Conexao Literária 2017 - Anais do Evento

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2017 ANAIS DO EVENTO ISBN: 978-85-92525-19-4

ORGANIZAÇÃO: Juan Filipe Stacul Joelma Santana Siqueira Gracia Regina Gonçalves


EXPEDIENTE Organizadores Juan Filipe Stacul Joelma Santana Siqueira Gracia Regina Gonçalves Conselho Editorial Adelcio de Sousa Cruz Angelo Adriano Faria de Assis Edson Ferreira Martins Francis Paulina Lopes da Silva Gerson Luiz Roani Gracia Regina Gonçalves Joelma Santana Siqueira Sirlei Santos Dudalski Carlos Ferrer Plaza Dirceu Magri Elisa Cristina Lopes Iara Christina Silva Barroca Juan Pablo Chiappara Cabrera Luiz Carlos Moreira da Rocha Projeto Gráfico Renan Silva Magalhães Patrocínio Clock-Book Apoio Universidade Federal de Viçosa Departamento de Letras Programa de Pós-graduação em Letras Pró-Reitoria de Extensão e Cultura Fundação Arthur Bernardes - Funarbe University of Illinois at Urbana-Champaign Portuguese Language Program Department of Spanish and Portuguese

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SUMÁRIO Expediente ............................................................................................................................................................... 1 Sumário ..................................................................................................................................................................... 2 Apresentação .......................................................................................................................................................... 3 Lar Versus Não-Lar: A Rua como Esconderijo e Lugar de Fuga no Romance Quarenta Dias de Maria Valéria Rezende .................................................................................................................................. 4 História Literária: Uma História de Problemas ...................................................................................... 20 Uma Análise do Conto “Cadeira”, de José Saramago: A Literatura em Dois Planos ................. 34 O Olhar Urbano de Zuenir Ventura: Aspectos Semióticos Presentes na Obra Cidade Partida .................................................................................................................................................................................... 45 Jogo de Cena - O Espelho da Vida ................................................................................................................. 57 O Deus Cruel em Caim de José Saramago .................................................................................................. 65 Hiroshima Mon Amour (1959): Poesia Cinematográfica entre Amor e Guerra ......................... 80 Transversalizar Poéticas, Redesenhar Sentidos: Ferramentas de Intervenção na Poesia Brasileira Contemporânea .............................................................................................................................. 97 A Antropofagia Política de Carlos Drummond de Andrade - Interrelações entre Linguagem e Identidade Presentes em “Considerações do Poema” ................................................................... 111 A Poética da Memória em Carlos Drummond de Andrade: O Espaço da Escrita e a Presença da Família. ........................................................................................................................................................... 123 Reflexões sobre a Prática Docente no Ensino Superior: Experiências no Ensino de Literatura ............................................................................................................................................................ 134 Literatura e Tecnologia na Sala de Aula: A Mediação do Professor na Formação do Leitor de Textos Literários ........................................................................................................................................ 148 Leitura (s) de Clarice Lispector: Pós-Estruturalismo e Transnacionalismo em Ensino de Literatura Brasileira em Português Língua Adicional (Pla). .......................................................... 163 O Lúdico no Processo Ensino-Aprendizagem: Uma Análise das Aulas de Literatura no Ensino Fundamental....................................................................................................................................... 174 Identidades ao Vento: Da Negação Ponciana à Procura Venturiana .......................................... 187 Caminhos da Alteridade no Contemporâneo: Um Olhar sobre Duas Idosas nas Literaturas Brasileira e Moçambicana ............................................................................................................................ 199

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APRESENTAÇÃO Os Anais da Conexão Literária, ISBN 978-85-92525-19-4, reúnem os textos completos dos principais trabalhos apresentados nas sessões de comunicação do evento, assim como as transcrições das palestras, mesas redondas e videoconferências. O conteúdo está organizado de acordo com os eixos temáticos do evento, realizado no Departamento de Letras da Universidade Federal de Viçosa, nos dias 4 e 5 de maio de 2017. Sobre o Evento

Conexão Literária é um evento que pretende promover um diálogo entre professores de Literatura Brasileira, discutindo a leitura e o ensino de textos literários em língua portuguesa no Brasil e no exterior. Este evento debate o ensino de Literatura Brasileira em várias perspectivas e distintos lugares sociais. Para tanto, propõe-se um diálogo interdisciplinar entre abordagens do texto literário em sala de aula. Em acréscimo, discute-se questões de ordem sociocultural e política que se descortinam a partir da leitura, pesquisa e ensino do texto literário. Eixos Temáticos

O eixo temático principal deste evento é o Ensino de Literatura Brasileira em um contexto intercultural. Além disso, serão aceitos trabalhos nos seguintes eixos temáticos: Teoria, Crítica e Historiografia Literária; Literatura e Ensino; Literatura Comparada; Literatura Brasileira; Literatura Portuguesa; Literaturas Africanas e Literatura Afro-Brasileira; Identidade e Alteridade na Literatura.

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LAR VERSUS NÃO-LAR: A RUA COMO ESCONDERIJO E LUGAR DE FUGA NO ROMANCE QUARENTA DIAS DE MARIA VALÉRIA REZENDE Renata Cristina Sant’Ana1

RESUMO: Busco neste trabalho apresentar uma discussão em torno das teorias críticas contemporâneas da identidade, considerando a relação sujeito/lugar e as questões sociais e culturais que subjazem e permeiam essas relações. Trata-se de uma análise da representação do sujeito deslocado em Quarenta Dias (2014), de Maria Valéria Rezende, obra que apresenta em sua trama uma narradorapersonagem que vivencia o processo de migração interna, o que traz à baila questões envolvendo o sujeito deslocado da contemporaneidade, aquele que por razões diversas apresenta-se em trânsito, cruzando fronteiras regionais, culturais e sociais. Frente a essa dinâmica e suas questões tem-se os elementos responsáveis pelos conflitos identitários gerados pela ausência do sentimento de pertença a um novo lugar, e as negociações identitárias necessárias à essa nova condição de existir em um espaço “fora do lugar”. PALAVRAS-CHAVE: Literatura contemporânea, identidade, espaço, migração. ABSTRACT: I look for, in this paper, to present a discussion regarding contemporary critical theories about identity, taking into account the relation between subject and place, as well as the social and cultural subjacent matters that permeate these relations. This is an analysis of the representation of the displaced subject in Quarenta Dias (2014), by Maria Valéria Rezende, a novel that presents in its plot a narrator-character who experiences a process of internal migration, which moots matters regarding the displaced subject in contemporaneity, the one who, for various reasons, presents himself in transit, crossing regional, cultural, and social boundaries. Within this dynamic and its matters, there are the elements responsible for the identity conflicts generated by the absence of a feeling of belong to a new place, and the identity negotiations required by its new condition of existing in a space "out of place". KEYWORDS: Contemporary literature; identity; space; migration.

A humanidade ao longo dos séculos tem mostrado que os indivíduos, assim como as paisagens que lhe servem de cenário em cada fase de sua história, estão em contínuo movimento. Vínculos são rompidos, surgem os conflitos, os encontros e desencontros que exigem do ser humano a habilidade da reinvenção de si, como 1

Doutoranda em Estudos Literários na Universidade Federal de Juiz de Fora Conexão Literária 2017 - Anais do evento | ISBN: 978-85-92525-19-4 | 4


requisito necessário para garantir uma existência minimamente sã e adaptada às novas realidades. Assim, à medida que a história se faz, redesenha-se a cartografia não apenas dos territórios geográficos, mas também a das experiências individuais e coletivas. Trata-se do olhar direcionado para o lugar onde os indivíduos erguem os alicerces que lhes servirão de referência em meio ao movimento, tantas vezes caóticos, dos acontecimentos que acompanham a trajetória de cada um. Estes alicerces que embora tenham, por um lado, a solidez necessária à sustentação da existência humana, por outro, possui fragilidades que podem ameaçar desabar. Nesse sentido, cabe considerar a ideia de tradição (HALL, 2003), ou seja, a herança cultural e a memória compartilhada, elementos responsáveis pela formação identitária e que são contrapostos às descontinuidades e fragmentações que acometem os sujeitos frente às dinâmicas sociais, culturais e políticas relacionadas ao tempo e ao espaço de inserção de indivíduos e de coletividades. Em relação à ideia do que seria possuir uma identidade cultural Hall (2003) diz que: “Possuir uma identidade cultural é estar primordialmente em contato com um núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado o futuro e o presente numa linha ininterrupta. Esse cordão umbilical é o que chamamos de ‘tradição’, cujo teste é o de sua fidelidade às origens” (HALL, 2003, p. 29).

O momento em que é rompido esse cordão umbilical que liga o indivíduo às suas origens, vem acompanhado da dor, do incômodo da falta de lugar, do ofuscamento das referências que antes eram claras, causando um impacto, muitas vezes traumático, na vida daqueles que são obrigados a migrar. Neste trabalho, busca-se analisar a condição do sujeito deslocado em território nacional, a fim de aproximar os conflitos identitários vividos pela narradora-personagem do romance Quarenta Dias de Maria Valéria Rezende, das questões abordadas por alguns intelectuais da diáspora que viveram a experiência do exílio, como Stuart Hall (HALL, 2001, 2003), Paul Gilroy (GILROY, 2001), Edward, Said (SAID, 2003), e também pelo escritor, teórico e crítico literário brasileiro, Silviano Santiago (SANTIAGO, 2016), tendo como intuito demonstrar que o deslocamento forçado, mesmo nos movimentos internos, e independente da razão que o motivou, pode desencadear o sentimento de perda e os traumas semelhantes aos causados pelo deslocamento forçado para os territórios estrangeiros. Em um contínuo analítico, realiza-se também uma explanação teórica na busca da apreensão do conceito de lar (TERKENLI apud SANTOS e WESTPHALEN, 2010) nos contextos migratórios, e sua aplicação no âmbito desta análise, considerando os desarranjos identitários sofridos pela personagem em sua experiência de desterritorialização. Em suas Reflexões sobre o Exílio, Edward Said (2003) cita uma bela passagem em que Hugo de Sait Victor, um monge da Saxônia que viveu no século XII, diz ser “fonte de grande virtude para a mente exercitada aprender, pouco a pouco, primeiro a mudar em relação às coisas invisíveis e transitórias, de tal modo que depois ela possa deixa-las para trás completamente”. E completa afirmando que “o homem que acha doce seu torrão natal ainda é um iniciante fraco; aquele para quem todo solo é sua terra natal já é forte; mas perfeito é aquele para quem o mundo inteiro é uma terra estrangeira.” (SAID, 2003, p. 58). Esta passagem remete à imperfeição (aos olhos do monge saxão) de Alice (narradora-personagem do Conexão Literária 2017 - Anais do evento | ISBN: 978-85-92525-19-4 | 5


romance a ser analisado), e de tantos outros expatriados, inclusive os que como ela, sentem-se expatriados no próprio território nacional, por terem se deslocado involuntariamente da região de origem, e não conseguiram se desvencilhar do forte apego, do sentimento e da memória que guardam da terra natal. São eles indivíduos que experimentam a desordem identitária causada pela perda das referências culturais, em decorrência da ausência da terra natal e da obrigatoriedade da permanência nos espaços alheios e estranhos. O romance Quarenta Dias (REZENDE, 2014) é uma narrativa que trata da perda de nossas referências, quando a vida nos obriga a mudar, a desprender de coisas consideradas importantes na vida dos indivíduos, e por tratar de perdas, trata também da procura por algo que faça a vida se mover. Em meio a essa procura, Alice se lança solitária pelas ruas de cidade desconhecida de Porto Alegre, em um movimento, talvez inconsciente, de resistência à condição de submissão à vontade dos outros. É no espaço da rua que a personagem irá manifestar sua revolta diante da anulação de sua vontade de ter uma vida própria, em função dos interesses particulares de sua filha. É como um ato de rebeldia que Alice passa a perambular sem destino pelas ruas dos subúrbios de Porto Alegre, a fim de negar a hipocrisia ao seu redor, ao mesmo tempo em que tenta reencontrar um espaço de existência perdido, buscando um reencontro de si mesma para além dos limites instituídos por sua filha, representado simbolicamente na obra, pelo espaço de um novo apartamento escolhido (pela filha) para ela viver. O movimento de Alice ecoa como um grito das mulheres, que como ela, encontram-se já em fase madura, trabalharam a vida inteira, criaram seus filhos, tiveram uma trajetória e a partir da qual construíram uma história de vida. Alice, como tantas outras, pertence ao grupo das que não se adequam aos enquadramentos que lhe são impostos pelos valores instituídos pelo patriarcado, ironicamente representado no romance pela sua própria filha, personagem que representa simbolicamente elementos controladores, que submetem a vontade e a liberdade humana aos padrões impostos por uma sociedade uniformizadora de desejos e valores, naturalmente diferentes, tendo em vista a diversidade do humano. A imprevisibilidade do fato que acomete Alice e a leva a mudar de cidade, juntamente com a percepção dos valores que ela considera distorcidos para nortear a nova vida que lhe foi imposta, leva a narradora-personagem à beira da loucura, na medida em que ela sente perder-se de si mesma, mergulhada no abismo da ausência do sentimento de pertença àquele novo espaço geográfico, social e cultural. Perdida de si ela perambula e vai ao extremo do abandono de si mesma ao se lançar nas ruas da cidade, onde vivencia o desapego absoluto das coisas materiais, das pessoas, da casa, em uma circunstância que acaba se aproximando de um caminho paradoxal em que ela se perde ao mesmo tempo em que procura se encontrar. Diáspora moderna e a relação sujeito/lugar no processo identitário A experiência involuntária da migração se relaciona à dinâmica da dispersão de indivíduos ou de grupos de cidadãos em consequência de perseguições e/ou conflitos políticos, religiosos, étnicos, dentre outros. A este Conexão Literária 2017 - Anais do evento | ISBN: 978-85-92525-19-4 | 6


movimento atribui-se tradicionalmente o sentido do vocábulo diáspora, que segundo Silviano Santiago (2016), em seu ensaio Deslocamentos reais e paisagens imaginárias – o cosmopolitismo do pobre2 necessita ser repensado em sua herança crítica, isto porque “ se questionada a delimitação de sentido, descobrir-se-á que seu manto semântico tornou-se inadequado nos dias de hoje” (SANTIAGO, 2016, p. 15). Para o teórico e crítico brasileiro, o sentido tradicionalmente atribuído ao termo diáspora não é mais capaz de abarcar as movimentos contemporâneos como por exemplo, aquilo que ele irá denominar de “dispersão anárquica”, ou seja, o deslocamento de indivíduos e grupos de familiares que decidem migrar de uma região para outra, não necessariamente por razões de perseguição política ou preconceito, e sim por estarem a procura de melhores condições de vida nas regiões mais desenvolvidas do mundo ocidental. Assim, o termo diáspora se expande para além do movimento involuntário que tradicionalmente o caracteriza. No ensaio acima mencionado, Silviano Santigo lista dez observações de caráter metodológico (sobre o conceito de diáspora) que lhe deram a garantia de que poderia criar a categoria analítica de “Cosmopolitismo do Pobre”3 e estabelece um contraponto entre a dispersão anárquica (movimento voluntário) e a dispersão por preconceito e perseguição (movimento involuntário). Em suas elaborações Silviano Santiago parte das considerações de Stuart Hall sobre a diáspora afrocaribenha e de Octávio Paz sobre o imigrante mexicano na América do Norte, mais especificamente o pachuco, que “é ao mesmo tempo, malandro, dândi e sedutor. Um desterrado às avessas, vítimas do racismo ianque” (SANTIAGO, 2016, p. 20). Santiago demonstra em seu ensaio que o exílio voluntário “põe abaixo a proclamada eficiência do desenvolvimento nacional e, silenciosamente, conclama os cidadãos letrados à crítica contundente e corrosiva, ao fracasso civilizacional e/ou governamental do país natal abandonado” (Idem, p. 20). A ideia que o teórico aponta em suas colocações sobre à diáspora moderna, diz respeito ao fracasso do Estado-Nação originário (colonizadores, metrópoles do primeiro mundo) no processo de assistência (trabalho, saúde, educação etc) a todo e qualquer cidadão sob sua jurisdição. Para ele, é neste ponto que se situa a crítica anárquica e radical que vem embutida na viagem dos indivíduos e dos grupos de pessoas que decidem migrar para as metrópoles mais desenvolvidas, em busca de melhores condições de vida. O autor afirma que “o fracasso maior do sistema internacional, no entanto, deve recair nos dias de hoje sobre o mundo globalizado” (SANTIAGO, 2016, p. 21) e que “a visada crítica proposta pela análise do migrante moderno é, pois, desconstrutora do eurocentrismo. (idem, p.21). Por globalização entende-se um complexo de processos e forças de mudança, que segundo Stuart Hall (2001) atuam numa escala global, atravessando fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo que surtem seus efeitos sobre as identidades culturais. Dentre estes efeitos está o surgimento de novas identidade - as Palestra originalmente apresentada na Universidade Nova de Lisboa, durante o simpósio “Fronteiras, cosmopolitismo e nação nos mundos ibéricos e íbero-americanos”, 20 a 22 de abril de 2015. Organização de Maria Fernanda de Abreu e Renato Cordeiro Gomes. 3 SANTIAGO, Silviano. O Cosmopolitismo do Pobre: crítica literária e crítica cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004 2

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identidades híbridas. Para Stuart Hall, a globalização tem o efeito de “contestar e deslocar as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação, tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas” (HALL, 2001, p. 87). Frente a esta condição, não é mais possível situar o sujeito deslocado da modernidade tardia em espaços culturalmente puros, na ilusão de que aquilo que outrora era tido como sua identidade nacional, mantenha-se ainda de forma inalterada, sob um invólucro capaz de isolá-lo das interferências externas, das trocas e das misturas inevitáveis em um mundo globalizado. Nesta seção em que trato da diáspora como elemento introdutório para a reflexão seguida da análise literária que apresentarei mais adiante, recorro ao pensamento empreendido por Paul Gilroy (2001) sobre a diáspora negra afim de uma melhor elucidação deste conceito e suas implicações políticas. O modelo do Atlântico Negro proposto por Gilroy apresenta as culturas negras e suas “formas estéticas e contra-estéticas, sua distinta dramaturgia da recordação que caracteristicamente separam genealogia de geografia, e o ato de lidar com o de pertencer” (GILROY, 2001, p. 13). O trabalho de Gilroy apresenta o surgimento da contracultura negra como resultado da consciência histórica do sujeito diaspórico frente ao resgate de sua memória para a construção da intercultura da diáspora, e sua estruturação política. Para ele “a ideia de diáspora se tornou agora integral a este empreendimento político, histórico e filosófico descentrado, ou mais precisamente, multi-centrado”. (idem, p. 17). De acordo com Gilroy, a discussão contemporânea sobre o conceito de diáspora surge como uma resposta mais ou menos direta aos ganhos translocais advindos do movimento Black Power durante a Guerra Fria. A teoria baseada na noção de diáspora por ele defendida é crítica e contrária ao poder coercitivo e autoritário da unanimidade racial, ao absolutismo étnico e às concepções totalitárias e até mesmo fascistas sobre a comunidade política, pois para ele, a diáspora surge como um conceito oposto ao da metafísica da “raça”, da nação e de uma cultura territorial fechada. Trata-se de algo que ativamente perturba a mecânica cultural e histórica do pertencimento, na medida em que se rompem os lações entre lugar, posição e consciência e portanto, rompe-se também o poder fundamental do território na formação da identidade do sujeito e das coletividades. A diáspora desafia o “mito do renascimento nacional” e sua propensão não nacional é ampliada quando o conceito se apoia em relatos antiessencialistas da formação de identidade como processo histórico e político, afastando-se assim da ideia de identidades primordiais que se estabelecem supostamente tanto pela cultura (única) como pela natureza (biológica). Segundo o autor, os povos da diáspora reconheceram que os efeitos do deslocamento espacial tornavam o retorno à origem algo inacessível e irrelevante, na medida em que a história não voltaria mais atrás para reparar os erros e as perdas. Nesse sentido, o pensamento de Gilroy encontra o de Stuart Hall (2003), intelectual também de origem diaspórica, ao dizer que “os momentos de independência e pós-colonial são momentos de luta cultural, de revisão e de reapropriação. Contudo, essa reconfiguração não pode ser representada como uma

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‘volta ao lugar onde estávamos antes’, já que, ‘sempre existe algo no meio” (HALL, 2003, p. 34). O retorno ao local de origem, visto por esse ângulo, torna-se impossível, no sentido de que o processo de deslocamento é atravessado por diferentes fios que compõem uma malha final multicultural e híbrida, produzida através de entrechoques culturais que deixam marcas de que houve um contato, e este, por sua vez deixou vestígios que passaram a fazer parte da identidade do sujeito e das coletividades. Em relação ao conceito de espaço, Gilroy diz que ele é transformado a partir do momento em que passa a ser compreendido como um “circuito comunicativo que capacitou as populações dispersas a conversar, a interagir e a sincronizar significativos elemento de suas vidas culturais e sociais” (GILROY, 2001, p. 21). Assim, sua concepção de diáspora é distinta porque enxerga a relação não como uma via mão de única, mas como algo mais, que implica em trocas e negociações, resultando sempre no surgimento de elementos imprevisíveis e não planejados, oriundos de fontes as mais diversas. Sua ideia-chave da diáspora consiste em “não ver a ‘raça’, e sim formas geopolíticas de vida que são resultantes da interação entre sistemas comunicativos e contextos que elas não só incorporam, mas também modificam e transcendem” (idem, p. 25). Conforme podemos ver, no contexto de mundo em movimento e em relação não há mais espaço para enraizamentos, embora ainda haja brutal resistência ao Diverso, seja por meio do fechamento das fronteiras para aqueles que não desistem de ter esperança e se arriscam na tentativa de adentrar outro país, seja pela intolerância demonstrada através dos ataques de grupos fundamentalistas, como nos têm mostrado as páginas dos jornais. De todo modo a dinâmica do deslocamento não cessa, tenha a dispersão o caráter anárquico voluntário, ou seja ela forçada pelos conflitos ou outros agravantes que impeçam o indivíduo de permanecer na sua terra natal. Repensar o conceito de diáspora e suas implicações sociais, culturais e políticas no processo de (trans)formação ou de produção identitária torna-se necessário no âmbito deste estudo, visto que tem-se como proposta a análise do que vem a ser o lar contraposto a um não-lar, levando-se em conta os desarranjos identitários sofridos pelo sujeito deslocado e as negociações que ele terá que realizar a fim de preservar aquilo que resta de si e de seu universo subjetivo diante de situações que envolve a brusca mudança de espaço e de vida. As representações do lar e do não lar em Quarenta Dias “O primeiro lar é a mãe” (Terkenli, 1995) No contexto de um mundo em movimento e em relação, tem-se um sujeito que se encontra para além dos confinamentos em seus espaços de origem, postos de frente às imprevisibilidades que esta abertura pode lhes proporcionar. Trata-se do sujeito deslocado da contemporaneidade e suas vivências identitárias marcadas Conexão Literária 2017 - Anais do evento | ISBN: 978-85-92525-19-4 | 9


por conflitos e negociações de ordem interna e/ou externa. No romance Quarenta Dias de Maria Valéria Rezende, a narradora-personagem apresenta seu drama vivido, sua percepção do lugar de origem e sua dificuldade em se ver distante do lar, como um sujeito fora de lugar, semelhantemente aos indivíduos que vivenciam o exílio, sendo ele voluntário ou não. A obra narra a peregrinação de Alice pelas ruas de uma cidade estranha, habitada por pessoas desconhecidas, vivenciando situações impensadas, que não constavam no script da vida comum de uma mulher já madura, mãe, professora, cujo marido desapareceu no período da ditadura militar, e que encontrava-se fixada no território seguro do seu lar na cidade de João Pessoa. Um lugar construído no dia-a-dia de sua história, em um ciclo seguro, contínuo e ao mesmo tempo renovado. Ali, no território protegido do lar, uma vida contínua pulsava, fazia fluir o trabalho, suavizava o cansaço das agitações do mundo lá fora. Ali dentro, um sustento de si para alimentar o encontro com os outros, os parentes, os amigos, os conhecidos, aqueles ali de perto, que também entravam e saiam de suas casas para o convívio já tão familiar, mantido ao longo dos anos naquele mesmo lugar. Neste espaço construído ao longo de sua vida, Alice também se construiu, se ergueu, se cobriu nos momentos em que a vida pedia proteção, se abriu para o renascer de cada dia fazendo cumprir o ciclo cotidiano de sua existência. O marido desaparecido pra sempre, a filha já casada e vivendo do outro lado do país, no Rio Grande do Sul, da forma como normalmente seguem os acontecimentos comuns da vida de cada pessoa: (...)eu não havia de largar tudo o que custei tanto a conquistar, meus velhos amigos, os alunos que se tornavam novos amigos, a praia, o Atlântico todinho na minha frente, planos de viagens e atividades que tinha tido de adiar até então, mas ainda em tempo de realizar, uma vida que eu considerava feliz, apesar das cicatrizes. (REZENDE, 2014, p. 27).

O estudo da experiência do sentir-se em casa e do seu oposto traz à baila a necessidade de se fazer uma revisão do conceito de lar, diferenciando-o da ideia de lugar. Segundo Terkenli (1995), lar é o lugar que responde à necessidade de refúgio, de um quadro de referência e de um contexto de autoidentificação. Deste modo, a noção de lar adquire sentidos de condições de espaço físico e social que implica em uma construção contínua e significativa de um contexto particularizado, subjetivo, que se torna fonte de identificação do indivíduo, fazendo com que este “sinta-se em casa” em função do sentimento de pertencimento que surge das situações vivenciadas que foram se acumulando ao longo da vida e dos sentimentos envolvidos nestas vivências que podem estar ancoradas tanto no passado quanto no presente, mas sempre direta e fortemente vinculadas ao eu que se situada em um determinado lugar. Trata-se de “geografias pessoais” (TERKENLI, 1995 apud SILVA e WESTPHALEN, 2010, p. 230), como exemplifica o fragmento acima, extraído do romance, ou seja, o tipo de relação que se estabelece entre os elementos sujeito/lugar/tempo de modo integral a ponto de fazer consolidar o sentimento de pertencimento que faz com que o indivíduo “sinta-se em casa”. Em contextos migratórios, o rompimento entre estes elementos é inevitável, visto que o deslocamento determina o início de um novo tempo fixado sobre um novo espaço pressupondo a ruptura com estes mesmos elementos que por sua vez, Conexão Literária 2017 - Anais do evento | ISBN: 978-85-92525-19-4 | 10


ficaram retidos no passado, desencadeando o sentimento desconcertante de perda que se abate sobre a protagonista Alice: “- Entrei nesse apartamento – ainda não consigo dizer ‘em casa’, tento, mas não há jeito – agora há pouco, exausta, carregando um furdunço no peito, sem saber onde despejar essa balbúrdia de imagens, impressões, sentimentos acumulados (...) desabei no sofá branco que eu detesto, mas Norinha adorou (...)” (REZENDE, 2014, p. 13).

Outrora, o sentimento em relação ao espaço da casa e aos objetos era imbuído em afetividade e significações para além do caráter funcional a que se prestavam, como podemos observar no fragmento abaixo: “A última peça a sair de minha casa foi a cadeira de balanço austríaca com a palhinha gasta protegida por uma almofada de ponto cruz, restos da casa da minha vó, onde eu tinha arriado pra ficar, amuada, assistindo ao rebuliço, à derrocada da minha vida tão boínha (...) A almofada também foi. Fiquei eu, de pé, no meio da sala do apartamento vazio, sentindo-me também oca como se o aspirador de pó, que Elizete brandia pela casa agora vaga, tivesse chupado meu recheio pra fora e a querida prima fosse vender minhas tripas na garagem dela, junto com o resto de bugigangas. Que nada!, ainda estava tudo lá dentro porque, por uns segundos, senti tontura e enjoo.” (REZENDE, 2014, p. 8)

Os objetos sentimentalmente descritos acima, não apenas têm suas histórias, como ajudaram na construção da história da casa, e por conseguinte, da história de Alice, ou seja, tanto a casa quanto os seus objetos, mais que simples adornos, apresentam-se no âmbito desta análise, como elementos constituintes do que Terkenli (1995) chama de geografia pessoal. O autor considera a construção da geografia do lar, ou seja, a relação que se processa na interface entre o eu e o seu mundo, como um dos fatores centrais para a apreensão da ideia de lar. A esta ideia está ligado também o lócus em que a dualidade eu/outro, fundamental para moldar o lugar do eu no mundo, toma forma (TERKENLI, 1995 apud SILVA e WESTPHALLE, 2010, p. 230). Uma segunda dimensão do lar considerada também como fundamental para a noção de lar, diz respeito à dimensão histórica do tempo no que tange os hábitos que repetitivamente se desdobram em contextos específicos e acabam por diferenciar determinados locais do resto do mundo conhecido. O autor considera a repetição como sendo elemento essencial na transformação de um lugar em lar, pois ela cria a rotina, esta que por sua vez passa a representar um tipo de estratégia de sobrevivência e realização pessoal que resumem lições aprendidas através de tentativas, sucessos e erros passados. No fragmento a seguir, podemos perceber o hábito da personagem Alice de caminhar pela praia em sua terra natal, João Pessoa, como um ato que se repetiu várias vezes ao longo de sua vida naquela cidade, e que foi sendo interiorizado, fazendo existir um sentimento de intimidade e familiaridade entre sujeito e lugar, em um tempo histórico e particularmente situado, responsável por fazer com que ela tivesse criado por aquele local o sentimento de pertença, ou seja, o sentimento estar em seu lar: Conexão Literária 2017 - Anais do evento | ISBN: 978-85-92525-19-4 | 11


“Quando Elisete se distraía de sua extremada solicitude pra comigo, como se eu fosse uma doente grave à espera da cirurgia ou do milagre salvador que seria meu transplante definitivo para Porto Alegre, eu fugia pra longas caminhas à beira-mar, querendo empapar-me de maresia que limpasse por corrosão aquela raiva que me doía tanto. Ai que falta me faz a maresia, aqui em Porto Alegre” (REZENDE, 2014, p. 38)

Assim, a consideração do tempo e suas associações com o presente e o passado acarreta a construção da memória, de maneira especial em suas associações com o lugar. De modo análogo, o conceito de identidade liga-se à história, à cultura ao tempo e ao lugar que tornam-se pontos de referência individuais e coletivos importantes na construção de identidade e por conseguinte, na localização da memória. Segundo Halbwachs (2006), sentimentos e pensamentos têm sua origem em meios e circunstâncias sociais definidos; em consequência, “toda memória coletiva tem como suporte um grupo limitado no tempo e no espaço” (HALBWACHS, 2006 apud SILVA e WESTPHALEN, 2010, p. 231). Essa compreensão aponta para o terceiro elemento, considerado por Terkenli (1995) com sendo também mais um, o terceiro fator central à ideia de lar. Trata-se do componente social, da capacidade do indivíduo de estabelecer um círculo de relações sociais que validam um indivíduo como ser humano. Para o autor, lares individuais são frequente e intimamente ligados a ou mesmo articulados por associações familiares ou comunitárias num sentido mais amplo, lar pode ser delineado a partir de parâmetros étnicos, nacionalistas, cívicos ou ideológicos (TERKENLI, 1995 apud SILVA e WESTPHALLEN, 2010, p. 230). No objeto literário foco desta análise, observa-se a identificação, ou a falta dela, entre indivíduos que migraram do nordeste para o sul do Brasil e que mesmo não tendo vínculos familiares ou de amizade entre si, ainda assim percebem-se como igualmente pertencentes, ou não, a determinados espaços tanto no macroespaço nacional quanto no microespaço urbano, social e cultural. A não identificação ideológica, ela fica evidente na não aceitação por parte de Alice, da atitude autoritária de seus familiares, em especial, de sua filha Norinha ao determinar a razão, o quando e o como se daria a mudança dela de João Pessoa para Porto Alegre: “Já vou marcar a passagem, dia 22 de setembro a senhora parte daqui e ponto final. (...) Eu vim, no dia marcado pelos outros” (REZENDE, 2014, p. 38). Norinha, a filha que vivia no Sul do país, obcecada pelo desejo de se tornar mãe, insistia em contar com a ajuda de sua mãe Alice para auxiliá-la nos cuidados com a criança, de modo a não ter que abrir mão de usa carreira profissional. Para realização do desejo da filha, Alice teria que se tornar avó, uma avó cuidadora, em uma nova cidade, uma nova casa, nova rotina e novos convívios. Entretanto, Alice, definitivamente, não estava disposta a mudar. Alice não sonhava em se tornar avó e nem em se mudar para Porto Alegre, porém, sob forte insistência e chantagens emocionais, Alice resistiu enquanto teve força, mas acabou sendo vencida pelo cansaço e viu-se sucumbir à pressão da filha, vindo então a migrar para o sul:

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Você vai pra Porto Alegre, sim, e não se discute mais isso, todo mundo vê que é o melhor, é sua obrigação acompanhar sua filha única, só você é que não aceita, parece um jumento empacado na lama, continuar com umas besteiras desses. Eu cedi, vergonhosamente. Foi isso. O resto é consequência. (REZENDE, 2014, p.34)

Começa então o processo de desconstrução da solidez de um modo de viver que de uma só vez foi deixado para traz. Alice foi-se embora deixando para trás muito de si. Muitas coisas se perderam dela em meio ao percurso da viagem, outras poucas, Alice conseguiu salvar: Enquanto ali se desmontava minha cabeça, minha casa, minha vida, cá no Sul, Norinha montava, à maneira dela, ao gosto dela, o que eu havia de ter e ser no futuro próximo. (...) Vida nova!, essa velharia fica toda aqui e a senhora embarca comigo no fim de julho. (REZENDE, 2014, p. 37)

Alice, a narradora-personagem, vivencia a angústia do desterro em território nacional e experimenta o sentimento do exílio descrito por Edward Said (2003), ao afirmar que (o exílio) trata-se de “uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais pode ser superada” (SAID, 2003, p. 46). Alice parece não acreditar na possibilidade do retorno, visto que, em nenhum momento da narrativa é apresentado sequer indícios de que um dia isso possa vir a ocorrer. A esse respeito Said diz que “o páthos do exílio está na perda de contato com a solidez e a sofisticação da terra: voltar para o lar está fora de questão” (SAID, 2003, p. 52). Alice parece vivenciar o mesmo sentimento daqueles que sofreram o deslocamento forçado por motivos de preconceito, perseguição, conflitos políticos, étnicos ou religiosos que geram a dispersão que caracteriza a diáspora tradicional, embora sua mudança para do nordeste para o sul, tenha sido meticulosamente planejada e preparada por sua pra própria filha, em função de sua vontade particular: “(...) a revolta roendo minha vontade, incapaz sequer de abrir o livro que trazia na bolsa, o reembarque em outro avião, primeiros passos da travessia de minha primeira vida a outra vida, que eu não queria” (REZENDE, 2014, p. 38-39).

Para Stuart Hall (2003), numa forma sincrética, os elementos nunca estabelecem uma relação de igualdade, e sim, são sempre inscritos diferentemente pelas relações de poder. Dessa relação, quase sempre de subordinação e dependência, nascem os conflitos identitátios e culturais do sujeito e das coletividades. No caso do objeto literário, foco desta análise, o que se percebe é um embate de forças conflitantes entre mãe e filha, vontades que se confrontam como em um campo de batalhas, como ilustra a passagem em que Alice diz: – “ Que remédio senão obedecer? Eu já estava pegando o jeito de me comportar como filha da minha filha” (REZENDE, 2014, p. 74). Norinha, a filha, alcança o seu domínio no momento em que consegue convencer (ou forçar?) a mãe a se mudar em função de Conexão Literária 2017 - Anais do evento | ISBN: 978-85-92525-19-4 | 13


seu interesse particular. Alice, a mãe, sente a angústia de ter sido dominada, e ter que viver sob controle da filha, em um lugar totalmente estranho e fora do seu mundo. Alice irá viver o seu exílio, “um estado de ser descontínuo, separado das raízes, da terra natal, do passado” (SAID, 2003, p. 50). “Fui tangida por entre poltronas e sofás brancos atulhados de terríveis almofadas de todos os tons entre o rosa-bebê e o roxo-quaresma, grandes cubos, paralelepípedos, prateleiras, tudo branco ou preto, por cima de um tapete branco felpudo. Custei a reconhece, numa prateleira preta, parte de meus velhos livros deslocados e encabulados naquele cenário emergente de novela de televisão, entre coisas impessoais, aqui e ali a mancha cor de jerimum ou vermelho-sangue de algum objeto igualmente geométrico e sem sentido, sem história nem nexo, coisas espalhadas a esmo ou segundo uma intenção inteiramente alheia e incompreensível pra mim. Será que minha filha contratou um decorador modernoso, daqueles que as próprias lojas de móveis ‘planejados’ oferecem?” (REZENDE, 2014, p. 40-41) “(...) aquele quarto sem nenhum caráter, mal reconhecendo minha própria figura, fora de lugar, refletida numa estreita parede coberta de cima a baixo por um incontornável espelho bem em frente à cama.” (Idem, p. 42) “Eu tentanto me orientar na geografia deste apartamento (...) Ah, meu apartamento velhinho, sem suíte, no Cabo Branco! Com certeza se tivesse suíte eu não tinha conseguido comprar. E nem queria” (Idem, p. 47) “Naquela primeira manhã, sem coragem de decifrar os armários e eletrodomésticos desta cozinha metida a besta (...)” (Idem, p, 47) “Naquele meu terceiro dia na vaga cidade pra onde me transplantaram à força, acordei com uma ventania atravessando o apartamento (...)” Fui preparar e tomar café com saudade dos meus velhos móveis, por onde andarão eles? (...) saudades de meu antigo chão de cerâmica fresca pra se pisar descalça no calor, sem tapete nenhum pra empatar a limpeza. (Idem, p. 54).

De acordo com Hall, a história mostra que os processos de deslocamento forçado já ocorridos, e que caracterizam a diáspora tradicional, são, de modo geral, violentos e traumáticos. Sobre a sociedade caribenha, por exemplo, Hall afirma que “em vez de um pacto de associação civil lentamente desenvolvido, tão central ao discurso liberal da modernidade ocidental, nossa ‘associação civil’ foi inaugurada por um ato de vontade imperial (HALL, 2003, p.30). No romance Quarenta Dias temos na figura de Norinha, filha de Alice, um símbolo da violência gerada pela vontade imperial. O que significa a imposição da filha, e suas traquinagens para realizar a ruptura de sua mãe com seu lugar de origem, senão o exercício da dominação? Como estratégia de resistência ao processo de dominação a que se viu submetida e frente a dor de ter tido sua vida recortada, Alice faz do mergulho no submundo das ruas e de seu esforço para encontrar Cícero Araújo - um nordestino que foi para Porto Alegre, e que ela fica sabendo que a mãe, lá em João Pessoa, nunca mais teve notícia - um caminho para a busca e para o reencontro consigo mesma. Sem saber ao certo se Cícero ainda vivia em Porto alegre, incumbiu-se da Conexão Literária 2017 - Anais do evento | ISBN: 978-85-92525-19-4 | 14


tarefa de encontra-lo, e fez desta procura o seu modo de conseguir superar o trauma de ter tido sua vida rompida: Um rumo vago. Que eu seguiria se quisesse. Talvez tenha sido o nome estranho do lugar que me despertou da letargia. Talvez, tenha sido, sem que eu percebesse, a dor da outra mãe tomando o lugar da minha, um alívio esquisito, uma distração, e eu quis, sim, sair por aí, à toa, por ruas que não conheço atrás do rastro borrado de alguém que eu nunca vi. (REZENDE, 2014, p. 92)

Segundo Silva e Westphallen (2010), o pensamento individual encontra o dos outros na encruzilhada das redes de múltiplas solidariedades que correspondem aos grupos aos quais se está significativamente conectado, porque em sua base está uma dimensão espacial: “é no espaço que para mim represento a existência sensível daqueles com quem entro em contato em certos momentos” (HALBWACHS, apud SILVA e WESTPHALEN, 2010, p. 231). Nesta perspectiva, podemos compreender o sentimento de identitificação com a dor da outra mãe que se abate sobre Alice como um tipo de vínculo regional-afetivo que a faz sair em busca de um conterrâneo desconhecido que desaparece na cidade também desconhecida. Talvez o fato de sair em busca de alguém que saiu do mesmo local que ela e sumiu no mesmo local para onde ela também foi a desperte um sentimento de (re)encontro, nem que seja de si mesma. Nessa rede de múltiplas solidariedades, citada por Halbwachs (HALBWACHS, apud SILVA e WESTPHALEN, 2010, p. 231), pode-se perceber também o componente social que atua como fator central para a noção de lar, no sentido das associações familiares ou comunitárias delimitadas por parâmetros regionais que aproximam pessoas que se encontram fora do seu lugar de origem, mas que possuem costumes, hábitos, linguagem, ou seja, um tipo de cultura local que as tornam mais familiares umas às outras. É o que acontece quando Alice encontra outros nordestinos que como ela, ainda que por motivos diversos, vieram a migrar para a capital gaúcha. Assim, em meio aos descompassos familiares, surgem no interior da narrativa alguns encontros que permitem a Alice compartilhar o sentimento de identificação com outros “brasileirinhos” como ela, que é como são chamados os migrantes que vêm do nordeste para Porto Alegre. A primeira pessoa com quem Alice consegue estabelecer uma relação social é Milena, que chega em sua casa para ajudá-la como diarista nos serviços domésticos: “(...)É Dona Alice, é? E já foi entrando, essa simples frase me confirmando que aquela ali também vinha de bem pra lá do Trópico de Capricórnio, brasileirinha feito eu! Milena era da Bahia, podia vir, sim, um dia por semana (...). Eu no fundo contente de ter companhia da minha própria espécie” (REZENDE, 2014, p. 67)

O encontro com Milena pareceu reavivar em Alice um tipo de memória coletiva ligada ao seu contexto espacial anterior, permitindo rememora-lo mesmo estando distante, como se ele estivesse conservado na figura de outra mulher nordestina que como ela também viera a migrar para o sul. Ter encontrado Milena Conexão Literária 2017 - Anais do evento | ISBN: 978-85-92525-19-4 | 15


foi como ter encontrado uma referência identitária cultural que havia sido deixada bruscamente para traz, de modo que o encontro trouxe-lhe um pouco de conforto e alegria: “A história era dura, mas Milena contava devagar, sem aperreio nem raiva, entremeando a fala com seus ‘não sabe?’ e risadas que me faziam rir também, de novo, depois de passar tanto tempo emburrada. Nosso almoço, as duas juntas aqui na mesa da cozinha, demorou mais do que o costume pelo gosto da conversa se alongando.” (...) Me sentia especialmente bem. Afinal, a vida aqui até podia” (REZENDE, 2014, p. 69)

A identificação e o sentimento de familiaridade causado pelo encontro com Milena sugere a ideia de como os constructos humanos e culturais sustentam necessidades capazes de recriar o modo de pertencer a um determinado lugar de modo positivo, reavivando no sujeito do sentimento de pertença, ou seja a possibilidade de reinventar-se em um novo lugar de viver, visto que, segundo Terkenli (1995), territórios espaciais e sociais podem ser concebidos através de projeções individuais e ou grupais e pode-se falar em regiões-lar individuais ou coletivas conforme o significado seja atribuído pelo indivíduo ou pelos membros de um grupo. De acordo com o autor, uma cidade ou bairro representa um lar para seus habitantes e seus vários conteúdos e características tornam-se signos do lar. A própria ideia de lar é simbólica dos sentimentos, circunstâncias ou tipos de relacionamentos que vêm a representar em distintas épocas e culturas, tais como as relacionadas a povos, modos regionais de vida e as que se relacionam com sentimentos de conforto, tranquilidade, relaxamento e familiaridade (TERKENLI, 1995, apud. SILVA e WESTPHALEN, 2010, p. 232). A dor da mãe diante do filho que foi para o sul e desapareceu, o encontro com Milena e sua história também de muita dureza foi se ligando à história de submissão a vontade da filha, seguida pelo abandono, pelo estranhamento e solidão que a acompanharam Alice em seu novo lugar de viver, ainda muito distante daquele onde sentia ser seu verdadeiro lar, pois o senso de pertencimento de modo algum viera a se manifestar. Segundo Terkenli (1995), pessoas espacial ou socialmente constrangidas quanto ao seu enraizamento espacial, social ou temporal têm dificuldade em associar lugar com lar, porque não desenvolveram conhecimento e familiaridade com o novo espaço, seja porque não foi incorporado a suas rotinas habituais, seja porque não tem controle sobre ele ou porque não se identificaram pessoalmente com ele (TERKENLI, 1995 apud. SILVA e WESTPHALEN, 2010, p. 234). É completamente perdida de si e desnorteada tanto dentro do novo apartamento quanto fora dele que Alice se lança nas ruas à procura de Cícero Araújo, vivenciando um processo que a faz experimentar a vida em situação de rua. Ao acompanhar o vagar perdido da ex-professora que se transforme em andarilha, nos indagamos se é por Cícero mesmo que Alice está a procura. Afinal, qual o sentido em se perder pelas ruas de Porto Alegre, solitária, exposta aos perigos da violência urbana, ao frio da noite, à pouca comida, às dificuldades para manter a higiene pessoal, e todas as formas de escassez a que são submetidas as pessoas em situação de rua? Conexão Literária 2017 - Anais do evento | ISBN: 978-85-92525-19-4 | 16


Alice, na verdade, parece ter se perdido antes, dentro das paredes frágeis do (des) afeto da filha e debaixo daquele teto impessoal e pré-fabricado do apartamento onde havia sido alojada. Assim, saiu a perder-se na esperança, talvez inconsciente, de que através da procura por Cícero, viesse, quem sabe, a encontrarse. Pelas janelas do seu interior Alice lançou-se nas ruas e viveu quarenta dias como andarilha pelos subúrbios não só da cidade, mas pelos subúrbios da sua existência. Entregou-se ao lugar nenhum que é o lugar estranho, sem ninguém, com o pouco dinheiro que possuia e que logo acabou, sem contato com os seus “de casa”, e assim, vivenciou sua transformação gradativa em habitante das ruas de Porto Alegre: Continuei por semanas minha romaria pelo avesso da cidade, explorando livremente todas as brechas quase invisíveis pra quem vive na superfície, pra cá e pra lá, as vezes à tona e de novo pro fundo, rodoviária, vilas, sebos, e briques, alojamentos, pronto socorro, portas de igrejas, de terreiros de camdomblé, procurando meus iguais, por baixo dos viadutos, das pontes do arroio Dilúvio, nas madrugadas, sobreviventes, sesteando nas praças e jardins, debaixo dos arcos e marquises, sob as cobertas das paradas de ônibus desertas, vendo o mundo debaixo pra cima, dos passantes, apenas os pés. (REZENDE, 2014, p. 235)

As pessoas que vivem na rua, não nasceram lá, elas chegaram lá, por motivos diversos, passaram por mudanças, sofreram as mesmas transformações vividas e narradas por Alice. Nas ruas uma identidade nova se cria, e porque não dizer que uma cultura nova se constrói? E isso atestaria o que Stuart Hall diz a respeito da cultura, que se trata de uma produção. “Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar” (HALL, 2003, p. 43). Assim, em meio a um caminho perdido é que Alice reencontra a vida, que senão é a que deixou na Paraíba, é a vida de outros, que, como ela, também perambulavam perdidos e solitários pelas ruas da cidade. Ao dar-se conta de sua condição de “sem lugar”, Alice aos poucos vai encontrando seus novos “iguais” e deles vai se aproximando, criando algum tipo de vínculo, se é que sua condição momentânea narrada na obra, permiti-nos falar em vínculos. O fato é que dá-se o encontro com outras pessoas em condições semelhantes à sua, o que mais uma vez aproxima Alice da condição do exilado, no sentido de ela passa a nutrir “um sentimento exagerado de solidariedade de grupos e uma hostilidade exaltada em relação aos de fora do grupo” (SAID, 2003, p. 51). Stuart Hall (2003) demonstra que o processo de formação cultural ocorrido a partir da globalização, do domínio do capital, dos fluxos culturais e tecnológicos, ameaça subjugar as diferentes culturas do mundo, impondo uma cultura homogênea, representada na obra de Maria Valéria Rezende pelo apartamento moderno e impessoal encomendado pela filha para ser o novo “lar” da sua mãe. Opondo-se a essa situação está o processo de disseminar a diferença cultural, papel desempenhado pela personagem Alice através dos traços de sua personalidade crítica, que, embora, vencida pela vontade dominadora da filha, não se rende a uma vida artificialmente produzida para ser vendida por uns e comprada por outros, Conexão Literária 2017 - Anais do evento | ISBN: 978-85-92525-19-4 | 17


em uma complexa relação de interesses presente nos segmentos da sociedade, não se excluindo o segmento familiar, como comprova a narrativa em questão. Considerações finais Observou-se por meio da análise realizada que os discursos produzidos nos interstícios da experiência social, revelam o forte sentimento de pertença à terra natal, expresso na angústia vivida pela narradora do romance, e que, no momento em o vínculo com o lugar foi rompido, deu-se início o processo traumático da crise identitária seguido de uma mudança imprevisível no modo de ser e de viver do sujeito em questão. Por outro lado, revelou-se, paradoxalmente, a partir de um novo tempo e novo espaço da narrativa, que seria o da experiência da vida nas ruas, a pertença nômade como condição identitária do sujeito deslocado representado na obra – transitando por espaços indefinidos, híbridos e transformadores. A importância do estudo sobre deslocamentos de indivíduos e coletividades para se pensar o mundo contemporâneo e seus processos de mistura cultural, mostra o esforço que os pensadores críticos têm realizado na compreensão dos fenômenos identitários na atualidade, dando contribuição para que possamos perceber e compreender como as experiências decorrentes destes movimentos têm inspirado as narrativas literárias do tempo presente. Finalizo com as palavras de Edward Said, para quem o exílio jamais se configura como o estado de estar satisfeito, plácido ou seguro. O exílio é a vida fora da ordem habitual. É nômade, descentrada, contrapontística...

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Referências bibliográficas GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Tradução. Cid Knipel Moreira. São Paulo. Ed. 34, Rio de Janeiro, Universidade Cândido Mendes – Centro de Estudos Afro-asiáticos, 2001. HALL, Stuart. “Pensando a diáspora. Reflexões sobre a terra no exterior”. In: HALL, Stuart. Da diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 25-48. ________ A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro – 5ª ed. – Rio de Janeiro, 2001. REZENDE, Maria Valéria. Quarenta Dias. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Tradução: Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. SANTIAGO, Silviano. “Deslocamentos reais e paisagens imaginárias – o cosmopolita pobre”. IN: OLIVEIRA NETO, Godofredo de, CHIARELLI, Stefania (orgs). Falando com estranhos: o estrangeiro na literatura brasileira. – 1. ed. – Rio de Janeiro: 7Letras, 2016, p. 15-32 SILVA, Denise almeida e WESTPHALLEN, Frederico. Repensando o conceito de lar em contextos migratórios: Boy-Sandwich. In: CARRIZO, Silvina Liliana e NORONHA, Jovita Maria Gerheim, Organizadoras. Relações Literárias Interamericanas: território e cultura. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2010.

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HISTÓRIA LITERÁRIA: UMA HISTÓRIA DE PROBLEMAS Luiz Carlos Moreira da Rocha 4

RESUMO: Desde o seu surgimento, a história literária tem se mostrado uma disciplina eivada de conceitos e pressupostos teóricos calcados numa visão eurocêntrica e, por conseguinte, marcados pela ausência de postulados oriundos da maior parte das literaturas as quais a história literária planeava mapear. Dentre os imbróglios que emergiram ao longo da trajetória desta disciplina, destaca-se o pretenso status de científico pleiteado por muitos, bem como a problemática da periodização. Com isto, o presente ensaio visa traçar um panorama acerca dos problemas levantados por alguns de seus mais renomados exegetas e vislumbrar um novo modelo em consonância com a atual voga multicultural. PALAVRAS-CHAVE: História; Literatura; Cânone; Multiculturalismo. ABSTRACT: Since its emergence, literary history has been presented as a discipline teemed with concepts and theoretical notions based upon a Eurocentric view. Consequently, it is characterized by the absence of postulates from the most literatures which it planned to map. During the history of this discipline, a host of imbroglios took place and among them the controversial scientific status demanded by many scholars as well as the problem of periods or styles of epoch. Thus, the present paper aims at presenting a concise view of the problems raised by some of the most renowned theoreticians, and to conjecture about a new model in agreement with the update vogue of multiculturalism. KEYWORDS: History; Literature; Canon; Multiculturalism.

A arte só é ela mesma na história.

Helena Parente Cunha

Sabe-se que os estudos literários são, ordinariamente, divididos em três segmentos: história, teoria e crítica literárias que, apesar de distintos, acabam interpenetrando-se. Se por um lado entendemos ser a teoria literária o estudo dos princípios da literatura, de seus conceitos, categorias e critérios; por crítica entende-se o estudo das obras de arte literária concretas à luz de algum instrumental teórico. Por outro lado, a definição do que vem a ser a essência da história da literatura nos concita a reflexões devido às dificuldades de se erigir um conceito pronto e acabado acerca do tema. 4

- Pós-Doutor em Estudos Literários pela UFMG, Doutor em Ciência da Literatura pela UFRJ, Visiting Scholar at New York University (2000), Mestre em Teoria Literária pela UFJF. Professor Visitante na UFV, Crítico Literário e Ensaísta. // Email: luizcarlos.rocha@ufv.br

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Quando o status da história literária é abordado, um dos primeiros problemas colocados em pauta consiste na pretensão do estatuto de científico para a mesma. No entanto, como uma ciência positiva, a história literária buscou, em seus primórdios, uma acepção de construto universal. Mas é justamente aí que começam os seus problemas. Antes mesmo da concepção de história literária como disciplina, algo que é fruto do desenvolvimento alcançado na era moderna, a relação entre a literatura e a história já comportava senões que remontam à Antiguidade. Aristóteles, ao distinguir a essência da poesia em relação à da história, atesta a universalidade daquela e a particularidade desta. Sabe-se que tal distinção está marcada pelo fato do poeta poder descrever o que poderia ter acontecido, ao passo que ao historiador cabe retratar o que de fato aconteceu. Por isso a poesia é, na visão do Estagirita, mais filosófica do que a história. Talvez devido à predominância das poéticas de Aristóteles e de Horácio e do Tratado acerca do Sublime, de Longinus, os quais perduraram até ao advento da era moderna, não tenha sido possível a construção de um modelo de história literária, somado ao fato da própria historiografia, enquanto um discurso pretensamente científico, ser igualmente um construto recente que tem sua gênese no século das luzes. A partir do período iluminista, com os avanços científicos e a mudança de paradigma suscitado pelas ciências exatas e da natureza, não tardou a se pensar um novo modelo de historiografia e, por conseguinte, a construção dos primeiros esboços de história literária foi levada a cabo. Como toda nova área de estudos, a história literária precisou definir o seu objeto de estudo que, em primeira instância, parecia óbvio que este se centraria na literatura nacional. Em seguida, coube a elaboração de um método específico em relação ao objeto que se pretendia estudar, partindo do princípio de que seria necessário estabelecer um cânone composto dos mais representativos poetas, escritores, dramaturgos e críticos de cada nação e suas respectivas obras. Todavia, ao se levantar os principais nomes, tornou-se imperativo agrupá-los segundo as características de suas obras, bem como situá-las no tempoespaço, o que implicaria numa contextualização histórico-social. Tais ilações endereçaram à biografia dos autores e é exatamente a questão da biografia um dos primeiros traços de qualquer história literária nacional e, igualmente, um de seus principais problemas. Esta mixórdia consiste no fato da biografia, a despeito de sua importância, não apresentar cabedal suficiente para uma real compreensão das obras literárias. A principal razão jaz no fato dela centrar na vida do autor e não na obra. As tentativas de relacionar a vida privada do autor com a sua obra esbarram na constatação de que um escritor é um observador da vida humana, o que o leva a trasladar a experiência de outrem para o seio de sua obra. Este mesmo obstáculo se interpõe à condição do escritor como um analista e construtor de psicologia das personagens. E ainda, a biografia não é adequada para a apreensão temática e, no caso da poesia, dos aspectos formais e tropológicos. Além do biografismo, a história literária, por influência positivista na segunda metade do século dezenove, se viu às voltas com as questões das fontes e das influências. Devido ao cientificismo predominante na Europa de então a referida questão, de par com o estudo do meio social em que o autor concebeu a obra, passou para a ordem do dia.

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A questão das fontes e das influências é, para Paul Van Tiehem, sine qua non. Para ele, há que se buscar a gênese da obra, sendo que esta pode conter aspectos internos e externos. No primeiro caso, considera-se o tema, o sentimento, a forma, as ideias e as influências concebidas no arcabouço do texto. No segundo, a recepção por parte do público e da crítica especializada. Com isto, o historiador literário estaria apto a descerrar o passado entranhado na experiência literária do autor, bem como assinalar o legado de influências que o mesmo deixaria. Van Tiehem pondera: “De qualquer modo, o jogo de influências sofridas ou exercidas é um elemento essencial em história literária” (apud COUTINHO, 1994, p. 92). É importante frisar que o jogo de influências a que Van Tiehem alude opera como um deus Janus, endereçando ora ao passado ora ao futuro. Tal assertiva nos mostra como a questão da originalidade da obra literária, ao invés de emergir a partir de uma inspiração advinda de algo sobrenatural ou maravilhoso, surge calcada na experiência adquirida ao longo de uma vida de leituras e releituras. Desta forma, o passado de leitor torna-se presente na composição da obra e, de igual modo, o legado ou a influência de um autor aparecerá nas futuras obras de outros autores. Em verdade, a proposição de Tiehem também tem antecedente, haja vista as elucubrações do poeta-crítico anglo-americano T. S. Eliot sobre a relação do poeta com a tradição literária. No paradigmático ensaio “Tradition and the Individual Talent”, Eliot afirma: ... and the historical sense involves a perception, not only of the pastness of the past, but of its presence; the historical sense compels a man to write not merely with his own generation in his bones, but with a feeling that the whole of the literature of Europe from Homer and within it the whole of the literature of his own country has a simultaneous existence and composes a simultaneous order (ed. 1942, p. 25).

Com efeito, ambos Van Tiehem e Eliot desconstroem o ideário romântico do poeta visto como um gênio portador de inspiração divina. Por outro lado, colocando a questão em termos pós-modernos, tanto o jogo de influências (Tiehem) quanto a presença da tradição na obra que vem a lume (Eliot) endereçam para um processo criativo à luz da intertextualidade. Entretanto, a história literária de nosso tempo se vê ante a necessidade de alargar o escopo e considerar que a criação literária é perpassada por uma rede de textos que vai além da esfera literária, o que por um lado contribui para o apagamento da personalidade do autor e, por outro, aponta na direção de uma rede criativa a qual chamamos de intertexto. Outra problemática concerne aos períodos ou estilos de época. Estabelecer qualquer marco cronológico para o surgimento de um período ou o ocaso de outro não se mostrou eficaz, especialmente quando deparado com a necessidade de classificação de autores e obras que não se encaixam na “camisa de força” da periodização proposta canonicamente pela historia literária e concebida como períodos estanques e demarcados a priori. Como exemplo do que se atesta acima, cito as obras de Oscar Wilde e Machado de Assis. Sabe-se que Wilde viveu e escreveu no século XIX e, por isso, muitos historiadores e teorizadores de literatura classificam-no como vitoriano em virtude de ter vivido no período da vida inglesa cronologicamente assim intitulado. 22


No entanto, ao se observar tanto a sua obra quanto a sua biografia, percebe-se que de vitoriano Oscar Wilde não tinha absolutamente nada. Da mesma forma, Machado de Assis aparece catalogado nos compêndios de história da literatura brasileira como um expoente do período e estilo realistas, embora a sua poesia apareça, em outros textos de historiografia literária, como romântica. Outra marca da obra machadiana, atestada por seus exegetas, dá conta de que ela antecipa tendências que predominariam no período posterior, ou seja, Machado seria um modernista avant la léttre. Muitos teóricos e historiadores literários também levantam dúvida sobre como classificar os movimentos criados por um único autor, como o Petrarquismo, pois é fato que nos séculos XVII, XVIII e XIX se fez poesia à Petrarca. Outra questão posta diz respeito ao poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare cuja obra traz em seu âmago aspectos pertencentes às estéticas renascentista, maneirista, neoclássica e barroca. Dois outros modos de conceituação propostos em épocas passadas devem ser mencionados com o intuito de ilustrar a disparidade entre o que foi sugerido como modelo de história literária: a visão metafísica e a nominalista. A primeira propõe uma periodização estática e estabelecida a priori, o que pressupõe que toda a criação artística de um período compactua com os mesmos pressupostos estéticos, linguísticos, políticos e sociais. Apreende-se desta concepção que tais obras apresentam as mesmas inclinações acerca do gosto e da psicologia, o que a prática artística e cultural não corrobora, uma vez que esta visão anula a historicidade do ser humano. A segunda visão, a nominalista, aponta na direção de uma nomenclatura elaborada segundo o bel prazer dos historiadores, sem nenhum vínculo entre o rótulo e a coisa rotulada. O teórico Vítor Manuel de Aguiar e Silva, ao tratar do problema, enfatiza: A atitude nominalista é uma atitude céptica que reduz a história literária a um acervo assignificativo dos factos concretos e irredutivelmente singulares, desconhecendo, por isso mesmo, um aspecto essencial da atividade literária: a existência de estruturas genéricas que, sob múltiplos pontos de vista, possibilitam a obra individualizada (1967, p. 348).

Uma das razões que obsta a postura nominalista, ainda consoante a visão de Vítor Manuel, encontra-se no largo uso de certos vocábulos, tais como “clássico”, “romântico”, “moderno”, entre outros, que de tantas possibilidades conotativas tiveram o seu uso colocado em suspeição. Uma possível solução para este impasse encontra-se na definição de período proposta por René Wellek em Teoria da Literatura, obra clássica do tema que ele escreveu em parceria com Austin Warren em 1949, e que diz: Um período é, assim, uma secção de tempo denominada por um sistema de normas, convenções e padrões literários, cuja introdução, difusão, diversificação, integração e desaparecimento podem ser seguidas por nós (ed. 1971, p. 335).

Observa-se no conceito de Wellek que este aponta para uma periodização calcada nos aspectos literários que emergem das próprias obras, constituindo-se um norte que se contrapõe ao historicismo quer de base metafísica quer de estirpe 23


nominalista. Logo, a mera divisão cronológica do tipo “literatura do século XIX” ou “literatura medieval”, por exemplo, não se sustenta, já que a divisão dos períodos literários por centúrias, por épocas estabelecidas pela historiografia e ainda por formulações como ”literatura eduardiana” só encontram respaldo em eventuais necessidades didáticas. Outra objeção que se levanta contra a periodização tradicionalmente estabelecida é a conceituação e disposição cronológica linear dos períodos, pois tal proposta endereça a questão de volta à postura metafísica que, supostamente, antevê e demarca os seus pontos de início e fim. Há que se ponderar também que alguns períodos possam ter algumas características em comum, apesar das diferenças que ressaltam a identidade de cada um. Aqui cabe uma digressão, ou seja, Roman Jakobson, ao dissertar sobre a mudança linguística, afirmou que “não acontece jamais que uma só geração exista a um certo tempo e que todos os membros da geração precedente morram no mesmo dia. Portanto, os dois sistemas coexistem durante certo tempo” (Jakobson, 1974, p. 27). A assertiva de Jakobson pode ser trasladada para o contexto da história literária, uma vez que nenhum período desaparece com a simples chegada de outro, havendo, por conseguinte, um entrecruzar de estéticas, linguagens, tropologias, etc., só comportando exceção os casos das grandes rupturas, como foram os adventos do Renascimento em relação ao que se convencionou chamar de Idade Média ou com o Romantismo em relação ao período neoclássico. Todas as elucubrações anteriores apontam para a necessidade de uma abordagem comparativa no estudo dos períodos literários. As principais razões que impelem uma mudança neste sentido são: 1) a abrangência de períodos como o Classicismo, o Romantismo, entre outros, que tiveram lugar em mais de uma nação; 2) dentro dos respectivos períodos ocorreram determinados movimentos e desenvolveram-se certas tendências que encontraram agasalho em certos países, mas que não tiveram lugar em outros. Como amostra do que foi dito, cito o período romântico que permitiu o desenvolvimento do indianismo na literatura brasileira e do transcendentalismo na literatura norte-americana. Apesar de ostentarem marcas e estereótipos de alguma forma importados, não se pode negar que ambos contêm laivos de brasilidade e de americanidade que foram levados a cabo por gerações de poetas e escritores posteriores tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos da América. É indispensável fazer menção à necessidade de se estudar as relações da literatura com as outras artes com o intuito de se apreender as eventuais conexões entre elas durante cada período e das circunstâncias históricas, linguísticas, estéticas e sociais que se coadunariam para constituir um estilo de época. Passando a um rápido exame de cada período tal como consignado na história literária, de estirpe eurocêntrica que herdamos, temos a Idade Média como marco inicial, sendo este um período que sucedeu à Era Clássica Greco-Romana. O marco histórico ao qual se atribui o início deste período é a queda do Império Romano do Ocidente no ano 476 da Era Cristã. Devido à complexidade que a nomeação de períodos como a Idade Média engendra, alguns estudiosos a subdivide em fases e formulam diferentes características para fundamentar as suas postulações. Em História Social da Arte e da Literatura, Arnold Hauser a subdivide em três: “a economia natural da fase inicial da Idade Média; a cavalaria galante da Alta Idade Média; e a cultura burguesa urbana do final da Idade Média” (HAUSER, 2000, p. 123). Tal constatação 24


permitiu à Professora Helena Parente Cunha, em estudo sobre o assunto, oferecer a seguinte subdivisão da Idade Média: “Alta Idade Média”, do século VI ao XI, “Plena Idade Média”, do século XI ao XIII e “Baixa Idade Média”, do século XIII ao XV. Consoante a classificação elaborada por Helena Parente Cunha, a “Alta Idade Média” é um período em que todas as manifestações de cunho cultural, incluindo a literária, eram dominadas pela Igreja Católica. Este período é unificado em torno de demandas universalizantes expressas em um Deus, um Papa e um Rei e tal unidade é estendida às esferas da política, da religião, da arte, tendo a língua latina como veículo. A “Plena Idade Média” caracteriza-se pela instituição do feudalismo e uma constituição social rígida e tripartida em nobreza, clero e povo. Com o controle da Igreja, as possibilidades acerca da elaboração do cânone literário, do estabelecimento de marcos e divisões periódicas foram baseadas nas concepções admitidas pela Igreja e implantadas como verdades absolutas, dogmáticas e inquestionáveis. Na “Baixa Idade Média”, dá-se o predomínio da burguesia e o fortalecimento da economia mercantil, o que foi determinante para levar este segmento social, primeiro à independência, depois à hegemonia. Do ponto de vista da cosmovisão do período, verifica-se que a visão teocêntrica começa a ceder terreno para o antropocentrismo que será voga durante a Renascença que se avizinha. Assim sendo, cada subdivisão do período medieval indicada por Hauser desenvolve a sua própria visão de mundo e uma psicologia peculiar que encontram expressão em obras literárias das respectivas fases aludidas, o que fortalece a ideia de período ou estilo de época evoluindo a partir da conjugação de forças diferenciadas e que atuam de forma simultânea. Uma das maneiras de se comprovar a existência de aspectos de um período que se manifesta também na fase seguinte é a presença de características liberalizantes da “Baixa Idade Média” no período Humanista, o qual herdou e levou a efeito a vocação hedonista inspirada em modelos clássicos da Antiguidade. O Humanismo aduba o terreno da renovação política, econômica, social e literária cujos frutos foram colhidos por outro período, o Renascimento, o qual trouxe em seu ventre as ideias de um mundo observável e descrito cientificamente com uma atitude cultural inspirada no molde clássico greco-romano. A própria identidade do período renascentista, que se caracteriza pela eclosão de várias tendências, tipifica a impossibilidade da constituição de um período ou estilo de época batizado no singular e portador de uma estética harmônica e unitária como atesta Robert F. Arnold no prólogo de Cultura Del Renacimiento, cujo extrato que se segue, com a tradução para o espanhol do Professor Salvador Minguijón Y Adrián, demonstra: El período que conocemos com el nombre de Renacimiento se presenta a nuestros ojos con gran variedad de matices, de entidos y de tonos. Humanistas moderados y radicales, corriente cristiana y corriente pagana o paganizante, excesos lamentables y reacciones exageradas, constituyen um cuadro algo confuso, ante al cual uma crítica escrupulosa puede vacilar antes de lanzar sus fallos (ed. 1936, p. 7).

