Diálogos entre culturas e sociedade: Anais da I Jornada de Estudos Linguísticos e Literários

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ANAIS DA I JORNADA DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA

DIÁLOGOS ENTRE CULTURAS E SOCIEDADE

ORGANIZAÇÃO: WÂNIA TEREZINHA LADEIRA JOELMA SANTANA SIQUEIRA


Equipe Editorial


Sumรกrio




Apresentação

DIÁLOGOS ENTRE CULTURAS E SOCIEDADE Anais da I Jornada de Estudos Linguísticos e Literários Programa de Pós-graduação em Letras Universidade Federal de Viçosa


A I Jornada de Estudos Linguísticos e Literários – diálogos entre culturas e sociedade aconteceu entre os dias 31 de outubro e 01 de novembro de 2016, no Departamento de Letras, com apoio do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Viçosa. A iniciativa do evento partiu dos discentes Ana Paula Lopes da Silva, Denise de Souza Assis, Diana Gonzaga Pereira, Diego Cardoso Perez, Estela da Silva Leonardo, Flavia Marina Moreira Ferreira, Francyane Canesche de Freitas, Giovana Berbert Lucas, Isabelle de Araujo Lima e Souza, Marta Aguiar da Silva, Moniki Andrade Costa Lins, Regina Costa Nunes Andrade, Camila Galvão de Souza e Katrícia Costa Silva Soares de Souza Aguiar. O objetivo pretendido era, sobretudo, divulgar as pesquisas e fortalecer os diálogos entre as duas áreas de conhecimento do Programa – Estudos Literários e Estudos Linguísticos. A conferência de abertura do evento, intitulada “Um extraordinário poema heróicómico do brasileiro Francisco de Melo Franco: O reino da estupidez” foi realizada pelo professor emérito da Universidade do Porto, Arnaldo Saraiva, que, tendo em vista o tema “diálogos entre culturas e sociedade”, apresentou uma análise deste poema que, publicado anonimamente em Paris, em 1818, e atribuído ao brasileiro Francisco de Melo Franco, como nos demonstrou o conferencista, prova que a estupidez pode instalar-se onde menos se espera e até mesmo “no reino da inteligência”. A programação incluía minicursos, palestras, mesas-redondas e comunicações. Três minicursos foram ministrados por professores da UFV: Rony Petterson, sobre discurso acadêmico-científico; Cristiane Cataldi, sobre a ciência na mídia, e Dirceu Magri, sobre a presença francesa nas crônicas machadianas. Duas mesas-redondas, sobre “Formação de professor” e “Literatura e sociedade”, respectivamente, contaram com a presença de professores internos e externos ao Programa: Ana Maria Barcelos, Hilda Simone Coelho, Vanderlice dos Santos Sól, Ângelo Faria de Assis, Rodrigo Garcia Barbosa, Yllan de Mattos Oliveira e Roberta Guimarães de Assis. A conferência de encerramento, sobre masculinidade e violência no romance de 1930 brasileiro, foi realizada por Juan Filipe Stacul, pós-doutorando PNPD do Programa e autor no livro recém-lançado Homem em Cena (2017). O evento obteve boa acolhida entre os estudantes que submeteram suas pesquisas para apresentação oral de acordo com os seguintes eixos temáticos:

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Ensino e Aprendizagem de Língua Materna e Língua Estrangeira; Estudos Discursivos; Experiências e práticas de ensino; Formação de professores; Libras, Cultura e Ensino; Literatura, História e Memória; Literatura e Sociedade; Literatura e outros campos do conhecimento; Multiletramentos e tecnologias. Observa-se que houve maior número de trabalhos voltados para a ênfase no ensino e nas mediações da literatura com outras áreas do saber. Lembramo-nos que José Luiz Fiorin, em 2008, concluiu o artigo “Linguagem e interdisciplinaridade”, publicado na Revista Alea, com a resposta à pergunta se seria possível renovar o diálogo entre a linguística e a literatura, se esse diálogo tinha chance de realmente acontecer. Sua resposta, como ele mesmo observou, pessimista, era negativa, pois exigia mudanças fundamentais em nossa forma de pensar a ciência. Exigia disposição para mudar hábitos intelectuais, respeito pela diferença, abertura para a alteridade, vontade de abandonar a comodidade de trilhar os sendeiros já batidos. Seria necessário olhar para nossos vizinhos de sala sem desprezo; admitir que, em ciência, não há feudo, não há exclusividade; reconhecer a legitimidade do outro para tratar do assunto em que se é especialista. Entretanto, a ciência desertou de nossas escolas, pois, quando um ponto de vista teórico ou um campo do saber são vistos como a totalidade do conhecimento, como a verdade, estamos longe do discurso científico e muito perto do discurso religioso. Aí a aventura da interdisciplinaridade some, porque aparecem sumos sacerdotes, dogmas, interdições, excomunhões... A triagem sobreleva a mistura. É isso que vivemos em nossas "igrejas", que estão fazendo estiolar qualquer projeto científico (FIORIN, 2009,

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p.52)1. Iniciativas como as dos discentes do Programa de Pós-graduação em Letras da UFV apontam para a necessidade de continuarmos buscando fazer acontecer diálogos nas Letras. Ainda estamos longe de atingir esse objetivo com louvor, uma vez que continuamos dividindo nossos trabalhos em eixos temáticos em que diálogos não lhe são inerentes, ou seja, unimo-nos para continuarmos separados. No entanto, será por meio da percepção de nossos erros que teremos a chance de melhorar. A iniciativa dos discentes é louvável por nos fazer pensar de novo sobre a ausência de diálogo em que nos encontramos. Os trabalhos apresentadores foram entregues na forma escrita (com revisão a cargo de cada autor), para comporem esses anais que, por poderem ser acessados livremente pelo público interessado, contribui para o objetivo de divulgação científica pretendido com o evento.

Organizadores Wânia Terezinha Ladeira Joelma Santana Siqueira

1 Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/alea/v10n1/v10n1a03.pdf> Último acesso em 26/03/2017.

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FACSÍMIL DE ALEJANDRO ZAMBRA E PROCESSO CRÍTICO NO ENSINO DE ESPANHOL COMO E/LE Diego Cardoso Perez Mestrando em Letras pela Universidade Federal de Viçosa. E-mail: diego.perez@ufv.br

Resumo: Com a promulgação da lei 11.161 de 2005 que fazia obrigatória a oferta da Língua Espanhola para o Ensino Médio, bem como outras políticas públicas que incentivavam a um ambiente propício ao seu ensino no contexto nacional recente, vimos a proliferação de materiais didáticos, pesquisas e mesmo o estabelecimento de cursos em instituições superiores dedicados a este fim. Com essa onda, também surgiram questionamentos sobre as possibilidades didáticas do Espanhol, sendo a Literatura um caminho interessante de abordagem que possibilite a diversidade cultural almejados pelos nos textos oficiais. Diante da possibilidade do uso de textos literários em aulas de língua estrangeira para além dos aspectos gramaticais e estruturais, mas como uma potente forma de diálogo cultural na formação do aluno como cidadão, sociedade, cultura e arte, analisamos a obra do escritor chileno Alejandro Zambra, Facsímil (2015) como um meio de explorar este potencial. A partir de um modelo de prova estandardizada utilizada no Chile durante três décadas como meio de acesso ao Ensino Superior, o escritor formula 90 exercícios de múltipla escolha, distribuídos em cinco seções onde não há exatamente personagens principais ou argumento fundamental, mas um espaço em que se desenvolve uma experiência literária próxima ao jogo sem que se tenha respostas corretas. Zambra, assim, levanta questionamentos sobre a validade deste tipo de avaliação e a própria educação num modo macro, onde enxergamos um horizonte de questões que circundam o contexto dos alunos como os vestibulares ou mesmo ao atual ENEM. Ao apoiar-nos em teóricas como Muniz e Cavalcante(2009) e Souza (2008) desenvolvemos um projeto didático para o Colégio de Aplicação – COLUNI da Universidade Federal de Viçosa para observar como o texto pode possibilitar uma visão crítica sobre a educação ao mesmo tempo que uma atividade lúdica, com abrangência cultural e de uma produção autêntica da Língua Espanhola. Palavras-chave: Ensino de língua espanhola. Alejandro Zambra. Literatura no ensino de E/LE.


Introdução Vemos neste princípio do século XXI um crescente ambiente para o ensino de Língua Espanhola no contexto nacional, impulsionado principalmente por políticas públicas que possibilitaram a proliferação de materiais didáticos, pesquisas e mesmo o estabelecimento de cursos em instituições superiores dedicados a este fim. É com essa perspectiva que igualmente se faz necessário pensar na forma com que se apresenta a riqueza cultural intrínseca as sociedades hispano-falantes às aulas de espanhol como língua estrangeira. Necessidade essa inclusa ainda nos Parâmetros Curriculares Nacionais: é preciso pensar-se o ensino e a aprendizagem das Línguas Estrangeiras Modernas no Ensino Médio em termos de competências abrangentes e não estáticas, uma vez que é o veículo de comunicação de um povo por excelência e é através de sua forma de expressar-se que o povo transmite sua cultura, suas tradições, seus conhecimentos (BRASIL, 2000, p. 30)

Neste sentido, o uso de textos literários em aulas de língua estrangeira, e neste caso específico do espanhol, se mostra, para além dos aspectos gramaticais e estruturais, uma potente forma de diálogo cultural, histórico e artístico no que tange à formação do aluno como cidadão ativo da sociedade. É preciso lembrar que o uso de texto literários para o ensino de língua estrangeira no Brasil não é necessariamente uma novidade. Como postulam Muniz e Cavalcante, ao longo do século XX “O uso extensivo da literatura no modelo gramatical contribuiu para que esse fosse o foco de sua proposta de ensino cujo cerne se encontrava na tradução, memorização das regras gramaticais e imitação das mostras ‘elevadas’ de língua” (MUNIZ; CAVALCANTI, 2009, p. 51).Esse tipo de utilização do texto literário se baseava muito mais como um suporte para o ensino gramatical, é dizer, uma amostra, em que não se exploravam os aspectos artísticos e culturais. Este fato começa a mudar apenas a partir da década de1990, quando é retomado um uso mais assertivo da literatura aos materiais e métodos de ensino. Já no cenário atual, após a regulamentação do Ensino de Espanhol como língua estrangeira no ensino público do Brasil, com a lei de n 11.161 em 2005, desenvolvem-se uma série de trabalhos que, juntamente com as recomendações das Orientações Curriculares do Ensino Médio (OCEM) bem como do Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), voltam-se

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para uma preocupação metodológica que possam proporcionar o leitor em formação a capacidade crítica em contato com este tipo de texto. Não obstante, parece-nos que o lugar da Literatura no ensino ainda se mantém nebuloso, como vemos nesta passagem da OCEM: Embora concordemos com o fato de que a Literatura seja um modo discursivo entre vários (o jornalístico, o científico, o coloquial, etc.), o discurso literário decorre, diferentemente dos outros, de um modo de construção que vai além das elaborações linguísticas usuais, porque de todos os modos discursivos é o menos pragmático, o que menos visa a aplicações práticas. Uma de suas marcas é sua condição limítrofe, que outros denominam transgressão, que garante ao participante do jogo da leitura literária o exercício da liberdade, e que pode levar a limites extremos as possibilidades da língua: E nisso reside sua função maior no quadro do ensino médio: pensada (a literatura) dessa forma, ela pode ser um grande agenciador do amadurecimento sensível do aluno, proporcionando-lhe um convívio com um domínio cuja principal característica é o exercício da liberdade (BRASIL, 2006, p. 49).

Afinal, como pode a Literatura ser dos modos discursivos vários, o “que menos visa aplicações práticas” ao mesmo tempo em que proporciona o “exercício da liberdade”? Diante deste questionamento consideramos a postulação de Paulo Freire em seu A importância do ato de ler ao dizer que o educando “Quanto mais conscientemente faça a sua História, tanto mais o povo perceberá, com lucidez, as dificuldades que tem a enfrentar, no domínio econômico, social e cultural, no processo permanente da sua libertação” (FREIRE, 1989, p. 24). Com essa consonância, a Literatura poderia, dessa forma, assumir a esfera de conscientização do aluno em confrontação da sua própria História com a alheia (hispanofalante) num importante processo libertador. Outro fator determinante para o uso efetivo de textos literários em aulas de E/LE é o prazer que o leitor pode encontrar na leitura. A fruição assim é igualmente contemplada nos textos nacionais, dessa vez no PCN acerca da Literatura no Ensino Médio: Estamos entendendo por experiência literária o contato efetivo com o texto. Só assim será possível experimentar a sensação de estranhamento que a elaboração peculiar do texto literário, pelo uso incomum de linguagem, consegue produzir no leitor, o qual, por sua vez, estimulado, contribui com sua própria visão de mundo para a fruição estética. A experiência construída a partir dessa troca de significados possibilita, pois, a ampliação de horizontes, o questionamento do já dado, o encontro da sensibilidade, a reflexão, enfim,

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um tipo de conhecimento diferente do científico, já que objetivamente não pode ser medido. (BRASIL, 2002, p. 55)

Essa compreensão do leitor como ativo na construção de significação para com o texto literário, através da fruição, faz-se presente desde a segunda metade do século XX. Roland Barthes em seu O prazer do texto (1987) já advoga em favor do leitor neste jogo literário, no qual a leitura é uma constante busca a outra margem do texto e o seu prazer de rupturas. A bem dizer, Batista de Lima nos esclarece que: A primeira margem do texto é dada ao leitor, a segunda ele constrói. O prazer do texto se instala entre o primeiro contato, margem, e o segundo, margem a construir-se. Quando a margem perde sua estabilidade e o leitor entra em deriva, instaura-se a fruição, no vazio, na fenda, no corte; enquanto o prazer está na cultura, na segurança da margem sólida do texto, a fruição instala-se na desconstrução do pré-estabelecido (LIMA, 1998, p. 19)

Essa apreensão do contato real que o leitor e, consequentemente o aluno, possa ter com o texto literário se apresenta especificamente para a disciplina ou conteúdo da Literatura em Língua Portuguesa como já previsto na configuração da matéria neste formato de ensino. No entanto, podemos claramente nos preocupar com a forma como esta experiência pode ocorrer também durante as aulas de língua estrangeira. Muniz e Cavalcante novamente nos lembram que o contanto da arte literária potencializa a formação do aluno ao contribuir para um reconhecimento e imersão em outras culturas ao mesmo tempo que seu autoconhecimento e enriquecimento cultural: A inserção de textos literários no ensino de línguas estrangeiras beneficia o entendimento e a contemplação pelo aluno de culturas e valores diferentes dos seus. Através da leitura, o aluno imerge na experiência cultural de outros costumes e de outras formas de pensar, familiarizando-se com padrões de interação social distintos (MUNIZ; CAVALCANTE, 2009, p. 53)

É com essa visão em mente que nos propomos, neste trabalho, a realizar uma experiência pedagógica, particularmente do Ensino Médio, que leve aos educandos tanto uma possibilidade diferente de participação no jogo literário que permita construir uma perspectiva crítica sobre o sistema educacional, bem como buscar no contexto dos próprios alunos um reconhecimento propício à fruição. Assim nos debruçamos sobre a obra do escritor chileno Alejandro Zambra, Facsímil (2015), numa proposta de aula que torne o diálogo seja do educador, educandos e

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texto, aberto para camadas de interpretação. Neste caso, precisamos nos aprofundar um pouco mais na escolha de tal obra e a sua justificativa para tal abordagem.

