A Sereia e o Armário e a Memória

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Para o farfalhar da arrebentação, para a visão da linha do horizonte, para o aroma inconfundível das algas, para o sabor da espuma salgada e para o spray da maresia que, temperado com areia, impedem que eu me esqueça.





Armário e Memória

têm muito mais em comum além de:

terem a mesma quantidade de letras (7... que não é conta de mentiroso)

terem muitas letras em comum (quase todas, aliás, pois só o E aparece só na memória)

serem paroxítonas terminadas em ditongo (que é mais ou menos como dizer que têm vogais em um relacionamento sério atrás de um acento)



Mas esse não é o

da questão...

Porque o X é sempre o mesmo, mas pode aparecer camuflado.

E a gente só percebe se prestar atenção no contexto ou observar de longe ou se entortar o pescoço pra olhar de outro ângulo pra entender o que está escapando.


ร que enquanto o armรกrio tem

AR em dobro...

a memรณria

ME tem.


A memória tem a mim também, mas isso fica pra depois, e tem um

RIM.

A memória tem um rim que filtra tudo e que, às vezes, retém o que queremos esquecer e deixa escapar aquilo do que queremos nos lembrar.

E isso é o que se pode chamar de uma memória traiçoeira ou de uma memória que tem um rim ruim.

A memória deveria ter uma peneira que filtrasse ao contrário ou que segurasse só o imaginário.


Se o armário fosse uma proparoxítona, ele seria acúmulo... do qual a gente só se liberta quando vai para o túmulo.


Se a memória fosse uma proparoxítona, ela seria um cárcere... de onde só se escapa quando se esquece.


E a Sereia, assim como (quase) todo mundo, também tem uma memória e um armário...


O armário ela sabe muito bem onde fica, que é lá no castelo de coral onde ela mora, naquele condomínio de gotas d’água.


Já a memória, a Sereia sabe que tem, mas não sabe exatamente onde fica... até já imaginou que ficasse no coração porque ouviu muito falarem de memória afetiva.


Ou numa capela numa colina, porque gostaria que fosse um santuรกrio que protegesse tudo o que ela jรก aprendeu nos mares dessa Terra.


Mas, isso a Sereia não sabe mesmo... só sabe que pode recorrer à memória, se precisar, mas sem garantias de que vai sempre conseguir resposta.

Além disso, quando faz as coisas no automático, sem precisar se lembrar de como fazer, não sabe se se lembrou sem precisar ser lembrada pela memória ou se não se lembra de precisar ter sido lembrada.

De qualquer forma, mesmo não sabendo se isso ou aquilo, às vezes encontra mais facilmente as coisas na memória do que no armário!


É que tem atalhos para a memória, pelos quais esta se mostra sem ter sido chamada.


E esses atalhos para a memória são muito ligados aos nossos 5 sentidos, são túneis que se abrem com estímulos visuais, sonoros ou olfativos, por exemplo.

Uma música ou vinheta que nos levam para um tempo que já passou.

A foto que traz para o agora o que já foi vivido.

Sabores e aromas que fazem essas duas coisas. O tato é que a Sereia não sabe muito bem... Não sabe porque não tem muita experiência nisso, já que fora d’água só sente a areia da praia e, dentro d’água, sente sempre a água. Mesmo que esta seja uma lâmina muito fininha.

Parece que o ar não se intromete no tato, mas a água sim.


A memória tem atalhos de entrada e saída, na verdade, já que também acaba armazenando coisas que a gente nem mandou guardar. As coisas acessam esses atalhos por si mesmas...


A Sereia gosta de pensar na memória como um sistema distribuído, como um armário labiríntico, mas organizado, de onde cada lembrança salta tendo sido, ou não, chamada.


E as lembranças, quando jorram, são como cabeleiras que escapam do chapéu...


Já os armários, mesmo sendo estruturas muito versáteis, não têm atalho nem para a sua entrada nem para a sua saída... Apesar de, às vezes, coisas inesperadas jorrarem deles também, como num polichinelo.