Um dos traços peculiares ao Renascimento e levado a efeito pelo Iluminismo é a questão do sujeito que, ao ser descentrado, será testemunha da 25


hibridez estilística e periódica. O sujeito que emerge a partir de então é visto como centro do sistema e a sua condição não comporta questionamento. Este sujeito desloca a visão deísta do centro do sistema e se coloca, antropomorficamente, em seu lugar. O novo sujeito é representado como sendo centrado na razão e por ela guiado e traz em seu bojo um núcleo que nasce e se desenvolve com ele, constituindo, por conseguinte, na sua própria identidade. Entre a Renascença e o Barroco, o período maneirista teve lugar nas literaturas europeias e expressa a crise no Velho Mundo com os valores renascentistas em plena decadência. Este período assinala a inconsistência da periodização literária tradicional que é um construto eurocêntrico e que não encontra par nas literaturas de países que àquela época, viviam subjugados pelo colonialismo europeu e, portanto, não vivenciaram o Maneirismo. O período que tem como marca a Reforma Protestante e a Contra-Reforma Católica não foi exportado para as colônias, o que assinala a presença de um interstício entre a periodização europeia e aquela importada por literaturas como a brasileira, a hispano-americana e a norte-americana, entre outras. Assim, o que se constata é a disparidade entre o modelo oficial e o seu correspondente colonial, demonstrando a necessidade de se reescrever a história literária dos povos das Américas, entre outros, e por consequência, a desconstrução do modelo europeu de história literária proposto como universal e absoluto. Há que se ponderar ainda que o Barroco encontrou a sua forma de expressão literária na Europa, restando às colônias a importação do formato. No caso brasileiro, porém, foi na arquitetura das cidades históricas de Minas Gerais que o período se manifestou mais plenamente. A existência de um período clássico após o Barroco por si só denuncia a fragilidade da constituição linear tanto da história literária quanto da história das artes, pois ao apregoar a volta aos modelos da Antiguidade Greco-Romana, o Neoclassicismo promove uma circularidade em detrimento da continuidade estanque. As revalorizações das Poéticas de Aristóteles, de Horácio e das Teorias do Sublime de Longinus que, de certa forma, foram atualizadas pelas penas do poetacrítico inglês Philip Sydney e do teorizador francês Nicolas Boileau, trouxeram embutidas a busca da verossimilhança, da imitação da natureza humana, da razão e da imitação dos modelos antigos e cujo fim era prover a literatura em particular e a arte em geral com os nobres objetivos de levar aos leitores uma “nova” ordem moral advinda do prazer e da instrução que as obras deveriam propiciar. O século XVIII ou a centúria das luzes, com as suas variações ideológicas refletidas no pensamento e na arte inviabilizou a unidade de proposições que a periodização europeia pleiteava. Num extremo, o Iluminismo e a sua concepção filosófica liberal. No outro, o Pré-Romantismo, cuja estética afasta-se do pensamento neoclássico e da visão de mundo racionalista de então. Entre as duas extremidades, o Neoclassicismo subdividido em Rococó e Arcadismo mostra que estas conceituações, ainda hoje, se encontram em aberto. O Romantismo, por sua vez, problematiza, entre outras, a questão dos marcos, pois, se na França o período se instala com o primeiro derramamento de sangue na Revolução Francesa em 1789, na Inglaterra o ponto de partida é a publicação de Lyrical Ballads, tratado poético de William Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge em 1798. No caso das nações americanas, o período só se instala a partir das duas primeiras décadas do Oitocentos. Portanto, marcos e datas distintos assinalam a precariedade de tais episódios como início de um período 26


que já se esboçava em época anterior e cujos ecos são ainda sentidos na Cultura Ocidental, o que torna difícil, senão impossível, o estabelecimento de datas precisas para o seu início e término. A partir daí, os períodos tais como se apresentam na história literária oficial, ou seja, Realismo, Naturalismo, Parnasianismo, Simbolismo e Impressionismo tornam-se mais rápidos, mais efêmeros, o que veio a ser tônica no século XX, com o advento das vanguardas europeias e todos os “ismos” que se seguiram. No período modernista, a coexistência do futurismo, dadaísmo, cubismo, surrealismo e tantos outros, assinalam tanto a simultaneidade destes movimentos quanto a crise institucional dos períodos dispostos pela história literária de forma linear, o que dá suporte ao clamor da pós-modernidade por uma re-elaboração dos cânones literários e historiográficos e uma ruptura com a ideia de história linear das literaturas e das artes. E é de bom tom registrar que para as re-escrituras propostas, os novos segmentos, quer disciplinares quer como práxis social, como o Pós-colonialismo, o Feminismo e os Estudos Culturais têm que ser levados em conta, bem como a nova tropologia calcada nas categorias de identidade, raça, gênero, sexualidade, entre outras. Mas antes de ponderar acerca da re-escritura das histórias literárias, faz-se mister uma observação acerca da literatura comparada, uma vez que este segmento disciplinar teve origem no seio da história literária. Surgida nos contextos acadêmicos europeus do final do século dezenove quando a voga cientificista apregoava o uso do comparatismo em todas as searas do conhecimento, a literatura comparada surgiu como um problema para a história literária. A razão do conflito centrava-se na visão de que a literatura comparada alargava o escopo dos estudos de história literária, na medida em que preconizava uma abordagem para além das literaturas nacionais, bem como já dava indícios de que o enfoque sobre as obras literárias deveriam ir adiante das propostas unicamente estetizantes. Dada as tentativas de fazer da literatura comparada uma disciplina científica nos moldes do positivismo, a nascente área de estudos foi abarrotada de conceitos e métodos que a levaram rapidamente a exaustão. As várias crises que se seguiram ao ano de 1914 atingiram também a arena literária, o que acarretou em descrédito das propaladas verdades científicas do século dezenove. Na verdade, teóricos como Benedetto Croce na Itália e Wilhelm Dilthey na Alemanha já desafiavam o translado de metodologias oriundas das ciências exatas e naturais para o campo humanístico, o que foi aguçado pelas correntes imanentistas da teoria e crítica literárias do início do século vinte e, mais tarde, pelos estudiosos da literatura comparada. Passada as vogas imanentistas, os estudos literários voltaram-se para um diálogo mais amplo, máxime com a História e a Filosofia. Uma vez superada a crise da literatura comparada, esta área de estudos solidificou-se a partir de uma interação maior com outras disciplinas, propiciando também uma renovação de postulações. Consequentemente, a história literária de nosso tempo não pode prescindir da cooperação de outras disciplinas, principalmente nesta época de multiculturalismo em que se pleiteia a re-escritura das histórias literárias e de seus respectivos cânones. Contudo, a re-escritura das histórias literárias passa, inexoravelmente, pela revisão de vários conceitos, entre eles o de nação e o de língua. O conceito de nação 27


que herdamos da experiência europeia foi construído no século dezoito, embora já vinha sendo esboçado desde a Renascença e cujo fim era dar vazão aos interesses coloniais, mercantis e de dominação política das metrópoles. Sabe-se que tal conceito se alicerçou, de forma artificial, na fórmula expressa por uma marca territorial e uma língua. Por um lado, é desnecessário ressaltar a fragilidade das fronteiras dos estados nacionais, uma vez que, na maioria dos casos, elas se assentaram em bases desconectadas das realidades dos povos. Muitas, em verdade, foram estabelecidas a partir de invasões e conquistas que, tempos depois, tiveram que ser remarcadas. No que tange à língua, esta se afirmou como sendo a vertente calcada num modelo que excluía as formas dialetais e demais formas de expressão vernacular e, geralmente, o modelo galgado à condição de padrão era egresso da região mais abastada e poderosa de cada nação, o que pressupôs um processo de colonização interna. Há que se levar em conta também que a língua padrão das nações europeias desempenhou papel de monta no processo de colonização, sendo impostas como único meio de expressão permitido aos povos colonizados. Dentre outros conceitos que caracterizam a história literária desde o século dezenove, o de evolucionismo, de linearidade histórica e o de literariedade estão, há muito, em cheque. A influência da teoria da evolução das espécies ensejou a construção de um modelo de história literária que contempla em seu cerne a constituição de gêneros literários forjados de maneira estanque com nascimento, desenvolvimento, morte e/ou transformação. Com isto, dava-se uma recusa das propostas de hibridização dos gêneros. De igual modo, tal historiografia calca-se na “evolução” histórica balizada pela sequência linear de períodos, como abordado nas páginas anteriores deste mesmo ensaio. A literariedade apregoada pela história literária tradicional dava conta de uma tropologia permeada de figuras de linguagem e alicerçada nos aspectos formais que estavam na base das obras literárias oriundas das literaturas nacionais, marcadamente da Europa Ocidental e da América do Norte que, por sua vez, foram tomadas por modelos perfeitos e alçados à condição de universais. Portanto, a revisão dos cânones passa pela valorização de formas e produções que nunca foram privilegiadas pela “tradição”, como as literaturas orais e as formas populares, entre elas o corrido mexicano e o cordel brasileiro, bem como a questão de ser ou não ser poesia as letras do cancioneiro popular. Com a revisão que se propõe, a história literária multicultural deve levar em conta que tanto o conceito quanto o modelo de nação, de verve iluminista, não passam de práticas discursivas excludentes e totalitárias. Esta concepção deve dar lugar a um novo construto que abarque as nações dentro e fora do que se considera uma nação, ou seja, o grupo humano que se abriga em território para além das fronteiras oficiais. Os exemplos de nações dentro da nação abundam em todas as partes do mundo, como a Catalunha e o País Basco no âmago da vida espanhola. No caso basco, a questão involve também parte do território francês. Os povos árabes, não obstante as marcas identitárias que caracterizam cada um deles, sempre tentaram afirmar a sua língua e as suas literaturas como modelos transnacionais. Dois outros casos se tornaram emblemáticos: a literatura brasileira e a latino-americana. O Brasil, como se sabe, é um país de dimensões continentais e que, portanto, comporta diversidades que vão da fauna e da flora aos aspectos étnicos de suas populações. Dada a diferença de experiências que caracterizam as 28


várias regiões do país, não tardou para que essas marcas identitárias dessem oportunidade à constituição das literaturas regionais e as suas diferentes redes de relações, podendo, inclusive, estar relacionadas com outras fontes situadas fora das fronteiras nacionais. Para ser mais específico, há que se enfocar as literaturas amazônicas de par com as suas coirmãs da Amazônia peruana, colombiana e venezuelana, por exemplo. Da mesma forma, a literatura gaúcha compartilha mais aspectos e afinidades com a sua contrapartida portenha do que com as literaturas do centro do país. A história da literatura latino-americana também necessita de novo exame, a começar pela expansão que o seu título requer. Senão vejamos, a designação América Latina, segundo Eduardo de Faria Coutinho, “é uma construção, primeiro européia, e posteriormente de seus próprios habitantes, ou para empregar as palavras de alguns críticos, uma ficção...” (Coutinho, 2003, p. 86). Sua origem foi fruto da necessidade europeia de criar um contraponto à América Anglo-Saxônica. Inicialmente dizia respeito aos povos de língua espanhola, passando, em seguida, a incluir o Brasil. Todavia, o escopo deste conceito foi posteriormente alargado de modo a compreender também os países situados geograficamente na America Latina, mas que tiveram colonização distinta, como as ex-colônias inglesas Belize, Jamaica, Guiana Inglesa, Bahamas, a Guiana Holandesa e ainda o Haiti e a Guiana Francesa cujas experiências política, social, econômica e literária estão mais próximas de seus vizinhos do que de suas ex-metrópoles. Para muitos a América Latina sempre foi identificada como a América Hispânica devido ao fato da maioria das nações do continente ter o espanhol como vernáculo oficial. No entanto, várias literaturas e culturas do continente apresentam matizes que a história literária tradicional omite. A começar pela herança pré-colombiana do México, dos países centroamericanos como Guatemala, El Salvador, Belize, Honduras e o Peru. Só recentemente que estudos de relevo sobre as culturas Asteca, Maia e Inca foram empreendidos por especialistas do campo literário, uma vez que tais culturas sempre foram consideradas como objetos de interesse histórico, antropológico e arqueológico. Atualmente, busca-se o resgate das literaturas orais e das culturas indígenas, como estão a exemplificar o caso da rica cultura dos índios Aimara na região central do continente americano. Neste caso específico, há registros de sobrevivência da língua falada pelos ancestrais e, com ela, as marcas de uma cultura que um dia foi predominante. O mesmo se aplica ao caso da língua e cultura Quíchua, ainda hoje falada por cerca de dez milhões de pessoas distribuídas por vários grupos étnicos ao longo dos territórios da Argentina, Chile, Colômbia, Bolívia, Equador e Perú. No caso desses três últimos países, registra-se que a experiência diglóssica de seus povos levou ao reconhecimento do Quíchua como língua oficial ao lado do espanhol. A obra do escritor peruano José Maria Arguedas tipifica este legado. Mas as fronteiras da América Latina, principalmente as fronteiras imaginadas requerem uma abordagem que envolve as literaturas produzidas nos Estados Unidos, as quais se tornaram questões de relevo para a história literária multicultural da América Latina, já que a grande nação do Norte abriga vários grupos étnicos advindos de várias partes da América Latina. Há pelo menos três grupos de latinos radicados nos Estados Unidos e que têm produzido literaturas de relevo e que têm contribuído para a expansão do cânone literário latino-

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americano, como os Chicanos, ou seja, os mexicanos que imigraram para os estados do Sul Americano, especialmente a Flórida e o Texas. Embora algumas produções literárias dos Chicanos tenham sido publicadas antes dos anos de 1960, é durante aquela década que o “movimiento” floresceu ligado à campanha pelos Direitos Civis e outros segmentos contraculturais da vida americana. Consequentemente, o departamento de estudos étnicos foi criado em algumas universidades daquele país, ajudando a pavimentar o caminho para artistas como Rolando Hinojosa, José Montoya, Ana Castillo, Erlinda GonzálesBerry, Pat Mora e muitos outros que têm trazido a lume uma gama de romances, poemas, peças, além de crônicas que têm no memorialismo e na busca da identidade cultural o seu leitmotiv. Outro grupo étnico estabelecido em terras americanas e cuja cultura tem chamado a atenção dos historiadores e críticos literários é o Puertoriqueño. A história envolvendo a ilha e o continente começou no século dezenove, quando os Estados Unidos declararam guerra à Espanha. Após venceram o conflito em 1898, os Estados Unidos passaram a controlar Puerto Rico. Entretanto, o status de Puerto Rico é dúbio, pois, por um lado ela é uma nação e, por outro, um estado não incorporado aos Estados Unidos. Apesar de o Espanhol ser a língua oficial do país, muitos Puertoriqueños não a fala. Sabe-se que muitos Puertoriqueños pleiteiam a incorporação do país aos Estados Unidos, enquanto outros postulam a independência total do país. Outro fato de grande magnitude entre os dois países ocorreu na década de 1930, quando Puerto Rico foi gravemente afetado pela depressão econômica que ocorreu nos Estados Unidos. Como consequência, uma grande Diáspora de Puertoriqueños para a cidade de New York teve lugar. Logo, os Nuyricans, como é conhecido este grupo étnico, tem produzido uma literatura que faz dos Estados Unidos o seu principal tema. A cidade de New York é o tema central da obra Redentores, de Zeno Gandia, publicado no jornal “El Imparcial” em 1925. De fato, alguns jornais americanos tem sido veículo para publicação dos Puertoriqueños Arturo Alfonso Schomburg e Pachin Marin. O primeiro é responsável pela fundação do “Club de los Antillas”. Schomburg se tornou um scholar da cultura Afro-Americana e a sua obra inaugura a história das relações entre os caribenhos e os afro-americanos e suas respectivas literaturas. O terceiro grupo de latinos que para lá acorreu foi o de cubanos. A primeira geração a se estabelecer nos Estados Unidos era ligada à indústria de tabaco, mas devido à crise econômica que devastou os Estados Unidos durante a Grande Depressão dos anos de 1930, os emigrés retornaram a Cuba. Um grande surto migratório de cubanos para os Estados Unidos ocorreu durante a ditadura de Fulgêncio Batista, quando o número de imigrantes saltou de vinte mil para cinquenta mil pessoas. Contudo, a maior onda migratória começou a partir de 1959. Segundo a Professora Sônia Torres (2001, p. 124), desde a Revolução Cubana liderada por Fidel Castro que se pode detectar, pelo menos, três gerações de cubanos que migraram para os Estados Unidos: os exilados dourados, a geração diálogo e os marielitos. Os exilados dourados são representados pelos ricos e pela classe média alta de cubanos que fugiram da ilha para não se submeterem ao regime castrista. A Professora Torres assinala (2001, p. 122 a 124) que poucos povos ao longo da história recente têm a sua identidade marcada pelas relações diplomáticas como os 30


cubanos, levando-se em conta que o seu país sempre esteve na encruzilhada de conflitos, primeiro entre os Estados Unidos e a Espanha no século dezenove, e na vigésima centúria entre os Estados Unidos e a ex-União Soviética por conta dos desdobramentos da Guerra Fria, época em que Cuba esteve no centro das disputas entre as duas super potências devido ao seu alinhamento com a então política de Moscou. Todavia, a geração de cubanos que cresceu nos Estados Unidos mostrou-se menos radical que a de seus pais, daí ter sido denominada de “geração diálogo”. Há que se ponderar, no entanto, que esta geração é marcada pelo adjetivo “traidora”, pois assim é vista pela geração de seus pais por serem soft em relação ao regime de Cuba e é igualmente vista como “traidora” pelos cubanos que permaneceram na ilha e apoiam Fidel, pelos quais é acusada de adesão à cultura yankee. O último grupo começou a ser formado após os acordos de 1979 entre os governos do Presidente Jimmy Carter e de Fidel Castro, permitindo que três mil presos políticos cubanos imigrassem para os Estados Unidos. Também fez parte do acordo a possibilidade de visitas entre os cubanos da Flórida e seus parentes em Cuba. A horda de cubanos que imigrou ilegalmente para os Estados Unidos no final da década de 1970 resultou na crise de Mariel, que consistiu nas tentativas de muitos cubanos de entrar em embaixadas latino-americanas com o fito de emigrarem, primeiro para os países da América Latina e, depois, para Miami, daí o nome de marielitos. A identidade dos cubanos nos Estados Unidos tem sido marcada pelas experiências do exílio. Para alguns estudiosos, como a Professora Sônia Torres, esse processo começa na década de 1960, quando um tipo de nostalgia foi sentido pelos cubanos que tentaram transformar Miami numa nova Havana. Durante a década de 1970, o sonho de retornar a Cuba foi esmorecendo devido à consolidação da Revolução Cubana. A década de 1980 é agora lembrada como o período de maturidade da nova geração de cubanos que vivia em solo americano e Cuba não passava de uma recordação, de peças memoriais da geração de seus pais. Porém, esta categorização não pode ser vista como definitiva já que as características de uma geração se sobrepõem às de outras. No entanto, alguns exemplos escapam à categorização rigorosa. O caso do escritor Oscar Hijuelo é ilustrativo, na medida em que ele nasceu em solo americano, filho de imigrantes que para lá acorreram antes da Revolução Cubana, ele poderia, segundo Sônia Torres, ...ser enquadrado na categoria “étnica”. O fato de seus romances geralmente começar em Cuba e terminarem nos Estados Unidos apenas sublinha o fato de que, para os cubanos de qualquer imigração, a presença da ilha é, inexoravelmente, a obsessão temática e o fio da memória nas obras literárias de cubanos nos EUA (2001, p. 137).

O romance The Mambo plays Songs of Love consagrou Oscar Hijuelo, que conquistou o Pullitzer Prize em 1990. Uma das marcas do romance de Hijuelo é que ele começa em Cuba e termina nos Estados Unidos, ressaltando que a ilha é um tema permanente na literatura dos cubanos que vivem e escrevem nos Estados Unidos. Da América Latina e suas fronteiras móveis, passo a um rápido exame das Literaturas Norte-Americanas. Aqui também a história literária enfrenta desafios importantes e tudo indica que a referência no plural se mostra mais adequada para 31


tratar das ramificações que a arte literária produzida nos Estados Unidos comporta. Vale frisar que a literatura norte-americana também representa um problema para a teoria pós-colonial, pois, por um lado, Bill Ashcroft, Gareth Griffins e Helen Tiffin consideram-na o primeiro modelo de pós-colonialidade expresso tanto na experiência política quanto na verve literária. Citando: “The first postcolonial society to develop a ‘national’ literature was the USA” (ASHCROFT et alii,1989, p.16). Por outro lado, desde o fim da Segunda Guerra Mundial que os Estados Unidos, como herdeiros do espólio colonialista europeu, se tornou a nação hegemônica e a participar de maneira central nas relações de poder do mundo, comprometendo o seu status de referência pós-colonial. No que tange à pluralidade de sua expressão, é importante frisar que a literatura norte-americana só se desenlaça das amarras de sua matriz inglesa nos fins do século dezenove e, como a literatura brasileira, dará na década de 1920 um salto de qualidade. A partir da Lost Generation, a literatura estadunidense passa a ser considerada da mesma estatura que as grandes literaturas europeias. Nas décadas seguintes, vários segmentos vão se desenvolver dentro dessa literatura tornando-a internacional, não só na sua aceitação e reconhecimento, mas também no âmbito de sua própria constituição. Desta forma, nasce a literatura afro-americana, a literatura judaicoamericana, o Novo Jornalismo (New Journalism), que entre outros, consagrou o romancista Norman Mailer e, mais recentemente, como desdobramentos da malfadada participação americana na Guerra do Vietnã, a literatura asiáticoamericana, com ênfase para o que se convencionou chamar de Literatura Americana da Guerra do Vietnã. A contribuição das mulheres para o crescimento das literaturas afro-americana e judaico-americana é de grande importância, haja vista a recepção das obras de autoras como Margaret Adler, Caroline Glick, Susan Gubar, Toni Morrison e Alice Walker, para citar apenas algumas das mais celebradas, embora Caroline Glick tenha imigrado para Israel. Entretanto, a história literária desses segmentos igualmente requer revisão, pois não obstante terem emergido das margens do cânone oficial, também estão crivados de tendências falocêntricas. No caso da Literatura da Guerra do Vietnã, talvez a carência de escritoras se deva ao fato da maior parte das produções deste ramo ser oriunda da pena de excombatentes como Philip Caputo, Ron Kovic e Tim O’Brien. Por fim, creio não ser necessário estender nas ilações que mostram claramente que a história da literatura é uma história de problemas e que a solução consiste na elaboração de um novo modelo de história literária, o qual está emergindo no século vinte e um, preconizando a perspectiva transnacional juntamente com o modelo espacial. O pesquisador Carlos Manuel F. da Cunha, da Universidade do Minho – Portugal, ao discorrer sobre uma nova geografia literária afirma que “... o seu aspecto mais inovador reside no fato de optar por um modelo explicativo espacial (geográfico/topográfico), em detrimento do tempo cronológico da narrativa tradicional...recorrendo a uma organização discursiva de tipo hipertextual” (CUNHA, 2011, p. 275). E ainda, tal processo passa pela re-escritura das histórias literárias, já com a marca do plural, pela revisão dos cânones e pelo diálogo permanente e em bases igualitárias entre as literaturas que sempre tiveram um status de central com as

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que se convencionou chamar de periféricas, até que estas nomenclaturas também sejam marcas históricas a ficarem no passado. Bibliografia ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Tecnoprint, [s.d.]. ARNOLD, Robert F. Cultura Del Renacimiento. Traducción del Prof. Salvador Minguijón Y Adrián. Barcelona: Editorial Labor, 1936. COUTINHO, Afrânio. Crítica e Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987. COUTINHO, Eduardo. “Fronteiras Imaginadas: O Comparatismo e As suas Relações com a Teoria, a Crítica e a História Literárias” In: ______. Literatura Comparada na América Latina. Rio de Janeiro: Eduerj, 2003. p. 69-79. ______. “Reescrevendo a América Latina: em busca de uma Nova Historiografia literária no continente” In: ______. Literatura Comparada na América Latina. Rio de Janeiro: Eduerj, 2003. p. 81-89. CUNHA, Carlos Manuel F. da. A História Literária no Século XXI. Braga: Editora da Universidade do Minho, 2011. CUNHA, Helena Parente. “Periodização e História Literária” In: SAMUEL, Rogel (org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 129-162. ELIOT, T. S. “Tradition and the Individual Talent” In: ______. Points of View. London: Faber and Faber, ed. 1941. p. 23-34. FILHO, Domício Proença. Estilos de Época na Literatura. São Paulo: Ática, 1994. HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, ed. 2000. JAKOBSON, Roman. “A Linguagem Comum dos Linguistas e dos Antropólogos” In: ______. Linguistica e Comunicação. Tradução de Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, ed. 1974. p. 15-33. LIMA, Luiz Costa. História.Ficção.Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. PAULINO, Graça et alii. Intertextualidades: Teoria e Prática. Belo Horizonte: Editora Lê, 1997. ROCHA, Luiz Carlos Moreira da. Teorias do Sujeito A Partir da Era Moderna. Vernaculum, vol. 6, n. 6, p. 1-14, 2011. Disponível em http://www.ucp.br SILVA, Vítor Manuel de Aguiar. Teoria da Literatura. Coimbra: Livraria Almedina, 1979. SOUZA, Roberto Acízelo. História da Literatura. São Paulo: É Realizações Editora, 2014. TAVARES, Hênio. Teoria Literária. Belo Horizonte: Itatiaia, ed. 1989. TIEHEN, Paul Van. “Crítica literária, história literária, literatura comparada” Tradução de Cleone Augusto Rodrigues. In: COUTINHO, Eduardo de Faria & CARVALHAL, Tânia (orgs.). Literatura Comparada. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 89-96. TORRES, Sônia. Nosotros in USA. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. WELLEK, René & WARREN, Austin. Teoria da Literatura. Tradução de José Palla e Carmo. Lisboa: Publicações Europa-América, ed. 1971. WELLEK, René. Conceitos de Crítica. Tradução de Oscar Mendes. São Paulo: Cultrix, 1963.

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UMA ANÁLISE DO CONTO “CADEIRA”, DE JOSÉ SARAMAGO: A LITERATURA EM DOIS PLANOS Francyane Canesche de Freitas5

RESUMO: Este artigo visa trabalhar o conto “Cadeira”, de José Saramago, presente no livro Objecto Quase, publicado em 1978, entendendo-o dentro da perspectiva das narrativas pós-modernas. Sendo assim, analisaremos como o escritor português vale-se a ironia como mecanismo para a criação de um segundo plano na narrativa curta – o plano do real – fazendo dela um texto de caráter paródico. Saramago se vale, também, de outros mecanismos textuais como a metáfora, a metalinguagem, a intertextualidade, as divagações e as associações que, aliados à ironia, afirmam o enquadramento do conto na fragmentada estética pósmodernista. Por este ângulo, vemos a exigência de uma presença mais significativa do leitor no que tange à interpretação destes mecanismos, conferindo a ele o reconhecimento da relação entre os dois planos construídos pelo autor: o real e o ficcional. PALAVRAS CHAVE: Ironia; Paródia; Pós-Modernismo; Conto; Saramago. ABSTRACT: This paper aims to work the short story “Cadeira”, written by José Saramago, available at the book Objecto Quase, published in 1978, understanding it within the postmodern narratives perspective. Thus, it will be analyzed the way in which the Portuguese writer resorts to irony as a tool for creating a background in the short narrative - the plane of the real – making it a text of parody quality. Saramago also resorts other textual resources as metaphor, metalanguage, intertextuality, ramblings and associations, which associate with irony, affirm the story framing in the fragmented postmodern aesthetic. From this angle, it is seen a demand for a more meaningful presence of the reader in what concerns the interpretation of these resources, conferring him the acknowledgment of the relationship between both planes constructed by the author: the real and the fictional. KEY WORDS: Irony; Parody; Postmodernism; Short Story; Saramago. Introdução José de Sousa Saramago, nascido em 1922, foi um escritor português enquadrado pelos críticos contemporâneos na Ficção Pós-25 de abril que, segundo Mestranda em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Viçosa, bolsista de produtividade Capes. 5

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Massaud Moisés, consiste em uma “nova fornada de prosadores [que] reconquista o direito à individualidade” (MOISÉS, 2013, p. 526) após um período marcado pela censura do regime salazarista. Estes prosadores tomam a escrita como lugar de libertação e se valem dela para erguer uma nova identidade portuguesa, questionando o passado histórico da nação. Saramago foi um dos expoentes dessa atitude de recodificação do passado e é impossível pensá-lo sem tratar de sua relação com a História, em obras como Memorial do Convento, História do Cerco de Lisboa e até mesmo O homem duplicado com seu professor da área. Para o autor, a Literatura e a História são campos mutuamente solidários que tendem a dialogar sempre que colocados em contato. Um dos recursos do qual se vale o prêmio Nobel para relacioná-las é a metaficção historiográfica, que pressupõe uma revisão crítica de fatos do passado, problematizando as possibilidades dentro de um evento histórico (HUTCHEON, 1991). Além dela, o autor também faz uso da paródia, da metalinguagem, da intertextualidade e do estabelecimento de uma cumplicidade entre narrador e leitor que enquadram sua obra dentro de um contexto mais amplo, o do pósmodernismo. Para Linda Hutcheon, “A ficção pós-moderna sugere que reescrever ou reapresentar o passado na ficção e na história é – em ambos os casos – revelá-lo ao presente, impedi-lo de ser conclusivo e teleológico” (HUTCHEON, 1991, p. 147), considerando que: [...] o pós-moderno realiza dois movimentos simultâneos. Ele reinsere os contextos históricos como sendo significantes, e até determinantes, mas, ao fazê-lo, problematiza toda a noção de conhecimento histórico. Esse é mais um dos paradoxos que caracterizam todos os atuais discursos pós-modernos (HUTCHEON, 1991, p. 122).

Segundo ela, a nossa cultura fragmentada e plural criou uma relação diferenciada com a História e, na literatura, isso acaba se refletindo, muitas vezes, no ato de parodiar e, ao fazê-lo, os escritores não apenas questionam o passado, mas também o afirmam, na medida em que o retomam como memória. Para a autora, o que encontramos nessa literatura pós-moderna é “uma reavaliação crítica, um diálogo irônico com o passado da arte e da sociedade” (HUTCHEON, 1991, p. 20). Essa associação da paródia com o discurso irônico é o que Linda Hutcheon, em Uma teoria da paródia, denominou de um dos “meios mais importantes de criar novos níveis de sentido – e ilusão” (HUTCHEON, 1985, p. 46). O livro Objecto Quase, publicado em 1978, quatro anos após a Revolução dos Cravos, desenvolve uma análise desta sociedade fragmentada que tem caminhado rumo a uma objetificação do ser humano, ignorando a dimensão afetiva e subjetiva do sujeito que os torna únicos. Ironicamente, o que não nos surpreende quando se trata de Saramago, o próprio título já submete a ideia subversiva em relação a este possível fim da humanidade. O autor se vale da linguística, ao alterar a ordem das palavras, para sugerir “a crença na possibilidade de desobediência a uma ordem constituída e de inversão dos papéis e na destruição da sociedade estratificada por um modelo social que desumaniza o homem” (SOARES, 2011, p. 30). Com relação a esta desumanização, não podemos deixar de destacar que o livro se inicia com uma epígrafe marxista: “Se o homem é formado pelas circunstâncias, é necessário formar as circunstâncias humanamente”, levando-nos a pensar o fato de que, atualmente, trata-se as pessoas como objetos e os objetos 35


como pessoas. Sobre suas epígrafes o próprio Saramago se manifestou, afirmando, para o Jornal O Globo, que não são despropositais: Eu sei que em alguns casos epígrafes são gratuitas, são adornos. No meu caso, não. Normalmente, as epígrafes que eu uso anunciam o que eu quero dizer. E a epígrafe de Objecto quase é uma citação de Marx e Engels em que eles dizem: “Se o homem é formado pelas circunstâncias, então é preciso formar as circunstâncias humanamente”. Ensaio sobre a cegueira vem a dizer que nós não estamos e não estivemos nunca, a formar humanamente as circunstâncias para que estas, humanizadas, formassem um outro tipo de homem. É onde eu quero chegar” (SARAMAGO, 1995).

Assim, fica claro que Saramago pretende fazer uma “crítica ao desmedido culto e apego aos bens de consumo ou ao poder simbolizado pelos objetos, o que afasta os seres humanos de sua própria existência” (RAMOS, 2009, p. 841 apud FIORUCI; MORAES, 2013, p. 19). E, ao fazê-la, antecipa a linha de pensamento que seguiria no que Arnaut (2008) chamou de segundo ciclo de obras, referindo-se a um período de produção que se inicia com Ensaio sobre a Cegueira (1995) e termina com Ensaio sobre a Lucidez (2004). Neste artigo, trabalharemos com o primeiro conto do livro Objecto Quase, denominado “Cadeira” e que levanta reflexões de ordem histórico-política. A narrativa trata em primeiro plano do tombo de um velho em uma cadeira de mogno e, em segundo plano, de um acidente com uma cadeira quebrada que provocou a internação de Salazar e, consequentemente, a saída da frente do poder ditatorial que foi passado à Marcelo Caetano. O artigo será analisado à luz do pósmodernismo, considerando que a ironia é o que permite a interpretação deste terreno do real na ficção saramaguiana e, aliada à metalinguagem, às conversas com o leitor e aos intertextos, compõem o tom paródico do conto. O conto: um gênero com potencial intensificador O gênero conto remete a um tipo de escrita narrativa ficcional peculiar que chama atenção por certo limite físico imposto à narrativa, de tal modo que desenvolve uma história sem conflitos secundários. Berg Esenwein já afirmava em um manual do século XX que: [...] o conto é uma narrativa breve; desenrolando um só incidente predominante e uma só personagem principal, contém um assunto cujos detalhes são tão comprimidos e o conjunto do tratamento tão organizado, que produzem uma só impressão [...] (apud GOTLIB, 2006, p. 60).

Apesar desse aspecto condensado, o gênero carrega uma grande quantidade de características associadas ao seu modo de contar e aos detalhes do modo como se conta, tais como a entonação, os olhares e os gestos, que, segundo Gotlib (2006) são transmitidos através das palavras ou de sugestões dadas pelas cenas narradas. Essas características são de fundamental importância para o entendimento do gênero, uma vez que estão ligadas à origem destas narrativas, ou seja, a uma tradição de transmissão oral, dos mitos e ritos antigos, passando posteriormente a integrar o registro escrito e, com isso, afirmando seu caráter literário.

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O conto, contrariando o que se poderia supor a partir do seu caráter sucinto, caracteriza-se por causar reações e efeitos intensos no leitor. Estes, por sua vez, ocorrem porque, diferentemente das obras extensas, na narrativa curta não é necessário dosar a exaltação durante toda a narração para prender o expectador, o leitor a absorve de uma só vez. Segundo Edgar Allan Poe, em texto intitulado “Review of Twice-told tales”: [...] no conto breve, o autor é capaz de realizar a plenitude de sua intenção, seja ela qual for. Durante a hora da leitura atenta, a alma do leitor está sob o controle do escritor. Não há nenhuma influência externa ou extrínseca que resulte de cansaço ou interrupção (apud GOTLIB, 2006, p. 34).

Todas essas características do gênero comprovam que sua produção está extremamente ligada a uma economia de meios narrativos através da qual o escritor lança mão de um mínimo de meios visando um máximo de efeitos. Por isso, tudo que não estiver potencializando esses efeitos é suprimido, daí seu tamanho reduzido quando comparado aos romances. Poe denomina, em seu ensaio The philosophy of composition, esse processo de construção com intuito de acentuar os efeitos no leitor de “totalidade de efeito” ou “unidade de impressão”. Massaud Moisés corrobora este argumento afirmando que “A existência de uma única ação, ou conflito, [...] está intimamente relacionada com a concentração de efeitos e de pormenores [...]” (MOISÉS, 2006, p. 41). Desta forma, o conto se concretiza em uma capacidade de estar além dele mesmo, de estar além da história que conta. Como disse Julio Cortázar: [...] o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto (CORTÁZAR, 2006, p. 151-152).

Essa abertura à sensibilidade do outro pode ser pensada também quando falamos de ironia, já que ela só se completa com a colaboração do sujeito leitor. Sobre isso, Lélia Parreira Duarte (1994) nos esclarece como se dá o processo: Nada pode ser considerado irônico se não for proposto e visto como tal; não há ironia sem ironista, sendo este aquele que percebe dualidades ou múltiplas possibilidades de sentido e as explora em enunciados irônicos, cujo propósito somente se completa no efeito correspondente, isto é, numa recepção que perceba a duplicidade de sentido e a irreversão ou a diferença existente entre a mensagem enviada e a pretendida (apud ALAVARCE, 2009, p. 17).

Linda Hutcheon (1985) afirma que não só a ironia, mas também a paródia exige essa participação ativa do receptor, sendo a ironia o “[...] principal mecanismo retórico para despertar a consciência do leitor para esta dramatização [a paródia dramatiza]. A ironia participa no discurso paródico como uma estratégia, [...] que permite ao descodificador interpretar e avaliar” (HUTCHEON, 1985, p. 47). Quando se trata de paródia, então, reconhecemos um caráter duplo não maniqueísta na escrita e, consequentemente, na leitura que permite que “apreendamos a realidade não a partir de esquemas mentais inconciliáveis e 37


bipolarizados, mas, sim, através de choques, da tensão entre esses dois esquemas” (ALAVARCE, 2009, p. 18). Assim, o leitor deve reconhecer que a produção paródica e, por sua vez, irônica, é uma estrutura de sobreposição na qual se deve constatar, no mínimo, dois níveis de leitura: um superficial e outro implícito. O interessante neste pensamento, e mais ainda quando se trata de uma análise do texto saramaguiano, é que “não há garantias de que o interpretador vá ‘pegar’ a ironia da mesma maneira como foi intencionada. Na verdade, ‘pegar’ pode ser incorreto e até mesmo impróprio, ‘fazer’ seria muito mais preciso” (HUTCHEON, 2000, p. 28) e, por este motivo, a ironia é sempre “um caso de interpretação e atribuição” (HUTCHEON, 2000, p. 74). Desta forma, podemos ver o conto com um gênero com potencial intensificador do caráter paródico e, principalmente da ironia, visto que não tendo o tempo como aliado, o contista deve, como disse Cortázar (2006), trabalhar em profundidade no espaço literário, dando poder ao tom irônico. Tal profundidade faz com o que o autor trabalhe com extremo domínio sobre o seu material narrativo e intensifique todo e qualquer traço do qual se valha para seu texto o que, no caso da ironia saramaguiana, contamina até mesmo os objetos. O potencial irônico de Saramago: uma análise do conto “Cadeira” O conto “Cadeira”, de José Saramago, como as narrativas pós-modernas, foge aos padrões estéticos convencionais, apresentando uma narrativa fragmentada com esfacelamento do tempo, do espaço e do enredo, que acaba por ocasionar uma estrutura labiríntica. Como afirma Tereza Carvalho, “Os elementos dispersos da história real de Portugal vão se desfiando por meio de um complicado exercício de metáforas, metalinguagens, ironias [...]” (CARVALHO, 2008, p. 4). Na narrativa, Saramago se vale de uma metaficção historiográfica embrionária, já que, apesar de tratar de uma história real de Portugal, esta aparece sob a forma de alegoria na qual um caruncho fragiliza a cadeira de um tirano que sofrerá um acidente. Este acontecimento remete à queda, em 1968, de Antonio Oliveira Salazar, que governava Portugal desde 1932, na qual ele bate com a cabeça no chão, comprometendo o funcionamento cerebral e, consequentemente, seu governo, sendo substituído por Marcelo Caetano. O escritor português se vale deste fato, ironizando-o, para tecer uma crítica ao percurso histórico português que parte de um povo que luta pela liberdade, mas aponta para uma decadência ao submeter-se, economicamente, ao poder de outras nações como, por exemplo, aos Estados Unidos. No conto, o narrador prefere tratar a queda como um desabamento e, metalinguísticamente, explica ao seu leitor que apesar do significado de desabar não encaixar perfeitamente com a queda de uma cadeira – “desabar significa caírem as abas a” (SARAMAGO, 1994, p.11) – a muitas outras coisas que não tem abas, também se diz que desabam, como as trombas d’água. Esse é o recurso do qual ele se vale para apresentar, logo em seguida, que a cadeira é apenas um artifício para a história que irá narrar. A partir daí, dirige-se ao seu leitor, questionando-o: “não poderiam afinal desabar cadeiras, mesmo abas não tendo? Ao menos por liberdade poética? Ao menos por singelo artifício de um dizer que se proclama estilo? Aceita-se então que desabem cadeiras, embora seja preferível que se limitem a cair, a tomar, ir abaixo” 38


(SARAMAGO, 1994, p. 11). Com tal diálogo com o leitor, o narrador ganha sua cumplicidade, já que incita-o a ser mais ativo e a perceber que as palavras são ambíguas, podendo significar muito mais do que querem dizer. Ele afirma que as palavras “[...] nunca dizem o mesmo, por mais que se queira” (SARAMAGO, 1994, p. 11). Declara-se, ironicamente, que se as palavras não fossem tão variadas e pudessem ser agrupadas por homologia, ou seja, numa repetição monótona, “então a vida, poderia ser muito mais simples, por via de redução sucessiva, [...] seguindo, provavelmente até ao silêncio, a que chamaríamos o sinónimo geral ou omnivalente” (SARAMAGO, 1994, p. 11). O narrador, então, diz que a cadeira está a desabar, acrescentando que é um momento no qual reina o silêncio de uns e a ressonância heráldica de outros. A partir disso, na página seguinte, Saramago começa a brincar com as palavras, esperando a participação do leitor ao falar do grito que se forma na garganta daquele que se encontra na cadeira prestes a cair. Chama-o tombante e cadente, fazendo alusão aos verbos tombar e cair e, ironiza, dizendo que ainda que cadente, não é estrela: “[...] formado na garganta do tombante ou cadente, embora não estrela [...]” (SARAMAGO, 1994, p. 12). A ironia permite a Saramago um duplo sentido que leva-nos a perceber que se trata de um ditador, ainda que não saibamos qual (se o leitor não está ciente da história da queda de Salazar, já que foi um fato ocultado pela mídia). Isso se dá, primeiramente, quando ele afirma que a cadeira é “membro de uma família decerto numerosa” (SARAMAGO, 1994, p. 12), sugerindo que existem outras como ela e que todas têm no nome o destino da queda: “[...] já de seu nome parece que fadado ao fim de cair, ou será conto-do-vigário linguístico esse latim cadere, se cadere é latim, porque devia sê-lo” (SARAMAGO, 1994, p. 12). O uso deste mecanismo irônico também permite que o narrador apresente coisas contraditórias, sem que nós a reconheçamos como tal, visto que, como afirmou Kierkegaard, a ironia consiste “em se dizer o contrário do que se pensa” (KIERKEGAARD, 1991, p. 215). Assim, o narrador alega que não é importante falar sobre de qual madeira ela é feita, mas dedica páginas do texto a explicar o material do qual ela é constituída, aproveitando-se disto, inclusive, para tecer críticas às grandes navegações e à escravidão. O narrador afirma que o pinho não tem mais grande valor, perdeu-se o caráter de raro em virtude da construção de naus para percorrer o caminho até as Índias e passou a ser visto como medíocre: “Qualquer árvore poderá ter servido, excepto o pinho por ter esgotado as virtudes nas naus da Índia e ser hoje ordinário [...]” (SARAMAGO, 1994, p. 12). Outra crítica social, associada à ironia está ligada à questão da exploração do trabalho quando trata da possibilidade da cadeira ser feita de ébano, uma madeira escura, dura e pesada a qual resistiria aos carunchos. Assim, no texto, retoma-se a questão de que as palavras sempre tem mais de um sentido e afirma: “pode-se apostar que o nome de pau-de-ferro foi dado ou pesado por quem teve de o transportar às costas. Aposta pela certa e ganha” (SARAMAGO, 1994, p. 13). O narrador praticamente agradece pela escolha do material não ser o ébano, pois sua resistência impediria a queda de acontecer e ela era necessária, já que apenas a queda livraria o povo daquele silêncio ao qual as palavras precisam ainda mais assumir duplo sentido, para que possam ser ditas: a ditadura. Segundo ele,

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se de ébano fosse [...] não cairia ela, ou viria a cair muito mais tarde, daqui por exemplo a um século, quando já não nos valesse a pena sua de cair. É possível que outra cadeira viesse a cair no lugar dela, para poder dar a mesma queda e o mesmo resultado, mas isso seria contar outra história [...] (SARAMAGO, 1994, p. 13).

Devido ao alcance das exposições da narrativa até o momento, o narrador conclui que a madeira da qual a cadeira é feita é o mogno, para durar, mas, felizmente, não resiste ao caruncho, este que virá a ser o herói do povo e salvará a pátria do grande ditador. Tratando do desabamento, antes que ele acontecesse efetivamente, o narrador afirma que não haverá nenhuma investigação policial, ainda que devesse ser feita. Mas, ironicamente, continua o parágrafo em uma brincadeira com a palavra ordem, afirmando que não haverá polícia porque haverá ordem, ordenariam tudo a todos para conseguir descobrir o nome daquele que derrubou o tirano do seu trono: [...] seria agora o momento, repete-se, de dar a ordem, uma severa ordem que fizesse remontar tudo, desde este instante que não pode ser detido até não tanto à arvore (ou árvores, pois não é garantido que todas as peças sejam de tábuas irmãs), mas até ao vendedor, ao armazenista, à serração, ao estivador, à companhia de navegações que de longe trouxe o tronco aparado de ramos e raízes. Até onde fosse necessário chegar para descobrir o caruncho original e esclarecer as responsabilidades (SARAMAGO, 1994, p. 14).

Após ironizar as atitudes totalitárias daquele governo, Saramago apresenta pistas de que fala sobre o governo português, mais especificamente o de Salazar. Isso acontece no momento em que o narrador trata do caruncho que corroeu a cadeira, denominando-o coleóptero, determinando que têm a vida breve e, por isso, “muitas gerações se alimentaram deste mogno até ao dia da glória, nobre povo nação valente.” (SARAMAGO, 1994, p. 15). Neste momento, compara o serviço dos insetos que roem a cadeira com a construção das pirâmides do Egito, afirmando que os túneis todos iriam dar em uma câmara mortuária, coisa que os egiptólogos descobriram e riram disso, agora são as vezes dos portugueses: “[...] naquele caso como se diz egiptólogos, neste caso como se deverá dizer lusófonos ou portugalólogos, a seu tempo chamados” (SARAMAGO, 1994, p. 15). Aproveita o campo semântico do Egito para comparar o tirano na cadeira a um faraó e diz que naquele antro de túneis que levam à morte é “onde vai instalar-se ou é instalado o faraó” (SARAMAGO, 1994, p. 15). Quando afirma se tratar de Portugal, o narrador passa a incluir-se quando se trata do desejo do desabamento: “Cair assim a cadeira sem dúvida cai, mas o tempo de cair é todo o que quisermos, e enquanto olhamos este tombo que nada deterá e que nenhum de nós iria deter, agora já sabido irremediável [...]” (SARAMAGO, 1994, p. 16). Para ele é um prazer livrar-se do velho, já que somente assim os portugueses sentirão o prazer de se ver livres das amarras do fascismo. No que tange ao prazer, Saramago faz uma referência interarte com a obra de Bernini, apresentando em seu conto mais uma característica do pós modernismo, que retomaremos mais a frente: Aprendamos, se possível, com Santa Teresa de Ávila e o dicionário, que este gozo é aquela sobrenatural alegria que na alma dos justos produz a graça.

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Enquanto vemos a cadeira cair, seria impossível não estarmos nós recebendo essa graça, por espectadores da queda nada fazemos nem vemos fazer para deter e assistimos juntos (SARAMAGO, 1994, p. 16).

Depois dos portugueses se apresentarem como o povo que espera pela queda, eles ganham agora seu herói com nome e nacionalidade Anobium, uma espécie de caruncho tipicamente portuguesa, que será o salvador da pátria como já foi dito. No que se refere a ele, o narrador ainda se vale da sua posição para introduzir a temática da invasão cultural estadunidense, comparando-o aos mocinhos do faroeste americano que se vingam daqueles que fazem o mal e ficam para todo sempre com o nome na história: Chamaram-se Fred, Tom Mix, Buck Jones, mas estes são os nomes que ficaram para todo o sempre registrados na história épica do Far-West e que não devem fazer-nos esquecer os coleópteros anónimos, aqueles que tiveram tarefa menos gloriosa, ridícula até, como de terem começado a atravessar o deserto e morrido nele, ou vindo pé ante pé pela vereda do pântano e aí escorregar e ficar sujo, malcheiroso, que é vexame, castigado com as gargalhadas da plateia e do balcão. Nenhum destes pôde chegar ao ajuste de contas final [...] (SARAMAGO, 1994, p. 17).

Neste trecho, também percebemos que Saramago, como partidário das minorias, retrata a questão do povo que aparecerá novamente em Memorial do Convento, ou seja, aqueles que não tiveram voz nem vez e foram solapados pela História. No que tange a este aspecto, a cadeira acaba ganhando a cara do povo e ela, que simbolizava o poder do ditador, agora está a serviço dos “cidadãos” e, como eles, não é vista pelo tirano: Vê-a de longe o velho que se aproxima e cada vez mais de perto a vê, se é que a vê, que de tantos milhares de vezes que ali se sentou e anão vê já, e esse é que é o seu erro, sempre o foi, não reparar nas cadeiras em que se senta por supor que todas são de poder o que só ele pode. S. Jorge, santo, veria ali o dragão, mas este velho é um falso devoto que se mancomunou, de gorra, com os cardeais patriarcais, e todos juntos, ele e eles, in hoc signo vinces (SARAMAGO, 1994, p. 19-20).

Ao contrário do povo, que ganha ares de herói, o velho da cadeira é visto como desumano, ainda que se sinta o maior dos homens sentado em seu trono, o que, mais uma vez, é apresentado pelo viés da ironia: “[...] todos somos humanos e sabemos. Pelo lado da tripa, esclareça-se, porque este velho há muitas e também diversas razões, e antigas elas são, para duvidar da sua humanidade. No entanto, está sentado como um homem” (SARAMAGO, 1994, p. 20). Agora que já é parte do texto, o narrador intrometido de Saramago sente que tem poder sobre os acontecimentos, inclusive sobre o tempo e, junto ao povo, quer ver a cena da queda do ditador em câmera lenta, mesmo que isso seja visto como inumano por alguns, para ele os feitos do velho justificam qualquer sadismo: [...] enquanto o som da queda não for ouvido, somos nós os senhores deste espetáculo, podemos até exercitar o sadismo de que, como o médico e o louco, temos felizmente um pouco, de uma forma, digamos já, passiva, só de quem vê

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e não conhece ou in limine rejeita obrigações sequer só humanitárias de acudir. A este velho não” (SARAMAGO, 1994, p. 21).

Além disso, compara o velho a diversas entidades ligadas ao inferno, a fim de justificar sua necessidade de vê-lo ao chão: “[...] enquanto a cadeira de belzebu se parte e cai para trás arrastando consigo satanás, asmodeu e legião.” (SARAMAGO, 1994, p. 21). Para ele, esse desabamento é um espetáculo ao qual todos deveriam assistir, no entanto é privado e, por este motivo, cabe a ele narrálo, passo a passo, para que seja do conhecimento de todos, já que não há registro público do fato. Saramago escreve: “Assistiremos ao grande exercício ginástico, o mortal para trás, muito mais espectacular este, embora sem público [...]” (SARAMAGO, 1994, p. 22) e também ironiza: “E não está ninguém que fixe este momento. O meu reino por uma polaroid, gritou Ricardo III, e ninguém lhe acudiu porque pedia cedo de mais” (SARAMAGO, 1994, p. 22). Para o narrador a queda é um espetáculo porque é excepcional, comparável ao pecado de Adão e Eva. Para ele: “Esta queda não é uma qualquer queda de Chaplin, não se pode repetir outra vez, é única e por isso excelente, como quando juntos estiveram os feitos de Adão e as graças de Eva.” (SARAMAGO, 1994, p. 22). Saramago, como ateu convicto, não perde a oportunidade de ironizar a religião e compara o velho ditador à Adão, que, ainda que não tivesse companheira, tinha sempre ao seu lado Maria De Jesus Caetano Freire, governanta que lhe serviu desde os 31 anos “E por nela termos falado, Eva doméstica e serviçal, mandante na proporção, benfeitora de desempregados sóbrios, honestos e católicos, buraco de martírio, poder medrado e merdado à sombra deste Adão que cai sem maçã nem serpente, onde estás?” (SARAMAGO, 1994, p. 22). Não deixa de se referir também àqueles que apoiavam o ditador, chama-os primeiramente, santos, aproveitando o contexto religioso ao qual havia adentrado. A narrativa mostra como o homem muda diante do poder, quando o tem é forte e rodeado de pessoas, quando não, como na hora da morte, é relegado a traidores: “Os santos estão de costas, assobiam, fingem-se distraídos, porque sabem muito bem que não há milagres, que nunca os houve, e quando alguma coisa de extraordinário se passou no mundo, a sorte deles foi estarem presentes e aproveitarem.” (SARAMAGO, 1994, p. 22) A queda final se aproxima e o narrador a deseja com cada vez mais intensidade: “Cai, velho, cai” (SARAMAGO, 1994, p. 23). Após a queda, Saramago trata justamente da categoria supracitada de pessoas “apodrecidas”, que sempre rodeiam o poder: Não tarde que de todos os lados venham subindo os Cains, se não é injusto afinal chamar-lhes assim, dar-lhes o nome de um infeliz homem de que o Senhor desviou a sua face, e por isso humanamente tirou vingança de um irmão lambe-botas e intriguista. Também lhes não chamaremos abutre, ainda que se movam assim, ou não, ou sim: mais exacto, do duplo ponto de vista morfológico e caracterológico, seria incluí-los no capítulo das hienas, e está é uma grande descoberta. Com a ressalva importante de que as hienas, tal como os abutre, são uteis animais que limpam de carne morta as paisagens dos vivos e por isso lhes haveremos de agradecer, ao passo que estes são ao mesmo tempo a hiena e a sua própria carne morta, e esta é que é afinal a grande descoberta que foi dita (SARAMAGO, 1994, p. 25).

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Em seguida, o narrador assume, ironicamente, a posição de um professor, ensinando sobre os cortes e como morrerá este velho, fornecendo, inclusive, dicas de leitura: “Observemos agora do outro lado. Atenção. Isto que sobressai aqui são os tubérculos quadrigémeos ou lobos ópticos (não sendo aula de zoologia, a acentuação nos lobos faz-se forte no primeiro o)” (SARAMAGO, 1994, p. 27). Ao olhar para a sua “sala de aula”, adverte seus alunos: “Que é isto? Iremos nós apiedar-nos do inimigo vencido? É a morte uma desculpa, um perdão, uma esponja, uma lixívia para lavar crimes?” (SARAMAGO, 1994, p. 28). Além do uso da ironia, apresentado neste subtópico, Saramago faz um intertexto com um soneto de Camões, denominado “Mudam-se os tempos mudamse as vontades”, que também se tornou título de um álbum de José Mário Branco que esteve exilado durante o governo de Salazar. Saramago se vale do título e o complementa: “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades e qualidades, o que foi perfeito deixou de o ser, por razões em que as vontades não podem, mas que não seriam razões sem que os tempos as trouxessem. Ou o tempo” (SARAMAGO, 1994, p. 12). Para finalizar, faz uma previsão de que após a queda as coisas mudarão, já mudaram, talvez, terminando com uma pretensão de um futuro bom em breve: “Que me diz a este mês de Setembro? Há muito tempo não tínhamos um tempo assim” (SARAMAGO, 1994, p. 29). Considerações Finais Percebemos que o conto Saramaguiano exige do leitor participação ativa no processo de compreensão, principalmente no que tange aos intertextos e à ironia. Muito do processo de construção de sentido depende de inferências que são de conhecimento do autor, mas nem sempre do leitor e cabe a este sanar seus déficits. Neste artigo tentamos apresentar um pouco desde entendimento do segundo plano criado por José Saramago porque certamente não é possível abarcar tudo em tão poucas páginas. O conto saramaguiano é considerado o embrião dos seus romances, no entanto é bastante desenvolvido, como uma área de testes à qual já se utiliza há algum tempo. Assim, apoiamo-nos em Julio Cortázar para dizer que o conto de Saramago é “uma verdadeira máquina literária de criar interesses” (apud GOTLIB, 2006, p. 37) não apenas sobre a sociedade ou o método de construção textual, mas também sobre o que é ser humano. Além disso, é um espaço de testes para dar voz, duplamente, ao povo: primeiro colocando-o como ator de uma revolução e, segundo, por fazê-lo, como leitor, participar da construção de sentido. É interessante destacar que Saramago escreve este conto depois do período ditatorial, mas se vale de meios de escrita utilizados para driblar a censura, indo ao encontro da opinião de Camila Alavarce quando diz que “ironia e paródia atuam na suspensão da censura, contrariando, muitas vezes, uma ideologia que se diz séria e ocasionando, pois, discursos polifônicos e conflitantes” (ALAVARCE, 2009, p. 15). Assim, concluímos que ao lançar mão do mecanismo da ironia para construir um texto que se divide entre metaficção historiográfica e paródia, Saramago não foi inocente. Nós, diante do seu forte engajamento político na sociedade portuguesa, não poderíamos pensar que escreveria algo por acaso e, por este motivo, entende-se que a cadeira não é só um objeto, mas um ser humano quase. 43


Referências Bibliográficas ALAVARCE, Camila da Silva. A ironia e suas refrações: um estudo sobre a dissonância na paródia e no riso. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. Trad. Davi Arriguci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2006. FIORUCI, Wellington R; MORAES, Carla D. Quase seres humanos: uma análise do conto “coisas”, de José Saramago. Revista de Literatura, História e Memória, v. 9, n. 13, pp. 15-23, 2013. GOTLIB, Nádia Batella. Teoria do Conto. São Paulo: Ática, 2006. HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991. HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Trad. Julio Jeha. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000. ______. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte do século XX. Trad. Teresa Louro Pérez. Rio de Janeiro: Edições 70, 1985. KIERKEGAARD, Soren Aabye. O conceito de ironia: constantemente referi à Sócrates. Petrópolis: Editora Vozes, 1991. MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa 1. São Paulo: Cultrix, 2006. ______. A literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2013. SARAMAGO, José. Objecto Quase. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. ______. Entrevista a Hugo Sukman – O Globo. 1995. Disponível em: <http://www.tirodeletra.com.br/politica/JoseSaramago.htm>. Acesso em: 07 dez. 2016. ______. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995a. ______. História do Cerco de Lisboa. Lisboa: Editorial Caminho, 1995b. ______. O homem duplicado. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. ______. Ensaio sobre a lucidez. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. ______. Memorial do Convento. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. SOARES, Marcelo Pacheco. Saramago Quase. Revista Augustus, ano 16, n 31, 2011.

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O OLHAR URBANO DE ZUENIR VENTURA: ASPECTOS SEMIÓTICOS PRESENTES NA OBRA CIDADE PARTIDA Taís Alves6

Resumo: Este trabalho tem como proposta estudar no livro “Cidade Partida”, de Zuenir Ventura, o olhar do escritor/jornalista sob os fatos que marcaram a década de 90, no Brasil e que estão presentes na escritura do autor. A partir de um olhar cinematográfico e pós-moderno, o escritor narra sua experiência vivida como repórter observador da realidade, e, ao mesmo tempo, participante dela. Pretendese fazer uma abordagem semiótica dos textos, apontando os principais códigos utilizados por Zuenir para imprimir seus pontos de vista como os códigos culturais do período, do saber humano e da opinião pública sobre os fatos narrados. Além disso, é importante abordar o campo simbólico como traço da linguagem utilizada que é capaz de levar o leitor a se deslocar e “entrever” uma outra cena que não aquela enunciada como acreditamos lê-la (BARTHES, 2001, p. 335). Palavras-chave: Cidade Partida; Zuenir Ventura; Semiótica. Abstract: This paper aims to study Zuenir Ventura 's "Cidade Partida", the writer' s / journalist 's perspective on the events that marked the 90' s in Brazil and that are present in the author 's writing. From a cinematographic and postmodern look, the writer recounts his lived experience as an observer reporter of reality, and at the same time participant of it. It is intended to make a semiotic approach to the texts, pointing out the main codes used by Zuenir to print their views as the cultural codes of the period, human knowledge and public opinion on the facts narrated. In addition, it is important to approach the symbolic field as a trait of the language used that is able to lead the reader to move and "glimpse" a scene other than that enunciated as we believe we read it. (Barthes, 2001, p.335). Keywords: City Departure; Zuenir Ventura; Semiotics.

1. Introdução O presente artigo é resultado do estudo sobre as representações sociais e culturais presentes na obra Cidade Partida, publicada em 1994 e de autoria do jornalista Zuenir Ventura. O objetivo foi diagnosticar como o autor foi capaz de criar códigos urbanos capazes de ressaltar a realidade na cidade do Rio de Janeiro na década de 90. Para essa identificação, utilizou-se como aporte teórico a semiótica, como teoria geral dos signos. Em um primeiro momento, aplicou-se a definição de signo e da trilogia do pensamento humano de Charles Sanders Peirce. Além disso, foram Taís de Souza Alves Coutinho, mestre em Letras, professora da Universidade do Estado de Minas Gerais, Unidade Ubá. 6

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aplicados os conceitos de Código, como convenção cultural, do semioticista Umberto Eco. O olhar do repórter como observador e transmissor da realidade e a utilização de uma linguagem cinematográfica foram apontados como facilitadores para a transmissão das mensagens. Para se chegar a uma representação ou uma mediação do signo, foi necessário que o autor identificasse códigos em comum da sociedade brasileira e os recriasse em um ambiente urbano do Rio de Janeiro. Foi realizado um levantamento bibliográfico de obras e autores que possam dar o embasamento teórico necessário ao tema proposto para estudo. Também foram consideradas diversas fontes de pesquisa, quais sejam: livros, internet, que serviram para análise da obra. Não há a pretensão de que, com esse trabalho, se esgote a discussão sobre a violência urbana no Rio de Janeiro, mas sim, contribuir para a reflexão sobre como a semiótica pode contribuir como aporte teórico sobre a criação de signos urbanos apresentados no livro Cidade Partida. 2. A Obra O livro Cidade Partida, de Zuenir Ventura, foi publicado em 1994 e mostra a divisão entre morro e asfalto, favela e centros urbanos, do Rio de Janeiro. O escritor foi um dos autores que recorreram à imagem para fazer a construção do discurso, baseado em narrativas ficcionais e documentais capazes de representar a vida na metrópole. O autor narra sua experiência ao passar dez meses na favela de Vigário Geral, no Rio de Janeiro. O repórter-escritor se transforma em alguém que observa o cotidiano e o transforma em livro para a sociedade. Sensível aos problemas sociais brasileiros como a violência urbana, Zuenir trabalha a questão das diferenças sociais e demonstra sua preocupação constante com os perigos que envolvem as cidades, principalmente o Rio de Janeiro. Ao passar por todas as principais redações do país, o escritor e jornalista Zuenir Carlos Ventura deixou sua marca de observador da realidade brasileira, aquele que utiliza o seu olhar treinado de repórter para ver o mundo de uma forma única e é capaz de transmitir o que vê a seus leitores. É com esse olhar atento que muitos autores trabalharam suas histórias na literatura. Os problemas da humanidade, suas angústias, seus medos foram para as páginas das obras, sob o olhar do escritor. Nas cidades, com seus símbolos, signos urbanos com placas, letreiros, anúncios, o olhar do escritor percorre as ruas e as transforma em páginas escritas. A própria cidade se apresenta como se deve vê-la, mas cabe ao olhar do escritor descrevê-la. No mundo contemporâneo, essas imagens produzidas pelas câmeras de vídeo também podem ajudar na inibição da violência urbana nos grandes centros. Esse olhar do homem pela lente da câmera pode vigiar o cotidiano das cidades, ajudando na segurança nas ruas ou em locais privados. Com a criação das câmeras de vídeo, o ser humano passa a ter uma nova visão de mundo, com o olho marcado pela reprodução da realidade ou parte dela, como observa Maria de Lourdes Abreu de Oliveira: “nesse sentido, o olho da televisão, o olho do cinema, tornam-se extensões do olho humano” (1998, p. 101).

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Segundo essa pesquisadora, a partir do momento em que a sociedade amplia o campo visual de apreensão do homem, o olhar passa a ser quase uma condenação. Essa obsessão pela imagem e a necessidade de se provar que não se está só, e de que é preciso viver em coletividade, trazem para a população o desejo de saber como o outro vive e se relaciona, em seus momentos de alegria e tristeza (OLIVEIRA, 1998, p. 102). 3. A Semiótica Como Aporte Teórico Lúcia Santaella, com base em seus estudos sobre Charles Sanders Peirce, define semiótica como sendo a Teoria Geral dos Signos e que tem como finalidade equipar-nos com a capacidade de penetração analítica que nos permita ler os signos com a mesma naturalidade com que respiramos, com a mesma prontidão com que reagimos ao perigo e com a mesma profundidade com que meditamos (2008, apresentação XI). Semiótica seria a ciência geral de todas as linguagens, sendo capaz de classificar e descrever os signos logicamente possíveis (p. 29). Santaella trabalhou com o conceito de fenomenologia para explicar as três categorias universais de toda experiência e pensamento propostos por Charles Peirce: Entendendo-se por fenômeno qualquer coisa que esteja de algum modo e, em qualquer sentido presente à mente, isto é, qualquer coisa que apareça , seja ela externa (uma batida de porta, um raio de luz, um cheiro de jasmim), seja ela interna ou visceral (uma dor no estômago, uma lembrança, uma reminiscência, uma expectativa, um desejo) que pertença a um sonho, ou uma nova ideia geral e abstrata da ciência, a fenomenologia seria, segundo Peirce, a descrição e análise das experiências que estão em aberto para todo homem, cada dia e hora em cada canto e esquina de nosso cotidiano (p. 32).

Neste caso, fenômeno seria tudo aquilo que aparece à mente, corresponda a algo real ou não (p. 33). O conceito de signo aparece como uma possibilidade para essa interpretação. “Afinal, não há, de modo algum, comunicação, interação, projeção, previsão, compreensão. Sem signos. Signo é sinônimo de vida. Onde houver vida, haverá signos” (p. 4). Qualquer coisa de qualquer espécie, imaginada, sonhada, sentida, experimentada, pensada, desejada... pode ser um signo, desde que esta “coisa” seja interpretada em função de um fundamento que lhe é próprio, como estando no lugar de qualquer outra coisa. Ser um signo é ser um termo numa relação triádica específica. Essa relação não precisa necessariamente estar armada de maneira prévia para que o signo funcione como tal. Essa restrição só cabe ao signo triádico genuíno (p. 91).

Assim o “signo é uma coisa que representa outra coisa, seu objeto e só pode funcionar como signo se carregar esse poder de representar, substituir uma outra coisa diferente dele” (2008). Santaella propõe os percursos para aplicação dos signos: a contemplação, observação das qualidades. Depois viria o percurso da observação de suas características existenciais e, por fim, a capacidade de generalização: semelhanças com outros objetos. “Analisar semioticamente significa empreender um diálogo de signos, no qual nós mesmos somos signos que respondemos a signos” (2008, p. 42). 47


É necessário, portanto, conhecer as tríades dos signos: Signo 1º em si mesmo

Signo 2º com seu objeto

1º quali-signo Ícone 2º sin-signo Índice 3º legi-signo símbolo Fonte: Santaella, 1983, p. 62

Signo 3º com interpretante Rema Dicente Argumento

seu

Para a análise neste artigo consideramos a aplicação do signo com relação ao seu objeto, portanto ícone, índice e símbolo. Ícones: é um signo que se refere ao objeto que denota apenas em virtude de seus caracteres próprios, caracteres que ele igualmente possui, que um tal objeto exista ou não. (...) Qualquer coisa que seja uma qualidade, um existente individual ou uma lei, é ícone de qualquer coisa, na medida em que for semelhante a essa coisa e utilizado como signo seu. Índice: um signo ou representação que se refere a seu objeto não tanto em virtude de uma similaridade ou analogia qualquer com ele, nem pelo fato de estar associado a caracteres gerais que esse objeto acontece ter, mas sim por estar numa conexão dinâmica (espacial, inclusive) com o objeto. (...). Símbolo: Todas as palavras, sentenças, livros e outros signos convencionais são símbolos (SANTAELLA, 2008, p. 54).

4. Os Signos Urbanos No Livro Cidade Partida Com seu olhar atento de interpretação dos signos, Zuenir discutiu na obra Cidade Partida, um dos grandes problemas da humanidade: a convivência com a violência urbana, suas angústias e seus medos. Ao relatar os problemas relativos à violência no Rio de Janeiro na década de 90, mais especificamente sobre a disputa entre as favelas de Vigário Geral e Parada de Lucas, Zuenir recria o espaço urbano, destacando os signos que o representam naquele cenário. Na primeira metade do livro, Zuenir apresenta o Rio de Janeiro da década de 50. Assim, a primeira parte — “A idade da inocência” mostra que a metrópole dos anos 50 já vivia conflitos que iriam crescer nos anos seguintes. “Mais do que memória afetiva, proustiana, involuntária, passou a funcionar a memória seletiva, aquela que gosta de escolher o melhor. E muita gente acredita que o melhor do Rio ocorreu por volta dos anos 50, os anos dourados” (1994, p. 17). Nessa etapa, Zuenir mostra a periferia como um ambiente ainda distante e oculto de parte da sociedade que não tinha contato com aquela realidade. “Uma parte da cidade oculta já tinha ocupado os morros, mas as favelas de então, mais do que ameaça ou problema, eram vistas de longe como um acidente pitoresco” (p. 18). De acordo com o autor, pode-se afirmar que já existiam, nos anos 50, duas cidades, ou uma cidade partida, porém, a convivência entre os seres humanos era considerada mais amena. A disputa de classes sociais era considerada menor, como ele próprio ressalta: “nem sempre deixaram perceber que havia um ovo de serpente chocando no paraíso” (p. 11). 48


O Rio estava longe de ser uma cidade realmente perigosa. Tinha suas zonas de risco, mas poucas e delimitadas. As fronteiras eram conhecidas. A praça Mauá, por exemplo onde aportavam os navios internacionais, território do poderoso contrabandista Zica, era um perigo nas noites em que desembarcavam os marinheiros americanos. A zona do Mangue, residência do baixo meretrício, também não era um lugar recomendável. Para a Lapa, no velho centro da cidade, acorriam boêmios, sambistas e malandros. A Central do Brasil já era mais barra pesada por ser ponto de venda de maconha para os marginais (p.30-31).

A favela era até então, para muitos da sociedade, algo distante e parava no nível da primeiridade de Peirce (em que o interpretante chega apenas no primeiro nível de compreensão, tendo uma ideia vaga da realidade. “Primeiridade é o modo de ser daquilo que tal como é, positivamente e sem referência a outra coisa qualquer. É a categoria do sentimento sem reflexão, da mera possibilidade, do imediato, da qualidade ainda não distinguida e da independência” (CP 1.302303,1328,1531). Na segunda parte do livro, Zuenir recria o ambiente das favelas, desde as suas primeiras impressões ao chegar ao morro. Vigário Geral vivia o seu primeiro sábado alegre depois da chacina. Às cinco da tarde, suas ruas de terra iriam me impressionar naquela primeira visita, além da presença ostensiva dos traficantes e suas armas medonhas, uma rotina com a qual eu teria que me acostumar nos dez meses seguintes, passado o susto inicial. A meia hora da Zona Sul, a trinta quilômetros do centro do Rio, eu estava entrando em outro mundo (p. 55).

Zuenir descreve o local com riqueza de detalhes, como se os seus olhos andassem pela favela como as lentes de uma câmera. O seu próprio texto demonstra isso. Mirei na poça e fiquei parado como uma câmera fixa. Quando ele passasse, a arma estaria ao alcance da vista. Poderia olhar sem dar bandeira de excessiva curiosidade. Quando a peça prateada entrou no meu campo de visão, puder reparar: Era igualzinha a uma filmadora. Tem até um punho, também cromado, para se segurar. O corpo dela resplandece, mas o cano, mais fino do que se poderia supor, é escuro. Levo um susto quando percebo que há um encantamento maldito nesse meu exercício de voyeurismo (1994, p. 179).

A partir do momento em que a sociedade amplia o campo visual de apreensão do homem, o olhar passa a ser quase uma condenação. Essa obsessão pela imagem e a necessidade de se provar que não se está só, e de que é preciso viver em coletividade, trazem para a população o desejo de saber como o outro vive e se relaciona, em seus momentos de alegria e tristeza (OLIVEIRA, 1998, p. 102). Zuenir contribui com a ampliação desse olhar ao recriar os espaços urbanos da época sob o seu olhar e descrever os conflitos sociais. A situação não é fácil, principalmente nos lugares onde os traficantes nasceram, cresceram e têm muitos amigos. Com o vazio completo do poder público, a influência e o poder das quadrilhas se exercem ou pelo terror ou

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pela cooptação, ou pelos dois. O melhor exemplo está ali na vizinha Parada de Lucas, cuja associação é controlada pelo chefe do tráfico, Robertinho de Lucas. Mesmo em Vigário Geral, onde a associação é independente, os bandidos têm trânsito entre os moradores (p. 104).

