista. [Forbidden reproduction in whole or part without the artist’s permission]


Miguel Gontijo

Belo Horizonte, Edição do autor 2014


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O Cine Theatro Brasil Vallourec abre o calendário de exposições 2014, no dia 8 de abril, com as exposições de Angelo Issa e Miguel Gontijo. As exposições documentam a trajetória de dois artistas mineiros movidos, antes de tudo, pela paixão às artes. Essas mostras propõem uma constante releitura do mundo, a partir de suas experiências e de acontecimentos, triviais ou insólitos, que impulsionam seus insaciáveis desejos da busca de novos significados. Ao colocar esse espaço à disposição do público, a Fundação Sidertube e o Alberto Camisassa

Diretor Presidente do Cine Theatro Brasil Vallourec Superintendente executivo da Fundação Sidertube e Lavor

Cine Theatro Brasil Vallourec reafirmam seu apoio às iniciativas artísticas, a bem do surgimento de novos valores, da formação de novas plateias e como caminho preferencial para democratizar o acesso à cultura.

No momento de reflexão para escrever este texto, parei por um instante e senti o peso da responsabilidade de fazer a curadoria e produção do premiado artista e amigo Miguel Gontijo, que completa 50 anos de carreira este ano e, ao mesmo tempo, abre o calendário 2014 de exposições do Cine Theatro Brasil Vallourec, um imponente edifício da década de 30, reinaugurado após sua restauração, com a obra máxima de Portinari: os painéis Guerra e Paz. Robson Soares

Curador da mostra

A importância de tudo isso, aliada à confiança da Vallourec e do Cine Brasil, enche meu peito de orgulho e certamente renova o espírito.

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O que distingue uma pessoa de um artista? • Talento e habilidade? – Sim, sem dúvida; • Um artista tráz inovações? – Sim, mas as ocasiões são raras; • Um artista precisa ter uma mensagem, proposta, visão? – Sim, mas não é necessário; • Um artista tem que ser um intelectual? – Não, mas ajuda; • Um artista precisa ser incômodo, inquieto, sempre se autoquestionando, autorrevelando-se, desenvolvendo-se e se reinventando? – Sim, sem dúvida.

Quando se fala do artista plástico Miguel Gontijo, das suas pinturas contaminadas e do seu trajeto pela vida, todas as perguntas acima se respondem com um claro “sim!”. O que destaca um grande artista plástico diante de outros artistas? O que o faz admirável, ser líder de opinião e referência? – é a busca diária da pessoa pela liberdade do pensamento, pela cognição, pelo livre arbítrio e pela independência. Desse ideal, Miguel Gontijo se aproxima muito. É um artista que sempre se esforçou, muitas vezes contra o ambiente, para se livrar, questionar e julgar: tradições, conceitos, maneiras, visões religiosas ou políticas e para revelar fundamentos confrontando a razão pura. Miguel Gontijo é um verdadeiro perseguidor da ideia da Iluminação na definição de

Immanuel Kant (1784): “Iluminação é um homem liberto da autoincorrida tutela. Tutela é a incapacidade de usar o seu próprio entendimento sem ser guiado por outro. Tal tutela é autoatraída se a causa não é carente de inteligência, mas antes uma carência de determinação e coragem por usar a inteligência sem ser guiado por outro.”. Desde sua adolescência, Miguel Gontijo tem por intrínseco e intuitivo a vontade de questionar e utilizar a própria razão. Sua pintura, seu trajeto e Manfred Leyerer

Colecionador Diretor financeiro da Vallourec

seu comportamento elevam Miguel Gontijo a um patamar de grande artista plástico de seu tempo.

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Toten Objeto - 2014 46 x 10 x 35 cm

UBI DUBIUM IBI LIBERTAS


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Sendo um pintor, a Pintura nunca foi minha área de interesse. Jamais me preocupei com os conceitos pertinentes a ela. Estou mais interessado em uma estética dos sentidos do que uma estética da forma. A minha busca sempre foi atrás de uma imagem que fala. É como se eu tivesse herdado o cinzel do meu xará, que martelou o joelho de mármore de Moisés, gritando, segundo a lenda: “Parla!” Essas várias tentativas de criar uma imagem que falasse, ao longo dos anos, foram se acumulando no meu escritório. Muitas se perderam e as que persistiram em ficar comigo, agora, acumuladas sobre minha mesa, são como as pedras da história infantil, “Joãozinho e Maria”, que marcaram o território para que eles pudessem voltar para casa. Esta exposição é um retorno que se inicia há 50 anos, com cadernos escolares de Desenho, que minha mãe guardou e eu só os revi, há pouco, depois de sua morte. Uma volta ao giz de minha infância e ao meu caderno encapado. Talvez simples lembranças confeitadas. O que sei é que não existe uma geografia de verdades. São confusões do tempo que, agora, apresentam-se como um acontecimento. Diante destes papéis, que juntos se revelam como uma tentativa de criação de um universo pessoal, posso constatar apenas uma coisa: busca. Desenfreada procura para chegar aonde e para quê? Talvez precise de mais outros 50 anos para descobrir. Talvez nada se tenha para descobrir, pois sempre fui mais motivado por uma necessidade de fazer, do que pela consciência do motivo. A vida é experimentação. O fato é que nasci expatriado, incompleto e preciso desta incompletude para aproximar-me da sonhada plenitude. E é Clarisse Lispector que vem a me dizer, “não se preocupe em entender. Viver ultrapassa todo entendimento.” Estes meus trabalhos nunca nasceram. Recomeçam, posso afirmar. Miguel Gontijo Artista plástico