Facsímil A obra Facsímil, de Alejandro Zambra, se apresenta desde a sua gênese como um texto experimental e transgressor aos principais modelos literários a que temos acesso. Zambra cria sua literatura através do gênero facsímil, uma prova padronizada que fora utilizava no Chile como forma de ingresso para o Ensino Superior que, segundo a própria definição do livro, se constitui de: Las palabras «facsímil» y «ensayo» se asocian, en Chile, a la Prueba de Aptitud Académica – aplicada desde 1967, hasta 2002 – y a la actual Prueba de Selección Universitaria o PSU, vale decir, a los exámenes de ingreso a la educación universitaria. (ZAMBRA, 2015, p. 13)

A partir deste modelo, o escritor formula 90 exercícios de múltipla escolha, distribuídos em cinco seções onde não há exatamente personagens principais, narrador ou argumento fundamental, mas um espaço em que se desenvolve uma experiência literária próxima ao jogo. Neste horizonte que circunda questões próximas ao que os alunos tinham com os vestibulares ou mesmo ao atual ENEM, se veem exercícios onde não há uma resposta corretae que percorrem temas que vão de questões políticas contemporâneas, à ditadura militar chilena, capitaneada por Augusto Pinochet e, principalmente, o modo como este tipo de avaliação pode ou não ser válido como forma de medir o aprendizado. Tais questões são trabalhadas de forma progressiva ao longo das sessões. Assim, quando na primeira parte do livro chamada “Termino Excluído” somos informados que “Em los ejercicios 1 a 24, marque la opción que corresponda a la palabra cuyo sentido no tenga relación ni con el enunciado ni con las demás palabras” (ZAMBRA, 2015, p. 13), vemos que o texto se inicia com questões padronizadas, porém mesmo de tom metalinguístico “1. Facsímil A) copia/ B) imitación /C) simulacro /D) ensayo/ E) trampa” (p. 15), a jogos de palavras que mantêm uma construção próxima à linguagem poética, “20. Nueva A) mente / B) siente / C) frente / D) hierve / E) fiebre” (p. 20), até questões que não possibilitam realmente uma resposta concreta no sentido da múltipla escolha, como sugeriria o gênero, “24. Silencio / A) silencio / B) silencio

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/ C) silencio / D) silencio / E) silencio”, mas que podem, no entanto, proporcionar ao leitor exatamente o questionamento sobre o porquê dessa escolha por parte do autor. Em outras sessões como a “Eliminación de oraciones” que iniciam com questões de simples eleição para eliminação de 1 em 6 frases curtas até a formação de pequenos “contos” de 3 a 4 páginas. Essa progressão que termina na última sessão na qual vemos 3 textos maiores, em comparação ao minimalismo inicial, com as questões inerentes onde Zambra confronta diretamente o leitor do contexto pretendido: 74. Cuál de las siguientes frases del profesor Segovia es, a su juicio, verdadera? A) A ustedes no los educaron, los entrenaron. B) A ustedes no los educaron, los entrenaron. C) A ustedes no los educaron, los entrenaron. D) A ustedes no los educaron, los entrenaron. E) A ustedes no los educaron, los entrenaron. (ZAMBRA, 2015, p. 85)

Ao levarmos em consideração este trabalho de indagação em Facsímil no qual “El texto resulta interessante desde distintos lugares: como propuesta de lectura innovadora, plantea a la educación como tema literario y exige un lector sumamente partícipe”(BELENGUER, 2016, p. 205), pode-se possibilitar uma visão crítica nos alunos sobre a educação, ao mesmo passo que se torna uma atividade lúdica e de abrangência cultural sobre o contexto chileno e de produção real da língua espanhola. No entanto, a questão basilar que nos parece pertinente a trabalhar um texto com essa complexidade de experimentação em sala do Ensino Médio pode muito bem ser: “isso é literatura?” “O que define um texto literário?”. Entramos então num campo abrangente e que pode, através da construção peculiar do texto, confundir inicialmente os alunos. Ao retomarmos mais uma vez ao PCN, encontramos a referência a necessidade de fomento do letramento literário que é definido como “estado ou condição de quem não apenas é capaz de ler poesia ou drama, mas dele se apropria efetivamente por meio da experiência estética, fruindo-o” (BRASIL, 2006, p. 55). Neste sentido, o aluno precisa se apropriar da literatura, dos textos em todas as suas possíveis complexidades para que dele possa ter a experiência literária.

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Quanto a isso, Claudene de Oliveira Aragão em sua tese Todos maestros y todos aprendices (2006), onde pretende analisar e propor inovações na formação de professores de E/LE da Universidade Estadual de Ceará, faz um intenso recorte teórico acerca do desenvolvimento da competência literária na formação leitora. Utilizando uma analogia do texto como um quebra-cabeças (novamente a associação da arte como um jogo) a competência literária se identifica como o conjunto necessário de conhecimentos para que o leitor possa visualizar o todo do texto: (…) desde los que se refieren a la naturaleza misma del ‘texto’, ‘género’ o ‘código’ en cuestión; pasando por aquellos de la parte operacional, sobre cómo se monta o ‘descodifica’ un rompecabezas cualquiera y las estrategias para hacerlo; y además todas las experiencias de ‘lectura’ previas sobre el tema del rompecabezas que intervienen para que se entienda y se disfrute de su composición, estableciendo comparaciones con imágenes que guarden con aquella una relación directa o indirecta (ARAGÃO, 2006, p. 76).

Essa competência, ainda de acordo com Aragão, exige certo nível de sofisticação linguística e familiarização sociocultural por parte do leitor. Neste sentido, tal exigência poderia nos contradizer na escolha deste texto para o nível prévio de conhecimento de um estudante do Ensino Médio, mas pelo contrário, acreditamos que exatamente a possibilidade de contato com um texto autêntico que empurre os limites do que se possa entender como literatura, assim como exigir um envolvimento maior na construção de significação textual, devido ao seu formato participativo, possa possibilitar alternativas pedagógicas enriquecedoras. Acreditamos ainda que junto ao trabalho formal no ensino de língua estrangeira (envolvendo aspectos gramaticais e comunicativos) o estudo de Facsímil pode ser uma experiência frutífera a formação crítica dos alunos.

Prática Realizadas as ponderações necessárias, entramos na parte prática do trabalho. Assim, diante das possibilidades de viabilidade contextuais para o momento da feitura deste artigo, realizamos uma proposta pedagógica que fosse aplicada no segundo ano do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Viçosa: o COLUNI.

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O Coluni, situado dentro das dependências do campus de Viçosa da UFV, possibilita aulas de Espanhol para os três anos do Ensino Médio, sendo que no 1º ano é obrigatório a todos os alunos ingressantes e facultativo aos alunos do 2º e 3º ano. Assim, a aula programada ao 2º ano não manteve a estrutura padrão da escola dividida em turmas A, B, C e D, mas por questões de organização interna de demanda, foi assistida por alunos matriculados de todas respectivas turmas o que pode nos dar uma visão um pouco mais geral dos alunos que têm aulas de espanhol como língua estrangeira. Neste sentido, foi preparado uma aula para os 50 minutos disponíveis para a atividade anteriormente acertada com a professora responsável pela matéria na escola, que se caracterizou da seguinte forma: 

Apresentação formal do docente seguida de uma conversa informal inicial (já em espanhol), para que os alunos pudessem se familiarizar e se soltarem um pouco mais diante da aula;

Uso de slides1 como guia para os temas e textos apresentados durante a aula, bem como as recomendações finais para a elaboração de um texto dissertativo que averiguasse o contato dos alunos com a obra apresentada;

Ponderações iniciais acerca do que os alunos compreendiam como literatura na forma de três perguntas; “¿Qué es Literatura?”, “¿Cómo se manifiesta?”, “¿Qué valor tiene la literatura en tu vida?”;

Apresentação biográfica de Alejandro Zambra, afim de contextualizar a obra a ser estudada;

Explicação inicial do conceito do livro Facsímil (proposta pelo próprio texto) como forma de trazer o diálogo inicial em relação às provas estandardizadas exigidas tanto no sistema educacional chileno como brasileiro;

Demonstração de exemplos textuais de diferentes sessões do texto à medida que fosse indagado aos alunos de que forma eles viam aquilo como literatura ou não e o propósito que poderia o autor para elaborar uma manifestação artística neste formato;

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Em anexo

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Distribuição para todos os alunos em sala da sessão “III. Uso de ilativos” para que pudéssemos resolver as questões em voz alta e discutir de uma a uma as possibilidades semânticas, gramaticais e de léxico que o texto oferece. Essa sessão constitui de 17 questões de múltipla escolha que vão da letra A a E. O leitor então precisa completar os espaços vazios das frases com os termos ilativos disponíveis;

Distribuição do “Texto nº 1” da última sessão de Facsímil bem como as perguntas que compõem a literalidade proposta por Zambra, para que os alunos pudessem ler em casa e, duas semanas depois, apresentar um texto opinativo de tamanho livre em que se ativessem as seguintes perguntas; “¿crees que una prueba estandarizada realmente puede evaluar tú conocimientos?”, “¿cuál es tu experiencia y visión sobre el sistema educativo?”, “¿puédela literatura tener un papel activo en tu vida como ciudadano?”. Como forma exemplificar, o “Texto n°1” se debruça sobre o relato de um ex aluno do Instituto Nacional e a história de dois irmãos gêmeos que trapaceiam o sistema para que ambos possam ingressar na universidade.

É interessante ressaltar que o Coluni, tido várias vezes como a melhor instituição do Ensino Médio público do país2 a partir exatamente das notas de provas estandardizadas, guarda diversas semelhanças com o Instituto Nacional chileno representado em partes de Facsímil, como no “Texto nº1” pedido como texto base para a elaboração da atividade escrita. Essa similitude não foi desproposita visto que nos pareceu uma boa oportunidade para que os alunos desta instituição específica tivessem contato com uma realidade que lhes suscitassem familiaridade e contraste sociocultural de suas realidades. Igualmente nos pareceu frutífero, devido ao nível de questionamento que os alunos poderiam levantar diante de críticas a temas políticos e educacionais gerais, como visto na questão 40 de Facsímil, em que não se possibilitam reais possibilidades de múltipla escolha, mas uma crítica direta ao ensino universitário: 40. Los estudiantes van___ la universidad ___estudiar, no____ pensar. A) a aa B) a aa 2

http://g1.globo.com/mg/zona-da-mata/noticia/2016/10/coluni-e-epcar-se-destacam-entre-melhores-medias-doenem.html

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C) a aa D) a aa E) a aa (ZAMBRA, 2015, 40)

Experiência em sala Como forma de avaliar a aplicação pedagógica em sala de aula de nossa proposta, nos utilizamos aqui de uma análise que parte tanto da experiência pessoal do docente como observador e participante na realização da experiência. Assim, a aula que se deu no segundo piso da escola no dia 10 de novembro de 2016 contou com a presença de 24 alunos das 4 turmas que se formam o segundo ano. É preciso ressaltar que houve um atraso de poucos minutos anteriores à aula pois, diante da viabilidade de um horário extra para a aula, não havia uma sala reservada com antecedência, mas que rapidamente fora providenciada pelos funcionários do prédio. Diante das contestações iniciais acerca da literatura, poucos alunos se manifestaram, de maneira assertiva em ver a produção literária como uma forma de expressar sentimentos e emoções. Os demais alunos pareceram concordar com esta resposta. Após a apresentação da biografia do autor, foi explicado o conceito proposto pelo mesmo para o livro Facsímil como uma forma alternativa da prova que se aplicava no Chile para o ingresso ao Ensino Superior. Assim o que se seguiu foram as demonstrações por exemplos das questões das várias questões possibilitadas no jogo literário que envolve a construção zambriana. Tal demonstração pareceu deixar confusa, inicialmente, grande parte dos alunos presentes, pois, os textos não apresentam exatamente uma resposta correta ou, inclusa, qualquer resposta (diante da repetição de uma única opção de escolha). Não obstante, surgiram respostas interessantes, como por exemplo, quando indagados sobre as possibilidades de uma opção correta em “I. Término Excluído” alguns alunos chegaram até mesmo asugerir as letras (A, B, C, D e E) como palavras elegíveis como resposta. O docente pretendeu não interferir diretamente na eleição. Quanto à realização das questões da sessão “III. Uso de ilativos” verbalmente em sala, o que mais se destacou foi a discussão proporcionada pela questão 40 (ver acima). Ao criticar o ensino universitário, foi posto em questão o que os alunos pensavam que seria quando eles

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chegassem lá. A surpresa veio quando, de uma forma geral, se concluiu que a experiência universitária em sua multiplicidade de experiências de pessoas dos mais diversos locais, as festas e o conviver urbano já fazia parte da realidade deles, o que contribuiu para a colocação dos alunos em um contexto de fala que fosse mais palpável, para além dos pontos inicialmente levantados pelo narrador. No que compõe o comportamento da turma durante as atividades, vimos que enquanto alguns poucos alunos se mostraram dispersos outros tiveram grande participação nos debates fomentados pelo docente. Essa atitude, segundo a professora responsável pelas aulas de espanhol do Coluni, é normal durante o ano letivo. No entanto, surpreendeu-nos o contato que alguns alunos fizeram com o docente após a aula para dizer que tiveram perspectivas diferentes após a leitura de Facsímil sobre a forma como se poderiam responder ou não uma prova e mesmo fazendo comentários sobre a conjuntura atual da Educação no país. Igualmente nos parece lamentável ressaltar que o conteúdo programado teve de ser apressado, talvez pela pouca experiência do docente em aulas de Literatura no Ensino Médio ou talvez, pela adequação do plano de aula para a realização de um único encontro, ao invés de dois, como primeiro tínhamos em mente. Pareceu-nos que de uma forma geral, os alunos não saíram com respostas certas ou erradas das discussões em sala, o que faz parte do que objetivávamos com esta experiência, ainda que pudesse ter discorrido num tempo mais largo e com uma aplicação mais organizada no momento da execução.

Considerações finais Apesar da infeliz revogação da lei 11.161 no ano de 20163 que deixa em certa medida nebuloso os rumos futuros ao ensino de espanhol no país, acreditamos que a língua ainda tenderá a se manter nos currículos escolares, devido aos trabalhos realizados de divulgação e fomento da língua neolatina na última década em contexto nacional.

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Lei revogada pela Medida Provisória n 746, de 2016: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11161.htm>

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Da mesma forma, vemos que o trabalho da literatura no contexto do espanhol como E/LE pode possibilitar uma instigante experiência em sala de aula. Igualmente Facsímil se forma como uma interessante possibilidade de investigação acerca da realidade que envolve os alunos do Ensino Médio em diálogo cultural e social, quanto à formação crítica dos mesmos como cidadãos. Quanto aos textos produzidos pelos alunos posteriormente, como forma de indagação tanto das provas de ingresso ao Ensino Superior, a Educação de forma geral, quanto ao papel que a literatura pode ter na formação de um cidadão ativo na sociedade, vimos que dos 24 alunos presentes na aula, 22 realizaram a produção. Vemos que uma análise profunda de tais produções se faz necessária em um trabalho mais amplo com ferramentas de investigação textuais específicas, o que não nos compete neste momento, mas nos coloca em posição de projetar outras experiências que contemplem dados o suficiente para este fim. No entanto, em uma visão geral, podemos ver que os alunos ainda se prenderam a uma estrutura textual básica em responder as perguntas sugeridas, mesmo que de forma bastante elaborada e extensa. Fato também que podemos trabalhar com mais empenho em próximas oportunidades.

Referencial Bibliográfico BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. I. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1996. BELENGUER, Natália. Alejandro Zambra (2015) Facsímil: Libro de ejercícios, Buenos Aires, Eterna Cadencia. 112 páginas. Otros Logos, n 6, dez 2015. Disponível em: http://www.ceapedi.com.ar/otroslogos/Revistas/0006/14%20Belenguer%2016.pdf Acesso em: 20/09/2016 BRASIL. Conhecimentos de Língua Estrangeira Moderna. In: _______. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília, 2006. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/14_24.pdf>. Acesso em: 21/09/2016. ______.Orientações curriculares para o ensino médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC, Secretaria da Educação Básica, 2006. ______. Lei nº 11.161, de 5 de agosto de 2005. Dispõe sobre o ensino da língua espanhola. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 8 ago. 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11161.htm>. Acesso em: 21/09/2016. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. 23ª ed. SãoPaulo: Autores Associados: Cortez, 1989.

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LIMA, Batista de. Do sabor do texto ao prazer da leitura. In: Revista da Letras. nº 20. Vol. 1/2, Jan/dez. 1998, p. 19-22. Disponível em: http://www.revistadeletras.ufc.br/rl20Art03.pdf Acesso em: 15/11/2016. MUNIZ, Camila; CAVALCANTE, Ilane. O lugar da literatura no ensino de espanhol como língua estrangeira. Holos, Ano 25, Vol 4. IFRN: 2009. Disponível em: http://www2.ifrn.edu.br/ojs/index.php/HOLOS/article/view/345/285 Acesso em: 25/09/2016. ZAMBRA, Alejandro. Facsímil. Sexto Piso: Madrid, 2015.

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CRENÇAS E MOTIVAÇÃO DE ALUNOS DO PROGRAMA INGLÊS SEM FRONTEIRAS Jéssica Nunes Caldeira Cunha Universidade Federal de Viçosa, jessicancc@gmail.com

Margaret Marie Palmer Universidade Federal de Viçosa, maggiempalmer@gmail.com

Resumo: A pesquisa em crenças em Linguística Aplicada (doravante LA) no Brasil já conta com vários trabalhos importantes (BARCELOS, 2006, 2007; RAMALHO & VICENTE, 2014), uma vez que este é um elemento que influencia decisivamente a aprendizagem de línguas. Outro fator fundamental ao aprender uma língua estrangeira é o conceito de motivação, que utilizaremos neste trabalho assim como proposto por Dörnyei (2011). Os métodos normalmente utilizados no campo da LA são entrevistas, questionários, narrativas orais e escritas, dentre outros (BARCELOS, 2007). O interesse, em especial, por narrativas como instrumentos de coleta no ensino e aprendizagem de línguas é crescente (BARCELOS, 2006). Apropriando-se de uma nova possibilidade da utilização de narrativas, a presente pesquisa qualitativa utiliza o método de narrativas visuais, um instrumento de análise proposto por Kalaja (2008), que tem servido de ferramenta para a investigação de crenças e outros aspectos da aprendizagem (BORG et al, 2014; HAKKARAINEN, T. 2011; KALAJA et al, 2008 & 2013 & 2015; PITKÄNENHUHTA & PIETIKÄINEN, 2014). Além disso, os outros métodos utilizados foram a aplicação de questionários e entrevistas, com o objetivo de triangular os dados para melhor compreendê-los, conforme os procedimentos de aperfeiçoamento da pesquisa qualitativa (FLICK, 2009). Esta pesquisa surgiu da necessidade de tomar conhecimento das crenças e motivação dos alunos do programa Inglês sem Fronteiras (IsF) sobre a aprendizagem de inglês em uma universidade federal de Minas Gerais. Ao final, são apresentados os resultados da análise dos dados, incluindo as implicações das crenças dos alunos em sua motivação para aprender inglês, em especial no contexto do programa IsF. Palavras-chave: Crenças. Motivação. Narrativas Visuais. Inglês sem Fronteiras.