A cidade do Rio de Janeiro é valorizada por sua natureza e população hospitaleira, acostumada a receber bem o turista. O termo Cidade Maravilhosa foi atribuído por uma escritora francesa encantada com as belezas do Rio, durante uma visita no início do século XX, após uma nova urbanização realizada por Pereira Passos, orientada pelos padrões estéticos da belle époque (LEITE, 2000, p.73). Esse ideal de cidade contribuiu para a formação da identidade de um povo com espírito alegre, que conviveria harmonicamente com as diferenças de classe. Viver nesse paraíso tropical, no entanto, não significa ficar alheio aos conflitos sociais existentes também nesse mesmo espaço. Zuenir descreve as brigas em um baile funk. “Um combate selvagem entre hordas – mas só à primeira vista. O espetáculo se apresenta mais complexo à medida que se demora na observação”. E ele completa sua análise: “A constatação mais inesperada é que nessa luta não se usa arma, a não ser as mãos vazias e os pés calçados de tênis- nada de pau, soco inglês, corrente e muito menos faca ou punhal” (p. 123). O autor ressalta a cultura da violência pela qual o Rio passava na década de 90, mais especificamente em 1993. Em 1993 parecia condensar, como um ano-marco, todas as formas agressivas de conduto: a violência pública, a doméstica, linchamentos, estupros eram manifestações espetaculares dessa nova cultura, a Cultura da Violência, que já havia criado o que o antropólogo Luiz Eduardo Soares chamou de Cultura do Medo, um subproduto também perigoso (1994, p. 138).

Já nas primeiras décadas do século XIX, o homem começa a tomar consciência de sua importância para o mundo, dentro da sociedade industrial. Nesse período, muitos pensadores passam a se preocupar com os problemas das cidades, suas estruturas e questões sociais com as quais deveria conviver. Ao tomar ciência da condição em que ocupa no espaço, o leitor de Cidade Partida, passa a ter noção da secundidade de Peirce. “A secundidade começa quando um fenômeno primeiro é relacionado a um segundo fenômeno qualquer. É a categoria da comparação, da ação, do fato, da realidade e da experiência no tempo e no espaço” (CP 1356-359). Com o surgimento de uma economia capitalista industrial aparecem os problemas para a sociedade. Grande parte da população passa a migrar do campo para as grandes cidades. Na Europa, por exemplo, em menos de um século, o número de pessoas quintuplica (Cf. CARDOSO Wilson; VALADARES Jorge, 2002). Com essas transformações aparecem outras profissões para se atuar na cidade. Foram precisos criar bairros, fábricas, lojas. Surgiram novos órgãos para administrar as cidades. Para Wilson Cardoso e Jorge Valadares, desde o século XIX, em função das pestes e das agitações sociais na Europa, o espaço urbano é dividido em espaço para pobres e espaço para ricos, sendo que a habitação de ambos no mesmo espaço era considerado um perigo sanitário e até político. O próprio espaço urbano mostra os problemas da sociedade e revela as divisões existentes, em decorrência 50


das questões sociais, políticas e econômicas. Nesse caso, só é possível compreender a divisão do espaço nas grandes cidades se forem levadas em consideração as desigualdades sociais, as relações humanas de um grande grupo marginalizado da sociedade. Com o fenômeno da urbanização, característico do século XX, ficou evidente a condição de que grande parte da população passou a ser basicamente urbana. Soma-se a isso a enorme migração campo-cidade dos homens em busca de trabalho e condições melhores de vida. A cidade contemporânea teve seu solo transformado em mercadoria e, como tal, as melhores partes foram distribuídas aos mais favorecidos economicamente. Assim, o espaço das cidades foi ocupado de forma desigual e contraditória. Aliada a essa questão de divisão do local urbano há também a questão da distribuição desigual da renda no país. Esse homem, surgido na pós-Revolução Industrial, habita as grandes cidades, dividindo-as com milhões de outras pessoas. Para Maria de Lourdes Abreu de Oliveira, esse indivíduo faz parte de uma civilização: (...)urbana, solitária, desindividualizada, rotulada por anônimos cartões de crédito, tendo por cenário o labirinto de ruas e de ruelas, a fumaça das grandes fábricas, o espaço mínimo das moradias acumuladas em prédios massudos e frios. Assim, ele se perde no anonimato das multidões, em que cada um pode ser um criminoso disfarçado, levando-o à desconfiança, ao medo, à violência. Destituído de valores edificantes, ele busca um objetivo bem concreto: enriquecer (Ibidem, p. 36).

O homem resultante dessas carências nas áreas social, econômica ou mesmo psicológica se transforma em um sujeito alienado e refém de uma ordem estabelecida (Cf. CARDOSO Wilson; VALADARES Jorge, 2002). Fica submetido a um conjunto de valores com os quais acredita alcançar a felicidade. Entram, nesse caso, o poder de compra e a possibilidade de uma vida digna, saudável. À medida em que não consegue atingir esses objetivos, o sujeito sente-se desamparado, desprotegido. Aliás, esse sentimento de desamparo acompanha o ser humano desde o seu nascimento, quando precisa do outro ser para sobreviver: A cidade cresceu, modernizou-se e a população menos favorecida acabou sendo expulsa para os morros, para a periferia. A consequência disso foi uma cidade partida. As classes mais favorecidas, por possuírem a oportunidade da escolha, muitas vezes, se isolam em locais, preferencialmente distante das áreas onde são desenvolvidas as atividades produtivas das grandes cidades e próximas aos ambientes onde a natureza foi menos prejudicada pelo crescimento urbano. Por outro lado, a classe operária procura estabelecer-se próximo a locais que garantam a sua sobrevivência; daí se aglutinarem nos bairros mais humildes ou favelas, proporcionando a divisão das cidades. Isso aconteceu também com o Rio de Janeiro. A cidade, que foi até capital do país, até 1960, cresceu e teve sua imagem alterada. Durante os anos 90, a metrópole passou a aumentar o seu perfil de cidade violenta. Os olhos de todo o planeta voltaram-se para os assassinatos, roubos, assaltos, sequestros, arrastões nas praias, brigas de jovens em bailes funk e confrontos armados entre quadrilhas rivais e confrontos com a polícia. A obra apresenta a própria cidade do Rio de Janeiro como um símbolo da violência urbana, seus personagens e consequências para a realidade brasileira. “Sempre 51


que pensamos, temos presente na consciência algum sentimento, imagem, concepção ou outra representação que serve como signo” (PEIRCE, 20013, p. 269). Ao retratar a realidade do Rio de Janeiro na segunda etapa da obra, o autor trabalha com representação da realidade e é possível chegar ao nível de terceiridade proposto por Peirce. Seria o nível de mediação. “Terceiridade é a categoria que relaciona um fenômeno segundo a um terceiro. É a categoria da mediação, do hábito, da memória, da continuidade, da síntese, da comunicação, da representação, da semiose e dos signos” (p. 64). O Rio de Janeiro, em constante conflito, foi observado e analisado a partir de uma série de episódios violentos que ali ocorreram no início dos anos 90. Para Márcia Pereira Leite (2000), naquela época, a população era chamada a escolher um dos lados de uma cidade irremediavelmente partida. A metáfora da guerra urbana travada entre as favelas espalhadas nos morros, os bairros pobres, tendo como personagens os moradores. Nesse cenário estão os bandidos, os traficantes. No capítulo 17 do livro, Zuenir descreve um encontro com o “dono do morro”, líder do tráfico de Vigário Geral: Flávio Negão. Com muitos detalhes, o jornalista apresenta o personagem. Podemos considerá-lo como um símbolo da favela carioca da época. O jovem da periferia que adquiriu poder graças ao tráfico de drogas. Muitos o idolatravam como um ídolo, outros o temiam. Pela primeira vez o vejo de jeans e de tênis. Abandonara finalmente a sandália havaiana de cor laranja. Vem com uma camiseta malhada, escura, que parece uma dessas roupas de camuflagem do Exército. De perto vê-se que não. Do Exército mesmo só a inseparável pochete verde-oliva de onde sai uma pequena antena, com certeza de um aparelho transmissor. A tiracolo, o indefectível AR-15 (1994, p. 181).

Zuenir destacou a guerra entre morro e asfalto, bandidos e policiais, a imagem da cidade dividida entre cidadãos e criminosos foi exportada para vários países, pela mídia. Ao recriar as situações de violência urbana no Rio de Janeiro, o autor transforma a própria cidade em um símbolo ou representação do que acontecia na época. O funk, o bandido, os arrastões nas praias passam a representar a época nas páginas de Cidade Partida. De fato, bastava olhar de cima. Era um problema de física. Havia ali uns 2 mil jovens num espaço onde provavelmente caberiam uns 1500. Uma bola de gude jogada para o alto não teria a menor possibilidade de cair no chão. Eram milhares de cabeças num corpo só, compacto, gigantesco. Se esses corpos permanecessem imóveis, mesmo assim já seria difícil mantê-los ao mesmo tempo, vá lá (1994, p. 219).

A mensagem passada pelo escritor/jornalista adquire legitimidade a partir do momento em que a realidade, antes distante, e só vista pelos moradores das favelas, passa a estar disponível pelos leitores de Ventura. A semiótica nos habilita a compreender o potencial comunicativo de todos os tipos de mensagens, nos variados efeitos que estão aptos a produzir no receptor. Esses efeitos vão desde o nível emocional, sensório até os níveis metafóricos e simbólicos (SANTAELLA, 2008, 59).

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O semioticista Umberto Eco também trabalhou o conceito de signos como sendo códigos culturais. Para ele, o código deve ser capaz de prover as condições para um jogo complexo de produções sígnicas. Um texto seria o resultado da coexistência de vários códigos, ou pelo menos de vários sub- códigos (ECO, p. 48). Eco propôs o estudo dos códigos como processo de convenção cultural. Assim, o baile funk mostrado no livro, as festas e celebrações na favela, fazem muito mais sentido para quem as vivencia. A partir do momento em que Zuenir os apresenta à sociedade em geral, aos seus leitores, através das páginas de Cidade Partida, ele propõe uma ressignificação para Eco. “Os códigos sofrem mutação quando entram em contato com a cultura que apresentam significados diferentes para cada signo” (ECO, 2007, p. 66). De um lado, os cidadãos, trabalhadores, eleitores e contribuintes e, nesta qualidade, pessoas de bem, honradas, para quem a segurança é condição primordial para viver, produzir, consumir. De outro, os inimigos representados pelo morro. A cidade só poderia ser uma quando conhecesse o “outro lado”- aquele que antes era percebido pelo carnaval e o samba e que agora o era pela violência. Temia-se que o morro deixasse de descer para divertir e prestar serviço e passasse a descer armado” (1994, p. 140).

Os moradores das favelas se dividiam também sendo ora reféns e ora cúmplices dos bandidos para, muitas vezes, escapar da morte: Dois pontos associados nesta formulação devem ser ressaltados. Primeiro, a “cidade ilegal” corporificada no morro é apresentada como território da não cidadania, submetida a uma força concorrente à do Estado. “Desde a retomada, a nova ordem procurou passar uma imagem de protetora. Tomamos conta da favela 24 horas por dia. Tem duas turmas de vigia (1994, p. 108). Em segundo lugar, a responsabilidade do Estado na proteção desses segmentos quando em combate ao crime é diluída tanto pela “situação de guerra”. A fase denominada “Missão” tentaria erradicar e prender todo meliante envolvido com o tráfico de tóxico e/ou outros tipos de ilícitos. Além da prisão, haveria a tomada de pontos estratégicos e a coleta de informações. A fase mais problemática – Manter a ocupação – compreendia sete mandamentos, que em resumo procurariam consolidar a presença das forças militares. A invasão seria acompanhada por representantes de instituições civis, como a OAB, defensoria pública e órgãos de defesa da cidadania (p. 256).

Assim, caberia aos mesmos arcarem com os custos de terem “optado” por um dos “lados” da “cidade partida”. Um “lado” que, como vimos, não é percebido por grande parte da cidade do Rio de Janeiro como concernente à esfera da cidadania. Baseado nesse pensamento de cidade dividida surgia uma sociedade impotente diante de tantos jovens considerados infratores. Os chamados arrastões nas praias cariocas em 1992 seriam uma prova dessa situação insustentável para o carioca, quando moradores das favelas provocaram brigas, resultando em tumulto, correria e verdadeiro pânico em áreas consideradas nobres da cidade. O clima de insegurança e desordem tomou conta do Rio de Janeiro. As chamadas gangues atemorizavam os cidadãos. 53


Era mais ou menos meio-dia e a confusão atingira não apenas o Arpoador, mas também Copacabana, o posto 8 de Ipanema e até Icaraí, em Niterói. Desde as dez horas, essas praias estavam conflagradas, com grupos de funkeiros promovendo brigas e assustando milhares de banhistas que sonhavam ficar na areia, de sábado até aquela terça-feira (1994, p. 96).

As ações criminosas são apontadas como símbolos daquele momento no Rio de Janeiro. Aumentaram de frequência e de intensidade, segundo Zuenir. Se não ocorriam represálias aleatórias, como atentados terroristas em escolas e hospitais ou execuções de autoridades, o novo surto já apresentava sintomas alarmantes: fechamento de túneis para assaltos, guerras de quadrilhas chegando cada vez mais perto do asfalto, balas perdidas caindo em escolas ou atingindo transeuntes e motoristas, resgastes de bandidos em delegacias e hospitais, e até assaltos a policiais (p. 266).

Nessa situação, percebe-se a decadência do indivíduo, mostrando a sua experiência de viver em situações extremas de constante angústia, medo e ameaças. Para Maria de Lourdes Abreu de Oliveira, essas são características do perfil do final do século XX e início do século XXI, com o homem marcado pela fragmentação de sua identidade, perdido entre questionamentos. Quando esse ser humano toma consciência de sua identidade, reage ao irracionalismo que a cultura de massa tenta imergi-lo e pode provocar a violência que existe atualmente (2004, p. 41). 5. Considerações Finais Após mais de vinte anos da publicação do livro de Zuenir Ventura, o Rio de Janeiro ainda continua uma cidade partida. Os signos urbanos propostos pelo autor para retratar a realidade da década de 90 ainda fazem sentido para a sociedade brasileira. Podemos perceber ícones do cenário carioca e a própria divisão entre a cidade e o asfalto se torna um símbolo daquela época. O termo criado para relatar a divisão da cidade entre morro e asfalto, entre ricos e pobres é bastante atual. A violência urbana faz parte do cenário da cidade carioca e foi ampliado pelas lentes da televisão, pelas páginas da internet e pelas redes sociais. Os símbolos de violência urbana ganharam notoriedade em filmes e em várias outras representações após a publicação do livro Cidade Partida. O livro expõe desde o ícone presente só na imaginação do povo brasileiro, como qualidades, cores e sentimentos ligados à cidade, até a criação do símbolo da cidade carioca da década de 90. Todas essas representações ou mediações estão presentes no texto de Ventura. O autor reconta os fatos reais, utilizando recursos da literatura, demonstrando a sua visão. Faz isso, deixando um espaço para que o próprio leitor tire suas conclusões, crie a imagem dos personagens. Nesse caso, se tornam importantes os conceitos de códigos culturais apontados pelo semioticista Umberto Eco e também foram pertinentes as definições de signos e o processo fenomenológico proposto por Charles Sanders Peirce para a compreensão do contexto da obra. 54


O autor revela a realidade de uma época, com seu olhar observador. É possível identificar o contato do leitor, a partir da obra, com “uma série de fatos, antes tidos como uma realidade tão distante, embora com efeitos tão próximos da grande maioria, obrigada a conviver com as consequências desses fatos geradores de uma cidade partida.

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6. Referências ALVES, Taís de Souza. O olhar urbano de Zuenir Ventura: Rio de Janeiro, uma Cidade Partida. 1ª Edição. Ubá, MG: Clube de Autores, 2015. BARTHES, Roland. A aventura semiológica. São Paulo: Martins Fontes, 2001. CARDOSO, Wilson Benes de Oliveira; VALADARES, Jorge de Campos. O ritmo das transformações, a exclusão, a legislação urbana e a condição humana na cidade. Ciência & saúde coletiva, Rio de Janeiro, v.7, n.2, p.313-323, mar.2002. Disponível em: <http://www.opas.org.br/servico/arquivos/Sala5525.pdf>. Acesso em: 03 jan.2017. ECO, Umberto. Tratado geral da semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2007. LEITE, Márcia Pereira. Entre o individualismo e a solidariedade: dilemas da política e da cidadania no Rio de Janeiro. De “cidade maravilhosa” a “cidade partida”: duas representações do Rio de Janeiro. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. V.15. N.44, 2000, p.73-90. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v15n44/4148.pdf. Acesso em 20 de março 2017. OLIVEIRA, M. L. A. Literatura e mídia: percursos perversos. Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2004. PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003.. SANTAELLA, Lúcia. A teoria geral dos signos: como as linguagens significam as coisas. São Paulo: Cengage Learning, 2008. ______, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983. ______, Lúcia. Semiótica aplicada. São Paulo: Cengage Learning, 2008. VENTURA, Zuenir. Cidade Partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

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JOGO DE CENA - O ESPELHO DA VIDA Fernanda Maffei Moreira7

RESUMO: Este trabalho discute como a metaficção se instaura no documentário Jogo de Cena (2007) do cineasta e documentarista brasileiro Eduardo Coutinho. Jogo de Cena baseia-se em 23 entrevistas com mulheres anônimas que espontaneamente aceitaram o convite para falar de suas experiências de vida. As histórias são interpretadas por atrizes talentosas que desempenham um papel decisivo ao apresentar os relatos das mulheres. O projeto de Coutinho é fazer com que os espectadores tomem consciência do processo criativo da ficção, destacando o fato de que a ficção provém de eventos da vida real. Portanto, é possível argumentar que ele faz uso de metaficção para abalar a distinção entre ficção e realidade. As principais leituras teóricas sobre o tema da metaficção são as de Linda Hutcheon e Wolfgang Iser. PALAVRAS-CHAVE: Metaficção. Jogo de cena. Ficcionalidade. Realidade. ABSTRACT: This article aims to discuss the use of metafiction in the documentary film Jogo de Cena (Playing - 2007) by Brazilian filmmaker and documentarian Eduardo Coutinho. Jogo de Cena is based on 23 interviews with anonymous women who volunteered to talk about their life experiences. The stories are performed by talented actresses who play a decisive role in interpreting those women’s experiences. Coutinho’s project is to make spectators aware of the creative process of fiction by stressing the fact that fiction springs from real life events. We believe it is possible to argue that he makes use of metafiction to blur the line between fiction and reality. The theorists who guide the discussion are Linda Hutcheon and Wolfgang Iser. KEYWORDS: Metafiction. Jogo de cena. Fictionality. Reality. Introdução Poderíamos iniciar este artigo com o seguinte questionamento que há muito ocupa teóricos e críticos de literatura: existe fronteira entre ficcionalidade e realidade? Para a maior parte dos estudiosos, há uma linha muito tênue separando esses dois universos. Jogo de Cena (2007), documentário do cineasta e jornalista Eduardo Coutinho, problematiza muito bem essa fronteira, ao apresentar de forma instigadora, a questão do duplo, do espelhamento do discurso que brinca com aquilo que o telespectador tende a acreditar que seja um discurso real ou ficcional. Licenciada em Letras pela UNESP –Assis; mestra em Literatura e Crítica Literária pela PUC/SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; doutoranda em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC/Minas. Atualmente é professora, pesquisadora e tradutora de língua espanhola. Email: fermaffei@yahoo.es 7

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A proposta do documentário pode ser resumida da seguinte maneira: logo no início da narrativa, o espectador se depara com a informação de que, em um anúncio de jornal, havia sido divulgada a oportunidade de mulheres, que assim o quisessem, participarem de um documentário, no qual deveriam contar suas experiências de vida. Oitenta e três mulheres atenderam ao anúncio, das quais vinte e três foram selecionadas. Essas mulheres se propuseram a ir até o Teatro Glauce Rocha, na cidade do Rio de Janeiro, para contar suas histórias de vida e suas experiências mais marcantes, tais como a morte do pai, a perda dos filhos, os desentendimentos familiares e seus amores mal resolvidos. Em seguida, entra em cena o elenco de atrizes - algumas delas muito conhecidas do público, como Marília Pêra, Fernanda Torres e Andréa Beltrão-, que assumirão o discurso dessas mulheres anônimas, conferindo-lhe uma nova leitura, muitas vezes carregada da dramaticidade própria ao ato de encenar. O longa metragem logra estabelecer um diálogo entre o real e o ficcional; nota-se que desde o início da narrativa fílmica, o telespectador já tem elementos para compreender a dinâmica do documentário: o cenário é um palco de teatro com apenas duas cadeiras, que são ocupadas uma pela entrevistada e outra, vazia, é o suposto lugar do entrevistador, Eduardo Coutinho. Outros protagonistas da narrativa são a fala, o corpo e as emoções, tanto as ditas como as subentendidas e no palco ocorrerá um jogo de cena, pois o entrevistador, o próprio Coutinho, não se propõe como personagem. Não aparece no palco, e somos guiados somente por sua voz, a qual faz uma série de perguntas às entrevistadas, sempre mantendo o tom de conversa informal. Às atrizes cabe o papel de recriar as emoções, espelhando-se nas histórias das mulheres anônimas; o papel do ator/da atriz é a interpretação, reinterpretação, tradução e expressão desse contingente de sentimentos, reações e impressões; para um leitor menos atento essa torrente de experiências subjetivas pode parecer confusa e intricada, e é então que emerge a dúvida sobre o que é real e o que não é real. 1. O cineasta O cinema de Eduardo Coutinho sempre se voltou para a questão do fazer cinema, no caso, do fazer documentário. Pode-se entender sua proposta como um filme que trata sobre o filmar, que continuamente indaga o espectador sobre o que é real na ficção e o que é ficção na realidade. Eduardo Coutinho (1933-2014) foi jornalista, documentarista e cineasta de grande renome no campo das artes cinematográficas. Seu estilo era o de retratar histórias de pessoas comuns, muitas vezes dando voz para pessoas “invisíveis”, marginalizadas, sem espaço na vida social. Sua formação inicial foi em Direito, porém não chegou a concluir o curso, pois foi viver na França em 1957, para estudar direção e montagem no renomado IDHEC - Institut des Hautes Etudes Cinématographiques (Instituto de Altos Estudos Cinematográficos). Retorna ao Brasil três anos depois, e inicia vários projetos na área de documentários, relacionando-se com nomes que inauguraram o Cinema Novo, como Joaquim Pedro de Andrade e Leo Hirszman. No mesmo ano, dedica-se às primeiras filmagens de sua maior obra, o filme Cabra Marcado para Morrer, mas foi preciso interromper o projeto devido à intervenção do golpe militar de 1964. Retoma as filmagens somente em 1981, e altera sua concepção do projeto inicial para produzir um documentário relatando o


processo de censura da obra pela ditadura, processo que tardaria três anos para ser finalizado. Com o documentário Cabra Marcado para Morrer, Coutinho ganha doze prêmios, nacionais e internacionais; dentre eles, os principais são o prêmio da crítica internacional do Festival de Berlim e o de melhor filme no Festival du Réel. Passando por um hiato de poucas produções, entre os anos de 1984 até 1999, e de dificuldades financeiras, Coutinho produz outro documentário que foi o responsável pela retomada da sua carreira, Santo Forte, em 1999. Ao longo de sua carreira, Coutinho foi diretor de doze documentários: Cabra Marcado Para Morrer (1984), O Fio da Memória (1991), Santo Forte (1999), Babilônia 2000 (2000), Edifício Master (2002), Peões (2004), O Fim e o Princípio (2005), Jogo de Cena (2007), Moscou (2009), Um dia na vida (2010), As Canções (2011), Últimas Conversas (2015 – póstumo). Também produziu filmes, curtas, documentários, roteiros e reportagens para a Rede Globo. Pela qualidade de sua produção, o cineasta foi também premiado diversas vezes: no Festival de Gramado, no Festival de Brasília na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2013 e, no mesmo ano, na Festa Literária de Paraty. Postumamente, foi homenageado na cerimônia do Oscar, em 2014, pelo conjunto de sua obra. Com Cabra Marcado para Morrer (1984), Coutinho já ensaiava a metaficcionalidade da narrativa, isto é, por meio da ficção promovia uma reflexão consciente sobre a própria natureza da ficção, buscando desvelar o que envolve o processo de criação ficcional. Nesse documentário, o diretor faz isso por meio de um relato sobre o plano e o desenvolvimento do próprio documentário, os bastidores da filmagem e as ações de censura empreendidas durante o governo militar. O cineasta segue a mesma linha de criação quando lança Jogo de Cena (2007), pois esse documentário inscreve a metaficção no jogo das verdades e mentiras que desafiam os limites entre real e ficcional, entre o ser e o dizer. Coutinho pretende demonstrar que só é possível se aproximar da verdade uma vez que se tenha a consciência da impossibilidade de alcançá-la. 2. O espelhamento metaficcional em Jogo de Cena O teórico Wolfgang Iser (2002) comenta que os textos ficcionais não são isentos de realidade, pois são criados a partir do real e de sua riqueza imensurável; para aproximar-se desse universo vivo, usufruem de uma gama de recursos que procuraram retratar a realidade, representando-a. O documentário Jogo de Cena ilustra bem esse princípio, na medida em que seu texto se constitui declaradamente híbrido -- uma apropriação das entrevistas de mulheres anônimas pelo discurso singular das atrizes. Iser (2002) se refere aqui ao que denomina “atos de fingir”, isto é, atos não ficcionais/reais que são ficcionalizados ao serem mediados pela escrita e pela interpretação. No caso de Jogo de Cena, a interpretação oral das entrevistas registradas em papel incita a imaginação do espectador, que realiza mais uma releitura do texto. Ao serem relatadas, as histórias “verídicas” das mulheres já se constituem uma releitura, que é então reinterpretada pelas atrizes, que, por sua vez, adicionam à carga dramática, suas próprias experiências pessoais no ato de fingir, contaminando, por assim dizer, as leituras anteriores. A reimaginação do espectador configura mais um olhar sobre as experiências contadas.


Para Hutcheon (1985), o leitor, ou o espectador, no caso do documentário em questão, desempenha uma importante função nesse novo modo de narrar, pois é convidado a assumir o papel coautor dessa “nova” narrativa. Lembrando que tanto os depoimentos das mulheres quanto a ficção dramatizada são ambos representações de fatos supostamente acontecidos, fica evidente o jogo intertextual presente em Jogo de Cena. Conforme sugere Iser (2002), ao invés de entender a relação entre realidade e ficção em termos de uma dicotomia, seria mais prudente considerarmos a relação como uma tríade: realidade/ficção/ imaginário, pois o imaginário (produzido pelo leitor, espectador, ouvinte) é o elo entre o real e o ficcional. Nesse balanço entre o que pode ser real ou ficcional, Iser (2002) assegura: No ato de fingir, o imaginário ganha uma determinação que não lhe é própria e adquire, deste modo, um predicado de realidade; pois a determinação é uma definição mínima do real. Na verdade, o imaginário não se transforma em um real por efeito da determinação alcançada de real na medida em que por este ato pode penetrar no mundo e aí agir. Neste sentido, o ato de fingir realiza uma transgressão de limites diversa daquela que se mostrava a respeito da realidade vivencial repetida no texto. (...) Assim, também no ato de fingir ocorre uma transgressão dos limites entre o imaginário e o real. (ISER, 2002, p.959)

Podemos considerar que a transgressão dos limites entre o imaginário e o real da qual nos fala Iser, insere-se em Jogo de Cena, quando o efeito metaficcional entra em ação, pois quando o cineasta faz um exercício de reflexão com as atrizes sobre o ato de fingir, cria uma ficção dentro de uma ficção. Em uma determinada passagem do longa-metragem, a atriz Marília Pêra discorre sobre a construção de sua personagem e o processo de interpretação, e faz um comentário interessante a respeito da estimulação do choro. A atriz explica a técnica para provocar o efeito de choro, por meio de um cristal japonês que é esfregado nos olhos e reflete sobre o que é verdadeiramente real no choro, revelando que, para ela, o verdadeiro choro é aquele durante o qual as pessoas tentam esconder com as mãos o rosto. O ato de fingir materializa-se na expressão corporal do sujeito. Sobre o processo de fingir, a atriz Fernanda Torres revela o quão difícil é, para ela, dar vida a uma personagem que traduza o real de forma consistente para espectadores e ouvintes, pois, para isso, é preciso uma boa dose de autocrítica sobre o ato de interpretar. Para a atriz, trabalhar uma personagem totalmente ficcional é mais seguro, pois ela pode construir tal personagem com muita liberdade, apesar de ter que seguir algumas diretrizes do autor e do diretor; porém, quando se trata de alguém que existe ou existiu, a liberdade de criação está vinculada a inúmeros outros fatores que devem ser observados. Já Andréa Beltrão considera que a fronteira entre real e ficcional é semelhante a uma estreita passagem. Para ela, é um processo difícil para o ator desvincular-se do texto, afastar-se dele, sem identificar-se. De fato, conforme relata a Coutinho, foi impossível para ela não se envolver com o discurso de sua entrevistada, pois ela se colocou no lugar da mulher, tornando sua essa outra, vivendo a alteridade por meio da identificação, diferentemente de Marília Pêra, que demonstrou certo distanciamento do drama real vivido, atendo-se mais aos aspectos técnicos da interpretação.


Fica reservada ao espectador a reflexão sobre esse desnudamento do processo de interpretação, pois, diante do processo de recriação, ao estar exposto à metalinguagem das atrizes, dá-se conta da emergência de ainda outra mediação, que se impõe mais além do horizonte da mulher desconhecida ou da personagem que representada na cena fílmica: a atriz que agora reflete sobre seu fazer artístico e confere às palavras outra dimensão do real. Contudo, excetuando-se o momento metaficcional em que o ato de fingir é revelado para o espectador, este poderá perguntar-se, perplexo: afinal, quem encena quem? Relatos vividos, revividos, reinterpretados com tanta desenvoltura levam plateia a indagar-se sobre a origem das histórias – reais ou inventadas? Como em um jogo de espelhos, o espectador desavisado já não consegue identificar o que é reflexo e o que é refletido. Talvez fosse uma das intenções de Coutinho proporcionar o desconforto, provocar a dúvida no espectador, fazê-lo desequilibrar-se na fina corda que divide os territórios do real, do verdadeiro, do imaginado, do inequivocamente ficcional. Em Jogo de Cena, o processo metaficcional de encaixes de histórias tem um início, meio, mas não tem fim. Inicia-se com os depoimentos de mulheres anônimas, que são transformados nas vozes das atrizes e que chegam aos espectadores como um convite que os incita a dar continuidade às narrativas. O documentário, portanto, não termina após a encenação, mas induz a sua releitura, a novos sentidos que lhe serão agregados quando o público sair do cinema e reler o mundo a seu redor. Ao mesmo tempo em que investiga com curiosidade a criatividade e postura das atrizes diante da composição das personagens, Jogo de Cena também toca na questão da separação entre dramaturgia e documentário em sua mais funda essência. O telespectador é levado a conscientizar-se de que está diante de um documentário, devido à intercalação entre as falas interpretadas pelas atrizes, os relatos/entrevistas, a postura do documentarista em seu papel de entrevistador e a configuração física do cenário. Para nossa discussão, pode ser interessante e ilustrativo observar como Jogo de Cena dialoga com Achei que meu pai fosse Deus (2005) de Paul Auster. Nessa obra, Auster organiza uma seleção de centenas de narrativas verídicas de pessoas de todas as regiões dos Estados Unidos, dispostas a contar suas histórias. À medida que o escritor recebia essas histórias e as lia em um programa de rádio que ele mesmo produzia, começou a organizá-las com a finalidade de publicá-las em uma coletânea. Aqui, mais uma vez o caráter ficcional mescla-se com o real, pois, os relatos autênticos, ao serem manipulados pela mediação do escritor, passam a ser objeto de ficção. Retornando a Iser (2002), há de se entender que o mundo representado não é o mundo real, mas é o mundo que deve ser entendido como se fosse. Assim, a arte de narrar fala de si mesma, deixa à mostra sua natureza híbrida e intertextual, evidenciando no “como se fosse” seu auto reconhecimento enquanto ficção. O documentário de Coutinho promove a retomada constante da narrativa, valendo-se para isso da metaficção, da consciência de sua própria condição de narrativa ficcional que finge ser documento imparcial da vida lá fora. Em Jogo de Cena, observamos como, em muitos momentos, o documentário questiona sua natureza de gênero documentário, o que ocorre, por exemplo, quando acompanhamos o relato de uma das personagens e, no final de sua performance, ela enfrenta diretamente a câmera e diz : “E foi assim que ela contou”.


Esse exemplo corrobora o fato de que a metaficção joga com as possibilidades de sentido e de forma, isto é, o modo de contar é tão importante quanto a própria história; no filme de Coutinho, a atuação das atrizes é essencial para construir o saber contar. Ao usar recursos da metaficção, Jogo de Cena procura desfazer a ilusão do espectador, tirando-o do envolvimento com a trama e de sua posição acrítica através da criativa proposta do cineasta de alertar sobre os métodos e estratégias que utilizou para chegar à estrutura do documentário. Por meio do processo metaficcional, a participação do espectador torna-se ativa, fechando um ciclo, como afirma Reichmann (2006) em artigo que discute o conceito de metaficção e a participação do leitor. Com base em Linda Hutcheon (1985), Reichmann argumenta que a metaficção tende a “brincar” com as possibilidades de significado e forma, demonstrando, assim, uma autoconsciência em relação à produção artística e ao papel do receptor. Jogo de Cena é um relato ficcional que não esconde o que é e se propõe a chamar o espectador à consciência sobre os processos narrativos que constituem os textos com os quais construímos a sociedade, a cultura e a história. A transformação é condição sine qua non para a aquisição e o desenvolvimento do conhecimento. Coutinho nos oferece a valiosa experiência de ampliar nossos horizontes. Considerações Finais Jogo de Cena é um processo narrativo que chega a ser tão intrigante quanto seu produto final. A obra de Coutinho problematiza a fronteira entre a realidade e a ficção, chamando a atenção para a contínua construção que cada indivíduo faz de si mesmo e das relações sociais das quais é autor. Coutinho busca no real, elementos para a criação de sua narrativa fílmica e encontra material fecundo nas entrevistas de mulheres sem nome, que têm o contar. A pluralidade de discursos, leituras e de interpretações que Jogo de Cena instiga é resultado da percepção crítica e do trabalho artístico de um dos maiores documentaristas do cinema nacional. RESUMEN: Este trabajo discute como la meta ficción se instaura en el documentario Juego de Escena (2007) del cineasta y documentalista brasileño Eduardo Coutinho. Juego de Escena se basa en 23 entrevistas con mujeres anónimas que espontáneamente aceptaran una invitación para hablar de sus experiencias de vida. Las historias son interpretadas por actrices talentosas que desempeñan un papel decisivo al presentar los relatos de las mujeres. El proyecto de Coutinho es hacer con que los espectadores tomen consciencia del proceso creativo de la ficción, destacando el hecho de que la ficción procede de acontecimientos de la vida real. Por lo tanto, es posible argumentar que él hace uso de la meta ficción para desestabilizar la distinción entre la ficción y realidad. Las lecturas teóricas acerca del tema de la meta ficción son las siguientes: Linda Hutcheon y Wolfgang Iser. PALABRAS-CLAVE: Meta ficción. Juego de escena. Ficcionalidad. Realidad.



Referências AUSTER, P. Achei que meu pai fosse Deus. E outras histórias verdadeiras da vida americana. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. HUTCHEON, L. Narcissistic Narrative: the metafictional paradox. London: Methuen, 1985. ISER, W. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: Teoria da literatura e suas fontes. Org. LIMA, Luiz C. Vol 02. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. REICHMANN, B. O que é metaficção? Narrativa Narcisista: o paradoxo metaficcional, de Linda Hutcheon. Paraná: Script Uniandrade. V 04, p.331-349, 2006. Vídeos CANAL BRASIL. Sangue Latino entrevista Eduardo Coutinho. Entrevista concedida à Eric Nepomuceno em 08/08/2012. Disponível em: http://canalbrasil.globo.com/programas/sangue-latino/materias/homenagem-aeduardo-coutinho.html ou https://www.youtube.com/watch?v=P74JT7jMURg. COUTINHO, E. Jogo de Cena – Documentário. Produção Matizar-Video Filmes, 2007, 105 min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RUasyqVhOuw.


O DEUS CRUEL EM CAIM DE JOSÉ SARAMAGO Marcella Gava Grillo8 Gerson Luiz Roani9

RESUMO: O presente artigo investiga a presença do deus cruel no livro Caim (2009), do escritor português José Saramago, ganhador do Nobel, tendo como objetivo analisar como se dá a relação entre Deus e o homem e como estes sujeitos se constroem dentro da narrativa saramaguiana. Metodologicamente, desenvolvese uma análise teórico-crítica da obra saramaguiana, tendo em vista leituras teóricas de textos que abordam o autor e sua relação com o divino na perspectiva judaico-cristã. A análise é desenvolvida através da busca e seleção de momentos da obra que pudessem revelar a materialização de um Javé cruel e desumano, possibilitando o estudo do confronto entre Caim e deus. Exploramos, para tanto, os núcleos temáticos das obras do autor português, sua linha de força e a questão espiritual que aparecem em diversas obras. Vislumbramos, através dos resultados, que a obra Caim permite ricos e amplos diálogos entre Literatura e o discurso religioso, assim como desperta inúmeras outras possibilidades para o estudo das obras saramaguianas e dos diversos caminhos desse autor. PALAVRAS-CHAVE: Literatura Portuguesa; José Saramago; Religião; Mito. ABSTRACT: This article investigates the presence of a cruel god in the book Cain (2009), by the Portuguese writer José Saramago, winner of the Nobel Prize, with the objective of analyzing how the relationship between God and man occurs and how these subjects construct themselves within the narrative Saramaguiana. Methodologically, a theoretical-critical analysis of the Saramaguiana work is developed, in view of other theoretical readings of texts that study the author and his relationship with the divine in the Judeo-Christian perspective. The analysis is developed through the search and selection of moments of the work that could reveal the materialization of a cruel and inhuman Yavé, allowing the study of the confrontation between Cain and God. Therefore, we explore the main thematics about the works of the Portuguese author, his line of thinking and the spiritual question that appear in several of his works works. Through the results, we see that the work Cain allows rich and broad dialogues between literature and religious discourse, as well as awakens innumerable possibilities for the study of the works of Saramago and the various paths of this author. KEYWORD: Portuguese Literature; Jose Saramago; Religion; Myth. Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa – UFV. E-mail: marcellagrillo@hotmail.com 9 Professor/ Orientador. Doutor em Letras/Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. 8

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1. Considerações iniciais O seguinte artigo visa estudar a obra Caim (2009) de José Saramago, escritor lusitano ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, explorando a visão crítica do autor sobre o deus do imaginário judaico-cristão. Para tanto, parte-se do entendimento de que esta visão nada tem de suave, em que, seguindo os passos do famigerado Caim, observamos um deus ostensivamente cruel e desinteressado dos homens. José Saramago dedicou grande parte de sua obra ao questionamento do caráter de Deus em paralelo constante com o humano, a crítica à religião e ao seu deus injusto e cruel foram eixos condutores de alguns dos seus romances, como o caso de Caim e O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991). Dentre os estudos literários, esse trabalho se justifica por retomar as discussões sobre a obra saramaguiana e o discurso religioso, assim como, por oferecer uma nova visão de uma obra ainda pouco estudada do autor. Desse modo, considera-se relevante o entrecruzamento dos temas, em que o discurso literário, como Ferraz (2003) e Bueno (1998) apontam, não é mínimo e nem exclusivo de suas obras que reescrevem histórias bíblicas, o interesse de Saramago pela temática religiosa, sendo necessário observar e comentar de que forma essa proposta tem seu ápice no romance Caim. Analisando como a arte literária se apropria, reescreve e reinventa a visão da divindade judaico-cristã, assim como a esclarece ou critica a partir dos constantes diálogos da obra com a Bíblia, também examinaremos a possibilidade existente no discurso ficcional de preenchimento dos vazios, lacunas e silêncios do discurso religioso. E é também ao observar como o estilo do autor funciona como ferramenta na construção de uma narrativa mais cruel que valorizaremos a ficção de Saramago, refletindo também sobre a presença, em Caim, de núcleos temáticos em torno dos quais a narrativa se organiza, tais como a culpa, o erotismo, o parricídio. Sendo assim, se fez necessária a seleção de cenas específicas e significativas da obra de Saramago que pudessem revelar a materialização de um Javé cruel e desumano, possibilitando o estudo do confronto entre deus e Caim. É emblemática a escolha lexical do autor, ao optar pelo uso de minúsculas sempre presentes no uso da palavra deus, percebendo tal escolha como parte de um estilo e de uma forte crítica à crença em um deus que tem um enunciado que contradiz seu comportamento vingativo. Dessa forma, deve-se evidenciar que a própria linguagem da obra merece cuidado especial, pois como já observado por Martins (2014), há nesta última publicação de José Saramago uma modificação nítida do estilo consagrado do autor quando pensamos nas escolhas de palavras. O autor, muito conhecido por diversas inovações estilísticas, como a sua pontuação diferenciada, neste último livro publicado em vida, parece explorar um lado mais “vulgar” das palavras, intensificando um olhar duro sobre a figura divina desse deus tirânico e demonstrando como a beleza e os malabarismos de linguagem parecem não pertencer ao mundo sob o poder de Javé. 66


Assim sendo, a revisão bibliográfica deste trabalho procurou explorar um conjunto de estudos indispensáveis para a investigação dos núcleos temáticos, correspondendo às análises teórico-críticas que sondaram, em termos gerais, as linhas de força da ficção de Saramago, principalmente na sua relação com a espiritualidade e a divindade judaico-cristã. O delineamento desse horizonte crítico exige a menção de que a ficção saramaguiana já foi alvo de algumas investigações, que se configuram hoje como obrigatórias para a realização de estudos sobre Caim. 2. Sobre Caim e Saramago 2.1. O autor José Saramago, nascido na aldeia de Azinhaga, província do Ribatejo, no dia 16 de novembro de 1922, decide se dedicar à escrita ficcional aos 53 anos e lançando, em 1980, a obra Levantado do Chão, consolida o que mais tarde se torna conhecido como estilo saramaguiano em que “o leitor há de ouvir, dentro de sua cabeça, a voz que fala” (REIS, 2015, p. 102), sendo a pontuação como mera convenção descartada ou alterada. É, porém, com seu romance Memorial do Convento, de 1982, que o escritor se consagra, vindo a receber o Nobel de Literatura em outubro de 1998, após a polêmica envolvendo O Evangelho Segundo Jesus Cristo, tornando-se o primeiro e único escritor de Língua Portuguesa a obter tal distinção. Lançado em 2009, Caim constitui o último livro publicado em vida do conjunto de obras do autor português, que veio a falecer em 2010. Assim, é esse narrador saramaguiano que permite o envolvimento completo do leitor com as obras, em que, como aponta Silva (1993, p. 17) “é ele que parafraseia, parodia, se apropria impunimente do discurso do outro para amalgamá-lo no tecido novo do seu discurso”. Sendo esse discurso impregnado de diversas maneiras de falar, que reúnem o popular e o culto, assim como variados provérbios e citações, que constituem o que Silva chama de “inconsciente cultural da língua”, e que compactuam para que o narrador saramaguiano desperte um encantamento no leitor ‒ se consagrando até hoje como um dos maiores escritores de Língua Portuguesa. Sobre o autor, convém ainda salientar seu interesse reconhecido pela religião, justificado por Saramago em diversas entrevistas pela importância que o Cristianismo tem na cultura em que está inserido, como relembra Bueno (1998). Dessa forma, Caim será o segundo livro desse seguimento de romances bíblicos, iniciado por O Evangelho Segundo Jesus Cristo, e que serviram, dentro da obra saramaguiana, como espaço de destaque dessa constante indagação sobre os desígnios divinos e sobre o papel do homem na construção da sua própria humanidade. Ao passo que a discussão sobre a figura de deus na cultura esteja presente em todos os romances de Saramago. 2.2 A obra Na época de sua publicação, Caim emerge repleto das polêmicas que já faziam parte do horizonte saramaguiano. Em um constante desmontar das grandes categorias teológicas da visão bíblica do mundo, Saramago faz de Caim a crítica da 67


onipotência divina, de sua espiritualidade e de sua misericórdia (mais precisamente a falta da mesma). Por meio das aventuras do grande renegado da literatura ocidental e seu fraticida mais famoso, José Saramago expõe a crueldade de deus e sua culpa na criação de um homem com capacidades para fazer e perpetuar o mal, gerando, é claro, um desconforto na Igreja. É por meio de uma representação irônica da criação humana como uma experiência defeituosa do criador que o livro nos apresenta tal personagem, um deus que “teve de ficar irritado consigo mesmo” (SARAMAGO, 2009, p. 9) por não dar a possibilidade de fala à Adão e Eva. A partir de uma primeira apresentação pouco favorável, Saramago, ao falar dos homens, fala de deus, e ao falar dos pais, já antecipa os filhos. A cronologia inerente à obra transforma o tempo ficcional ao não respeitar as dimensões de passado, presente e futuro, no qual múltiplos presentes nos são apresentados, a partir do trânsito de Caim, por diversos episódios bíblicos, sem deixar de viver um só presente “entender-nos-íamos melhor se lhe chamássemos outro presente” (SARAMAGO, 2009, p. 77). Sendo assim, por meio da revisitação das cenas bíblicas, Saramago nos dá a conhecer os passos de Caim, pela Bíblia ignorados, e os renova enquanto passos de homem pecador e, além, de um indagador profícuo sobre o futuro do ser humano e o seu papel em relação ao seu criador. Caim e deus nesta obra tomam a frente de uma das mais frequentes e polêmicas discussões sobre o futuro da humanidade, e as relações de criatura e criador nos permite uma leitura ainda mais severa de uma das faces menos bondosas dentre as visualizações do deus judaico-cristão. 2.3 Algumas considerações sobre a religião e a visão de deus na obra de um autor ateu Antes de dar prosseguimento à análise proposta, faz-se necessário tecer algumas considerações sobre como a religião e o imaginário judaico-cristão perpassam e se relacionam com a obra de Saramago. Martins (2014) discute uma possível espiritualidade da obra saramaguiana, em que Caim se torna o personagem que coloca em julgamento a noção do bem como valor absoluto (que bem é esse feito em nome de Deus?), é o impertinente julgador do divino, um herói trágico pela determinação funesta e o sucesso impossível. Tal espiritualidade se constitui como uma eterna busca de sentido para o ser humano, carregada por ares de dúvida e desassossego, em que os romances bíblicos saramaguianos funcionam como lugar de interrogação. Para começar qualquer tipo de análise da obra saramaguiana, deve-se entender que a Bíblia é parte da literatura, assim como do imaginário ocidental, sendo, portanto, impossível desvincular a religião – principalmente as vertentes cristãs, em que o catolicismo aparece como representativo e dominante em muitos países – da cultura de um modo geral, fazendo com que não só a literatura como a conhecemos beba em suas águas quanto aos temas, mas a religião como formadora de comportamentos e ideais de mundo, ponto abundantemente explorado por Saramago. O autor utiliza esse discurso para revelar o homem a partir da figura divina, unindo criatura e criador também como dois lados da mesma escritura.

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Estudar a obra saramaguiana perpassa necessariamente pelo estudo dessas questões apresentadas, do reconhecimento da Bíblia como hipotexto do escritor português, das críticas lançadas à religião como comercialização da fé e, na leitura desta análise em particular, da compreensão que ao delinear progressivamente as faces de deus, Saramago está desvendando as faces dos homens, e sua ênfase recai sobre os homens marginais, fundadores da história, mas que são esquecidos por ela. E, mais do que isso, Saramago ilumina o feminino, também sempre relegado ao oculto e profano, em seus escritos a mulher será a principal fonte de questionamentos do divino e terá a maior ligação com o mesmo. Ainda explorando as ferramentas usadas na transformação do texto em um parecer sobre deus, sobre o homem e essa relação, no mínimo, conturbada da religião e mediada pelas instituições, podemos comentar a ironia saramaguiana (presente de forma contundente nas intertextualidades dos livros), a estilização do discurso bíblico – presente em diversas obras do autor português ‒ como também o número considerável de referências bíblicas, e a inversão do sagrado e profano dentro da literatura de carnavalização e de “mundo às avessas” instaurado por Saramago. Além de ateu, Saramago se constituiu como um escritor que entendeu o papel da mitologia judaico-cristã como força geradora da cultura ocidental, e que utilizou esse conhecimento como forma de crítica às situações tipicamente humanas, em que a guerra, a crueldade e a ideia de pecado, assim como a visualização desse deus do imaginário ocidental dizem mais sobre o homem que o cultua do que sobre o mesmo. Sendo assim, Saramago mais disse sobre o homem ao falar de deus, e mais buscou defender o homem na busca por si mesmo. Caim pode se configurar como outra face de deus, na qual o que se delineará remontaria algumas das construções anteriores, mas que também complementaria uma noção de um criador mais similar à sua criatura, que erra e assume seu erro ao marcar Caim, mas que persiste em uma crueldade que não poupa nem mesmo as crianças de Sodoma e Gomorra, porque o único interesse divino é Deus. 3. O deus cruel em Caim e o homem como o centro da escrita saramaguiana Entendendo que na obra literária tudo possui significação, podemos começar essa análise ao destacar a epígrafe da obra saramaguiana, uma citação de Hebreus, parte da Bíblia comumente conhecida por Livro da Fé, que Saramago optou por renomear de Livro Dos Disparates, iniciando uma crítica que se perpetua no decorrer do livro por meio de forte ironia e da linguagem vulgar. Para tanto, Arnaut (2011, p. 25) nos chama atenção ao que ela apresenta como romance fábula, entre os quais a autora destaca Caim como parte de um processo criativo de Saramago em suas últimas obras, que explora a veia da comicidade dentro de um projeto de crítica profunda a diversos setores da sociedade contemporânea. Nesta obra, fica clara que a crítica se manifesta por uma linguagem entre irônica e ferina que, a partir da releitura bíblica e de acionar risíveis linhas de subversão (ARNAUT, 2011), desperta um olhar duro sobre a religião, principalmente a Católica, seus seguidores e representantes, e sobre a figura divina. Também se faz importante ressaltar que há nas obras de Saramago esse distanciamento crítico da religião, em que sua plataforma de indagação parte da

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insistência da leitura literal da Bíblia, indo contra diversos teólogos e, por isso mesmo, se distanciando de uma leitura tida como religiosa do texto sagrado. Dessa forma, com base na narrativa truncada da Bíblia em que a história de Caim e Abel tece preenchendo lacunas, Saramago reconstrói um dos maiores mitos cristãos a partir da reconstrução do personagem principal da trama, o próprio Caim, estabelecendo um pacto de culpa que isenta Caim ao mesmo tempo que transfere para Deus a responsabilidade pelos atos humanos e pela maldade da sua criatura. Somos levados a crer pelo narrador que esta será uma “instrutiva e definitiva história de Caim” (SARAMAGO, 2009, p. 13), evidenciando seu caráter de reconstrução de uma nova visão da narrativa como parte de uma verdade, criando um paralelo do discurso religioso com a ficção‒ forma de crítica recorrente nos textos saramaguianos. A obra apresenta um caráter fragmentado ao tentar abarcar diversos períodos da história bíblica, apresentando pequenos episódios, nos quais Caim revisita a história, porém o grau de complexidade da obra chama atenção, principalmente quanto aos tons cinematográficos acrescentados a ela na construção das cenas (AMARAL, 2011). Pode-se afirmar que os contornos espirituais não são fixos no discurso de Saramago, mas várias obras expressam como o desejo literário sobrepõe a negação completa de deus, como é o caso da premissa de seus livros onde deus aparece como personagem, um elemento perturbador, decerto, mas que existe e dialoga com Caim, por exemplo, e que também funciona como um dispositivo organizador da construção ficcional. A presença divina é condição sine qua non do livro, sendo o objetivo da obra muito mais desqualificar a bondade e a visão de um deus misericordioso, do que negar que exista um. Interessa salientar o fato de que o livro tem por título justamente o nome do irmão assassino, não só seu protagonista extremamente polêmico, como também o fio condutor das críticas mais severas dirigidas ao Criador. É sintomático que apesar da obra carregar o nome do personagem no título, Caim surge apenas duas páginas após o início da obra como a antevisão do futuro de seus pais, sendo reservado ao “senhor, também conhecido como deus” (SARAMAGO, 2009, p. 9) a primeira aparição do livro. Assim, sabemos de início que deus não fez os homens perfeitos, os fez sem possibilidade de voz, ficando irritado consigo mesmo e completando a criação “sem contemplações, sem meias-medidas”, enfiando boca adentro suas línguas. Dessa maneira, Saramago nos apresenta desde o primeiro momento a um deus falho e irado que não permite ao homem nem o próprio conhecimento, que a eles vem do fruto proibido, nem mesmo a voz. Colocando em discussão, a partir da perspectiva da relatividade, na linha da Pós-Modernidade, o dogma da perfeição absoluta de deus. Pode-se perceber que um dispositivo discursivo a ser usado nas obras de Saramago a serviço de uma finalidade puramente literária é o humor, em que o riso é de afrontamento das coisas humanas, e que a ironia confirma o alcance da postura de Saramago ao ver diferentes faces de uma mesma questão, um riso que acaba por apontar as contradições de um divino muito humano. E é por este fazer rir que se evidenciaria também a faceta espiritual do autor, que contribui para a denúncia e subversão do totalitarismo oriundo da deturpação das religiões personificado na figura de deus.

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Para Arnaut (2011) este início traz também características do que chamou de romance fábula, a irônica comicidade de se apresentar a reescrita bíblica e a reescrita de deus por meio de diversas pequenas anedotas. Ao homem quase lhe faltou ainda o umbigo, não sendo deus lá um criador dos mais cuidadosos, também deixou passar a existência nua de seus dois filhos. Saramago subverte, dessa forma, todo o mito da criação humana e da existência de Adão e Eva. Se é da linguagem que se inicia o mundo (Bíblia, Gênesis, 1), também é da explicação da narração que se inicia a obra, logo esse narrador saramaguiano irônico, e de linguagem nunca tão vulgar, já nos deixa de aviso, um “ponto de ordem à mesa” (SARAMAGO, 2009, p. 13), em que tenta colocar ordem aos acontecimentos, e mesmo em qualquer explicação, pois “estar informado sempre será preferível a desconhecer” (p. 12-13) e até do pecado original o que podemos dizer é que “nunca ficou bem explicado” (p. 12). Inclusive, é dessa falta de explicação e do surgimento de diversas lacunas que Saramago nos dá outra visão divina, sendo importante ressaltar que a subversão da obra só é garantida pela intertextualidade constante, na qual o leitor tendo conhecimento do conteúdo dos textos bíblicos tem maiores e melhores possibilidades de interpretação. Assim, após a narração da expulsão do Éden e do apelo de Eva ao anjo, somente no terceiro capítulo é que temos a descrição do nascimento e da criação dos irmãos. Neste ponto, percebemos que não só no trabalho diferiam os irmãos, mas também no físico, em que Abel, contrariando os traços morenos da família, nasce louro “como se fosse filho de um anjo” (p. 30), o que consiste em mais uma sombra de humor do narrador que anteriormente já havia dado a entender – assim como narrador do Evangelho – o possível romance entre mulher e anjo. Na sequência, os irmãos, melhores amigos, vão levar oferendas para o senhor, quando um “inquieto”, “perplexo” e então “infeliz” Caim é desdenhado por deus, que prefere Abel e suas carnes em detrimento do outro irmão e seus vegetais. É neste ponto que o “verdadeiro caráter” de Abel aparece, e descortina-se um personagem impiedoso e que despreza o irmão, um personagem que foge à visão de bom cordeiro do deus Javé contido, ou pelo menos interpretado como tal, na Bíblia. Também não deixa de significar as oferendas que são a deus oferecidas, em que serão aceitas as carnes de Abel, as carnes e as vidas que elas representavam, sendo, portanto, um deus sanguinário que se apresenta e um deus de preferências, que não ouve os apelos de Caim, e que aos seus vegetais ignora. Caim, igualmente de forma premeditada como passional, acaba por matar Abel e então surge uma nova face do personagem, talvez a sua verdadeira, começa a se expandir na obra, e a sátira saramaguiana do homem chega a Deus, e é assim que, em uma das cenas mais emblemáticas da obra, se dá o primeiro confronto de Caim com Deus. Deus aparece para cobrar explicações de Caim e puni-lo, porém, o assassino argumenta contra a falta de humildade do Senhor que não aceitou sua oferenda, Caim ainda afirma “o primeiro culpado és tu”. Um deus entre outros deuses – Saramago permite diversas vezes nos discursos dos personagens a suposição de outros deuses ‒ que deixou o assassinato acontecer quando poderia tê-lo impedido em sua soberania.

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Que fizeste com o teu irmão, perguntou, e Caim respondeu com outra pergunta, Era eu o guarda-costas de meu irmão, Mataste-o, Assim é, mas o primeiro culpado és tu, eu daria a vida pela vida dele se tu não tivesses destruído a minha, Quis pôr-te à prova, E tu quem és para pores à prova o que tu mesmo criaste, Sou o dono soberano de todas as coisas, E de todos os seres, dirás, mas não de mim nem da minha liberdade, Liberdade para matar, Como tu foste livre para deixar que eu matasse a Abel quando estava na tua mão evitá-lo [...] (SARAMAGO, 2009, p. 34)

Essa divisão da culpa estabelecida em um diálogo que criador e criatura parecem estar no mesmo patamar de forças desencadeia a promessa divina de proteger Caim, com a marca que lhe dá na testa, assim como compromete Caim a manter um dos, talvez, muitos segredos de Deus. Neste ponto, Caim se transforma no caminhante errante dos vários presentes bíblicos e espectador contrariado das diversas falhas de Javé. [...] Não será assim, farei um acordo contigo, Um acordo com o réprobo, perguntou Caim, mal acreditando no que acabara de ouvir, Diremos que é um acordo de responsabilidade partilhada pela morte de Abel, Reconheces então a tua parte de culpa, Reconheço, mas não o digas a ninguém, será um segredo entre deus e Caim [...] (SARAMAGO, 2009, p. 36)

A partir desse momento narrativo, Caim se descobre homem, mais que isso, humano, e entre suas peripécias e caminhos errantes, conhece Lilith, o grande mito que perpassa diversas construções religiosas e que, nesta obra, se apresenta como “a mulher que é todas as mulheres”. Assim, é no contato com Lilith e a paixão carnal que se destaca essa crescente pulsão do livro que nos coloca em contato com uma linguagem e em uma sátira cada vez mais cortante e agressiva até eclodir nos acontecimentos do décimo terceiro e último capítulo da obra com o fim da humanidade, que se dá num casamento macabro de morte e sexo na simbólica arca de Noé. A liberdade de que goza Caim e a sua própria personalidade em conflito com essa liberdade, traça uma complexidade psicológica percebida por Manual Frias Martins (2014), que faz dele um herói extremamente humano e, por isso mesmo, complexo e contraditório. Interessante notar como o personagem depende do envolvimento com outros personagens para sua caracterização, principalmente quanto a sua relação com o Criador. Há uma nota trágica no destino de Caim, assim como percebe-se o caráter subversivo do personagem, uma construção que acaba fazendo de Caim um tipo de “vingador humano dos dramáticos castigos de Deus” (MARTINS, 2014, p. 103). Podemos perceber como a indagação saramaguiana perpassa toda a mitologia judaico-cristã, a começar com a crítica a um livre-arbítrio, que na verdade é inexistente, pois há o castigo divino espreitando os erros cometidos pelos homens, erros que só são possíveis pela maldade que Deus permitiu existir nos seres. Saramago constrói Caim como um romance que desacredita a humanidade diferentemente constituída aos pés das religiões desse deus, que parece incapaz de misericórdia ao homem, um deus que cada vez mais se apresenta como moralmente indiferente aos sofrimentos humanos. 72


Em Caim, temos um deus que mostra sua dependência dos homens por quem tem contraditória indiferença, e Caim, em uma de suas “outras tantas tentativas para matar deus” (SARAMAGO, 2009, p. 169), mostra a Javé “tua verdadeira face” (p. 172) tão má e infame quanto a do homem que lhe fala e por ele foi feito. Outro episódio marcante na obra e que exemplifica o caráter divino nos termos saramaguianos, aparece no capítulo seis em uma das viagens de Caim entre os presentes, nesta o errante personagem se depara com Abraão indo sacrificar Isaac, seu filho, a pedido do Senhor. O leitor leu bem, o senhor ordenou a Abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa que era costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que Abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. Na manhã seguinte, o desnaturado pai levantou-se cedo para pôr os arreios no burro, preparou a lenha para o fogo do sacrifício e pôs-se a caminho para o lugar que o senhor lhe indicara, levando consigo dois criados e o seu filho Isaac. [...] Disse então aos criados, Fiquem aqui com o burro que eu vou até lá adiante com o menino, para adorarmos o senhor e depois voltamos para junto de vocês. Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor, Abraão era um refinado mentiroso, pronto a enganar qualquer um com a sua língua bífida, que, neste caso, segundo o dicionário privado do narrador desta história, significa traiçoeira, pérfida, aleivosa, desleal e outras lindezas semelhantes. (SARAMAGO, 2009, p. 79)

Neste ponto, temos não só deus como o atingido pela forte ironia saramaguiana, mas tal forma de crítica se estende à Abrãao, um dos maiores exemplos bíblicos de fé, chamado, por isso mesmo, de Pai da fé, o que é interessante, visto que o mesmo é caracterizado pelo narrador como “o desnaturado pai” e, claro, acusado de ser “tão filho da puta como o senhor”. Há uma comparação nítida na passagem que se forma para igualar Abrãao e deus para que os mesmos acabem por partilhar a crítica do narrador, assim como também se percebe uma desumanização de Abrãao e, consequentemente, de deus quando o narrador afirma que o mais humano seria não ter aceitado tal proposta. Abrãao é ainda chamado de “refinado mentiroso” e colocado sob diversas acusações, em que o narrador deixa claro não ter palavras para definir o que até então tem sido considerado pela Igreja como prova de fé e obediência a Deus, o quase assassinato de Isaac. Com o toque de humor suscitado por “outras lindezas semelhantes”, o narrador saramaguiano prossegue dando ainda provas de sua revolta, se pudermos caracterizar assim o motivo de uma linguagem mais brusca e mesmo ainda mais mordaz e sarcástica, ao deixar para Caim o papel de herói. Será, nesta versão, Caim que impedirá o assassinato, pois o anjo designado para interferir chegou atrasado ao monte por problemas técnicos, prova da sagaz ironia saramaguiana. Não, não era certo, caim não é nenhum anjo, anjo é este que acabou de pousar com um grande ruído de asas e que começou a declamar como um actor que tivesse ouvido finalmente sua deixa (...), Chegas tarde, disse caim, se isaac não está morto foi porque eu o impedi. O anjo fez cara de contrição, Sinto muito ter chegado atrasado, mas a culpa não foi minha, quando vinha para cá surgiu-me

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um problema mecânico na asa direita, não sincronizava com a esquerda (...). (SARAMAGO, 2009, p. 80)

O que acontece a seguir merece destaque, pois é quando o filho tão esperado de Abrãao e Sarah, Isaac, se revolta com um deus capaz de coisas tão terríveis, um deus “tão cruel e tão baal que devora os seus filhos” (SARAMAGO, 2009, p. 83), pondo em discussão o caráter divino e, além, do homem que opta por segui-lo. Ao final deste capítulo, Caim embarca em outra viagem, reencontrando Abraão em diferentes circunstâncias. Neste momento, o narrador saramaguiano explora uma perspectiva do relacionamento entre criador e criatura que vai além da indiferença divina, demonstrando quase uma incapacidade inata, quando diz “A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele” (SARAMAGO, 2009, p. 88). O capítulo seguinte mostra um deus sádico e mentiroso, traidor de seus fiéis e traidor de Abraão, ao retratar o episódio da destruição das cidades de Sodoma e Gomorra, afinal “Como imparcial juiz que sempre se havia prezado de ser, embora não faltassem acções suas para demonstrar precisamente o contrário, tinha vindo cá abaixo para tirar a questão a limpo” (SARAMAGO, 2009, p. 91), neste ponto temos mais uma prova da ironia saramaguiana que não deixa de relembrar o leitor que a visão que deus tem de si mesmo, não é de forma alguma o que suas ações têm demonstrado ser reais. Assim, deus conta para Abraão seus planos para as cidades – e dessa forma acontece também na Bíblia ‒, e o fiel seguidor entra em defesa dos inocentes, questionando se a existência de inocentes na cidade não impediria a destruição total da mesma. Por meio desse diálogo entre Abraão e o Senhor, temos a imagem de Deus como juiz imparcial contestada novamente na fala de Abraão: Não é possível que vás fazer uma coisa dessas, senhor, condenar à morte o inocente juntamente com o culpado, desse modo, aos olhos de toda gente, ser inocente ou culpado seria a mesma coisa, ora, tu, que és o juiz do mundo inteiro, deves ser justo nas tuas sentenças (SARAMAGO, 2009, p. 92).

Como veremos no correr dos acontecimentos, Deus opta por destruir as cidades ignorando o pedido do fiel entre os fiéis, e fazendo da justiça divina apenas o reflexo da vontade divina, que não se importa em poupar ninguém. Necessário se faz comentar que o motivo da destruição das cidades está atrelado ao sexo, o que nos remonta aos comentários de Ferraz (2003) sobre como Saramago critica o papel da religião na repressão sexual que perpassa séculos, em que o sexo está ligado a noção de pecado, e o deus que nos é apresentado então, volta a aparecer aqui com a sua primeira face na condenação do sexo, uma “face de culpa pelo prazer sexual” (FERRAZ, 2003, p. 72). Contraditoriamente, será o mesmo deus que estimulará o sexo na Arca de Noé com intenções de repovoar a terra que ele mesmo resolver destruir e, nesse afã sexual que se acabarão seus planos, com a rebeldia de Caim. Por fim, para entendermos o papel essencialmente questionador de Caim – que dá voz às indagações do autor – que leva a nos depararmos com uma visão de deus, bom apenas para si mesmo e fiel apenas a suas próprias vontades, temos o diálogo entre Caim e Abraão que fecha o sétimo capítulo:

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Tenho um pensamento que não me larga, Que pensamento, perguntou abraão, Penso que havia inocentes em Sodoma e nas outras cidades que foram queimadas, Se os houvesse, o senhor teria cumprido a promessa que me fez de lhes poupar a vida, As crianças, disse caim, aquelas crianças estavam inocentes, Meu deus, murmurou abraão e sua voz foi como um gemido, Sim, será o teu deus, mas não foi o delas. (SARAMAGO, 2009, p. 97).