Mas a verdade é que as coisas espalhadas pelos cantos (e pelos mares), só estão assim espalhadas porque não acharam nenhum atalho para o seu armário...


E a Sereia descobriu, assim, que essa é a diferença básica entre a memória e o armário... A memória dela guarda lembranças e pensamentos coloridos enquanto o seu armário tem só as coisas que também são coloridas.


Pensamentos e lembranças são muito bons nessa coisa de achar atalhos, enquanto as coisas já não...


Por isso mesmo, ĂŠ muito bom nĂŁo descuidar desses primeiros...

porque eles podem pesar e se transformar numa muralha...


se a gente nĂŁo soltĂĄ-los na hora certa.

E, pra isso, a Sereia medita.


E descobre que pode ser mais difícil trocar de lembrança e de pensamento do que de roupa, apesar (ou por causa) dos atalhos.

Percebe que no armário tem coisas que fugiram da memória dela e que tem coisas que ela procura, que ela tem a impressão que fugiram do armário...

Que ela nem sabe se se materializaram mesmo ou se foram só ilusão.

Pensamentos coloridos convivendo com raciocínios intrincados em preto & branco, um invadindo o espaço do outro, desrespeitando o Tratado de Tordesilhas cerebral.

Como quando os chinelos invadem o espaço das camisetas no armário.


No armário da Sereia, essas invasões às vezes acontecem, embora ela tente setorizar o espaço e deixá-lo com o aspecto de um Mondrian.


Esse arranjo sempre dá certo, e não é só porque ela é meio minimalista e as roupas dela são, na maioria, muito básicas, consistindo de camisetões que seriam compridas até os pés dela, se ela os tivesse.

Porque, minimalismo à parte, não é só roupa que tem no armário de uma Sereia.


Lá também tem espaço para a sua coleção de vidros marinhos.

Achados que são verdadeiros tesouros, que ela recolhe e aproveita para limpar um pouco o meio ambiente externo ao castelo de coral onde ela vive.


Além de colecionar os vidros ela também faz montagens com eles. Faz isso no estilo Art Nouveau que trazem um ar mais refinado para o castelo de coral que, fora isso, é bastante despojado.

Às vezes, ela compõe um mix de borboleta e libélula que ela chama de borbobélula. E usa sucata de embarcações naufragadas.


Perucas ela também tem, para o caso de precisar se disfarçar... Nunca se sabe, né?

Além disso, chapéus com alguns acessórios, sempre fazem muito a cabeça de uma Sereia.


Sendo muito versátil, o armário da Sereia também funciona como uma pousada ou casa de hóspedes para os amigos dela que não sobreviveriam no fundo do mar, longe do Sol, da Lua e das Estrelas, além de todo aquele O2.


Ela tem 4 amigos muito próximos e, juntos, eles compõem uma trupe performática chamada os

5 elementos.

Cada um deles é um elemento que está relacionado com a sua própria natureza ou com o qual tem mais afinidade, e eles se saem muito bem contracenando juntos. Claro que a Sereia está naturalmente associada ao elemento água, que é a praia dela.


Grande amiga dela, a Mula

Sem Cabeça não fala muito sobre

o próprio passado, tendo sido vítima de perseguições ignorantes...

Agora, empoderada, solta fogo pelas ventas na terra dos homens sem pescoço, daí o elemento óbvio da vibe dela.


Outro muito querido, o Boitatá, protege as florestas daqueles que as incendeiam e, daí, o elemento dele ser terra. Até porque, a terra ajuda a apagar o fogo, se não tiver gravetos junto.

Tendo muito trabalho, hoje em dia, é raro ele ter uma folga pra se juntar aos amigos.


Mas, ele vem sempre que pode e a Sereia providencia uma escada especial, pela qual ele pode emergir sempre que quiser pra poder vigiar a Terra.


O mais descontraído dos amigos terrestres é o Saci... O elemento dele é o ar porque, como ele saltita, acaba pisando mais no ar do que em qualquer outra coisa.