1. Introdução O programa Inglês sem Fronteiras, atualmente parte do projeto maior “Idiomas sem Fronteiras”, foi implantado na universidade federal analisada nesta pesquisa em setembro de 2013, com o recrutamento de professores e idealização dos cursos a serem oferecidos, material a ser utilizado, dentre outros. Em janeiro de 2014, o oferecimento de cursos presenciais se iniciou de fato, e logo os professores e coordenadores viram-se diante de um cenário de abandono dos cursos por parte dos alunos. Este trabalho foi desenvolvido buscando entender melhor as motivações e crenças por trás deste comportamento, e o próprio perfil dos alunos inscritos no programa IsF desta universidade.

Para melhor compreensão do problema em questão, nos ancoraremos nas pesquisas em duas grandes áreas da LA: motivação e crenças. Lima (2005 apud ZOLNIER, 2007) afirma que a relação entre crenças e motivação ainda não foi suficientemente estudada. Neste cenário, os dois construtos teóricos, assim como suas subclassificações, serão extremamente úteis para nossas análises, além da interação entre crenças e motivação que tentaremos demonstrar. 2. Objetivos 2.1. Geral Objetivou-se com a presente pesquisa compreender as crenças e a motivação dos alunos dos cursos do programa IsF em uma universidade federal de Minas Gerais, para, com estes resultados, propor melhores estratégias de ensino e organização do programa, em face dos problemas de abandono do curso. 2.2. Específicos ●

Identificar os tipos de motivação dos alunos do programa Inglês sem Fronteiras;

identificar crenças dos alunos do programa sobre a aprendizagem da língua inglesa;

relacionar estes dados com a questão da evasão dos alunos.

3. Revisão bibliográfica 3.1. Motivação

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Dörnyei (2011, p. 199) considera as variadas definições de motivação encontradas na literatura, e acredita que a maior parte dos pesquisadores encontra um denominador comumao procurar entender, no comportamento humano, as escolhas das ações, a persistência nelas e o esforço investido em seu desenvolvimento. A motivação é, então, fator essencial que leva as pessoas a se decidirem por um determinado curso de ação (suas razões), além de determinar quanto tempo e quanta dedicação serão dispendidos nesta ação. Para Pintrich e Schunk (1996, p. 4 apud DÖRNYEI, 2011, p. 202), motivação é “o processo por meio do qual a atividade direcionada por um objetivo é instigada e mantida”. Nesta definição, assim como nos pontos comuns supracitados, é possível perceber um fator temporal, que dá origem a duas fases distintas de implementação de uma ação motivada: a fase prédecisional – “motivação de escolha”, planejamento e estabelecimento de objetivos – e a fase pós-decisional – a “motivação executiva”, através dos aspectos volitivos de manutenção e controle da ação e da motivação (GOLLWITZER, 1990, p. 55 apud DÖRNYEI, 2011, p. 203). Além desta distinção, Gardner & Lambert (1972 apud ZOLNIER, 2007) também propuseram as motivações integrativa e instrumental, a primeira ligada à vontade de pertencimento à língua e à sua cultura, e a segunda relacionada à utilização da língua para atingir determinados objetivos. Sobre esta classificação, Leffa (2001) comenta sobre a diferença entre línguas nacionais e multinacionais e sua relação com a motivação dos alunos. As línguas nacionais, ainda com Leffa, são aquelas vinculadas a uma identidade nacional; as multinacionais, por sua vez, como é o caso do inglês, não representam uma única cultura. Leffa prossegue dizendo que a motivação para aprender uma língua nacional é normalmente ligada a aspectos afetivos do estudante por sua cultura, enquanto a aprendizagem da língua multinacional é associada a motivações instrumentais, o estudante raras vezes estuda a língua por gosto. Por fim, Noels (2001 apud ZOLNIER, 2007) apresenta as motivações intrínseca e extrínseca, assim como originalmente propostas por Deci& Ryan (1985). A motivação intrínseca está ligada ao prazer imediato de execução da atividade, já a motivação extrínseca se origina de fatores externos. Noels também (2001 apud ZOLNIER, 2007) descreve subtipos dentro destas duas motivações, e um estágio de desmotivação, que não exploraremos por não ser o foco deste trabalho.

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Para além das categorias de motivação, Keller (1983 apud ZOLNIER, 2007) lista quatro componentes deste conceito, a ver: interesse, relevância, expectativas e resultados. Interesse diz respeito à curiosidade sobre o tema (que pode já existir ou ser despertada pelo professor). Relevância, por sua vez, tem a ver com a crença por parte dos alunos de que o conteúdo será importante em sua vida. Expectativa é também uma crença, desta vez relacionada a resultados futuros da aprendizagem. Resultados são as avaliações ou quaisquer recompensas advindas da aprendizagem. As distinções exploradas nesta seção, assim como os componentes da motivação, se mostraram extremamente relevantes para o presente trabalho, uma vez que podemos observar certas tendências dos alunos do Programa IsF, que serão discutidas posteriormente no item 5.

3.2. Crenças A pesquisa em crenças em LA no Brasil já conta com vários trabalhos importantes (BARCELOS, 2006, 2007; RAMALHO & VICENTE, 2009), uma vez que estas influenciam decisivamente a aprendizagem de línguas, tendo um impacto importante no comportamento dos estudantes (RAMALHO & VICENTE, 2009). Crenças são definidas por Barcelos como “uma forma de pensamento, como construções da realidade, maneiras de ver e perceber o mundo e seus fenômenos, co-construídas em nossas experiências resultantes de um processo interativo de interpretação e (re)significação. Como tal, crenças são sociais (mas também individuais), dinâmicas, contextuais e paradoxais” (BARCELOS, 2006, p. 151)

Dessa maneira, crenças sobre a aprendizagem de línguas são um fator importantíssimo no sucesso dos aprendizes, e se relacionam com outros fatores, já que são contextuais. Há trabalhos que relacionam, por exemplo, os conceitos de crenças e de motivação (SOUZA, 2009). Os elementos constituintes da motivação, listados por Keller (1983 apud ZOLNIER, 2007), incluem dois grupos de crenças, sobre a relevância da aprendizagem e as expectativas sobre os efeitos decorrentes.

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As crenças sobre a aprendizagem de língua inglesa se encaixam em várias categorias, como crenças sobre o melhor local para aprender inglês (BARCELOS, 2011), crenças sobre professores nativos e não-nativos, crenças sobre os melhores métodos de aprendizagem, crenças sobre a língua e seu status, crenças sobre a própria capacidade de aprender do estudante, dentre outras. Os estudos em crenças, por mostrarem em que acreditam os alunos, e, em consequência, suas potenciais decisões e ações, são de extrema importância para uma melhor compreensão dos alunos do programa IsF. Nosso trabalho se utiliza de um instrumento de coleta recente na LA, que será brevemente abordado no próximo item, devido ao seu caráter pioneiro.

3.3. Narrativas Visuais Esta pesquisa utiliza três instrumentos de coleta, sendo que um deles emprega uma metodologia visual, que é inovadora em relação aos métodos mais tradicionais como narrativas escritas e orais. Tal modalidade acrescenta uma nova perspectiva de análise aos outros dois instrumentos, uma vez que modalidades diferentes de dados podem variar e, então, sugerir outros aspectos presentes nestes (KALAJA et al, 2013). Portanto, uma variedade de instrumentos enriquece a análise dos dados. As narrativas visuais já foram utilizadas em trabalhos relevantes em LA para o estudo de crenças (KALAJA et. al., 2008 & 2013; KALAJA et. al., 2015; HAKKARAINEN, T. 2011; BORG et. al., 2014; PITKANEN-HUHTA & PIETIKAINEN, 2014). No entanto, não encontramos na literatura sua utilização para o estudo de motivação. Como pesquisadoras, ao fazer a análise das narrativas visuais, foi/é possível perceber tanto aspectos das crenças dos alunos quanto de suas motivações, conforme exploraremos nos resultados.

4. Metodologia Esta é uma pesquisa qualitativa, cuja metodologia está apoiada em alguns pressupostos de Flick (2009) para a este tipo de pesquisa. O primeiro deles é a triangulação, que é a combinação de três métodos de abordagem de um objetivo, dando-lhes igual relevância, com o objetivo de tornar a pesquisa mais sólida e fidedigna (FLICK, 2009, p. 32). Além disso, a

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utilização de narrativas visuais está em consonância com uma onda de estudos sobre narrativas na área da educação (FLICK, 2009, p. 31). Para este trabalho, foram aplicados, em maio de 2016, questionários a todas as turmas do programa na universidade em questão. O questionário buscava, primeiramente, traçar um perfil geral dos alunos, coletando dados como sua idade, nível de escolaridade, sexo, dentre outros. Buscamos averiguar também o histórico dos alunos com o programa IsF (se já haviam participado, se já haviam concluído algum curso), a motivação de escolha (tanto da língua, quanto do curso e do programa), as dificuldades enfrentadas e a motivação executiva que permitiu ao aluno persistir até aquele momento. Além disso, por havermos identificado informalmente que a maioria dos alunos alegava “falta de tempo”, um item do questionário pedia que os alunos listassem suas atividades semestrais e as numerassem, por ordem de prioridade. Anexo ao questionário estava também o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido de participação na pesquisa, para que os alunos tivessem acesso a seus direitos e aos procedimentos com que viríamos a trabalhar. Em junho e julho do mesmo ano, foram aplicadas as narrativas visuais. Aos alunos foram oferecidos materiais de desenho (canetas coloridas, lápis de cor) e uma folha contendo instruções para que desenhassem como se viam enquanto aprendizes de inglês. A folha também contava com um pequeno quadro onde os alunos explicaram brevemente a figura desenhada. Foi explicado aos estudantes que suas habilidades artísticas não estavam sendo avaliadas, e não foram oferecidos exemplos para não influenciar sua maneira de se expressar. No mesmo período, as narrativas foram analisadas pelas pesquisadoras e catalogadas de acordo com a presença de certos itens recorrentes, como a presença ou não do professor, a presença ou não de colegas, a representação de aparelhos multimídia, etc. Agrupamos as narrativas no que consideramos ser visões diferentes de ensino e aprendizagem de língua inglesa, e então revisamos as categorias e a seleção feita. A tabela resultante dessa análise encontra-se em anexo neste trabalho. Para citar as narrativas e participantes, numeramo-nas aleatoriamente. Durante o mês de outubro, após categorização das narrativas visuais, foram selecionados cinco estudantes com perfis distintos de narrativa para participarem de entrevista individual, semi-estruturada, com uma das pesquisadoras.

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Neste artigo, focalizaremos a análise das narrativas visuais e entrevistas e suas implicações, sem uma exploração profunda do levantamento que fizemos através dos questionários. Em um próximo trabalho, descreveremos os resultados dos questionários com mais detalhamento.

5. Resultados e discussões Em nossos resultados, trazemos primeiramente uma análise geral da primeira pergunta do questionário, “Por que você escolheu estudar inglês no programa IsF?”. Coletamos sessenta e oito (68) questionários e, ao fazer a leitura e classificação das respostas à questão 1, encontramos os resultados disponíveis no quadro 1, relacionados ao tipo de motivação (extrínseca ou intrínseca) e ao programa ou à aprendizagem de inglês em geral. Para os alunos do programa na universidade estudada, o fator mais citado como motivador da participação do programa é a gratuidade dos cursos, seguido da qualidade das aulas e professores, e, então, da importância do conhecimento da língua inglesa. Os dois fatores mais citados são exemplos de motivação extrínseca e relacionados ao programa, enquanto o terceiro fator pode se tratar de motivação extrínseca ou intrínseca, e está relacionado à aprendizagem em geral, como representamos graficamente.

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Quadro 1 - Fatores motivacionais dos alunos do IsF

Alguns excertos dos questionários ilustram os três fatores motivacionais mais recorrentes, sendo que o trecho seguinte mostra a importância da gratuidade na decisão dos alunos. “Em primeiro lugar, sei da necessidade que tenho de aprender inglês, tanto academicamente falando quanto para atender ao mercado de trabalho e para a vida pessoal. Neste contexto, encontrei no IsF uma boa oportunidade. Mas a escolha perante outras oportunidades foi devido à gratuidade” (Participante 33, grifo nosso)

Os excertos revelam, além dos fatores motivacionais, algumas crenças dos alunos. Aqui destacamos a crença sobre o melhor local para a aprendizagem de inglês, que já foi pesquisada por Barcelos em um trabalho anterior (BARCELOS, 2011). Seguem abaixo os trechos: “Porque é um curso muito bom em comparação a outros, até mesmo oferecidos por escolas de idiomas conhecidas e caras. Já participei mais de

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uma vez e gostei muito, realmente vale a pena participar” (Participante 38, grifo nosso) “Inicialmente porque não podia pagar por outro curso a fim de manter a língua inglesa. No entanto, após iniciar as aulas, percebi que o curso era de alta qualidade, assim continuei me matriculando em todas as oportunidades que apareceram” (Participante 40, grifo nosso)

As duas citações destacadas foram selecionadas dentre várias que demonstram uma crença geral dos alunos de que inglês só pode ser aprendido em cursinhos particulares. O participante 40 demonstra até certa surpresa com o fato de o IsF oferecer cursos gratuitos e de alta qualidade, como se os dois fossem incompatíveis. Trinta e sete (37) narrativas visuais foram analisadas e classificadas, de acordo com diferentes itens desenhados pelos alunos. Destacamos os estratos icônico e verbal das narrativas (quaisquer palavras escritas no desenho ou na descrição do desenho), pois, de acordo com Mendes (2013), “Pensar nas proximidades do verbal e do icônico é importante porque não seria muito produtivo, metodologicamente falando, termos um quadro teórico para se analisar o texto verbal e um outro quadro para se analisar o texto icônico, como se fossem dois tipos de linguagem inteiramente diferentes com categorias totalmente excludentes” (p. 126-7). Organizamos os dados no quadro 2, a seguir.

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Quadro 2 - Elementos com ocorrência frequente e/ou significante nas narrativas visuais

Observamos que alguns elementos, como a presença da mídia e a expressão de sentimentos, apareceram com mais frequência no estrato icônico, se comparado ao verbal. Além disso, o esforço individual foi bastante destacado nos dois estratos, sendo que as narrativas visuais contendo outros indivíduos são menos comuns, o que demonstra uma visão bastante ocidentalizada da aprendizagem e do sucesso como empreendimentos individuais. Outros elementos típicos dos dois estratos são os relacionados a viagens, conexão mundial e globalização, demonstrando o caráter internacional da língua inglesa. Como exemplo de uma das narrativas visuais coletadas, trazemos a narrativa do participante 12, na figura 1. Nesta narrativa, observamos uma progressão do aluno no tempo, e uma frustração com os resultados dos seus estudos de língua inglesa. Em um dos quadros, o estudante se representa chorando ao ler artigos em inglês. O primeiro e o último quadro mostram o aluno estudando o mesmo livro, embora com professores diferentes, em momentos diferentes. Na descrição que consta na narrativa, o aluno reforça os sentimentos de frustração, como podemos observar abaixo.

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Figura 1 - Narrativa visual do participante 12

“Eu odeio inglês porque não aprendo, embora os professores sejam bons. Então, eu não vou bem nas disciplinas de pós-graduação, porque é muito difícil ler artigos ou livros em inglês. Aulas de inglês são muitos boas porque são o único momento em que escuto, leio e falo inglês, e esta é a causa do meu avanço nulo”1

Nesta narrativa, observamos também como a falta de resultados desmotiva os alunos, sendo os resultados um dos componentes da motivação de acordo com Keller (1983 apud ZOLNIER, 2007). Além disso observamos que o aluno acredita que a falta de prática fora da sala de aula é o motivo de sua dificuldade de aprendizagem. As entrevistas com os participantes ampliaram nossos resultados e permitiram a triangulação dos dados para os cinco participantes entrevistados. Discutiremos aqui, em maior detalhe, os dados coletados através das entrevistas e narrativas visuais de dois destes alunos, associando-as.

Tradução nossa de: “I hate English because I don’t learn, although the teachers are good. Then I don’t do well on my post-graduation subjects, because it is very difficult to read articles or books in English. English classes are very good for me because it’s the only time I listen, read and speak in English, and this is the cause of my neutral advance.” 1

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“Inglês é como um muro grande e alto. “Eu acho que preciso de uma evolução Eu o escalo e vejo um outro mundo, cheio na aprendizagem de inglês para viajar pelo mundo, de possibilidades.”2 (Participante 3) ler, escrever e assistir filmes e programas de TV... falar com pessoas que moram em outro país.”3 (Participante 6)

O participante 3 demonstrou a crença sobre a dificuldade de aprender inglês sem possuir os recursos das classes sociais mais altas. Além disso, descreveu melhorias em sua motivação e mudança nessa crença, por causa de bons professores no ensino médio, em um curso de extensão da universidade e no programa IsF: ah + dificuldade de + por exemplo + de início + de achar que eu nunca fosse aprender uma nova língua + que fosse uma coisa para classe média alta ou pra classe alta + tipo eu não aprenderia isso no ensino médio no ensino público num curso gratuito + que eu achei que + é + depois eu me enganei eu vi que isso era possível O desenho do muro, o participante elucida, representa a barreira que o “não saber inglês” ergue diante de oportunidades acadêmicas e de mercado. Além disso, representa, para o participante, também está crença de ser incapaz de aprender a língua, ou impossível aprendê-la em contextos que não cursinhos particulares ou no exterior.