Caim, em sua fala, descontrói o deus como o lado bom da eterna dicotomia deus e diabo ao relacionar o fogo – elemento ligado ao inferno bíblico – com o fim das cidades. Também reforça a desconfiança humana em um deus que quebra suas promessas e que escolhe quem é ou não inocente segundo a sua própria balança, que escolhe de quem é o deus e de quem não é. Este é o deus que não poupa as criancinhas, por mais que seja delas “o reino dos céus” (Bíblia, Mateus, 14, 19:18) A essa mesma passagem podemos relacionar ainda o episódio de Herodes na obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo, trecho no qual José deixa de salvar as crianças e por isso carrega toda a culpa, é mais um dos momentos bíblicos que, para Saramago, contradizem a fala de Jesus, denunciando um deus que nunca salva ou olha por suas crianças. Para que entendamos a outra grande crítica desta passagem, temos que compreender que as obras saramaguianas, principalmente o Evangelho Segundo Jesus Cristo e Caim que formam o que Martins (2014) chama de “unidade epistemológica e literária” não considera uma divisão entre o deus que firmou a “nova e eterna aliança” de Javé, contido no Antigo Testamento. Como comprovação de tal afirmação, no final de Caim não há nova humanidade, porque tudo seria a repetição dos erros de deus e do homem. Assim, a crítica de Caim atinge e extingue a imagem do deus das crianças, mais que isso, o transforma no deus que “não foi o delas”, e que não o pode ser por sua eterna indiferença aos homens que criou. Assim, temos o último momento da obra, que trabalha o último presente a ser visitado por Caim, o momento da construção da Arca de Noé que significava o renovar da humanidade. Sobre a arca é interessante observar sua simbologia, sendo que a mesma foi explorada continuamente em diversos momentos da literatura, tanto na Cultura Clássica envolvendo o inferno mitológico e a travessia com Caronte, como também na dialética bem versus mal de Gil Vicente, e, é claro, na Bíblia, representando proteção e a salvação de Noé e sua família. Pode-se perceber que a ironia saramaguiana consegue atingir não só a mitologia da barca, como toda a construção em torno da figura de Noé e da salvação da espécie a ser engendrada pela sua família. Para tanto, o narrador inicia reapresentando deus: Naquele exacto momento, em meio de um trovão ensurdecedor e dos correspondentes relâmpagos pirotécnicos, o senhor manifestou-se. Vinha em fato de trabalho, sem os luxos vestimentários com que reduzia à obediência imediata aqueles a quem pretendia impressionar sem ter de recorrer à dialéctica divina (SARAMAGO, 2009, p. 148)

Despertando, em seguida, nossa atenção para o fato de que nem mesmo deus, “dono soberano de todas as coisas”, sabia de Caim até aquele momento, ou mesmo de suas viagens entre os presentes, “que fazes por aqui, nunca mais te vi desde o dia em que mataste o teu irmão” (SARAMAGO, 2009, P. 148). Neste 75


encontro, Caim e deus pareciam “dois velhos amigos” a se reencontrar, firmandose a ideia de Caim como parte da arca, ajudando a família de Noé a repovoar essa terra que deus achou por bem reiniciar. E a decisão de deus pauta-se na afirmação “a maldade dos homens é grande, todos os seus pensamentos e desejos pendem sempre e unicamente para o mal” e mesmo afirma o arrependimento em ter criado o homem. Não sabes a força que têm os anjos, com um só dedo levantariam uma montanha, o que me vale é serem tão disciplinados, não fosse isso e já teriam organizado um complô para me deporem, Como satã, disse Caim, Sim, como satã, mas a esteja lhe encontrei a maneira de o trazer contente, de vez em quando deixo-lhe uma vítima nas mãos para que se entretenha, e isso lhe basta, Tal como fizeste a Job, que não ousou amaldiçoar-te, mas que leva no coração toda a amargura do mundo, Que sabes tu do coração de Job, Nada, mas sei tudo do meu e alguma coisa do teu, respondeu Caim, Não creio, os deuses são como poços sem fundo, se te debruçares neles nem mesmo a tua imagem conseguirás ver, Com o tempo todos os poços acabam por secar, a tua hora também há-de chegar. (SARAMAGO, 2009, p. 153)

Neste ponto, Saramago demonstra como é indiferente a existência do diabo, que é servo de deus e a ele de alguma forma relacionado, assim como todo o bem nasceria de deus para os religiosos, para o narrador saramaguiano, também todo o mal sai dele. Importante também se faz reparar na alusão a outro episódio bíblico revisitado na obra que é a história de Job, a qual, pela necessidade de se delimitar o trabalho, não foi por nós analisado. Job tem sua fé testada pelo diabo em decorrência da aquiescência divina, perdendo sua família, riquezas, e saúde apenas por crer em deus, e, pela figura da mulher de Job, temos outro momento da mulher como ferramenta saramaguiana de desestabilizar o divino. Não só o massacre ocorrido por conta da estátua de ouro no presente vivido por Moisés, ou mesmo a confusão de línguas da torre de Babel, são provas irrefutáveis para esse narrador saramaguiano da leviandade desse deus cruel, como relembrá-los por meio de Caim dá a eles a ideia de desumanidade do senhor. A revisitação desses episódios, como o da arca que aqui comentamos, mostra a escolha do autor de perpetuar uma visão extremamente literal do texto bíblico, tendo consequências na visão do deus apresentado, o deus vingativo do Antigo Testamento, que graças à força destrutiva de nosso protagonista, nunca terá a chance de firmar a ‘nova e eterna aliança’. Dando prosseguimento ao episódio em questão, teremos as cenas de assassinato de cada um dos integrantes da arca de Noé, todos praticados pelo assassino do irmão e da humanidade, Caim. Entre o sexo da procriação predito e esperado por deus, Caim cerca a família de Noé de tal forma que o único a sobrar com vida é o próprio patriarca, que ciente de como falhou em sua missão, se mata. Quando deus retorna para rever a família de Noé, temos a última cena da obra, assim como o último diálogo entre criatura e criador antes do fim do mundo: Caim apareceu no limiar da grande porta, Onde estão Noé e os seus, perguntou o senhor, Por aí, mortos, respondeu Caim, Mortos, como, mortos, porquê, Menos Noé, que se afogou por sua livre vontade, aos outros matei-os eu, Como te atreveste, assassino, a contrariar o meu projecto, é assim que me agradeces ter-te poupado a vida quando mataste Abel, perguntou o senhor, Teria de

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chegar o dia em que alguém te colocaria perante a tua verdadeira face, Então a nova humanidade que eu tinha anunciado, Houve uma, não haverá outra e ninguém dará pela falta, Caim és, e malvado, infame matador do teu próprio irmão, Não tão malvado e infame como tu, lembra-te das crianças de Sodoma. Houve um grande silêncio. Depois Caim disse, Agora já podes matar-me, Não posso, palavra de deus não volta atrás, morrerás da tua natural morte na terra abandonada e as aves de rapina virão devorar-te a carne, Sim, depois de tu primeiro me haveres devorado o espírito. A resposta de deus não chegou a ser ouvida, também a fala seguinte de Caim se perdeu, o mais natural é que tenham argumentado um contra o outro uma vez e muitas, a única coisa que se sabe de ciência certa é que continuaram a discutir e que a discutir estão ainda. A história acabou, não haverá nada mais que contar. (SARAMGO, 2009, p. 172)

Sendo assim, Caim é um personagem que aceita a volúpia e se desfaz de máscaras, será o agente da paixão e da experiência erótica dentro do livro e o escolhido para ajudar a procriar e salvar a humanidade da extinção no episódio da arca de Noé, porém, como veremos, sua volúpia se mostra cruel. Martins (2014) acusa Saramago de levar mais longe as implicações da figuração da sexualidade na narrativa com o personagem Caim, como uma das suas formas de interpelar Deus, principalmente, quanto ao futuro de uma raça que termina e recomeçaria em uma farsa do castigo divino. Neste ponto, a presença de Caim na arca de Noé também vem marcar uma continuidade, em que tudo será sempre igual se partir de um lugar onde sexo, violência e morte se casam. Sobre o sexo na obra, ainda podemos comentar noções como a de culpa e expiação, o sexo como a fonte de poder que Caim acha para provar algo a deus. A sexualidade que aparece na arca é fútil e desprovida de espiritualidade e, assim, Caim retira o encanto erótico da humanidade e se faz mensageiro do desígnio divino de procriação, ao mesmo tempo que é justiceiro de uma moralidade iníqua. Sendo assim, é através de ações insensatas, e até mesmo selvagens, que o Caim saramaguiano se mostra demasiadamente humano. A figura divina, situada acima das leis humanas e divinas, insaciável em sua fome de poder e em provar sua dominação da verdade, sofre o processo de dessacralização ao longo da obra e entre a ironia do narrador que o nega e dos diálogos tensos que o pesam e intensificam esse processo. Evidenciando as características que esse personagem assume na obra saramaguiana, como a tirania, o sarcasmo e a soberba, possibilitando ver-se a formação de um deus perverso. 4. Considerações Finais A discussão apresentada neste trabalho confirma a revelação de um deus cruel a quem o narrador saramaguiano não deixa de expor e criticar, sendo assim, podemos assumir que a figura de Caim aparece como representante das indagações humanas perante o divino que faz o que quer com as criaturas que criou. Dessa forma, podemos afirmar também que os romances saramaguianos carregam revelações de um espírito que se interroga acerca da experiência humana, da realização material e espiritual do homem, das lealdades do homem a deus e a si mesmo e sobre a presença do mal no mundo.

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Saramago se constituiu como um escritor que entendeu o papel da mitologia cristã dentro do mundo ocidental e que utilizou esse conhecimento como forma de crítica a situações tipicamente humanas, em que a guerra, a crueldade e a ideia de pecado, assim como a visualização desse deus do imaginário ocidental diz mais sobre o homem que o cultua do que sobre o mesmo. Sendo assim, Saramago mais disse sobre o homem ao falar de deus, e mais buscou defender o homem na busca por si mesmo e por fazer o bem na terra, enquanto ainda há tempo. Considerando a visão assumida por Saramago, a revisitação dos episódios bíblicos do Velho Testamento demonstra uma relatividade dos juízos divinos que corroboram também a crueldade de Javé, mostrando um deus que na verdade seria caprichoso, maquiavélico e, acima de tudo, egocêntrico, criando o mundo e os homens para ser idolatrado por eles e os guiar como bem entender. A Saramago compete o interrogar, seja a história, o tempo ou o imaginário, interpelar e tentar compreender a cultura e a mente de Deus. Assim, a espiritualidade saramaguiana, como a vê Martins (2014), transparece enraizada na liberdade de questionar – seja deus ou ainda as injustiças divinas, pelo discurso da revolta de Caim. Interessante notar que, apesar da obra carregar o nome do personagem Caim, sabemos que o autor vai muito além da constituição desse sujeito, porque só há a história e o desenvolvimento do personagem a partir da sua relação com Deus. Tanto Deus quanto Caim se expressam em um discurso carregado de várias leituras, como já visto, e nestes diálogos ao longo da obra o criador e a criatura são recriados por Saramago assim como se recriam mutuamente no plano da escrita. Assim, com base na leitura da obra, podemos perceber que o deus saramaguiano é de representação cruel, desde as descrições de suas aparições, até os seus atos que deixam entrever um divino ameaçador ao ser humano, que faz dos homens um joguete dos seus planos. Por sua vez, Caim é o herói rebelde e mecanismo de indagação saramaguiano, e é por meio dele que as atrocidades divinas são questionadas, mas a construção do sujeito Caim ultrapassa sua função de caminhante de alternados presentes, o personagem é, antes de tudo, um homem demasiado humano, e representante dos percalços de toda gente. José Saramago resiste às ideias feitas, subverte as verdades institucionalizadas e mantem um combate pela reinvenção constante da verdade, Caim é uma de suas obras que mais demonstra o seu lado humano e a sua valorização do homem como capaz de suas próprias decisões. Caim, enquanto personagem, marca justamente a recusa a servidão e humilhação humanas, e faz de si próprio quem decide sua história, surpreendendo até Deus com seus atos, e deixa os anjos sem resposta quando afirma: “Onde é que nasceu essa peregrina ideia de que deus, só por ser deus, deva governar a vida íntima de seus crentes, estabelecendo regras, proibições, interditos e outras patranhas do mesmo calibre” (SARAMAGO, 2009, p. 159). Ao passo que, Deus delimita os parcos conhecimentos que ainda se tem dele “não sabes nada de mim”, e ficam para os leitores diversas outras possibilidades de interpretações das ações de divinas e da recorrente ideia subsistente ao texto de que existam outras forças e outros deuses. Da obra, sai o leitor com a única certeza de que não há verdades absolutas, e que a história ainda não acabou e que há muito mais o que contar.

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5. Referências Bibliográficas AMARAL, André Luiz do. Que diabo de deus é esse? Divinas ficções de José Saramago. Santa Catarina: UFSC, 2011. ARNAUT, Ana Paula. Novos rumos na ficção de José Saramago: os romances fábula (As Intermitências da Morte, A Viagem do Elefante, Caim). Ipotesi. Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 25 -37, jan./jun. 2011. Bíblia sagrada: contendo o Antigo e o Novo Testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 1966. BUENO, Aparecida de Fátima. O Evangelho segundo Saramago. In: Cânones & Contextos: anais, volume 2/5. Rio de Janeiro: Congresso Abralic, [s.n], 1998. BRUNEL, Pierre. Caim. In: Dicionário de mitos literários. São Paulo: José Olympio, 2000, p. 139-145. FERRAZ, Salma. As faces de Deus na obra de um ateu: José Saramago. Juiz de Fora, MG: Editora UFJF, 2003. FERRAZ, Salma. Caim decreta a morte de Deus. Revista de Estudos Saramaguianos, nº 1, janeiro de 2015. MARTINS, Manuel Frias. A Espiritualidade Clandestina de José Saramago. Fundação José Saramago, 2014. REAL, Miguel. A ‘maldade’ de Deus. Jornal de Letras, Artes e Ideias. Lisboa, 2009. REIS, Carlos. Diálogos com José Saramago. Porto: Porto Editora, 2015. REIS, Carlos. A literatura como heterodoxia. Jornal de Letras. Portugal, 2009. SARAMAGO, José. Caim. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. SARAMAGO, José. Levantando do chão. 6ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. SARAMAGO, José. Memorial do Convento. 4ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1987. SARAMAGO, José. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. O Quinto Evangelista ou da Tigela ao Graal. Vértice. Coimbra, nº 52, 1993, p. 17-21. VASCONCELOS, José Carlos. Saramago e a ‘polémica’. Jornal de Letras, Artes e Ideias. Lisboa, 2009.

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HIROSHIMA MON AMOUR (1959): POESIA CINEMATOGRÁFICA ENTRE AMOR E GUERRA Maria do Socorro Aguiar Pontes Giove10

Sobrevoo maníaco para vigiar, conquistar ou bombardear: como o do aviador do bombardeiro que destruiu Hiroshima sem nada ver com exatidão, isto é, sem estar à altura dos homens, daquilo e daquele que ele destruía, de tão alto que estava no céu. Georges Didi-Huberman11

RESUMO: O artigo, aqui proposto, averiguará se, por meio da relação entre literatura e cinema, intercâmbio este que caracteriza boa parte da produção literária e cinematográfica de Marguerite Duras, a escritora francesa inaugurou um novo gênero discursivo (TODOROV, 1980). Para isso, analisar-se-á o roteiro cinematográfico Hiroshima mon amour (1960), e o filme homônimo dirigido por Alain Resnais. Investigar-se-á como a interpenetração entre os dois campos artísticos – literatura e cinema – atuou, direta e profundamente, na confecção do roteiro Hiroshima mon amour (1960), enriquecendo-o com características próprias da literatura, fato este que desencadeou o engendramento de um novo gênero discursivo. Mediante as ideias do poético (DUFRENNE, 1963) e do conceito de Subjetiva Indireta Livre (PASOLINI, 1982), perceber-se-á que tanto o roteiro cinematográfico quanto o filme apresentam características próprias da linguagem poética, o que, a um só tempo, possibilita determinada renovação do roteiro cinematográfico e transmuta-o em um novo gênero discursivo. PALAVRAS-CHAVE: Gênero discursivo. Literatura. Cinema. Marguerite Duras. ABSTRACT: This article aims to investigate if, considering the relation between literature and cinema, interchange that caracterizes a considerable part of Marguerite Duras literary and cinematographic production, the French writer inaugurated a new discursive gender (TODOROV, 1980). To do so, the film script Hiroshima mon amour (1960) and the film of the same title, directed by Alain Resnais, will be analyzed. It wil be investigated how the interpenetration of both artistic fields – literature and cinema – acted directly and deeply in the production of the film script Hiroshima mon amour (1960), enriching it with characteristics of literature, fact that proportionated the birth of a new discursive gender. Grounded on the ideas of the poetic (DUFRENNE, 1969) and the concept of Free Indirect Subjectivity (PASOLINI, 1982), it will be noticed that both the cinematographic script and the film present characteristics of the poetic language, fact that, at the

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Estudante de doutorado na UnB – Universidade de Brasília. Didi-Huberman, 2015, p. 6.

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same time, makes possible a certain renewal of the cinematographic script and transmutes it in a new discursive gender. KEYWORDS: Discursive gender. Literature. Cinema. Marguerite Duras.

1 Contextualização Era uma questão de ponto de vista: o dos que estavam lá em cima, no céu, e o dos que estavam lá embaixo, em Hiroshima. Os que estavam lá em cima careciam de suficiente imaginação para prever as consequências daquele ato; os que estavam lá embaixo foram vítimas de uma arma que, em segundos, causou uma mortandade. Com um codinome ironicamente inofensivo, a bomba atômica Little Boy12 imergiria seus mártires num estado de sofrimento tal que quaisquer palavras seriam insuficientes para expressar a magnitude de um resultado tão funesto. Em missão planejada pelo governo norte-americano, em 6 de agosto de 1945, às 8:15, horário local, Little Boy praticamente aniquilou a cidade-alvo. 70 mil pessoas morreram na hora! Enquanto isso, os sobreviventes, temporários ou não, de Hiroshima, aguardavam um trágico e inelutável destino, provocado pelos efeitos da radiação no organismo. O lançamento das bombas atômicas no Japão – primeiro, em Hiroshima, e, três dias depois, em Nagasaki – marcou, drástica e indelevelmente, o fim da Segunda Guerra Mundial. Após dirigir o aclamado curta-metragem Nuit et Brouillard [Noite e Neblina] (1956), que discorre sobre a deportação e os campos de concentração nazistas, Alain Resnais foi convidado, pela Argos Filmes e pela sociedade Japonesa Daiei Filmes, para fazer um documentário sobre a Segunda Guerra Mundial, que estabelecesse uma relação entre França e Japão. Conforme narra Alain Resnais,13 o filme que, num primeiro momento, seria um documentário, com duração máxima de 45 minutos, evoluiu até se tornar uma obra ficcional com mais de 90 minutos. De fato, Resnais não queria realizar outro documentário para não repetir a experiência de Nuit et Brouillard (1956)14. Por seu turno, M.D.15 sofreu as consequências da Segunda Guerra Mundial. Ela fazia parte da Resistência Francesa, movimento contra a subordinação da França ao poder nazista. Exatamente pelo fato de fazer parte do mesmo movimento, Robert Antelme,16 à época marido de Duras, foi deportado para os campos de concentração de Buchenwald e de Dachau, situados ambos na Alemanha. Em La douleur [A dor] (1985), obra que viria a lume somente vinte e cinco anos depois da publicação do roteiro de Hiroshima mon amour [Hiroshima meu

“Garotinho”. As citações em língua estrangeira foram traduzidas livremente por mim. DAUMAN, Anatole; HALFON, Samy (Prod.). RESNAIS, Alain. Hiroshima mon amour. Direção de Alain Resnais, 1960. 90 min. 14 DAUMAN, Anatole; HALFON, Samy (Prod.). RESNAIS, Alain. Hiroshima mon amour. Direção de Alain Resnais, 1960. 90 min. 15 Usaremos a sigla M.D. para nos referirmos à Marguerite Duras. 16 Em sua obra L’Espèce humaine [A espécie humana] (1947), Robert Antelme relata a sua experiência como deportado em tais campos de concentração. 12 13

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amor] (1960),17 M.D. narra os seus momentos de angustiante espera por notícias de Robert Antelme. No intuito de obter informações sobre ele, M.D. até mesmo se aproxima de um “caçador de judeus” (DURAS, 1986, p. 116), um agente da Gestapo, chamado, em La douleur, de Pierre Rabier, com quem ela desenvolveria uma relação ambígua, como revela o seguinte excerto: Imagino que ele me faz beber assim porque já se encontra no desespero da derrota, é curioso que não se dê conta disso. Ele pensa que me faz beber para tentar levar-me para o hotel. Mas ignora que ainda não sabe o que fará comigo naquele hotel, se vai me possuir ou me matar. (DURAS, 1986, p. 119).

Vale lembrar que Hiroshima mon amour (1960) inaugura a entrada de Duras na sétima arte. Até então, outros diretores tinham adaptado algumas de suas obras, tais como René Clément, que realizou Un barrage contre le Pacifique [Barragem contra o Pacífico] (1958), o qual ela considera como “[...] la plus incroyable trahison”18 (DURAS, 2014, p. 608), e Peter Brook, que dirigiu Moderato Cantabile (1960), do qual Duras (2014, p. 608), também por descontentamento com a transposição cinematográfica, queria ter feito a sua própria versão. Sendo assim, Duras (2014, p. 608) passou a fazer cinema justamente porque discordava da maneira como outros artistas transcodificavam cinematograficamente as suas obras, pois M.D. tinha, a respeito do fazer cinematográfico, uma concepção muito diferente de tais realizadores. Por exemplo, o filme L’amant [O amante] (1991), dirigido por Jean-Jacques Annaud, é “[...] étranger à l’univers durassien”19 (BORGOMANO, 2010, p. 50), posto que “[...] il s’agit d’un autre univers, ou d’une autre vision du cinéma et du monde”20 (BORGOMANO, 2010, p. 50). Neste sentido, observemos as palavras da cineescritora: J’ai eu envie de faire du cinéma parce que les films qu’on faisait avec mes romans étaient pour moi insoutenables. Tous, vraiment, trahissaient le roman écrit par moi mais à un point dont je n’aurais jamais pu imaginer qu’on puisse l’atteindre.21 (DURAS, 2014, p. 608).

Marguerite Duras trespassava por entre variados domínios artísticos, o que, inevitavelmente, produziria influências múltiplas em sua obra. Quando M.D. decidiu fazer cinema porque discordava da maneira como outros cineastas adaptavam os seus livros, o seu fazer artístico já estava profundamente impregnado pela sua bagagem literária. Inevitavelmente, esta vasta experiência estaria espelhada em sua produção cinematográfica. Geralmente, as ideias do roteirista acabam se subordinando às do diretor, pois, para muitos, “[...] o roteiro é apenas o primeiro passo em uma grande estrutura” (MCSILL; SCHUCK, 2016, p. 104). Na contracorrente disso, Marguerite O roteiro de Hiroshima mon amour foi publicado em 1960, mas o filme foi lançado em 1959. Então, quando nos referimos ao roteiro Hiroshima mon amour, indicamos o ano de sua publicação, o mesmo sendo feito para o filme. 18 “[...] a mais inacreditável traição”. 19 “[...] é estrangeiro ao universo durassiano”. 20 “[...] trata-se de um outro universo ou de uma outra visão do cinema e do mundo”. 21 “Tive vontade de fazer cinema porque, para mim, os filmes que eram feitos sobre os meus romances eram intoleráveis. Todos traíam, realmente, o romance escrito por mim, mas a tal ponto que eu jamais poderia imaginar que fosse possível alcançar”. 17

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Duras e Alain Resnais trabalharam em parceria – equipolente – na composição da obra em análise. Segundo Santos (2015, p. 176), Resnais considerava a escrita de Duras tão relevante para a composição da obra cinematográfica, e com um ritmo tão peculiar, que, no intuito de orientar a interpretação dos atores, até mesmo pediu à M.D. que gravasse todos os diálogos de Hiroshima mon amour (1960). Assim sendo, Hiroshima mon amour (1959) resulta da confluência fecunda de dois trabalhos artísticos. O casamento entre estes dois grandes talentos – Marguerite Duras, como escritora de roteiro cinematográfico, e Alain Resnais, como diretor de longa-metragem, – originou uma obra deveras instigante. Interessante observar que quando Alain Resnais e Marguerite Duras se encontraram para conversar sobre a possibilidade de fazer um filme sobre a bomba atômica, chegaram à conclusão que, face a tal tragédia, quaisquer palavras seriam insuficientes. M.D confessou: “[...] Impossible de parler de H I R O S H I M A. Tout ce qu’on peut faire c’est de parler de l’impossibilité de parler de H I R O S H I M A”22 (DURAS, 1960, p. 10, grifos da autora). Hiroshima mon amour (1959), portanto, é o resultado poético-cinematográfico da im(possibilidade) de falar de “H I R O S H I M A”. É importante sublinhar que o roteiro de L’Année dernière à Marienbad [O Ano passado em Marienbad] (1961), uma obra-prima de grande destaque na história do cinema, foi escrito por outro eminente romancista francês, que não só fazia parte do movimento literário Nouveau roman23 como era o seu teórico mais ferrenho: Alain Robbe-Grillet. Além disso, o roteiro do filme já mencionado, Nuit et Brouillard (1956), foi elaborado por outro literato francês: Jean Cayrol. Neste sentido, convém observar a declaração, de Alain Resnais, sobre os critérios nos quais ele se apoiava para a escolha dos seus roteiristas: Escolho os escritores que me parecem dotados de qualidades dramáticas, que possuem o sentido do espetáculo. Peço-lhes para não pensar [sic] na técnica cinematográfica e de permanecerem fiéis à sua própria linguagem. Se eles possuem realmente esse senso dramático, creio que seu trabalho produzirá automaticamente imagens cinematográficas. (RESNAIS, 1997, p. 125).

Alain Resnais costumava relacionar o universo da sétima arte com o da literatura, o que possibilitava o burilamento da palavra destinada à tela. Desse modo, conforme Santos (2015, p. 117), o cine-diretor francês contribuiu para fomentar a produção de textos literários, totalmente inéditos, destinados à sétima arte. Para Alain Resnais, cada espectador precisa chegar às suas próprias soluções exegéticas a respeito da obra fruída. Tais apreciações não existem em detrimento umas das outras, mas coexistem como caminhos interpretativos possíveis e válidos. Neste sentido, com relação às supostas dificuldades de interpretação, suscitadas pelo seu filme L’Année dernière à Marienbad (1961), Alain Resnais declara: Chaque spectateur pourra trouver sa solution. Et que cette solution sera vraissemblament toujours une bonne solution. Mais, ce qui sera caractéristique, c’est que ce ne sera pas la même solution de celle de son “Impossível falar de H I R O S H I M A. Tudo o que se pode fazer é falar da impossibilidade de falar de H I R O S H I M A”. 23 “Novo romance”. 22

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voisin. C’est-à-dire que ma solution n’a pas plus d’intérêt que [...] celle des spectateurs.24

Neste artigo, dissertaremos, principalmente, sobre o roteiro cinematográfico, escrito por M.D., sem deixar de recorrer, contudo, ao filme homônimo, dirigido por A.R.,25 com vistas a demonstrar que Hiroshima mon amour (1960) vai além de um roteiro cinematográfico tradicional, porquanto mistura discurso poético e discurso cinematográfico, incidindo na criação de um novo gênero discursivo. Assim, para entender por que o roteiro Hiroshima mon amour (1960) pode ser considerado um novo gênero discursivo (TODOROV, 1980, p. 46), apresentaremos algumas características do discurso poético, sem deixar de considerar traços próprios da linguagem cinematográfica. Não perderemos de vista, todavia, a importância de examiná-lo comparativamente ao filme, a fim de desenvolver uma análise mais acurada da obra como um todo. 1.1 Hiroshima mon amour (1959): filme e roteiro em análise Hiroshima mon amour (1959) não é um filme “[...] édifiant sur la Paix”26 (DURAS, 1960, p. 14), o que o reduziria a “[...] un film DE PLUS”27 (DURAS, 1960, p. 14, grifos da autora), mas uma obra cinematográfica que, devido à sua dimensão estético-poética, proporciona, aos cine-leitores, uma experiência catártica mais próxima dos seres humanos vitimados pela bomba atômica. Assim, embora considerado por alguns estudiosos como um ciné-roman,28 o qual “[...] exibe o entrecruzamento de vários sistemas semióticos como, por exemplo, romance, teatro e recursos cinematográficos” (BARROS; MEDEIROS, 2013, p. 98), o roteiro de Hiroshima mon amour (1960) é analisado, aqui, sob outra perspectiva. Hiroshima mon amour (1959) narra uma história que se cinde em duas: a vida pretérita de uma Francesa, interpretada por Emanuelle Riva, com um amante alemão, e a vida atual dela, com um amante japonês, interpretado por Eiji Okada.29 Ela participa de um filme que descreve os efeitos da bomba atômica em Hiroshima. A ocorrência da história de amor entre Elle e Lui, que é efêmera, faz Elle lembrar-se do seu primeiro amor, em Nevers, pequena cidade situada no centro da França, durante a Segunda Guerra Mundial. Ora, em Hiroshima mon amour (1959), os espectadores têm acesso às memórias da protagonista, eivadas de eventos traumáticos. Aliás, o encontro amoroso entre a Francesa e o Japonês, ambos provenientes de países inimigos, durante a Segunda Guerra Mundial, é assaz emblemático, porquanto cada “Cada espectador poderá encontrar a sua solução. E esta solução será verdadeiramente sempre uma boa solução. Mas o que será característico é que não será a mesma solução do seu colega. Ou seja: a minha solução não tem mais interesse que [...] a dos espectadores”. MICHAUX, Jean-Stéphane (Prod.). LAGIER, Luc. Hiroshima le temps d’un retour. Direção de Luc Lagier. 2004. 31 min. 25 Usaremos a sigla A.R. para nos referirmos a Alain Resnais. 26 “[...] edificante sobre a Paz”. 27 “[...] um filme A MAIS”. 28 “cine-romance”. 29 O nome do amante alemão não é mencionado, o Japonês é chamado de “Lui” (“Ele”), e a Francesa é chamada de “Elle” (“Ela”). Doravante, as personagens serão denominadas, neste texto, a seguir a atribuição pronominal anteriormente referida. 24

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personagem traz a sua perspectiva acerca daquele acontecimento. A Francesa vivencia o trauma a partir das consequências do amor proibido com o Alemão, considerado inimigo da França. Já no caso do Japonês, a família deste estava presente em Hiroshima quando a bomba atômica explodiu. Enquanto espectadores, não ficamos a par do que aconteceu com os parentes do Japonês, dado que a obra enfoca o passado da Francesa. Os espectadores têm acesso a pelo menos três histórias sendo contadas uma dentro da outra: a atuação da Francesa no filme sobre a Paz, que está acontecendo em Hiroshima; a história de amor vivenciada, no presente, em Hiroshima, pela Francesa e pelo Japonês; e a história de amor experienciada, no passado, em Nevers, pela protagonista e pelo amante alemão. O que une os dois amores? A impossibilidade da sua realização: o do passado pela morte física do amante alemão, e o do presente pela morte simbólica do amante japonês, prefigurada pelo iminente (possível) retorno da protagonista à França. O roteiro de Hiroshima mon amour (1960) está dividido em cinco partes, seguidas de cerca de trintas páginas de apêndice, onde M.D. dá a conhecer detalhes da história. Na primeira parte, Elle e Lui estabelecem um diálogo em que Elle descreve, pormenorizadamente, tudo o que viu em Hiroshima. Na segunda parte, Lui começa, aos poucos, a descobrir sobre o passado de Elle em Nevers. Na terceira parte, Lui a reencontra no local onde Elle atua em um filme sobre a Paz. Na quarta parte, eles se reúnem em um café, onde Elle revelará detalhes estarrecedores sobre o seu passado com o amante alemão. Já na quinta e última parte, aos amantes passageiros, restam poucas horas antes da separação definitiva. Cada um possui um nome de lugar: Lui, Hi-ro-shi-ma, e Elle, Ne-vers-en-Fran-ce (DURAS, 1960, p. 124, grifos da autora). No título da obra, percebemos a coexistência de dois termos marcadamente díspares, duas condições opostas que, desde a noite dos tempos, a humanidade atravessa e vivencia: a guerra e o amor. Referindo-se a Hiroshima mon amour (1959), Luc Lagier, documentarista e crítico do cinema francês, declara incisivamente: “Tout d’abord une collision, celle de deux mots – Hiroshima et amour – et aucune virgule pour en atténuer la violence”.30 Interessante notar que, em língua portuguesa, a palavra “amor” está inscrita, em forma de anagrama, na palavra Hiroshima. Apesar de não conter todas as palavras presentes no termo francês “amour”, “amor” corresponde à sua tradução em dois idiomas neolatinos, assim como o francês: o português e o espanhol. Dessa maneira, ao mesmo tempo que Hiroshima e amour contrastam entre si, a palavra “amor” está contida em Hiroshima. Com um título polêmico, e até mesmo incompreendido à época,31 Hiroshima mon amour (1959) desencadeia controvérsias em função da figura de linguagem que o estrutura: o oxímoro, o qual “[...] consiste na fusão, num só enunciado, de “Primeiramente, uma colisão, a de duas palavras – Hiroshima e amor – e nenhuma vírgula para atenuar a violência disso”. MICHAUX, Jean-Stéphane (Prod.). LAGIER, Luc. Hiroshima le temps d’un retour. Direção de Luc Lagier. 2004. 31 min. 31 A respeito de Hiroshima mon amour (1959), Marguerite Yourcenar afirmou: “Une seule chose que je ne pardonne pas à Marguerite Duras: ce titre, Hiroshima mon amour. Effrayant. Comme si, après avoir été à Auschwitz, on écrivait Auschwitz, mon petit chou!”. “Por uma única coisa eu não perdoo Marguerite Duras: este título, Hiroshima meu amor. Assustador. Como se, depois de ter estado em Auschwitz, escrevessem Auschwitz, meu queridinho!”. YOURCENAR, Marguerite. LeMonde.fr, 2 dez. 1984. Disponível em: <dicocitations.lemonde.fr/citations/citation115398.php>. Acesso em: 9 jan. 2017. 30

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dois pensamentos que se excluem mutuamente” (MOISÉS, 2013, p. 342). Aliás, vale sublinhar que o oxímoro é um recurso caro à M.D., pois ela se vale dele, em vários momentos da sua obra. Dessa forma, “mon amour”32 – que carrega, inclusive, uma conotação erótica, sugerida pelo contexto narrativo – contrasta com todo o campo semântico que o vocábulo Hiroshima pode evocar. Além disso, o adjetivo possessivo masculino “mon”, que se refere à primeira pessoa do singular, pode produzir, em cada espectador, um sentimento de identificação com a narrativa cinematográfica, na medida em que aproxima o fruidor do drama vivenciado pelos personagens. No que diz respeito à sonoridade do título, em língua francesa, a última sílaba de Hiroshima, ma,33 é adjetivo possessivo feminino, e a palavra subsequente, mon34, é adjetivo possessivo masculino. Assim sendo, o termo ma, seguido de mon, confere uma unidade rítmica e melódica, até mesmo em virtude do seu parentesco gramatical, o que, por si só, remete-nos a características próprias da linguagem poética. Uma leitura interpretativa do título pode ser: apesar da guerra, e justamente através da guerra, o amor existe. Em outros termos, o amor nasce no contexto aparentemente improvável de uma guerra, no qual o ódio, de determinados povos contra outros, atinge o paroxismo. Inclusive, precisamente em um cenário de conflito mundial, a Francesa se apaixonou, com toda a força arrebatadora desencadeada pelo primeiro amor, por um homem considerado inimigo da sua pátria. Destarte, ironicamente, se, no passado, a Francesa pôde se relacionar com o soldado alemão foi justamente porque a cidade onde a protagonista morava, Nevers, estava ocupada pelos nazistas, afinal “Les seuls hommes de la ville étaient allemands [...]”35 (DURAS, 1960, p. 144). De igual maneira, se, no presente, ela vivencia um amor passageiro com o arquiteto/engenheiro japonês, é exatamente porque ela trabalha como atriz num filme que existe em função da tragédia de Hiroshima. Tanto num caso como no outro, a Francesa conhece os seus amores por causa dos contextos históricos adversos nos quais tais personagens se inserem. Convém frisar que A.R. se vale do primeiro e do primeiríssimo planos em vários momentos do filme. Segundo Epstein (2015, p. 6), “El primer plano dirige otro ataque al orden familiar de las apariencias”,36 desvelando o que, não fosse o poder diabólico do cinematógrafo, permaneceria velado. Além de evidenciar a subjetividade dos personagens, ou seja, os sentimentos e pensamentos destes, o primeiro e o primeiríssimo planos contribuem para o ato mutilador do cinema (BORGOMANO, 1985, p. 79). Assim como a bomba atômica deixou um sem-número de seus habitantes mutilados, em Hiroshima mon amour (1959), ao lançar mão de tais enquadramentos, A.R., metaforicamente, “mutila” os seus personagens. Dessa maneira, ao estabelecer um elo comparativo entre os personagens Elle e Lui e os hibakushas,37 a obra re(a)presenta, artística e cinematograficamente, o sofrimento destes. Pensamos que o uso recorrente do primeiro e do primeiríssimo planos produz sentidos metafóricos, pois, ao fazer dos corpos da 32 33 34 35 36 37

“Meu amor”. “Minha”. “Meu”. “Os únicos homens da cidade eram alemães [...]”. “O primeiro plano dirige outro ataque frontal à ordem familiar das aparências”. Nome atribuído, no Japão, aos sobreviventes da bomba atômica.

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Francesa e do Japonês, mutilações cinematográficas, A.R. constrói um paralelo artístico entre estas e as mutilações reais, sofridas pelos sobreviventes, temporários ou não, de Hiroshima. Inclusive, tais mutilações estão previstas no roteiro (DURAS, 1960, p. 9). Assim, o uso desta metáfora, em Hiroshima mon amour (1959), ratifica o sentido “poderosamente metafórico” do cinema (PASOLINI, 1982, p. 143), concorrendo, dessa maneira, para o engendramento do poético no filme em análise. No início do filme, as imagens do entrelaçamento dos corpos de Elle e de Lui, no ato do amor, contrastam com as imagens cinematográficas das consequências da bomba em Hiroshima, nas quais podemos observar, dentre outras coisas, ferros retorcidos e pessoas com a pele dilacerada. Aos espectadores, o filme oferece corpos, na relação sexual, “mutilados” pela câmera – pois desprovidos de suas cabeças – e envoltos numa poeira muito fina. Esta, em seguida, torna-se brilhante até se liquefazer em suor. De igual maneira, em Hiroshima, devido ao calor, excessivo e devastador, gerado pela explosão da bomba atômica – “[...] 10 mille degrés sur la place de la Paix” 38 (DURAS, 1960, p. 25) – tudo o que era sólido simplesmente tournou-se líquido. Em voz off, Elle e Lui conversam sobre os efeitos da bomba em Hiroshima. Enquanto a Francesa narra sobre tudo o que viu em Hiroshima, repetindo: “[...] J’ai tout vu. Tout”39 (DURAS, 1960, p. 22, grifos da autora), o Japonês, insistentemente, responde: “[...] Non, tu n’as rien vu à Hiroshima. Rien”40 (DURAS, 1960, p. 22, grifo da autora). Dessa maneira, a voz de Lui se instaura como um contraponto à voz de Elle. Em decorrência disso, um questionamento se impõe: como a Francesa tudo viu em Hiroshima se, quando ocorreu a explosão da bomba atômica, ela estava em Nevers? A fala da protagonista pressagia a aproximação entre a tragédia coletiva de Hiroshima e a tragédia pessoal de Elle. Elle narra tudo o que viu em Hiroshima, enquanto, paralelamente, a tela apresenta imagens documentais, que descrevem os efeitos da bomba atômica em Hiroshima. Por exemplo, mediante um travelling para a frente, a câmera adentra, primeiramente, em um hospital e, depois, em um quarto deste, onde aparecem sobreviventes de Hiroshima em tratamento. Paralelamente às palavras poéticas da Francesa, irrompem imagens chocantes de Hiroshima. Os espectadores não veem os rostos das personagens. Em vez disso, ouvem, em off, apenas, uma voz feminina e uma voz masculina, o que gera uma lacuna, ainda que temporária, a ser preenchida, pois, em um primeiro momento, cabe, ao cine-leitor, recorrer à sua capacidade intelecto-imaginativa para conceber tais personagens. Convém ressaltar que as imagens não são meramente ilustrativas do texto ou vice-versa, mas, antes, estabelecem um diálogo entre si. Assim, por meio de sua carga poética, o texto potencializa as imagens, e estas, também poéticas, potencializam aquele, conferindo grande liberdade interpretativa ao receptor. Mediante a câmera subjetiva, que representa o olhar de Elle, observamos a imagem do Japonês dormindo, deitado de bruços, e depois, por meio de um rápido flashback, como uma recordação associativa de Elle, visualizamos a imagem do amante alemão, igualmente de bruços, porém morto. As duas imagens, apresentadas aos espectadores, estão associadas no universo psíquico da 38 39 40

“Dez mil graus sobre a praça da Paz”. “Eu vi tudo. Tudo”. “Não, você não viu nada em Hiroshima. Nada”.

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protagonista: no presente, o Japonês, deitado de bruços, está dormindo; e, no passado, o Alemão, também deitado de bruços, está morrendo. No filme, valendose de um plano detalhe, A.R. mostra, primeiramente, as mãos do Japonês, e, logo em seguida, as do Alemão. Esta cena exemplifica o fio condutor de toda a narrativa fílmica, vale dizer, o paralelo entre o amante japonês e o amante alemão, conforme podemos observar na seguinte passagem do roteiro de Hiroshima mon amour (1960): Tandis qu’elle regarde ses mains, il apparaît brutalement à la place du Japonais, le corps d’un jeune homme, dans la même pose, mais mortuaire, sur le quai d’un fleuve, en plein soleil. [...] Ce jeune homme agonise. Ses mains sont également très belles, ressemblant étonnamment à celles du Japonais.41 (DURAS, 1960, p. 43, grifos da autora).

Na quarta parte do roteiro, Lui procura obter informações sobre a história de amor que Elle teve com o soldado alemão em Nevers, confundindo-se, deliberadamente, com este para que Elle, de certa forma, “reviva” o passado e conte, da forma mais detalhada possível, a narrativa do seu primeiro amor. Por exemplo, misturando presente e passado, o Japonês pergunta à Francesa: “Quand tu es dans la cave, je suis mort?”42 (DURAS, 1960, p. 87). Diferentemente da concepção cinematográfica de alguns realizadores, as ideias de Alain Resnais sobre a sétima arte, conforme se evidencia em Hiroshima mon amour (1959), convergiam com as de Marguerite Duras. Assim como o cinema resnaisiano, o cinema durassiano arranca os espectadores do “cinéma de samedi”,43 feito tão-somente para recrear, instigando-os à reflexão. Neste sentido, Madeleine Borgomano argumenta: On pourrait dire qu’il existe deux sortes de fascinations provoquées par le cinéma: l’une passive et abrutissante réduit le spectateur à l’état d’objet, voire de victime. L’autre, celle que tente [sic] les films durassiens, tout en mettant le spectateur dans une sorte d’état second, propice au rêve, le laisse libre justement de créer ses rêves, lui offrant seulement un potentiel narratif qu’il lui faut organiser lui-même; le film exige impérativement la collaboration étroite de l’imagination créatrice.44 (BORGOMANO, 1985, p. 165).

Os personagens de Hiroshima mon amour (1959) conferem, às suas falas, um tom recitativo, como se estivessem fazendo uma leitura teatral do texto. Vale ressaltar que, além de Le camion (1977), em outros filmes de M.D., faz-se a leitura do texto, como, por exemplo, em Aurélia Steiner (1979), no qual M.D., em voz off, lê “Enquanto ela olha as mãos dele, aparece de repente, no lugar do Japonês, o corpo de um jovem, na mesma pose, mas mortuário, no cais de um rio, em pleno sol. [...] Este jovem está morrendo. Suas mãos são também muito bonitas, surpreendentemente semelhantes às do Japonês”. 42 “Quando você está no porão, eu morri?”. 43 “Cinema de sábado”. MOREAU, Marie-Christine (Prod.). PORTE, Michelle. Les lieux de Marguerite Duras. Direção de Michelle Porte. 1976.1h45 min. 44 “Poder-se-ia dizer que existem dois tipos de fascinação provocados pelo cinema: um passivo e embrutecedor reduz o espectador ao estado de objeto, até mesmo de vítima. O outro, aquele que tentam os filmes durassianos, a um só tempo, coloca o espectador numa espécie de torpor, propício ao sonho, deixando-o livre justamente para criar seus sonhos, e oferece-lhe apenas um potencial narrativo que ele mesmo deve organizar; o filme exige imperativamente a estreita colaboração da imaginação criativa”. 41

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o roteiro cinematográfico, enquanto as imagens, não meramente ilustrativas do mesmo, são apresentadas aos espectadores. Devido ao trânsito da autora entre literatura e cinema, o roteiro durassiano encontra-se nos antípodas do roteiro tradicional, que se subordina ao filme e não tem relevância como texto autônomo. Ou seja, M.D. vai na contramão da crença tradicional de que o roteiro é “[...] o princípio de um processo visual, e não o final de um processo literário” (COMPARATO, 1995, p. 20) ou “[...] un état provisoire, une forme passagère destinée à se métamorphoser et à disparaître, comme la chenille devient le papillon”45 (VERMEESCH, 2014, p. 21). É possível, então, contrapor o roteiro meramente funcional, apenas ponto de partida para a confecção do filme, ao que transcende essa condição, haja vista ser este roteiro um texto esteticamente independente. Seguindo o modelo dos filmes hollywoodianos, grande parte dos manuais de roteiro se destina a ensinar leigos a se tornarem roteiristas. Tais manuais são até mesmo bastante categóricos, em seus postulados, por exemplo, quando afirmam: “Não existe a necessidade de impressionar o leitor com seu conhecimento e qualidade literária” (MCSILL; SHUCK, 2016, p. 47); o roteiro cinematográfico é apenas uma “[...] forme transitoire, inachevée, dont le devenir est le son et l’image”46 (VERMEESCH, 2004, p. 60); “Um bom diálogo tampouco deveria ser redigido em estilo ‘escrito ou literário’” (CHION, 1989, p. 104). Pensamos que tais premissas podem ser aplicadas aos roteiros cinematográficos tradicionais. Inversamente, Hiroshima mon amour (1960) diverge de cada uma das asserções anteriores: quanto à primeira asserção, Hiroshima mon amour (1960) possui qualidade literária; quanto à segunda, o roteiro em análise não se destina a se tornar, apenas, som e imagem, pois é relevante por si mesmo, independentemente da sua transposição cinematográfica; e, quanto à terceira, os diálogos de Hiroshima mon amour (1960) são prenhes de particularidades literárias, ou mais precisamente, poéticas. É importante chamar a atenção para o caminho estético que elegeram A.R. e M.D.. Como não queriam produzir um documentário a mais, eles decidiram fabricar uma obra ficcional. Contudo, a protagonista de Hiroshima mon amour (1959) atua como atriz justamente num documentário sobre a Paz, vale dizer, no tipo de filme, cujo formato A.R. e M.D., num primeiro momento, rechaçaram. Assim, a menção a tal filme pode ser interpretada tanto como uma referência ao tipo de abordagem cinematográfica, inicialmente, evitada pelos artistas, quanto como uma sugestão, ao cine-leitor, de que Hiroshima mon amour (1959) se abre para outro tipo de cinema. Dito de maneira diversa: em vez de fazer um documentário, A.R. e M.D. partem deste gênero cinematográfico, inscrevendo-o, porém, dentro de um filme ficcional. Para estabelecer a ponte entre ambos os filmes, a protagonista, encarnada pela Francesa, por um lado, no documentário, representa o papel de enfermeira, e, por outro, na ficção, vivencia a história de amor com o amante japonês. Dessarte, percebemos, em Hiroshima mon amour (1959), um expediente estético, amplamente utilizado nas artes, e que encontrou terreno fértil para a sua elaboração no Nouveau roman (MOISÉS, 2013, p. 307), qual seja, a mise en abyme,

“[...] um estado provisório, uma forma passageira destinada a se metamorfosear e a desaparecer, como a lagarta se torna a borboleta”. 46 “[...] forma transitória, inacabada, cujo destino é o som e a imagem”. 45

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posto que um gênero cinematográfico – documentário – manifesta-se dentro de outro gênero cinematográfico – ficção. Exatamente pela linguagem do roteiro cinematográfico ser trabalhada poético-literariamente, os cine-leitores são instigados a lançar, sobre as histórias de amor que se cruzam em Hiroshima mon amour (1959) e o evento nuclear ocorrido em Hiroshima, o que Didi-Huberman chama de “vista abrangente”, pois esta se debruça, de modo que “[...] para ver melhor: dialetiza e abisma a própria distância. Deixa assim o objeto olhado subir em direção ao olho, quaisquer que sejam os riscos ou as consequências aferentes” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 25). Para que os espectadores fossem impelidos a sentir e a compreender o drama dos personagens, o uso da linguagem poética, tanto no filme quanto no roteiro cinematográfico, tornava-se imperativamente necessário. 1.2 A linguagem poética em Hiroshima mon amour (1959) De acordo com Dufrenne (1963, p. 50), a poesia exerce a função tanto de remeter a linguagem a suas origens quanto “[...] reanima-a (a linguagem) mais do que a converte, reativa seu poder expressivo” (DUFRENNE, 1963, p. 50). Por conseguinte, pensamos que a primeira função da poesia, assinalada pelo pensador francês, pode ser compreendida como a lógica com a qual o cinema pode operar, pois todos os elementos que aparecem no ecrã são imagens, remetendo-nos às próprias coisas, ainda que estas sejam signos. Assim como a poesia, o cinema de poesia, sem precisar, contudo, recorrer necessariamente à linguagem oral ou escrita, é capaz de provocar, no espectador, ressonâncias do estado poético. Vale lembrar que a função poética não pertence, exclusivamente, ao domínio do poema, porquanto “[...] Qualquer tentativa de reduzir a esfera da função poética à poesia ou de confinar a poesia à função poética seria uma simplificação excessiva e enganadora” (JAKOBSON, 2003, p. 128). De acordo com o linguista russo, a linguagem poética se manifesta quando, na obra de arte, percebemos o foco no trabalho e no burilamento da mensagem por ela mesma. Em Hiroshima mon amour (1959), o trabalho com a mensagem por ela mesma é notório, possibilitando a compreensão do filme e do roteiro em análise como poéticos. Além disso, conforme Buñuel (1983, p. 336), quando o filme explora conteúdos do subconsciente dos personagens, a poesia aflora. Nos termos do próprio cineasta: “[...] O cinema parece ter sido inventado para expressar a vida do sub-consciente [sic], tão profundamente presente na poesia” (BUÑUEL, 1983, p. 336). Neste sentido, percebemos que, em Hiroshima mon amour (1959), por meio das memórias relativas ao primeiro amor da protagonista, conteúdos do seu subconsciente emergem, comprovando a eclosão do poético no filme em estudo. Segundo Aumont (2004, p. 82), o texto, para M.D., “[...] deve ser protegido do cinema, porque este o mata em sua capacidade viva de produzir ou suscitar imagens”, e, por conseguinte, “[...] le texte seul est porteur indéfini d’images”47 (DURAS, 1977, p. 75). Assim, posto que “[...] o elemento-chave da poesia é a imagem” (CYNTRÃO, 2004, p. 26), Hiroshima mon amour (1960) se destaca pela profusão de imagens que as palavras evocam, conforme é possível observar em várias passagens. 47

“[...] só o texto é portador ilimitado de imagens”.

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Por exemplo, no excerto “Dévore-moi. Déforme-moi à ton image afin qu’aucun autre, après toi, ne comprenne plus du tout le pourquoi de tant de désir”48 (DURAS, 1960, p. 115), notamos que os verbos “devorar” e “deformar”, conjugados na segunda pessoa do singular do imperativo, evocam a necessidade – metaforicamente antropofágica – da personagem Elle de ser marcada por um “tu” de uma forma tão profunda e indelével que jamais seja possível esquecer este amor. Isso pode ser compreendido se levarmos em consideração o contexto de luta da protagonista contra a inexorável fatalidade do esquecimento, tanto no amor quanto na guerra: De même que dans l’amour cette illusion existe, cette illusion de pouvoir ne jamais oublier, de même j’ai eu l’illusion devant Hiroshima que jamais je n’oublierais. De même que dans l’amour.49 (DURAS, 1960, p. 28).

Nas obras em análise, dois acontecimentos coincidem temporalmente: a saída da Francesa do porão, em Nevers, e a explosão da bomba atômica, em Hiroshima (DURAS, 1960, p. 15). A dor pessoal da Francesa, por causa do assassinato do seu primeiro amor, atinge a dimensão da dor coletiva dos hibakushas, por causa da explosão da bomba atômica. Ora, assim como é possível esquecer o amor, o qual levou a Francesa à insanidade, também é possível esquecer o horror de Hiroshima, o qual devastou milhares de vidas. Em face de tais acontecimentos – deveras tão pungentes! –, o esquecimento assume a proporção de um crime. Se, por um lado, o parentesco com a literatura salta aos olhos, a linguagem do roteiro, por outro, não deixa de remeter à linguagem dos roteiros cinematográficos tradicionais, o que pode ser notado pelo uso de frases curtas, como rápidos planos de um filme, revelando diversas imagens de Hiroshima: Boutique abandonnée. Car de touristes japonais. Touristes, place de la Paix. Chat traversant la place de la Paix.50 (DURAS, 1960 , p. 32, grifos da autora).

De acordo com Moisés (2013, p. 372), o poético “[...] estimula a sensibilidade e a inteligência do leitor” e revela, a cada apreciação, “[...] novas facetas, novas conotações” (MOISÉS, 2013, p. 372). Desse modo, entendemos o roteiro de Hiroshima mon amour (1960) como poético, porquanto, além de terem sua sensibilidade e sua inteligência estimuladas, os cine-leitores podem descobrir nele um manancial – francamente inesgotável – de possibilidades interpretativas, assim como encontrariam na leitura de um poema. Importante sublinhar que Hiroshima mon amour (1960) é um texto pleno de ambiguidades, o que também o caracteriza como poético, pois “[...] a ambiguidade de um texto é o termômetro de seu índice de poeticidade” (CYNTRÃO, 2004, p. 25). “Devora-me. Deforma-me conforme a tua imagem, a fim de que nenhum outro, depois de você, compreenda mais, de nenhuma maneira, o porquê de tanto desejo”. 49 “Assim como no amor, esta ilusão existe, esta ilusão de jamais poder esquecer, assim, eu tive a ilusão, diante de Hiroshima, que eu jamais esqueceria. Assim como no amor”. 50 “Loja abandonada. Ônibus de turistas japoneses. Turistas, praça da Paz. Gato atravessando a praça da Paz”. 48

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Assim, com o intuito de trabalhar o texto artisticamente, M.D. faz da ambiguidade um “[...] ruído voluntario, cuidadosamente elaborado”51 (BARTHES, 2004, p. 6). Por exemplo, identificamos a ambiguidade quando, em várias passagens, ocorre uma confusão deliberada entre Lui e o amante alemão. Ou, ainda, no final da narrativa, quando os personagens são associados aos nomes dos lugares de onde provêm: Elle, a Nevers, e Lui, a Hiroshima, (DURAS, 1960, p. 124). A ambiguidade se manifesta, também, quando, no final do filme, imagens de Nevers se misturam às imagens de Hiroshima, amalgamando, na narrativa cinematográfica, presente e passado. Com vistas ao engendramento do cinema poético, Pasolini (1982) alerta para a importância da Subjetiva Indireta Livre, correspondente, em literatura, ao discurso indireto livre. Segundo o cine-diretor italiano, a Subjetiva Indireta Livre é “[...] a imersão do autor na alma da sua personagem e da adoção, portanto, pelo autor, não só da sua psicologia como da língua daquela” (PASOLINI, 1982, p. 147), permitindo assim uma “[...] grande liberdade estilística anômala e provocatória” (PASOLINI, 1982, p. 149). Assim, por exemplo, a visão de mundo, psiquicamente alterada, de certa personagem se mistura à visão, de ordem estética, do cineasta. Ora, é possível notar o uso da Subjetiva Indireta Livre, em Hiroshima mon amour (1959), quando, pouco a pouco, a protagonista, incitada pelo amante japonês, começa a falar sobre o seu passado. Prodigiosamente, A.R. lança mão dos flashbacks para que os espectadores tenham acesso às memórias da protagonista, relativas à Nevers. Percebemos, claramente, que a Francesa fica transtornada, tendo o seu estado psíquico alterado, quando tais memórias vêm à tona. Há um momento em que a Francesa se revela tão profunda e perigosamente mergulhada em seu passado que o Japonês lhe dá uma bofetada para que ela volte ao presente (DURAS, 1960, p. 100). Durante a narração da protagonista, percebemos que até mesmo a música diegética é, momentaneamente, interrompida, retornando apenas com o tapa do Japonês. Tal interrupção da música diegética constitui uma ferramenta cinematográfica que denuncia o estado psíquico da protagonista. Interessante notar que se trata de um filme cujo grau de indeterminação nos remete ao que Iser (2012, p. 26) declarava a respeito das obras literárias do século XIX para cá. O leitor precisa recobrir os vazios – aquilo que o autor não explicita em sua obra – para poder interagir com a mesma. Assim sendo, Hiroshima mon amour (1959) demanda muito da potencialidade intelecto-imaginativa do cine-leitor, pois ele precisa recobrir os vazios constitutivos da obra. Por exemplo, os espectadores se deparam com personagens que sequer possuem nomes, uma vez que suas identidades estão inextricavelmente associadas a nomes de lugares. Convém salientar que outro recurso estilístico, muito presente em Hiroshima mon amour (1960), é a repetição – seja de palavras, seja de sons (assonâncias e aliterações), seja de estruturas gramaticais, seja de frases –, remetendo, uma vez mais, à linguagem poética, conforme é possível observar no seguinte trecho: Qui es-tu? Tu me tues. J’avais faim. Faim d’infidélités, d’adultères, de mensonges et de mourir. Depuis toujours.

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“Um ruído voluntário, cuidadosamente elaborado”.

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Je me doutais bien qu’un jour tu me tomberais dessus [...]52 (DURAS, 1960, p. 115, grifos nossos).

O pronome Tu, nas frases “Qui es-tu?/ Tu me tues.”, tem a mesma pronúncia do verbo “tues”, de modo que o pronome, além do seu significado gramatical típico, abre-se para o significado do verbo matar, gerando um efeito poético homofônico – belissimamente engendrado! –. O substantivo “faim”, por sua vez, repete-se no eixo sintagmático “J’avais faim. Faim d’infidélités [...]”, sendo que o mesmo substantivo se repete por omissão ao longo dos sintagmas nominais que se organizam dentro de uma cadeia gradativa de significados. Ademais, os outros itens destacados conferem um efeito de eco, sendo que, desde a frase “J’avais faim”, o significado do substantivo “faim” repete-se por associação à terminação “ais”, que confere outro efeito de eco poeticamente significativo ao trecho. “Jour” repete-se ora como sufixo, em “Depuis toujours”, ora como substantivo, em “bien qu’un jour”, sendo a repetição de vocábulo com o mesmo som, porém com sentidos distintos. Finalmente, em “avais”, “doutais” e “tomberais”, verifica-se a mesma terminação para tempos verbais diferentes, imperfeito para os dois primeiros verbos e futuro do pretérito para o terceiro, robustecendo a unidade significativa do período. Pensamos que o trabalho esmerado com a escrita do roteiro, bem como com a linguagem cinematográfica do filme, pode produzir, no cine-leitor, ecos do estado poético (DUFRENNE, 1969, p. 101). Contudo, para que isso se efetive, é necessário que o fruidor possua uma sensibilidade permeável à recepção do poético. No que diz respeito à narrativa cinematográfica, à luz das ideias de cinema de poesia, desenvolvidas por Buñuel (1983) e Pasolini (1982), asseveramos que Hiroshima mon amour (1959) pode ser considerado poético, pois: 1) neste filme, a poesia se torna assaz evidente quando surgem elementos do subconsciente da Francesa, em conformidade com a concepção do cinema de poesia de Buñuel (1983); e 2) o estado mental, visivelmente perturbado, da protagonista indica o uso da Subjetiva Indireta Livre, propugnada por Pasolini (1982) como ferramenta valiosa para a construção do cinema de poesia, sendo que, por intermédio desta, aquele estado mental da personagem principal se mistura à visão estética do cineasta. 1.3 Considerações finais Para a poeticidade de Hiroshima mon amour (1959), dois expedientes se cruzam e convergem, em conformidade com as ideias de cinema de poesia de Buñuel (1983) e de Pasolini (1982): os conteúdos do subconsciente da Francesa vêm à tona paulatinamente, e, à medida que eles se exteriorizam, ocorre a gradativa intensificação do desequilíbrio mental da protagonista, demonstrando o uso da Subjetiva Indireta Livre. Em Hiroshima mon amour (1959), a palavra não está a serviço da imagem, nem esta a serviço da palavra: ambas estabelecem uma relação de complementaridade, não de subordinação. Inclusive, ler o livro e assistir ao filme permitem experiências catárticas distintas, porquanto, por exemplo, há partes do roteiro que não se encontram no filme e há partes do filme que não se encontram no roteiro. “Quem é você? Você me mata. Eu tinha fome. Fome de infidelidades, de adultérios, de mentiras e de morrer. Desde sempre. Eu duvidava que um dia você me interpelaria [...]”. 52

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Entendemos que, pelo fato de o nascimento do roteiro de Hiroshima mon amour (1960) se dar num horizonte de cruzamento entre a literatura e o cinema, pode-se pensar em um novo gênero discursivo, pois, segundo Todorov (1980, p. 46), “[...] um novo gênero é sempre a transformação de um ou vários gêneros antigos: por inversão, por deslocamento, por combinação”. Assim, conforme discorremos ao longo deste artigo, o roteiro de Hiroshima mon amour (1960) apresenta uma linguagem burilada, a qual remete os cine-colaboradores a características próprias da linguagem poética. Tais características, juntamente com as particularidades do discurso cinematográfico, engendram um novo gênero discursivo, o qual denominamos roteiro cine-poético.

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TRANSVERSALIZAR POÉTICAS, REDESENHAR SENTIDOS: FERRAMENTAS DE INTERVENÇÃO NA POESIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA Douglas Rosa da Silva53

RESUMO: O presente estudo ocupa-se, sobretudo, de pensar os escritos poéticos da nova geração de poetas do Brasil, em especial, a poesia escrita por mulheres. Este estudo investiga a interpenetração de distintos recursos, suportes e plataformas que estão unidas na construção poética. Com este intento, são analisadas características específicas nos escritos poéticos de Angélica Freitas, Elisa Lucinda e Mel Duarte. Questiona-se, mediante as explanações, se há no presente um contínuo refundir dos modos de fazer poesia, modo este que se atrela com as possibilidades resultantes de novos contextos socioculturais. Na conclusão, aponta-se que a poesia brasileira contemporânea de autoria de mulheres possui autêntico vigor para transversalizar poéticas e redesenhar sentidos. PALAVRAS-CHAVE: Poesia Brasileira Contemporânea; Criação Poética; Estudos de Poesia; Mulheres e Autoria. ABSTRACT: The present study focuses mainly on the poetic writings of the new generation of Brazilian poets, especially poetry written by women. This study investigates the interpenetration of different resources, supports and platforms that are united in the poetic construction. With this intent, specific characteristics are analyzed in the poetic writings of Angélica Freitas, Elisa Lucinda and Mel Duarte. Through the explanations, it is questioned if there is in the present a continuous recasting of the ways of doing poetry, a way that is tied with the possibilities resulting from new socio-cultural contexts. In the conclusion, it is pointed out that the contemporary Brazilian poetry of women's authors has authentic power to transversalize poetics and redesign senses. KEYWORDS: Contemporary Brazilian Poetry; Poetic Creation; Poetry Studies; Authorship and Women.

Mestrando em Literatura Comparada, na linha de pesquisa ‘Teoria, Crítica e Comparatismo’ do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGLet/UFRGS). Bolsista de Mestrado do CNPq. 53

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[…] poetry is an art and not a pastime. Ezra Pound Poderei dizer-vos que elas ousam? ou vão, por injunções muito mais sérias, lustrar pecados que jamais repousam? Ana Cristina Cesar

1. Introdução A criação poética, na contemporaneidade, se dá pela insurgência, pela necessidade de expressão, pelo intervencionismo ousado. A escrita, sem dúvida, pode apresentar convergências e similaridades de autora para autora, de autor para autor, mas não é um encontro articulado, programado, visto que a escrita poética pós-moderna - se é que podemos formular uma proposição absoluta para essa produção - fratura toda e qualquer homogeneidade de composição. Tal condição não implica em superação ou rompimento com moldes e tendências anteriores do fazer poético. Ao delimitar uma aura pós-moderna de inscrição poética, verifica-se que a poesia recente interdepende de uma relação com os movimentos que a precederam. No entanto, pelas particularidades temporais em que se encontra, o ato de criação e constituição poética encontra maiores possibilidades de variação, unificação e realização. A poesia brasileira contemporânea, portanto, estaria em constante movimento de reavivar meandros formais, estilísticos e de sentido que estão dispostos no eixo temporal em que se inscreve. Outro traço que singulariza esta “nova” poesia, diz respeito aos diferentes lugares de sua produção. Textos poéticos oriundos de espaços marginalizados – isto é, que não estão inseridos num grande centro hegemônico – revigoram as perspectivas de leitura e tonificam os sentidos. Sujeitos que outrora tinham pouco espaço para tornar visíveis suas produções, agora evidenciam suas elaborações em potência,e sugerem um olhar que não está mais ancorado num edificado centro de escrita e leitura. A poesia contemporânea põe em cena, portanto, uma heterogeneidade cultural que é naturalmente reivindicada pelo fazer –e aparecer – poético. Por intermédio da poesia brasileira dada no hodierno, o ângulo de criação poética é retirado de uma zona totalizante e passa-se a visualizar – e a considerar – o exercício criativo feito em outros espaços e por outros sujeitos. Essa outridade não culmina em subalternidade. O que o pós-moderno faz é distender as fronteiras que por muito tempo se mantiverem rígidas. O centro e a noção de valor integralizado são destituídos. E a hibridez de acepções passa a ser refletida nas produções poéticas inseridas no bojo da contemporaneidade. Dá-se início, assim, a um processo de transversalização de poéticas que resulta em um redesenhamento labiríntico de sentido. Acerca dos enunciados aqui elencados, em especial acerca da condição pós-moderna em que são esculpidas as obras poéticas deste estudo, a teórica Linda Hutcheon reflete, pontuando que:

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(...) a heterogeneidade reivindicada como contrapartida a essa cultura totalizante (mesmo que pluralizante) não assume a forma de um conjunto de sujeitos individuais fixos (cf. Russell 1985, 239), mas, em vez disso, é concebida como um fluxo de identidades contextualizadas: contextualizadas por gênero, classe, raça, identidade étnica, preferência sexual, educação, função social, etc. (...) essa firmação da identidade por meio da diferença e da especificidade é uma constante no pensamento pós-moderno. (HUTCHEON, 1991, p. 86)

E é a partir da contextualização a-localizada, em outras palavras, contextualização não uniforme, que a poesia passa a ser proliferada e concebida. Nisto, sobreleva-se que todo o boom cultural e prática de transveralização poética não retiram a beleza e ressonância da criação poética. Nos escritos poéticos contemporâneos, notabiliza-se que o poema adquire nuances excepcionais, inconfundíveis e próprias. “Um poema é uma espécie de máquina de produzir o estado poético através das palavras”, salientou o filósofo francês Paul Valéry no ensaio Poesia e Pensamento Abstrato (1991, p. 217). E na poesia brasileira, a palavra agrega-se a outros meios e ferramentas capazes de difundi-la, de orná-la, de torná-la hibridamente bela. Logo, o estado poético de quem recepciona este escrito adentra um fluido multimodal, diversificado. Com isso, a palavra poética, na atualidade, revela-se plural, babilônica. Mediante os traços retratados, o poema põe-se paradoxalmente rico e disforme. 2. A palavra babilônica O poeta é o doador de sentido54 (BOSI, 1977, p. 141). Desse modo, os escritos oferecem significação para aquilo que é do âmbito da vivência, asseguram nomeação (ou, no mínimo, descrição) para aquilo que o olhar alcança. Se, na contemporaneidade, destaca-se a impermanência do fazer poético, a doação de sentido erigida pelas poetas e pelos poetas traça um caminho estrelado, de distintas direções e modalidades sortidas. Com tal característica, pode-se cogitar que a palavra poética desnuda-se babilônica e assimétrica, formando uma ótica rizomática55 e abrangente de produção. No palco da atualidade, as poetas56 colocam em cena múltiplas possibilidades de escrita – tomando, literalmente, a linguagem como veneno e Bosi problematiza de modo pertinente a identidade da poesia no capítulo denominado Poesia Resistência, de seu livro O ser e o tempo da poesia. Os acréscimos do autor mostram-se relevantes para este estudo, visto que o teórico destaca que a poesia parecia “condenada a dizer aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender” (1977, p. 142). Este argumento é altamente validado ao considerarmos a época de elaboração e formação de O ser e tempo da poesia. No entanto, é possível constatar na atualidade a presença uma poesia integrada aos discursos e formas circundantes no âmbito social; e não apenas uma poesia dedicada a simbolizar e tornar subjetiva as paisagens, memórias e sonhos. Desde o apontamento conveniente de Alfredo Bosi até o presente, nota-se que constantes alterações nos cenários culturais e sociais atingiram também o domínio poético, desestabilizando-o de uma posição que, há muito tempo, parecia intocável para a escrita (e produção) da poesia. 54

A noção de rizoma advém da leitura de Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mil Platôs. A partir deste ponto, este artigo será escrito utilizando, unicamente, o termo “as poetas”, de modo globalizante. A presente decisão baseia-se em duas justificativas: 1) o estudo trata apenas de autoras mulheres, o que confere relação direta com os objetos de análise; 2) na poesia brasileira contemporânea, pela primeira vez, o número de mulheres autoras equipara-se ao número de 55 56

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como remédio, para remontar as hipóteses de escritura tecidas por Jacques Derrida em A Farmácia de Platão57. Destarte, pode-se considerar que a poesia contemporânea é uma poesia babilônica. Ainda que essa busca pelo singular na construção poética faça movimentos cada vez mais amplos e dotados de ineditismo, essa poesia converge para uma noção massificada que as une, visto que a autoria contemporânea caminha, incansavelmente, para o mesmo lugar: a zona insólita, o espaço intervalar entre as linguagens. Babel é intraduzível. Seria a poesia recente intraduzível também? Num domínio em que cada poeta cria – e fala – a sua língua, propondo a ótica de sua própria existência cultural e artística por meio da linguagem, a imagem de uma poesia babilônica e intraduzível, que iconiza e personifica a imagem e sentido de Babel, é correspondente dessa produção. Tal insolubilidade encontra-se marcada diretamente no nome de Babel: que ao mesmo tempo se traduz e não se traduz, pertence sem pertencer a uma língua e endivida-se junto dele mesmo de uma dívida insolvente, ao lado dele mesmo com o outro. Tal seria a performance babélica. (DERRIDA, 2006, p. 25-26, grifo nosso).

Babel parece não ser posta num encaixe estilístico, mas sustenta-se por intermédio das condições híbridas que a mantém: Babel – tal qual a poesia contemporânea - é indefinível. As poetas realizam, assim, uma performance babélica que dissolve qualquer vestígio de unidade dentro do âmbito poético atual. A performance babélica referida endossa a expressão composta por cada autora. Em simultâneo ao endossamento, cada uma dessas produções poéticas convive com outras formas e modos de compor e fazer poesia, modos estes emanados por poetas que se situam temporalmente compatíveis umas com as outras. Dado que traduzir a língua de Babel é inverossímil, traduzir em pleno as linguagens poéticas contemporâneas também se apresenta como tarefa irrealizável. Cabe, por conseguinte, o estudo isolado de cada um dos modos de fazer poesia, de maneira que se evidenciem as possíveis similaridades entre as particularidades de cada obra. E o leitor? Como fica o leitor mediante a performance babélica da poesia recente? O leitor tenta captar o gesto da leitura poética e depara-se com uma gestualidade exacerbada, constante, que advém de variados lados. Logo, o leitor situa-se também performaticamente nesta poesia, porque se emancipa de um papel passivo na construção de sentido. Se a poesia se arrisca na tentativa de falar por várias e múltiplas linguagens, o leitor também se arrisca, aventureiramente, a pensar com a produção poética, entrando no jogo de sentidos que o texto e a obra estabelecem. autores homens, o que torna o uso também adequado – afinal, está se trabalhando justamente dentro do panorama poético pós-moderno. 57 Ainda que não disserte diretamente sobre o exercício poético, Jacques Derrida explicita, em A Farmácia de Platão, que a escritura possui pontos de benefício e malefício, em simultâneo. Diz o autor: “Esse phármakon, essa “medicina”, esse filtro, ao mesmo tempo remédio e veneno, já se introduz no corpo do discurso com toda sua ambivalência. Esse encanto, essa virtude de fascinação, essa potência de feitiço podem ser – alternada ou simultaneamente – benéficas e maléficas”. O aporte teórico aproxima-se da poesia contemporânea, pois a mesma mostra-se como uma escritura em contínuo descaminho, relacionadamente benéfica e maléfica – pois não basta em si, e não está preocupada em se instituir definitivamente.