E recomeçam sempre após o luto do que o antecedeu, pois nunca fico feliz com o resultado que obtive das coisas que faço.

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Série das páginas seguintes: A Menina D’Avignon Assemblage 40 x 36 cm - 1980 / 2014

Percebo que o conjunto desses trabalhos evidencia uma comunicação entre o que é e o que foi, entre o esboço e a existência, entre a vida e a morte, entre o reter e o esquecer; confirmando, assim, que todo quadro deve ser uma profanação e uma consagração.



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Deveria ter sido sem lei nem regras. Deveria ter sido herege faccioso vagabundo reprovador desafiador provocador dem么nio. Acabei sendo apenas uma cloaca sangrenta que pensa que deveria ter sido ter ido ter id ter d贸 ter oh!


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Judith et la tête D’Holopherne Colagem - s/d 19 x 19 cm


Hist贸ria Nanquim sobre c茅dula - s/d 41 x 40 cm

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Trevo de quatro folhas Texto s/ madeira - s/d 22 x 22 cm


Pelo olho devoro o mundo objeto poema - 1990

A cor do Meu Sorriso Objeto poema - 2012

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Oratório Acrílico s/ telas cortadas 86 x 68 cm - 2010

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Dentro das ponderações, que aprendi vendo por aí, ao longo da minha vida, faço um breve balanço e deduzo que: •

pintores que não pintam

fotografam

pintores que pintam

são experimentalistas

fotógrafos que não fotografam fazem colagem

fotógrafos que fotografam

escritores que não romanceiam conceituam

poetas que não poetizam

normatizam

teóricos que filosofam

teseficam

filósofos que filosofam

teorizam

professores que não ensinam

sacerdotizam

professores que ensinam

dogmatizam

atores que não atuam

fazem performance

cenógrafos sem palco

fazem instalações

desenhistas que não desenham garatujam

desenhistas que desenham

são habilidosos

escultores que não esculpem

fazem objetos

escultores que esculpem

são artesãos

desempregados da televisão

videoficam

quem não sabe o que fazer

é multimídia

pintam

Unido a todos esses colegas, num só epitáfio, glorifico: _ É belo morrer com dignidade teatral. Sejamos fiéis a nossa descida, amigos!

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Narciso Políptico - Acrílico s/ tela 29 x 42 cm - 1990

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Carta para av贸 desconhecida Acr铆lico s/ tela - 1992/2014 130 x 150 cm


Paisagem construída Acrílico s/ tela - 1980/2014 63 x 32 cm

Tarzan 1 e 2 Guache s/ papelão (1963 provavelmente) 28 x 32 cm

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Próxima Página: Enciclopédia Miguel Gontjijo Acrílico s/ tela 155cm x 130cm - 2013

Enciclopédia Miguel Gontijo I e II Acrílico s/ tela - 1990/2014 130 x 150 cm


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Não sei o que é nascer artista. Trabalho – e muito! para desenvolver uma forma específica de me comunicar. Meu único dom é a obsessão. Nenhuma ideia merece minha fidelidade. Pelo nada vou morrer e assim acredito inventar uma finalidade para a vida. Amalgamar-me nesta imensa bola oca em que, casualmente, me inseriram. E ficar matutando, deduzindo, passando as ideias e a vida pelo processo de decantação e chegar a conclusão de que não passo de um animal de imaginação; um animal de destinação; um animal de sublimação; e, por fim, um animal de estimação