Tradução nossa de: “English is like a big and high wall. I climb it and see another world, full of opportunities”. Tradução nossa de: “I think that I need na evolution in learning English to travel around the world, read, write, and watch movies, TV shows... speak with other people that live in another country”. 2 3

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O participante 6, por sua vez, representou graficamente elementos bastante presentes tanto no estrato verbal quanto no estrato icônico das narrativas: o globo, o avião, a língua inglesa relacionada a viagens e conexão mundial. Em sua entrevista, a participante explora estes temas como motivação para aprender inglês necessidade + de comunicação tanto para falar quanto para leitura e escrita + e a vontade de viajar para outros países e me comunicar com outras pessoas conhecer outras pessoas + Acho que abre caminhos tanto na área social quanto na área de trabalho

Quando questionado sobre qual seria a motivação principal, o participante, diferente do que encontramos numericamente, considera que as duas motivações têm igual valor, a intrínseca e a extrínseca: acho que os dois + um é mais por obrigação que é a questão do trabalho + que a gente é praticamente obrigado a saber pelo menos quando (INCOMP) e pra viajar é mais pessoal mesmo + mas as duas coisas

Em sua entrevista e narrativa, também pudemos observar a visão do participante 6 da aprendizagem como processual. Ele elabora sua crença durante sua fala, e podemos perceber como ela é importante para que o participante não se frustre e persista na aprendizagem (motivação executiva). uma evolução né do inglês + acho que toda língua que a gente aprende a gente evolui ao longo do tempo desde que a gente não pare né /.../ com essa evolução né com a melhoria do inglês acho que é uma forma de a gente viajar e conhecer o resto do mundo

Por fim, o participante enfatiza o papel das mídias em sua aprendizagem, também bastante presente nos outros instrumentos de coleta. uma forma pra mim que é mais fácil aprender é através de filme série que eu amo assistir /.../ música também que eu gosto

6. Considerações finais Neste trabalho, um primeiro olhar sobre os dados coletados foi desenvolvido, focando os fatores de motivação e as crenças dos alunos do programa IsF nesta universidade federal do sudeste. Não pretendemos, com este trabalho, esgotar os dados coletados, uma vez que muito ainda pode ser analisado com base nas informações cedidas pelos alunos.

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Percebemos, através dos resultados, a relevância da motivação extrínseca para a aprendizagem de inglês da grande maioria dos alunos, que busca o estudo instrumental. Por isso, acreditamos que o programa se encontra no caminho certo quanto ao seu caráter de capacitação dos alunos para produção oral e escrita, para diálogo com a produção acadêmica mundial. Além disso, observamos como os alunos do programa não acreditavam que pudessem ter aulas de inglês gratuitas com qualidade, uma crença que pode estar impedindo mais alunos de se inscreverem.

7. Referências bibliográficas BARCELOS, A. M. F. Narrativas, crenças e experiências de aprender inglês. Linguagem & Ensino, v. 9, n. 2, p. 145-175, 2006. ______. Reflexões acerca da mudança de crenças sobre ensino e aprendizagem de línguas.Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v.7, p.109-138, 2007. ______. "Eu não fiz Cursinho de Inglês": Reflexões acerca da crença no lugar ideal para aprender inglês no Brasil. IN: ______. (Org.) Linguística Aplicada: Reflexões Sobre Ensino E Aprendizagem De Língua Materna E Língua Estrangeira. Vol. 13. Campinas, SP: Pontes Editores, 2011. p. 297-314. DÖRNYEI, Z. Motivação em ação: buscando uma conceituação processual da motivação de alunos. IN: BARCELOS, A. M. F. (Org.). Linguística Aplicada: Reflexões sobre ensino e aprendizagem de língua materna e língua estrangeira. Campinas: Pontes Editores, 2011. FLICK, U. Pesquisa qualitativa: por que e como fazê-la. IN: _______. Introdução à Pesquisa Qualitativa. Tradução de Joice Elias Costa. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed, p. 20-38, 2009. KALAJA, P., DUFVA, H., & ALANEN, R. Experimenting with visual narratives. IN: BARKHUIZEN, G. (Ed.).Narratives in Applied Linguistics. Cambridge: Cambridge University Press, p. 105–131, 2013. LEFFA, V. J. Aspectos políticos da formação do professor de línguasestrangeiras. In: LEFFA, Vilson J. (Org.). O professor de línguasestrangeiras; construindo a profissão. Pelotas, 2001, v. 1, p. 333-355. MACINTYRE, P. D.; NOELS, K. A.; MOORE, B. Perspectives on Motivation in Second Language Acquisition: Lessons from the Ryoanji Garden. IN: PRIOR, M. T. et al (ed.). Selected Proceedings of the 2008 Second Language Research Forum. Somerville: CascadillaProceedings Project. MENDES, Emilia. Análise do discurso e iconicidade: uma proposta teórico-metodológica. IN: _______; MACHADO, Ida; LIMA, Helcira; LYSARDO-DIAS, Dylia (orgs). Imagem e discurso. Belo Horizonte; FALE/UFMG, 2013. RAMALHO, F.M. & VICENTE, H. S. G. Uma visão pragmática de crenças de alunos sobre o ato de errar. IN: Revista Brasileira de Linguística Aplicada. Volume 9.1,p. 225-243, 2009.

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SOUZA, M. O. P. A interação entre crenças e motivação no processo ensino/aprendizagem de uma língua estrangeira. ReVEL, v. 7, n. 13, 2009. ZOLNIER, M. C. A. P. Língua Inglesa: Expectativas e Crenças de Alunos e de uma Professora do Ensino Fundamental. 2007. 152 f. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade de Campinas, Campinas, 2007.

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A MIDIATIZAÇÃO DO DISCURSO RELIGIOSO E A CONSTRUÇÃO DE UMA IMAGEM DE SI: ANÁLISE DO ETHOS DO PADRE FÁBIO DE MELO NO PROGRAMA DE FRENTE COM GABI Denise de Souza Assis Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Viçosa. Área de Concentração: Estudos discursivos. E-mail: denisesouzaassis05@gmail.com.

Mônica Santos de Souza Melo Doutora em Linguística e Orientadora no programa de pós- graduação em Letras Universidade Federal de Viçosa. E-mail: monicassmelo@yahoo.com.br.

Resumo: A religião como prática social tem uma importância crucial na sociedade contemporânea como difusora de valores morais e éticos, além do mais, essa prática exerce um grande poder sobre o fiel, moldando e ditando seus comportamentos e crenças. Levando em consideração essa importância, vê-se cada vez mais forte a necessidade de expansão do processo de evangelização das igrejas que se dá através da aproximação entre o domínio midiático e o domínio religioso, que culmina no fenômeno que conhecemos como midiatização do discurso religioso. Tendo em vista a importância desse fenômeno na contemporaneidade e nos processos de doutrinação e evangelização, objetivamos, neste trabalho, analisar o Ethos construído pelo padre Fábio de Melo no programa de frente com Gabi, de forma a garantir a construção de legitimidade e credibilidade através do seu discurso e consequentemente propagar a doutrina da Igreja Católica e captar devotos. Nas análises percebemos que o padre se preocupa em criar uma imagem que o torne de confiança e que permita que o interlocutor se identifique com ele. Dessa forma, encontramos o ethos de virtude e o ethos de competência que estão ligados ao ethé de credibilidade e o ethos de humanidade e o ethos de inteligência ligados ao ethé de identificação. Palavras-chave: Midiatização do discurso religioso. Ethos. Credibilidade. Identificação.


Introdução A religião é uma prática social que possui uma importância histórica, que se estende aos dias atuais, por ser responsável de forma direta pela propagação de valores morais e éticos dentro da sociedade. Essa função de propagação de valores e doutrinas faz com que as igrejas procurem novas formas de “fazer religião” que alcancem grande visibilidade na contemporaneidade como intuito de difundir esses valores. Desse modo, sabendo da importância das mídias nos dias de hoje, e levando em consideração Silverstone (2014), que diz que a mídia é uma dimensão essencial da experiência contemporânea, sendo praticamente impossível nos manter distantes de sua presença e representação, vê-se cada mais frequente a aproximação entre os domínios religioso e midiático com o intuito de difundir doutrinas e captar devotos. Logo, o discurso religioso se apropria dos dispositivos midiáticos para propagar sua evangelização. A aproximação entre esses dois domínios resulta no processo conhecido como midiatização do discurso religioso, que está cada vez mais frequente na sociedade contemporânea. Segundo Neto (2001), o processo de midiatização das instituições ocorre através da “subordinação de suas ações e agendas a processos de produção que são tomados como empréstimos a esferas do campo dos medias”. (NETO, 2001, p.1). Assim, há na esfera religiosa midiatizada uma relação de subordinação em relação à esfera midiática, para que esta propague os processos de evangelização. Essa relação de subordinação se constata pelo fato de o discurso religioso ter de adaptar a sua linguagem a padrões do discurso midiático neste processo. A midiatização do discurso religioso é um fenômeno que permite que os processos de evangelização não se finalizem com o término daquilo que é considerado tradicional nas igrejas, como os cultos e missas, mas que continuem nos lares dos fiéis a partir dos dispositivos midiáticos. Dessa forma, é cada vez mais comum vermos líderes religiosos apresentando e participando de programas de TV e rádio e difundindo doutrinas a partir das redes sociais, por exemplo. Ao falarem pela religião e defenderem as doutrinas e posicionamentos das igrejas das quais fazem parte, os religiosos desejam acima de tudo arrebanhar fiéis e para isso necessitam passar credibilidade e confiança para o interlocutor que o escuta. Assim, podemos dizer que o ethos, como uma prova de persuasão, que consiste na criação de uma imagem de si, é totalmente

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importante nesse contexto, pois o objetivo de evangelização só se tornará efetivo se os religiosos conseguirem a adesão do público que almejam. Pensando na importância da mídia no processo de evangelização para captação de devotos e propagação de doutrinas e na busca de legitimidade e credibilidade por parte dos líderes religiosos nesse processo, objetivamos, neste artigo, analisar a forma como a Igreja Católica, através da figura do padre Fábio de Melo, utiliza a visibilidade das mídias como forma de expor seus posicionamentos e como o ethos deste padre é construído durante este processo. Para isso levaremos em consideração que o orador constrói para si um ethos adequado à situação que está envolvido para tentar convencer o seu destinatário. Destarte, nos propomos a analisar um programa de entrevistas sem cunho religioso, a saber, o programa exibido pela emissora SBT, De frente com Gabi. As perguntas escolhidas pela apresentadora normalmente dizem respeito a temas de interesse social, já que se trata de um programa jornalístico, e o compromisso se dá com o interesse público e com os critérios de noticiabilidade. Na entrevista selecionada1, a apresentadora discutiu assuntos polêmicos abordando questões ligadas à própria Igreja, à família, à sexualidade e à vida pessoal do entrevistado, no caso, o padre Fábio de Melo. Na situação em foco, preocuparemos em analisar como o padre constrói uma imagem de si a fim de se revelar como digno de confiança para seu interlocutor. Preocuparemos-nos em identificar também como a mídia influencia na veiculação desse discurso, visto que trabalhamos com um programa sem cunho religioso, mas que se volta para a evangelização, na medida em que as respostas do padre nos levam a uma doutrinação religiosa. A metodologia deste trabalho é qualitativa e empírico-dedutiva, visto que nossas análises são feitas a partir da transcrição do vídeo escolhido. Para nossas análises, trabalharemos com a noção de ethos discutida principalmente por Charaudeau (2015) como forma de perceber como o padre Fábio de Melo constrói uma imagem de si que possa ser reconhecida como credível e de confiança por seu interlocutor.

As relações de influência entre mídia e religião: o discurso religioso midiatizado

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Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TmHw0Xt9FXI. Acesso em 20 de outubro de 2016.

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A partir da década de 80, aumentou o número de estudos a respeito da presença das mídias no que se refere às práticas sociais e culturais da sociedade. A partir dessa época, o processo de midiatização começou a se difundir e se estabelecer no contexto social. De acordo com Hepp (2014), o conceito de mídia refere-se a instrumentos técnicos que interferem diretamente no nosso processo de comunicação. Dentre esses instrumentos, destaca-se, a televisão, o rádio, o telefone e as redes sociais. Segundo Furtado (2015), o conceito de midiatização ainda está em formação e necessita de investigações teóricas e empíricas. Entretanto, isso não diminui sua importância para as ciências da Comunicação. A importância da midiatização se torna mais visível se articulada a outras práticas sociais que levem em consideração comportamentos e indivíduos. A partir disso, podemos pensar no conceito de mediação, que para muitos autores e estudiosos está estritamente ligado ao conceito de midiatização. De acordo com Braga (2012), “uma mediação corresponde a um processo em que um elemento é intercalado entre sujeitos e/ou ações diversas organizando as relações entre estes.” (BRAGA, 2012, p. 32). Para este autor, esta ideia de mediação está ligada à percepção da realidade de uma forma não pura, mas integrada a elementos psicológicos, sociais e culturais, o que faz com que entendamos os dois conceitos em discussão como integrados e relacionados entre si. Podemos compreender que nesse processo de mediação há um foco mútuo entre emissor e receptor. Segundo Braga (2012), na contemporaneidade, a midiatização é um processo de criação e recriação de circuitos, que se articula a processos de escrita, a processos orais e a processos tecnológicos e, desse modo, caracterizam a dita interação. Este autor acredita que a prática social é permeada por circuitos, relatando que cada setor social integra uma diversidade de circuitos. Desse modo, ele reitera que “com a midiatização crescente, os campos sociais, que antes podiam interagir com outros campos segundo processos marcados por suas próprias lógicas e por negociações mais ou menos específicas de fronteiras, são crescentemente atravessadas por circuitos diversos”. (BRAGA, 2012, p. 44). Para Braga (2012), a midiatização é hoje a principal mediação de todos os processos sociais, e daí advém sua importância e constante avanço dentro da sociedade, já que ela opera em diversos setores de prática social produzindo efeitos e consequências diferentes em cada um destes setores.

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De acordo com Gasparetto (2009), a midiatização é um processo técnico, social e discursivo através do qual as mídias se relacionam com outras esferas sociais, afetando-as e por elas sendo afetadas. Desse modo, pode-se pensar que a religião é afetada por essa influência, já que muitas vezes, sofre mudanças em seu próprio discurso como forma de adaptação aos dispositivos midiáticos. É importante destacar também que segundo Fiegnbaum (2006), os meios de comunicação como dispositivos de interação social proporcionam uma mediação discursiva e uma tecnológica que estabelecem uma mediação mútua e interligada nas interações do discurso religioso. Pensando na religião como uma prática social que norteia comportamentos e dita dogmas e doutrinas, verifica-se a importância da relação entre discurso midiático e discurso religioso, visto que a mídia é procurada, muitas vezes, devido à rapidez, à flexibilidade nas informações e à facilidade de contato com o público. Desse modo, muitas esferas sociais utilizam desse dispositivo como forma de expandir o seu posicionamento e de atingir os seusobjetivos, como ocorre com a religião, que faz da mídia um dispositivo de propagação da fé. Isso faz com que as diversas religiões, independente das vertentes, rompam com o fazer religioso tradicional, buscando novas formas de se aproximar dos fiéis e propagar suas ideias e doutrinas, configurando dessa forma o processo de midiatização do discurso religioso. Segundo Gutíerrez (2006), pode-se dizer que esse processo é um fenômeno recente, visto que aconteceu por volta de 40 anos atrás, devido à influência de evangelizadores norteamericanos. No Brasil, país predominantemente cristão e com maior número de católicos no mundo, esse processo vem causando uma modificação no fazer tradicional da religião, sendo que possibilita aos fiéis acompanharem o “fazer” religioso nos próprios lares a partir da comodidade que as mídias oferecem. Podemos dizer, então, que o campo religioso a partir do uso do discurso midiático pretende reafirmar o processo de doutrinação religiosa e o contato com os fiéis, que através da influência das mídias, pode se estabelecer de uma forma indireta.