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Consequentemente, e considerando os apontamentos até aqui relatados, pode-se afirmar que a poesia contemporânea está estritamente afiliada a uma “experiência original”, fundada nos termos de Maurice Blanchot. Este risco exercido pela prática poética, que é doravante de uma (ânsia pela) experiência original, acarreta na saudável discussão acerca de uma suposta essência da linguagem. Qual a essência da linguagem diante do ato babilônico de produção poética? No poema, não é só tal indivíduo que se arrisca, tal razão que se expõe ao golpe e à queimadura tenebrosos. O risco é mais essencial; é o perigo dos perigos, pelo qual, de cada vez, é radicalmente questionada de novo a essência da linguagem. Arriscar a linguagem, eis uma das formas desse risco. Arriscar o ser, essa palavra de ausência que a obra pronuncia ao pronunciar a palavra começo, é a outra forma do risco. Na obra de arte, o ser arrisca-se, porquanto, ao passo que no mundo onde os seres o repelem para ser ele é sempre dissimulado, negado e renegado (neste sentido, também, protegido), na obra de arte, em contrapartida, onde reina a dissimulação, o que se dissimula tende a emergir do fundo da aparência, o que é negado torna-se o excesso da afirmação – mas aparência que, entretanto, nada revela, afirmação em que nada se afirma, que é somente a posição instável a partir da qual, se a obra logra contê-la, o verdadeiro poderá ter lugar.” (BLANCHOT, 1987, p. 239).

A palavra babilônica está na posição instável que compreende seu autêntico lugar. Com as considerações de Blanchot acima, não se está a buscar, nesta investigação, a essência de uma ou mais linguagens, mas de refletir sobre a atuação delas na execução e elaboração poética. Entende-se que a poesia, por si só, é uma linguagem emancipada daquelas que a constituem. Assim, a performance babélica de produção poética refuta a ideia de essência existente ou nivelamento das linguagens situadas em sua composição. Trata-se, aqui, da “poesia vista como uma técnica autônoma de linguagem, posta à parte de outras técnicas” (BOSI, 1977, p. 147). Em síntese, observa-se que a palavra é apenas um meio de efetuar a poesia, cujo princípio operacional está na recriação, na representação, no diálogo com a perspectiva particular, entre outros. A palavra, assim, desempenha um papel acessório na criação poética, em consonância com aquilo que afirma Massaud Moisés em A Criação Poética (1977, p. 21). Desse modo, entende-se que assim como a cor e a forma estão para a pintura e o som está para a música, a palavra está para a poesia. E na poesia contemporânea, esta palavra caracteriza-se babélica, visto que se consubstancia gradativamente com outros meios e recursos. A seguir, põe-se foco em cada uma das poetas e suas respectivas produções, com a intenção de discorrer e evidenciar as inserções das ferramentas de natureza híbrida, que auxiliam na propulsão da palavra – babilonicamente - poética da poesia brasileira contemporânea. 3. Angélica Freitas e os Três Poemas com auxílio do Google Logo na abertura, na orelha do livro O útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas, o leitor depara-se com a asserção do poeta e crítico Carlito Azevedo, que pontua:

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(...) o poema é a arma mais potente para desmontar as armadilhas que o tempo dispõe à nossa frente o tempo todo. Penso que a armadilha da identidade (sexual, política, nacional, etc.) que nos quer sempre idênticos a nós mesmos, sem possibilidade de metamorfose, é aquela que, até agora, mais mereceu os disparos certeiros da poesia de Angélica.

O argumento de Carlito Azevedo evidencia-se tão perspicaz quanto os universos que se tecem sob os versos de Angélica Freitas. A poeta, que anos atrás já despontava com vigor no cenário poético-literário, devido a Rilke Shake – livro que adquiriu notoriedade e que venceu, em 2016, o prêmio de melhor livro traduzido para língua inglesa nos Estados Unidos - exibe um trabalho progressivo de construção poética que culmina em O útero é do tamanho de punho, segundo livro da autora gaúcha. Publicado, pela primeira vez, no ano de 2012, O útero é do tamanho de um punho reúne uma seleção de trinta e cinco poemas que problematizam os modos de ser mulher no âmbito social, ora apontando para a repressão que a sistemática de regulação patriarcal efetiva e ora trazendo histórias, através da poesia, de corpos e experiências que se inscrevem distante dessa regulação. O livro todo é uma sagaz concha aberta que captura, por meio do verso, o traquejo de vivências díspares. A poesia põe-se como uma engenhosa rachadura na compostura homogênea. Isto posto, há muito que se destacar e pontuar na leitura de Um útero é do tamanho de um punho, visto que é um livro que tem efetivado questões pertinentes acerca do tempo, dos sujeitos insculpidos neste tempo e das vivências que se arquitetam para além, muito além deste tempo. Ainda assim, o rol das identidades femininas (o que inclui a expressão e tratamento poético dado para mulheres trans, mulheres cis-heterossexuais e mulheres cis-homossexuais) parece ser a temática preponderante na escrita de Um útero é do tamanho de um punho. Poemas tais como “era uma vez uma mulher”, “uma mulher sóbria” e “mulher de vermelho” colocam o interlocutor em incessante reflexão crítica. A palavra babélica assalta o leitor e a poesia carnavaliza os sentidos com muitas facetas. Ainda que o livro de Freitas se ponha rico e adimensional no teor analítico, este estudo faz uma tentativa de refletir acerca de uma das seções de Um útero é do tamanho de um punho, denominada 3 poemas com o auxílio do Google. Nesta seção, o livro de Freitas demonstra-se oportuno para discorrer acerca das ferramentas de intervenção – ou uso de recursos híbridos – na poesia brasileira contemporânea. A poesia do Google já é um instrumento familiar no mundo da web. Um Tumblr coletivo feito a partir de Poesias do Google, por exemplo, está disponível no Brasil. A versão oficial em português origina-se do Google Poetics, um sítio na internet que se populariza por publicar poemas feitos a partir da caixa de pesquisa do Google. Na constituição e escrita dos poemas “A mulher vai”, “A mulher pensa” e “A mulher quer” – que integram a seção do livro 3 poemas feitos com auxílio do Google, a poeta faz um movimento similar aos exercícios propostos pelo Google Poetics. Compõe e organiza os escritos poéticos a partir das sugestões que se revelam no mecanismo de pesquisa do site Google. A implementação dessa prática em uma obra poética revela o dinamismo e originalidade dessa nova poesia produzida no Brasil. Mas não é apenas no âmbito das ferramentas de intervenção que o trabalho poético executado por Freitas propõe traços de inventividade. Os versos minimamente organizados e sistematizados no poema – o que certifica fluidez para 102


as imagens poéticas dispostas - representam e refletem, justamente, os ecos simbólicos materializados na caixa de pesquisa do site Google. Elaborar um poema, baseando-se nas frases sugestivas do Google e, ao mesmo tempo, trazer para a cena a figura da mulher é também um modo de angariar os significados populares que perfazem um imaginário relativo alusivo à suposta imagem e função da mulher no âmbito social. A seguir, e com fins de visualizar uma das construções poéticas presentes em 3 poemas feitos com auxílio do Google, usa-se, como exemplo, o poema intitulado “a mulher quer”, integrante da referida seção do livro de Angélica: a mulher quer Angélica Freitas a mulher quer ser amada a mulher quer um cara rico a mulher quer conquistar um homem a mulher quer um homem a mulher quer sexo a mulher quer tanto sexo quanto o homem a mulher quer que a preparação para o sexo aconteça [lentamente a mulher quer ser possuída a mulher quer um macho que a lidere a mulher quer casar a mulher quer que o marido seja seu companheiro a mulher quer um cavalheiro que cuide dela a mulher quer amar os filhos, o homem e o lar a mulher quer conversar pra discutir a relação a mulher quer conversa e o botafogo quer ganhar [do flamengo a mulher quer apenas que você escute a mulher quer algo mais que isso, quer amor, carinho a mulher quer segurança a mulher quer mexer no seu e-mail a mulher quer ter estabilidade a mulher quer nextel a mulher quer ter um cartão de crédito a mulher quer tudo a mulher quer ser valorizada e respeitada a mulher quer se separar a mulher quer ganhar, decidir e consumir mais a mulher quer suicidar (FREITAS, 2013, p. 72)

Ao personalizar a atividade de constituição poética, empregando um mecanismo de busca da web como ferramenta de intervenção em sua poesia, Angélica Freitas possibilita pensar num poema que está, sobretudo, para além das páginas dos livros. Em O útero é do tamanho de um punho, a poesia estabelece muita ou total relação com o domínio do real. O emprego de diferentes recursos mostra-se em consonância e irradiação com os sentidos que se mobilizam diante da leitura e análise poética. Mediante as propriedades do tempo presente, o âmbito

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poético está a demandar novas mutações. E a poesia contemporânea (em especial, neste caso, a poesia de Angélica Freitas) replica com vitalidade e ousadia. 4. Elisa Lucina, poeta atriz, atriz poeta: o espetáculo da palavra O texto poético de Elisa Lucinda caracteriza-se por ser uma poesia que almeja ser dita, encenada, ganhar vida. O livro é o palco da poeta atriz que teatraliza poemas, e que faz do ato de teatralizar uma inconfundível ação poética. Nos escritos da poeta capixaba, os versos dispõem-se como cenário da gestualidade das palavras, e as imagens dos poemas intensificam o mais banal dos hábitos. Entre a encenação e a versificação, entre a versificação e os elementos postos em cena, Lucinda verbaliza suas produções poéticas. No presente estudo, o foco recai, particularmente, no livro eu te amo e suas estréias, publicado pela primeira vez em 1999. Já no início, ao observar o poema que abre o livro relatado, são revelados, por meio de um reflexo no Espelho Seu, os tons que emite a poesia de Elisa Lucinda: ESPELHO SEU Quero ser minha para poder ser sua Quero nunca mais partir Pra longe de mim. Vem, Alivia, Adianta, Adivinha Quero ser sua pra poder ser minha... (LUCINDA, 1999, p. 21)

Na apreciação de eu te amo e suas estréias, assinala-se o registro de um lirismo incapaz de ser inconfesso. É predominantemente sobrelevado na obra poética de Lucinda uma enunciação impetuosa, que não se redime para aquilo que o externo chama de sensatez. Veicular a premissa do desejo é fazê-lo mais do que evidente: é um exercício de validar aquilo que é real, tangível. E é por caminhos poéticos bem elaborados e pouco usuais que a poeta garante as vertentes originais que ficam explicitas em eu te amo e suas estréias. Doravante dos versos de Elisa Lucinda, a poesia faz ecoar novas acepções acerca do feminino no prisma social. O corpo deseja, o corpo quer, e o corpo nomeia e descreve o querer, sem nenhum rastro de encolhimento. Por isso, pode-se afirmar que o sujeito poético na obra de Lucinda propaga-se pleno, desnudo, sem cortes ou alterações por regulamentos falseados. Ademais, nota-se que este relatar poético irrefreado vem moldado numa poesia que incorpora a prosa, pois o poema conta, relata, faz do imagético linear: BOLERO Quero dormir com meu amor que lá no calor dele no abacateiro de seu tronco não há dívidas, dúvidas, espantos Lá parece domingo na copa do sovaco cheiroso dele Lá parece piquenique parece simples mas é chique morar no abraço do meu amor. Não há temor:

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os medos fogem todos para a segunda-feira e eu fico lá como um colibri pousado no galho terno daquele feriado. No beijo dele não há bancos credores, cobradores, telefonemas, moras, ameaças, perigo lá fica longe todo o castigo Eu sussurro, gemo, berro, grito me aninho me esfrego defendo o samba bom, aos poucos mas sem esforço. Quero dormir com meu amor sem gravidade (LUCINDA, 1999, p. 70)

É visível, em Bolero, assim como em outros poemas de eu te amo e suas estréias, a dinâmica teatral do poema, a áurea do palco, a imagem encenada do verso. A poeta atriz Elisa Lucinda, que promove peças teatrais e que, por vezes, faz uso de sua escrita poética como texto dramatúrgico, materializa esse recurso na prática, colocando a própria voz e presença em cena. Os espetáculos de Lucinda, que já tiveram temporadas realizadas em quase todo território nacional, fazem cruzar, em sua produção e composição cênica, três das obras poéticas de Elisa Lucinda. Ressalta-se, neste processo, a atuação da poeta enquanto atriz de seus espetáculos, o que justifica a nomeação “poeta atriz” utilizada neste estudo. Os espetáculos remontam, além de eu te amo e suas estréias, poemas dos livros Vozes Guardadas e A Poesia do Encontro. São poemas que, sonorizam-se no palco e encantam a platéia. A ferramenta de intervenção utilizada na poesia de Elisa Lucinda está concomitante com os desenhos poéticos fomentados pela palavra da poeta atriz. Neste alternar de identidades acopladas entre o ser poeta e o ser atriz, o teatro desponta como um recurso que concretiza e consuma o poema, enriquecendo-o, ampliando-o. Os sentidos redesenhados a partir da propulsão poética de Elisa Lucinda autenticam as experiências, ânsias e vivências dos corpos femininos. Quando as mulheres escrevem há uma especificidade, uma perspectiva que diz respeito aos seus modos de ver e interagir com o mundo. Assim sendo, a voz poética que entoa na produção de Elisa Lucinda faz mais do que falar de suas maneiras e experiências – ela também reflete sobre o mundo, recriando-o. Reforça-se nesta poesia tão cenicamente engendrada a vontade, sobretudo, de querer dizer: me fazer mulher e menina gigante e anã dama e cortesã. Essas sobrancelhas parecem uma obra nova inspiração não vã Parecem Rodin. (LUCINDA, 1999, p. 58)

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5. Mel Duarte, a cultura da periferia, as identidades e a resistência Poesia falada. Poesia slam. Eis os termos que poderiam ser introdutórios, mas não determinantes da criação poética da paulistana Mel Duarte. A autora, que chegou a fazer uma participação estonteante ao recitar seus poemas na Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP), em 2016, já publicou dois livros: Fragmentos Dispersos, de 2013 e Negra Nua e Crua, de 2016. Há quase dez anos entre a escrita poética e a fala intensa, Mel Duarte tem difundido uma relação visceral e veemente com a palavra poética na contemporaneidade. Doravante de uma identidade rica e abrangente – afinal, Mel Duarte, além de poeta, exerce atividades de produtora cultural, videomaker e slammer – a poeta se insere como uma das significativas vozes que movimentam a nova poesia que emerge – e se presentifica – no Brasil. Poesia cantada, falada, enunciada, rimada. Qualificações não faltam para caracterizar o texto poético de Mel Duarte. Se Elisa Lucinda faz do palco dos teatros a morada que faz pulsar os versos, Mel Duarte vibra o poema em qualquer tempo e ocasião. Os vídeos da autora, que usualmente exibem suas performances poéticas em lugares públicos, validam essa proposição: a poesia acontece, em entonação grandiosa, quando ela quer. Em nível de performance, destaca-se o fato de que a poeta venceu um dos concursos de poetry slam, prática poéticoperformática que se faz nítida na afinidade que Mel Duarte tem com sua criação poética. De caráter inapreensível, o texto poético de Mel Duarte é um texto musicado, cuidadosamente balanceado entre as rimas, um texto que não teme inserir excertos populares e cotidianos (nota: aqui, mesmo as asserções negativas são inseridas, pois a poeta faz uma ação de replicar estes conceitos por meio de seu texto). A poesia de Duarte promove, sobretudo, um especial diálogo com as cenas das ruas distantes dos grandes centros urbanos, com a vivência na e da periferia, e com o relato bagageiro das mulheres negras situadas fora dos modelos hegemônicos e inequívocos enaltecidos no domínio social. Ressalta-se, além dos apontamentos elencados, o visível diálogo da prática de slam poetry com a tradição musical do rap e do hip-hop, o que faz com que a poesia de Mel Duarte seja de dimensões autênticas e singulares. Indubitavelmente, a poeta tem realizado um encontro de representatividade enérgico entre e com a população negra do Brasil. Mel Duarte propõe, de modo particular, esta poesia concebida a partir destes lugares insistentemente postos à margem, mas que visam alcance para outros lugares. A poesia brasileira contemporânea encontra nos poemas e performance poética de Mel Duarte a abertura para visualizar, enaltecer e se encontrar com as identidades que perpassaram, por muito tempo, distantes de figurarem e de serem figuradas. Verdade seja dita Você que não mova sua pica pra impor respeito a mim. Seu discurso machista, machuca E a cada palavra falha Corta minhas iguais como navalha Ninguém Merece Ser Estuprada! Violada, violentada Seja pelo abuso da farda Ou por trás de uma muralha

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Minha vagina não é lixão Pra dispensar as tuas tralhas Canalha! Tanta gente alienada Que reproduz seu discurso vazio E não adianta dizer que é só no Brasil Em todos os lugares do mundo, Mulheres sofrem com seres sujos Que utilizam da força quando não só, até em grupos! Praticando sessões de estupros que ficam sem justiça. Carniça! Os teus restos nem pros urubus jogaria Porque animal é bicho sensível, E é capaz de dar reboliço num estômago já acostumado com tanto lixo Até quando teremos que suportar? Mãos querendo nos apalpar? Olha bem pra mim? Pareço uma fruta? Onde na minha cara ta estampado: Me chupa?! Se seu músculo enrijece quando digo NÃO pra você Que vá procurar outro lugar onde o possa meter Filhos dessa pátria, Mãe gentil? Enquanto ainda existirem Bolsonaros Eu continuo afirmando: Sou filha da luta, da puta A mesma que aduba esse solo fértil A mesma que te pariu! (DUARTE, Mel. Disponível em: http://brisasavulsas.blogspot.com.br/2014/12/verdade-seja-dita.html Acesso em 02 maio 2017).

Posta as explanações e considerações acerca da poesia de Mel Duarte, verifica-se que, entre tantos outros recursos que a prática poética da autora nutre e articula, as ferramentas de intervenção que são mostradas no fazer poético da autora transitam, principalmente, entre o cruzamento da poesia com a performance artística, entre a escrita minuciosamente trabalhada e o ecoar destacado da palavra falada. A intencionalidade híbrida emaranha-se e transversaliza-se na poesia de Mel Duarte, o que vivifica com maior força a poesia recente que se mostra em expansão no Brasil. A criação poética relatada descentraliza os ângulos de produção artísticopoética e os sentidos da realidade são (re)definidos a partir disso. As proposições implicadas pela poeta paulistana faz movimentação dos sentidos. E a poesia, em especial, precisa dessa perspectiva. O texto poético clama por essa variação, por essa riqueza. De ativista cultural para poeta, de poeta para ativista cultural, Mel Duarte incrementa a certeza de que a poesia brasileira contemporânea também é

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tonalizada pela perspectiva da palavra – escrita e falada - que se apresenta Negra, Nua e Crua. 6. Conclusão Discute-se, considerando as notas destacadas no presente estudo, o desenvolvimento de uma poesia do possível, capaz de contemplar texto + artes + mídias, dada a partir de uma relação múltipla e híbrida das linguagens. Nesta relação, a palavra sinaliza e se joga na diversificação dos recursos, permitindo que a literatura seja o ponto que faz convergência com outras ferramentas e áreas, tais como a música, a internet, o teatro, entre outros. Com isso, estaria a poesia contemporânea no Brasil a aproximar os ‘meios configurados no presente’ da prática de composição poética? Tal indagação, se é que pode ser elaborada dessa maneira, permanece sem resposta contundente. Isto se deve pelo fato de que a poesia brasileira recente está a acontecer, o que impede, muitas vezes, de demarcar uma proposição fortemente adequada ao que se indaga. A presente investigação faz um exercício de mapear estes usos e recursos que enriquecem a propulsão poética, atentando para o fato de que estamos diante de movimentos – contrário a um único movimento – que se atrela com as características específicas de seus contextos, tramas e histórias. Mas percebe-se, sobretudo, que a poesia contemporânea tem propósitos, no plural, e esses propósitos justificam as singularidades que são mantidas e cultivadas por cada texto e autora. Variando as ferramentas de intervenção e minimizando, continuamente, o uso da metáfora, a poesia recente no Brasil está a criar uma história de trans-versalizações inéditas, capaz de, cada vez mais, redesenhar sentidos na esfera social. Uma movimentação muito próxima desta que foi apontada neste estudo, ainda que não similar, foi sinalizada por Heloisa Buarque de Hollanda na antologia Esses Poetas, da década de 90. Na antologia, Hollanda reuniu poetas que estavam a realizar um ato de criação característico daquele tempo. Frente ao exposto e ainda em consoante com o debate que a teórica amplia na introdução da antologia, usa-se o aporte teórico de Hollanda de modo a destacar suas respectivas considerações: “à distância, a produção poética contemporânea se mostra como uma confluência de linguagens, um emaranhado de formas e temáticas sem estilos ou referências definidas. Nesse conjunto, salta aos olhos uma surpreendente pluralidade de vozes, o primeiro diferencial significativo dessa poesia” (HOLLANDA, 1998, p. 11)

Ainda de acordo com a autora, a presença feminina na cena literária, revelada com força total na década passada, mostra agora um crescimento definitivo que se traduz numa quase equivalência entre homens e mulheres no mercado da poesia. A poesia negra, ainda que não tão dominante, pode também ser agora notada com maior nitidez. O traço comum entre ambas é uma nova distensão que pode ser sentida em relação à marca identitárias afirmativa e posicional da geração anterior e que vai permitir o desenvolvimento de novas dicções de gênero e raça, mais soltas e mais experimentais (HOLLANDA, 1998, p.11)

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Os enunciados proferidos por Hollanda estendem-se até a contemporaneidade. E mais: tornam-se cada vez mais evidentes no âmbito poético. Destaca-se, assim, uma linguagem singular. Uma poesia singular. Um tempo que se anuncia singular. Este estudo, que pensou o desenvolvimento e a aplicabilidade dos recursos experimentais de poetas inseridas nessa nova geração poética do Brasil, frisa que a poesia brasileira contemporânea caminha a passos largos, por caminhos pouco antes conhecíveis. Mediante a focalização de traços particulares na criação poética de Angélica Freitas, Elisa Lucinda e Mel Duarte, conclui-se que as inserções dos recursos de natureza híbrida são, sobretudo, apenas o começo dessa enérgica, original e significativa poesia.

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A ANTROPOFAGIA POLÍTICA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - INTERRELAÇÕES ENTRE LINGUAGEM E IDENTIDADE PRESENTES EM “CONSIDERAÇÕES DO POEMA” Otávio Augusto de Oliveira Moraes58

RESUMO: O poema objeto deste estudo se insere na obra “Rosa do Povo” que contem expresso conteúdo político, demonstrando o posicionamento contrahegemônico de Drummond, sendo a articulação entre os conflitos individuais e coletivos a tônica desta escrita. No presente texto apresentamos as correlações entre a escrita drummondiana, no que se refere à sua politicidade, e o arcabouço teórico da Filosofia da Desconstrução de Jacques Derrida. As interrelações entre a poética do primeiro e as teorias do segundo se alicerçam sobre o conceito de différance e os correlatos processos de continua inversão da relação entre centro e margem. No artigo abordamos a experiência modernista brasileira frisando as interrelações entre Oswald de Andrad e Drummond a partir do conceito de democracia porvir derivado da proposta desconstrucionista. Sobre esses arcabouços teóricos, o texto se propõe a construir uma conexão conceitual entre a poética de Drummond e uma acepção identitaria plural e acêntrica, frisando a conexão entre a liberdade artística e as possibilidades de experimentação de um uso insurgente da linguagem poética. PALAVRAS CHAVE: Modernidade. Política. Poesia. Identidade. ABSTRACT: The poem object of this study is inserted in the work "Rosa do Povo" that contains express political content, demonstrating the counter-hegemonic position of Drummond, being the articulation between the individual and collective conflicts the emphasis of this writing. In the present text we present the correlations between the Drummondian writing, with regard to its politics, and the theoretical framework of the Philosophy of the Deconstruction of Jacques Derrida. The interrelations between the poetics of the former and the theories of the latter are based on the concept of différance and the related processes of continuous inversion of the relation between center and margin. In the article we approach the Brazilian modernist experience stressing the interrelationships between Oswald de Andrad and Drummond from the concept of future democracy derived from the deconstructionist proposal. On these theoretical frameworks, the text proposes to construct a conceptual connection between Drummond's poetics and a pluralistic and accentric identity meaning, stressing the connection between artistic freedom and the possibilities of experimenting with an insurgent use of poetic language. KEYWORDS: Modernity. Policy. Poetry. Identity. Mestrando em Literatura de Língua Portuguesa pela PUC-MG, bolsista CNPQ. E-mail: otaviomoraesrg@gmail.com 58

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1. Introdução O poema em estudo se insere nos escritos Drummondianos em um contexto de produção poética de caráter abertamente político. “Considerações do Poema” se encontra na obra “Rosa do Povo” publicada pela primeira vez em 1945, coletânea de poemas marcados pelas agruras do turbulento contexto histórico da época, permeado pela segunda grande guerra e do caldeirão ideológico inerente a esta temporalidade. Já a essa época Drummond era reconhecido como componente das experimentações modernistas, tendo grande contato com os autores iniciadores das experiências estéticas da poética modernista: Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Manuel Bandeira entre outros. Sendo considerado em razão dessas claras influências um poeta imerso na escrita modernista. Em “Considerações do Poema” podemos vislumbrar a utilização de diversos elementos da cartilha, ou melhor, contra cartilha modernista. A quebra da métrica é correlacionada no poema ao processo de expansão da liberdade poética em sua vinculação a própria liberdade humana, no que se refere a sua potencialidade criadora. Defendemos neste artigo que as articulações que Drummond desenvolve no poema, no que se refere à liberdade poética, se vinculam com centralidade a um pensar político que rediscute com radicalidade a questão identitaria, a trabalhando de maneira acêntrica e plural, pensando uma escrita política que transita entre a individualidade pura e a mescla com as experimentações do coletivo bem aos moldes do conceito de différance desenvolvido por Jacques Derrida. Este movimento de construção poética de um singular-plural, visceralmente afim com o posicionamento contra hegemônico de Drummond, se assemelha com certos aspectos da escrita de Oswald de Andrade, notadamente em suas construções poéticas na qual se dedica a questão identitaria da brasilidade se utilizando do arquétipo do canibal. Desenvolvemos no presente artigo a intepretação da escrita identitaria drummondiana como uma internalização da poética canibal tomando a pluralidade referencial da formação da brasilidade como um processo individual de constante reconstituição do próprio ser. A partir das premissas acima descritas o artigo se desenvolve frisando a politicidade identitaria da escrita Drummond, frisando os jogos entre identidade singular e coletiva sobre as quais o autor exterioriza sua singularidade poética e sua potência política, traçando suas acepções de poesia combativa a partir da própria prática artística. 2. Diferença, diferente , différance É fundamental que de início façamos uma breve explanação sobre a desconstrução no pensamento de Jacques Derrida , frisando o conceito de différance dada a centralidade do termo na presente pesquisa. Na escrita original de Derrida, em francês, o termo original é différence , que configura a escrita gramaticalmente correta da palavra. O autor desenvolve modificação na grafia da palavra, que se torna différance para expor com maior verossimilhança o conceito que pretende desenvolver, a substituição do “e” pelo “a” busca mimetizar a ideia de movimento sob a qual a desconstrução se assenta. 112


A desconstrução como operação filosófica busca a partir do desvelamento genealógico do objeto de estudo e da confrontação lógico-formal desconstruir as relações entre centro e margem, combatendo as binariedades sobre o qual a metafisica ocidental se erigiu (DERRIDA, 2007, p. 40-41). O antagonismo da desconstrução frente ao engessamento das possibilidades reflexivas, e por consequência da própria constituição da materialidade, é uma proposição de subversão continua na qual a reflexão sempre se pauta pelo deslocamento dos limites preestabelecidos pela ordenação hegemônica, se abstendo de consolidar novas hegemonias. A différance é o próprio processo de atravessamento da estruturação estática, das oposições em plano binário, ela opera movendo as relações entre centro e margem para uma plano acêntrico na qual o movimento se sobrepõe ao engessamento, desvelando um campo de liberdade sempre a porvir em uma reinvenção continua. Nas palavras do próprio Derrida (2001, p. 19) “Nos não nos instalamos jamais em uma transgressão, nos não habitamos jamais outro lugar. A transgressão implica que o limite esteja sempre em movimento.” 3. A literatura como plataforma de uma política da différance Jacques Derrida na obra “Essa estranha instituição chamada Literatura” reflete sobre a literatura a partir de uma ótica de inessensiabilidade, bem explicitada por Nascimento ( 2014, p.5 ) “ A essência da literatura é mesmo não ter essência alguma, rasurando e deslocando a pergunta metafisica “ o que é?”, em proveito de um espaço irredutível a qualquer ontologia.”. Podemos vislumbrar grande afinidade entre a atuação acêntrica do discurso literário e a proposição conceitual de différance. A correlação se constitui a partir do não lugar ocupado pelo texto literário, como “espaço do tudo dizer”(DERRIDA, 2014) as amarras estruturantes das relações de centro e margem são atravessadas pela escrita da literatura, possibilitando a produção de arranjos e articulações ainda não experimentados em uma prática voraz de desconstrução das normativas e das estabilidades concernentes ao engessamento das significações. A politicidade da escrita literária se dá em sua metaforização da experiência democrática sob uma ótica radical59, na qual o processo de construção da realidade social é compartilhado a partir de uma acepção artística de cidadania, cabendo as comunidades a construção de uma obra infindável, sempre em movimento, produzindo conceitos e promovendo releituras, tal qual a produção literária. O mundo sobre essa acepção se assemelha a um livro, a ser escrito, com potencialidades infinitas de ficcionalização, uma verdadeira folha em branco. A experimentação artística da Democracia, a partir de sua conexão com a escrita literária, se assemelha a um jogo. O jogo é a constante de combinações e recombinações, a partir de um movimento ziguezagueante no qual as relações CAMPOS(200, p.7) expõe a partir das teorizações marxistas o conceito de “radical” em correlação com a poesia de Oswaldo de Andrade desenvolvendo conceitualmente o ideário de radicalidade sobre a ótica poética através da seguinte formulação “ A radicalidade da poesia oswaldiana se afere, portanto, no campo especifico da linguagem, na medida em que esta poesia afeta na raiz, aquela consciência prática, real, que é linguagem.” A radicalidade poética se da no âmbito do reconhecimento da potencialidade do uso da linguagem para a constituição de elementos estéticos a partir de uma prática de liberdade. 59

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entre centro e margem, interior e exterior, são pulverizadas não cabendo a formulação de novas hegemonias. A instabilidade criativa do “jogo” é conceituada por Derrida ( 2004, p. 61) nos seguintes termos “ Poderíamos denominar jogo a ausência do significado transcendental como limitação do jogo, isto é, como abalamento da onto-teologia e da metafisica da presença”. Expostos os conceitos de différance e de jogo podemos vislumbrar o último como a operacionalização do primeiro, em outras palavras, o jogo materializa a desconstrução em seu movimento de oposição a metafísica ocidental, em seu engessamento das possibilidades criativas de constituição da realidade. Podemos sintetizar a correlação da escrita literária no que se refere a sua politicidade como uma metaforização de uma experimentação democrática total. A literatura em sua ausência de essência, em suas possibilidades infinitas de transmutação e movimento finda sendo um campo de reflexão para se compreender as possibilidades de uma Democracia em construção continua, aberta a uma constituição sensível e plural na qual o espaço social se mantém aberto para invenções e articulações infindáveis, em uma prática prazerosa de convivência, na produção estética das vivências em comum. Tal qual a obra de arte a Democracia a porvir é a própria abertura a um novo constante renovado pelo seu próprio desprendimento frente a qualquer petrificação conceitual das relações de poder. 4. Política e\é poética em Drummond Carlos Drummond de Andrade é um grande representante da poesia brasileira escrita no século XX, versando temáticas diversas e utilizando com maestria mesclas entre conteúdo e forma aos contra-moldes do modernismo brasileiro. No presente artigo nos debruçaremos sobre a poesia Considerações do poema, este esta inserido na obra A rosa do povo livro do acervo drummondiano de temática abertamente política. O livro A rosa do povo foi publicado em 1945, época conturbada permeada pelo fim da segunda grande guerra e início da guerra fria, em terras brasileiras se experenciava grande convulsão política decorrente do fim do Estado Novo e a derrocada do varguismo. A temporalidade instigante sobre a qual o poema foi escrito indubitavelmente é um fato de grande relevo na constituição da obra de arte sobre a qual nos debruçamos. A vinculação intrínseca de Drummond ao modernismo explicita correlações interessantes entre Considerações do poema e a política da différance, como bem exposto por Candido (2004, p.75) a escrita modernista em Drummond materializa a liberdade poética almejada pelos primeiros modernistas, sendo desenvolvido pelo autor mineiro uma escrita que se constitui a partir de jogos entre forma e tema nos quais a “poeticidade”60 se movimenta em liberdade, produzindo novos significados para as palavras a partir de correlações pouco obvias.

Partimos do conceito de literalidade desenvolvido por GOULART (2003) que desenvolve a ideia do elemento estético como uma ruptura com o senso de comunidade, no sentido de se desvincular a palavra de seu sentido original dando a partir da rearticulação estética da palavra novos usos para os signos linguísticos. 60

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(...) ele parece um modernista de programa aplicando meticulosamente os preceitos estabelecidos; mas é que eles se correspondiam à sua mais profunda natureza poética, cheia de pudor e angústia, encontrando-se bem no verso duro e seco, próprio para dissolver na ironia e no sarcasmo qualquer laimo de sentimentalismo ou ênfase, que ele sabe anular pelo recurso ao estilo coloquial mais quotidiano. Drummond é o primeiro grande poeta brasileiro nascido intelectualmente dentro do modernismo, sem laivo do passado , nem perigo de volta a ele.

Esta escrita modernista , sem laivo do passado nem perigo de voltar a ele, constitui uma práxis artística semelhante as acepções filosóficas preceituadas pela filosofia da desconstrução de Jacques Derrida. A prática poética de Drummond e a desconstrução de Jacques Derrida se aproximam, conceitualmente, ao atuarem como uma crítica a petrificação das relações em uma logica binaria. O modernista Drummond utiliza da constituição da estética da palavra, em obra de arte, para “mover”, ou melhor desnaturar os significados preestabelecidos as palavras e mesmo conceitos. Quando a temática adentra o campo da escrita política não é diferente, os maniqueísmo são desmontados, o plano individual e coletivo se mesclam em um singular-plural potente tanto em angustia quanto em utopismo. O poema Considerações do poema é obra representativa da potência da escrita drummondiana, a política se faz poética nesta obra, a liberdade individual se encena como campo de possíveis experimentações coletivas a mimetizar, ou mesmo reafirmar, a potencialidade se reconhecer a produção da realidade social como prática artística. A articulação metafórica entre uma literatura conceituada como “campo do tudo dizer” (DERRIDA, 2014) para uma Democracia como experiência constante do “ tudo construir”. Debrucemo-nos agora sobre alguns trechos do poema. Não rimarei a palavra sono com a incorrespondente palavra outono. Rimarei com a palavra carne ou qualquer outra, que todas me convém. As palavras não nascem amarradas, elas saltam, se beijam, se dissolvem, no céu livre por vezes um desenho, são puras, largas, autênticas, indevassáveis. (ANDRADE, 2000, p.09)

A negação frente a utilização da rima, além de atentar para os jogos entre forma e tema radicalizados pela estética da poesia modernista(CANDIDO, 2004) expõe a constituição da prática poética como uma ruptura com as relações préestabelecidas. A articulação desta radicalidade da escrita com os elementos do próprio processo de desenvolvimento da obra poética abre campo para uma introjeção da acepção derridiana de Democracia porvir, desenvolvendo uma subjetividade porvir visceralmente vinculada a possibilidade de construção de uma Democracia em moldes desconstrucionistas. A introjeção ao campo subjetivo, da escrita crítica e politizada de Drummond, é reconhecida por Candido ( 1995, p.3) como componente das poesias na obra Rosa do povo. “Trata-se de uma problema de identidade ou identificação do ser, de que decorrer o movimento criador da sua obra na fase apontada, dando-lhe 115


um peso de inquietude que o faz oscilar entre o eu, o mundo e a arte, sempre descontente e contrafeito”. A partir deste movimento entre o eu, o mundo e a arte, acrescentado o coletivo ou comunidade a esta mescla, vislumbramos a potencialidade desconstrucionista ou o gauchismo derridiano em ação. Carlos Drummond de Andrade escreve uma poética subversiva por não se assentar sobre a subversão. O autor ao ziguezaguear entre a experimentação artística individual e a construção artística coletiva da realidade preceituando a sobreposição do movimento, da inventidade sobre qualquer cerceamento a liberdade de se laborar o mundo a partir da arte como política. O anseio contra-hegemônico que perpassa Considerações do poema se afina com a proposição derridiana de desmonte dos binarismo a partir da movimentação entre centro e margem, de maneira que as fronteiras se diluam dentre as possibilidades de reflexão sempre em abertura. Em outras palavras a contra-hegemonia em questão é uma oposição ao próprio poder em sua marcha padronizante e, portanto, subalternizante da pluralidade ao campo de centro e de margem. Derrida (2004, p.19) ilustra a acepção de an-archia pela qual perpassa a deconstrução, em sua enorme afinidade com o gauchismo drummondiano, através da elucidação de seu pensamento frente as oposições entre grafocentrismo e logocentrismo “(...) não se tratou jamais de opor um grafocentrismo a um logocentrismo, nem em geral um centro qualquer a qualquer outro”61. Já agora te sigo a toda parte, e te desejo e te perco, estou completo, me destino, me faço tão sublime, tão natural e cheio de segredos, tão firme, tão fiel... Tal uma lâmina, o povo, meu poema, te atravessa. (ANDRADE, 2000, p. 11)

No trecho a cima vislumbramos um momento de tensão no desenvolvimento de Considerações do poema no qual a poesia é posta como elemento operador da dissolução de uma acepção una de identidade a partir da perseguição da poesia o autor exprime o “atravessamento” da experimentação artística sobre as formas pré-estabelecidas. A angustia drummondiana tão bem explicitada por Candido (1995) é transmutada em matéria cortante, uma expressividade estética que se desloca violentamente frente as limitações concernentes a produção artística e por consequência sobre as interdições a formulação da própria subjetividade e da constituição do espaço social. 5. O canibal vive em mim: A deglutinação criativa da subjetividade Oswald de Andrade tem como elemento marcante de suas escrita a formulação de um significante capaz de dar forma estética a acepção de brasilidade, o escritor se singulariza pela oposição que faz a prática literária como mero decalque dos estilos europeus. De acordo com Andrade (2009, p.23) “(...) todas as nossas reformas, todas as nossas reações costumam ser dentro do bonde da civilização importadas. Precisamos queimar o bonde”. Para compreender a questão do grafocentrismo ler: DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Trad. Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2004. 61

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Queimar o bonde é dar mobilidade a produção artística a retirando do imobilismo que a posição político-econômica de nação pós-colonial legou a brasilidade. O movimento é explicitado nas articulações de forma, nas rupturas de métrica e na liberdade temática, mesclado estes elementos o campo de possibilidades de escrita se põe em um constante porvir uma escrita sem limites as possibilidades constituintes. A tensão entre local e universal exposta acima, retirada das reflexões de Candido(1995) sobre o processo de formação do sistema literário brasileiro, tem como tônica a questão identitaria sendo elaborada pela escrita oswaldiana de maneira singular dado o fato de utilizar da figura do canibal como meio de exteriorização das multiplicidades componentes da realidade social brasileira. O canibal em questão como elemento de fundação da proposta de brasilidade de Oswald de Andrade finda, em razão de seu constante deglutinar influências e possibilidades, formulando um paradoxal ““(..) ‘ser-não-ser’ antropofágico” (SANTOS; LEONEL 2009, p. 9). “TUPI OR NOT TUPI”(ANDRADE, 2009,p.22) é colocado por Oswald de Andrade como questão fundamental sendo a pergunta sobreposta a qualquer possibilidade de resposta como se o existir instável e questionador da duvida elementar surrupiada e acaboclada de Shakespeare por Andrade fossem os verdadeiros elementos da existência pós-colonial formulada pela obra oswaldiana. Esta escrita identitaria notadamente paradoxal e deslocada, ou melhor em deslocamento, em relação aos binarismo metafísicos se afina com os preceitos desconstrucionistas apresentados no início deste artigo, principalmente no que se refere ao conceito de différance. Derrida e Oswald de Andrade se encontram nas fissuras que exploram em suas experimentações filosóficas e literárias no que tange a compreensão da realidade. Prado( 200, p.57) delineia a potência da escrita canibal a partir dos seguintes termos “ A nova poesia não será nem pintura nem escultura nem romance. Simplesmente poesia com P grande, brotando do solo natal, inconsciente. Como uma planta.” O caráter selvagem que se dá ao Oswald de Andrade poeta é a materialização de uma subversão que embate ao moldes da desconstrução com as limitações a liberdade de escrita e por resultante da própria liberdade de constituição coletiva da identidade brasileira. É importante frisar que a politicidade oswaldiana não embarca em um maniqueísmo pobre vinculado a uma negação simplista do mundo europeu. O poeta trabalha com maior profundidade, ele devora, mistura e fundamentalmente cria. A “pluridentidade” que emerge de sua poesia, frisando-se os manifestos PauBrasil e Antropofagico, é plena de desejo clamando os muitos outros como seus, é uma escrita adepta mestiçagem buscando vencer o europeu a partir da deglutição tomando-lhe o que é bom e abandonando qualquer ranço autoritário. O antropófago tal qual a literatura em termos derridianos( 2014) não goza de essência, ele é a própria ideia de abertura sendo ,portanto, o arquétipo da subjetividade livre apta a tudo viver, produzindo e reconstruindo a si mesmo e realidade que o rodeia. O conceito de subjetividade a porvir que trabalhamos anteriormente se casa com facilidade com o antropófago oswaldiano, dada a representação de liberdade e abertura que este significante da brasilidade representa. É interessante expor que defendemos que a escrita de Andrade(2009) expressa, inventa e rearticula uma concepção de brasilidade que não redunda 117


necessariamente na noção de nacionalismo. Para melhor desenvolvermos essa questão prosseguiremos, primeiramente, com o conceito de nacionalismo elaborado por Guimarães (2016, p.1). Nacionalismo é o sentimento de considerar a nação a que se pertence, por uma razão ou por outra, melhor do que as demais nações e, portanto, com mais direitos, sendo manifestações extremadas desse sentimento a xenofobia, o racismo e a arrogância imperial. Nacionalismo é, também, o desejo de afirmação e de independência política diante de um Estado estrangeiro opressor ou, quando o Estado já se tornou independente, o desejo de assegurar em seu território um tratamento pelo Estado melhor, ou pelo menos igual, ao tratamento concedido ao estrangeiro, seja ele pessoa física seja jurídica. Os movimentos nacionalistas significativos do ponto de vista político, cujas manifestações históricas mais simples decorrem de identidade étnica, lingüística ou de pertencimento, no passado, a uma organização política, têm como seu principal objetivo o estabelecimento de um Estado ou a modificação das políticas do Estado para defender ou privilegiar interesses dos que integram certo movimento.

É perceptível que o conceito de nacionalismo, mesmo quando advindo de um povo em anseio de libertação perpassa pela conquista de certa centralidade nas relações de poder em disputa. De acordo com nossas leituras defendemos que a escrita oswaldiana se afasta destas proposições estando mais afim com a busca de uma liberdade acêntrica, como pautado por Derrida, do que pela constituição de novas relações hegemônicas. É exemplificativo do ziguezague pelo qual o arquétipo canibal desenvolve seu caminhar livre da institucionalização, e por consequência do enclausuramento de sua potencia, o seguinte trecho do manifesto antropofágico. Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar. Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls. Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rosseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos. Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.(ANDRADE, 2017, p.34)

A negação frente a “importação de consciência enlatada” é proposta de grande radicalidade que perpassa uma crítica de cunho epistemológico dado o fato que busca alicerçar um campo aberto de possibilidades criativas, um produzir selvagem desvinculado dos interditos transpostos para a América em razão da experiência colonial. A crítica em questão nos remete diretamente a acentralidade anteriormente exposta, o desdém frente as revoluções europeias , a ironia em relação as girls e ao sonambulismo do direito postas em conjunto ao elogio de um Brasil Caraiba reforçam as possibilidades de leitura do manifesto como uma exaltação a liberdade selvagem em seu caráter abertamente an-arquico. 118


A catequização que o trecho transcrito descreve, no que se refere a negação desta vivência por parte dos habitantes de américa portuguesa, expressa a recusa a um condicionamento de possibilidades muito maior do que a questão estritamente religiosa. O Brasil Caraiba como espaço de ”re-existência” do arquétipo canibal não se reduz a institucionalidade político jurídica, na verdade se expande para um campo infinitude de inventividade pós-colonial. O que pretendemos com estas colocações é defender que Oswald de Andrade não desenvolve uma escrita fundadora de uma brasilidade, no que tange a sua abordagem sobre a identidade coletiva da brasilidade, mas sim desenvolve , ou melhor, refunda a brasilidade como campo de liberdade humana radicalizada fruto da mestiçagem acêntrica decorrente das múltiplas mesclas raciais, epistemológicas e políticas presentes nas américas. Em outras palavras o Brasil, terra do antropófago oswaldiano tal qual o canibal não é , esta sendo, e por ser permeado deste porvir continuo só possível por seu vazio existencial ele pode tudo ser, o Brasil não é um país mas sim uma promessa de liberdade. Pensamos que a escrita oswaldiana e drummondiana tendo o primeiro como um dos fundadores da expressão modernista e o último como dos maiores escritores deste projeto estético-político se afinam pela continuidade nos descolamentos indentitarios em uma operacionalização desconstrutiva, em muito, semelhante ao conceito Derridiano de différance. A continuidade no projeto modernista estaria no deslocamento que Drummond faz do ser-não-ser em sentido coletivo da discussão oswaldiana sobre a brasilidade para também abarcar a constituição individual da subjetividade atuando de forma pendular na relação entre o “eu” e o “nos”. O seguinte trecho de Considerações do Poema é elucidativo deste “movimento”: Furto a Vinicius sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo. Que Neruda me dê sua gravata chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakov ski. São todos meus irmãos, não são jornais nem deslizar de lancha entre camélias: é toda a minha vida que joguei. Estes poemas são meus. (ANDRADE,2000, p.10)

A proposta de flexibilização da autoria, e por consequência das identidades, perpassa o processo de construção poética na qual o autor, também leitor, mergulha a partir de suas próprias experiências de fruição artística em um campo aberto de possibilidades de escrita e por consequência de constituição de si mesmo, como subjetividade em movimento, e da realidade que o circunda dentro da perspectiva de democracia a porvir e subjetividade a porvir. Quando Drummond clama o pertencimento dos poemas dos autores expostos nos versos anteriores vislumbra-se semelhança com a proposição oswaldiana de “Só me interessa o que não é meu. Lei do Homem. Lei do antropófago.” (ANDRADE, 2009, p. 3) A différance , pensada a partir da inter-relação entre a escrita drummondiana e oswaldiana, pode ser vislumbrada em perspectiva estética como a operacionalização de uma escrita utópica, que se faz escrita exatamente por estar 119


neste não lugar do ainda não realizado. Defendemos que no movimento de se deslocar a questão identitaria a partir de um ziguezaguear entre singular e coletivo Drummond constrói desenvolve a partir de sua poesia elementos para uma compreensão afim com a desconstrução da inter-relação entre poesia política na qual a arte tal uma lamina atravessa os engessamentos e as relações de poder com seu condicionamentos abrindo janelas para possibilidades outras. Derrida ( 2014, p.51) reconhece na literatura moderna enorme potencialidade metafórica no que concerne as reflexões sobre politicidade e democracia, dado o fato do fenômeno moderno representar o desnudamento das contradições e portanto a possibilidade de desmonte dos idealismo em seu papel condicionante. Tendo em vista esta vinculação temporal da literatura em sua potente inessencialidade não é de surpreender que dois dos grandes poetas modernistas brasileiros tenham operado em suas escritas a abertura de tantas portas constitutivas do porvir, bem exemplificado pelo seguinte trecho do pensamento derridiano. A instituição da literatura no Ocidente, em sua formar relativamente moderna, esta ligada a autorização para dizer tudo, e, sem duvida também, ao advento de uma ideia moderna de democracia. Não que ela dependa de uma democracia instalada, mas parece-me inseparável do que conclama uma democracia porvir, no sentido mais aberto( e indubitavelmente, ele mesmo povir) de democracia.

Finda sendo indubitável o caráter transgressor que a escrita de ambos os poetas continua representando sendo que, frisando-se a escrita drummondiana, a vinculação do produzir arte com o produzir realidade é de grande imperiosidade em tempos de ascensão do autoritarismo, talvez como nunca seja tão necessária rememorar o caráter metafórico com o qual a prática artística nos elucida sobre as possibilidades de alteração da realidade. A literatura em especifico em razão de sua material banal, a linguagem, tem um caráter expressamente revolucionaria pois carrega a promessa constante da possibilidade se renovar sentidos, produzir novas palavras e ressignificar o mundo. 6. Conclusão Perpassamos no texto a questão política em Drummond a partir de Considerações do Poema buscando trabalhar as correlações entre o processo de constituição estética e as relações de produção de subjetividade e do meio social a partir dos conceitos Derridianos de différance e de democracia porvir. Os conceitos de Derrida perpassam pelo reconhecimento da literatura moderna como campo de abertura de possibilidades criativas, de rearticulação da realidade, proposta que pensamos ser bem trabalhada no campo da identidade coletiva por parte da literatura oswaldiana. Eis a conexão que buscamos expor na poética drummondiana, tal qual um rastro o liame entre Oswald de Andrade e seu manifesto com Drummond perpassa pela continuidade da escrita poética subversiva, prosseguindo o deslocamento do primeiro em uma escrita que perpassa o singular sem abdicar de discutir o coletivo, em uma politicidade que trabalha a partir do reconhecimento da individualidade e das possibilidade de construção de atuações em coletivo de maneira sempre plural, sempre mutante. 120


Devido a grande gama de questões conceituais que atravessam a discussão propostas reconhecemos a necessidade de desenvolvimento de mais textos versando cada uma com a devida especificidade, proposta que intentamos perseguir em nossa produção acadêmica. Os temas como a questão da métrica em Drummond, e as especificidades de sua escrita política no contexto da “forma” de sua poesia modernista é um bom exemplo, sem falar das peculiaridades da escrita oswaldiana no que se refere a seu paradoxal canibal. Findamos o presente texto no anseio de que ele sirva ao propósito de “deslocar” o pré estabelecido instigando os leitores a procederem releituras dos poetas em discussão a partir do instigante pensamento de Jacques Derrida.

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7. Referências: ANDRADE, Carlos Drummond. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2000. ANDRADE, Oswald. Os dentes do dragão. Organização, introdução e notas Maria Eugenia Boaventura. São Paulo: Globo, 2009. _____. Poesia Pau-Brasil e Manifesto Antropofagico. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf> Acessado em 24 mai 2016, CANDIDO, Antonio. Iniciação à literatura brasileira. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004 _____. Inquietudes na poesia de Drummond. In: Vários escritos. São Paulo: Duas cidades, 1995. CAMPOS, Haroldo. Uma poética da radicalidade. In: ANDRADE, Oswald. Pau Brasil ( Obra completa). São Paulo: Globo, 2000. DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Trad. Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2004. _____. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: Martins Fontes, 2007. _____. Posições. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. _____. Essa estranha instituição chamada literatura. Tradução: Marileide Dias Esqueda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. GUIMARÂES, Samuel Pinheiro. Nação, Nacionalismo e Estado. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ea/v22n62/a10v2262.pdf> Acessado em 12 mai 2017. NASCIMENTO, Evandro. Literatura à demanda do outro. In: DERRIDA, Jacques. Essa estranha instituição chamada literatura. Tradução: Marileide Dias Esqueda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. PRADO, Paulo. Poesia Pau-Brasil. In: ANDRADE, Oswald. Pau-Brasil. São Paulo: Globo, 2000. SANTOS, Fernanda Oliveira Filgueira Santos. LEONEL, Mauro de Mello. A FOME ANTROPOFAGICA- UTOPIAS E CONTRADIÇÕES. 2009. Disponível em: <http://www.each.usp.br/revistaec/sites/default/files/artigosempdf/09_ed1_A%20FOME%20ANTROPOFA%CC%81GICA%20%20UTOPIAS%2 0E%2 0CONTRADIC%CC%A7O%CC%83ES.pdf> Acessado em 1 nov 2016.

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A POÉTICA DA MEMÓRIA EM CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: O ESPAÇO DA ESCRITA E A PRESENÇA DA FAMÍLIA. Jorge Manoel Venâncio Martins62

RESUMO: Este trabalho estuda a presença da família em poemas que versam sobre a memória na obra de Carlos Drummond de Andrade. Neste estudo, apresenta-se um panorama deste aspecto na obra do poeta e debruça-se, de modo especial, na trilogia Boitempo, em que se concentram os poemas cujas temáticas são a memória e a família. Foram escolhidos poemas que indicam como que o sujeito poético se inscreve e escreve (n)o inventário familiar. A escrita de Boitempo apresenta a voz poética madura, contaminada pela lembrança do menino, incorporada a essa voz de modo visceral, o que evidencia a intensidade do processo de escavação das lembranças fragmentadas. Críticos que versam sobre memória e família na escrita do poeta mineiro contribuem para este estudo, que tem como linha de força a discussão sobre as Inquietudes na poesia de Drummond, de Antonio Candido. PALAVRAS-CHAVE: Carlos Drummond de Andrade. Poética. Memória. Família. SUMMARY: This work studies the presence of the family in poems that deal with memory in the work of Carlos Drummond de Andrade. In this study, a panorama of this aspect is presented in the work of the poet and is focused, in a special way, in the trilogy Boitempo, in which the poems that deal with the memory and the family are concentrated. Poems were chosen that indicate how the poetic subject subscribes and writes the family inventory. The poetic writing of Boitempo presents hows the voice of the mature poet, contaminated by the boy's memory, incorporated into this voice viscerally, which shows the intensity of the process of digging fragmented memories. Critics who talk about memory and family in the writing of the poet of Minas Gerais, contribute to this study, having as a line of force the discussion about the Concerns in the poetry of Drummond, of Antonio Candido (CANDIDO, 2004, p.67). KEY WORDS: Carlos Drumond de Andrade. Poetic. Memory. Family.

Tem-se por objetivo discutir a relevância da lembrança da família dentro da poética da memória e também a junção memória-família como matéria poética constante em toda a obra drummondiana no espaço de uma escrita metalinguística e autobiográfica. Em Boitempo, encontram-se poemas que corroboram com a seguinte ideia de Antonio Candido: “a família define e explica o modo de ser, como a casa demarca e completa o indivíduo no meio dos outros” (CANDIDO, 2004, p. 85). Nessa perspectiva, por exemplo, tem-se o sujeito poético convocado na primeira estrofe do “Poema de Sete Faces”: Professor e Mestre em Letras – Literatura de Língua Portuguesa pelo Programa de PósGraduação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, tem três livros publicados. 62

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Quando nasci, um anjo torto Desses que vivem na sombra Disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida. (ANDRADE, 2007, p. 5)

Nessa condição de gauche,“Carlos” inicia a escavação do interior da família, como se pode ver nos versos do poema “(In) Memória” do livro Boitempo: De cacos, de buracos de hiatos e de vácuos de elipses, psius faz-se, desfaz-se, faz-se uma incorpórea face, resumo do existido. (ANDRADE, 2007, p. 882)

O eu lírico nessa estrofe apresenta o seu projeto poético sobre memória e família. Cacos, buracos, hiatos, vácuos, elipses, psius representam o modo como a memória guarda as lembranças de um tempo pretérito, tanto da infância quanto de Itabira, com suas fazendas, suas montanhas, seus familiares, sua terra, seus rios, e também como a escrita poética será realizada. Escrita esta que, como a memória, é fragmentada e se revela ainda numa necessidade de recompor cacos do passado, através da rememoração de lembranças e reminiscências, para compor uma genealogia contraditoriamente firmada no prazer e na dor dos “laços de Sangue” impossíveis de se romper.(OLIVEIRA, 1991, p. 14).

O gauche fará essa viagem escavando o que há na memória sustentada pelos objetos e fotografias guardados pelo clã e ainda pela criação poética, como se observa, por exemplo, no poema “Coleção de Cacos”: Já não coleciono selos. O mundo me enquizila. Tem países demais, geografias demais. Nunca chegaria a ter álbum igual ao do Dr. Grisolia, orgulho da cidade. E toda gente coleciona os mesmos pedacinhos de papel. Agora coleciono cacos de louça Quebrada há muito tempo. Cacos novos não servem. Brancos também não. Têm de ser coloridos e vetustos, desenterrados — faço questão — da horta. Guardo uma fortuna em rosinhas estilhaçadas, restos de flores não conhecidas. tão pouco: só o roxo não delineado, o verde não sabendo a que xícara serviu. Mas eu refaço a flor por sua cor, e é só minha tal flor, se a cor é minha

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no caco da tigela. O caco vem da terra como fruto a me aguardar, segredo que morta cozinheira ali depôs para que um dia eu o desvendasse. lavrar, lavrar com mãos impacientes um ouro desprezado por todos da família. Bichos pequeninos fogem de revolvido lar subterrâneo. Vidros agressivos ferem os dedos, preço de descobrimento: a coleção e seu sinal de sangue; a coleção e seu risco de tétano; a coleção que nenhum outro imita. escondo-a de José, por que não ria nem jogue fora esse museu de sonho. (ANDRADE, 2007, p. 973)

São os “cacos vetustos” objetos de juntar, guardar, colecionar, metáforas de uma escrita metalinguística de suas memórias e de sua família. O poema “Justificação” pode indicar como esse eu lírico e a voz lírica são constituídos de outros eus apresentados por meio de lembranças e fatos que, de alguma forma, estão aflorando no processo de criação. Não é fácil nascer novo. Estou nascendo em Vila Nova da Rainha, cresço no rasto dos primeiros exploradores, com essa capela por cima, esta mina por baixo. Os liberais me empurram pra frente, os conservadores me dão um tranco, se é que todos não me atrapalham. E as alianças de família, o monsenhor, a câmara, os seleiros, os bezerros mugindo no clariscuro, a bota, o chão vendido, o laço, a louça azul chinesa, o leite das crioulas escorrendo no terreiro, a procissão de fatos repassando, calcando minha barriga retardatária, e as escrituras da consciência, o pilão de pilar lembranças. não é fácil nascer e aguentar as consequências vindas de muito longe preparadas em caixote de ferro e letra grande. Nascer de novo? Tudo foi previsto e proibido no antigo testamento do Brasil. (ANDRADE, 2007, p. 883)

Nota-se o tom irônico e o processo metonímico ao apresentar “Vila Nova da Rainha”, que tanto pode representar o interior itabirano, como também o Brasil, e quiçá o reino português. Por meio desse processo, no poema, o eu lírico mostra o ambiente social onde nasceu e cresceu: em uma sociedade tradicional cujos valores patriarcais predominavam e os valores econômicos eram determinados pelo 125


regime republicano, o qual era conduzido pela acirrada disputa entre os grupos dos liberais e dos conservadores. O poema indica que quando o sujeito nasce traz em si toda a sua ascendência, tanto a familiar quanto a social, uma espécie de “resumo do existido”, dos primeiros exploradores. A escrita desse poema aponta o modo como a memória familiar e a memória social serão temáticas também dos poemas que se encontram na seção “PretéritoMais-que-perfeito” e em toda a poética de Boitempo: um sujeito adulto que “sai para ver o tempo futuro”,mas na condição de gauche fará suas “viagens na família e viagens à sua própria infância” (SANT’ANNA, 1992, p. 134).Outro poema interessante é o “Fazendeiro de Cana”. Minha terra tem palmeiras? Não. Minha terra tem engenhocas de rapadura e cachaça e açúcar marrom, tiquinho, para o gasto. Canavial se alastra pela serra do Onça, vai do Mutum, ao Sarcundo, clareia Morro Escuro, Queixadas, Sete Cachoeiras, Capitão-do-Mato enverdece de cana madura, tem cheiro de parati no Bananal e no Lava, no Piçarrão, nas Cobras, no Toco, no Alegre, na Mumbaça. tem rolete de cana chamado para chupar nas abóboras, no Quenta-Sol, nas Botas. cana-pitu, cana rajada, cana-do-governo e muitas outras canas e garapas, e bagaço para os porcos em assembleia grunhidora diante da moenda movida gravemente pela junta de bois de sólida tristeza e resignação. As fazendas misturam dor e consolo em caldo verde-garapa e sessenta mil-réis de imposto fazendeiro. (ANDRADE, 2007, p. 885).

Nesse poema, Drummond apresenta ao leitor a atividade econômica da fazenda, cujo ciclo principal é o cultivo e extração da cana-de-açúcar. Nota-se ainda a “extração” poética que Drummond faz do passado literário ao contestar a terra idílica de Gonçalves Dias. O consagrado verso afirmativo do poeta maranhense é convertido em uma pergunta, em uma dúvida, e a resposta a ela é “não”, como é visto nos versos: “minha terra tem palmeiras?/ Não.” Assim, ao se referir à tradição literária, ele aparece negando-a, o que parece ocorrer também em relação à sua própria ancestralidade. Nesse jogo, o eu lírico nos apresenta a literatura da qual é parte e da qual se fragmenta em vários “eus”, sendo um deles nomeado gauche por “um anjo torto” do livro Alguma poesia (ANDRADE, 2007, p.5). Ao longo do poema, o sujeito poético então viaja pelo terreiro, pela casa, pela cidade de Itabira e pelas fazendas. Parece haver nesse projeto poético a escavação e a preservação do ambiente infantil pela memória, terreno fértil para encontrar o “tesouro enterrado/há cem anos pelo guarda-mor.” (ANDRADE, 2007, p. 936). Não somente a preservação dessa infância, mas em Boitempo o eu lírico deixa manifestar a voz 126


do “menino ambicioso” (ANDRADE, 2007, p. 988). De acordo com Oliveira (2006, p. 92): O “menino” afigura-se como aquele ser incapaz de conferir, adequadamente, forma e sentido à experiência, ao passo que o “homem” é quem, tendo pretensamente dominado a técnica e os materiais da escrita, pode usar as palavras para expressar-se à vontade.

A voz do menino trazida para o presente da enunciação pelo eu lírico é “uma das vozes que falam das matérias vividas” (VILLAÇA, 2006, p. 123) realizada por meio da linguagem poética, como se pode ver no poema “Primeiro Conto”: O menino ambicioso não de poder ou glória mas de soltar a coisa oculta no seu peito escreve no caderno e vagamente conta à maneira de sonho sem sentido nem forma aquilo que não sabe. Ficou na folha a mancha do tinteiro entonado, mas tão esmaecida que nem mancha o papel. Quem decifra por baixo a letra do menino, agora que o homem sabe dizer o que não mais se oculta no seu peito? (ANDRADE, 2007, p. 988)

Em Boitempo a voz do menino se embrenhará na voz do “homem [que] tendo pretensamente dominado a técnica e os materiais da escrita pode usar as palavras para expressar-se à vontade” (OLIVEIRA, 2006, p. 92), como mostra o sujeito poético nesse poema. Nota-se que a memória da família é mantida e preservada “na e pela linguagem” (BENVENISTES, 2005, p. 286). O eu lírico precisa dessa linguagem “para compreender a si mesmo na natureza das relações” (CANDIDO, 2014, p. 86). Entende-se que é ele o gauche que, escavando metaforicamente os espaços da memória, trará para o presente encenações do passado,como no poema “Casa” da seção “Morar nesta Casa” (ANDRADE, 2007, p. 916). Há de dar para a Câmara, de poder a poder. No flanco, a Matriz, de poder a poder. Ter vista para a serra, de poder a poder. Sacadas e sacadas comandando a paisagem.

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Há de ter dez quartos de portas sempre abertas ao olho e pisar do chefe. Areia fina lavada na sala de visitas. Alcova no fundo sufocando o segredo de cartas e baús enferrujados. Terá um pátio quase espanhol vazio pedrento fotografando o silêncio do sol sobre a laje da família sobre o tempo. Forno estufado fogão de muita fumaça e renda de picumã nos barrotes. Galinheiro comprido à sombra de muro úmido. Quintal erguido em rampa suave, flores convertidas em hortaliça e chão ofertado ao corpo que adore conviver com formigas, desenterrar minhocas, ler revista e nuvem. Quintal terminando em pasto infinito onde um cavalo espere o dia seguinte e o bambual receba telex do vento. Há de ter tudo isso mais o quarto de lenha mais o quarto de arreios mais a estrebaria para o chefe apear e montar na maior comodidade. Há de ser por fora azul 1911. Do contrário não é casa. (ANDRADE, 2007, p. 917)

Há que se observar a constituição do poema em apenas uma estrofe longa com 50 versos brancos, com predominância de seis sílabas poéticas. A impressão de tempo futuro é possibilitada pelo uso da locução verbal formada pelo verbo haver no presente do indicativo “há” mais a preposição “de”, e os verbos principais no infinitivo (dar, ter e ser), por exemplo, “Há de dar”; “Há de ter” e “Há de ser”. Assim, ter-se-ia, hipoteticamente, as formas “daria”, “teria” e “seria”. Essa estrutura verbal coloca a hipótese de construção da casa no futuro. Os primeiros oito versos mostram a vista externa da frente da casa. Ela ocupa um espaço urbano privilegiado porque está entre os dois poderes sociais: a 128


Câmara, de frente (poder político); e, no flanco, a Igreja (poder religioso). De suas sacadas, comanda e controla a paisagem itabirana. Explorando a parte de dentro da casa, o eu lírico apresenta dez quartos; a sala de visitas, com areia fina lavada no chão, e a alcova, no fundo, sufocando cartas e baús, tudo sob o olhar e o pisar do “chefe” (ANDRADE, 2007, p. 917), controlador de todos e de tudo. O interior da casa e a sua arrumação mostram o costume e os hábitos aristocráticos da sociedade. No espaço central interno entre a casa e o quintal, encontra-se o pátio, destacando-se o seu estado/função contínua: “fotografando o silêncio/ do sol sobre a laje,/da família sobre o tempo.”(ANDRADE, 2007, p. 917).“Laje”, como toda a casa, pode ter sentido “ambíguo” (OLIVEIRA, 2003, p. 114); tanto pode representar o telhado, o teto da construção, como também a pedra sobre a sepultura. Olhando por este lado, pode-se entender a casa como o espaço onde se abriga os mortos, representando o “resto” de uma família. Casa e pai se interagem, fundem-se cobertos por “heras” e depois se transformam em pó. Percebe-se esse percurso de “Alguma poesia” passando por Boitempo e se encerrando em Farewell. Tal percepção da imagem do “silêncio do sol sobre a laje da família” (ANDRADE, 2007, p. 917) representa o desejo do sujeito que escreve de manter acesa a memória da família, considerando o tempo verbal do futuro do presente que supõe uma hipótese. As relações com o pai, mãe, irmãos e irmãs. Por meio da leitura dos poemas, será abordada uma sugestão de como é a relação entre o eu lírico e o pai, a mãe e os irmãos e irmãs. Segundo Merquior (2012),”a figura do pai é, em sua poesia, objeto de amor e de hostilidade, ao passo que a imagem da mãe é sempre vista sob uma luz afetiva favorável” (MERQUIOR, 2012, p. 276). Tal observação é notadamente apresentada no poema “Distinção”. O Pai se escreve sempre com P grande em letras de respeito e de tremor se é Pai da gente. E Mãe, com M grande. O Pai é imenso. A Mãe, pouco menor. Com ela, sim, me entendo bem melhor: Mãe é muito mais fácil de enganar. (Razão, eu sei, de mais aberto amor.) (ANDRADE, 2007, p. 950)

Essa lembrança da grandeza do poder do pai é apontada com uma dicção infantil, como forma de apresentar as figuras do pai e da mãe. Sob o olhar do filho, a relação com a figura paterna é de distanciamento e medo, marcada na escrita pelo substantivo “tremor”, e pela dimensão dada à letra “p”: “P grande”, “O Pai é imenso”. Em outros momentos, o eu lírico, utilizando-se da dicção infantil, demonstra à figura paterna admiração, como no poema “Bota”. A bota enorme rendilhada de lama, esterco e carrapicho regressa do dia penoso no curral, no pasto, no capoeirão.

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A bota agiganta seu portador cansado mas olímpico. Privilégio de filho de ser chamado a fazer força para descalçá-la, e a força é tanta que caio de costas com a bota nas mãos e rio, rio de me ver enlameado (ANDRADE, 2007, p. 906).

No plano dessa poética familiar, é percebida a admiração que o filho nutre pelo pai, chegando a sentir-se privilegiado ao ser chamado para descalçar sua bota. A cena parece evocar do passado a voz e o sentimento do menino para o presente do adulto, que, remoendo as lembranças de seu pai, (re)sente as satisfações e perturbações daquele momento singular. Nesse poema, parece que o ato de “cair de costas” e “se ver enlameado” tem um sentido simbólico de identificação e de admiração. O eu lírico dá a dimensão dessa admiração pelo pai ainda nos versos do poema, como “A bota agiganta/seu portador cansado, mas olímpico” (ANDRADE, 2007, p. 906), que pode sugerir a aproximação do pai na casa após a lida “no campo”.Essa ideiapermite retomar o poema “Infância” de Alguma poema (ANDRADE, 2007, p. 6). Como foi possível perceber no poema “Mãe”, embora se escreva com “M grande”, é “pouco menor” em relação ao pai. Existe nisso uma outra forma de relação e de convívio. Sugere o eu lírico que a mãe é a mediadora do diálogo dentro da casa, como diz: “Com ela, sim, me entendo bem melhor”. Segundo a dicção do menino no sujeito adulto, a mãe é “(Razão, eu sei, de mais aberto amor.)” (DRUMMOND, 2007, p. 951). Esse modo de registro poético sobre a mãe é apresentado no poema “Suas Mãos” também. Aquele doce que ela faz Quem mais saberia fazê-lo? Tentam. Insistem, caprichando. Mandam vir o leite mais nobre. Ovos de qualidade são os mesmos, manteiga, a mesma, iguais açúcar e canela. E tudo igual. As mãos (as mães?) são diferentes. (ANDRADE, 2007, p. 951)

Nesse poema, a ausência da mãe é sentida no cotidiano da cozinha, por exemplo. Outras “mãos” poderiam correr os olhos pela receita, investirem no processo de produção, mas, segundo o eu lírico, elas “Tentam. Insistem”, mas “são diferentes” (ANDRADE, 2007, p. 951). Dessa forma, o poema “Suas Mãos” mostra a ausência sentida pela falta da mãe, é a impossibilidade de se resgatar sua herança: “Aquele doce que ela faz/ Quem mais saberia fazê-lo?”. Em “Os Chamados”, poema citado a seguir, são apresentados os irmãos, cuja existência foi breve. As mortes precoces dos irmãos indicam a dificuldade que as famílias tinham para o atendimento à saúde dos filhos, devido, principalmente, ao distanciamento da capital no início do século XX. 130


Elias vive 8 dias. Sua biografia está em duas linhas paroquiais E já surge Lincoln chamado a viver3 meses e 23 dias. Antonio resiste 1 ano, 5 meses, 3 dias. João de Deus: 2 anos, 9 dias. Vem Silvio: 4 meses e 3 dias. E vem Olavo: 1 ano e 17. Geraldo vive uma eternidade: 3 anos, 5 dias. Flávia não vai além de 27. É tempo de parar e chorar. Os outros seis, que deus os vai poupando, acenando que esperem — para quê? (ANDRADE, 2007, p.952)

O poema “Os Chamados” tem uma estrutura de apenas uma estrofe organizada por versos curtos e livres. O sujeito poético traz ao presente amemória das mortes precoces dos irmãos e irmãs. Nos últimos versos, diz sobre os irmãos vivos, “relembra os irmãos que, malnascidos, se apagaram, e cita o nome de um por um” (SANT’ANNA, 1992, p. 187) O adjetivo “malnascidos”, usado pelo crítico, nos remete aos acontecimentos muito comuns ligados à mortalidade das crianças da família. Sant’anna (1992) nos diz que “o tema morte é uma constante na obra drummondiana” (SANT’ANNA, 1992, p. 187). A viagem lírica é a metáfora da própria vida do sujeito que escreve, e ele tem consciência desse percurso. Ao presentificar a morte dos familiares em seus poemas em Boitempo, o sujeito poético rumina seu próprio fim, como é o caso do poema citado. Nele, os verbos “viver” e “resistir” evidenciam a lembrança no momento da escrita,a qual se vale da fragmentação e da dissipação do tempo para dizer sobre a própria voz poética. Esses verbos expressam também o exercício da escrita da memória dos familiares como forma de resistência de manter ativo o inventariado familiar. E, dentro desse espaço, o sujeito poético percebe que “a própria morte é um ato intransferível” (SANT’ANNA, 1992, p. 188), tal como o eu lírico se expressou em outros poemas. Essas lembranças, além de representarem perdas dos entes próximos, representam também a dor desse rompimento, percebida nos versos “É tempo de parar/e chorar” (DRUMMOND, 2007, p. 958). Segundo Oliveira (2003), em Boitempo, o poeta debruça-se sobre as eras passadas, a fim de retirar delas, como de um alimento, a substância a ser trabalhada pela memória (OLIVEIRA, 2003, p. 109-117). Neste sentido, entende-se também que, já na sua maturidade, o sujeito poético, ao retornar a esses espaços familiares, a esses espaços e tempos, encontra a sua essência e as suas raízes. Para juntar esses cacos de louça, decide colecionar cacos de louça quebrada há muito tempo. Cacos novos não servem. Brancos também não. Têm de ser coloridos e vetustos, desenterrados — faço questão — da horta.