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A indisciplina criativa: rebeldia na escola e o despertar para a arte Durante o curso ginasial, Miguel Gontijo não cumpria todas as atividades prescritas nas aulas de Desenho, porque não se sintonizava com singelas barras gregas, colunas romanas ou formas geométricas. Ele queria ousar com outras imagens, desdobrando essas simplórias figuras em outras, para indicar horizontes distantes ou caminhos acidentados, como os sonhos ou percalços presentes na vida de todos. O confronto de sua produção em nanquim com a dos colegas era flagrante, porque não manuseávamos com a mesma destreza régua, esquadro, compasso e transferidor. Isso gerava sentimentos díspares: enquanto três professoras elogiavam sua criatividade em desenhos mirabolantes, pais e diretora interpretavam tudo como intolerável rebeldia de um adolescente alheio às normas da escola. Eu ouvia rumores nas duas vertentes, como estudante da série seguinte, e uns e outros tentavam imaginar o futuro de Miguel Gontijo, quando ele se tornasse adulto. Sua mãe, Diva Souto Gontijo, era professora, no curso primário, destacandose pela discrição e austeridade. Havia percebido que o filho manifestava habilidade artística, enquanto se mantinha distante dos meninos que jogavam bola na rua ou caçavam passarinhos nas matas. Procurou, então, viabilizar todo o material para que ele explorasse seu talento. Isso incluía bons livros de literatura, instrumentos musicais, caixas de desenho e muitas folhas de cartolina, mas não se derramava em elogios ao resultado obtido, porque esperava, certamente, que a produção melhorasse a cada dia; afinal, tinha também habilidades artísticas, buscando sempre perfeição no bordado, na culinária e no crochê. O resultado está aí: uma excelente série de desenhos a nanquim com espirais, barras, círculos e seus desdobramentos. Eles encaminham nossa mente para várias dimensões da realidade palpável, mas também para labirintos


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que nunca percorremos, pelas nossas limitações para imaginar um universo desconhecido. Em cada quadro, percebe-se que o jovem Miguel Gontijo elaborava tudo com o mesmo capricho presente em sua produção de artista consagrado. E todos registram que ele já dispunha de um mapa cognitivo para articular seus desenhos de triângulos, cones, espirais, quadriláteros e outras formas geométricas com lógica e sensibilidade. Sua mãe guardou os desenhos daquele tempo, sem tecer qualquer comentário. Ele não se lembrava dessa produção, quando o cofre do pai foi aberto, muitos anos depois. Sentiu-se amplamente gratificado pelo respeito materno ao seu trabalho de curso ginasial, porque demonstra que sua rebeldia para cumprir singelas tarefas da escola permitiu realizar atividades mais complexas que estão inseridas, hoje, no universo das artes plásticas. Seus admiradores agradecem o acesso à produção de um adolescente, porque os desenhos indicam uma dinâmica singular pelo uso de instrumentos rústicos em busca de uma estética para que identifiquem sonhos inseridos em um mundo de complexidade ímpar. Se o papel de um artista plástico é instigar a imaginação para uma realidade alheia ao cotidiano prosaico e enfadonho, esse objetivo foi plenamente alcançado. Gilda de Castro

Mestre em Antropologia Social Doutora em Ciências Sociais (Antropologia) Professora universitária e pesquisadora em Antropologia Autora dos romances Serenata para Isabel e Seis Marias. Membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais e da Associação Brasileira de Antropologia

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Não precisava tanto, Dona Diva. Francamente, minha senhora. Eu não sabia que você, com seu jeito tão especial, guardava e juntava pedaços da infância e juventude do seu menino. Entre rendas, folhinhas marianas, chitas, missal e véu de missa, mais aquela sombrinha que cobria a família pequena nos dias de chuva e de sol forte, ficou tudo bem guardado... Eu sei que naquele cantinho do guarda-roupa, ele se escondia da vida de menino torto, tonto de tanto rabisco, de riscos de luz e sombra e poucas cores, pra não chamar a atenção de ninguém. Naquele tempo, desenhar era uma estradinha de fuga das impossibilidades de ser moleque. Assim, ele se cobria com formas geométricas, sem compasso nem esquadro. Entre os guardados, ele. Um ele descolorido, de pequenos traços e sem seus desvarios que hoje são tantos... Tenha certeza, dona Diva, as coisas preservadas, os diminutos guardados mineiros são do tamanho do mundo, mesmo tão pequenos. O menino cresceu e seus guardados continuaram escondidos dele. Hoje, tenho certeza que, aqueles, zombeteiros e debochados, nunca deixaram de espiar ele, lá do fundo do baú. Foi graças à senhora que nem traça, nem mofo nem cupim macularam parte das memórias do Miguel, agora memoráveis. O menino virou homem, ganhou rugas e cabelos brancos que logo perdeu. Não perdeu os guardados que uma diva, de tão musa, preservou pra ele. Carlos Alberto Ratton

Amigo do seu filho Miguel.. Dramaturgo,roteirista - prêmio Molière

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Redação escolar - 1964 Desenhos em caneta das árvores do pátio da escola - 1964 Folhas do caderno de exercícios da aula de desenho - nanquim - 1964 (continuam nas páginas seguintes)











Série das páginas seguintes: Mapas de Minha Vida Nanquim e aquarela s/ papel 21 x 29,7cm - 1983

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Cresci! Há séculos não esfolo mais os joelhos. ... E como dói!