A entrevista midiática: Conceituação e principais características Como sabemos o gênero é parte comunicativa de uma sociedade, a partir disso, escolhemos trabalhar com o gênero “entrevista midiática”, que segundo Charaudeau (2013), integra-se na categoria de “Gênero de informação midiática”. De acordo com o linguista, a

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definição de gênero enquanto informação midiática advém do cruzamento entre um tipo de instância enunciativa, um tipo de modo discursivo, um tipo de conteúdo e um tipo de dispositivo. A entrevista midiática é um gênero que permite uma troca linguageira entre dois parceiros fisicamente presentes um próximo ao outro, alternando os turnos de fala. De acordo com Arfuch (2010), esse tipo de entrevista é um gênero em si mesmo, independente da temática abordada e de sua tipologia. Para Charaudeau (2013), a entrevista requer uma diferenciação de status. Isso se dá pelo fato de um dos parceiros ocupar o papel de “questionador” e o outro assumir um papel de “questionado-com-razões-para-ser-questionado”. Dessa forma, esse autor acredita que a alternância de fala entre os dois parceiros é encontrada regulada e controlada por quem entrevista de acordo com as finalidades dessa situação de comunicação. Segundo Arfuch (2010), os papéis destinados a entrevistador e entrevistado compartilham uma relação pragmática, na qual prevalece a dinâmica interacional da entrevista. Assim, nitidamente, se percebe a troca linguageira estabelecida neste gênero. É possível dizer, segundo Arfuch (2010), que o produto obtido na entrevista terá uma autoria conjunta, presente na cena da interação e que demarcará a subjetividade do entrevistado, já que haverá o compartilhamento da voz, da presença e da proximidade. Então, supõe-se que será um diálogo centrado nas expectativas do entrevistado, ressaltando, assim, seus posicionamentos e ideias. A entrevista feita por Marília Gabriela insere-se na categoria “Entrevista Jornalística”, e como ressalta Charaudeau (2013), apresenta características comuns de uma entrevista, mas é especificada pelo contrato midiático, já que há a presença do entrevistador e entrevistado que são ouvidos por um terceiro que está ausente, o ouvinte, todos inseridos em um dispositivo triangular. O foco do nosso estudo é uma entrevista jornalística do programa que era exibido semanalmente no SBT, “De frente com Gabi”. Trata-se de uma entrevista jornalística, entretanto, centramos nossas análises na fala dos entrevistados. Nessa entrevista, o discurso religioso apropria-se do dispositivo midiático para promover uma espécie de evangelização, valendo-se do programa “De frente com Gabi”, espaço no qual respondem perguntas sobre diversos temas polêmicos com a intenção de propagar a doutrina da instituição a qual cada um

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pertence. Essa evangelização ocorre no momento em que o padre utiliza os discursos da Igreja Católica como forma de justificar suas respostas e posicionamentos e aproveita a visibilidade do programa para disseminar suas doutrinas, visando, principalmente, captar devotos. O Ethos e a construção da imagem de si O Ethosé uma prova ou meio de persuasão estudado desde a antiguidade sendo relacionada ao caráter de quem fala. Conforme Aristóteles (2005), a persuasão de um discurso deve-se ao caráter moral do orador, e ligado ao Ethos temos o Pathos e o Logos que correspondem a tríade responsável pela persuasão em um dado discurso. Aristóteles (2005) acredita que persuadir pelo caráter é necessário, pois somos levados a acreditar em pessoas que se colocam como honestas e de confiança, dessa forma, na Retórica, o ethos é estritamente ligado à moral do orador. Entretanto, segundo Amossy (2014a), outros estudiosos romanos como Quintiliano e Cícero associavam o ethos à vida do orador e ao seu posicionamento social. Para eles, esse meio de persuasão não estava restrito apenas ao que era dito. Segundo Charaudeau (2015), a filiação de Aristóteles inscreve o ethos no ato de enunciação, ou seja, na própria fala do sujeito argumentante. O linguista afirma que essa posição é a tomada pelos analistas do discurso que reconhecem o ethos como aquilo que o sujeito pretende que o seu interlocutor veja e entenda. Segundo Amossy (2014a), os antigos reconheciam como ethos a construção de uma imagem de si que tinha a intenção de adesão de um determinado auditório. Logo, ficava a cargo do locutor a criação de uma imagem que pudesse causar uma boa impressão ao seu interlocutor. De acordo com Barthes(1970) apud Amossy (2014a), essa boa impressão é o jeito do orador, que enuncia uma informação e através dela diz ser alguma coisa. De acordo com Amossy (2014a), todo ato de tomar a palavra faz com que o orador construa uma imagem de si, sendo que essa apresentação de si ocorre nas trocas verbais mais corriqueiras. Entretanto, a autora ressalta que essa construção não é feita como um autorretrato do orador a partir do detalhamento de suas qualidades. Sobre isso, ela explicita que: Seu estilo, suas competências linguísticas e enciclopédicas, suas crenças implícitas são suficientes para construir uma representação de sua pessoa. Assim, deliberadamente ou não, o locutor efetua em seu discurso uma apresentação de si. Que a maneira de dizer induz a uma imagem que facilita,

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ou mesmo condiciona a boa realização do projeto, é algo que ninguém pode ignorar sem arcar com as consequências. (AMOSSY, 2014a, p. 9).

Dessa forma, podemos pensar que a construção de uma imagem de si pressupõe as opiniões do sujeito que fala, sendo que elas refletem a forma como esse sujeito se enxerga e enxerga o seu alocutário. O ethos é involuntário, como explicita Charaudeau (2015), grande parte dele é inconsciente, visto que, muitas vezes, o locutor não tem controle sobre a imagem construída, o que pode levar o destinatário a construir uma imagem não compatível com a criada pelo locutor. Amossy (2014b) também nos lembra que o ethos discursivo está estritamente ligada à posição institucional do locutor, já que a posição institucional do orador e o grau de legitimidade que ela lhe confere contribuem para suscitar uma imagem prévia. Esse ethos pré-discursivo faz parte da bagagem dóxica dos interlocutores e é necessariamente mobilizado pelo enunciado em situação. (AMOSSY, 2014b, p. 136).

Assim, é possível dizer que coisas simples como um nome ou a assinatura do falante já evocam representações do mesmo que são consideradas dentro da troca. Logo, pode-se dizer que o status do locutor contribui efetivamente na sua construção verbal e na construção de sua imagem, o que pode ser considerado um ethos prévio. Segundo Amossy (2014b), uma imagem de si construída no discurso nos revela a capacidade que o locutor tem de agir sobre seus destinatários. Dessa forma, Haddad (2014) reitera que o locutor ao falar no discurso constrói uma imagem condizente com o seu objetivo argumentativo, tendo em vista uma ideia que o seu destinatário projeta dele. Dessa forma, esse autor reforça que “o ethos prévio ou pré-discursivo condiciona a construção do ethos discursivo e demanda a reelaboração dos estereótipos desfavoráveis que podem diminuir a eficácia do argumento”. (HADDAD, 2014, p.148). Conforme Charaudeau (2015), ainda é importante ressaltar que o ethos está ligado ao papel do sujeito falante enquanto enunciador. Partindo dessa perspectiva, este autor salienta que: De fato, o ethos, enquanto imagem que se liga àquele que fala não é uma propriedade exclusiva dele; ele é antes de tudo a imagem de que se transveste o interlocutor a partir daquilo que diz. O ethos relaciona-se ao cruzamento de olhares: olhar do outro sobre aquele que fala, olhar daquele que fala sobre a maneira como ele pensa que o outro vê. Ora, para construir a imagem do sujeito que fala, esse outro se apoia ao mesmo tempo nos dados preexistentes ao discurso- o que ele sabe a priori do locutor – e nos dados trazidos pelo próprio ato de linguagem. (CHARAUDEAU, 2015, p. 115).

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A partir disso percebemos a importância da identidade do falante na construção de uma imagem de si, já que pela identidade social do locutor, conforme afirma Charaudeau (2015), o falante tem o direito à palavra e pode se legitimar através do seu papel social e, como sujeito que enuncia, o falante “aparece, portanto, ao olhar do outro, com uma identidade psicológica e social que lhe é atribuída, e, ao mesmo tempo, mostra-se mediante a identidade discursiva que ele constrói para si”. (CHARAUDEAU, 2015, p.115). Dessa forma, podemos pensar que o que falamos está estritamente ligado ao que somos e ao que o outro enxerga de nós.

Da análise de dados Levando em consideração, a religião como uma prática social, é nítido que a mesma se constitui como formadora de opinião a partir da divulgação de doutrinas e dogmas. Assim, fazse necessário que a igreja, sobretudo, a pessoa que fala em nome dessa igreja se revele como crível e de confiança. Dessa forma, torna-se essencial a associação da razão à emoção como estratégia crucial para a construção da imagem desse sujeito que fala e precisa adquirir a adesão do seu auditório. Neste artigo, para retratar a construção da imagem de si no discurso religioso midiatizado, nos basearemos nas ideias de Charaudeau (2015) sobre o ethos no discurso político. Com isso, corroboramos as ideias de Silva (2014), que afirma que o discurso político pode ser assemelhado ao discurso religioso, na medida, em que ambos se preocupam com a argumentação e a manutenção de poder. O político quer se fazer crível para que o cidadão o reconheça como capaz de assumir determinado cargo, e o religioso também espera a adesão de seu auditório com o intuito de disseminar doutrinas e captar mais devotos. Assim, ambos trabalham na perspectiva do convencimento, através dos ethé de identificação e ethé de credibilidade, que foram elencados por Charaudeau (2015) ao se referir ao discurso político. Ao assumirmos esses dois discursos como similares, utilizaremos os ethé citados anteriormente, na construção da imagem de padre Fábio de Melo durante a entrevista analisada. Aproximando o discurso religioso do discurso político, pode-se assumir o sujeito que fala pela religião, como alguém que necessita de credibilidade, sendo que, segundo Charaudeau (2015), essa figura resulta da construção de uma identidade discursiva do ser que fala, cabendo

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ao destinatário julgar se a fala é digna de crédito. Dessa forma, como o político, o religioso depende da aceitação do público e, deve, portanto se preocupar em formar uma imagem que o torne aceito. É importante pensarmos também que não apenas o religioso que fala em nome de sua instituição depende de credibilidade, mas também, o programa e a emissora, que são responsáveis pela transmissão e pela veiculação das ideias de forma clara, podendo, também selecionar o que será exibido ou não; e a entrevistadora que conduz as perguntas e norteia a entrevista. Pode-se dizer que a credibilidade é ligada a uma visada de poder fazer e depende consequentemente da apresentação de provas para isso. Segundo Charaudeau (2015), a credibilidade é um fator crucial do discurso político, na medida em que a essência desse discurso é persuadir e convencer alguém de que possui poder. É possível dizer que isso também ocorre no discurso religioso, que tem como base a persuasão de fiéis a partir da disseminação de ideias e preceitos que colocam em evidência a religião, como por exemplo, as figuras de “Jesus” e “Deus”. Padre Fábio de Melo trabalha diversas vezes com preceitos ligados à Bíblia e ressalta a importância do discurso religioso baseando-se em narrações da Bíblia, falas do papa e pessoas ligadas à igreja, história da religião e da teologia, baseando-se em citações de dizer e saber, o que nos leva a reiterara afirmação que se trata de um processo de evangelização e de doutrinação religiosa. Mesmo se colocando como padre e evidenciando a todo o momento sua vivência religiosa, Fábio de Melo também se preocupa em não se desvincular de suas raízes, citando experiências pessoais que remetem à infância e à sua família, além de expor também sua projeção midiática e sua vida como celebridade. Assim, a partir da junção dessas três projeções (cidadão comum, celebridade e religioso), o padre quer demonstrar credibilidade e convencimento, que segundo Charaudeau (2015), são características evidenciadas a partir da construção de um ethos de sério, de virtuoso e de competente. A seguir, apresentaremos exemplos que se referem à virtude e à competência. A virtude se constrói tanto na vida pública quanto privada e remete a “dizer o que se pensa, ter uma vida transparente (nada a esconder), não ter participado de negócios escusos e mostrar que seu engajamento político não foi motivado por uma ambição pessoal.” (CHARAUDEAU, 2015, p. 123). Assim, na religião também se vê a necessidade desse

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engajamento religioso que, no caso de padre Fábio de Melo, perpassou toda a sua vida, como o mesmo explicita na entrevista, ao falar de sua vida pessoal e afirmar que suas raízes históricas e culturais sempre propiciaram a ele contato com o que é considerado religioso. O ethos de virtude, no discurso religioso, deve estar estreitamente ligado ao respeito, na medida em que pensamos que, se um dos legados da religião é o respeito entre os seres, a pessoa que fala em nome dessa religião consequentemente precisa respeitar o outro e pregar o respeito ao outro, ser transparente e direta. Durante a entrevista, muitas vezes, isso pode ser visto, principalmente, nos momentos em que padre Fábio ao abordar os problemas da igreja não se exime de falar sobre os conflitos e problemas dentro desta instituição, mantendo uma postura de transparência em relação ao seu interlocutor. (1) Eu acho muito interessante porque, eu como padre, eu sou convidado a servir o povo, só que eu antes de servir o povo, eu preciso me beneficiar do ponto de vista espiritual daquilo que eu ofereço ao outro. A fé que eu proponho ao outro, Marília, precisa fazer bem a mim, eu não posso propor isso ao outro como um fardo ou obrigações. Eu não posso interpretar o meu ministério sacerdotal dissociado da experiência de fé que eu proporciono aos outros, que é irrenunciável em mim naquilo que eu ofereço ao outro. (2) Eu não sou obrigado a ser padre, ninguém me levou ao altar de sacrifício, eu quis ir, sacrificar algumas dimensões da minha que eu sei que ela floresce em outras.

Os exemplos (1) e (2) confirmam a posição do padre enquanto líder religioso e sua missão dentro do que foi designado a ele. A figura da virtude aparece nos momentos em que o padre reconhece o seu dever sacerdotal e os sacrifícios e imposições que essa missão o impõe. Ele demonstra compreensão em saber que seu dever é servir o povo, entretanto, ele reconhece a necessidade de que essa missão tem que ser acolhida e compreendida por ele antes de ser passada ao fiel. Assim, há uma imagem de um ser virtuoso que entende a dimensão da sua missão como religioso e reconhece a importância deste entendimento e do sacrifício que ela evoca, já que ele também reconhece que sua posição como padre faz dele um modelo a ser seguido pelos fiéis. De acordo com Charaudeau (2015), o ethos de competência é aquele ligado a uma imagem de saber e habilidade, o que também é necessário no discurso religioso, já que ao falar pela igreja e para a igreja, o religioso precisa ser firme em seu propósito mostrando segurança ao abordar os assuntos. Para este autor:

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ele deve ter conhecimento profundo do domínio particular no qual exerce sua atividade, mas deve igualmente provar que tem os meios, o poder e a experiência necessários para realizar completamente seus objetivos, obtendo resultados positivos. Os políticos devem, portanto, mostrar que conhecem todas as engrenagens da vida política. (CHARAUDEAU, 2015, p. 125)

A competência é revelada a partir de todo o percurso do sujeito falante, então, nos momentos em que Fábio de Melo se preocupa em trazer ensinamentos teológicos e de antropologia cristã, ele resgata esse percurso e mostra parte do conhecimento que o capacita. O exemplo (3) fala especificamente da vinda do papa ao Brasil em 2013. Nessa resposta, a competência se destaca no momento em que Fábio de Melo relata ter sido escolhido para receber e cantar para o papa durante sua vinda ao Brasil, o que nos faz refletir o motivo de ele ter sido o escolhido e não outro padre que também é reconhecido como celebridade midiática. Pelo exemplo (4), percebe-se a competência no momento em que Fábio de Melo retrata-se como um ser comprometido e centrado no seu processo com a fé e a religião, sempre procurando se capacitar e melhorar para poder servir ao povo e servir a Deus. (3) Sim, eu o recebi né? Eu cantei pra ele chegar. Eu fui convidado pela arquidiocese do Rio de Janeiro, na pessoa do Dom Irani, que eu fizesse uma música para receber o papa Francisco. Então, a primeira aparição pública dele, em Copacabana, eu o recebi, tive essa graça de recebê-lo cantando. (4) Eu gosto de me ferir diariamente do ponto de vista intelectual, eu gosto de ser aguçado, o tempo todo para que aquilo que eu penso, para aquilo que é a minha postura atual possa evoluir. Então, não tem como viver nesse mundo, problematizar as questões próprias do meu contexto religioso porque eu não sou adepto de uma fé que idiotiza. Eu gosto de uma fé que nos faça pensar quem somos nós.

A construção da imagem de si leva em consideração o sujeito falante, o outro e um terceiro que não está presente fisicamente na interação, estabelecendo, assim, uma relação triangular, na qual, de acordo com Charaudeau (2015), “o si procura endossar essa imagem ideal; o outro se deixa levar por um comportamento de adesão à pessoa que a ele se dirige por intermédio dessa mesma imagem ideal de referência”. (CHARAUDEAU, 2015, p. 137). Então, pode-se dizer que, assim como o discurso político, no discurso religioso, a construção do ethos está voltada para quem constrói (si mesmo), para o cidadão (o fiel e devoto) e também para os valores de referência. É importante ressaltar que pelo ethé de identificação, que o cidadão, no

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nosso caso, o fiel, passará por um processo de identificação fundamentado irracionalmente, podendo, dessa forma, se projetar na identidade passada pelo religioso. A imagem construída através dos ethé de identificação está ligada principalmente à vida pública e privada do religioso, sendo neste caso, voltada para o triângulo- cidadão comum, líder religioso e celebridade midiática-. Levando em consideração essas três instâncias de projeção pessoal levadas ao público na entrevista concedida pelo padre Fábio de Melo e conduzida por Marília Gabriela, pode-se dizer que encontramos pelo ethé de identificação, o ethos de inteligência e de humanidade, que serão descritos e analisados adiante. O ethos de inteligência, segundo Charaudeau (2015), pode provocar sentimentos de admiração e respeito que consequentemente trazem a adesão do outro. Para este autor, “a inteligência é uma característica humana difícil de ser definida, mas aqui se trata de considerála um imaginário coletivo que testemunha a maneira como os membros de um grupo social a concebem e a valorizam”. (CHARAUDEAU, 2015, p.145). Essa característica pode ser apreendida do comportamento do sujeito em sua vida pessoal e privada. Na construção dessa imagem de si, destacamos a figura de honnêtehomme cultiveque diz respeito ao nível de capital cultural que o sujeito cultivou durante sua formação e condiz também com sua origem social. Desse modo, os religiosos que apresentam uma dimensão artística também estão sempre ligados a essa figura, visto que, na própria entrevista, padre Fábio fala da publicação do seu livro e da gravação de seu DVD que reuniu cerca de 60 mil pessoas. (5) Eu sempre me senti artista. Desde quando eu era criança. Acho que seria uma hipocrisia da minha parte dizer que sou um padre que não sou artista. Eu sou padre e também sou artista porque a arte faz parte da minha história. Eu, desde pequeno, sempre fui muito afeito às coisas belas, ao ofício de arquitetar as palavras, de compor.

No exemplo (5), a imagem de inteligência reflete-se pela figura do honnêtehomme cultive, visto que padre Fábio, mesmo que implicitamente, mostra sua ligação com a vida artística desde a infância, focando principalmente sua vocação como escritor e compositor, que é uma das facetas artísticas do padre. Esse dom para a escrita é sempre resgatado durante a entrevista, já que o padre tem momentos reservados para falar sobre o livro de sua autoria, denominado “Quem me roubou de mim?”, que retrata as relações humanas e o resgate da subjetividade.

