A Sereia e o Buraco da Agulha

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Àquela que me lembra aonde eu estou e àquela que não me deixa esquecer de onde eu vim... Ao apoio que me deram enquanto eu alinhavava o meu caminho até os nós que que eu precisava desatar.





Muito já foi costurado por aí. Tanto pele quanto pano, que nada mais são do que tecidos,

e até panoramas...


e no trânsito também.


Muito curioso...

Porque, costurar tramas e tecidos é um verbo

transitivo direto, mas costurar no trânsito é intransitivo.

Talvez porque fique difícil transitar quando tem alguém costurando... literalmente intransitável

Talvez porque essa costura não dure.


Se emendassem toda linha que já foi usada pra costurar e fazer

bordado ou qualquer outra coisa com agulhas, dava pra chegar em Plutão e voltar...


Ou ir até quaisquer fases da Lua e envolvê-las num novelo.

E tudo isso sem ter que costurar no trânsito.


Mas a linha mais instigante, com 1111 utilidades, é uma que não dá pra ser manipulada...

Nem bordada nem costurada... só observada.


Uma linha que pode ser esticada Quando apresentada como espiral de caderno E que, ao mesmo tempo em que não mantém nada, Contém algo que é eterno.


Se não é nem de costura nem de bordado, é uma linha que não desfia, mas desafia. Nós a conhecemos e, às vezes, deixamos pegadas nela,

mas a sensação é de que quem nos marca é ela.


Nela se faz de tudo... desde meter os pés pelas mãos até tentar agarrar o que escorre.


Tem-se uma boa noção do começo dela, mas não absoluta certeza. Já do fim, tem-se certeza, mas pouca noção.

De tão comprida, até fizeram alguns nós nela e batizaram os

espaços entre eles. Cada qual com detalhes que os distinguem.

Detalhes...

diz um velho ditado alemão que o diabo mora nos detalhes e que quando esse ditado aparece pra você é porque você está precisando prestar atenção neles.


Nos detalhes, não nos diabos...


O que alerta tanto para os problemas que se pode obter ao se desprezar os pequenos detalhes de um projeto, de uma ideia ou as sementes de amora numa geleia,

como para as recompensas surpreendentes que aparecem quando se está atento às coisas de cada dia.


Assim, o que se conhece dessa linha hoje em dia, deve-se aos estudiosos e curiosos que prestaram atenção nos detalhes dos movimentos sistemáticos da natureza e da organização dos seus respectivos habitantes.

Que bordavam uma tapeçaria com o que encontravam e que vislumbravam o que ia sendo descoberto como quem assiste a trailers de um filme, que batizaram de linha

do tempo.


E a Sereia, que é meio desligada, mas se liga no mundo

fashion, logo pensa nas coisas estilosas de cada época que, ao serem descobertas ou reconstituídas, ajudaram os curiosos estudiosos na composição de cada cenário dessa linha.


Mas, pra que se pudesse começar a dar os nós nessa linha comprida e batizar os espaços entre eles, era bom que a linha tivesse um começo presumido... Considerando esse começo da linha

do tempo no

momento em que o mundo é mundo, isto é, quando

física + química + biologia = mundo, nada impede que esse instante seja assumido como

t=0 Como exatamente as coisas eram, ou deixavam de ser, em

t < 0 é um

assunto que ainda pertence ao campo dos mitos e das ideologias e é melhor abordado com uma cerveja do lado ...

Então, os nós dessa estória, os espaços entre eles e os respectivos detalhes, só valem para

t > 0.


Pra não deixar t

= 0 passar em brancas nuvens cósmicas, a

Sereia logo dá a versão dela de como tudo começou:

Com uma explosão de cola e papel, tesoura, tinta e pincel...


Isso porque t

= 0 é especial e por causa das idas e vindas dela

com o robô Red seu amigo, dupla paz e amor, que são ao mesmo tempo Paper

Universe & Planet Makers.


E é com orgulho que eles apresentam a sua concepção de

linha do tempo, improvisada aqui com uma corda, mas com os devidos nós para todo e qualquer

t > 0.


Nós que delimitam épocas que foram batizadas conforme as suas particularidades iam sendo resgatadas, investigadas e identificadas.


Nós que, assim como nós, são únicos e com funções únicas num

Universo de nós...

E, muito das eras perdidas na poeira do tempo foi concluído pelos estudiosos devido à análise de utensílios e

artefatos utilizados por civilizações já extintas e que precisaram ser pescados pelos arqueólogos...


Objetos que sobreviveram às circunstâncias que extinguiram os seus criadores.


Porque os detalhes encontrados nesses objetos conduzem ao exercício de identificar o que são, de imaginar e descobrir quem os criou, quando e onde foi isso, e com qual finalidade.