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(ANDRADE, 2007, p. 974)

O gauche transforma-se em “colecionador de cacos/coloridos e vetustos,/desenterrados da horta” da Casa. Isso permite compreender a importância da articulação memória-família no espaço da escrita poética autobiográfica, é por intermédio dessa articulação que o sujeito poético vai se percebendo e se constituindo sangue dos “Andrades” e dos “Drummond”.

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Referências ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia Completa: Conforme as disposições do autor. 1ª Edição. Rio de Janeiro:Editora Nova Fronteira, 2007. BENVENISTE, Émile. Problema de linguística gera I. Trad. Maria da Glória Novak e Luiza Neri. Campinas/SP: Pontes Editores, 2005. CANDIDO, Antonio. Poesia e ficção na autobiografia. In: ______. A Educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. p. 51-69. CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Estudos de Teoria e História Literária. 13ª ed. Rio de Janeiro:Editora Ouro Azul, 2004. CANDIDO, Antonio. Vários Escritos.5ª ed.Rio de Janeiro:Editora Ouro Azul, 2011. MARTINS, Jorge Manoel Venâncio. A poética da memória em Carlos Drummond de Andrade:o espaço da escrita e a presença da família. BH. 2017. 112 f. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de PósGraduação em Letras. OLIVEIRA, Silvana Maria Pessoa de. Réquiem para um sujeito: a escrita da memória em Boitempo, de Carlos Drummond de Andrade. (Dissertação Mestrado em Letras). Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, 1991. 123 f. OLIVEIRA, Silvana Maria Pessoa de. Casas de memória e escrita na poesia de Carlos Drummond de Andrade.SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 6, n. 12, p. 109-117, 1º sem. 2003. SANT’ANNA, Affonso Romando de. Drummond: o gauche no tempo. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1992. SANTIAGO, Silviano. Carlos Drummond de Andrade. Org. e Coord. Affonso Ávila.Petrópolis/RJ:Ed. Vozes, 1976. (Col. Poetas Modernos do Brasil/4) VILLAÇA, Alcides. A Poética da Memória. In: _______. Passos de Drummond. 1ª ed. SP:Cosacnaify, 2006

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REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA DOCENTE NO ENSINO SUPERIOR: EXPERIÊNCIAS NO ENSINO DE LITERATURA Giovana Berbert Lucas63

RESUMO: A prática docente no Ensino Superior, por vezes, tem sido preterida para dar lugar à formação do pesquisador, desvinculando o ensino da pesquisa, que deveriam andar juntos. Considerando esta situação comum às Universidades brasileiras, este trabalho busca trazer reflexões por meio de revisão bibliográfica e de entrevistas com quatro professores que atuam há mais de dez anos no Ensino Superior, trazendo ao leitor considerações e experiências acerca do fazer docente, levantando outros questionamentos e problemáticas que envolvem o ensino de Literatura nos mais variados níveis educacionais. PALAVRAS-CHAVE: Prática Pedagógica; Ensino Superior; Reflexão crítica da prática docente; Ensino de Literatura; Experiência. ABSTRACT: The teaching practice is often forgotten in favor of researching at universities, unlinking teaching from research, which should be treated as complementary. Considering this to be a common practice at Brazilian Universities, this paper aims to understand its causes, through a review in the available literature and interviews with four professors with careers of more than ten years each. These interviews brings considerations and experiences in the teaching, raising new questionings and problems implicating the teaching of Literature in the many educational levels. KEY WORDS: Pedagogical Practice; Higher Education; Critic reflection of teaching; Literature teaching; Experience. 1. Considerações Iniciais Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade. (Pedagogia da Autonomia, Paulo Freire, 1996)

A grande maioria dos docentes que atuam no Ensino Superior, nas diversas áreas do saber, são bacharéis e nunca participaram de uma formação pedagógica para atuar dentro do contexto das universidades e faculdades (JUNGES & BEHRENS, 2015). Mesmo os professores formados em licenciatura, quando Mestranda em Estudos Literários do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Viçosa. 63

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adentram na universidade acabam deixando de lado a formação docente e se dedicam à pesquisa, afinal, a própria Universidade desvaloriza o professor, “considerando quase sempre o ensino como sua função menor, em relação a uma supervalorização do que chama (mas nem sempre é) investigação” (LEITE, 1979, p. 150). Esse prestígio pela pesquisa vem não apenas da valorização dado pela Universidade, mas do próprio professor, que se perde no conceito da “investigação”, e esta acaba por o conduzir não ao conhecimento, “mas à simples promoção pessoal dos ‘investigadores’ e à carreira desenfreada, às publicações que engordam currículos” (ibidem, p. 151). Essa situação é um tanto desanimadora, considerando que estas atividades deveriam andar juntas, afinal, o ensino alimenta a pesquisa, e vice-versa. Como a pesquisa tem desfrutado de um lugar privilegiado nas Universidades e Faculdades, a docência e a reflexão sobre a prática pedagógica são desconsideradas, muitas vezes na própria graduação do futuro professor, até mesmo em cursos de Licenciatura, dando-se importância apenas a experiências nos níveis Fundamental e Médio. Segundo Oliveira e Valente (2009, p. 1), “o professor universitário aprende a sê-lo mediante um processo de socialização em parte intuitiva, autodidata ou seguindo a rotina dos ‘outros’”. Dessa forma, não há discussão, não há preparação ou reflexão sobre a docência. Como consequência, os professores realizam uma espécie de “transposição didática dos conteúdos específicos. Sem embasamento que lhes permita optar por metodologias inovadoras, o mais comum é reproduzirem métodos e técnicas de ensino a que foram expostos quando estudantes” (MAZANATTI, 2007, p. 251). A maioria dos professores relaciona a prática pedagógica com a experiência acumulada ao longo dos anos em sala de aula, acreditando que quanto mais tempo possuem nesse ambiente, mais prática docente terá. Mas, é preciso ressaltar que “se sua prática não é uma prática refletida, observada, continuamente revista a partir dos interesses dos alunos, durante os anos letivos podem ser apenas uma repetição de ações e acúmulo de tempo que serve simplesmente para a progressão na carreira” (JUNGES & BEHRENS, 2015, p. 291). Paulo Freire também ressalta em Pedagogia da Autonomia, acerca da importância da reflexão no ensino, desvinculando-o apenas da experiência: A prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer. O saber que a prática docente espontânea ou quase espontânea, “desarmada”, indiscutivelmente produz é um saber ingênuo, um saber de experiência feito, a que falta a rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito. Este não é o saber que a rigorosidade do pesar certo procura. [...] Por isso é que, na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. (FREIRE, 1996, s.p., grifo nosso)

Portanto, a reflexão sobre a prática docente encerra em si a essencialidade do ensinar, não sendo eficaz apenas a espontaneidade do professor, que age conforme sua intuição ou apenas baseado em suas experiências educacionais que não passaram pela autocrítica. 135


Quando o professor reflete sobre sua docência, ele pode desta forma, “alterar suas práticas quando são capazes de refletir sobre si e sobre sua formação” (CUNHA, 2006, p. 259). Essa alteração das práticas tem sido valiosa no atual momento da Educação Brasileira, que passa, principalmente no âmbito das Universidades, por um processo de democratização, que nunca deve ser postulado como “massificação”, como há quem diga, de uma Universidade de elite, conservadora e dona de um “alto padrão” (LEITE, 1979). Além disso, lidamos com a diversidade dos alunos, a renovação constante do paradigma de ciência e de educação, que nos exigem o conhecimento não somente do conteúdo, mas do contexto no qual se ensina, a quem se ensina, como se ensina e do próprio reconhecimento de si mesmo do professor como pessoa e profissional (JUNGES & BEHRENS, 2015). Neste tipo de Universidade, a aula de transposição de conteúdo ou no estilo conferência não cabe mais. Conforme Ligia Chiappini Leite (1979, p. 163), a fala do professor universitário deve ser “parente da fala mansa e bela dos contadores de história”, sendo ele “o último tutor, a última segurança diante das solidões da vida em que cada um tem que assumir as suas próprias responsabilidades” (GUSDORF apud LEITE, 1979, p. 163). Ou seja, o professor universitário, principalmente aquele que atua em curso de licenciatura, tem o importante papel de não apenas compartilhar conhecimentos sobre a área em si, mas, principalmente de estabelecer o espaço de reflexão sobre os objetivos educacionais e os fundamentos pedagógicos de ensino-aprendizagem, considerando todos os elementos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. Com isso, não procuramos minimizar a prática docente de professores que atuam no Ensino Fundamental e Médio, mas reafirmar a importância da formação e reflexão docente dos professores no Ensino Superior, pois são eles que formam os professores que atuam no Ensino Básico e no próprio Ensino Superior. É neste espaço que todo o processo educacional começa, e não termina, como o senso comum postula, muitas vezes. Partindo da importância de uma prática docente reflexiva, este trabalho traz o diálogo com quatro professores, que atuam há mais de 10 anos no Ensino Superior, lecionando aulas de Literatura para cursos de Licenciatura, através de uma entrevista semi-estruturada. Buscamos compreender como se deu a formação inicial de cada um e quais são os materiais e métodos que eles utilizam, desde a preparação de aulas até a avaliação. Com isso, não objetivamos, de forma alguma, apresentar um modelo a outros professores, mas levantar as principais questões e problemáticas na prática docente do Ensino Superior por meio dos relatos de docentes, para que outros professores e futuros professores possam refletir acerca de sua própria prática, reconstruindo-a constantemente, além de incluir valores sociais e éticos, pois estes preparam futuros profissionais, cidadãos que atuam na sociedade para transformá-la (JUNGES & BEHRENS, 2015). Acreditamos que seja necessário e valioso criar este espaço de relato de experiências e de uma breve revisão bibliográfica sobre o assunto, pois existem diversas dúvidas que assolam o professor em formação ou até mesmo o já formado e atuante. Gauthier Clermont (1997 apud RAMALHO, 2000) afirma que para muitos o ensino é uma atividade banal que exige apenas talento, domínio do conteúdo, bom senso, seguir a intuição e experiência. Entretanto isso não é verdade e precisa ser descontruído, ressaltando a importância de alguns fatores, como por exemplo: a articulação entre teoria e prática, a partir de situações do 136


cotidiano; o aprendizado advindo das experiências dos outros professores, como uma troca de saberes; a valorização do trabalho em equipe; e o incentivo à visibilidade social do trabalho, tendo uma voz que comunica com a sociedade (NÓVOA, 2009). Dentro do curso de Letras, estas discussões tornam-se ainda mais pertinentes, pois trabalhamos, na essência, com a formação de professores-leitores que formarão leitores críticos e ativos na sociedade. Ou seja, cabe ao professor e a Instituição desenvolver habilidades que tornem o professor capaz de cumprir seu papel formador de leitores críticos, não apenas de textos literários, mas de produtos culturais. Isso traz consigo diversos problemas, pois Se a universidade, geradora de conhecimento, encontra-se muitas vezes à margem das práticas que divulga, é evidente que chegue ao ensino fundamental tênue reflexo de pesquisas relevantes para a atuação do professor em sala de aula. [...] Mais que divulgação, percebe-se que para o profissional atuante na escola da Educação Básica, o conjunto de informações, as teorias de modo geral, parecem desarticuladas. (OLIVERA & VALENTE, 2009, p. 6)

Percebemos que há o que Paulo Freire (1996) coloca como uma das exigências do ensinar: a corporeificação das palavras pelo exemplo. Se a Universidade, como Instituição, não pratica o que divulga, seu discurso é vazio. É necessário que a prática inovadora comece dentro da própria instituição. Entretanto, como já pontuado no início deste texto, a Instituição valoriza muito mais a pesquisa do que o ensino, embora seja deste que se viva na Universidade. Leite traz à tona em seu artigo “Mestre em tempos do contra” a relação por vezes tensa entre Instituição e professor, que tem uma atitude “morna”, que corrompe o professor crítico, fechando-o em seu conservadorismo. Mas, ao invés de agir de maneira rebelde frente a ela, o professor deve reagir com o trabalho, permanecer ali e construir sua obra, usar os títulos e privilégios conquistados na Instituição em favor do interesse das aspirações populares. Leite (1979, p. 160) também critica alguns dos paradoxos dos professores de Letras, afirmando que: — o professor de letras paralisa, mesmo quando ensina que a literatura pode conduzir o leitor a conhecer e a agir. — o professor de letras, mesmo quando ensina teoricamente que a literatura pode ser fonte de prazer, mata o prazer pelo seu discurso asséptico, que distancia os alunos do texto literário. — o professor de letras, mesmo quando ensina que a literatura é criação verbal, abafa a expressão do aluno e contribui ao seu embrutecimento. — o professor de letras, mesmo quando ensina que a literatura é também ideologia, sacraliza-a, levando o aluno a sacralizá-la, pela relação passiva que este acaba tendo com os textos. (grifos nossos)

Logo, parece não haver coerência entre o discurso do professor de Literatura (em vários níveis) e a sua prática. Quando há reflexão e autocrítica, o professor compreender que é ensinar é um risco, que não existe um modelo estável e seguro a ser seguido. Ele compreende que ensinar requer formação continuada, diálogo, humildade, estudo, ética, paciência, entre tantas outras demandas. 137


Segundo Zabalza (2004), para que haja docência universitária que una ensino e aprendizagem é preciso: compreender a aprendizagem como processo contínuo em conteúdo e propósito de ensino, produzindo conhecimento e aprendizagem significativa; o repensar a disciplina a partir da perspectiva de a quem se ensina – tendo em vista o que é mais importante que se ensine ao estudante, o que útil, compreensível; e, por conseguinte, ampliar sua visão do que fazer com o conhecimento que possui, compreendendo que os alunos têm modos de perceber o mundo e vivências diferentes das suas. Todas as reflexões levantadas aqui são pertinentes à formação inicial e continuada dos docentes que atuam no processo formativo de outros professores. É importante reafirmar que não procuramos a formulação de uma “pedagogia do Ensino Superior”, principalmente por compreendermos que “a elaboração de uma pedagogia supõe de algum modo o problema resolvido” (GUSDORF apud LEITE, 1979, p. 148), e, ao quimericamente “resolver” a problemática da prática docente, estamos reduzindo-a a uma fórmula, desvalorizando a educação como essencial ao ser humano e inteiramente dependente dele e suas experiências e vivências com o mundo, que estão sempre em constante transformação. Considerando estes pontos até aqui destacados, apresentaremos as experiências dos quatro professores de Literatura no Ensino Superior, bem como seus questionamentos e seus ensinamentos, no que diz respeito à educação. Esperamos que outras reflexões e discussões possam frutificar a partir deste trabalho e estejamos todos em busca da constante formação. 2. Entrevistas e Discussões Para a realização deste estudo nos valemos da entrevista semiestruturada, que supõe questionamentos básicos acerca de determinado assunto. Durante a entrevista outros questionamentos podem surgir, além de dar mais liberdade ao entrevistado, fazendo emergir as informações de maneira mais livre, não estando condicionadas a alternativas padronizadas (MANZINI, 1990/1991). Selecionamos quatro professores que atuam no ensino de Literatura de línguas portuguesas em uma Instituição Federal de Ensino da Zona da Mata mineira. Três dos professores nos atenderam pessoalmente, gravamos a entrevista e realizamos a transcrição; apenas um deles, devido à agenda docente, respondeu a entrevista através do e-mail. Devido à modalidade acadêmica deste trabalho realizamos algumas adaptações nas entrevistas da modalidade oral para a escrita. As sete perguntas que elaboramos foram: 1. Durante sua formação (graduação/mestrado/doutorado) houve alguma disciplina acerca de metodologias de ensino de Literatura no Ensino Superior? Ou, durante as aulas surgiam discussões sobre isso? 2. Há algum material que norteia sua prática docente? 3. Como suas aulas são planejadas? (Ex: existe um material préestabelecido, organiza antes do semestre começar, organiza durante o semestre, muda sempre...) 4. Como você seleciona as obras literárias que serão trabalhadas em sala de aula? 5. Como você trabalha as obras em sala de aula? (Ex: explica o contexto do autor/obra, biografia do autor, movimento literário, linguagem, tema...) 138


6. Como você avalia o aprendizado dos alunos? (ex: prova, seminário, artigo científico...) 7. Há quanto tempo você leciona no Ensino Superior? Comentaremos sobre a motivação de cada pergunta no subtópico a ela destinado, comentando e refletindo acerca das respostas dos professores.

2.1 Pergunta 1 Durante sua formação (graduação/mestrado/doutorado) houve alguma disciplina acerca de metodologias de ensino de Literatura no Ensino Superior? Ou, durante as aulas surgiam discussões sobre isso? Para darmos início à nossa entrevista, achamos necessário retornar à formação docente dos professores, procurando compreender como ela se deu, se foi através de disciplinas na graduação ou na pós-graduação, ou se ela não ocorreu. Pois, o que temos percebido é a ausência de disciplinas e discussões que tragam como tema as práticas de ensino de Literatura, ressaltando se há ou não uma sistematização do ensino. Os quatro professores afirmaram que não houve, em nenhum momento da formação, uma disciplina sobre estratégias de ensino de Literatura para o Ensino Superior. O professor 1 afirmou que cursou a disciplina de Didática, no departamento de Educação, mas que foi bastante abrangente. O professor 1 e 2 afirmaram que a disciplina de Estágio se dedicava apenas ao Ensino Médio, e que no Mestrado houve o Estágio de Literatura no Ensino Superior, mas que ele não cursou pois já trabalhava em uma faculdade. Já o professor 3 ressaltou que não há diferenças entre o ensino de Literatura no nível Fundamental, Médio ou Superior, mas que trabalhou estratégias de ensino do texto literário, sem prática do ensino. Através desta primeira questão percebemos a ausência de disciplinas ou mesmo de discussões sobre a prática docente no Ensino Superior. O professor 3 afirmou que esta questão é secundária no ensino da Literatura. Entretanto, acreditamos ser necessário que o professor possa experimentar ou estar ciente dos desafios na formação de professores. 2.2. Pergunta 2 Há algum material que norteia sua prática docente? Essa pergunta foi incentivada pela necessidade de conhecer acerca da formação docente de cada professor, ou seja, gostaríamos de conhecer o material, para que possamos divulgá-lo e pesquisá-lo. Entretanto, os quatro professores afirmaram que não existe um material específico que norteia a prática, mas vários textos da época de sua formação. O professor 1 se baseia nos modelos deixados pelos professores e em alguns livros, didáticos e de história da Literatura, que trazem a abordagem histórica e depois abordam os autores. O professor 2 realiza um mapeamento do que existe na sua área de estudo e busca no próprio gosto pessoal os textos teóricos, históricos e literários para trabalhar em sala, sempre realizando um recorte devido à extensa bibliografia que sua área possui. Esse professor ressaltou a importância de buscar textos histórico para embasar as obras, além de pontuar que a necessidade vai 139


surgindo conforme a preparação da aula. Já o professor 3 parte de muitos textos literários e usa como base teórica textos da Estética da Recepção e da Sociologia da Literatura, partindo sempre da perspectiva do aluno e de suas experiências com o texto literário. Segundo ele: A estética da recepção vai exatamente trabalhar a perspectiva do leitor em formação e como a interação do leitor com o texto faz com que ele aprenda estratégias de leitura, faz com que ele comece a ter maldade com a própria estética da linguagem literária. E a sociologia da leitura vai trabalhar uma redefinição de conceitos, inclusive do que é literatura, ampliando o campo de atuação e o campo de estudo da literatura que não fica apenas restrita aos clássicos, aqueles que historicamente ou academicamente estudamos. Essas duas vertentes teóricas vão dar os princípios para refletirmos sobre a literatura dentro da sala de aula, levando em consideração o aluno, uma escola que se chama democrática, com alunos ecléticos, entendendo a formação prévia cultural desses alunos, para que possamos dialogar com eles. (Texto adaptado)

Por fim, o professor 4 não se baseia em nenhum texto específico, mas narra que, na época da graduação, recebia diversos texto fotocopiados que possuíam marcas de leitura de seus professores, passando a utilizá-las como ferramentas de leitura. Além disso, ele afirma buscar, por conta própria, novas metodologias, apesar de pouco aplicáveis em nosso contexto, segundo ele: mesmo buscando, por minha conta e risco, informações/teorias sobre novas metodologias, muitas delas passam ao largo da realidade brasileira e latinoamericana... Mas não posso deixar de levar em consideração a minha experiência e compará-la com a experiência dos estudantes que frequentam as disciplinas que leciono. Ter em mente as minhas dificuldades do passado como estudante, sempre tem colaborado para compreender e buscar soluções para superar os obstáculos postos no presente...

É interessante notar que este professor usa sua própria experiência como material que norteia sua prática docente, pois, ao recordar suas próprias dificuldades, tenta colaborar com o aprendizado dos alunos, superando as dificuldades que se apresentam. Logo, como não discussões, através deste questionamento pudemos conhecer como cada um desses quatro professores pensam a prática e refletem (ou não) sobre ela, o que nos faz pensar sobre nossa própria prática, ampliando nossos horizontes.

2.3. Pergunta 3 Como suas aulas são planejadas? (Ex: existe um material pré-estabelecido, organiza antes do semestre começar, organiza durante o semestre, muda sempre...) Todos os professores pontuaram a flexibilidade de seus planejamentos, sempre funcionando em função dos alunos e da garantia da aprendizagem. Esta informação parece ser um alívio, já que o ensino-aprendizagem é preconizado, ao invés de um programa rígido. 140


Às vezes uma aula que já foi programada, até que já foi lecionada em um ano anterior, seria encerrada em duas horas, mas em uma nova turma ela pode render mais duas aulas, em função de como os alunos reagem àquele conteúdo: alunos que já leram os livros trazem informações novas, por exemplo. Então a aula não é 100% preparada e executada. Ela funciona sempre em função dos alunos. (Professor 1, texto adaptado) Relendo certo texto eu posso perceber que talvez ele não agrade tanto, então posso trocar por outro também, não é? No ensino de literatura depende muito da disponibilidade de você trabalhar dialeticamente. Tem um plano préestabelecido, mas se for necessário mudar em função do aprendizado e do despertar do gosto pela leitura, pelo ensino no aluno, eu acho que realmente vale a pena mudar um pouco o percurso. (Professor 2, texto adaptado) Parto de uma prática que tem auxiliado muito: mesmo com o “esqueleto” do curso dado pelo programa, sempre tento fazer uma avaliação/sondagem da turma, logo no início do semestre, para poder estabelecer os parâmetros de trabalho, como por exemplo, “tentar descobrir” qual a “profundidade” dos textos literários e teóricos que a turma pode trabalhar e apreender; quais métodos avaliativos poderiam ser mais eficazes, etc... O professor tem que estar sempre atento às possibilidades de mudar seu planejamento inicial. Não vejo isso como obstáculo, pois pode evitar a “acomodação” de repetir sempre os mesmos conteúdos e métodos. (Professor 4)

Como percebemos por meio destes trechos, o planejamento da aula busca o diálogo com o aluno e busca o despertar pelo gosto da Literatura e da leitura, além da garantia do aprendizado, já que existem vários textos teóricos e literários com níveis de profundidade diferentes. Sobre isso o professor 3 afirma se basear sempre na centralização do texto literário, sendo ele o gerador de discussões, pensando em como aquele texto pode ampliar o repertório cultural do aluno. Para ele, o texto literário e a sala de aula funcionam como um “presente” para o aluno de Letras que não tem tempo para ler (o que ele acredita ser questionável). Porém, reafirma que o texto literário define a prática pedagógica. 2.4. Pergunta 4 Como você seleciona as obras literárias que serão trabalhadas em sala de aula? Este trabalho de seleção das obras literárias é imensamente interessante, pois, como sabemos, o Ensino Superior dá ao professor, na maioria das vezes, uma flexibilidade quanto à seleção. Mesmo que exista um plano de disciplina, como todos os professores pontuaram, ele é flexível e pode ser modificado. Portanto, julgamos que esse relato pode ser útil para que os atuais e futuros professores possam refletir acerca dessa escolha. O professor 1 trabalha com textos historiográficos da Literatura, abordando o contexto de produção e circulação e, logo em seguida, ou concomitantemente, com os textos literários. É interessante notar que na resposta deste professor, ele demonstrou traços de autocrítica, afirmando: Eu acho que me tornei melhor professora a cada ano, então eu não sei... Acho que antes eu era péssima. Hoje eu levo as obras e nós lemos passagens. Damos o ponto de partida para que o aluno queira ler o livro, porque só pedir para

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ler, não comentar, não ter um ritmo, não mostrar o ritmo da obra, às vezes, não é suficiente. Então, lemos um pouco em sala de aula, levantamos temas interessantes para os alunos pesquisarem e relacionarem à obra. (trecho adaptado)

Ou seja, houve reflexão e mudança de atitude, buscando o incentivo à leitura e a efetividade do ensino-aprendizagem, além de demonstrar ao aluno que o texto literário pode ser fonte de prazer, aproximando-o e não distanciando-o. O professor 2 disse partir do gosto pessoal, que vai desde o cânone até os livros que lê no dia a dia. E, partindo disso, busca textos que sejam essenciais ao aluno tanto para a disciplina quanto para sua formação como professor. Isto revela a busca pela utilidade do conteúdo e não apenas por uma obediência cega a algum programa de disciplina. O professor 3 novamente ressalta a centralidade do texto literário e a importância de que o aluno passe pela experiência da leitura do texto literário, do contato com o texto literário em si, demonstrando várias estratégias de leitura, explorando a linguagem e seus mecanismos. Só após esta experiência o professor amplia o texto para o contexto da obra, seu conteúdo, sua história e a biografia do autor. Acreditamos que o professor 3 tenha levantado, em sua entrevista, uma problemática relevante ao estudo de práticas docentes da Literatura; ele afirma: Se você começa uma aula (seja para aquele menino que está jogando a cadeira no professor) pelo texto literário e realmente começa a trabalhar com o texto, a ensinar, a orientar... porque está faltando sistematizar uma aula de Literatura, porque as pessoas acham que a aula de literatura é assim: oh... ah é tudo lindo... ah que bonito... ah poesia... Não existe sistematização.

Este depoimento dialoga com uma das motivações deste trabalho: incentivar a sistematização das aulas e da formação do professor de Literatura. Faz parte do senso comum que planejar uma aula, principalmente de Literatura, requer apenas intuição e improviso, ou seja: leve um poema, leia com os alunos, pergunte se gostou ou não e “enrole” até o final da aula. Isso se deve, em algum grau, à banalização da atividade docente e, infelizmente, à práticas de alguns “profissionais” espalhados pelas escolas. Isso pode retornar a várias questões, como a desvalorização salarial do professor, a ausência de um exame da competência para a complexa tarefa de ensinar, a superficialidade de alguns cursos de formação, entre inúmeros motivos que não são o foco deste estudo, mas que são necessários para a luta e conscientização da árdua e, por vezes ingrata, tarefa de ensinar. Por fim, o professor 4, que respondeu ás questões via e-mail, respondeu a questão quatro e cinco juntas. Portanto, a comentaremos no subtópico que se segue. 2.5. Pergunta 5 Como você trabalha as obras em sala de aula? (Ex: explica o contexto do autor/obra, biografia do autor, movimento literário, linguagem, tema...) O trabalho com as obras literárias pode suscitar diversas pesquisas, pois há uma gama de teorias literárias que podem ser combinadas ou trabalhadas separadamente, dando ao texto literário diversas leituras possíveis, ampliando sua 142


aplicabilidade e sua própria contemporaneidade. Relatar essas abordagens a partir das experiências pode ser muito frutífero, pois demonstra as possibilidades para a construção de nossa formação. Novamente o professor 1 reafirma que no início de sua prática docente levava aos alunos apenas as obras canônicas; atualmente combina os cânones aos autores que lê ao longo do tempo, acrescentando ao programa de cada disciplina o seu próprio repertório de leitura. Isso é muito importante no ensino de Literatura, já que o professor deve ter, primeiramente, o prazer pelo texto literário para que assim possa despertar essa mesma fascinação nos alunos. O professor 2 afirma que o tipo de trabalho depende da natureza do texto literário, assegurando que parte sempre da ideia de teorias da Literatura, e não apenas uma teoria. Além disso destaca a importância das abordagens estruturalistas e formalistas na análise do texto: Precisamos partir do princípio que a teoria da literatura não existe, o que existe são teorias da literatura, abordagens diferentes do texto literário. Quando se pensa no trabalho com o texto literário, obviamente um dos elementos que é fundamental na abordagem é aquela noção do dialogismo bakhtiniano: que o texto literário traz para sua interpretação uma série de possibilidades de abordagens. Ou seja, ele pode ser abordado pelo viés da política, das relações com a sociedade, das relações da religião, com a ideologia, com as questões de gênero, com as questões da exploração e da exclusão das minorias. Ele tem uma maleabilidade que favorece abordagens que podem ser múltiplas. Você pode abordar uma mesma obra de uma forma muito tradicional ou de uma forma estruturalista-formalista. Mas você pode também abordar esse mesmo livro numa perspectiva extremamente contemporânea através da crítica feminista, por exemplo. Eu acho que um elemento fundamental no ensino de literatura e que é uma coisa que nós perdemos nos últimos tempos, até muito em função dos estudos culturais e dos trabalhos como a pós-modernidade na literatura, foi exatamente o legado do estruturalismo e do formalismo. Ou seja, precisamos perceber que esse legado segmenta os elementos de estruturação da narrativa (narrador, tempo, espaço, personagem) ou mesmo na poesia (verso, som, ritmo, estrofe, poema, categoria do poema). São elementos extremamente valiosos ainda hoje para podermos construir uma interpretação do texto que seja realmente mais sólida, ou seja, apoiada tanto na relação de forma, quando na relação de conteúdo, porque nós temos análises exclusivamente conteudísticas, quando, na verdade, há essa necessidade de um investimento no trabalho com a forma, principalmente no trabalho com a poesia. (Professor 2, trecho adaptado)

O professor 3 salienta a importância de se partir da memória de leitura, ou seja, dos textos que o constituíram como leitor, passando desde a canção de ninar que ouvia da mãe, até livros que leu no Ensino Médio. Além disso, o professor só deve trabalhar em sala de aula com os textos que conhece profundamente, que fazem parte de sua vivência de leitura. Somente desta forma o professor conseguirá incorporar o texto como leitor e compartilhar com outros leitores (os alunos). O professor também orienta a não perguntar, logo de início, se o aluno 143


gostou ou não do texto, já ele só poderá emitir um juízo de valor após a leitura e a análise. O professor 4 traz a abordagem da Literatura Comparada para a sala de aula, tentando sempre relacionar os textos com outras artes e outros campos do conhecimento. Reproduzimos a resposta do professor, na qual ele une o questionamento quatro e o cinco em apenas um texto: A partir da avaliação/sondagem inicial da turma, tenho algumas “pistas” sobre quais textos abordar, se a ordem de apresentação de tais textos pode ser alterada, por exemplo... A dificuldade em relação à leitura de textos literários é uma espécie de “ponto passivo” entre estudantes. Quando se trata de poesia, o “pânico” é geral... Por isso, decidi “reunir” as questões 4 e 5 numa “única” resposta. Por exemplo, quando temos como conteúdo romances de escritores como Machado de Assis, às vezes é necessário passar pelos contos e crônicas do autor, inicialmente, pois assim, aproximamos leitores e o/a escritor(a). Tais textos são utilizados como possíveis “chaves de leitura” para a linguagem e ao conteúdo mais elaborado, presente nos romances de Machado. Além disso, vejo como fundamental, devido à minha ligação profunda c/ pesquisas, desde a graduação, sobre literatura e história (bem como outras áreas, tais como a psicologia, antropologia, música, teatro, artes plásticas, cinema) a prática de contextualizar obras, autore(a)s, buscar aproximá-las do nosso tempo, apontar a sua importância – tanto para a formação “humanista”, quanto para o estabelecimento do que é denominado “cânone literário”. Procuro sempre chamar atenção p/ as questões da linguagem, de como cada autor(a) percorre sua trajetória tanto de leitura quanto de criação artística.

Esse professor reafirma a importância do trabalho dialógico em sala de aula e aponta a formação humanística do aluno de Letras, que é tão importante e ao mesmo tempo deixada de lado na busca pela especialização em áreas específicas, sem se atentar que o professor é um “profissional do conhecimento” (MARCELO GARCÍA & VAILLANT apud JUNGLES & BEHRENS, 2015). 2.6. Pergunta 6 Como você avalia o aprendizado dos alunos? (ex: prova, seminário, artigo científico...) Consideramos que este é um dos pontos que mais gera conflito no ensino de Literatura, pois existe uma certa dificuldade na avaliação da aprendizagem do texto literário. Esta problemática está mais focada no termo “avaliação” do que na aprendizagem do texto literário em si. Portanto, acreditamos que as experiências possam colaborar para reflexões acerca desta prática. O professor 1 apresenta um modelo diversificado de avaliações, que vão desde da prova tradicional, ao trabalho e ao seminário, dependendo do tamanho da turma. Segundo ele, se a turma for pequena, prefere um seminário, no qual os alunos vão realizar a pesquisa e apresentar oralmente as discussões. O professor 2 realiza três avaliações pontuais, dividindo o conteúdo semestral entre as três. Ele frisa que prefere que as avaliações sejam em formato de trabalho, pois isto incentiva a pesquisa dos alunos, garantindo uma 144


aprendizagem que proporciona a autonomia, o que nem sempre ocorre em provas tradicionais. O professor 3 afirma que a avalição pertence ao campo institucional, mas que ele realizar a verificação de leitura através de perguntas superficiais sobre o enredo, personagens, tema, apenas para checar se houve a leitura. Em turmas maiores ele realiza três provas pontuais: a avaliação tradicional, com conteúdo teórico; um trabalho, que pode ser escrito ou oral, como a declamação de poesia, pois ele incentiva a oralidade e expressão dos alunos, afinal Literatura também é expressão; e um seminário, que também trabalha a oralidade e o trato com a escrita. O professor 4 trabalha com diversos métodos, de acordo com a necessidade do desenvolvimento de potencialidades da turma, como prova escrita, exercícios, seminários, artigo científico. Desta forma ele pretende colaborar na formação de capital cultural de seus alunos por meio da linguagem escrita e da expressão. 2.7. Pergunta 7 Há quanto tempo você leciona no ensino superior? Julgamos que este questionamento seja válido, embora não o relacionemos com a eficácia de sua prática pedagógica. Como pontuamos nas considerações iniciais, a experiência como professor não é correspondente a uma prática pedagógica reflexiva. Entretanto, o tempo como professor pode revelar, além da época de formação, por quais vivências já passou. O professor 1 possui 13 anos de docência no Ensino Superior, o professor 2 possui 18 anos, o professor 3 já atua há 10 anos e o professor 4 já leciona no Ensino Superior há 14 anos. 3. Considerações Finais Chegamos ao fim deste trabalho sem conclusões, pois acreditamos que na prática docente, em qualquer nível, não cabem certezas. Ensinar exige a consciência do inacabamento, e isso faz parte da experiência vital do ser humano e, quando tomamos consciência deste inacabamento podemos agir sobre ele, aprendendo através de nossas vivências com o outro (FREIRE, 1996). O que buscamos foi o levantamento de reflexões sobre a prática docente no Ensino Superior, demonstrando algumas das problemáticas que envolvem essa prática, como o discurso incoerente à prática; a necessidade de discussões (seja na graduação ou na pós-graduação) sobre estratégias de ensino de Literatura bem como de todas as vivências do docente no nível superior; a necessidade de um programa de formação continuada dentro da própria Universidade; a necessidade de reafirmar a grande responsabilidade da formação de professores e da constante autocrítica e reflexão; a junção entre pesquisa e ensino, na qual uma área alimenta a outra; a necessidade de uma formação humanística; o dever de se formar professores que leem o texto literário; a primordialidade do texto literário como central nas aulas. A valorização do ensino deve começar dentro das instituições formadoras dos professores, para que se possa ampliar para toda a sociedade. Enquanto o ensino e a prática docente não forem discutidos, refletidos, ensinados e praticados pelos próprios professores, ficaremos à mercê. 145


A mudança deve começar de dentro para fora, sempre preconizando o diálogo, o texto literário e o ensino-aprendizagem de nossos alunos. Esperamos que este trabalho expanda o horizonte da prática docente de muitos professores e aspirantes a professores, em todos os níveis de ensino, incentivando-os a arriscarse pedagogicamente em prol da aprendizagem e de uma formação humana e comprometida com as minorias e com as classes populares.

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4. Referências Bibliográficas CUNHA, Maria Isabel da. Docência na universidade, cultura e avaliação institucional: saberes silenciados em questão. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 32, p. 258-271, maio/ago. 2006. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. JUNGES, Kelen dos Santos; BEHRENS, Marilda Aparecida. Prática docente no Ensino Superior: a formação pedagógica como mobilizadora de mudança. Perspectiva, Florianópolis, v. 33, n. 1, 285-317, jan./abr. 2015. LEITE, Ligia Chiappini Morais. Mestre em tempo do contra. Língua e Literatura. Revista da FFLCH/USP. São Paulo, ano VIII, vol. 8, p. 147-164, 1979. MANZINI, E. J. A entrevista na pesquisa social. Didática, São Paulo, v. 26/27, p. 149-158, 1990/1991. MAZANATTI, Vera Lúcia. Ensino de literatura brasileira nos cursos de Letras e formação de professores: entre os discursos e a práticas. Londrina: UEL, 2007. (Tese de Doutorado). NÓVOA, António. Professores: imagens do futuro presente. Lisboa: Educa, 2009. OLIVEIRA, Vanderlice da Silva; VALENTE, Thiago Alves. Literatura e ensino: relações perigosas. Diálogo e interação, v. 1, 2009, p. 1-9. ZABALZA, Miguel. O ensino universitário: seu cenário e seus protagonistas. Porto Alegre: Artmed, 2004.

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LITERATURA E TECNOLOGIA NA SALA DE AULA: A MEDIAÇÃO DO PROFESSOR NA FORMAÇÃO DO LEITOR DE TEXTOS LITERÁRIOS Estela da Silva Leonardo64

RESUMO: Este trabalho reflete sobre o ensino de Literatura na perspectiva da formação do leitor de textos literários, relacionando a prática da leitura com o contexto digital e as tecnologias como instrumentos pedagógicos. Realizamos uma pesquisa qualitativa, a partir de entrevistas semiestruturadas com seis professores de Língua Portuguesa e Literatura da rede pública e particular da cidade de Viçosa (MG) e dez estudantes de licenciatura em Letras da Universidade Federal de Viçosa (MG). A participação destes, norteou o planejamento dos roteiros didáticos elaborados. Concluímos que é preciso fortalecer o uso das tecnologias nas práticas pedagógicas para garantir o amplo acesso à Literatura e formar alunos/leitores mais envolvidos com a arte. Essa pesquisa demonstrou também que o professor é o balizador da qualidade do ensino da Literatura, seja no uso da tecnologia, seja na prática social de leitura. PALAVRAS-CHAVE: Literatura, ensino, tecnologia, formação do leitor, professor. ABSTRACT: This work reflects on the teaching of Literature in the perspective of the formation of the reader of literary texts, relating the practice of reading with the digital context and the technologies as pedagogical instruments. We conducted a qualitative research, based on semistructured interviews with six Portuguese Language Teachers and Literature from the public and private network of the city of Viçosa (MG) and ten undergraduate students in Letters from the Universidade Federal de Viçosa (MG). The participation of these, guided the planning of the didactic scripts. We conclude that it is necessary to strengthen the use of technologies in pedagogical practices to guarantee broad access to Literature and to train students / readers more involved with art. This research also showed that the teacher is the guide to the quality of Literature teaching, whether in the use of technology or in social reading practice. KEYWORDS: Literature, teaching, technology, reader training, teacher.

I.

Introdução

A literatura, como prática de leitura de textos literários, está mais ligada à relação entre o texto e a forma como o leitor adentra nesse universo. Assim, pensar práticas e estratégias que estimulem a leitura literária na sala de aula pode partir de vários caminhos. Acreditamos, todavia, que utilizar as Tecnologias da Mestranda no curso de Letras - Universidade Federal de Viçosa. E-mail: estela.s.leonardo@gmail.com 64

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Informação e Comunicação (TICs)65como instrumentos da prática de leitura literária, dadas as características dos alunos atuais, pode favorecer um contato mais próximo entre o aluno e o texto. Deste modo, dentre esses vários caminhos, selecionamos um: o uso de tecnologias como instrumento de ensino da Literatura. Ao repensar o ensino de Literatura, a figura de destaque nessa pesquisa precisa ser do mediador da aprendizagem, pois será o professor o responsável por atribuir valor pedagógico às diferentes estratégias e também ferramentas propostas como instrumentos de ensino. O professor precisa “promover a aprendizagem do aluno para que este possa construir o conhecimento dentro de um ambiente que o desafie e o motive para a exploração, a reflexão, a depuração de ideias e a descoberta.” (ALMEIDA, 2000, p. 41). Se a leitura é uma prática existente, mesmo que de forma ainda limitada no contexto social dos alunos, é necessário pensar metodologias para o ensino da literatura que valorizem e propiciem ao aluno um contato mais profundo com o texto literário e que deem instrumentos para que o estudo e a prática de leitura desse texto ocorram de forma adequada. O ensino de literatura, e, por conseguinte, de leitura é então um direito básico, que a escola – enquanto espaço democrático – deve garantir ao aluno. Do mesmo modo, a respeito da inserção dos recursos midiáticos no ensino, é preciso dar atenção ao fato de que as tecnologias, seus recursos e suas ferramentas não têm significado pedagógico se forem tratadas de forma isolada e desconexa no ensino de quaisquer áreas do saber. É o professor quem atribui valor pedagógico a elas, tornando-as geradoras de situações de aprendizagem. (CARLINI; TARCIA, 2010, p. 47)

A elaboração de qualquer proposta não pode estar, então, dissociada do envolvimento e do planejamento do docente – visto que ele é o mediador do conhecimento – nem da escola como um todo, já que esse é o espaço de formação crítica. Ana Maria Machado (2001), ao discutir questões relevantes sobre a escola, leitura e literatura diz que “além dos prazeres sensoriais que compartimos com outras espécies, existe um prazer puramente humano, o de pensar, decifrar, argumentar, raciocinar, contestar, enfim: unir e confrontar ideias diversas” (MACHADO, 2001, p.123). A literatura, segundo a autora, “é uma das melhores maneiras de nos encaminhar a esse território de requintados prazeres. Uma democracia não é digna desse nome se não conseguir proporcionar a todos o acesso à leitura de literatura”. (MACHADO, 2001, p.123) Fizeram parte da pesquisa, dez estudantes de licenciatura em Letras com habilitação em Português e Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Federal de Viçosa (MG) e seis professores de Língua Portuguesa e Literatura do

As Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) podem ser entendidas como um conjunto de recursos tecnológicos que proporcionam um novo modo de se comunicar. (www.infojovem.org.br). Para Valente (2007), podemos entender TDIC como um conjunto de recursos tecnológicos (uns mais antigos que outros) integrados entre si, usados para compartilhar, distribuir e reunir informação, bem como para a comunicação de pessoas umas com as outras, individualmente ou em grupo. 65

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Ensino Fundamental II66, de três escolas públicas e uma escola privada, do município de Viçosa (MG). A escolha desses dois grupos – estudantes e professores em atuação – justifica-se, primeiro, porque interessou-nos saber se a formação dos estudantes do curso de Letras, futuros professores que lidarão diretamente com a geração digital, inclui no currículo acadêmico conteúdos e/ou experiências didáticas com o uso de TICs. Em segundo lugar, o outro lado da pesquisa, selecionou os professores que estão atuando na Educação Básica, exatamente para analisar se, no momento atual, o planejamento, a prática e o próprio conteúdo estão levando em consideração instrumentos tecnológicos que dispomos atualmente e, como isso está ou não possibilitando o processo de ensino-aprendizagem da leitura literária de forma mais eficaz. Quanto à metodologia, adotamos o princípio qualitativo, centrando-se na compreensão e explicação da dinâmica das relações de ensino-aprendizagem da leitura literária com as TICs. A coleta de dados, por sua vez, foi feita a partir de entrevistas semiestruturadas com os agentes da pesquisa. Adotamos um método próprio de análise dos relatos. Na sequência, fez-se um levantamento, a partir da utilização dos dados do último Censo Escolar da Educação Básica67, divulgado em 2015 e da pesquisa TICEducação 201468 para averiguar a logística e infraestrutura das escolas quanto ao uso de tecnologias para fins pedagógicos. II.

Formação do Leitor e Escola: Complexidades

A prática da leitura literária, pela possibilidade de construção e reconstrução de sentidos, precisa estar presente na escola. Segundo Lajolo (2001, p.19, grifo da autora) “a escola é a instituição que há mais tempo e com maior eficiência vem cumprindo o papel de avalista e de fiadora do que é literatura”. Logo, é no espaço escolar que o aluno irá expandir suas vivências literárias, será apresentado a textos literários diversos e será estimulado a construir e desconstruir conceitos mais clássicos do que se entende por “Grande Literatura”, como a própria Márcia Abreu (2006) pontua em Cultura Letrada. Cosson (2006), também discute a leitura literária em sala de aula. O autor diz que ela

Vale esclarecer que os sujeitos pesquisados formam dois grupos. O primeiro deles é composto por seis professores em atuação na rede pública e privada do município de Viçosa (MG). O segundo, por sua vez, é formado por estudantes de Licenciatura em Letras, com habilitação em Português e Literatura de Língua Portuguesa, de diversos períodos do curso de Letras da Universidade Federal de Viçosa (MG) e que, possuem experiência, mesmo que ainda curta, com a profissão docente. Seja através de projetos de ensino e extensão da própria universidade (PIBID, Tutoria etc.), seja por meio de contratação temporária na rede pública ou privada ou como professor particular. 67O Censo Escolar é um levantamento de informações referentes à Educação Básica, com a finalidade de subsidiar a elaboração de análises, diagnósticos, planejamento do sistema educacional do País e a definição e monitoramento das políticas públicas que promovam um ensino de qualidade para todos os brasileiros. 68 A pesquisa TIC Educação busca avaliar a infraestrutura das TIC em escolas públicas e privadas de áreas urbanas, a apropriação dessas nos processos educacionais. O levantamento é feito junto a alunos, professores de português e matemática do Ensino Fundamental e Médio, coordenadores pedagógicos e diretores. (Disponível em: http://cetic.br/pesquisa/educacao/. Acesso em: 13 ago. 2016. 66

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é constituída por um conjunto de sistemas. Trata-se, pois, de um polissistema, que compreende as várias manifestações literárias. Esses sistemas, em conjunto com o sistema canônico, precisam ser contemplados na escola, assim como as ligações que mantêm com outras artes e saberes. É essa a visão mais ampla da literatura que deve guiar o professor na seleção das obras (COSSON, 2006, p. 47).

Desse modo, se afirmamos que estamos ampliando nosso olhar sobre o que se entende por Literatura, estamos, portanto, designando um papel de destaque à escola, pois ela propicia a construção e reconstrução desse conceito continuamente. Lajolo (1982) sugere e descreve dois caminhos interessantes no que concerne a relação entre literatura e educação. Segundo a autora, em um desses caminhos a literatura pode ser vista como um instrumento pedagógico de transmissão dos valores sociais. “Isso acaba identificando literatura com preleções morais, cívicas e familiares” (LAJOLO, 1982, p.15). Assim, a identidade do texto e sua posição estética não são priorizadas. Em um segundo caminho, a literatura é vista como um todo. Ela passa a ser encarada como o instrumento, o objeto, o meio e o fim. Nesse segundo caso, a escola é vista como portadora de uma função importante: a de ser um espaço privilegiado para a formação leitora e também responsável pela sensibilização para o estético literário. O comprometimento da escola com a formação de leitores é, desse modo, determinante para o desenvolvimento escolar adequado e para a formação leitora do aluno. Nesse contexto, a escola – como espaço de aprendizagem – precisa encontrar meios para desenvolver a prática da leitura literária e oportunizar que ela se torne um hábito do estudante. Se pensarmos em quaisquer mudanças na educação, não se pode deixar de lado o perfil dos protagonistas no processo de ensino-aprendizagem: o professor e o aluno. Além disso, necessitamos de professores que também sejam leitores, pois se a relação do professor com o texto não tiver um significado, se ele não for um bom leitor, são grandes as chances de que ele seja um mau professor. E, à semelhança do que ocorre com ele, são igualmente grandes os riscos de que o texto não apresente significado nenhum para os alunos, mesmo que eles respondam satisfatoriamente a todas as questões propostas. (LAJOLO, 1982, p.53)

Conquanto, cremos ser complexo e quase impossível pensar mudanças sem conhecimento acerca do tema que se trabalha em sala de aula, sem ler e sem experienciar o que um texto literário pode carregar em suas linhas e entrelinhas. Além disso, o professor, como instância fundamental no processo de ensinoaprendizagem, precisa conhecer as potencialidades e contribuições de diferentes recursos midiáticos e planejar seu uso de acordo com as particularidades de seu contexto de sala de aula: turma, objetivos esperados, apoio institucional, infraestrutura escolar, etc. O domínio da tecnologia não diz e não faz tudo, se esses recursos tecnológicos não vierem atrelados a uma estratégia bem delineada pelo professor. Acreditamos, portanto, que esse perfil diferenciado entre professor e alunos exige novas propostas de ensino, no âmbito de todas as áreas de conhecimento e, em destaque, na valorização do conhecimento literário. Do mesmo modo, a utilização 151


adequada de quaisquer recursos e estratégias didáticas vão depender da articulação entre a escola, o professor e as metodologias que serão utilizadas para diferentes públicos. III.

Professores de Educação Básica e Estudantes de Licenciatura em Letras: Mediadores da Relação Entre o Uso das Tics e o Ensino de Literatura

Diante das mudanças do mundo contemporâneo, a formação do professor recebe cada vez mais demandas, destacando-se a importância de se analisar a questão da prática pedagógica e da formação inicial desse profissional. Desse modo, apresentamos neste trabalho alguns dos relatos dos participantes, agentes de nossa pesquisa. Em dado momento da entrevista foi perguntado aos estudantes de licenciatura em Letras, que já possuem algum tipo de experiência em sala de aula, se os alunos de Educação Básica usam recursos tecnológicos em seu cotidiano pessoal. Um dos participantes demarca que os recursos tecnológicos têm se popularizado cada vez mais entre seus alunos. Segundo ele “ainda não são todos, né?! Tem aqueles ainda que não tem esse acesso, mas a maioria tem”. (E5) Percebemos uma expectativa neste primeiro comentário quanto ao uso geral e futuro da tecnologia. O fato de nem todos os alunos, ter acesso aos instrumentos tecnológicos aventa a possibilidade por uma questão econômica, que ainda é considerável, principalmente na rede pública. Não nos cabe fazer constatações generalizadas, mas chamamos atenção para o fato de que os recursos tecnológicos estão, aos poucos, se tornando mais frequentes entre os alunos. Já o segundo depoimento demonstra um outro lado dessa popularização, na qual a tecnologia é utilizada de forma desregrada e que, em algumas situações, pode se tornar uma obsessão por parte do usuário: “A gente fica até preocupado, porque é uma coisa que faz parte da nossa realidade... né?! Mas eu acho assim que, acaba sendo uma coisa que virou obsessão”. [...] (E10) Os depoimentos desses participantes, além de confirmar a presença da tecnologia na vida, sinalizam para a confirmação de sua influência no comportamento, não só dos alunos, mas também de todos nós. A popularização da tecnologia tem trazido mudanças em nossos hábitos e relacionamentos pessoais, principalmente pelo fato de a internet móvel estar se tornando onipresente em nosso dia a dia. Desse modo, a fala do estudante de Letras é pertinente, pois é preciso estar atentos em relação aos aspectos positivos e negativos da utilização das TICs em diferentes contextos. Quanto às questões direcionadas aos professores de Educação Básica destacamos a relação entre os professores entrevistados e seus alunos virtualmente. Uma das respostas dadas por um dos professores, que comprova como ocorre esse contato virtual, explicita: [...] Eles procuram muita coisa, tipo: — Ah, professor, não consigo fazer essa pesquisa, dá uma dica e tal. Assim, meia noite. […] Eles mandam bastante coisa inbox. A gente tinha uns grupos no Wathsapp e tal, só que agora eu só meio que atendo inbox mesmo. (P6)

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Este relato expõe dois aspectos. Primeiramente, é evidenciado como a interação virtual entre alunos e professor ocorre: através do Facebook e do Wathsapp. Os alunos têm liberdade de enviar mensagens tanto para o Wathsapp quanto para o perfil do Facebook, espaços privados do professor. No entanto, esse relato evidencia também que os alunos acabam criando uma dependência deste contato, o que leva o professor a restringir os horários e os canais de comunicação sobre o conteúdo estudado. Algumas escolas já incentivam o contato virtual através da criação de páginas em redes sociais e blogs para divulgação institucional. Estas páginas funcionam como elo entre escola, os alunos e comunidade para o compartilhamento de informações e divulgação de projetos e eventos, mas não de conteúdos e dúvidas sobre as disciplinas. Um dos professores relata que [...] todos os eventos que acontecem, a gente tem um grupo, tem o face [...]. Além disso, tem um [...] grupo pedagógico que é publicado. Agora a supervisora fez um outro grupo e todas as informações são transmitidas através desse grupo né?!Todos os avisos, eventos. (P2)

Esse contato virtual tem, desse modo, seus prós e contras. Por um lado, a proximidade entre professor e aluno nas redes sociais oportuniza um estreitamento de relações que tem o potencial de permitir que o professor conheça seus alunos, descubra seus interesses e desenvolva a função de ser mais um parceiro do aluno do que um detentor do conhecimento. Isto é importante para nortear o planejamento do docente no aspecto de conhecimento do repertório do aluno, na perspectiva de valorizá-lo e ampliá-lo. Apesar de não ter como foco a discussão de conteúdos específicos das disciplinas, esses espaços virtuais ampliam o contato e dão visibilidade às ações escolares. Isso facilita a comunicação entre esses agentes, otimizando ainda o tempo de ambos. Por outro lado, há o perigo do uso inadequado de informações que são pessoais. Este é um risco, acreditamos, de todos que utilizam tecnologia para contato virtual. IV.

O Uso das Tics como Instrumentos Pedagógicos para a Prática de Leitura de Textos Literários

Nos últimos anos, nos acostumamos a navegar pela rede em busca de informações continuamente. No entanto, Cortella69, (2016) chama atenção para esse “navegar em rede”. Segundo ele, “há pessoas que dizem que navegam na internet. Não é verdade. Uma parte não navega, uma parte naufraga.”(CORTELLA, 2016) Ele completa que, para navegar você precisa ter clareza do seu percurso e do seu objetivo, para não ser soterrado por informações de múltiplas fontes, sem a seleção prévia. Como processar, então, todas as informações disponíveis na rede e torná-las geradoras de conhecimento? Para isso, é necessário aprender a fazer conexões, Entrevista denominada “O que importa é saber o que importa – a era da curadoria” e concedida ao Café Filósofico. 2016. Disponível em: <http://www.institutocpfl.org.br/cultura/2016/10/19/oque-importa-e-saber-o-que-importa-a-era-da-curadoria-com-mario-sergio-cortella-versao-tvcultura/>. Acesso em: 24 dez 2016. 69

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reelaborar conhecimentos e construir posicionamento crítico diante do fluxo intenso e disperso de dados na rede. É preciso também “um trabalho processual de interação, reflexão, discussão, crítica e ponderações que são mais facilmente conduzidos, quando partilhados com outras pessoas”. (KENSKI, 2008, p.12) O conhecimento, por sua vez, só se desenvolve “quando as diversas informações se interrelacionam mutuamente, criando uma rede de significações que se interiorizam”. (PELLICER, 1997, p.88) O processo de aprendizagem se torna mais complexo e, com isso, se exige mais do professor. A partir da adoção das tecnologias digitais dentro e fora das salas de aula, o processo de ensino e aprendizagem vem se tornando rapidamente um grande desafio para toda uma geração de professores que estudou e aprendeu a ensinar em uma era pré-digital. Quando foram formados, eles não contaram com recursos de interação e colaboração capazes de conectar mestres, estudantes e a sociedade civil de uma forma geral, independentemente de sua formação, cultura ou nação onde vivem. (ALLAN, 2015, p.27)

A tecnologia, sem dúvida, tem apresentado novos paradigmas e criado novos desafios em nosso cenário educacional. Estamos em um caminho de transição e aprendendo a lidar com as novas características e habilidades de nosso cenário atual. Para Kenski (2007) não são as tecnologias que vão revolucionar o ensino e, por extensão, a educação como um todo. Mas a maneira como esta tecnologia é utilizada para a mediação entre professores, alunos e a informação. Esta pode ser revolucionária, ou não. Os processos de interação e comunicação no ensino sempre dependeram muito mais das pessoas envolvidas no processo, do que das tecnologias utilizadas, sejam o livro, o giz ou o computador e as redes. (KENSKI, 2008, p.9)

Acreditamos, portanto, que o comportamento dos jovens tem se modificado e, aos poucos, evidenciado a necessidade de novas estratégias didáticas, que tomem como ponto de partida o desenvolvimento de potencialidades que a presença da tecnologia tem propiciado. Desse modo, adquirir essa sabedoria digital é essencial e o papel do professor é mais importante nesse processo. Antes de discutirmos e exemplificarmos, porém, a respeito desses recursos para fins pedagógicos, vale dizer que muitas redes, canais, aplicativos midiáticos e virtuais – como o Facebook, o Youtube, o WathsApp, entre outros – que, a priori, foram desenvolvidos para fins sociais podem e devem ser explorados na educação. Vide, por exemplo, os grupos formados pelos alunos no WathsApp para compartilhamento de conteúdos, imagens, fotos dos trabalhos agendados etc.; os grupos do Facebook e WathsApp da gestão pedagógica que tem, aos poucos, buscado meios mais acessíveis e rápidos para comunicações expressas e de interesse coletivo. Os alunos também têm buscado estratégias e ferramentas simples para editar conteúdo digitalmente. Os próprios programas vinculados ao pacote Office, da Microsoft (que inclui editor de texto, de planilhas, de apresentações e de bancos de dados) permitem a edição de um trabalho pelo próprio aluno para divulgação com a turma. 154


Como observado anteriormente, as redes sociais, tais como: Facebook, Instagram e Youtube, têm sido cada vez mais utilizadas para fins pedagógicos. A possibilidade de criar grupos; compartilhar imagens, vídeos e áudios; colaborar nos debates temáticos, produzindo textos coletivos; têm provocado mudanças tanto no âmbito social quanto no espaço acadêmico e profissional, e tem também ampliado as formas de construção do conhecimento, A respeito desses novos usos que a tecnologia proporciona Kenski (2007) aponta que as tecnologias abrem oportunidades que permitem enriquecer o ambiente de aprendizagem e apresenta-se como um meio de pensar e ver o mundo, utilizando-se de uma nova sensibilidade, através da imagem eletrônica, que envolve um pensar dinâmico, onde tempo, velocidade e movimento passam a ser os novos aliados no processo de aprendizagem (...). (KENSKI, 2007, p.45)

Isso permite que tanto professores quanto alunos possam desenvolver habilidades como a lógica, a criticidade e também a criatividade através da constante curiosidade, do trabalho colaborativo no desenvolvimento de projetos, bem como podem desenvolver também a sua responsabilidade e a sua coparticipação. (KENSKI, 2007) Do mesmo modo, Allan (2015) aponta que o surgimento de novos formatos pedagógicos, reforçados pelo ingresso de recursos tecnológicos na educação, é um catalisador de inovações em curso que tem levado a escola para muito além de suas salas de aula, de suas bibliotecas e de universos até então restritos às suas comunidades de professores e alunos. (ALLAN, 2015, p.25)

As potencialidades que a internet possui deveriam, então, ser aliadas do processo de ensino-aprendizagem. Para aprofundar a relação entre Literatura e Tecnologias, selecionamos alguns textos literários, buscando demonstrar de que forma as TICs podem funcionar como instrumentos pedagógicos para a prática da leitura de textos literários. Assim, o que nos propomos a fazer, mais do que apresentar recursos tecnológicos é criar uma sequência didática que possa ser aplicada a diferentes textos literários e contextos de sala de aula. No nosso entendimento, o ensino da Literatura pressupõe a prática da leitura de textos literários. Ainda que para se complementar exija outras etapas posteriores, o ensino da Literatura, para se efetivar com sucesso deve partir da leitura. A leitura, por sua vez, exige etapas distintas, complementares e sequenciais para que o texto seja abordado em todas as suas dimensões (forma e conteúdo). As estratégias apontadas nos roteiros didáticos estão centralizadas em ações como: ler em voz alta, pesquisar tanto palavras desconhecidas, como assuntos que suscitam curiosidade do leitor; fazer conexões com outros textos; buscar relação entre a leitura da palavra e a leitura de mundo, etc. Isto posto, apresentamos a seguir três roteiros didáticos, organizados a partir de três critérios considerados importantes e fundamentais para aprender a ler os textos literários. São eles: oralidade, intertextualidade e temática. Enfatizamos que esses roteiros didáticos podem ser trabalhados em níveis distintos de ensino, a depender do planejamento do docente. Além disso, embora sejam apresentados aqui separadamente, eles são complementares e devem ser 155


trabalhados simultaneamente. Acreditamos ainda que tais critérios configuram resposta para a questão muitas vezes desacreditada, sobre a possibilidade de se ensinar literatura. No nosso ponto de vista, estes critérios, são mensuráveis e precisam ser exercitados em sala de aula, como princípio da vivência com a literatura. Considerando que o exercício da leitura de textos literários é o foco dessas sequências didáticas por intermédio do uso das TICs, destacamos as ferramentas necessárias para sua aplicação. São elas: o suporte do computador com caixa de som, acesso à internet para pesquisa e celulares para pesquisa individual e em grupo na própria sala de aula, quando possível. i. Roteiro didático I- A oralidade na prática da leitura literária Elencamos a oralidade, entendida enquanto expressão oral. Sua importância decorre do fato de auxiliar o leitor a desenvolver a leitura em voz alta com ritmo, respeitando as pontuações e demais marcas do texto. Existem diversas possibilidades de se desenvolver a prática da leitura. A leitura expressiva, por sua vez, tem sido relegada no espaço escolar. Acreditamos que saber ler o texto em sua forma, facilita o entendimento do texto literário, por exemplo, quando um verso “emenda” no outro, seu sucessor; ou seja, quando a interpretação de um verso continua no verso seguinte, para que a ideia passada tenha sentido completo, ou quando a rima é marcada em uma estrofe. Para elucidar como isso pode ocorrer selecionamos os textos abaixo: 1. Fragmento de texto de Bernardo Soares, um dos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa, retirado do “Livro do desassossego”. Esse fragmento deu origem à canção Sonho Impossível de Chico Buarque, e foi interpretado pela cantora brasileira Maria Bethânia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lDXtskH298k. Acesso em: 20 de jan. 2017; 2. Conto Uma galinha de Clarice Lispector, importante escritora brasileira e interpretado pela atriz Aracy Balabanian. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=jkBg0_ZMj9k>. Acesso em: 20 de jan. 2017; 3. Poema Milionário do Sonho dramatizado pelo rapper brasileiro Emicida70 e a poeta, cantora e atriz brasileira Elisa Lucinda. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=C8arS5Nahsg>. Acesso em: 20 de fev. 2017; 4. Poema Guardar, do poeta e ensaísta brasileiro Antonio Cícero e lido e dramatizado pela atriz Fernanda Montenegro. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=G1ZpEjMqfLs>. Acesso em: 20 de fev. 2017. Leandro Roque de Oliveira, mais conhecido um rapper, repórter e produtor musical brasileiro. 70

pelo nome

artístico Emicida,

é

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Deparando-se com esses textos o professor pode partir de vários caminhos, mas principalmente precisa focar as suas ações na construção coletiva do sentido do texto literário com a turma a partir da oralidade e sonoridade das palavras lidas pelos famosos. A leitura expressiva de cada uma das interpretações deve ser enfatizada e discutida. No primeiro exemplo, as palavras com “s”, como espécie, sonhar, espetáculo, posso, sedas e salas trazem uma sonoridade que transmitem uma certa ideia de serenidade e tranquilidade ao leitor. A canção, por sua vez, prossegue com esse jogo de sons com o “s” e também com o “v” embarcando ritmos distintos para os dois sons e provocando sensações diversas no leitor. Já o segundo exemplo, permite que o leitor acompanhe os acontecimentos de uma cena inicialmente cotidiana, o almoço de domingo, até o desenrolar da fuga de uma galinha. As paradas enfáticas em determinados momentos do conto renovam a atenção do leitor que acompanha a leitura dramatizada. No trecho “O rapaz, porém, era um caçador adormecido (...)”, por exemplo, o leitor que poderia inicialmente duvidar do resgate da galinha, prevê o inevitável: a prisão e posterior morte do animal. Pouco mais à frente no conto, o leitor se depara com a descrição de uma galinha, que não é mais apenas o almoço de domingo, mas é alguém que, sozinha, luta pela vida: “Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava (...)”. Estes e outros trechos podem chamar atenção para o fato de que ora a galinha é descrita como um animal, ora é comparada a um ser humano. No terceiro exemplo, a expressão oral do poema de Elisa Lucinda pode ser o ponto de partida para se entender questões complexas do universo dos próprios alunos. Partindo de trechos contendo linguagem informal como “A rua é noiz, cumpadi” ou “Euzin, pobre curumim, rico, franzino e risonho, sou milionário do sonho” ou ainda “Vou tirar onda, peguei no rabo da palavra e fui com ela, peguei na cauda da estrela dela. A palavra abre portas, cê tem noção? É por isso que educação, você sabe, é a palavra-chave” é possível buscar a percepção de elementos textuais e sonoros que suscitam discussões profundas na sala de aula, como o jogo de palavras selecionado, Vide a palavra “milionário”, que é especialmente selecionada para qualificar um menino pobre. No quarto exemplo, a leitura dramatizada ajuda o leitor a compreender um pouco mais como uma obra de arte pode ser polissêmica, já que temos mais um exemplo de um texto literário que vai exigir do leitor atenção à sonoridade, à expressão e também a imaginação, nesse caso, em torno do significado de “guardar”. Acompanhando a leitura realizada por Fernanda Montenegro o professor pode chamar atenção para as diferentes ênfases dadas pela atriz, ao longo do poema, de acordo com os diferentes significados de “guardar” no decorrer do texto. ii. Roteiro didático II - A intertextualidade na prática da leitura literária A intertextualidade, segundo Koch (2008), é um recurso que se pode observar quando um texto se apropria de outro texto que já faz parte da memória popular, coletiva ou discursiva do leitor. Esse novo texto pode, então, utilizar esse recurso tanto para complementar ou reafirmar o sentido anterior, como para subvertê-lo.