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O ethos de humanidade está ligado à capacidade de demonstrar sentimentos, respeito e compaixão com os que sofrem e também deixar transparecer seus gostos e fraquezas. A figura do sentimento “deve apenas transparecer em diversas ocasiões: em visitas aos desprovidos ou as pessoas que sofrem; em situações dramáticas (catástrofes naturais, acidentes, fome etc)”. (CHARAUDEAU, 2015, p. 148). Há também a figura da confissão, que pode estar ligada à fraqueza, levando em consideração as culturas. É uma figura que se contrabalança pelos ethos de “coragem” e “sinceridade”. No que diz respeito ao gosto, Charaudeau (2015) revela que este está ligado aos gostos literários, de culinária, vestuário e lazer, é o que se relaciona ao pessoal e privado do sujeito. Na entrevista analisada, em alguns momentos, padre Fábio mostra seu gosto pessoal em estar em seu sítio, junto à natureza, alegando que isso o propicia acolhimento e tranquilidade. No que tange à intimidade, Charaudeau (2015) alega que reflete-se juntamente à cumplicidade dos jornalistas, pois pode se tratar de declarações íntimas do sujeito, que muitas vezes são provocadas pela própria mídia. (6) Essa simplicidade me desperta na maneira como eu interpreto o outro, se eu tenho uma simplicidade como estilo de vida natural que eu não me sinta melhor do que ninguém. Eu tenho direito de me sentir diferente, mas melhor que ninguém. (7)Eu, como padre, tenho o direito de me posicionar contra qualquer situação, desde que não me falte a caridade no meu posicionamento para que aquele que está me ouvindo seja capaz de compreender por que eu penso diferente dele.

Nos dois exemplos anteriores é citada a preocupação do padre como o outro. Ele constrói uma imagem de aconselhador e amigo que se reconhece como semelhante ao outro e que compreende a necessidade desse outro de ser entendido e respeitado. Assim, o ethos de humanidade se propaga no momento em que o padre revela caridade, a simplicidade e o entendimento do fiel. Pode-se dizer que o ethos de humanidade é extremamente necessário a alguém que quer ser reconhecido como um líder religioso, pois é esperado que a igreja pregue e viva de fato esses sentimentos. No exemplo (7), o padre confirma isso ao resgatar sua legitimidade como padre e colocar que essa sua posição evoca a necessidade desse entendimento e compreensão do outro. Pode-se dizer que ao se revelar através da humanidade, o padre também se coloca na posição de aconselhador, pois transfere a necessidade desse

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sentimento de compreensão do outro ao fiel, querendo que este também reconheça e viva essa prática.

Considerações finais O discurso religioso midiatizado é um fenômeno que vem crescendo rapidamente na sociedade contemporânea, visto a necessidade das igrejas em propagar sua doutrina e captar devotos. Essa propagação de doutrinas e captação de fiéis se dá de forma mais efetiva a partir da construção de uma imagem do líder religioso que fala pela igreja como alguém de confiança com o qual o interlocutor possa se identificar. Dessa forma, percebemos na entrevista a preocupação de Fábio de Melo em se apresentar como alguém que possua tais características. Assim, na busca por garantir sua legitimidade e sua credibilidade, o padre constrói um ethos de virtude, de competência, de inteligência e de humildade durante sua fala. Desse modo, o ethos se torna uma importante estratégia para o orador conseguir a adesão de seu auditório. Na medida, em que esse discurso é propagado em um programa sem cunho religioso, podemos dizer que, considerando a importância do SBT como emissora de grande audiência, é notório que a divulgação da entrevista concedida por Fábio de Melo foi extensa e, consequentemente, isso foi primordial para que a intenção principal desse discurso fosse cumprida, isto é, o público conseguiu ter acesso a este objeto e as ideias difundidas pela igreja e compartilhadas pelo padre foram expandidas. Logo, pode-se pensar que o processo de midiatização nesse discurso foi extremamente essencial, visto que a evangelização e a doutrinação se deram em um espaço sem cunho religioso, mas atingiu uma parcela de público que talvez não tivesse acesso aos posicionamentos do padre se estes fossem expostos em espaços da Igreja Católica, como por exemplo, durante a homilia de uma missa ou no programa “Direção espiritual” apresentado pelo padre na emissora Canção Nova. Podemos dizer que o padre atua nesse discurso como aconselhador já que propõe ao fiel, a partir da criação de sua imagem, que este viva de acordo com os legados de respeito e acolhimento ao outro que são propostos pela Igreja Católica.

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DISCURSO MIDIÁTICO E POLÍTICA: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DO CONTEXTO ELEITORAL DE 2014 Rainhany Karolina Fialho Souza Mestranda em Linguística Aplicada pela Universidade Federal de Viçosa. Graduada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa e Universidade de Coimbra – Portugal. Email: rainhany@hotmail.com

Resumo: Este trabalho tem como tema a construção do discurso midiático e político em um contexto eleitoral de 2014, no qual são analisados um vídeo da campanha de Marina Silva, candidata do Partido Socialista Brasileiro e uma carta de Camila Moreno, estudante de Letras e militante da juventude do Partido dos Trabalhadores. Assim, surgiu o seguinte questionamento: o que define os tipos de ethé a serem construídos em uma campanha eleitoral? A partir dessa indagação, foram traçados objetivos como: buscar maior entendimento sobre as estratégias de persuasão utilizadas no meio político e mais especificamente, comprovar o modo de construção dos ethé do sujeito político neste contexto eleitoral. Além disso, procuramos analisar as metáforas utilizadas e a intertextualidade encontrada nos dois textos da amostra discursiva. Para tanto, buscou-se levar em consideração as conjunturas sociopolíticas em que o país se encontrava, em meio a grande disputa eleitoral. Portanto, a escolha da temática se deu, basicamente, por acreditar na necessidade que se tem de estudar a língua como prática social. É preciso que se tenha em mente que este produto do meio social, como qualquer elemento que só tem vida em sociedade, não pode ser um objeto de estudo que se distancie da sua realidade de uso. Visto que, a Análise do Discurso Crítica (ADC) tem um interesse particular nos discursos institucionais, em especial, os discursos políticos e midiáticos com uma abordagem transdisciplinar, optou-se por escolher o discurso político estabelecido no vídeo de Marina Silva (PSB), e as características discursivas presentes na carta que se contrapõe ao vídeo, escrita por uma jovem militante do partido concorrente (PT) - uma manifestação que pode nos apresentar como ideológica e, muitas vezes persuasiva - buscando fazer uma pesquisa de ADC que contempla a língua de maneira recontextualizada e problematizada, representando discursivamente o mundo (social) a nossa volta. Palavras-chave: discurso político.Ethos.ADC.


1. Introdução No cenário político das eleições 2014, o Brasil se depara com grandes mobilizações sociopartidárias que, cada vez mais, bombardeiam as redes sociais. Assim, a língua, por ser um produto do meio social, o trabalho a ser aqui desenvolvido visa fazer uma leitura discursiva de um vídeo (transcrito no corpo do texto) da campanha da ex-senadora e atual candidata à presidência da república Marina Silva do PSB – Partido Socialista Brasileiro, e uma carta (Anexo I) de uma jovem militante do partido do PT - Partido dos Trabalhadores, ambos veiculados em mídias eletrônicas.

2. Objetivos 2.1. Objetivo Geral Analisar como o discurso de Marina Silva (PSB) foi recontextualizado e problematizado na carta “Carta aberta de uma gordinha a Marina Silva” escrita por uma militante da juventude do Partido dos Trabalhadores – PT, Camila Moreno.

2.2. Objetivos Específicos 

Analisar os ethé construídos, tanto na carta de Camila Moreno, quanto no vídeo da campanha política de Marina Silva;

Analisar as estratégias discursivas usadas pelos sujeitos pertencentes à amostra discursiva;

Discutir as implicações sociais e políticas na amostra.

3. Procedimentos Metodológicos Trata-se de um estudo de caráter qualitativo e empírico-dedutivo, de aplicação teórica em uma amostra específica. Procurarei, num primeiro momento, fazer uma pesquisa bibliográfica, de modo a entrar em contato com textos que apresentem as referências teóricas das quais necessitamos para a nossa pesquisa. Foram feitas leituras e estudos desse material. Após feita a pesquisa bibliográfica, me ocupei da análise do vídeo de campanha política e de um texto do gênero carta que escolhi para compor a amostra discursiva. Cabe explicitar que não será uma análise minuciosa, com a finalidade de estudar todos os aspectos dos dois gêneros

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analisados, focaremos nos aspectos linguístico-discursivos, levando-se em consideração as posições sociais ocupadas pelos sujeitos. Para tanto, foi selecionado um vídeo da campanha política de Marina Silva (PSB) veiculado durante o primeiro turno da campanha. O texto circulou em vários sites e redes sociais. Fazendo um contraponto ao vídeo e partindo do princípio de que nossos discursos e textos são recontextualizados de diferentes formas, foi extraída de um blog1 de uma militante do Partido dos Trabalhadores uma carta contestando afala da Marina. A escolha da amostra se deu justamente em função da repercussão nas redes sociais e pelos efeitos ideológicos que foram construídos.

3.1. Categorias linguístico-discursivas Neste trabalho focaremos em categorias linguístico-discursivas que tratam da construção da realidade sociodiscursiva, conforme sugere Fairclough (2001). Utilizaremos a metáfora, o ethos, a intertextualidade e a interdiscursividade. Para tanto, é preciso que falemos um pouco sobre cada uma dessas categorias. As metáforas, segundo Fairclough (2001:241), “penetram em todos os tipos de linguagem e em todos os tipos de discurso (...) não são apenas adornos estilísticos superficiais do discurso”, são estratégias discursivas que servem para deixar transparecer implicitamente realidades específicas de mundo. Segundo o autor, a categoria ethosé intertextual, porque explora a noção de comportamentos não-verbais enquanto elementos constitutivos do discurso e, portanto, da identidade dos falantes em situações sociocomunicativas. Já para Charaudeau (2011:116), a mesma categoria “trata-se de uma concepção idealizada da existência do sujeito, que pode ser aplicada ao sujeito do discurso e que guia a comunicação social na qual se constrói o ethos”. O conceito de intertextualidade, por sua vez, é “a propriedade que os textos tem de dialogar com fragmentos de outros textos, que podem ser delimitados explicitamente ou mesclados e que o texto pode assimilar, contradizer, ecoar ironicamente e assim por diante” (FAIRCLOUGH, 2001:114), possibilita a compreensão de práticas discursivas existentes na

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É um site cuja estrutura permite a atualização rápida a partir de acréscimos dos chamados artigos, ou posts.

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sociedade e a relação entre elas. A interdiscursividade caracteriza-se como um composto de vozes sociais que enunciam o texto.

4. Referencial Teórico Para Fairclough (2001:91), o discurso implica um modo de ação, servindo às diversas interações construídas nas relações sociais, “uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de representação”. Discurso, portanto é compreendido a partir do processo dialético: “constituindo e construindo o mundo em significado”. Assim, é por meio das práticas discursivas que fatos e fenômenos sociais são representados e (re)produzidos e é por meio de ações discursivas nos quais os sujeitos perpetuam ou transformam os seus valores ideológicos nos discursos que representam seus diversos papéis sociais e institucionais. A questão institucional apresenta posições ideológicas e culturais que definem os pressupostos econômicos, filosóficos e políticos que orientam o contexto de produção de todo discurso, alertando para o que é válido possível e admissível naquele dado momento histórico institucionalizado. Fairclough (2001:91) ilustra que “os eventos discursivos específicos variam em sua determinação estrutural segundo o domínio social particular ou o quadro institucional em que são gerados”. Um exemplo disso é que dentro de um mesmo partido político pode-se deparar com posicionamentos ideológicos diversos. Nessa perspectiva, é possível distinguir três aspectos dos efeitos constitutivos do discurso: O discurso contribui, em primeiro lugar, para a construção do que variavelmente é referido como “identidades sociais” e “posições do sujeito” para os “sujeitos” sociais e os tipos de “eu”. (...) Segundo, o discurso contribui para construir as relações sociais entre as palavras. E, terceiro, o discurso contribui para a construção de sistemas de conhecimento e crença. Esses três efeitos correspondem respectivamente a três funções da linguagem e a dimensões de sentido que coexistem e interagem em todo discurso (FAIRCLOUGH, 2001: 91-92).

Do mesmo modo, as práticas discursivas envolvem escolhas ideológicas e políticas, sendo atravessadas por relações de poder. Além disso, os sujeitos das pesquisas devem ser

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entendidos em seu contexto social, e as práticas discursivas em que atuam e que os constituem devem ter papel fundamental. Na próxima seção, discorreremos sobre as construções ideológicas presentes nos discursos políticos levando em consideração o Ethos.

4.1. Discurso Político e o Ethos ParaCharaudeau (2011), o discurso político é situado entre o “julgamento” e a “ação” sendo o primeiro “a palavra que deve fundar a política” e o segundo aquela que “deve gerir a política”. Portanto, mesmo que os estudos sobre os discursos políticos estejam, atualmente, mais interessados nos mecanismos de comunicação do que nos “conteúdos” do discurso, para Charaudeau (2011:47): Esses dois modos de abordagem do discurso político são, entretanto, indissociáveis um do outro. Efetivamente, se é verdade que o pensamento pode ter em si influência, ocorre que ele pode igualmente ser mascarado por procedimentos de comunicação empática tais que, ao final dessas manipulações comunicativas mãos ou menos voluntárias, se constroem outras formas do pensamento político.

As estratégias discursivas do político dependem também, para o autor, de fatores como a sua identidade, sua percepção da opinião pública e a posição de outros atores, aliados ou adversários. A encenação do discurso político oscila entre razão e paixão, misturando logos, pathos e ethos. As estratégias de persuasão compreendem, entre outros aspectos, as escolhas dos valores, as diferentes maneiras de apresenta-los e de argumentar, a “dramatização do discurso” e a construção da imagem de si - ethos. Sabemos que é admissível identificar, de acordo com esse filósofo grego, algumas categorias retóricas discursivas que podem influenciar o público. Dentre elas, podemos citar o logos pertencente ao domínio da razão, que torna possível o ato de convencer; o ethos e o pathos, que por sua vez, pertencem ao domínio da emoção, tornam possível emocionar, participando, portanto, de “demonstrações psicológicas”. Por conseguinte, o sentido construído por nossas palavras e, consequentemente, por nós depende ao mesmo tempo daquilo que somos e daquilo que dizemos. “O ethos é o resultado dessa dupla identidade, mas ele termina por se fundir em uma única” (CHARAUDEAU, 2011:

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115-116). Para isso, surgem algumas questões, como nos lembra o mesmo autor: “De fato, quem pode crer que quando os indivíduos falam, não se toma o que eles dizem pelo que eles são? Como aceitar que a imagem que o sujeito falante faz dele próprio não corresponderia ao que é como indivíduo?” Essas questões nos chamam a atenção para o fato, como menciona Charaudeau (2011:116) do “paradoxo da comunicação humana”, ou seja, (...) Sabemos que todo sujeito que fala pode jogar com máscaras, ocultando o que ele é pelo que diz, e, ao mesmo tempo, o interpretamos como se o que ele dissesse devesse necessariamente coincidir com o que ele é. Há uma espécie de desejo de essencialização, tanto da parte do locutor quanto da do interlocutor, nessa busca de sentido do discurso.

Segundo o mesmo autor, no contexto midiático atual, o ethos – a imagem de si projetada no discurso – está em constante reformulação. O ethos produz-se na dialética entre a identidade social e a identidade discursiva: “O ethos relaciona-se ao cruzamento de olhares: olhar do outro sobre aquele que fala, olhar daquele que fala sobre a maneira como ele pensa que o outro o vê” (CHARAUDEAU, 2011:115). Por transparecer mais do que aparecer, o ethos não se constrói por marcas específicas. A relação das virtudes que os atores políticos procuram mesclar a seu discurso tornase ampla, a começar pela credibilidade, como vemos: A exemplo da legitimidade, a credibilidade não é uma qualidade ligada à identidade social do sujeito. Ela é, ao contrário, o resultado da construção de uma identidade discursiva pelo sujeito falante, realizada de tal modo que os outros sejam conduzidos a julgá-lo digno de crédito. O sujeito que fala – no caso, o político – deve, portanto, tentar responder à seguinte pergunta: como fazer para ser aceito? Para isso, ele próprio deve fabricar uma imagem que corresponda a essa qualidade (CHARAUDEAU, 2011:119).