Tudo pra desvendar os mistérios do mundo e da sua grande teia cujos nós são mais numerosos do que os da World Wide Web.


Objetos ricamente ornamentados, raros e de confecção mais demorada apontam para um usuário especial, ao passo que as peças mais rústicas e encontradas em maior quantidade pressupõem a sua aplicação em massa.

Identificam-se, dessa forma, a existência das estruturas hierárquicas de uma pirâmide social, as habilidades de se comunicar e os materiais conhecidos, as ferramentas empregadas na luta pela sobrevivência, a disposição para a criação e para a conquista, as deidades cultuadas e os rituais envolvidos, além do potencial de destruição...

Desse jeito, uma sociedade começa a ser lentamente desenhada em função das pistas sutis que ela mesma nos deixou de

herança.


Pistas que, via de regra, estão ocultas e são ilegíveis à primeira vista, portais para um conhecimento inesgotável.


Em cada intervalo entre os nós a humanidade exerce, de um jeito particular, a arte de criar, de dar novos significados e de destruir.


E, assim, se reconstitui a tapeçaria a partir de quando nem existia agulha.

Uma tapeçaria onde não pode haver ponto sem nó, e que tem muitas tramas sem dó.


Que começa na pré-história, que leva esse nome porque as matérias que faziam o mundo, então, eram só

física + química + biologia + desenho


E avança pra Idade Antiga, Antiga Idade ou

,

que é quando já tinha gente desenhando mais e escrevendo,

contando estórias, fazendo história, contas, arte e trocadilhos.


Pra tudo se acabar na quarta-feira e ter todo esse potencial comprometido com as Invasões Bárbaras...


Que determinam o fim da Era de Ouro e o começo das Trevas.

A Idade Média... Média Idade... Medíocre idade.


Até apontar a luz do iluminismo no fim do túnel, e começar a

Idade Moderna e as jornadas por mares nunca dantes navegados.

Navegadores alinhavando suas rotas em mares que não estavam pra peixe (nem pra sereias).


Até a humanidade quase morrer na praia em plena

Idade Contemporânea...

Mas seguir alinhavando as suas rotas nos mares e nos ares.


Voltando às matérias do mundo... Parece que o impulso de sair por aí desenhando vem de muito longe.

Os desenhos e as pinturas dos povos pré-históricos são considerados a primeira manifestação de

artes visuais

no planeta e são chamados de

arte rupestre. Essa arte pode ser encontrada na forma de pinturas ou incisões aplicadas em superfícies como rochedos e paredes de cavernas, como tatoos na nossa pele.

As incisões eram feitas com ferramentas pontiagudas e as pinturas rupestres com a tinta obtida a partir de minerais raspados que produziam um pó colorido que era, então, misturado com cera de abelha ou resina de árvore pra dar consistência e liga a esse pó.


O homem primitivo desenhava cenas da sua própria vida. Os desenhos contavam a história dele, a história de suas caçadas. Sua estrutura linear e baseada exclusivamente em ilustrações foram as sementes das histórias

em quadrinhos.

Que brotaram e floresceram muito depois no Egito, com seus hieróglifos que eram letras e desenhos misturados numa sequência que louvava deuses super poderosos e contava estórias elaboradas das glórias de faraós também poderosos.

Narrativas de uma grandeza que foi obtida com o sangue de muitos escravos.


Depois, na Idade Média, as vedetes foram as

iluminuras... que são ilustrações refinadas e muito ricas em detalhes, cor e brilho, que margeavam os textos religiosos e eram feitas manualmente por monges chamados

, em

abadias e mosteiros. O livro de

Kells, é o exemplo

mais antigo e famoso dessa arte única de adoração e louvor.


Com o iluminismo, a adoração via

iluminuras

personalizadas criada pelos monges perdeu espaço para a imprensa de produção em massa e para outras narrativas que vieram com a ciência e a navegação.

Era a Idade

Moderna.

Surgiram o Novo Mundo e os novos livros. Estes últimos, mais acessíveis e parecidos com o jeito como os conhecemos hoje, apesar da encadernação ser em couro ou madeira e nem sempre serem de papel, mas de pele curtida.


Uma trama muito moderna essa, com a conjunção das descobriduras e das invencionices. Costurada em prosa e bordada em verso:

“... Por uma fatalidade Dessas que descem de além, O século, que viu Colombo, Viu Gutenberg também.

Quando no tosco estaleiro Da Alemanha o velho obreiro A ave da imprensa gerou...

O Genovês salta os mares... Busca um ninho entre os palmares E a pátria da imprensa achou...”


Por isso na impaciência Desta sede de saber, Como as aves do deserto — As almas buscam beber...

Oh! Bendito o que semeia Livros... livros à mão cheia... E manda o povo pensar!