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Dessa forma, selecionamos a intertextualidade como uma estratégia de leitura que não só mobiliza no leitor seu repertório de leitura, mas auxilia na interpretação e na capacidade mais abrangente de perceber o texto literário. A geração de leitores atual tem tido contato mais facilmente com os clássicos da Literatura Brasileira e da Literatura Universal a partir das releituras e adaptações que a intertextualidade permite. Neste ponto específico, o acesso imediato que a internet permite a informações potencializa, qualifica e facilita o exercício de busca destas redes intertextuais. Para elucidar como isso pode ocorrer selecionamos a música Mulher Nova, Bonita e Carinhosa71do cantor e compositor brasileiro Zé Ramalho, cuja obra em si já aborda o diálogo entre a MPB e a poesia. Essa composição é considerada uma releitura de grandes conflitos históricos nos quais a mulher tem papel imprescindível em seus desfechos. A mediação do professor deve levar em conta as várias maneiras de explorar a intertextualidade no texto a ser trabalhado. Apresentamos duas delas, apenas para ilustrar como o texto literário e a internet podem se relacionar. O texto, pode ser trabalhado em sua dimensão musical, apresentando uma outra abordagem de se trabalhar um texto literário. Nesse caso, diferenciamos o modo didático de apresentar um texto e atraímos os alunos para o novo formato. Em apenas quatro estrofes de música são contadas três histórias de significativas narrativas épicas. O recorte principal traz à tona a figura feminina como expoente máximo nos grandes conflitos, bem como seu papel social nos desdobramentos de cada acontecimento específico. Na primeira estrofe temos um resgate do episódio grego de Troia, cuja figura feminina central é Helena, mulher de Menelau. Na segunda estrofe, por sua vez, a história recontada é a de Alexandre, o Grande só dominado pela beleza atrativa de Roxana. Na última estrofe o episódio histórico recontado tem o sertão brasileiro como cenário. Nesta passagem mais uma vez a mulher é a única com o poder de dominar o herói. Utilizando as potencialidades da internet e das ferramentas digitais, citadas anteriormente neste capítulo, podemos acessar cada um desses acontecimentos, ampliar nosso conhecimento sobre eles e até instigar nos alunos o desejo pela leitura dos originais. Como exemplo de exercício de aprofundamento que um texto literário possibilita quando apenas faz menção a um termo ou personagem de outro texto, selecionamos o conto “A cartomante” do escritor brasileiro Machado de Assis. Essa narrativa é um conto curto, clássico da Literatura Brasileira. Logo no início do conto o leitor se depara com o trecho “HAMLET observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia”. Um leitor desavisado, mesmo percebendo as marcas no texto – o início em letras maiúsculas –, poderia continuar a leitura sem fazer qualquer relação entre esse intertexto e o sentido do conto como um todo. Cabe ao professor mediar a leitura dessa narrativa e promover a pesquisa sobre a origem da intertextualidade. Quem é Hamlet? Quem é Horácio? Além disso, o docente precisa, ele mesmo, construir um percurso de leitura com os alunos que os ajudem a perceber que o misticismo que perpassa o conto, já evidenciado nesse primeiro trecho, é quebrado para uma solução mais realista e lógica. Disponível em: <https://www.vagalume.com.br/ze-ramalho/mulher-nova-bonita-ecarinhosa.html>. Acesso em: 10 de nov. 2016. 71

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Nada mais eficaz para a formação cultural do aluno do que instigar a pesquisa por intermédio do uso do instrumento tecnológico. Muitos textos pedem do leitor essa estratégia. Deixar de fazer conexões com esses elementos intertextuais pode ocasionar uma compreensão empobrecida do texto literário e menosprezar a capacidade crítica que o texto literário pode suscitar. iii. Roteiro didático III - A temática na prática da leitura literária Além de fixar-se em aspectos formais, buscar intertextos, figuras de linguagem e recursos estilísticos, a prática da leitura de textos literários exige também e, principalmente, que o sentido do texto seja discutido e compreendido. Assim trabalhar a temática é muito relevante. Algumas delas, por exemplo, podem ser mais ou menos exploradas na sua complexidade e, desse modo, novamente a tecnologia é uma aliada no processo de construção do sentido do texto. Para exemplificar como isso pode ocorrer selecionamos o conto Apelo72. Texto publicado no livro Mistérios de Curitiba, de importante autor da Literatura Brasileira, Dalton Trevisan. No nível elementar, a leitura desse texto pode ser tematizada pela saudade que o narrador masculino sente saudades da esposa. Explorando uma leitura em níveis mais complexos, podemos discutir o lugar que a mulher ocupa neste conto, pois como percebe-se no final dessa narrativa, a saudade que o homem sente é de uma mulher/empregada que lhe faz falta para “costurar o botão da camisa”, “costurar a meia furada”, organizar o ambiente doméstico e cumprir o papel de socialização. (TREVISAN, 2004) Essa temática pode ser explorada em sala de aula para pesquisar notícias e entrevistas sobre empoderamento feminino, feminismo, gênero etc. A presença dessa temática em vários espaços midiáticos: debates mais calorosos nas redes sociais; grandes sites de notícias; entrevistas e depoimentos de figuras públicas da atualidade pode suscitar grandes debates em sala de aula com a mediação do professor. Esses pontos elencados, denominados neste trabalho, como roteiros didáticos de leitura, são determinantes para tornar a leitura de textos literários mais eficaz e formativa, porque estabelece conexões entre as informações, transformando-as, assim, em conhecimento. Esses roteiros têm grande potencial na prática de leitura de textos literários por diferentes razões. Primeiramente por permitir ao aluno o acesso aos vários formatos hipermidiáticos de um determinado texto. Em segundo lugar, por chamar atenção do aluno em relação ao texto literário a ser lido, quando utiliza-se, por exemplo, de interpretações dramatizadas e envolvimento de pessoas famosas da nossa cultura, em especial de figuras conhecidas pelo público jovem como rappers e MCs. Por último, pela possibilidade de leitura do texto em si e suas diversas conexões possíveis. Obviamente, para a eficácia desses roteiros, a infraestrutura básica elementar, precisa estar acessível, pois necessita-se de computador; caixa de som datashow; acesso à internet – ferramentas mínimas quando se pensa em ensino e tecnologia na escola, e, o que é comum hoje em dia, cada aluno ter um celular, Conto originalmente publicado em: TREVISAN, Dalton. Mistérios de Curitiba. 5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1996.Disponível em:<http://www.releituras.com/daltontrevisan_apelo.asp>. Acesso em: 11 nov. 2016. 72

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quando possível. Isto apropria de forma instrutiva o aparelho celular promovendo outras formas de uso do aparelho por parte do aluno e ameniza um ponto de vista, muito comum entre a comunidade escolar, de que o celular é uma ferramenta de dispersão em sala de aula. V. Considerações Finais Acreditamos que o exercício da leitura de textos literários requer práticas específicas e que devem ser sistematizadas e ensinadas como técnicas básicas. Contrapondo a tendência atual do ensino de Língua Portuguesa que, simplesmente, apresenta o texto literário sem orientação, pressupondo que o aluno já tem conhecimento e prática de leitura. Assim, problematizamos como o uso das TICs pode ser pensado atualmente e sinalizamos para algumas possibilidades de uso desses recursos nas práticas pedagógicas para aperfeiçoar o ensino da Literatura. Elaboramos, por conseguinte, três roteiros didáticos a partir dos critérios: oralidade, intertextualidade e temática. Ter acesso à Literatura e formar-se como leitor é um direito do aluno, como nos aponta Candido (1995). Lendo, nos posicionamos no mundo, construímos nossa consciência crítica e formamos nossa identidade. Com isso, o comprometimento da escola com a formação de leitores passa a ser determinante para uma formação escolar adequada. Traçamos, neste trabalho, um percurso da relação entre Escola e Literatura reafirmando a necessidade de que a prática da leitura de textos literários esteja presente na sala de aula desde os anos iniciais de formação do aluno. Acreditamos que formar leitores literários não é tarefa fácil. Do mesmo modo, vemos a necessidade emergente de encarar esse desafio, em busca de garantir que a leitura seja uma prática social e habitual dos alunos.

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VI. Referências Bibliográficas ABREU, Márcia. Cultura letrada: literatura e leitura. São Paulo: UNESP, 2006. (Paradidáticos, série Cultura, coordenação de José Luís C. T. Ceccantini). ALLAN, Luciana. Escola.com: Como as Novas Tecnologias Estão Transformando a Educação na Prática. São Paulo: Novo Século Editora, 2015. ALMEIDA, M. E. B. de. Informática e formação de professores. Coleção Informática para a mudança na Educação. ProInfo: Programa Nacional de Informática na Educação, Secretaria de Educação a Distância, Ministério da Educação. Brasília: USP/Estação Palavra, 2000. BARTHES, Roland. Aula. Trad. de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1978. BEM, Daiane Madalena de. Dificuldades de leitura: professor e aluno no ensino fundamental. 2009. 205 f. Monografia(Língua e Literatura com ênfase nos gêneros do discurso) - Universidade Do Extremo Sul Catarinense. Criciúma, 2009. Disponível em: <http://www.bib.unesc.net/biblioteca/sumario/00003D/00003D7E.pdf>. Acesso em 23 de maio de 2014. CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In: Ciência e cultura. São Paulo. USP, 1972. __________. O direito à Literatura. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995. Disponível em:<http://culturaemarxismo.files.wordpress.com/2011/10/candidoantonio-o-direito-c3a0-literatura-in-vc3a1rios-escritos.pdf>. Acesso em: 12 de mai. 2014. CARLINI, Alda Luiza; TARCIA, Rita Maria Lino. 20% a distância e agora? Orientações práticas para o uso de tecnologia de educação a distância no ensino presencial. São Paulo: Pearson Education do Brasil, 2010. COMPAGNON, A. O Demônio da Teoria: literatura e senso comum. Trad. Cleonice Paes. 2009. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 27 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. KENSKI, V. M. Educação e tecnologias: O novo ritmo da informação. Campinas: Papirus, 2007. _____________. Novos processos de interação e comunicação no ensino mediado pelas tecnologias. Cadernos Pedagogia Universitária. Universidade de São Paulo, 2008. LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. 1982, p.51-62. In: ZILBERMAN, Regina. (Org.) Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1982. LAJOLO,Marisa. Literatura: leitores e leitura. São Paulo: Moderna, 2001. MACHADO, Ana Maria. Entre vacas e gansos – escolas, leitura e literatura. In: MACHADO, Ana Maria. Texturas: sobre leituras e escritos.-Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. PELLICER, Esther Gispert. La Mod a tecnológica en la educación: peligros de un espejismo. In: Revista de Medios y Educación. N. 9,p. 81- 92, 1997. Disponível em: http://www.sav.us.es/pixelbit/pixelbit/articulos/n9/n9art/art97.html. SILVA, Ezequiel Theodoro da. De olhos abertos: reflexões sobre o desenvolvimento da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1991.

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LEITURA (S) DE CLARICE LISPECTOR: PÓS-ESTRUTURALISMO E TRANSNACIONALISMO EM ENSINO DE LITERATURA BRASILEIRA EM PORTUGUÊS LÍNGUA ADICIONAL (PLA). Melissa Rubio dos Santos73

RESUMO: Este artigo tem como objetivo apresentar uma proposta de ensino de Literatura Brasileira, a partir da Teoria Pós-estruturalista, tendo como corpus literário uma seleção de obras de Clarice Lispector (A Paixão Segundo G.H., O Mistério do Coelho Pensante e A Vida Íntima de Laura). A abordagem das obras de Clarice Lispector se dará a partir da noção de différance, do filósofo Jacques Derrida, uma vez que este elemento se destaca nos múltiplos jogos de linguagem no texto de Lispector. Para a escrita deste artigo foram traçados diálogos entre diferentes campos, tais como Ensino de Literatura Brasileira, Teoria da Literatura e Linguística Aplicada. O artigo tem como referenciais teóricos Earl E. Fitz (Sexuality and being in the poststrucuralist universe of Clarice Lispector. The differánce of desire), Jacques Derrida (Positions, Margens da Filosofia) e pesquisas em Linguística Aplicada de Ana Amália Alves da Silva e Neide Tomiko Takahashi. PALAVRAS-CHAVE: Ensino de Literatura Brasileira; Linguística Aplicada; Literatura Comparada; Pós-Estruturalismo; Clarice Lispector. ABSTRACT: This paper aims to present a proposal of teaching of Brazilian Literature based on Poststructuralist Theory, having as literary corpus a selection of works by Clarice Lispector (The Passion According to G.H. ,The Mystery of the Thinking Rabbit, The Intimate Life of Laura). The approach of Clarice Lispector's literary works will be based on the concept of différance by philosopher Jacques Derrida, due this element stands out through multiple games of language in the literary text of Clarice Lispector. For this article was established dialogues between different fields, such as Brazilian Literature and Learning , Literary Theory and Applied Linguistics. This paper has as theoretical references Earl E. Fitz (Sexuality and being in the poststructuralist universe of Clarice Lispector, The differánce of desire), Jacques Derrida (Positions, Margins of Philosophy),and research in Applied Linguistics of Anna Amalia Alves da Silva and Neide Tomiko Takahashi. KEY WORDS: Brazilian Literature and Learning; Applied Linguistics; Comparative Literature; Poststructuralism; Clarice Lispector.

Doutoranda em Teoria, Crítica e Comparatismo no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestra em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foi professora de Português Língua Adicional no Programa de Português para Estrangeiros (PPE) da UFRGS e no Centro Cultural Brasileiro/ Seoul National University (Coreia do Sul). 73

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1.Introdução O presente artigo tem como objetivo refletir sobre os diálogos possíveis entre o ensino de Literatura Brasileira e o transnacionalismo no âmbito do Ensino de Literatura para estudantes de cursos de Português Língua Adicional. Logo, ao considerar que essa prática de ensino se realiza em um universo multicultural, cabe traçar um plano de ensino de literatura e cultura brasileira em que se destacam termos nodais, tais como o Outro, a diversidade cultural e a multiplicidade de olhares e de leituras. Sendo assim, a seleção das obras literárias é um ponto importante a ser refletido. Para a proposta de ensino de Literatura Brasileira, no âmbito do Português Língua Adicional (PLA), escolhi a escritora Clarice Lispector devido ao seu papel de destaque na Literatura Brasileira Moderna, como também pelo seu reconhecimento no meio literário mundial através da tradução de suas obras para diversos idiomas74. As obras de Lispector que compõem o corpus literário da proposta de ensino de Literatura Brasileira em PLA são o romance A Paixão Segundo G.H. (1964) e, duas obras de literatura infantil, os contos O Mistério do Coelho Pensante (1967) e A Vida Íntima de Laura (1974). Portanto, este artigo pretende estabelecer aproximações e tecer diálogos entre diferentes campos— os Estudos Literários e os Estudos Linguísticos, ao explorar teóricos que conduzem a discussão sobre o Ensino de Literatura e Teoria da Literatura (Gayatri Spivak, Earl E. Fitz e Jacques Derrida) e Linguística Aplicada (Mikhail Bakhtin, A.Silva e N. Takahashi). 2. Literatura Comparada: diálogos entre textos e culturas. O ponto de partida para o artigo “Leitura(s) de Clarice Lispector: Pósestruturalismo e transnacionalismo em ensino de Literatura Brasileira em Português Língua Adicional (PLA)” será a discussão, ainda que seja apresentada de forma muito breve, de questões/elementos nodais da Teoria da Literatura Comparada, uma vez que este campo possibilita a reflexão acerca da prática de ensino de literatura. Sendo assim, como poderia ser definido o Comparatismo? Considero o Comparatismo como a praxis de aproximações, ressemantizações de fronteiras, seja nas diversas e híbridas textualidades (intertextualidade), seja em diálogos com outras disciplinas (interdisciplinaridade). Tal prática comparatista faz com que seja possível o estudo da literatura através de um olhar diferenciado e problematizador, o qual tem como foco o estudo das diferenças e a crítica da cultura. Neste sentido, destaco a afirmação de Susan Bassnett sobre a Literatura Comparada: “envolve o estudo de textos entre culturas, que ela é interdisciplinar e que está voltada para os padrões de relações entre as literaturas no tempo e no espaço” (1993, p. 1). Dessa forma, torna-se pertinente destacar as relações do tempo e do espaço que a leitura do Comparatismo proporciona ao objeto literário, da qual destacam-se o movimento e a mediação, sendo estes pontos norteadores da prática comparatista, de acordo com a teórica Tania Franco Carvalhal, uma vez que a prática comparatista se realiza “preservando sua natureza mediadora, 74

As primeiras obras traduzidas de Clarice Lispector datam da década de 1980. Traduções para diversas línguas, tais como inglês, espanhol (Argentina e Espanha), francês, alemão, japonês, chinês, coreano, catalão e basco.

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intermediária” (1991, p.10), numa leitura entre dois elementos ou mais, e que explora “nexos e relações entre eles” (1991, p.10). Além disso, destaco um traço importante da Literatura Comparada: o conceito-metáfora da ‘passagem’. A Literatura Comparada é uma disciplina que, através da passagem, realiza a sua prática. Sendo assim, Carvalhal chama atenção para o movimento presente na prática comparatista, uma vez que é traçado um “vaivém entre campos e textos, literários ou não; entre noções e seus avessos; entre o teórico e o imaginário” (2003, p.170). Ou seja, a Literatura Comparada não se caracteriza como uma disciplina estável e fechada, mas, pelo contrário, ela se caracteriza pelo deslizar, pelo contraste e também pela aproximação das diferenças, no movimento de leitura e ao estabelecer diálogos com outros textos, outras culturas e outros olhares. Portanto, o Comparatismo, ao trilhar esse movimento intrigante e vertiginoso, realiza travessias que possibilitam aproximações de obras pertencentes a culturas distintas, as quais apresentam outras vozes, outros olhares e, enfim, outras textualidades. Cabe destacar também que a Literatura Comparada tem como uma de suas principais características a flexibilidade de diálogo e a mobilidade no trânsito entre diversos textos, áreas e culturas. O Comparatismo possibilita um olhar diferenciado para o(s) objeto(s) texto(s), uma vez que esse método proporciona uma amplitude nas zonas de contato estabelecidas, além de possibilitar a construção de redes de diálogos entre diferentes campos do saber e da cultura. Ou seja, ao realizar um estudo no campo da Literatura Comparada, um campo de produção do novo por excelência, novos olhares são possíveis e, portanto, leituras descentralizadas e múltiplas surgem como inquietantes proposições de leitura da narrativa literária e da cultura. Portanto, a investigação de um objeto literário dentro do campo da Literatura Comparada se configura como um desafio marcadamente móvel e fugidio das certezas e das estabilidades do saber e da cultura hegemônicos, uma vez que, conforme declara a pesquisadora Rita T. Schmidt, “mutações críticas e teóricas das últimas décadas tornou o campo literário problemático por causa do abalo de certezas valorativas e das circunstâncias históricas e geopolíticas” (2011, p. 259). O Comparatismo coloca em cena a questão da diferença e a propõe como “espaço-chave” no estudo que envolve a comparação entre obras de culturas distintas, pelo fato de que através da leitura das diferenças, a Literatura Comparada constrói o mapeamento dos imaginários da literatura e, dessa forma, possibilita a (re)leitura ou compreensão da(s) cultura(s) ao tecer reflexões sobre o humano. Dessa forma, através desse movimento, pode-se afirmar que o Comparatismo desempenha papel mediador entre a cultura e os povos. Sendo, então, por intermédio de uma abordagem comparatista transversal, na qual a pesquisa em Literatura Comparada pode pensar a cultura de forma que não reproduza nem generalizações ou reducionismos. A que se propõe a Literatura Comparada nos dias de hoje? A teórica Gayatri Spivak aponta a importância da Literatura Comparada como a disciplina que problematiza a questão da diferença e, a partir disso, permite a possibilidade um novo ensino da literatura. Na obra Death of a Discipline, Gayatri Spivak aponta a urgência de uma nova Literatura Comparada, sendo esta “comprometida com a humanização do ensino via o treinamento da imaginação em direção à outridade”. A prática da Literatura Comparada, portanto, prioriza “o aprendizado e a interpretação da língua do outro” (p.113-114), para que seja efetivada a 165


compreeensão do Outro— de sua língua e de sua cultura. Segundo Spivak, o passo mais importante para compreender o texto de uma outra cultura é através do treinamento para uma leitura capaz de dis-figurar. Nas palavras da teórica, 'Disfigurar' seria a apreensão de sua lógica e traduzi-la de forma que se encontre a literalidade, logo, escapando de uniformizações e universalismos (p. 120). Outro elemento pertinente para a reflexão da prática de leitura e de ensino de literatura, apresentado por Spivak é a “Epifania da verdade”. Através desse elemento é possível colocar em destaque a multiplicidade dos sentidos do Outro (o texto e a cultura do Outro). A autora declara que esse movimento se realiza no contexto de sala de aula, pois nele os alunos podem assumir diferentes posições e promovem “o processo contínuo das mediações entre a realidade e o exercício da interpretação/tradução cultural (p.123). Somente será possível realizar o processo de ensino e aprendizagem de literatura através da compreensão do Outro, conforme está expresso nas palavras de Spivak: “To be human is to be intended toward the other” (2003, p. 73). Sendo assim, a(s) leitura(s) do texto literário, inevitavelmente, demanda a aproximação e o diálogo com o ‘Outro’. É importante considerar que o ensino de Português como Língua Adicional proporciona um campo fértil de trocas culturais devido aos sujeitos provenientes de diversas culturas que protagonizam o movimento de alteridade no estudo da Literatura Brasileira, como também da Língua Portuguesa e da Cultura Brasileira. E será nesse contexto de ensino de literatura, construído pela diversidade de culturas e de olhares, que o termo “Alteridade planetária”, criado por Gayatri Spivak, mostra-se como um aliado ao ensino de literatura e de cultura. A “Alteridade planetária” coloca em relevo a importância da humanização do aprendizado e a interpretação da língua estrangeira, uma vez que elas atuam como o diferenciador no processo de aprendizado de línguas estrangeiras, da literatura e da cultura. Tal movimento se experencia através de uma postura de outridade, ou seja, o movimento de conhecer a cultura e a língua do ‘Outro’. Sendo assim, será possível a consolidação de cidadanias planetárias, uma vez que, por intermédio da literatura, conhecemos a língua do outro e a sua cultura de forma que nos permita refletir, ao mesmo tempo, sobre a nossa própria língua e a cultura que a obra literária representa. 3. O ensino de Literatura Brasileira no contexto de aprendizagem de Português como Língua Adicional. Cabe apresentar, ainda que brevemente, como se configura o panorama de ensino de Literatura Brasileira nos cursos de Português Língua Adicional (PLA) no Brasil. De acordo com Ana Amália Alves da Silva, no artigo Notas sobre um curso de Literatura Brasileira para estrangeiros no Brasil, o ensino de Literatura Brasileira em disciplinas específicas ainda não está difundido nos cursos de PLA no ambiente acadêmico brasileiro. Nas palavras da pesquisadora (2016, p.1), o Ensino de Literatura Brasileira em PLA, […] embora possa ser uma prática frequente em cursos de graduação no exterior em que o Português e/ou o Brasil sejam o objeto de estudo, está ainda em seus primeiros passos dentro do território em nosso país. No Brasil, os poucos cursos de Literatura Brasileira para falantes de outras línguas começam a surgir no ensino do português como língua estrangeira. Ou seja,

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são em cursos de língua estrangeira que se darão os poucos, mas já interessantes casos de formação de turmas de literatura brasileira.

Apesar de sua presença ainda estar restrita a poucos cursos de Português Língua Adicional (PLA) no Brasil, deve ser destacado que o ensino de Literatura Brasileira, através da leitura e do estudo das obras literárias, permite estabelecer diferenciados diálogos com os alunos estrangeiros, uma vez que o texto literário caracteriza-se por mostrar toda a potencialidade da língua e da cultura brasileira. Além disso, os textos literários são exemplos de textos legítimos, ou seja, textos que representam o uso real da língua. Segundo Neide Tomiko Takahashi, em sua dissertação de Mestrado Textos literários no ensino de português- língua estrangeira (PLE) no Brasil, os textos literários protagonizam papel importante no processo de aprendizado da língua adicional, uma vez que os textos literários são “autênticos, em oposição à 'fabricados para o curso'” (2008, p. 12). Logo, sendo os textos literários um gênero discursivo75 que integra fatores culturais, eles são frequentemente “utilizados como instrumentos no processo de apropriação do discurso do outro” (2008, p. 12). Portanto, como deveria ser conduzida a prática de ensino de Português Língua Adicional? É importante que o ensino de literatura focalize a potencialidade da língua e da cultura, sendo os textos literários estudados pela sua riqueza de recursos linguísticos (lexical, sintático, semântico, etc), como também por serem os textos que instigam os diálogos culturais e as relações de Outridade. N. T. Takahashi (2008, p. 12-13) aponta para a importância da potencialidade dos textos literários para as aulas de Português Língua Adicional, uma vez que eles [...] tornam palpáveis as reflexões acerca da linguagem e trazem a veiculação da linguagem toda a sua capacidade potencial. No mais, como sugestão para materiais complementares, podem evitar a adoção excessiva de textos fabricados (artificiais em sua simulação de evocar efeitos do real) dos livros didáticos. Nessa concepção, verifica-se a relevância do uso de textos literários nas aulas de português como língua estrangeira e, consequentemente, nos materiais didáticos, pois eles trazem em sua linguagem os códigos da língua portuguesa à luz de um modelo imaginário que faz ver o funcionamento das configurações do homem e do mundo.

Entretanto, há um grande problema nas aulas Literatura Brasileira nos cursos de Português Língua Adicional: o uso de livros didáticos como guia. Ao analisar as atividades dos livros didáticos para cursos de PLA, a pesquisadora Takahashi (2008, p. 11-12) concluiu que a presença do texto literário é quase que fantasmática nos materiais didáticos disponíveis no Brasil, sendo o texto literário representado por um restrito grupo de gêneros literários: [...] Em geral, eles se reduzem a (poucos) textos curtos – na maioria crônicas e contos -, que tem a intenção de apresentar um perfil da cultura brasileira ao lado de letras de músicas, excertos de textos jornalísticos, publicitários ou, De acordo com Mikhail Bakhtin: “Os gêneros do discurso organizam o nosso discurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintáticas). Nós aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de gêneros e, quando ouvimos o discurso alheio já advinhamos o seu gênero pelas primeiras palavras, adivinhamos um determinado volume (isto é, uma extensão aproximada do conjunto do discurso), uma determinada construção composicional (...)” (1979, p. 283). 75

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mais raramente, de história. Isso inclui afirmar ainda que, no Brasil, os estudos sobre literatura, leitura e ensino literário em português também não foram suficientemente analisados e aprofundados em sua perspectiva didática de língua estrangeira

Diante dessa realidade, considero urgente a criação de novos materiais didáticos com o objetivo de explorar a Literatura Brasileira em sua diversidade de gêneros literários, para que, dessa forma, os alunos em processo de aquisição da língua portuguesa possam expandir seu universo da língua, a partir da reflexão linguística e das diversificadas performatividades na língua portuguesa. Takahashi (2008, p.19) também chama atenção para o papel diferencial que o texto literário exerce no processo de aprendizado de língua adicional: Dentro da matéria (obra) escrita, a leitura de textos literários assinala o que deve ser compreendido, e, dentro de sua imaterialidade, o que pode ser interpretado. Ambos atuando nesse mecanismo para não tornar a língua apenas um sistema abstrato de códigos e contribuindo para dar sentido à formação linguística em contexto.

Sendo assim, o texto literário atua como um diferencial objeto nas práticas pedagógicas na Linguística Aplicada, uma vez que ele viabiliza meios de construção da “consciência crítica da língua e da linguagem” (TAKAHASHI, 2008, p.19). 4. Sobre a autora Clarice Lispector Clarice Lispector (1920-1977) é uma das principais escritoras da Literatura Brasileira. A sua primeira obra publicada foi o romance Perto do Coração Selvagem (1943), obra que causou grande impacto no meio literário brasileiro. Nas obras76 de Lispector destacam-se os desafios lançados entre linguagem e o humano, especificamente tendo como foco a reflexão sobre a subjetividade e o feminino. A sua produção literária se caracteriza pela diversidade de gêneros pelos quais percorreu: romance, conto, crônica de jornal e literatura infantil. Os personagens das obras ficcionais de Clarice Lispector experenciam o conflito que surge a partir da(s) experiência(s) da subjetividade, os quais instigam o questionamento das normas sociais. Segundo Lawall, Sarah, et al, na obra The Norton Antholosgy of World Literature (Vol. F, The 20th Century) (2002. p. 2800), os personagens da autora […] are similarly open to mystery; they live in a plane of immediate experience and bodily sensations that has little to do with the daylight world, where everything is already named and placed within cognitive or social system. When these characters encounter a conflict between their own experience and social norms, a few try to reinvent their lives. Most do not change, and their Obras de Clarice Lispector: Romances: Perto do Coração Selvagem (1943), O Lustre (1946), A Cidade Sitiada (1949), A Maçã no Escuro (1961), A Paixão segundo G.H. (1964), Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres (1969), Água Viva (1973), Um Sopro de Vida - Pulsações (1978), A Hora da Estrela (1977). Contos: Alguns Contos (1952), Laços de Família (1960), A Legião Estrangeira (1964), Felicidade Clandestina (1971), A Imitação da Rosa (1973), A Via Crucis do Corpo (1974), Onde Estivestes de Noite (1974), A Bela e a Fera (1979). Literatura infantil: O Mistério do Coelho Pensante (1967), A Mulher que Matou os Peixes (1968), A Vida Íntima de Laura (1974), Quase de Verdade (1978), Como Nasceram as Estrelas (1987). 76

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example defamiliarizes, for the reader, the conventional patterns of everyday life. Lispector's protagonists are often women, and she readily explores the existence of those whose position on the margins of society suggest an alternative vision. A pivotal figure in modern Brazilian literature, she employs a simple vocabulary but an unusual syntax in Portuguese, and makes extend use of interior monologues to evoke the immediacy of subjective consciousness. Lispector is internationally know for her descriptions of psychological states of mind and for a language whose elliptical allusions suggest the power of unspokes circumstances in shaping human identity.

A respeito das obras de Clarice Lispector que compõem o corpus da proposta de ensino de Literatura Brasileira deste artigo, a seleção foi motivada pela temática e pela similar composição estrutural das obras. A seguir, apresento uma breve apresentação das obras A Paixão Segundo G.H., O Mistério do Coelho Pensante e A Vida Íntima de Laura. O romance A Paixão segundo G.H. (1964) tem como narradora e protagonista uma mulher nomeada pelas iniciais G.H.. Ela conta a sua experiência desestabilizadora que rompeu com um esperado ‘simples dia normal,’ pois, a partir de um acontecimento ela foi privada de sua antiga organização humana, já que a ela foi desvelada a própria liberdade através da linguagem. A obra A Paixão segundo G.H. encena instigantes jogos de linguagem, no qual deslizam os sentidos de ‘real, ‘saber’, ‘verdade’. Segundo Earl Fitz: “We could achieve a new level of awareness about language and its unique ability to determine our identities and to shape the ways We view the world about us? (2001, p.16). E será neste encenar de signos que Lispector nos proporciona espaço para refletir sobre o humano no romance A Paixão segundo G.H.. Consideravelmente pouco estudadas, as obras de literatura infantil de Clarice Lispector apresentam um curioso olhar sobre o sistema social, a liberdade e a existência. Inicio, então, apresentando a obra O Mistério do Coelho Pensante. Conto publicado em 1967, esta foi a primeira obra de Clarice Lispector para o público infantil. O protagonista da história é o coelho chamado Joãozinho. Um coelho que sempre estava mexendo rápido o seu nariz— o que poderia ser claramente interpretado pelo leitor que o coelho protagonista farejava comida, mas, pelo contrário, Joãozinho farejava constantemente nada menos do que ideias. E, após muito farejar ideias, o coelho decide abandonar a vida aparentemente confortável que tinha em sua gaiola e fugir para o mundo sem amarras. A partir de então, Joãozinho começa a se interessar pela liberdade e a repetir as suas fugas — no início o motivo era a falta de comida, entretanto, depois a busca pela liberdade se tornou um hábito do coelho Joãozinho, conforme declara o narrador “acontece que Joãozinho, tendo fugido algumas vezes, tomou gosto. E passou a fugir sem motivo nenhum: só mesmo por gosto”. Já no caso do conto A Vida Íntima de Laura (1974), a protagonista é Laura, uma galinha. Descrita pelo narrador como uma galinha de cor alaranjada, simples, simpática, burra e que acredita ser especial mesmo que não seja capaz de pensar: “Ela pensa que pensa. Mas em geral não pensa coisíssima alguma” (LISPECTOR, 2012, p.6). Embora o narrador tenha descrito Laura dessa forma, a galinha protagonista tem a convicção de que é uma galinha diferente e, portanto, não terá o mesmo destino das outras de sua espécie... Laura tem medo da morte, e, devido a isso, esta personagem mostra uma ruptura com o poder da palavra do narrador, assim como a ordem imposta à existência animal. Laura tem a convicção de que 169


está protegida pelo seu amigo habitante do planeta Júpiter, Xext, logo, ela acredita ser uma galinha imortal. 5. Lendo Clarice Lispector através da teoria Pós-Estruturalista Diante do contexto de ensino de Literatura Brasileira em PLA, coloco a seguinte pergunta: Como apresentar e propor aos alunos uma nova leitura de obras da Literatura Brasileira? Partindo da concepção Pós-Estruturalista, ao pensar a literatura e o ensino, a construção de uma unidade didática e/ou manual de Literatura Brasileira deve colocar em cena a questão de representação de poder e o descentramento do sujeito. Ou seja, conduzir a discussão a patir de elementos norteadores, tais como o descentramento, a alteridade e a diferença. Logo, destaco três pontos importantes para o processo: 1. Historiografia Literária; 2. A problemática questão do Cânone Literário; 3. As rupturas: Literatura e Gênero. A minha proposta de ensino de literatura tem como ponto de partida a discussão da metodologia de ensino de literatura baseada em Historiografias Literárias. Ao tomar como ponto de partida a representatividade das escritoras nas obras de Historiografia Literária, torna-se possível questionar a presença, a presença/ausência e a representatividade da autora Clarice Lispector nas obras historiográficas brasileiras. Diante disso, cabe problematizar as representações dos autores e das autoras na Historiografia. Se for apresentada ao aluno uma unidade didática baseada em uma das Historiografias Literárias que circulam no meio acadêmico do Brasil, esse ato irá nada mais do que reproduzir o silenciamento e o apagamento de escritoras. Logo, torna-se necessário apresentar aos alunos um novo olhar para a História da Literatura e, a partir dessse movimento provocar os alunos a questionarem sobre a problemática questão do cânone literário, além de estabelecer aberturas para as rupturas possíveis através do estudo da Literatura e da questão do gênero. Algumas perguntas podem ser colocadas em discussão, tais como: O que seria a formação do cânone? Quais são os valores que conduzem a formação do cânone? Quais critérios seriam empregados na seleção dos autores que irão compor uma obra de Historiografia Literária? Os autores representados nesta seleção representariam todos os ecritores e escritoras do período literário a que se refere? Quais seriam as obras e os(as) autores (as) excluídas e por quais motivos? Você já leu ou conhece alguma escritora representada na Historiografia Literária? Quais? Você conhece alguma escritora que esteja à margem da História da Literatura Nacional? Quais? Ao pensar uma proposta de ensino de leitura(s) de Clarice Lispector, antes de tudo, devo olhar para os jogos de linguagem que residem na tessitura dos textos da autora. Pensar leitura(s) de Clarice Lispector em seus sentidos múltiplos e deslizantes. Pensar uma proposta de ensino de literatura considerando os múltiplos jogos e a força da linguagem do romance A Paixão Segundo G.H. e dos contos de literatura infantil O Mistério do Coelho Pensante e A Vida Íntima de Laura, de Clarice Lispector. Diante da questão: Como apresentar o texto literário pós-estruturalista de Clarice Lispector para alunos que estão em processo de aprendizagem da língua portuguesa? Para responder esta questão tenho como aporte teórico as obras de Earl E.Fitz e Jacques Derrida. De acordo com Earl E. Fitz, no livro Sexuality and being in the poststrucuralist universe of Clarice Lispector. The différance of desire, as obras de Clarice Lispector exemplificam questões abordadas pela teoria Pós-Estruturalista 170


através do estilo e da estruturação dos romances, contos e crônicas. Destacam-se, portanto, na obra de Lispector, os jogos de linguagem e a escritura que colocam em cena o questionamento da existência humana, sendo estes importantes elementos para a teoria Pós-Estruturalista de Jacques Derrida. Segundo Earl E. Fitz (2001, p.2), o Pós-Estruturalismo promove questionamentos sobre […] the relashionship of language to human existence, about the nature of human existence, about the nature of human consciousness, and about political implications that derive from our desire for truth, certainty, and clarity of meaning in an unstable, ambiguous world

O que aproxima as obras A Paixão Segundo G.H., O Mistério do Coelho Pensante e A Vida Íntima de Laura? O ponto de convergência entre as obras de Clarice Lispector são as relações que todas as três obras estabelecem entre linguagem, subjetividade, organização social e poder. Para o desvelamento e a análise dessas relações nas leituras das obras, torna-se necessário trazer duas noções diferenciais para o estudo das obras de Lispector: a différance e o rastro. Ao abordar a noção de différance, o filósofo Jacques Derrida aponta a différance como “movimento pelo qual a língua ou qualquer código, qualquer esquema de reenvios em geral se constitui 'historicamente' como tecido de diferenças” (DERRIDA, 1991 p. 43). O filósofo (1991 p. 45) declara também que a différance impulsiona o movimento de significação através da presença e da ausência. Sendo então a différance que […] faz com que o movimento da significação não seja possível a não ser que cada elemento dito 'presente', que aparece sobre a cena da presença, se relacione com outra coisa que não ele mesmo, guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se já moldar pela marca da sua relação com o elemento futuro[...].

Dessa forma, uma vez que na leitura pela différance, o movimento de significação conduzirá aos deslizamentos entre siginificantes e significados. Estes deslizamentos, por sua vez, serão os responsáveis pela construção do jogo semântico da obra de Lispector. Diante desse movimento, o rastro atua como importante elemento a ser destacado. Nas palavras de Derrida, o rastro “não é uma presença, mas o simulacro de uma presença que se desloca, se transfere, se reenvia, ele não tem propriamente lugar, o apagamento pertence a sua estrutura (1991, p.45). Logo, será através da identificação e da reflexão dos jogos tecidos pela différance, pelos rastros, como também pelos deslizamentos entre siginificante e significado, que será possível tecer leituras das obras de Clarice Lispector para uma nova prática de ensino de Literatura. No romance A Paixão Segundo G.H, a narrativa explora a linguagem não somente como meio de expressão— das palavras em tessituras, mas também como a linguagem associada à existência humana. Nas palavras de Earl E. Fitz, “G.H. comes of sense, it not fully realize, that everything she 'sees' or even conceives of is inescapably from her perspective within the 'prision house of language', a perspective from which she can never escape” (2001, p. 8-9). E nas obras de literatura infantil O Mistério do Coelho Pensante e A Vida íntima de Laura, por trás de protagonistas não-humanos há um intenso jogo de linguagem que instiga à reflexão sobre as incertezas do poder do humano. Por um 171


lado, o coelho Joãozinho tem o desejo de liberdade e, por outro lado, a galinha Laura que deixa de ter medo da morte ao acreditar que se tornou imortal. No caso dessas duas obras, o poder está desestabilizado e posto em dúvida por ambos os personagens que se movem em direção à ruptura da ordem e do sentido dado pela normalidade. A respeito dos protagonistas dos contos de literatura infantil de Lispector, Earl E. Fitz aponta que “How profoundly they themselves undermine, decenter, and desacralize these same sctructures which are themselves revealed to be functions of language usage in which power and control are the primary goals” (2001, p. 125). Tal afirmação permite refletir sobre os efeitos que os protagonistas não humanos —o coelho Joãozinho e a galinha Laura— mobilizam na narrativa. Os personagens mostram que o poder somente será desestabilizado, se houver deslizamento entre os significados e os significantes. E será através dos desvios na linguagem, aqueles que podem causar o descentramento e o abalo das certezas e, dessa forma, dersorganizar o conhecimento pré-estabelecido. Portanto, propor leituras de textos que irão possibilitar ao leitor/aluno de Português como Língua Adicional meios de estabelecer relações em um contínuo transitar entre o eu-leitor e o Outro—aquele que é lido, ou a cultura brasileira que está ali expressa no texto clariciano. Leitura(s) que viabilizam a construção de um imaginário transnacional, conforme apresentado por Gayatri Spivak. Leitura(s) que possibilitam ler e interpretar os jogos dos signos da tessitura das obras de Clarice Lispector. Ler os textos de Clarice Lispector em seus múltiplos e deslizantes sentidos é a minha proposta de ensino de literatura.

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Referências Bibliográficas BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BASSNETT, S. Comparative Literature: a Critical Introduction. Oxford: Blackwell, 1993. CARVALHAL, T. Literatura Comparada. São Paulo: Ática. 1986. ______. Literatura comparada: a estratégia interdisciplinar. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada, Niterói, v. 1, p. 9-21, 1991. ______. O próprio e o alheio: ensaios de literatura comparada. São Leopoldo: Unisinos, 2003. DERRIDA, J. Margens da Filosofia. Tradução de Joaquim Torres Costa. Campinas: Papirus, 1991. ______. Gramatologia. Tradução de Mirian Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2004. ______. A escritura e a diferença. Tradução de Maria Beatriz M. N. da Silva et alii. São Paulo: Perspectiva, 2009. ______. Posições. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. FITZ, E. E. Sexuality and being in the poststrucuralist universe of Clarice Lispector. The differánce of desire. Austin: University of Texas Press, 2001. GOTLIB, N. B. Um fio de voz: histórias de Clarice. In: LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Edição crítica. Org. Benedito Nunes. Paris: Association Archives de la literature latino-américaine, des Caribes et africaine du XXe. siècle. Coleção Arquivos UNESCO, 1988. LAWALL, S. et al. The Norton Anthology Of World Literature. (Vol. F, The 20th Century) [literary anthology], 2002. LISPECTOR, C. A paixão segundo G.H. Edição crítica. Org. Benedito Nunes. Paris: Coleção Arquivos UNESCO, 1988. ______.O Mistério do Coelho Pensante. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. ______. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. ______. A Vida Íntima de Laura. Rio de Janeiro: Rocco, 2012. SCHMIDT, R. T.; Bittencourt, R. L. F. (Org.). Fazeres indisciplinados: estudos de literatura comparada. 1. ed. Porto Alegre: Editora Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2013. v. 1. 416 p. SILVA, A. A. A. Notas sobre um curso de Literatura Brasileira para estrangeiros no Brasil. In: Caderno de Letras da UFF, Niterói, RJ, v.26, n.50, p. 279-300, 2016. SPIVAK, G. C. Death of a Discipline. New York: Columbia University Press, 2003. TAKAHASHI, N. T. Textos literários no ensino de português-língua estrangeira (PLE) no Brasil. 2008. 155 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2008.

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O LÚDICO NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM: UMA ANÁLISE DAS AULAS DE LITERATURA NO ENSINO FUNDAMENTAL

Fernanda Abreu Gualhano77 Laynara Viana Tavares78 Bruna Martins de Oliveira79 Lídia Maria Nazaré Alves80

RESUMO: Este artigo está ligado ao projeto de pesquisa “As representações da crise; interseção de fontes literárias” e de extensão “Estudos de gênero e de etnia e sua repercussão na sociedade”, desenvolvidos em 2017, na UEMG (Unidade de Carangola). Volta-se para processos metodológicos na relação ensino/aprendizagem de literatura. Como graduandos de Letras nos interessa verificar como os referidos vêm acontecendo, e, em caso insatisfatório, apresentar as metodologias ativas, mais propícias ao lúdico, como intervenção. A pesquisa está em andamento. Na primeira parte já foi observado que a tendência metodológica em questão é mais tradicional. PALAVRAS-CHAVE: Literatura e ensino; Ensino Fundamental; Aulas lúdicas. ABSTRACT: This article is linked to the research project "Representations of the crisis; intersection of literary sources" and extension "Studies of gender and ethnicity and its repercussion in society ", developed in 2017, at the UEMG (Carangola Unit). It turns to methodological processes in the relation teaching / learning of literature. As graduates of Letters, we are interested in verifying how referrals have been going on, and, in an unsatisfactory case, presenting the active methodologies, which are more conducive to play, as an intervention. The search is in progress. In the first part it has already been observed that the methodological tendency in question is more traditional. KEY-WORDS: Literature and teaching, Elementary school; Play lessons

Introdução O processo ensino-aprendizagem, principalmente das crianças, requer muita atenção e versatilidade, pois essas estão em constante desenvolvimento cognitivo e apreciam o diferente. Assim sendo, a pesquisa tem como objetivos centrais a averiguação das aulas de Literatura, isto é, como estão sendo

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Graduanda no curso de Letras – Português/Inglês na UEMG, Carangola. Graduanda no curso de Letras – Português/Inglês na UEMG, Carangola. Graduanda no curso de Letras – Português/Inglês na UEMG, Carangola. Doutora em Literatura Comparada, UEMG, Carangola

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desenvolvidas, como também, a perspectiva dos discentes mediante o desenvolvimento dessas. A justificativa para essa análise surge ao perceber que em pleno século XXI, com tanta modernidade e informações, as aulas ainda continuam com as mesmas estratégias metodológicas, o que, de fato, propicia o não desenvolvimento crítico, cultural e social no discente. A ideia advém quando se entende que, cada vez mais, os conteúdos estão fragmentados. Mosé (2003, p. 49) faz um apontamento de suma importância, ela afirma que essa fragmentação dos conteúdos, “levam os alunos a acreditar que estudam para os professores, para os pais, e não para si mesmo, para suas vidas.” Bauman (2011) relata sobre como as relações entre as pessoas estão cada vez mais líquidas, vulneráveis e não fixas e isso, de certa maneira, é influenciado no âmbito escolar, visto que os alunos pertencem a uma esfera social. Com isso, o professor tem que entrar em sintonia com a realidade do outro. Mosé (2003) ainda afirma que, para ser um bom professor, o conhecimento é de extrema importância, mas que se esse não entra em comunicação com o outro, ele é falho. Com isso, o público do trabalho foi o 6º do Ensino Fundamental da Escola E.E.E.M, situada em Carangola, Minas Gerias. De fato, a escolha foi direcionada, visto que nessa escola apenas esse ano possui a matéria Literatura, o que nos deixou intrigados, pois, essa disciplina desenvolve o senso crítico e apurado acerca de questões expostas na realidade, seja familiar, escolar ou até mesmo nos ciclos de amizades. Para o desenvolvimento da pesquisa, optou-se por aplicação de questionário contendo duas questões, como também, uma entrevista, gravada por áudio. No 6º-1, a primeira e no 6º-2, a segunda. Com isso, as abordagens usuais em nosso trabalho foram a qualitativa e quantitativa. O resultado foi pertinente, visto que a maioria dos alunos prezam e sentem falta de aulas que possuem dinâmicas. 1. Competências e Habilidades no Ensino de Literatura Vejamos o conceito de competência. Segundo Rios (2001, p. 87), a pedagogia universitária refere-se ao “[...] sentido de saber fazer bem o dever. Na verdade, ela se refere sempre a um fazer que requer um conjunto de saberes e implica um posicionamento diante daquilo que se apresenta como desejável e necessário [...]”. Contudo, no âmbito educacional, relaciona-se à disposição e aptidão do indivíduo ao fazer as atividades propostas de maneira exitosa. O que, de fato, correlaciona com o conceito de Perrenoud, que afirma que a competência é a “capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles” (1999, p. 7). O autor também afirma que essa não é uma potencialidade da mente humana, mas sim, são adquiridas e construídas diariamente. Garcia (2005) a conceitua como a capacidade de usar mais de um recurso de forma inovadora e no momento necessário. Esses conceitos supracitados estão em consonância com o de Zabala e Arnau (2010), pois esses argumentam que a competência é o que fará o sujeito resolver situações do dia a dia. No entanto, quando se argumenta sobre competências é oportuno também conceituar habilidades. O dicionário Aurélio afirma que habilidade é “qualidade daquele que é hábil; capacidade, destreza, agilidade: ter habilidade para trabalhos manuais (...)” (FERREIRA, 2010). Essa definição dialoga com o Perrenoud (1999), 175


no que tange à ideia que quando o indivíduo resolve situações-problemas da vida diária, sem programar e/ou pensar, isto é, ele mobilizou conhecimentos e suas capacidades. Seguindo a mesma vertente, o autor infere que habilidade é, então, seguir modos operatórios, por meio da dedução e indução. Em outras palavras, é um processo mental, que o sujeito efetiva para solucionar situações da vida. Exemplo disso, quando um aluno está estudando duas obras e depois precisa relacioná-las, ele utiliza a habilidade de interpretação, para conseguir resolver “um novo problema”. Luckesi (2011) difere: poderíamos perguntar, então, se competência e habilidade não têm a mesma definição. Na ótica da ação, sim, pois ambas têm a ver com ação. A distinção entre as duas têm sua base na complexidade da ação executada em uma e em outra dessas formas de agir. Nessa relação, as habilidades têm a ver com aprendizagens do desempenho em tarefas específicas, restritas, simples; as competências, por outro lado, são modos complexos de agir, que envolvem um conjunto de tarefas específicas. Uma competência exige uma cadeia de várias habilidades.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) alusivo às séries iniciais do Ensino Fundamental declaram que a formação dos alunos precisa ser vista enquanto capacitação, para desenvolver e proporcionar novas competências. Portanto, deve-se ocasionar em um tipo de profissional novo e distinto, o qual deverá estar pronto para inter-relacionar-se com diferentes meios de comunicação, como tecnologias e até mesmo linguagens, atendendo então, os alunos do século XXI. Assim, fica evidente que a nova corroboração entre conhecimento e trabalho apontam que, para um processo de educação fixa, é primordial que o aluno da educação básica tem que “aprender a aprender” (BRASIL, 1997). Diante do exposto, é necessário relacionar questões sobre habilidades e competências para com o ensino de Literatura. Sendo assim, em primeira instância relata-se sobre a leitura. É indubitável que a essa é de suma importância para o desenvolvimento dos alunos, pois, através dela as visões acerca de assuntos são moldadas e repensadas, além do conhecimento e bagagem cultural, o qual propicia a capacidade de interpretar, opinar e discutir. Assim sendo, percebe-se que a leitura é significativa, pois a partir dela é possível que os indivíduos se relacionem um com outro, o qual a torna como ferramenta básica na sociedade contemporânea. De acordo com Koch e Elias (2010), a leitura vai além de ocupar um espaço importante na vida do leitor, o ato de ler estabelece uma união entre os sujeitos sociáveis com a linguagem sociocognitiva, o qual proporciona uma influência eficiente com elementos significativos dentro de um texto. Com isso, o leitor é colocado em contato direto com as palavras, de maneira inerente, observando assim, o grau elevado de sentido que elas condicionam. 2. A Construção Da Identidade Do Sujeito No Capitalismo Líquido De acordo com os estudos feitos por Zigmund Bauman (2011), os pressupostos educacionais acabaram perdendo o contato com a realidade. Nesses termos, sendo a educação uma instância social cuja finalidade é a formação intelectual, integrada ao social, do aluno, faz-se necessária sua revisão e 176


reformulação, com efeito, afirma que “a crise atual é diferente das anteriores” (BAUMAN, 2011, p. 115) A atual educação impõe um desafio à própria que vem se construindo junto à história da civilização. Essa está em constante evolução junto à sociedade, que atualmente denomina- se moderna, ao contrário da educação, que está estagnada. De fato, o processo evolucional está acelerado, visto que não só a sociedade, como também os mecanismos de pesquisas evoluíram, propiciando um meio cercado por tecnologias, o qual a maioria dos indivíduos estão conectados, já que estão inseridos em um mundo globalizado. É nesse mundo globalizado que o conhecimento passa a ser mais acessível, com isso, o desafio da educação passa a possuir maior destaque. No atual modelo de sociedade, denominado “modernidade líquida” pelo sociólogo Zigmund Bauman (2011), ocorrem mudanças, isto é, uma transvaloração dos valores préestabelecidos, há, portanto, a necessidade de ressignificar a realidade social e escolar. Em outras palavras, o que pertence à sociedade não é mais fixo, imutável. As informações, portanto, estão em constante vulnerabilidade, visto os fluxos intensos e instantâneos de conteúdos compartilhados pelos indivíduos, ou seja, há um fluxo intenso e se torna cada vez mais difícil acompanhar todo conteúdo exposto e encontrado em rede. “O atual consumismo não visa ao acumulo de coisas, mas sua fruição instantânea e imediata” (BAUMAN, 2011, p.113). A concepção de conhecimento como um “produto” a ser possuído e conservado permanentemente não cabe mais no contexto moderno, se, anteriormente, os pais usavam o argumento: ”O que vocês aprenderam nunca mais ninguém vai lhes tirar” para convencer os jovens a buscar por conhecimento, atualmente esse tipo de argumento os deixaria no mínimo perplexos. O modelo educacional ortodoxo de antes possuía hábitos estabelecidos, estruturas cognitivas sólidas e valores estáveis. Contudo, no mundo contemporâneo exige outra postura em relação à realidade, e a educação não pode ficar excluída disso, ela deve seguir a mudança, o fluxo contínuo da sociedade, mesmo ela prezando pela cultura e tradição, não deve se ater a isso. É preciso seguir as mudanças e tomar forma, se inserir na nova cultura que vem se formando, portanto, o sistema educacional precisa ser revisto, porque é necessária uma nova postura para com o ensino, diante do contexto atual. Assim sendo, cabe ao professor estimular a produção de conhecimentos e filtrar as informações que esse aluno irá receber. Esse não pode ser um espectador diante dessa realidade, ele deve atuar constantemente na situação de aprendizagem. A complexidade do aprendizado está totalmente ligada ao uso que se faz do que se aprendeu, por exemplo, não memorizar o que se aprende, mas saber usar/adequar em diferentes contextos. É preciso enfatizar que passamos de uma sociedade de execução de tarefas para uma sociedade de interação e resolução de problemas, por isso passa a ter valor o indivíduo que é capaz de pensar criticamente em contextos variados, não mais quem decora uma resposta pronta, afinal, não existem respostas prontas em um mundo globalizado, vivemos um período conflituoso, as respostas precisam ser construídas dialogicamente, isto é, a demanda atual não é saber repetir uma série de conhecimentos memorizados, ao contrário, é preciso expressar, interpretar, pensar e também compartilhar. Com isso, é válido pensar que o saber, a informação, os conceitos são transitórios e estão sujeitos a mudanças. Assim, os professores juntamente com os 177


alunos devem produzir conhecimentos, não mais, seguindo o modelo tradicional de uma relação hierarquizada e cíclica, mas sim, em sintonia, como: professor – aluno – professor – saberes socialmente construídos – aluno. Fica claro que o docente atual não é aquele que detém todos os saberes, mas aquele que sabe direcionar juntamente seus saberes e os dos alunos. Não é só o conhecimento que faz um bom professor. O que faz um bom professor é a consciência de que, primeiro, ele necessita ter conhecido, mastigado, sentido o saber, o sabor do conhecimento. Mas saber tudo não é saber a verdade, e não adianta você saber mais, mas não entrar em comunicação, em sintonia, com o saber do outro. (MOSÉ, 2013, p. 243)

Atualmente, as mudanças culturais e tecnológicas inserem inovações que exigem sempre novos saberes, novas habilidades; o que, de fato, faz com que durante a vida escolar seja preciso mudar certas concepções e construir novas competências. 3. O Ensino em Interface com o Modelo Positivista O positivismo foi uma das correntes filosóficas que mais influenciou a educação brasileira e juntamente com ela, a maneira de pensar dos brasileiros. O pensamento pedagógico positivista tinha como foco a burguesia. O autor principal dessa corrente filosófica foi Auguste Comte que possui como obra central “Curso de Filosofia Positiva”, publicado em 1830 e 1842. Comte nunca terminou seu curso, pois fora eliminado da escola Politécnica de Paris, por ter se envolvido em um imprevisto entre alunos e professores; mesmo não terminando, ele ingressou no magistério e atuou nessa área. Posteriormente, deixou a carreira e, um desses é o motivo pelo qual se ressentiu com o ensino. Tomou a decisão de que daria fim ao academicismo quando implantasse o estado positivo. Percebe-se então que ele é contra os orçamentos acadêmicos e qualquer programa feito pelo governo. Comte afirmava que no estágio final da humanidade, o positivismo deveria substituir o catolicismo. O filósofo retrata que já que nos tempos medievais a educação estava entregue ao Clero; na Idade Positiva, a educação deveria estar cedida a humanidade. Segundo Comte, “só cabe o nome de ciência, de conhecimento certo, aquele conhecimento que pode ser controlado pela matemática, depois de registrados os fatos pela experiência e for útil para a vida. ” (TORRES, 1957, p. 207). Observa-se, portanto, que a ideia da Religião da Humanidade foi formada por Comte a conceito e afinidade da Igreja Católica: “de acordo com a lei dos três estados, desde a mais humilde forma da vida religiosa até a Religião da Humanidade, há um desenvolvimento constante. Do fetichismo ao politeísmo, deste ao monoteísmo, passando para o estado positivo [científico].” (TORRES, 1957, p. 191). Assim, ele afirma que o positivismo é uma doutrina filosófica, sociológica e política, o qual surgiu como desenvolvimento sociológico do Iluminismo, das crises sociais e moral do fim da Idade Média e do nascimento da sociedade industrial - processos que tiveram como grande marco a Revolução Francesa (1789-1799). O positivismo defende a ideia de que o conhecimento científico é a única forma de conhecimento verdadeiro. Segundo os positivistas, só pode-se afirmar que uma teoria é correta se ela for comprovada através de métodos científicos 178


válido, isto é, eles não consideram os conhecimentos ligados as crenças, superstição ou qualquer outro que não possa ser comprovado cientificamente. Sendo assim, defendem que o progresso da humanidade depende exclusivamente dos avanços científicos. Assim, essa época pode ser associada a uma interpretação das ciências e uma classificação do conhecimento a uma ética humana radical, desenvolvida na segunda fase da carreira de Comte. Nessa mesma vertente, é interessante ressaltar que em 1874, Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes, então estudantes, conheceram a Filosofia Positivista mediante a interpretação do francês Émile Littré. O Apostolado Positivista no Brasil sempre ajustou os seus atos pela observância rigorosa dos princípios de Comte, por isso as ideias dele determinaram à atitude do Apostolado, em todas as questões referentes à educação. A participação dos dois fundadores foi abundantemente formidável para a divulgação das concepções comteanas. A partir de então, a revelação das doutrinas de Comte, passou a sistematizar-se progressivamente, tendo passado dos meios acadêmicos para um meio mais popular. (TORRES, 1957). Comte recomendou uma reforma geral no sistema educacional e estabelecia que fosse preciso substituir a educação europeia, ainda essencialmente teológica, metafísica e literária, por uma educação positivista, conforme o espírito da época e adaptada as necessidades da civilização moderna. O modelo inspirou a Velha República e o Golpe Militar de 1964. Segundo essa ideologia da ordem, o país não seria mais governado pelas "paixões políticas”, mas, pela racionalidade dos cientistas desinteressados e eficientes: os tecnocratas. A conformação atual da bandeira do Brasil é um reflexo dessa influência na política nacional. Na bandeira lê-se a máxima política positivista Ordem e Progresso, surgida a partir da divisa comteana: O Amor como princípio, a Ordem como base e o Progresso por meta, representando as aspirações a uma sociedade justa, fraterna e progressista. Um dos que apoiaram essa questão foi Benjamin Constant (militar, engenheiro, professor e estadista brasileiro). Como já citado, adepto ao positivismo; em suas vertentes filosóficas e religiosas, cujas ideias difundiram-se entre a jovem oficialidade do Exército brasileiro -, ele foi um dos principais articuladores do levante republicano de 1889, nomeado Ministro da Guerra e, depois, Ministro da Instrução Pública no governo provisório. Na última função, promoveu uma importante reforma curricular. Sabe-se então que a reforma curricular do ensino primário e secundário do Distrito Federal, antigo município da corte, Decreto nº 981, de 8 de novembro de 1890, estabeleceu novas diretrizes para a instrução pública, o qual propunha a descentralização; construção de prédios apropriados ao ensino; criação de novas escolas, inclusive Escolas Normais para formação adequada de professores e instituição de um fundo escolar. As disposições transitórias da Constituição de 1891 consagraram-no como fundador da República brasileira. É inegável que essa corrente positivista influenciou de maneira decisiva o pensamento e a educação brasileira, visto que o Brasil possuiu diversos seguidores. Na educação existiram contribuições sérias no campo do planejamento escolar, como: uso da tecnologia, ensino para formação profissional e aplicação do conhecimento científico. No entanto, uma compreensão meramente profissionalizante pode afetar o talento intelectual do aluno. Segundo Pavianni (1991, p.53): 179


a concepção profissionalista dos cursos universitários é o principal entrave à existência de uma verdadeira formação universitária que tem a função de desenvolver a versatilidade intelectual da pessoa, de criar homens de mentalidade e sensíveis às necessidades dos outros homens de seu tempo.

A educação entusiasmada pelos ideais positivistas necessita de incentivo ao desenvolvimento do pensamento crítico. A educação tecnicista abordada nesses ideais não deve reduzir-se apenas ao ensino técnico, mas deve preocupar-se também em buscar a razão do seu próprio procedimento. Aceitar a ciência como o único conhecimento é simplista, que perde abundante conhecimentos, que não estão na informação; com isso, fica prejudicada tanto a criação como a dedução. A filosofia positiva possui um estilo pedagógico amplo, pois procurava reorganizar a sociedade através do estudo da ciência positiva e buscava no ensino cientifico suporte para o desenvolvimento das ciências especializadas. Assim, seria imprescindível que a área da educação não fosse afetada, sem dúvida, foi a que mais recebeu influência dessa corrente filosófica. Seus seguidores aderiam à liberdade no ensino, possivelmente como uma forma de reação ao tipo de educação jesuítica dominante na época. As escolas particulares confessionais exerciam uma ação contrária ao positivismo. Contudo, as livres, como as de direito e a politécnica e as academias militares foram realçadas pela formação de um amplo número de positivistas brasileiros. Sendo assim, a implantação de escolas técnicas esteve associada a uma orientação positivista, que enxergava no ensino cientifico a base para uma educação lógica, à medida que instituições religiosas se destinaram a uma educação humanística. Em outras palavras, os princípios orientadores da reforma eram a liberdade e a laicidade do ensino e a gratuidade da escola primária. Pretendia-se fazer o ensino secundário capacitado e não destinado somente a preparação para o ensino superior. Assim, Benjamin Constant alcança todos os níveis de ensino, o que gerou alteração significativa no currículo do Colégio Pedro II e da Escola Normal. Segundo o pensamento positivista, a ciência passa a ser o alicerce da filosofia racional, abarcada a compreensão e controle da sociedade em direção a ordem e ao progresso: a razão substitui a religião como forma de interpretar o mundo, de construir conhecimentos e da significação da sina humana. O positivismo cria um cientificismo que explica o progresso resultante da evolução linear da humanidade em direção a ampliação das ciências, ao tentar delimitar tudo ao âmbito racional. Justificando assim, as ações humanas através de um ideal de progresso e pelo poder da técnica, que garante a previsão e a ação. Por sua vez, a técnica é avaliada pela presença de um especialista, que passa a dirigir a prática dos homens. Em decorrência dessa perspectiva racionalista, o ensino se estrutura com a intenção de manter a representação da sociedade e compreende o aluno como receptor, processador e gerador de informações. A corrente positivista contribuiu na história do Brasil por um extenso período de tempo, desde o Império até a formação da República, que apresentou seus alicerces na educação, na sociedade e na vida em geral. Essa estrutura ideológica interveio na construção dos diversos saberes científico e de ensino. Certamente, o Positivismo como ensinamento sobre as normas para a sociedade foi um movimento que limitou uma parte significativa da cultura europeia, tanto no campo filosófico como político e pedagógico. A necessidade 180


anunciada por Comte de estabelecer uma relação fundamental entre a ciência e a técnica realizou-se de maneira importante por gerações. 4. Estratégias no Processo/Aprendizagem de Literatura O ensino de literatura em sala de aula tem um papel primordial quanto a formação de leitores, que através das leituras entram em um universo literário e assim são capazes de determinar conexões entre o texto que está sendo lido e as experiências sociais já vivenciadas. Resultante a esse processo tem-se o letramento literário: é uma prática social e, como tal, responsabilidade da escola. A questão a ser enfrentada não é se a escola deve ou não escolarizar a literatura, como bem nos alerta Magda Soares, mas sim como fazer essa escolarização sem descaracterizá-la, sem transformá-la em um simulacro de si mesma que mais nega do que confirma seu poder de humanização. (COSSON, 2009, p. 23).

Por esse motivo, sabe-se que uma obra literária tem o poder de conduzir leitores para o mundo fictício, mas também trazer o mundo fictício para a sua realidade. Um fator fundamental para o contato dos alunos com o texto literário refere-se às intermediações de leitura. Dentre as figuras essenciais no processo de intercessão do leitor/ texto, a figura do professor é de suma importância no que se refere ao ensino de literatura. A outra é o bibliotecário da escola, responsável não apenas por zelar pelo acervo na biblioteca, mas também transformar esse ambiente em um lugar propício e agradável para que os alunos possam aproveitar dos múltiplos universos presentes nas páginas dos livros que estão guardados, além de tornarem parceiros do professor na preparação de projetos pedagógicos para incentivar a leitura literária na escola. Portanto, através de práticas nas escolas da rede pública de ensino, percebeu-se que estamos passando por um momento de instabilidade quanto ao ensino de Literatura no Ensino Fundamental, principalmente na escola a qual pesquisamos (abaixo). A leitura literária que durante tantas décadas foi valorizada tanto pelo ambiente escolar, quanto para a sociedade brasileira, atualmente tem se tornado quase invisível nas aulas de Língua Portuguesa. A análise empreendida na pesquisa proposta seguiu uma análise dos discursos dos alunos quanto às estratégias metodológicas no enisno de Literatura. Essa desenvolveu em duas turmas do 6º ano do Ensino Médio público na Escola E.E.E.M, em Carangola-MG. Para a constituição dos dados, foi proposta a aplicação de questionários, na turma 6º/1 e entrevista semiestruturada no 6º/2. Esses questionários tiveram como objetivo desvelar o que esses pensam sobre como a matéria é passada e desenvolvida. Ademais, através deles, pudemos obter informações sobre a carência que os estudantes possuem nessa matéria, haja vista que apenas o 6º do Ensino Médio a possui. De fato, isso é uma questão preocupante, pois como relata Cavalcanti (2009, p.39), “a literatura pode ser, para a criança, um aspecto para a expansão do seu ser (...) ampliando o universo mágico, transreal da criança para que esta se torne um adulto mais criativo, integrado e feliz.” Para conseguirmos as informações, aplicou-se um questionário (6º/1) contendo duas questões: Na primeira foi pedido que eles relatassem sobre as aulas de Literatura (como ela é desenvolvida, a didática do professor) e a opinião sobre 181


ela; na segunda, para o resultado, foi esclarecedor, dado que, de vinte e dois alunos, dezesseis disseram que as aulas são legais, enquanto seis manifestaram o contrário, colocando como principal motivo a didática do professor. Abaixo está o gráfico para conferência:

Gráfico 1: Resultado da primeira questão do questionário aplicado no 6°/1 da E.E.E.E.M, em Carangola, no ano de 2017.

Já, na segunda, pediu-se que escrevessem acerca de uma aula que gostariam de ter. O resultado foi pertinente, visto que, de vinte e dois alunos, todos responderam que prezam por aulas mais criativas, com jogos, gincanas e músicas.

Gráfico 2: Resultado da segunda questão do uestionário aplicado no 6°/1 na E.E.E.E.M em Carangola no ano de 2017.

Assim sendo, selecionamos cinco textos, com o principal propósito de compreender a visão dos discentes sobre o ensino de Literatura em sala de aula.

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Texto 1: Aluno A. Opinião sobre as aulas de Literatura, 2017. 4,52 cm x 15,66cm

Texto 2: Aluno B. Opinião sobre as aulas de Literatura, 2017. 4,13cm x 15,61cm

Texto 3: Aluno C. Opinião sobre as aulas de Literatura, 2017. 3,86cm x 15,61cm

Texto 4 : Aluno D. Opinião sobre as aulas de Literatura, 2017. 4,58cm x 15,13cm

No 6º/2, a abordagem foi diferente, fizemos uma entrevista semiestruturada, gravada por áudio. Assim, fomos até a sala deles e solicitamos que eles respondessem, com sinceridade, pois na nossa pesquisa há sigilo total quanto aos nomes, respeitando assim, o Comitê de Ética. Pergunta 1 - “Para vocês, o que são aulas criativas?”

A1 – “Que pode criar as coisa com jogos” A2 – “Colocar livros diferentes nas aulas de literatura” 183


Pergunta 2 – “Vocês já tiveram aulas criativas?” Pergunta 3 – “Qual das aulas vocês mais gostam de aprender, com jogos ou com leituras em sala de aula?”

A3, A4, A5 – “Só uma de matématica” Todos alunos falaram com vozes altas – “Com jogos”

Tabela 1: Respostas dos alunos sobre o ensino de Literatura gravada por áudio e escrita acima.

Por conseguinte, é necessário que o professor reflita sobre a maneira que está desenvolvendo suas aulas; descobrindo os gostos dos alunos e adaptando, oportunamente. Assim, ao proporcionar textos variados, o educador estará também inferindo um contato com variedades linguísticas, pois quanto mais expressiva à linguagem, mais fácil é a compreensão para um aluno do Ensino Fundamental. Um bom exemplo para execução de leitura e escrita no âmbito escolar é o que Dolz, Noverraz e Scheneuwly (2004) mostram com a Sequência Didática. Considerações Finais Fica claro, portanto, que é importante atrair a atenção dos alunos para os textos literários, a adequação das obras que serão selecionadas, conforme a idade de seus leitores. É preciso que haja uma interrupção nas críticas, quanto À tecnologia que está invadindo a sala de aula e que essa seja entendida como algo que pode ser usado a favor da leitura; a internet é uma excelente companheira, pois através dela, os alunos podem ter acesso a textos que complementem as obras literárias, as quais serão trabalhadas em sala de aula, mas, para que isso aconteça, os professores deverão perceber que, além de estarem trabalhando com o texto eletrônico, estão em contato com a hipertextualidade. Com esse nicho de informação, torna-se evidente que é indispensável a elaboração de metodologias voltadas ao atendimento à necessidade dos alunos de modo a permitir a aproximação desses com os livros e assuntos acerca da Literatura. Inicialmente, distinguiu-se que é parte fundamental a materialização da leitura literária em sala de aula, isto é, o acesso dos alunos as obras. Sendo assim, os professores deverão conduzir aulas mais criativas, levando-os de maneira mais frequente até a biblioteca (espaço crucial para os leitores), em que podem promover nesse ambiente aulas mais didáticas e criativas. Em outras palavras, o educador é um instrumento valioso no processo de formação e de aquisição de conhecimentos, habilidades e competências do aluno. As matérias-primas de quem trabalha com ensino e aprendizagem de língua e Literatura é o pensamento e a concretização desse pensamento na significação, nas palavras. A Literatura como arte entrelaçada ao pensamento, mediadora das múltiplas realidades sociais e grande responsável pela leitura de mundo que o leitor desempenha, que, indubitavelmente, torna um papel fundamental na formação de leitores competentes, críticos capacitados a reconhecer e relacionar textos aos diferentes contextos, sejam eles sociais, políticos e/ou culturais. Portanto, trata-se de conteúdo, mas também de formação humana, de inteireza e totalidade. Deste modo, essa pessoa humana antes incompleta, obra inacabada deseja possuir vontade de potência, vontade essa que se complementa no saber, no conhecer, nas relações de contato com o outro. O mundo atual demanda cada vez mais um sujeito criador, o qual recria, descobre e redescobre; que conhece 184


e aprende, pois, conhecer sempre sugere uma reconstrução dialógica entre um sujeito e outro, a partir dos sentidos e dos significados. É no ato de troca que ocorre entre ensino e aprendizagem, que se compreende melhor sobre o universo e mundo do outro, sobre si mesmo. Assim, a Literatura carrega um papel fundamental para revelar o universo real, mediado pela fantasia, de forma envolvente, de maneira tal que o aluno desenvolva o gosto pela leitura do texto literário. É indubitável que o professor deva observar o nível de leitura e escrita da turma e propor trabalhos coerentes de acordo com a realidade desses, como também, analisar sobre as dificuldades que os alunos possuem e refletir acerca dos processos ensino-aprendizagem; como se dá, por exemplo, esse processo no âmbito literário, se os alunos possuem algum bloqueio ou aversão ao texto ou obra trabalhada e modificar essas visões, muitas vezes, precipitadas. Faz-se preciso trazer o assunto, analisar os fatos, não a memorizar, mas incorporar a ideia do assunto e seu impacto na realidade, transformando assim, o saber apresentado em um saber pensado de maneira crítica, analítica e indutiva, de modo que o aluno não decore e repita o aprendizado, mas o construa. Para tornar eficaz, o desenvolvimento das aulas pode, portanto, ser mediante a Sequência Didática, como também, viabilizando o dinâmico, recreativo, enfim, o lúdico.