Na sequência nos explica que “um indivíduo pode ser julgado digno de crédito se houver condições de verificar que aquilo que ele diz corresponde sempre ao que ele pensa” (2011:119) - condições de sinceridade ou de transparência. Logo, os candidatos são levados a incorporar estratégias de construção de sua própria imagem, ou seja, precisam construir um personagem para si, necessitando montar um ethos, ou vários ethé, que seja admissível com intuito de levarem os eleitores a aderirem suas propostas de governo. Posteriormente, podemos citar alguns ethos propostos por Charaudeau (2011:119) no que diz respeito aos ethé de credibilidade, são eles: ethos de “sério” que entendemos pela

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“impressão” que o político nos dá a partir de declarações de si mesmo. O de “virtude” sugere um político sincero e fiel construindo uma imagem de honestidade pessoal. Já o ethos de “competência” é a habilidade de exercer a atividade política utilizando dos meios, do poder e da experiência para realizar os objetivos, e consequentemente, obter resultados positivos. Assim, entendemos que o ethos político deriva-se de uma construção de traços pessoais de caráter, de corporalidade, de comportamentos, de declarações verbais, que possibilitam aos cidadãos os valores positivos ou negativos a maneiras de ser dos políticos. Desse modo, também surgem os ethé de identificação, cujas imagens são extraídas do afeto social. São supostamente os traços que definem os políticos enquanto pessoas: o ethos de “potência”, o ethos de “caráter”, o ethosde “inteligência” e o ethos de “humanidade”. Neste mesmo sentido, Fairclough (2001:209) aponta a importância de se pensar no papel do ethos para as construções indentitárias: Quando se enfatiza a construção, a função da identidade da linguagem começa a assumir grande importância, porque as formas pelas quais as sociedades categorizam e constroem identidades para seus membros são um aspecto fundamental do modo como elas funcionam, como as relações de poder são impostas e exercidas, como as sociedades são reproduzidas e modificadas.

Ainda, segundo Gomes e Silva (2010:5), Fairclough sugere a questão do ethos como intertextual, porque “a identidade dos participantes de uma interação verbal é constituída a partir dos modelos de discursos vigentes, das crenças e dos valores reproduzidos, reforçados ou transformados pelas esferas sociocomunicativas em que situam” (GOMES e SILVA, 2010: 5). Na próxima seção exploraremos no vídeo de Marina os recursos discursivos utilizados: o ethos, as metáforas, a intertextualidade, e a interdiscursividade como categorias discursivas ideológicas.

5. Analisando o vídeo O vídeo coletado para a amostra foi retirado do blog do coronel, postado no dia 22 de setembro de 2014, portanto, antes de serem realizadas as eleições, e com duração de um minuto e cinquenta e cinco segundos. Exibe Marina Silva se pronunciando para seus eleitores: Vídeo transcrito

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“Nestes 32 dias, eu vi uma coisa fantástica acontecer neste país. Movimento, isso é um movimento. É um transbordamento da sociedade brasileira. Como pode alguém com dois minutos de televisão, enfrentando onze de um candidato, que tem mais de vinte mil cargos, só na administração direta, tanto prefeitos, tantos governadores, deputados, vereadores, senadores, amigos, inimigos antigos, históricos, todos juntos (aplausos). Num verdadeiro, num verdadeiro batalhão de “Golias”. O amigo até falou: “Ou, usa outras metáforas” né?! Fica usando essas coisas aí “Golias” e “Davi” vamos vê se a gente pensa outra coisa. Eu gosto desse atravessamento. Eu gosto de poder usar os símbolos dos judeus. Mas, que bom que os judeus pudessem também usar os nossos, né? E aí eu iria dizer: um verdadeiro batalhão de mangangá contra uma carapanã, certo? Mangangá é um besouro deste tamanho, com um ferrão poderosíssimo. A poli da carapanã incomoda, mas, vamos e venhamos, é uma guerra de David contra Golias ou do mangangá contra carapanã. E já sabe quem é o carapanã? Sou eu! Quem é o mangangá? (apontando para que eles falem) Até parece o mangangá é fortinho (fazendo sinais com os braços de ser uma pessoa mais gordinha) Risos. Eu magrinha... Então, veja bem...” O que nos chama atenção na fala da então candidata Marina é a forma como ela significa, como constrói significativamente a disputa com a candidata Dilma: metaforiza este domínio da experiência, que é a disputa, a partir de elementos da cultura regional (fauna), de narrativas religiosas e do conceito de luta/conflito/guerra. Podemos localizar um ethé de credibilidade na fala “eu vi uma coisa fantástica acontecer neste país”, pois a candidata evidencia um ethos de “sério”, demonstrando com a elocução enunciativa “eu” um comprometimento em seu discurso. No trecho “Como pode alguém com dois minutos de televisão, enfrentando onze de uma candidata, que tem mais de vinte mil cargos, só na administração direta, tanto prefeitos, tantos governadores, deputados, vereadores, senadores, amigos, inimigos antigos, históricos, todos juntos” notamos, claramente, um processo argumentativo que se apropria de construções metafóricas. Tal processo fica evidenciado com os substantivos enfrentamento e batalhão (conforme excerto abaixo) sugerindo, através dessas metáforas, um campo lexical de guerra/conflito, onde adversários se duelam em favor de uma causa, como explica Charaudeau (2011:46) “A política é um campo de batalha em que se trava uma guerra simbólica para estabelecer relações de dominação ou pactos de convenção”. Na sequência temos: (2) Num verdadeiro, num verdadeiro batalhão de Golias. O amigo até falou: Ou, usa outras metáforas” né?! Fica usando essas coisas aí “Golias” e “Davi” vamos vê se a gente pensa outra coisa. Eu gosto desse

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atravessamento. Eu gosto de poder usar os símbolos dos judeus. Mas, que bom que os judeus pudessem também usar os nossos, né?

A estratégica simbólica utilizada pela candidata se define por Golias, um gigante, com forças muito superiores a um simples humano (Davi) ser derrotado de forma inacreditável. O que nos remete, no período atual, ao entrecruzamento de dois discursos, a saber: o político e o religioso, no qual, o partido de maior força, até então o PT é visto com possibilidades de ser “derrotado” pelo de menor força, o PSB, visto que, de acordo com as pesquisas de intensão de voto Dilma Rousseff é considerada, neste momento do vídeo, com pouca diferença de Marina. O ethé utilizado por Marina neste fragmento é o de identificação com ethos de “humanidade” já que a ex-Ministra insere os judeus em seu discurso e confirmando simpatia aos símbolos da religião demonstrando benevolência para com os crentes. Esta estruturação da experiência política em termos de militarização discursiva é reforçada por outras duas metáforas, ou narrativas metafóricas advindas de ordenamentos discursivos diferentes, como podemos observar no excerto abaixo: (3) E aí eu iria dizer: um verdadeiro batalhão de mangangá contra uma carapanã, certo? Mangangá é um besouro deste tamanho, com um ferrão poderosíssimo. A poli da carapanã incomoda, mas, vamos e venhamos, é uma guerra de David contra Golias ou do mangangá contra carapanã. E já sabe quem é o carapanã? Sou eu! Quem é o mangangá? (apontando para que eles falem) Até parece o mangangá é fortinho (fazendo sinais com os braços de ser uma pessoa mais gordinha) Risos. Eu magrinha... Então, veja bem...

No fragmento “E aí eu ‘iria dizer: um verdadeiro batalhão de mangangá contra carapanã, certo? Mangangá é um besouro deste tamanho, com um ferrão poderosíssimo” observamos, novamente, além do pronome pessoal em primeira pessoa como elocução enunciativa, a definição de mangangá como tipo de besouro grande e supostamente forte pelo fato de ter um ferrão poderosíssimo, sugere de forma irônica e potencialmente ideológica, que a candidata Dilma, ou melhor, seu partido (PT), como adversários “ameaçadores”. Dessa forma, faz-se necessário apresentar a definição de Carapanã e Mangangá. Segundo o Grande Dicionário Houaiss Beta da Língua Portuguesa, disponível online, Carapanã é um termo utilizado na região do Amazonas para identificar um mosquito, assim como Mangangá é empregado para uma abelha. Definições de extrema importância para a análise deste vídeo.

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Percebemos que a ex-Ministra do Meio Ambiente compara a sua adversária política, Dilma Rousseff, assim como, a si mesma, a dois insetos de seu ambiente cultural, como vimos, por meio de metáforas. Isso pode ser explicado por Fairclough (2001: 241): Algumas metáforas são tão profundamente naturalizadas no interior de uma cultura particular que as pessoas não apenas deixam de percebê-las na maior parte do tempo, como consideram extremamente difícil escapar delas no seu discurso, pensamento ou ação, mesmo quando se chama a sua atenção para isso.

Assim, as metáforas são uma importante estratégia discursiva porque: Penetram em todos os tipos de linguagem e em todos os tipos de discurso (...) não são apenas adornos estilísticos superficiais do discurso (...) estruturam o modo como pensamos e no modo como agimos, e nossos sistemas de conhecimento e crença, de uma forma penetrante e fundamental (FAIRCLOUGH, 2001, 241).

Em “É um transbordamento da sociedade brasileira” ressaltamos a palavra em itálico, do contexto ambiental, caracterizada na fala da candidata, evidenciando um entrecruzamento discursivo do político com o ambiental, pois como já foi mencionado, Marina foi Ministra do Meio Ambiente, entre os anos de 2003 e 2008, pelo governo de Lula (PT), cujos principais projetos foram a defesa da valorização dos recursos naturais e do desenvolvimento sustentável, o que certamente pode tê-la influenciado no campo lexical pelos anos atribuídos ao cargo. Como visto anteriormente, os ethé são aquilo que o sujeito demonstra ser pela forma como age e da forma em que fala. Portanto, em “Eu gosto desse atravessamento. Eu gosto de poder usar os símbolos dos judeus2”, observamos o uso da elocução enunciativa presente no “eu”, construindo o ethos da religiosidade e que comprova que a candidata constrói uma identidade discursiva, que se atém aos papéis que são atribuídos socialmente. O uso recorrente do processo mental emotivo “gostar” somado ao uso do “eu” marca esta inserção na religiosidade, de forma a convencer aquele que também acredita em tais narrativas bíblicas. Já o léxico “atravessamento” pode significar um entrecruzamento/entrelaçamento, assim, percebemos uma relação interdiscursiva, na qual, igreja (religião) e política (batalha), se inter-relacionam, de maneira natural, neste texto.

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Judeu é um membro do grupo étnico e religiosooriginado das Tribos de Israel ou hebreus do Antigo Oriente.

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Posto isto, na próxima seção trataremos de analisar as estratégias discursivas presentes na carta de Camila Moreno, militante da juventude do PT – partido de oposição ao de Marina Silva, caracterizando nitidamente a “defensiva” política do partido de Dilma Rousseff.

5.1. Analisando a carta Foi veiculada, em um blog, como também em jornais de intermediação online, uma carta que se intitula “Carta aberta de uma gordinha à Marina Silva” escrita por uma estudante do curso de Letras da Universidade de Brasília e militante da juventude do Partido dos Trabalhadores – Camila Moreno. Não foi por acaso que escolhemos essa carta para compor a amostra discursiva, pois tentaremos mostrar como, através de um discurso político, podemos nos utilizar de vários recursos discursivos para demonstrarmos, o novo posicionamento contra ou a favor de um determinado partido ou construção ideológica. A estudante ao reformular a fala de Marina a representa doravante de outra forma, reconstruindo-a com outros efeitos ideológicos. Ao fazer isso, muda substancialmente as palavras que Marina usa, levando para o campo semântico de seu interesse: discutir a problematização do corpo hegemônico. O texto ilustra uma relação bastante interessante entre intertextualidade e coerência de sujeitos, ou seja, os intérpretes impõem aos textos diferentes leituras (FAIRCLOUGH, 2001). Se a coerência, a significação textual, é uma propriedade dos intérpretes e suas posições sociais, nada mais natural que a estudante tenha se apropriado e levado para os campos semânticos que a interessa, como a militância do feminismo. Em “Entre as tantas comparações que podem e devem ser feitas entre as duas candidatas mais bem posicionadas nas pesquisas eleitorais, você opta por dizer é magrinha, enquanto Dilma é fortinha, exatamente com essas palavras, arrancando risadas e aplausos da plateia”, a estudante diz que a palavra “magrinha” para se referir a ela, e “fortinha”, à Dilma, mas, se voltarmos à transcrição do vídeo, notaremos que no discurso de Marina, essas construções discursivas não ocorreram tão explicitamente, como o texto sugere, e sim implicitamente através de gestos e encenações. Parece admissível analisar, também, as palavras “risadas e aplausos da plateia”, contextualizadas e sendo interpretadas pela estudante, como forma irônica e de afronta, gerando um ethos de “caráter” à Marina.

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É importante que retomemos o significado de Mangangá: empregado na região Norte para referir-se a abelha, besouro. A estudante traz um discurso nitidamente ideológico em sua carta a fim de convencer os leitores com seus argumentos sobre o “ato falho” ao se diferenciar de Dilma. Para isso, demonstra não levar em consideração o caráter cultural dos estados do Norte do país, como já dito, terra natal da candidata do PSB e utiliza-se da elocução enunciativa eu demonstrando o ethé de identificação à sua fala. E ao chamar atenção ao empregar “fundo da minha alma” e “sofri” utiliza-se do ethos de “humanidade” na qual se cria a figura do sentimento. Entretanto, essa mesma discussão pode ser vista talvez por muitos leitores como apelativa para os assuntos sobre a “anorexia” 3e a “bulimia”4. Também, há intertextualidade quando Camila relata “Lembro o quanto te criticaram pelo fato do seu companheiro trabalhar no governo do PT no Acre, como se vocês, por serem casados, devessem ter a mesma opinião política”, pois retoma o momento histórico de quando a candidata, ao se candidatar pelo PSB, recebeu críticas por ser casada com um representante do partido oposto (PT), o que fundamenta sua argumentação criando um ethé de identificação. Em “Essa sua declaração apenas reforça um padrão ditatorial”, o uso do termo ditatorial denuncia a forte ideologia existente por trás de um discurso político, no caso, no de Marina e em: (6) (...) porque ao invés de você optar por ajudar a romper com essa lógica de que a mais magra é melhor que a gorda, você a reforçou. Você podia ter escolhido desconstruir a ideia de que o debate entre mulheres seria um debate superficial e estético, mas você preferiu seguir essa lógica que revistas de beleza e a indústria do entretenimento entranham todos os dias na nossa vida, de que para ser bem sucedida e feliz, é preciso ser magra.

Há o uso repetidamente do pronome de tratamento “você”, em intervalos pequenos, sugerindo ao tom “acusação” pertencente ao discurso político. Ao usar o verbo “preferiu” por ser sinônimo de “gostar mais de” sugere um processo mental capaz de criar o ethé de identificação com categoria de ethos de “caráter” a respeito de Marina, ou seja, substituindo ficaria: “você gosta mais dessa lógica que revistas de beleza e a indústria do entretenimento

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É um distúrbio alimentar que provoca mais perda de peso nas pessoas do que é considerado saudável para a idade e altura. 4 Éum transtorno alimentar caracterizado por períodos de compulsão alimentar seguidos por comportamentos não saudáveis para perda de peso rápido como induzir vômito.

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entranham todos os dias na nossa vida, de que para ser bem sucedida e feliz, é preciso ser magra”. Observamos um discurso feminista por parte da aluna, sugerindo um sentimento de revolta, devido aos estereótipos de beleza impostos por uma sociedade que prioriza a estética, e que segundo ela, são reforçados na fala da candidata do PSB.

6. Considerações Finais A partir do interesse em investigar como o sujeito político constrói seus ethé na campanha eleitoral, verificamos que as falas utilizadas, tanto no vídeo de Marina, quanto na carta da estudante, vão além dos discursos enunciados pelas próprias interlocutoras, o que envolve vários interdiscursos para reforçar e legitimar os ethé construídos. Constatamos a presença de ethé de identificação e de credibilidade nos dois textos. No entanto, no vídeo houve uma incidência maior do ethé de credibilidade, o que na carta ocorre o contrário, o caso de ethé de identificaçãotem maior ocorrência. Procuramos demonstrar como a ação verbal contribui para legitimação e sustentação dos ethé construídos pelos sujeitos falantes, e principalmente pelos políticos nas campanhas eleitorais.Em cada um dos ethosencontrados, foram apresentadas suas características e qualidades, o que contribuiu para identificarmos a tentativa de formação de uma imagem políticae sua ideologia por parte do falante. Além disso, foi possível analisar as metáforas utilizadas por Marina Silva, contextualizando-as e interpretando-as.As categorias de intertextualidade e interdiscursividade também tiveram bastante ocorrência em vários momentos dosdois textos. É importante deixarmos claro que a análise proposta não se esgota uma vez que são possíveis várias interpretações a respeito das construções discursivas da amostra escolhida.

7. Referências Bibliográficas FAIRCLOUGH, Norman. Discurso, mudança e hegemonia. In PEDRO, Emília Ribeiro. Análise crítica do discurso: uma perspectiva sociopolítica e funcional. Lisboa: Caminho, 1997. FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 2001. GOMES SILVA, Maria Carmen Aires; SILVA, Adriana. Ethos e estereótipo: Análise da campanha da Kibon. UFV. 2010.

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Sites consultados Vídeo disponível em: http://coturnonoturno.blogspot.com.br/2014/09/marina-chama-dilmade-gorda-os-da.html; acesso em 28 de setembro de 2014. Disponível em: http://www.unicruz.edu.br/mercosul/anais/2013/LINGUAGEM%20E%20DESENVOLVIME NTO%20SOCIOCULTURAL/ARTIGOS/A%20LEITURA%20DOS%20IMPLICITOS%20E M%20LETRAS%20DE%20MUSICAS.PDF; acesso em 04 de outubro de 2014. Disponível em: http://www.centroruthcardoso.org.br/_shared/files/all_acervo/anx/20120427163708_CRC018 3.pdf; acesso em 04 de outubro de 2014. Disponível em: https://bay172.mail.live.com/default.aspx?id=64855#!/mail/ViewOfficePreview.aspx?messag eid=4aaa2e61-7f97-11e3-b0a7-002264c17c86&folderid=00000000-0000-0000-0000000000000001&attindex=0&cp=-1&attdepth=0&n=1190068081; acesso em 05 de outubro de 2014.