Além disso, o cachimbo dele é um incenso ambulante que tinge o ar e o torna visível (embora meio poluído) e rastreável. Então, por essas e outras ele está largando o cachimbo.


A Sereia,

a Mula

Sem Cabeça,

o Boitatá

e o Saci

são muito conhecidos aqui no Brasil e dispensam apresentações, pois se apresentam há séculos nos palcos da nossa vida.


Os primeiros habitantes, os nativos dessa terra que hoje chamamos de nossa jรก conheciam esse quarteto e foi entre eles que o quarteto conquistou a sua fama inicial.

Provavelmente, foi deles que o Saci adquiriu o cachimbo que eles compartilhavam na mais santa paz.


Mas, tem o quinto elemento, que Ê meio importado e que, talvez, precise ser anunciado... É o Drugo.


Drugo – uma mini biografia esse é drugo, o dragão ele é uma draga devoradora de livros ele não os queima... ele os drena consome caracteres, espaços, bits, pixels assim, de conteúdo, ele vive drogado

drugo é alérgico, por isso ele se droga ele produz fumaça e espirra ele espirra e sai fumaça junto não sabe o que vem primeiro... o espirro ou a fumaça assim, desse jeito, ele vive num loop

drugo se cansa e não sabe quem é ele não é terráqueo nem draconiano ele está em ponto de ebulição ainda vai conseguir soltar vapor... em vez de fumaça assim sendo, ele vai viver melhor


Eles ensaiam no armรกrio da Sereia e se apresentam em cenรกrios variados e inusitados. Jรก foram numa floresta tropical.


Foram flagrados no cerrado, o que foi um desafio de sobrevivĂŞncia para a Sereia.


A apresentação no espaço sideral foi uma experiência inigualável.


Na regiĂŁo dos vulcĂľes foi uma brasa!


E, na sequĂŞncia, a turnĂŞ pelas montanhas nevadas foi muito festejada.


Então, de volta ao armário... porque este também guarda segredos. Assim como a memória. Mas não é nenhum esqueleto, não. Daqueles que ficam espreitando o nosso sossego.


O segredo muito bem guardado na memória, guardado a 7 chaves e espalhado em 7 armários pelos 7 mares, numa arca de tesouro distribuída é o nome da Sereia.

O nome dela tem letras que estão na memória e tem algumas outras também.

Tem uma organização que nenhum armário tem.

O nome dela é duplo... e eles rimam.

E o sobrenome dela é bem mais fácil de se encontrar do que um

náutilo... o ramo inglês da família são os Sea Scallops e o francês, os Cocquille Saint-Jacques.


É que a Sereia tem sobrenome, já que não é como a Vênus, que nasceu da espuma do mar quando um pedaço do Urano mergulhou...

Mas ela bem que gosta da montagem que fizeram dela, como uma Vênus modernosa.


O nome dela é puro mar...

Ondina... porque ela vive ao sabor das ondas. Como ela vive imersa no seu próprio oceano de céu, de luz, de sal e de sol, é uma Marina.

E por causa da família dela, ela é Vieiras.

Ocultado, mas espalhado em todos os sentidos e para qualquer

Fim... Ondina Marina Vieiras, nem precisa escrever pra não se esquecer.


Sereia em série... A série da Sereia “Metade o busto de uma deusa Maia Metade um grande rabo de baleia” Paralamas do Sucesso / Gilberto Gil


Sobre a autora

Claudia Schmidt, artista visual, frequentou a pintura clássica na adolescência, mas profissionalmente trilhou os caminhos da engenharia eletrônica onde se familiarizou com a criação de conteúdo via software, explorando a animação de formas geométricas e a agregação de fotos e cores. Dessa familiaridade nasceu o impulso de se manifestar artisticamente por meio dessas ferramentas.

Suas ilustrações iniciais lhe inspiraram reflexões corriqueiras que, reunidas, deram origem à Sereia e sua série. https://cschmidt303.wixsite.com/ilustras reúne o seu trabalho visual e um blog.


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