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Referência Bibliográfica BAUMAN, Z. 44 cartas do mundo líquido moderno. Tradução: Vera Pereira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1998. CARNEIRO, C. Crónica: África a doer. Disponível em: < http://www.nuncaetarde.com/cronica-africa-a-doer/>. Acesso em 20 mai 2017. CAVALCANTI, J. Caminhos da Literatura Infantil e Juvenil: dinâmicas e vivências na ação pedagógica. 3 ed. São Paulo: Paulus, 2009. COMTE, A. Curso de Filosofia Positiva: uma síntese do pensamento de Comte. São Paulo: Abril Cultural, 1973. COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2009 DOLZ, J; NOVERRAZ, M; SCHNEUWLY, B. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: Gêneros Orais e Escritos na Escola (Bernard Schneuwly e Joaquim Dolz e colaboradores). Campinas: Mercado de Letras, 2004, p. 95-128. FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 8. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010 GARCIA, L. A. M. G. Competências e Habilidades: você sabe lidar com isso? Educação e Ciência On-line, Brasília: Universidade de Brasília. Disponível em: <http://uvnt.universidadevirtual.br/ciencias/002.htm>. Acesso em: 12 mai. 2017 GOMES, F. F. L.; SOUZA, J. M. R. Os caminhos para o ensino produtivo de língua portuguesa. V Semana de Letras – Linguagem e entrechoques culturais. Língua, literatura e cultura brasileira. Catolé do Rocha – PB. 2010. KOCH, I.V; ELIAS, M.V. Ler e compreender os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2010. Luckesi, C. C. Avaliação da aprendizagem: componente do ato pedagógico. São Paulo: Cortez, 2011. MOSÉ, V. A escola e os desafios contemporâneos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. NETO, B. C. A influência do positivismo no ensino científico brasileiro. Rio de Janeiro: Ministério da Guerra, 1940. PAVIANNI, J. Problemas de filosofia da educação. Petrópolis: Vozes, 1991. PERRENOUD, P. Avaliação da excelência à regulação das aprendizagens: entre duas lógicas. Porto Alegre: Artmed, 1999. PIAGET, J. O Juízo Moral na criança. São Paulo: Summus, 1994. RIOS, T. Ética e competência. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2001. _____________. Compreender e ensinar: por uma docência de melhor qualidade. São Paulo: Cortez, 2001. TORRES, J.C.O . O Positivismo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1957. ZABALA, A.; ARNAU, L. Como aprender e ensinar competências. Porto Alegre: ArtMed, 2010.

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IDENTIDADES AO VENTO: DA NEGAÇÃO PONCIANA À PROCURA VENTURIANA Leonardo Gomes de Souza81 Fernanda Soares Wenceslau82 Lídia Maria Nazaré Alves83 Ivete Monteiro de Azevedo84 Lucas Borcard Cancela 85

RESUMO: Este trabalho deseja analisar as obras “Ponciá Vicêncio”, da brasileira Conceição Evaristo e “O vendedor de passados”, do angolano José Eduardo Agualusa, por meio do binômio identidade e cultura. Ponciá Vicêncio questiona seu nome, herdado do antigo senhor de seus avós. Nessa percepção de perda, deslocase em busca de sua identidade - o que a leva a diferentes espaços culturais. A segunda obra, traz a história de Félix Ventura, criador de identidades para os que o procuram, o que coloca em cheque seu próprio processo de identificação e, por consequência, o sistema cultural da personagem. A pesquisa é iluminada por Hall (2015), Alves (2009), Le Bossé (2004). PALAVRAS-CHAVE: Literatura angolana, literatura brasileira, identidade. ABSTRACT: This work seeks to analyse the literary works “Ponciá Vicêncio”, of the Brazilian author Conceição Evaristo and “The seller of the past” by the Angolan José Eduardo Agualusa, through the binomial identity and culture. Ponciá Vicêncio question her name, inherited from his grandfather's former proprietary. In this perception of loss, she moves in search of her identity – which take her onto the different cultural spaces. The second work, brings the story of Felix Ventura, creator of identities for those who seek, which puts in check your own identification process and, as a consequence, the cultural system of the character. The search is illuminated by Hall (2015), Adam (2009), Le Bossé (2004). The research is oriented by Hall (2015), Alves (2009), Le Bossé (2004). KEY WORDS: Angolan Literature – Brazilian Literature – Identity.

Graduando do curso de Letras da Universidade do estado de Minas Gerais – Unidade Carangola, leonardogomes.jhs@gmail.com 82 Graduanda do curso de Letras da Universidade do Estado de Minas Gerais – Unidade Carangola, fernandasoaressw@outlook.com 83 Doutora em Literatura Comparada pela UFF, professora do curso de Letras da Universidade do Estado de Minas Gerais, lidianazare@hotmail.com 84 Doutora em Língua Portuguesa pela UFF, Coordenadora e professora do curso de Letras da Universidade do Estado de Minas Gerais, imazevedo62@gmail.com 85 Mestrando em Pesquisa Operacional e Inteligência Computacional pela Universidade Cândido Mendes, lucasbcancela@gmail.com 81

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1. Introdução Este trabalho nasce como as primeiras reflexões do projeto de extensão “Estudos de gêneros e etnias na literatura e sua repercussão na sociedade” desenvolvido na Universidade do Estado de Minas Gerais – Unidade Carangola com o apoio do PAPq/UEMG. Reverberando os objetivos do referido, esse texto pretende colocar em diálogo dois escritores que, com sua arte, vêm reivindicando o reconhecimento e se empenhando na criação de espaços onde a alteridade étnico-identitária tenha vez e voz, a saber, a afro-brasileira Conceição Evaristo e o luso-angolano José Eduardo Agualusa. Esses autores vêm tentando recuperar o sentido adâmico (ALVES, 2009), isto é, o sentido primeiro, o sentido singular que caracteriza os seus grupos étnicos. Essa pretensão parte da consciência de que, nas palavras de Antoine Compagnon (1999, p. 37), “a literatura pode estar de acordo com a sociedade, mas também em desacordo; pode acompanhar o movimento, mas também precedê-lo”, em outras palavras, a literatura constitui um discurso no seio da sociedade que possui a capacidade de intensificar as falas já existentes ou alterá-las, de forma a constituir e privilegiar novas realidades. Ambos os autores discutem a construção da identidade dentro de suas literaturas. Conceição Evaristo, em sua obra Ponciá Vicêncio apresenta ao leitor a história de uma mulher, negra, situada no “não-lugar” por outro lado, Agualusa constrói com sua pena a figura de Felix Ventura, construtor de identidades alheias, destituído de passado, albino. Falar de conceitos como identidade é uma árdua tarefa por ser um assunto recheado de vertentes teóricas e pontos de reflexão, ou seja, é necessária uma exposição teórica que não temos espaço hábil neste trabalho para fazer. Intencionamos, portanto, construir uma introdução a temática que possibilite a análise das obras literárias contempladas nesse texto. Para tanto, nos apropriamos da visão geográfica sobre esse conceito. Esses cientistas se preocupam, em especial, com a “identidade dos lugares e pelos papéis que eles desempenham na formação de consciências individuais e coletivas” (LE BOSSÉ, 2004, p. 222) o que, permite que se enxergue, entre outras coisas, a relação entre o lugar e o “não-lugar” na constituição das identidades de Ponciá Vicêncio e Felix Ventura. Em outros termos, os geógrafos “observam como as pessoas, sujeitos e agentes geográficos recebem e percebem, constroem e reivindicam identidades cristalizadas em suas representações e em suas interpretações dos lugares e das relações espaciais” (LE BOSSÉ, 2004, p. 222). O termo cristalizado aqui empregado exige que se faça um parêntese. Quando o autor diz “constroem e reivindicam identidades cristalizadas em suas representações”, ele retrata as resistências que essas identidades encontram em se firmar e se consolidar no âmbito cultural e social, onde, consequentemente, perdem sua representatividade e hegemonia no espaço, ou seja, o termo “cristalizadas” empregado pelo autor possui sentido de consolidação, estruturação e edificação. Transladando essas observações para os estudos literários temos que o espaço a ser observado são os envolvidos em todas as obras em análise e que, 188


nesse contexto, temos um produto mimético das realidades, uma micro-sociedade que, nos termos de Costa Lima (2003, p. 45), caracteriza um “microcosmo interpretativo de uma realidade humana”. São muitos os laços que unem realidade e ficção, arte e vida. Esses laços, sem dúvida, refletem as bases que constituem os múltiplos contextos sociais. Logo, os estudos geoculturais, suas reflexões e apontamentos, são viáveis, e mais, são necessários, também, ao pesquisador do campo da literatura em seu processo de perceber e entender como conceitos, aparentemente tão abstratos, como cultura e identidade, se encarnam nessa arte, genuína expressão das humanidades. 2. Identidades e cultura: perspectivas iniciais Identidade e cultura são conceitos complexos e imbricados que, com o passar do tempo, e o mergulhar em reflexões mais substanciosas e profundas, ganharam novas ideias e nuanças. Uma tentativa de definição, nesse texto, é um tanto presunçosa, porém, almejamos, como já dito, fazer algumas observações que nos permitam entender as relações desses dois conceitos e como, partindo dessas observações, podemos perceber e entender os movimentos feitos pelas penas de Conceição Evaristo e José Eduardo Agualusa, no interior de suas obras em destaque nesse trabalho. Em uma postura antropomórfica, partimos dos estudos geoculturais para abordar esses conceitos, nessa linha, o cultural, hoje, é compreendido como “outra vertente do real, um sistema de representação simbólico existente em si mesmo” (BONNEMAISON, 2002, p. 280) constituindo, no extremo do raciocínio, “uma ‘visão de mundo’ que tem sua coerência e seus próprio efeitos sobre a relação da sociedade com o espaço. ” (BONNEMAISON, 2002, p. 280). O espaço, ou melhor, é na relação entre sociedade e espaço que se encontra o local privilegiado para se perceber os efeitos e impactos do cultural ao que Bonnemaison (2002, p. 283) afirma “o espaço é subjetivo, ligado à etnia, à cultura, e à civilização regional”. Dentro do espaço, etnia, cultura e identidade se constituem e se tocam. Esse autor incita um estudo mais atento sobre os conceitos de etnia e território para um entendimento mais claro acerca do que ele chama de “abordagem cultural” (2002, p. 283) dos estudos geográficos. Essa reflexão nos interessa, neste trabalho, por ter sido ela a que nos ofereceu as primeiras indicações para entender a conexão entre cultura, espaços e identidades. 3. Etnia e território: conexão entre cultura e identidade Etnia e cultura são conceitos muito próximos. Mais do que “sangue”, isto é, base biogenética comum, etnia é um conceito, uma realidade, um fato que permeia a vida de todo ser humano. Ser descendente ou não de indivíduos que pertenceram e/ou pertencem a determinado grupo étnico é um fato em segundo plano para se definir a sua pertença. Para esse ponto o já citado geógrafo tem uma máxima “Uma etnia existe, primeiro, pela consciência que tem de si mesma e pela cultura que produz.” (BONNEMAISON, 2002, p. 284).

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O geopesquisador explica: “É em seu seio (etnia)86 que se elabora e se perpetua a soma de crenças, rituais e práticas que fundam a cultura e permitem que os grupos se reproduzam. ” (BONNEMAISON, 2002, p. 284). Esmiúça o geógrafo: “Sem etnia bem delineada, não pode haver cultura nem visão cultural. A etnia elabora a cultura e, reciprocamente, a existência da cultura funda a identidade da etnia” (BONNEMAISON, 2002, p. 284). Da noção de etnia nascem outras interfaces necessárias para um entendimento mais amplo e preciso das relações entre identidade e etno-cultura: a territorialidade emana da etnia, no sentido de que ela é antes de tudo, a relação culturalmente vivida entre um grupo humano e uma trama de lugares hierarquizados e independentes, cujo traçado no solo constitui um sistema espacial – dito de outra forma, um território” (BONNEMAISON, 2002, p. 285286).

Nessa perspectiva, território, desde o âmago, se diferencia da ideia reducionista de fronteira: O conceito de território aproxima-se muito mais da ideia de “um ‘núcleo’ do que uma muralha, é um tipo de relação afetiva e cultural com uma terra, antes de ser um reflexo de apropriação ou de exclusão do estrangeiro” (BONNEMAISON, 2002, p. 288) Em termos mais claros Bonnemaison esclarece a relação entre território e cultura: “A ideia de cultura, traduzida em termos de espaço, não pode ser separada da ideia de território. É pela existência de uma cultura que se cria um território e é por ele que se fortalece e se exprime a relação simbólica existente entre a cultura e o espaço.” (BONNEMAISON, 2002, p. 288), em outras letras, “o território é, ao mesmo tempo, ‘espaço social’ e ‘espaço cultural’: ele está associado tanto à função social quanto à simbólica” (BONNEMAISON, 2002, p. 289).

Enfim, a etnia só se constitui a partir da existência de um território, local onde o étnico elabora uma cultura e através dessa funda-se uma identidade. Em outro sentido, o étnico depende de um território para alcançar seus objetivos e impor seus interesses. Nessa trama, o território depende do cultural para se criar e se constituir dentro de um espaço. Já é sabido pelos acenos teóricos que acabamos de fazer que não é possível, ou melhor, é uma missão deveras difícil trabalhar com o conceito de identidade isoladamente. Porém, se faz necessária a tentativa, pois, um entendimento de certas interfaces desse conceito se faz plausível para uma análise mais primorosa das obras. Mathias Le Bossé (2004) é outro geógrafo que nos oferece pistas para esse entendimento. Para esse teórico, na base de qualquer identidade, se situa os processos de identificação: esses, por um lado, caracterizam-se por “designar e nomear qualquer coisa ou qualquer um e, depois, em caracterizar sua singularidade.” (2004, p. 223). Em sentido complementar, os processos de identificação podem ser entendidos como “similaridade, a identificação consiste em se assemelhar a qualquer coisa ou a qualquer um” (2004, p. 223). Este processo 86

Acréscimo nosso

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“se traduz, principalmente, tanto para o indivíduo como para o grupo, por um sentimento de pertencimento comum, de partilha e de coesão sociais. ” (2004, p. 223) Os movimentos identitários não são estáticos, prontos e acabados. Le Bossé (2004, p. 223) nos chama a atenção para isso quando procura descrever com mais nuanças esses movimentos, afirmando que o identitário “se define por um conteúdo compreendido em termos de caracteres referenciais, percebidos a partir de perspectivas diferentes, e que podem incluir igualmente aspectos de ordem física ou psíquica, material ou intelectual.” (2004, p. 223). Desta forma, “a identidade se exprime e se comunica de maneira interna e externa, por meio de práticas simbólicas e discursivas.” (2004, p. 223). Assim, a étnico-identidade se embasa “na ideia de um mito das origens ou de uma escatologia coletiva, a partilha de um espaço comum, as redes de sociabilidade, a participação em obras coletivas econômicas, políticas e morais – que asseguram sua coesão. ” (LE BOSSÉ, 2004, p. 230) O autor conclui sua fala observando que a constante que rege os estudos identitários caracteriza-se pelo fato de que A identidade é uma construção social e histórica do ‘próprio’ [do soi, do self ] e do ‘outro’, entidades que, longe de serem congeladas em uma permanência ‘essencial’, estão constante e reciprocamente engajadas e negociadas em relações de poder, de troca ou de confrontação, mais ou menos disputáveis e disputadas, que variam no tempo e no espaço. (LE BOSSÉ, 2004, p. 224)

Sob essa noção exposta pelo geógrafo construímos nossa análise das já citadas obras. Isto é, as identidades são construídas, moldadas, forjadas: Ponciá Vicêncio e sua negação do imposto e “O vendedor de Passados” protagonizado por Felix Ventura, o qual se coloca em postura de procura de uma identidade ou identidades perdidas. 4. Ponciá Vicêncio e Felix Ventura: identidades em construção Conceição Evaristo (2003), em seu romance de fundação constrói a personagem que dá nome ao livro “Ponciá Vicêncio”. Esse livro conta a história de uma mulher afrodescendente, moradora de uma comunidade formada, oficialmente, por ex-escravos. É criada dentro dessa comunidade e aos dezenove anos decide ir para a cidade tentar ganhar dinheiro, construir uma casa e voltar para buscar a família. Na cidade, casa-se, e, após encontros e desencontros, retorna à sua comunidade. José Eduardo Agualusa (2004), em seu romance “O vendedor de passados”, narra a história de Felix Ventura, legítimo angolano, genealogista por profissão. Essa surpreendente figura trabalha construindo nomes, ou melhor, passados para quem o procura. Um dia bate-lhe a porta um estrangeiro desejoso de seus serviços. Esse torna-se um bom amigo do protagonista dessa história que é narrada por uma Osga, de nome Eulálio. Ambos os textos apresentam a identidade como uma construção. De fato, no primeiro caso, tal construção é mais velada, mas, a partir do questionamento que a personagem faz de seu nome, Ponciá Vicêncio, fica evidente que o mesmo, que a identifica, não é inerente a ela, já que não se origina do seu passado, não é crioulo, por assim dizer. Esse fato é testemunha de outra verdade dentro desta obra: a 191


construção do espaço signo das relações de escravidão. A identidade da personagem se modula dentro de um espaço marcado pela dominação de um grupo sobre o outro. A personagem, ao perceber as relações de dominação, se coloca em transito, isto é, parte em busca de um espaço onde sua identidade seja respeitada como igual. O impulso de sair, de se colocar em transito se confunde com o desejo de reconhecimento, de respeito, o desejo por um espaço que seja dela e edificado de maneira a valorizar sua identidade e cultura. Um espaço construído segundo os valores de seu grupo étnico. Essa realidade evidencia-se no livro em várias cenas. Uma, em especial, se dá na infância de Ponciá. Esta cena reverbera durante toda a obra e a personagem, utilizando-se de espaços diferentes, repete os elementos principais. Na beira do rio Ponciá tinha o hábito de gritar seu próprio nome. Nesse gesto a personagem “Sentia-se como se estivesse chamando outra pessoa. Não ouvia seu nome responder dentro de si. Inventava outros. Pandá, Malenga, Quietí, nenhum lhe pertencia também.” (EVARISTO, 2003, p.16). O narrador a descreve como um ser inominado, uma não reconhecida, uma destituída de um espaço erigido segundo os seus étnico-modelos. No caso de Felix Ventura a construção identitária é mais evidenciada, já que fica explícita a construção do nome da personagem, José Bachman. A despeito da inerência do nome, fica por conta deste somente a aceitação do passado que o redefine como o excerto abaixo vem demonstrar. No primeiro diálogo, entre o futuro José Bachman e Felix Ventura, este insiste em questionar o nome daquele que inesperadamente se faz presente em sua casa. A resposta que ele obtém é: “- Tive muitos nomes, mas quero esquecê-los a todos. Prefiro que seja você a baptizar-me” (AGUALUSA, 2004, p.14). Os fragmentos literários citados, logo acima, apontam para questões muito presentes na atualidade. Em nosso tempo a identidade e sua construção vem sendo discutida e denunciada. Isso se deve, também, a movimentos e a forças que está reestruturando o mundo, as relações humanas, o modus vivendi humano: Ponciá rejeita toda a carga identitária que advêm do seu nome, de empréstimo, e que não a deixa esquecer de seu passado escravizado. Ela, para responder aos impulsos de recusa ao nome, sai de sua comunidade e se dirige à cidade em busca de melhores condições. No entanto, permanece uma “inominada” (VICÊNCIO, 2013, p.16). No relato de Felix Ventura são múltiplos os nomes assumidos pelo estrangeiro. Em cada momento ele escolhe uma identidade nova, a fim de se adequar ao ambiente. De fato, o questionar-se acerca das construções identitárias a qual mantém íntima relação com a construção do espaço, é uma atitude própria da contemporaneidade. Para Stuart Hall (2015, p.9), “um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas, no final do século XX”. É essa mudança que vem abalando a ideia que temos de nós mesmos. Entre as paisagens culturais afetadas estão as de gênero, classe, sexualidade, etnia e raça, que durante muito tempo nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Nessa perspectiva Milton Santos (2005, p. 155) denuncia em postura discordante, que vários pensadores pós-modernistas se valem do conjunto de saberes geo-espaciais para afirmar, com base na aceleração contemporânea, que o espaço não existe, a região não existe, e o lugar também não existe mais”. Nessa lógica, se fala de

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“desvalorização do território [...]; de desterritorialização [...]; de banalização e homogeneização[...]; de precedência do tempo sobre o lugar[...]; de heterotopia [...]; de esvaziamento do tempo como condição para o esvaziamento do lugar[...]. (SANTOS, 2005, p. 155)

Discutir toda essa questão e postura apresentada por Milton Santos diante da linha dos pensadores pós-modernistas não é o nosso foca, a fala de Santos foi inserida em nosso trabalho para se comprovar a profunda relação existente entre os movimentos próprios da modernidade e os conceitos de identidade, cultura, etnia e espaço. Discutir a modernidade é, direta ou indiretamente, discutir os conceitos que esse trabalho tem por foco. Considerando nossa fala inicial sobre cultura e identidade e percebendo, pelos relatos literários já citados, que os processos de identificação dentro da obra são largamente explorados pelos autores vamos ao que os teóricos nos orientam sobre essa fase conhecida como modernidade, a fim de que, pela fala deles, possamos entender um pouco melhor as relações presentes em nível textual e o impacto dessa fase sobre a identidade e cultura. 5. Identidade e modernidade: uma aproximação conceitual Zygmunt Bauman (2001) nomeia essa fase da história como modernidade líquida. Ele justifica a sua metáfora argumentando que os líquidos têm a incrível capacidade de se adaptar ao espaço onde se situam e sob qualquer pressão se alteram. São instáveis. Em complemento a isso, associamos à ideia de liquidez à de leveza, logo, para o sociólogo polonês, ambas são “metáforas adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras, na história da modernidade” (2001, p.8). Nessa perspectiva, Felix Ventura, é uma grande metáfora das forças de liquefação. Felix é genealogista, um verdadeiro vendedor de passados. O seu trabalho é vender aos seus clientes “um nome que ressoe a nobreza e a cultura” (AGUALUSA, 2004, p.13). Para isso ele “traça-lhes a árvore genealógica. Dá-lhes as fotografias dos avós e bisavós, cavalheiros de fina estampa, senhoras do tempo antigo” (AGUALUSA, 2004, p.13). Felix pega a história de uma pessoa, sólida até então, uma vez que, teoricamente, o passado é imutável, e a liquefaz, para dar origem a um novo passado, com novas personagens e status. Felix, dessa forma, altera aquilo com o qual os seus clientes se identificam, a uma mudança étnica, pois os sentimentos de pertença desses indivíduos são profundamente alterados. O polonês divide a modernidade em duas fases, a primeira de cunho sólido e a segunda líquida. Na primeira fase, tinha-se uma sociedade organizada em torno de estruturas rígidas que lhe garantia homogeneidade, segurança, estaticidade, ou seja, na fase sólida, a sociedade possuía moldes permanentes, nos quais, elas se enquadravam. Na fase líquida, esses moldes foram derretidos, liquefeitos. As pessoas já não se guiam por essas fôrmas. Os humanos estão como folhas ao vento, pois, os “padrões, códigos e regras a que podíamos nos conformar, que podíamos selecionar como pontos estáveis de orientação e pelos quais podíamos nos deixar depois guiar, [...] estão cada vez mais em falta. ” (BAUMAN, 2001, p.14). O ser humano encontra-se abandonado à sua própria liberdade. Essa fala nos ajuda a entender um pouco da postura de Ponciá Vicêncio, ante seu nome. Este, possui uma carga histórica – sólida – carregada de 193


identificação com um sistema sócio-ideológico opressor. O sobrenome Vicêncio era sinônimo de dominação, uma perene lembrança de que Ponciá era subjugada. Daí a recusa do nome. Símbolo de um sólido social de até então. Esse quadro – solidez social- vem se desfazendo. Hoje, tem-se a fase líquida da modernidade. David Harvey nos ajuda a entender com mais clareza a fase líquida da modernidade. Essa fase (pós-moderna para Harvey) tem por características “A fragmentação, a indeterminação, e a intensa desconfiança de todos os discursos universais ou [...] ‘totalizantes’” (HARVEY, 2006, p.19). Dessa forma a diferença e a heterogeneidade são motrizes para a revolução cultural. No romance de Agualusa, quando o estrangeiro permite que a nova situação o batize, evidencia-se toda a fragmentação do homem que não consegue assumir uma realidade por inteiro, assumi-la totalmente, por estar em constante processo de mudança. A contemporaneidade rejeita tudo o que se coloca como universal. Os sólidos eram, por assim dizer, estruturas perenes que, com o clamor por liberdade, foram abandonados ou redefinidos pela nova ordem social. Nesse sentido, nos lembra Berman (1986), que a modernidade “anula todas as fronteiras geográficas e raciais de classe e nacionalidade, de religião e ideologia. ” (p. 15), isto é, todos os critérios assumidos pelas sociedades são destruídos pela contemporaneidade. Os sólidos estavam ligados ao tradicional. Hall afirma que “as transformações associadas à modernidade libertaram o indivíduo de seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas” (2015, p.18). O tradicional foi perdendo, ao longo do processo de liquefação, a sua força. Esta “prende” o indivíduo ao local, territorializa os laços mantidos pelas pessoas, porém, nesse novo momento, “para que o poder tenha liberdade de fluir, o mundo deve estar livre de cercas, barreiras, fronteiras fortificadas e barricadas. ” (BAUMAN, 2001, p.22). Isso implica que “qualquer rede densa de laços sociais, e em particular uma que esteja territorialmente enraizada, é um obstáculo a ser eliminado. ” (BAUMAN, 2001, p.22). Grande parte desse processo se liga a globalização. O local possui outra dimensão atualmente. Bauman alerta para o fato de que a característica moderna que se impõe como “atributo crucial” (2001, p.15) é “a relação cambiante entre espaço e tempo” (2001, p.15). A característica singular da globalização não é justamente o domínio do espaço pelo tempo? Hoje as distâncias são mínimas uma vez que, com o meio adequado, pode-se em um curto tempo cobrir extensões dantes nunca imaginadas. Hall retrata que um dos aspectos da problemática da identidade hoje mantém relação com o “caráter da mudança na modernidade tardia: em particular, ao processo de mudança conhecido como ‘globalização’, e seu impacto sobre a identidade cultural” (2015, p.12). As grandes transformações que vem ocorrendo nas sociedades, à alta integração da comunidade humana, as novas formas de se organizar, os norteadores da vida humana no hoje são fatores que muito mexeram na noção de identidade. Aliás, foi somente porque todo esse movimento ocorreu que a questão identitária apareceu como algo a ser discutido. Bauman lembra que a alguns anos tal questão não estava no road dos assuntos em alta, porém, hoje identidade é “‘o papo do momento’” (2005, p.23). Para essa virada na forma de se encarar a identidade foi preciso o vagaroso processo de desestruturação e a diminuição da força aglutinadora e integradoras 194


“das vizinhanças, complementadas pela revolução dos transportes, para limpar a área, possibilitando o nascimento da identidade – como problema e, acima de tudo, como tarefa. ” (BAUMAN, 2005, p.24) Essa fala de Bauman revela que foi preciso, para que a identidade esteja na ordem do dia, um processo delicado e contínuo de desterritorialização e a vitória do tempo sobre o espaço. Ambos os fenômenos desencadeados pela globalização. Essa realidade impacta a configuração identitária dos novos tempos. Como argumenta Hall. Este teórico escreve seu livro “A identidade cultural na pós-modernidade” pressupondo, por sua parte, “uma posição basicamente simpática à afirmação de que as identidades estão sendo ‘descentradas’, isto é, deslocadas ou fragmentadas” (2015, p.9). Em nossa visão, de fato, é uma oportunidade ótima que diversos grupos e indivíduos possam ter vez e voz. Isso só foi possível porque a modernidade quebrou com vários dos sólidos (preconceitos) mantidos até então. Por outro lado, o processo de liquefação gera uma crise identitária no âmbito comunitário, ou melhor, destitui a comunidade enquanto espaço privilegiado de transmissão da identidade. Uma das consequências disso está no fato de hoje a identidade ser uma tarefa/missão a ser realizada pelo sujeito e não mais algo assumido pelo indivíduo por um senso de pertença a um grupo. Até pouco tempo, a comunidade era a responsável por transmitir ao indivíduo a sua identidade. Hoje, há o processo de se desvencilhar das mesmas estruturas – tipicamente coletivas. A contemporaneidade impôs um individualismo egoísta. Este leva cada vez mais as pessoas ao isolamento de umas em relação as outras. Quanto a isso nos recorda Bauman: “A ‘individualização’ agora significa uma coisa muito diferente do que significava há cem anos e do que implicava nos primeiros tempos da era moderna” (BAUMAN, 2001, p.39-40). Aqueles eram “os tempos da exaltação da ‘emancipação’ do homem da trama estrita da dependência, da vigilância e da imposição comunitárias. (BAUMAN, 2001, p.39-40) Logo, a modernidade é um movimento ambivalente, ou seja, ela permite que as diferenças e os grupos minoritários se expressem, por outro lado, impõe um novo mecanismo de transmissão da identidade. Esta, hoje, não é algo que nos antecede, pelo contrário, ela é uma missão, uma tarefa que todos, indistintamente, temos de cumprir. Bauman resume sua fala da seguinte forma: “a ideia de ‘ter uma identidade’ não vai ocorrer às pessoas enquanto o ‘pertencimento’ continuar sendo o seu destino, uma condição sem alternativa” (BAUMAN, 2005, p. 17). A globalização quebrou esse inevitável pertencimento. Os indivíduos se tornaram cidadãos do mundo. Prova disso é que o assunto identidade está no discurso do dia. Enquanto Hall louva o fato de que as identidades estão descentralizadas (voltamos a repetir, uma consequência disso é que mais grupos tiveram vez e voz o que é ótimo) Bauman alerta para o fato de que “estar total ou parcialmente ‘deslocado’ em toda parte” (BAUMAN, 2005, p. 19) é, na verdade, “não estar totalmente em lugar algum” (BAUMAN, 2005, p. 19). O homem ao perder o senso do local, do pertencimento, tornou-se pertencente a todo ambiente, mas sem sê-lo totalmente. O homem se fragmentou. Marshall Berman nos alerta para o fato de que “Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, 195


autotransformação e transformação das coisas em redor” (1986, p.15) em contrapartida este “ser moderno” “ameaça destruir tudo que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. (1986, p.15). Desta fala, evidencia-se a ambivalência desse movimento. Bauman ao falar sobre identidade e juventude faz um alerta: “O que mais importa para os jovens é preservar a capacidade de remodelar a ‘identidade’ e a ‘rede’ no momento em que surge uma necessidade” (2011, p.19). As novas gerações em relação as anteriores se configuram em outras bases, alerta o sociólogo “A preocupação dos antepassados com a própria identificação, exclusiva e única, tende a ser deslocada pela preocupação com uma reidentificação perpétua. ” (2011, p.19) Esse processo pode ser observado tanto em Ponciá quanto em Felix. Ela, sempre à procura de si, ele fazedor de sonhos, ou seja, sempre construindo realidades verossímeis. 6. Conceição Evaristo e José Eduardo Agualusa: identidade e crítica social Como fundamentamos acima, as identidades hoje estão sendo jogadas ao vento, ou seja, em um processo de abandono, de troca de substituição. Esses efeitos são percebidos nas obras. O contexto da obra de Agualusa é a Angola pós-independente. Este pais está com uma burguesia emergente e desejosa de se livrar do passado de pais colonizado. Isso pode ser percebido no livro no episódio em que um ministro do governo - pessoa rica – vai até Feliz Ventura, para que este lhe venda um passado. O ministro é descrito como “um homem baixo, gordo, pouco à vontade dentro do próprio corpo” (AGUALUSA, 2011, p. 66). Este ministro é uma metáfora da abundância. Situação vivenciada pela minoria. Ana Cristina Pinto Bezerra (2012) afirma que Feliz Ventura, um legítimo angolano, possui “um ofício curioso, mas pertinente no contexto angolano em que a burguesia deseja apagar a sua memória colonizada negra e adquirir uma identidade branca” (p. 2). Uma análise atenta do livro nos leva a conclusão de que Felix Ventura é uma crítica a essa situação. No início do livro, no diálogo primeiro entre o vendedor de passados e José Bachman, apesar de ser albino, Felix não se identifica com a cor branca, ele se declara negro, um indivíduo autóctone. Desta forma, há, na construção de tal personagem, um tom político – ideológico do próprio autor. Esta é, até certo ponto, uma análise Marxista. Dizemos isso na esteira de Compagnon, quando esse afirma a grande crítica marxista: a vinculação entre: “literatura e ideologia” (COMPAGNON, 1999, p.36) O livro de Conceição Evaristo, analisado sobre esse viés, se torna uma grande crítica a uma sociedade que ofereceu aos negros uma liberdade formal, mas que de maneira alguma foi uma libertação de fato. Para usar uma metáfora linguística, poderíamos dizer que a classe dos escravos foi documentalmente reclassificada, mas na semântica da sociedade a mudança não ocorreu. Ponciá é uma inominada, assim como uma deslocada. Alguém situado no “não-lugar”. Alguém que indo para a cidade em busca de melhores condições, depara-se com a dura e triste realidade das novas formas de escravidão. Ambos os autores são críticos desse contexto. Eles buscam, por meio da literatura, que a realidade seja enxergada com outros olhos, que a vida e a 196


identidade sejam mais valorizadas e que as influências das modernidades sobre esses grupos não façam com que se percam as raízes que se constituem as bases do ser humano. Esses autores, ao contrário da tradicional literatura europeia que, “propõe, desde Cervantes, uma aprendizagem do indivíduo burguês” (CONPAGNON, 1999, p. 36), em outras palavras, uma literatura “comprometida com valores dos quais seria ao mesmo tempo causa e consequência, sendo o primeiro deles o indivíduo burguês” (CONPAGNON, 1999, p. 36), os escritores aqui analisados tem um compromisso com grupos minoritários, deixando isso evidente por meio de suas literaturas. 7. Considerações finais: Esse texto trouxe em caráter uma breve noção da articulação entre os conceitos de cultura, identidade e espaços. Isso na ótica geográfica linha do pensamento que embasou nossas análises das referidas obras. Fica evidente que o espaço, categoria subjetiva e socialmente construído, é onde uma identidade se constrói, onde as culturas se firmam, onde as territorialidades se criam. Nesse processo de análise se comparou as personagens Ponciá Vicêncio e Felix Ventura dos referidos romances. Percebeu-se os processos de construção identitária por meio do ato de nomear. Evidenciou-se, também, os muitos processos de mudanças inerentes as modernidades e o seu impacto sobre os conceitos trazidos a lume nesse texto. Nesse sentido, evidenciou-se as transições ocorridas com o advento das modernidades: as pessoas saíram de uma realidade onde a identidade era predeterminada para um mundo onde se pode escolher a identidade que se vai utilizar. Isso é fruto do processo de liquefação muito íntimo da globalização. Na perspectiva desse trabalho, tem-se por conclusão que Ponciá Vicêncio mantém intima relação com Felix Ventura. Ambas as personagens se colocam a cumprir a missão de edificar sua identidade. Ponciá se desgarra de sua comunidade de origem e vai à procura de outras realidades, Felix faz surgir novas identidades das cinzas do passado. Essa realidade relaciona-se com a construção da identidade hoje. Nós também estamos na incansável missão de construir nossas identidades e o fazemos a cada escolha, a cada decisão, a cada movimento que traçamos com nossas vidas. Movimento inscrito nos limites de nossos espaços.

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8. Referências Bibliográficas: AGUALUSA, José Eduardo. O vendedor de passados. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Gryphus, 2011. ALVES, Lídia Maria Nazaré. Clarice Lispector e Franz Kafka em cena: não tomar seu santo nome em vão. 2009. 217f. Tese (Doutorado em literatura Comparada) – Universidade Federal Fluminense/Instituto de Letras. BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2011. ________________. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. ________________. Modernidade Líquida. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. 2º.Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. BEZERRA, Ana Cristina Pinto. A construção do personagem Félix Ventura: o “vendedor de passados” de Agualusa. Revista Crioula. São Paulo, Nº 12, 2012. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/crioula/article/view/57865/60911> Acesso em: 26 de nov. de 2016 BONNEMAISON, Joel. Viagem em Torno do Território. In: CORRÊA, Roberto Lobato & ROSENDAHL, Zeni. (ORG.). Geografia Cultural. Rio de Janeiro, Ed. UERJ, 2002. BOSSÉ, Mathias Le. As questões de identidade em geografia cultural – algumas concepções contemporâneas. In: Paisagens, Texto e Identidade. Org.: CORRÊA, Roberto Lobato e ROSENDAHL, Zeny. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2004. CONPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. 1ª. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 12ª. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015. HARVEY, David. Condição pós-moderna. 15º. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1992. LIMA, Luiz Costa. Mimeses e modernidade: formas das sombras. 2ª. ed. São Paulo: Paz e Terra. 2003. SANTOS, Milton. O Lugar: Encontrando o futuro. In: ____________. Da totalidade ao lugar. 1ª. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005.

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CAMINHOS DA ALTERIDADE NO CONTEMPORÂNEO: UM OLHAR SOBRE DUAS IDOSAS NAS LITERATURAS BRASILEIRA E MOÇAMBICANA

Fernanda Soares Wenceslau87 Lídia Maria Nazaré Alves88 Leonardo Gomes de Souza89 Ivete Monteiro de Azevedo90 Adriana Sales Teixeira Carvalho91

RESUMO: Este trabalho procura demonstrar que nas sociedades modernas, movidas pelos mitos próprios desse tempo, criou-se a ideia de que o idoso deve manter a aparência de jovem. Aquele que não o faz, consequentemente, sofre processos de indiferenciação sócio-familiares. Diante disso, propõe-se a comparação entre o perfil e o lugar do idoso em textos literários que, a despeito de toda a arte que lhes conferem autonomia, representam uma realidade. Voltou-se o olhar para um conto de Clarice Lispector, “Feliz aniversário” e outro de Mia Couto “Sangue da avó manchando a alcatifa”. Iluminam esse estudo, Bauman (2001); Watt (1997) e Zimerman (2000). PALAVRAS-CHAVE: idoso-lugar-perfil. ABSTRACT: This work seeks to demonstrate that in modern societies, driven by own myths of the time, the idea that the elderly must maintain a youthful appearence. One who does not do so, suffer lack of socio-family processes. Given this, proposes a closer look at the profile of the elderly and their place within literary texts, wich despite all art that gives them autonomy, represents a formo f reality. Therefore, this study examines stories written by Clarice Lispector, “Feliz Aniversário” and by Mia Couto, “Sangue da avó manchando a alcatifa”. Illuminate this study Bauman (2001); Watt (1997), Zimerman (2000), and others. KEYWORDS: elderly-place-profile. 1. Introdução: revisão dos conceitos.

Graduanda da Universidade do Estado de Minas Gerais; fernadasoaressw@outlook.com Doutora em Literatura Comparada; Universidade do Estado de Minas Gerais; lidianazara@hotmail.com 89 Graduando da Universidade do Estado de Minas Gerais; leonardogomes.jhs@gmail.com 90 Doutora em Língua Portuguesa; Universidade do Estado de Minas Gerais; imazevedo62@gmail.com 91 Graduada da Universidade do Estado de Minas Gerais;salesteixeiracarvalho@gmail.com 87 88

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Este texto é fruto das reflexões iniciadas no projeto de pesquisa “As representações da crise: intercessão de fontes literárias” desenvolvido na Universidade do Estado de Minas Geria/Carangola com o apoio do PAPq/UEMG. Na perspectivo do referido desenvolve-se este texto, iniciando pela apreciação de conceitos chaves, a saber, literatura e velhice. O que é velhice? Segundo o dicionário, velhice é o “estado ou condição de velho / o último quartel da vida” e velho é aquele “que tem idade avançada; idoso / que existe há muito tempo”. Os valores e estereótipos associados à ideia de “velho” são bastante relativos e variam conforme a sociedade e a época histórica. A noção de velhice sempre existiu nas várias sociedades, ao longo da história. Muitos estudiosos já se dedicaram aos estudos sobre velhice, tais como Guita Debert, Ecléa Bosi, Norberto Bobbio e outros. Guita Debert In: Neri e Debert (1999) em seu artigo intitulado “A construção e a reconstrução da velhice: Família, classe Social e etnicidade”, procura apontar a heterogeneidade dos sujeitos empírico que essa categoria tende a englobar ou então reconstruir sua suposta homogeneidade, colocando-a sob novas perspectivas e mostrando o tipo de polêmica gerada nesse processo de construção/desconstrução da velhice e como redefinem a sensibilidade em relação aos idosos. Ecléa Bosi (1994) mostra através de seus entrevistados que a função social exercida durante a vida ocupada parte significativa de suas memórias e que isso não ocorre por acaso. A memória, na velhice é uma construção de pessoas, agora envelhecidas, que já trabalharam. Assim são homens e mulheres que já não são mais membros ativos da sociedade, mas que já foram. Assim a sua função social é lembrar e contar para os mais jovens a sua história, de onde vieram, o que construíram e aprenderam. Na velhice, as pessoas tornam-se a memória da família, do grupo e da sociedade. Norberto Bobbio (1997) em seus discursos autobiográficos, diz que os costumes nas sociedades evoluídas têm se transformado de forma tão rápida que o relacionamento entre as pessoas tem sido afetado, especialmente entre as pessoas que sabem e as que não sabem e, segundo esse autor, os velhos são aqueles que não sabem, pois, os jovens já nascem numa sociedade tecnológica com toda facilidade e condições para aprender e apreender as novidades e mudanças que vêm ocorrendo. Em “A Tecnologia do Gênero” de Teresa de Lauretis (1994) sobre os estudos de gênero fica esclarecido que não há uma diferença entre homem e mulher, existe é um discurso de relação que evolui à medida que a sociedade também evolui, a mesma representação pode ser dada aos idosos para perpetuar as diferenças estereotipadas impostas para diferenciar o que é “velhice”. O que é literatura? Antoine Compagnon (1999, p. 37) em seu livro “O demônio da teoria: literatura e senso comum” dissertando sobre a função da literatura, afirma que esta, “confirma um consenso, mas produz também a dissenção, o novo, a ruptura”. Essa realidade conduz a uma situação limite anunciada da seguinte maneira: “a

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literatura pode estar de acordo com a sociedade, mas também em desacordo; pode acompanhar o movimento, mas também precedê-lo” (CONPAGNON, 1999, p.37). A realidade anunciada pelo teórico francês liga vida e arte, memória e construção social, impulso, resistências e construção. A arte, neste caso a literatura, é uma legítima representante das humanidades e, também por isso, nos permite novos olhares sobre múltiplos contextos legitimados ou não por esse humano. Trabalhamos com textos escritos em contextos históricos e sujeitos, ao que parece, distantes, no que toca à cultura, às visões de mundo. Mas, não obstante as distâncias geo-históricas, se tem, pela pena de ambos os escritores, a crítica a um contexto que extrapola o local, enquanto dimensão geograficamente restrita, isto é, tem-se, devido em grande parte aos movimentos próprios da atual fase histórica, um abandono do tradicional - o que acarreta na perda das memórias, que justifica, em nosso texto, termos como, ‘memória como refúgio”. Há uma identidade que se está perdendo, uma crise que, aos resistentes, está levando ao refúgio. Esses fatos nos embasam ao analisarmos o conto de Mia Couto “Sangue da Avó manchando a alcatifa” e o conto de Clarisse Lispector “Feliz Aniversário”. Tais autores antecedem, como já feito a alusão, a um movimento social em favor do idoso. Movimento este, que também é de ruptura com a postura pós-moderna, ou, na esteira de Zygmunt Bauman (2001), “Modernidade Líquida”. No contexto de abandono denunciado pelos autores, o idoso é colocado à margem. Percebe-se um movimento de resistência das senhoras dos contos. Ambas desejam preservar suas memórias, não como simples saudosismo, mas de maneira dinâmica, como forma de transformar a situação presente e força mantenedora de sua identidade e cultura. Na dinâmica entre Literatura e Sociedade, deve-se entender a complexidade da arte da linguagem escrita, que está para além de sua extensão, sendo assim composta por uma parte sólida (sua extensão) que é mensurável e uma parte que se guarda como num mistério, face que só pode ser alcançada pela própria experiência do literário que, em seu cunho humanístico, possibilita, a partir do contato com o texto literário, certo princípio de transcendência levando o leitor ao encontro consigo mesmo, por meio do contato com o que se encontra em seu âmago mais profundo. A Literatura mimetiza de acordo com o período histórico em análise, em outras palavras, a extensão é sempre mutável e em câmbio permanente de interesses com a sociedade. Isso encontra apoio ao fato de se expor temas expressivos e socialmente abrangentes como, alteridade, cultura, identidade dentre outros assuntos que necessitam ser sempre reparados por toda a sociedade. Orientada por esse caminho, a literatura atinge sua proposição, no que tange à reconstrução e reconhecimento de experiências vividas, consolidando-se mantenedora da memória. 2. Ressinificando visões sobre a velhice Segundo Bosi (1994, p.18) “A função social do velho é lembrar e aconselhar – memini, moneo – unir o começo e o fim, ligando o que foi e o porvir. Mas a sociedade capitalista impede a lembrança, usa o braço servil do velho e recusa seus conselhos, sociedade que, diria Espinosa, “não merece o nome da Cidade, mas o de servidão, solidão e barbárie”, a sociedade capitalista desarma o velho mobilizando

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mecanismos pelos quais oprime a velhice, destrói os apoios da memória e substitui a lembrança pela história oficial celebrativa. No entanto a sociedade capitalista moderna utiliza determinados mecanismos de opressão para agenciar o velho. Ser velho em nossa sociedade é lutar para continuar sendo homem, aprender lidar e a conviver com tais mecanismos. A opressão da velhice é realizada de várias maneiras, algumas explicitamente brutais, outras permitidas. Oprime-se o velho por mecanismos institucionais (burocratização dos processos de aposentadoria e de asilamento), por mecanismos psicológicos (desprezo disfarçado em paternalismo), mecanismos técnicos (próteses e prolongamento de estágios terminais dolorosos) e mecanismos científicos (pesquisas corroborando as dificuldades e incompetências do velho). Na velhice, a função da pessoa idosa na sociedade é a de lembrar, tornando-se a memória viva da família, do grupo, da instituição, da sociedade e quando a sociedade a impede de exercer essa função de agente social pode promover um adoecimento psíquico, resultando um contexto social perverso. Conforme afirma BOSI (1994), na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Alteridade é ser capaz de aprender o outro na plenitude da sua dignidade, dos seus direitos, valores, e, sobretudo da sua diferença. E como falar em igualdade quando se estuda a diferença? Como perder a diferença se é ela quem justifica as reivindicações? Alteridade implica um processo cognitivo (e, muitas vezes, ideológico) que se manifesta dentro do sujeito e consequentemente dentro da sociedade. Assim podemos perceber que alteridade está nas guerras, no racismo, e na discriminação. No entanto a sociedade precisa estar preparada para uma alteração de seus modos de pensamento sobre questões como, raça, gênero, nação e identidade. O importante é saber que o que está em jogo não é só a diferença, pois a diferença está pelo mundo todo. A questão é como lidamos e a forma pela qual interpretamos essas diferenças. Daí a necessidade de refletir e analisar o conceito de alteridade. Na literatura, assim como na sociedade, a alteridade é sempre uma construção. Gayatri Spivak em seu artigo “Quem reivindica alteridade? ” argumenta que é através do projeto de reconstrução da história ou da criação de histórias alternativas que podemos conseguir sustentar “vozes sempre mutantes sob uma perspectiva alternativa”. Para Spivak, só podemos entender a alteridade se aprendermos a ouvir essas vozes e desaprendermos os privilégios da elite do mundo. Para Debert (1999, p. 63) “Não é o avanço da idade que marca as etapas mais significativas da vida; a velhice é, antes, um processo contínuo de reconstrução”. Assim, torna-se necessário o reconhecimento da individualidade advinda da diversidade de situações, de contextos sociais, de contextos históricos e sócioeconômicos nos quais o sujeito vai se construindo como ser. Alguns autores, ao tratar da própria velhice, têm um tom de amargura, enquanto outros parecem mais acomodados e até se mostram felizes com a sua condição. Será por que essa diferença? Bobbio escreve aos 86 anos, um livro de memórias no qual relata a velhice de uma forma realista e, por vezes, pessimista. Em uma determinada passagem afirma: 202


Tenho uma velhice melancólica, a melancolia subentendida como a consciência do não realizado e do não mais realizável. A imagem da vida corresponde a uma estrada cujo fim sempre se desloca para a frente, e quando acreditamos tê-lo atingido, não era aquele que imaginávamos como definitivo. A velhice passa a ser então o momento em que temos plena consciência de que o caminho não apenas não está cumprido, mas também não há mais tempo para cumpri-lo, e devemos renunciar à realização da última etapa. (BOBBIO, 1997, p.31).

Para Bobbio, ao velho só resta recordar, pois o grande patrimônio da pessoa idosa é o mundo da memória que consegue, através de reflexões e lembranças, ter de volta pessoas, lugares, romances lidos na adolescência, enfim, um mundo de coisas e pessoas há muito desaparecido e que pode ser trazido à superfície durante uma conversa, uma leitura ou mesmo quando vamos à sua procura. A memória dos velhos é o que os faz viver, de acordo com Bobbio e, como essa memória torna-se cada vez mais fraca, é preciso, segundo esse autor, apressar o passo. Uma observação que Bobbio faz é que o tempo da memória é inverso ao do tempo real, isto é, quanto mais distante o tempo, mais vivas as lembranças que vêm à tona e que representam uma menor parcela da história de nossa vida, mas que, apesar de menor, “[...] devemos continuar a escavar! Cada vulto, gesto, palavra ou canção que parecia perdido para sempre, uma vez reencontrado, nos ajuda a sobreviver.” (BOBBIO, 1997, p. 55). 3. Mia Couto: a memória como refúgio O advento da liquidez moderna, conceito realçado pelo teórico Zigmund Bauman (2001), pressupõe uma realidade condicionada aos meios de comunicação, como principal fonte de informação à sociedade. Isso permite a substituição de uma identidade construída através dos valores tradicionalistas: costumes e propostas cultivados por uma sociedade que preza por ensinamentos intergeracionais. Ainda nessa perspectiva, percebe-se a velhice como processo de construção e desconstrução relacionados a um discurso homogêneo aplicado a todos que estão com idade avançada. Essa postura líquida, tem como uma das consequências o abandono físico e psicológico dos idosos. Tem-se então, o que se caracteriza como tentativa de silenciamento, ligada aos idosos, representada, segundo Guite I. Zimerman (2000, p.24), como crise identitária, atrelada à ausência de papel social, que constitui a inutilização dessa classe. Torna-se claro que, àqueles subjugados, réus de um discurso marginalizador, configuram-se deficientes das relações de cuidado e afeto em nível sócio-familiar. Nesse norte, o conto “Sangue da avó, manchando a alcatifa”, do livro Cronicando (1999), de Mia Couto, mimetiza as contraposições dos processos tradicionais versus os modernos. Ao que se espera em discursos proverbiais, encontra-se no início do texto, a subversão de uma ordem natural que rompe a expectativa relacionada ao desenvolvimento da história, criando assim, um novo sentido de abertura para o conto:

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Siga-se o improvérbio: dá-se o braço e logo querem a mão. Afinal, quem tudo perde, tudo quer. Contarei o episódio evitando juntar o inútil ao desagradável. Veremos, no final sem contas, que o último a melhorar é aquele que ri. (COUTO, 1991, p.29)

O enredo começa a discorrer, revelando acenos próprios das várias identidades que moldam a cultura moçambicana e o contexto vivido em Maputo, razão pela qual a avó, personagem principal, é retirada de suas origens. Mandaram vir para Maputo a avó Carolina. Razões de guerra. A velha mantinha magras sobrevivências lá, no interior, em terra mais frequentada por balas que por chuva. Além disso, a avó estava bastante cheia de idade. Carolina merecia as penas. (COUTO, 1999, p.29)

Tem-se aqui, em correlações dos articulistas, o peso da referência nominal inerente à tradição africana, evidenciando estruturas culturais relacionadas ao povo colonizador, ou seja, o povo português. Ana Bénard da Costa (2004, p.344) fala algo sobre isso. A atribuição de um nome próprio a uma pessoa é algo de fundamental. O nome confere uma identidade individual e simultaneamente familiar à pessoa e integra-a no grupo e na sociedade, posicionando-a em relação aos outros com quem interage.

Reassumindo a análise do conto, entende-se a real necessidade da avó ter sido retirada do seu lugar para a transposição ao novo espaço, incomum aos princípios encarnados por ela. Diante disso, percebe-se que de um lado está parte da população, que acata os processos capitalistas e, do outro, Dona Carolina, representando a resistência às mudanças de valores. Em dado momento, a protagonista procura justificar os artifícios de luxo da casa da filha ao pós-independência, confirmando o orgulho relacionado aos belprazeres de seus “meninos”. Ela constitui o produto mimético que viabiliza, no interior do conto, o resgate à memória, vivenciando momentos em que a própria família desvaloriza o processo cultural atrelado à transferência de valores intergeracionais. Ela, que na aldeia tanto enaltecia os preceitos familiares (e pensava encontrá-los também na casa da filha), se vê em uma situação em que a contemporaneidade fez com que, não mais a memória e tradição conferissem e concedessem vivacidade às suas ideologias. Dias (2014) realça esse fato: Mesmo tudo aquilo se configurando como ‘coisas externas’ ou incomuns à sua vivência na aldeia, tornam-se motivos de orgulho, haja vista seus ‘meninos’ estarem gozando de abundância ou de algum conforto material conquistado principalmente após a Independência de Moçambique. (DIAS, 2014. p.7)

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2001) atesta que a tradição é um dos elementos que foi diluído, liquefeito no interregno da modernidade sólida para a modernidade líquida. Esse processo ocorreu em vista do desenvolvimento econômico. Assim fala ele: “O derretimento dos sólidos levou à progressiva libertação da economia de seus tradicionais embaraços políticos, éticos e culturais” (BAUMAN, 2001, p. 10). Esse fato impactou altamente o cotidiano e as relações das 204


pessoas, pois construiu uma nova ordem social “definida principalmente em termos econômicos” (idem, p.10). Todo esse contexto retira da idosa o espaço que sempre teve no âmago familiar. Dona Carolina, no agora, representa a inutilidade. Percebe-se aqui, o desprezo frente aos antigos valores da anciã, sendo esta, diversas vezes menosprezada. Isso revela a tentativa de renegar a herança cultural do idoso como figura autêntica do saber e precursor das experiências e ensinamentos. Sem se preocupar ou perceber tal fato, os familiares colocavam a avó para assistir televisão e, sem qualquer sentimento de culpa, geravam seu abandono. Ao ver os filhos e os netos assistindo ao vídeo, ela relembra quando se sentavam em volta das fogueiras – memória que nos faz perceber a identidade arraigada, haja visto que, antes, os ensinamentos dos mais velhos eram partilhados e atentamente absorvidos pelos jovens, ao contrário do que ocorre na presente cena, em que a televisão transmite as informações necessárias, retirando assim, o espaço e a importância de seus ensinamentos. Justifica-se então, a tentativa de silenciamento para com a idosa. “Quase lhe vinha um sentimento doce, a memória da fogueira arredondando os corações, mas agora os filhos e netos se fechavam numa roda assistindo vídeo.” (COUTO, 1999, p.30) Baudrillard (2000, p. 294) atesta que A sociedade se faz maternal para que melhor preserve uma ordem de coerção. Vemos por ai o imenso papel político que desempenham a difusão dos produtos e as técnicas publicitárias: asseguram propriamente a substituição das ideologias anteriores, morais e políticas

Na perspectiva desse autor, tendo como fundo de análise o conto, a avó diante da televisão representa um embate entre a tradição e modernidade. A avó resistindo a modernidade e os netos sendo formados por ela. Quando a avó se lembra das fogueiras, ela está se recordando do lugar de formação tradicional. Este, substituído pela TV - principal vinculadora das publicidades. As novas gerações, formadas pelos novos meios de comunicação, esquecem suas raízes e suas memórias, por fim, sua tradição. Outra teórica que nos ajuda a perceber esse processo é Myriam Lins de Barros, no ponto em que diz “é no mundo do vivido que as identidades se constroem e se afirmam e é do passado que os velhos se nutrem” (BARROS, 2007, p.211). A família, na ótica da idosa, compõe a tradição como herança na construção dos valores da personalidade de cada um. Estes, eram transmitidos no núcleo familiar de entorno às fogueiras agora substituídas pela televisão. No trecho seguinte, a avó, rejeitada por todos, expõe o desejo de retornar à sua casa. Os filhos, que julgam os trajes da idosa ultrapassados, lhe ofereceram roupas bonitas, sapatos de muito tacão e até um par de óculos para corrigir as atenções da idosa senhora. Carolina cedeu à tentação. Bonitou-se. Pela primeira vez saiu a ver a cidade.” (COUTO,1999, p.30)

A avó parece ceder aos encantos do mundo que tentam nela incorporar. Porém, vai às ruas e logo encontra “meninos farrapudos” (COUTO, 1999, p.31), situação que transmite à ela a lembrança de sua cidade tomada pela guerra. Então, retorna à casa da filha, se desfaz de toda a riqueza que a deram, e revive suas

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origens, sobretudo as capulanas. “Da mala de cartão retirou as consagradas capulanas, cobriu o cabelo com o lenço estampado.” (COUTO, 1999, p.31) A citação acima confirma a resistência aos hábitos da modernidade e nos traz a noção de que, mesmo com todo o repúdio dos filhos, a avó não se desvincula em momento algum de sua identidade. Sentou-se na sala, “inexistindo, entre os parêntesis dos parentes” (COUTO, 1999, p.31) – comprovação da solidão em que Dona Carolina se encontrava, tendo em vista a perda dos laços de família, antes cultivados de maneira recíproca (DIAS, 2014). A reportagem transmitida pela televisão era sobre a guerra e o desespero interior fez com que a avó atirasse a bengala contra a TV. Esse gesto da idosa se manifesta como um grito pedindo para que na nova fase – contemporaneidade –as culturas tradicionais tivessem lugar: A reação dos que estavam de entorno à cena revela que, nesse novo contexto, a resistência ao mesmo pode ser surpreendente e até incompreendida: “Primeiro todos se estupefactaram. Os meninos até choraram, assustados.” (COUTO, 1999, 31) Zygmunt Bauman constata tal situação ao afirmar que “poucas pessoas desejam ser libertadas” (2001, p. 23). Isso porque estamos em uma sociedade que “‘cumpre o que prometeu’” (2001, p. 23) ou seja, garante todo o conforto que há muito ela vem atestando que a sociedade alcançaria. Ao recolher os estilhaços e os colocar em um saco plástico, a avó corta-se. O sangue escorre e as gotas pingam no tapete. Dando relevo ao título, essa cena descreve a representação identitária da avó, refletindo a voz de todo o sofrimento contido no processo da guerra: alteridade negada, esquecimento da memória e resistência aos valores tradicionais. No outro dia, Dona Carolina regressa a Maputo sem demais notícias. Os familiares, logo recompostos, aumentavam ainda mais a riqueza e superficialmente recordavam-se da idosa – julgada como louca. O sangue da avó permaneceu na alcatifa, simbolizando a tradição de uma população que clama pela valorização de sua cultura, apagada pela modernidade. 4. Clarice Lispector: a memória abandonada Clarice Lispector, no conto “Feliz aniversário” do livro “Laços de família” (1960), narra os acontecimentos da festa de aniversário de uma senhora que completa oitenta e nove anos. Um ambiente de celebração, que, ao que se espera, reúne parentes próximos e distantes, em um contexto construído através dos valores, aparentemente importantes para tais pessoas. A trama ocorre em todo o tempo na casa da filha, Zilda, “única mulher entre os seis irmãos homens e a única que, estava decidido já havia anos, tinha espaço e tempo para alojar a aniversariante”. (LISPECTOR, 1960, p.29) O descaso com a idosa e a desconstrução da figura matriarcal, são retratados nessa cena: para adiantar o expediente, vestira a aniversariante logo depois do almoço. Pusera - lhe desde então a presilha em torno do pescoço e o broche, borrifara lhe um pouco de água-de-colônia para disfarçar aquele seu cheiro de guardado – sentara à mesa. E desde as duas horas a aniversariante estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia, tesa na sala silenciosa” (LISPECTOR, 1960, p.29)

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Os primeiros convidados foram os de Olaria, representando a classe média alta, trajados para além da ocasião. A nora, demonstrando não depender desses parentes, veio (com os três filhos) para suprir a ausência do marido que “não queria ver os irmãos” (LISPECTOR,1960, p.29) justificando também, o não rompimento com a família. Nesse trecho, a aniversariante encontra-se na cabeceira da mesa, “uma velha grande, magra, imponente e morena. Parecia oca” (LISPECTOR, 1960, p.30). Percebe-se aqui, a imposição da figura matriarcal, que metaforicamente, ocupa o lugar de representação superior dentro do contexto familiar. No entanto, o cenário em análise não a coloca em tal patamar. A presença da idosa é indiferente e marcada, paradoxalmente, pelo abandono no que diz respeito à quantidade de pessoas que se dispõem ali para a festa da idosa (que deveria ser enaltecida) e a real importância que ela tem dentro do patrimônio familiar. Entra em cena o filho mais velho, José, que agora era o responsável pelo discurso, uma vez que Jonga havia falecido (filho predileto) e Manoel, identificado como seu sócio, sempre comedido devido à presença de sua esposa (figura que apenas recrimina o marido durante todo o texto). Em seguida, a nora de Ipanema, acompanhada pelos dois netos e a babá, O trecho que se segue, apresenta filhos e netos cantando, alguns em inglês, outros em português. Era a hora de partir o bolo, “e de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação, como se hesitando um momento ela toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com punho de assassina.” (LISPECTOR, 1960, p.31) O neto, de sete anos, era “único a ser a carne de seu coração, Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e despenteada.” (LISPECTOR, 1960, p.32). Notamos que este, já cultiva os valores referentes aos ensinamentos da avó, e, sem entender a situação em pauta, encontra-se distante, físico e psicologicamente. Nessa passagem, observamos reflexões no que diz respeito aos tempos de casada de D. Anita, nome mencionado apenas uma vez e pela vizinha – destaca-se aqui a desconsideração dos filhos para com a idosa, haja visto que uma pessoa não vinculada consanguineamente reproduz a subjetividade identitária tão significativa para cada pessoa. Ela relembra a admiração e respeito do esposo com relação a ela e, principalmente, o momento em que ele se fez presente. No entanto, se impressiona ao tentar entender a frieza dos filhos. “Como?! como tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos?” (LISPECTOR, 1960, p.32) Nesse trecho, ela tenta compreender a aparente felicidade dos filhos, que não conseguem exaltar o valor representado em suas origens. “Pareciam ratos se acotovelando, a sua família.” (LISPECTOR, 1960, p.32) Indignada com a simulação dos laços afetivos da família, Dona Anita “incoercível, virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no chão.” (LISPECTOR, 1960, p.32) Preocupada com o que iriam pensar os outros convidados, Zilda justifica a atitude da mãe: — Mamãe, que é isso! — disse baixo, angustiada. — A senhora nunca fez isso! — acrescentou alto para que todos ouvissem, queria se agregar ao espanto dos outros, quando o galo cantar pela terceira vez renegarás tua mãe. (LISPECTOR, 1960, p.32)

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A idosa pede um copo de vinho e a festa termina. Todos se desdobram em fingimentos, prometendo retornar no próximo ano para o aniversário da idosa. Esta, apenas questiona se lhe servirão o jantar durante a noite. O conto descreve a passagem da relação familiar de um tom de proximidade e companheirismo para uma família individualizada. Tal transição, prototípica dos tempos contemporâneos, revela que Clarice Lispector aproxima sua escrita à escrita mitológica. Esse aceno se dá pelo fato de, nos estudos de Ian Watt, mito ser definido como “uma história tradicional largamente conhecida no âmbito da cultura, que é creditada como uma crença histórica ou quase histórica, e que encarna ou simboliza alguns dos valores básicos de uma sociedade.” (1997, p. 16). O texto de Clarisse não se justapõe, perfeitamente, ao conceito, mas é inegável a proximidade, principalmente no ponto em que o postulado wattiano percebe o mito como encarnador dos valores de um grupo num determinado período de tempo. Zygmunt Bauman (2001, p. 47) atesta que o individualismo é uma realidade que “chegou para ficar”. Isso significa que a memória (que até então tinha caráter coletivo) sofre drásticas mudanças. Uma das causas dessas mudanças, é a extrema alteração do contexto social provocada pelo processo de liquefação. Os padrões, códigos e regras a que podíamos nos conformar, que podíamos selecionar como pontos estáveis de orientação e pelos quais podíamos nos deixar depois guiar, [...] estão cada vez mais em falta (BAUMAN, 2001, p. 14).

Isso revela que as estruturas que formaram nossos pais, sujeitos “de uma identidade unificada e estável” (HALL, 2015, p. 9) não são as mesmas que nos formam, os valores de nossos ancestrais têm cada vez mais dificuldades de serem assumidos pelas novas gerações. A memória de nossos antepassados dificilmente encontra ouvidos para ser escutada. O texto de Clarice deixa isso muito claro. 5. Uma quase conclusão A velhice é um constructo cercado de complexidade e subjetividade. O processo de envelhecimento ocorre em um contexto de desigualdades sociais, econômicas, políticas e ideológicas. Desse modo, um bom relacionamento social e familiar e a capacidade de interagir socialmente é o suporte indispensável na velhice e que fortalece a própria identidade. Reconhecidamente a família tornou-se, com o desenrolar da história humana, um espaço que, ao mesmo tempo em que é entendido como físico, enquadra-se também em lugar simbólico e de relações sociais. Sendo assim, a família é um lugar privilegiado na construção social da realidade. Em sua dinâmica e heterogeneidade, a família não pode ser entendida como algo acabado, mas que passa por constantes transformações atreladas momentos históricos, grupos sociais e culturais. A essas invariáveis transformações cada pessoa pode atribuir múltiplos sentidos e significados a sua própria família. Não havia no período anterior ao advento da modernidade e, essencialmente, da idade cronológica, uma ideia clara e precisa de quando se iniciava a velhice e nem da definição de quem era velho. Mesmo porque a expectativa de vida raramente ultrapassava os 35 anos, dada a grande mortalidade infantil e a precariedade dos serviços sanitários e de saúde. Portanto na antiguidade, uma pessoa de trinta ou quarenta anos poderia ser considerada 208


“velha”. O ancião de mais de sessenta anos era uma raridade e é por esse motivo, dentre outros, que ele era venerado e respeitado na maioria das sociedades do passado. Grande exemplo disso é a figura do personagem bíblico Abraão, representante mais popular e que retrata o respeito com que os idosos eram tratados nas sociedades tradicionais. Mas só com o surgimento das ciências e farmacológicas e com a melhoria do saneamento básico, ocorridos a partir do século XIX na Europa e nos EUA, que a expectativa de vida passa a aumentar, assim como aumenta o número de pessoas que chegam à velhice. No entanto nas sociedades industrializadas, a questão da velhice se colocava essencialmente para aqueles que não podiam assegurar financeiramente o seu futuro, ou seja, indivíduo paupérrimo, improdutivo, que não oferece mais condições de rendimento. Porém nas classes mais abastadas, entre a burguesia industrial e os demais aristocratas, a velhice não era vista como etapa negativa, mas sim como auge do acúmulo de riquezas e de títulos sociais; não eram chamados de velhos e sim de idosos. A velhice é o que acontece aos seres humanos que ficam velhos; impossível encerrar essa pluralidade de experiências num conceito, ou mesmo numa noção. Pelo menos, pode-se confrontá-los, tentando destacar deles as constantes e dar razões às suas diferenças. Não se trata de homogeneizar, mas de integrar as diferenças, pois o idoso permanece, sempre, o mesmo ser humano. Paulo de Salles Oliveira (2013, p. 92) definindo a memória a partir de Bérgson afirma que “a memória é o esforço por fazer vir à superfície o que estava imerso e oculto, movimento este que restringe o campo de indeterminação e a dúvida do sujeito”, levando-o a retomar práticas consagradas, que anteriormente tinham sido bem-sucedidas. Nessa ótica, no mundo pós-moderno produtor de um sujeito “conceitualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente” (HALL, 2015, p.11) as idosas desejam manter inalteradas suas memórias como sendo essas, possuidoras da chave de suas identidades, como maneira de projetar o seu “eu” sobre a realidade. No contato entre Clarice Lispector e Mia Couto tem-se um clamor para que o idoso seja respeitado como sujeito de direito e detentor da memória social, do passado de um povo. Ambos denunciam o descaso próprio das sociedades, na esteira de Stuart Hall (2015), pós-modernas para com o idoso. Esses autores constroem um enlace entre memória, identidade e comportamento social. Uma postura, como já ressaltado, própria da literatura. Ambas as idosas fazem emergir suas memórias a partir do choque entre realidades, evidenciando as marcas do passado que, apesar de serem suprimidas após o processo de Independência, retornam. Tudo isso se passa em ambientes que podemos denominar “lar”. Segmentados por Lucas Esperança da Costa, na esteira de Terkenli, norteamos a ideia de que a pluralidade linguística, étnica e cultural compreende a formação de uma identidade. A assimilação dessa diversidade no que tange à interação, faz com que o ser humano se identifique com a mutualidade presente em determinado lugar, que proporciona mudanças ou semelhanças em seus comportamentos ou relações sociais. Essa conjugação atrelada ao lugar comum, propicia o sentimento de pertença àquele mundo, criando assim, a circunstância emocional que o coloca em um lar. Logo, lar apropria-se do que se postula memória. 209


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