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S/T Bico de pena - 1968 30 x 32 cm

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Livros trepam com livros e reproduzem livros. A caneta é um pênis, sua tinta é sêmen e a p(v)agina ilustra.


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S/t Bico de Pena - 1968 21 x 21 cm


Fábrica de dinheiro Bico de Pena e colagem - 1972 32 x 23 cm

Teoria do nada Caneta - 1966 32 x 23 cm Evolução/revolução Bico de Pena - 1966 8 partes

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Tentativas colagem - 1962 32 x 24 cm


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Cada um pinta a capela que merece - I e II Nanquin e guache - 1970 32 x 30 cm


S/t Nanquin - s/d 24 x 32 cm

S/t Guache s/ papel - 1969 26 x 25 cm

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Sob Controle Acrílica s/ tela - 2013 77 x 52 cm

CURRICULUM VITAE

Cheguei aparado pela parteira Dozina: sou Miguel, filho de outro

Miguel, pra homenagear anjo e artista. E para reforçar a guarda celeste, neto de Gabriel.

Bisneto de um agiota que todos diziam ter um pote de ouro

enterrado no quintal e me fez acreditar em mapas e piratas.

Filho da Diva, que teve uma filha também Diva e que não andaram

nuas sobre cavalos. Neto da Noeme e irmão de outra Noeme. Também irmão da Norma, da Neusa e do Júlio que é César e não tem o Império Romano.

Nasci numa terra sem luz elétrica, mas que desconhecia as trevas.

Terra das donas e dos Sôs. Terra dos coronéis velhinhos, que usavam bengalas e todos olhavam com admiração e eu achava que eram eles que, quando morriam, iam para o céu virar santos.

Passei a infância sobre as árvores, comprando lotes nas florestas

africanas, em sociedade com Tarzan e esquecendo-me de tomar anabolizantes para que meus músculos capotassem soberbamente das minhas carnes. Muito cedo conheci tudo sobre Monteiro Lobado e Machado de Assis e fingi, durante muito tempo, que gostava era de Proust e Joyce.

Logo no princípio da adolescência cometi meus primeiros crimes.

Roubei e matei. Roubei da cozinha os pés de uma galinha e matei um sapo que vagava no quintal. Cortei suas patas dianteiras e costurei, cuidadosamente, os pés da galinha no seu lugar, criando uma nova espécie de bicho. A intenção era, após a ‘cirurgia’, enfiar uma das unhas do animal na tomada para que um choque lhe devolvesse a vida. Fui covarde ao enfiar a unha na tomada e, assim, não provei a importância de Mary Shelley na minha vida e minha total incapacidade em ser deus.

Fui batizado por um padre alemão fugido da guerra, que pelo

fedor de murrinha da sua batina, da sua língua enrolada, de sua fumaça de


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incenso nas bênçãos e seu discurso apontando o fogo do inferno como uma grande oportunidade, me fez entender o que era ser barroco, sem precisar do apoio semântico.

Fui a um comício, de mãos dadas com um político e não sabia que

ele era presidente da república e nem famoso e só gravei na minha cabeça que era dia de lua cheia e a lua é a paisagem que mais me interessa nessa vida, e que não entendi uma só palavra do discurso do presidente famoso.

Senti cheiro de tinta a óleo dentro de um quartinho escuro e cheio

de badulaques, onde minha tia Zilda copiava paisagens de moinhos de ventos e ursos polares. Ficava lá horas só para sentir o cheio da tinta e ouvir discos de 78 rotações por minutos.

Como na cidade onde nasci não tem ninguém chamada Marilete fui

a Bahia buscar uma para compor o alfabeto da minha incompletude. E virei pai da Mariana e da Clara, que em outra encarnação já foi Clara-bisa e que meu pai contava que ela morreu muito velha, e de tão velha nasceu um chifre na sua testa.

Sou da terra do João, do Zé, do Bié e da Iuca. Dos que encantam-se

em doutores; dos que somem sem deixar rastro; das mulheres que gostam de parir; dos homens que gostam de fuder; dos bêbados; dos comerciantes; dos engravatados; dos rotos; onde todos, todos,

todos, todos fornecendo suas partes para a eternidade,

- partes grandes ou pequenas, fornecendo-as para compor uma alma, moldando e diluindo tudo numa mesma água abissal. Compondo,

compondo, compondo e reescrevendo o livro dos Gênesis, sem

Lúcifer, porém, eu, Miguel, espada e balança em punho, com gestos fora do meu corpo, ouço o Senhor chamar por Adão e dizer: onde estás? 10 de março de 1986

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