O livro caindo n’alma É germe — que faz a palma, É chuva — que faz o mar...” O mar de todas as sereias.

Fragmento do poema O Livro e a América de Castro Alves extraído do livro Espumas Flutuantes de 1870.


Então, milhares de anos depois de tudo começar em t

= 0,

depois do carretel da

linha do tempo muito desenrolar... na Idade Contemporânea, o artista americano Richard Outcault publica, em 1895, a primeira história

em quadrinhos,

no formato de tirinha que, tal como a conhecemos hoje, começou a apresentar diálogos dispostos em balõezinhos de texto e personagens fixos que saíram do anonimato das cavernas.


Então o mundo que, além de redondinho cabia, agora, em quadradinhos, ganhou versões divertidas da sempre apaixonante trajetória da humanidade ao longo da

linha do tempo com direito até de inventar um t

< 0 qualquer

se der vontade de desenhá-lo.


As famílias e situações criadas por Hanna-Barbera, Dik Browne e Matt Groening são exemplos de crônicas inspiradas e bem humoradas de várias épocas, mas temperadas com as coisas da vida contemporânea. Nelas a gente se vê de vez em sempre e sempre encontra:

um patrão prepotente, um cônjuge exigente, uma sogra sempre presente, um mascote sempre contente, um irmão inteligente, uma filha desobediente, um tio impertinente, uma vizinha atraente, carros diferentes e até um robô condescendente além de verdades inconvenientes.


Sátiras que não ofendem, o que esses quadrinhos contam está mais próximo, em espírito, das pinturas rupestres do que se poderia achar.

Só que essas últimas são mudas, enquanto as contemporâneas nos fazem imaginar e perguntar... Será que, no teatro do mundo os personagens mudaram assim tão pouco, enquanto só o

cenário era trocado atrás das cortinas???


Cenário e figurinos, porque a pergunta que nunca vai calar é:

Com que roupa eu vou?

É que a Sereia gosta de pensar na

linha do tempo como uma espécie de

linha de produção da moda.


E ela leu em algum lugar, que todas as roupas do Universo já estão prontas...

Guardadas no que ela imagina que seja um closet

gigante,

que pode estar em outra dimensão ou num canto qualquer dessa aqui, mas que nem todo mundo acessa porque não consegue enxergar a porta do closet.


O que a gente faz é pegar os pedaços que a gente encontra e emendá-los com uma linha que pode até ser a do tempo, desde que ela passe pelo buraco

da agulha.


Esses pedaços seriam padrões flutuantes que poderiam muito bem se juntar num desenho multidimensional.

No projeto de uma roupa ou de uma Sereia...


Diferentemente das sombras, que são uma derivada do corpo, já que configuram uma diminuição de dimensão, o que está nesse closet seria a beleza elevada a outros patamares e novos mares

...nunca dantes navegados.


A beleza em coordenadas não percebidas e existentes para todo e

t

qualquer no intervalo

-∞ ≥ t ≤ +∞.

Alcançada na passagem da linha pelo buraco

do tempo da agulha.


Claro que a Sereia sabe que nem sempre existiu agulha...

É que o aperfeiçoamento da agulha só viria na Idade Média, numa das diversas tomadas “a humanidade e a arte de manipular e transformar os recursos disponíveis”.


Quando entra em cena a coreografia do minueto entre a

consciência e a inteligência.

Essa última muitas vezes se afastando demais ou pisando no pé da primeira...


Talvez ainda haja a comunhão da inteligência com a consciência. Talvez no instante esticado quando t

 +∞, no encontro da

agulha com a linha num minueto bem ensaiado...

Com a Sereia camelando pra passar ou se deixando levar.


Num cenário de beleza elevada que ela encontre além do

reto-íris e do outro lado da agulha...


É que o reto-íris foi inventado por uma bordadeira preguiçosa que não queria fazer a curva com a agulha, mas que no fim

Fim acabou inventando a interface do dia e da noite... E a beleza em coordenadas percebidas.


Sereia em série... A série da Sereia

“Metade o busto de uma deusa Maia Metade um grande rabo de baleia” Paralamas do Sucesso / Gilberto Gil


Sobre a autora

Claudia Schmidt, artista visual, frequentou a pintura clássica na adolescência, mas profissionalmente trilhou os caminhos da engenharia eletrônica onde se familiarizou com a criação de conteúdo via software, explorando a animação de formas geométricas e a agregação de fotos e cores. Dessa familiaridade nasceu o impulso de se manifestar artisticamente por meio dessas ferramentas.

Suas ilustrações iniciais lhe inspiraram reflexões corriqueiras que, reunidas, deram origem à Sereia e sua série. https://cschmidt303.wixsite.com/ilustras reúne o seu trabalho visual e um blog.


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