8. Anexos Anexo I Carta Posted on September 22, 2014

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Carta aberta de uma gordinha à Marina Silva Por Camila Moreno5 Marina, está circulando pela internet um vídeo em que a senhora faz uma comparação entre você e a também candidata e presidenta Dilma Rousseff. Entre as tantas comparações que podem e devem ser feitas entre as duas candidatas mais bem posicionadas nas pesquisas eleitorais, você opta por dizer é magrinha, enquanto Dilma é fortinha, exatamente com essas palavras, arrancando risadas e aplausos da plateia. Lembro com nitidez que a senhora já havia feito essa comparação com Dilma na eleição passada, ao ser perguntada sobre suas principais diferenças. Dilma é a primeira presidenta da história do Brasil e essa é a primeira eleição com grandes chances de duas mulheres irem para o segundo turno. Uma eleição histórica, certamente. Histórica porque em um país cercado de machismo por todos os lados; em que as mulheres são menos de 10% no Congresso Nacional; onde embora muitos avanços tenham sido alcançados com a Lei Maria da Penha, ainda estamos em 7º lugar no ranking da violência doméstica; a maioria dos cidadãos e cidadãs do nosso país, se as pesquisas estiverem certas, optará por confiar o seu voto em uma mulher. Isso é lindo e me emociona. Sei que você sabe, Marina, que ser mulher é um desafio cotidiano. É ter que provar duas vezes que é capaz. Na política então, nem se fala. Lembro o quanto te criticaram pelo fato do seu companheiro trabalhar no governo do PT no Acre, como se vocês, por serem casados devessem ter a mesma opinião política. Na época, te defendi e disse que achava um absurdo esse tipo de acusação. Te defendo quando falam da sua voz, porque não estão acostumados com vozes mais agudas nos debates políticos. Imagino Marina, o quanto sejam duras as críticas por causa do seu cabelo, pelas roupas e não pelas ideias. Talvez você não tenha tido noção da gravidade da sua declaração, Marina, mas eu vou te contar o porquê ela doeu no fundo da minha alma: eu sempre fui considerada uma criança gordinha e desde que entendi que isso era um defeito, sofri com isso. Tive transtornos alimentares graves e só me aceitei de fato, quando conheci a militância e o feminismo, porque me mostraram que os padrões de beleza nos tornam escravas de uma busca impossível e infeliz e eu esperava que as mulheres na política, ainda que com divergências, optassem pela desconstrução do machismo, mas você fez exatamente o contrário. Essa sua declaração apenas reforça um padrão ditatorial que faz com que a anorexia e a bulimia estejam entre as principais doenças de jovens mulheres, que faz com que milhões de meninas e mulheres arrisquem suas vidas em métodos salvadores do alcance da beleza, porque ao invés de você optar por ajudar a romper com essa lógica de que a mais magra é melhor que a gorda, você a reforçou. Você podia ter escolhido desconstruir a ideia de que o debate entre duas mulheres seria um debate superficial e estético, mas você preferiu seguir essa lógica que revistas de beleza e a indústria do entretenimento entranham todos os dias na nossa vida, de que para ser bem sucedida e feliz, é preciso ser magra. Você não perdeu o meu voto com essa sua “piada”, porque você já o havia perdido quando optou por deixar de lado a sua bela trajetória de vida e luta ao lado de Chico Mendes para ser a nova voz da direita e do neoliberalismo no país, mas eu de fato esperava um debate mais qualificado da sua parte. *Camila Moreno é @camilamudanca no twitter, estudante de Letras da UNB e pretende não ser infeliz por conta dos padrões de beleza.

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Camila Moreno é militante da Juventude do PT, estudante de Letras da Universidade de Brasília.

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EU ME CHAMO E CHAMO VOCÊ: UMA PRÁTICA DE ENSINO DE LITERATURA Camila Rita Lelis Estudante de Pós-Graduação na Universidade Feral de Viçosa. E-mail: camila.lelis@ufv.br.

Resumo: Existem variados suportes circulando na sociedade, além da tela e do livro, há também o outdoor, os folders, os guardanapos de papel, entre outros. Toda essa pluralidade de materialidade interfere na leitura, assim, temos a necessidade de promover no ensino a garantia de que essa inter-relação entre os diversos códigos temáticos, linguísticos, estilísticos, sonoros e visuais sejam contemplados. Essa relação entre imagem-palavra e uso de tecnologia se manifesta na obra Eu me chamo Antônio (2013), do poeta Pedro Gabriel. Nela, o pseudônimo Antônio cria poesia em guardanapo de papel. Portanto, este trabalho objetiva demonstrar como a poesia e o suporte que a veicula se relacionam na construção do sentido do texto. Para comprovar essa relação, a pesquisa nasce de uma experiência de ensino baseada no trabalho com a obra Eu me chamo Antônio (2013) em uma turma de 3º ano do Ensino Médio, de uma escola de Viçosa- MG, em 2015. Primeiramente, foi necessário estudar a fortuna crítica do autor Pedro Gabriel, bem como as características da literatura Contemporânea, Teoria da Recepção, conceito de literatura, estudo sobre a história da leitura e dos suportes e uma reflexão a respeito da leitura e da formação do leitor. Foram utilizados os estudos de Regina Zilberman (1989), de Roger Chartier (1994), de Paulo Freire (1986), de Eliana Yunes (2002), e Antônio Candido (1995), principalmente. Portanto, essa experiência permitiu demonstrar como é possível instigar a leitura a partir de métodos midiáticos e visuais, como o sentido do texto pode ser construído a partir da interação suportetexto-leitor, além de permitir que alunos e visitantes pudessem expor sua leitura do mundo e da palavra. Palavras-chave: Poesia. Literatura. Guardanapos. Ensino.


Introdução Observamos, historicamente, que o homem utilizou os mais diferentes tipos de matéria para registrar a grafia: os sumérios guardavam suas informações em tijolos de barro; os indianos utilizavam folhas de palmeiras; os Astecas e maias escreviam em um material existente entre a casca da árvore e a madeira; os romanos escreviam em tábuas de madeira e, os egípcios, através de uma estratégia inovadora, desenvolveram o papiro, cuja matéria prima provinha de uma planta encontrada às margens do Rio Nilo. O conjunto desses escritos formaram os rolos manuscritos, que chegavam a 20 metros de comprimento. Numa estratégia de aperfeiçoamento, o homem substitui o rolo pelo códice cuja característica era reunir os manuscritos em páginas. Apesar da evolução, o códice ainda continuava a ser produzido com o trabalho dos copistas. Então, em 1450 a nova técnica de Gutenberg, a prensa, transfigurou a relação do homem com a cultura escrita. A invenção de Gutenberg inaugurou uma nova fase intelectual e social da história, pois, a impressão popularizaria a cultura e garantiria a produção em massa da palavra impressa, através do suporte livro. Segundo Reinaldo Laddaga (2002), tal fato incitou novas práticas de leitura, como a formação de um duplo silêncio, o do autor e o do leitor, que se torna possível pelo ajuste das formas de certa relação social, de uma divisão de tarefas entre empresários, editores, e autores. Com o advento das tecnologias, surge uma nova configuração de texto, denominada hipertexto. Este, segundo Laddaga (2002), “caracteriza-se por ser um conjunto de nódulos unidos por vínculos que se ativam oprimindo um signo uma imagem, uma marca, e que funciona, desse modo, como marcador do vínculo”. (LADDAGA, 2002, p.20). Em um hipertexto, em cada nódulo abrem-se vários vínculos, de modo que o leitor se vê diante de várias rotas de leitura. É importante refletir sobre o fato de que existem, atualmente, variados suportes circulando na sociedade, como afirma Luiz Antônio Marcuschi (2003), e que a tela é apenas um deles, pois além dela e do livro, há também o outdoor, o para-choque de caminhão, a tela de um quadro, o quadro de giz, as lápides de mármore, os guardanapos de papel, entre outros. Todos esses suportes demonstram as transformações ocorridas no processo de transmissão de conhecimento e todas elas atenderam às necessidades e exigências da sociedade

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em suas respectivas fases. Essas alterações significaram, de acordo com o pesquisador francês da História da Leitura, Roger Chartier, “uma revolução nas estruturas do suporte material do escrito assim como nas maneiras de ler” (CHARTIER, 1998, p. 13). Logo, segundo o historiador, as práticas leitoras são transformadas pelos suportes. Assim, a leitura de textos literários é marcada pela pluralidade do mesmo, que segundo Ivanda Martins (2006) se caracteriza pela inter-relação entre os diversos códigos temáticos, ideológicos, linguísticos, estilísticos, sonoros e gestuais. No Brasil, por exemplo, após a renovação cultural provocada pela Semana de Arte Moderna (1922), os poetas passam a defender o verso livre. Cronologicamente, o movimento modernista tem seu fim em 1945, quando já se inicia o período denominado de Literatura Contemporânea, cujas características ainda estão relacionadas com o movimento modernista, por exemplo, a ruptura com os valores tradicionais. Ademais, segundo Heloisa Buarque de Hollanda (2007), hoje há um circuito paralelo de produção e distribuição independente que forma um público jovem que não se confunde com o antigo leitor de poesia. Isso se deve ao contexto de produção artística que marca o século XXI, ou seja, os e-books, os celulares, os computadores e a agilidade na recepção e envio de informações. Devido a isso, as edições apresentam uma face mais charmosa, convidativa e que dialoga com o visual e o tecnológico, no intuito de traduzir as necessidades do leitor da era digital. Visto isso, este trabalho tem como intuito apresentar uma experiência de ensino, vivenciada em uma turma de Ensino médio, pautada na produção poética contemporânea de Pedro Gabriel, em sua obra Eu me chamo Antônio (2013). Este livro é constituído de um enredo cujo personagem, Antônio, é frequentador assíduo de bares, ele despeja comentários sobre a vida em imagens e frases escritas em guardanapos de papel. Os pequenos versos e desenhos anotados nos guardanapos carregam as alegrias e tristezas do eu lírico, são palavras que refletem sobre situações cotidianas e comuns aos seres humanos, que se alegram, sentem medo, solidão, amam e se decepcionam. Em outubro de 2012, Pedro Gabriel inaugurou a página Eu me chamo Antônio no Facebook(www.facebook.com/eumechamoantonio), para compartilhar o que rabiscava com caneta hidrográfica em guardanapos nas noites em que batia ponto no Café Lamas, um dos mais

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tradicionais bares do Rio de Janeiro. Hoje, essa página alcança cerca de 900 mil seguidores, que compartilham e divulgam os versos e pensamentos de Antônio.

Objetivos Geral Refletir sobre o ensino de literatura e a formação de leitores, a partir de uma experiência de ensino baseada na obraEu me chamo Antônio (2013) de Pedro Gabriel. Específicos  Discutir a interferência da materialidade do texto literário, no que tange aos suportes, livro, guardanapo e hipertexto, na prática da leitura.  Refletir sobre o leitor contemporâneo, a prática leitora e o papel do docente enquanto mediador dessa prática.

Metodologia O trabalho a foi desenvolvido com alunos do 3º ano do Ensino Médio, de uma escola particular da cidade de Viçosa-MG, durante as aulas de literatura, quando os alunos estudavam Literatura contemporânea. Foram adotados os seguintes passos:  Leitura e estudo da obra Eu me chamo Antônio (2013) de Pedro Gabriel.  Debate e escolha dos poemas e frases preferidas dos alunos  Elaboração dos Guardanapos poéticos pelos alunos  Confecção de material para exposição de artes, cuja galeria recebeu o nome: Eu me chamo e chamo você.

Revisão Bibliográfica Inicialmente, é importante destacar algumas discussões a respeito do conceito de literatura. Segundo Roland Barthes (1989): Entendo por literatura não um corpo ou uma sequência de obras, nem mesmo um setor de comércio, mas o grafo complexo das pegadas de uma prática: a prática de escrever. Nela viso, portanto, o texto, isto é o tecido dos significantes que constitui a obra, porque o texto é o próprio aflorar da língua [...] a literatura faz girar os saberes. (BARTHES, 1989)

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Para Barthes, a literatura está aliada a prática de escrever. Nesse mesmo viés, Antônio Cândido (1995) chama de literatura todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção artística das grandes civilizações. Por fim, o que se pode entender é que a linguagem literária permite que as palavras assumam vida própria, com novas significações, pois, o texto é repleto de significantes atrelados às varias áreas dos saberes. Assim, cabe ao leitor construir os sentidos do texto, o que só é possível através da prática leitora e cabe a ele decidir se o texto será literatura. Logo, segundo Eliana Yunes (2002), se o universo de discurso importa para a significação de um texto, temos que considerar também o contexto de sua produção, e há de se pensar nos efeitos que o dizer tem nos sujeitos, isto é, como se dá a recepção por parte do leitor. Esta vertente de estudos que põe sua ênfase no receptor é de história recente, foi desenvolvida a partir das ideias de Hans Robert Jauss e se denomina Estética da Recepção. Segundo Regina Zilberman (1989): [...] o seu pressuposto é que a vida histórica da obra literária não pode ser concebida sem a participação ativa de seu destinatário. [...] segundo Jauus a obra evoca o horizonte de expectativas familiares ao leitor, que são alteradas, corrigidas, transformadas ou também apenas reproduzidas. (ZILBERMAN, 1989, p.33)

Desse modo, a obra literária depende do receptor, assim como este também tem seu modo de ler modificado, de acordo com as obras produzidas em cada período no que tange a seu conteúdo e a sua materialidade. Desse modo, esta teoria muito influencia no ensino de literatura, visto que o aluno deve ser visto como sujeito ativo no processo de construção da significação de um texto. E o principal agente formador de leitores é a escola, sobre o seu papel Zilberman (1990) afirma: A literatura precisa se redescobrir, considerando as novas circunstâncias, em que consiste sua natureza educativa. Compete hoje ao ensino da literatura não a mais a transmissão de um patrimônio já construído e consagrado, mas a responsabilidade pela formação do leitor. [...] A experiência da leitura decorre das propriedades da literatura enquanto forma de expressão, que se utilizando da linguagem verbal, incorpora a particularidade dessa de construir um mundo coerente e compreensível;

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esse universo se alimenta da fantasia do autor, que elabora suas imagens interiores para se comunicar com o leitor. (ZILBERMAN, 1990, p.18)

Logo, esse espaço social da leitura deve considerar que a nova conjuntura da sociedade, ou seja, a era da pressa, da tecnologia, do multiculturalismo não representa uma ameaça no processo de incentivo à leitura e ensino da literatura. Portanto, a escola deve redescobrir formas de proporcionar ao aluno o contato com o texto literário, seja ele de que materialidade ou natureza for e utilizar essa diversidade de produção para tentar incorporar a experiência da leitura na vida do sujeito. Ademais, as transformações das formas através das quais um texto é proposto autoriza recepções inéditas, logo cria novos públicos e novos usos. Ou seja, a encarnação do texto em uma materialidade especifica carrega diferentes interpretações, compreensões e usos. Isto quer dizer que: “O historiador deve poder vincular em um mesmo projeto o estudo da transmissão e da apropriação dos textos”. (CHARTIER, 1998, p. 88) Desse modo, segundo Almeida (2001) o perfil atualizado da obra pode ajudar a estabelecer uma relação de conivência com o leitor que se identifica com a caracterização dos aspectos sociais por ele vivenciados, o que desperta seu interesse e sua relação viva e prazerosa com a leitura. E assim, a cada momento, observa-se que os artistas buscam possibilidades de explorar novos caminhos, novas linguagens que possam dar conta das mudanças do homem, da vida, do tempo e do mundo. De acordo com Hollanda (2007), ocorre na contemporaneidade a desierarquização do espaço nobre da poesia, tanto em seus aspectos materiais e gráficos, quanto no plano do discurso. Para a autora “há uma poesia que desce da torre do prestígio literário e aparece com uma atuação que, restabelecendo o elo entre poesia e vida, estabelece o nexo entre poesia e público a sua linguagem se desdobra e diversifica”. (HOLLANDA, 2007. p 10) Para Octavio Paz (1993) a poesia pode ser conceituada a partir da relação entre voz e imagem: A poesia é a memória feita imagem e esta convertida em voz. A outra voz não é a voz do além túmulo: é a do homem que está dormindo no fundo de cada homem. Tem mil anos e tem nossa idade e ainda não nasceu. É nosso avô, nosso irmão e nosso bisneto. (PAZ, 1993 p.30).

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Este autor define poesia se baseando no caráter subjetivo da mesma. Já para Pedro Lyra (1986), ela é algo imaterial que só se concretiza mediante o leitor: A poesia, por sua vez, é situada de modo problemático em dois grandes grupos conceituais: ora como uma pura e complexa substância imaterial, anterior ao poeta e independente do poema e da linguagem, e que apenas se concretiza em palavras como conteúdo do poema, mediante a atividade humana; ora como a condição dessa indefinida e absorvente atividade humana, o estado em que o indivíduo se coloca na tentativa de captação, apreensão e resgate dessa substância no espaço abstrato das palavras. (LYRA, 1986, p.7)

Segundo Lyra (1986), podemos deduzir que a existência primordial da poesia se vincula à daqueles seres que exercem algum influxo sobre o sujeito que entra em contato com eles e o provocam para uma atitude estética de resposta, consumando o trânsito da percepção à objetivação mediante uma forma qualquer de linguagem. A assertiva de que vários elementos e situações do mundo são poéticos é também considerada por Shelley (2002). Para o autor, “as partes de uma composição podem ser poéticas, sem que a sua totalidade constitua um poema”. (SHELLEY, 2002, p.177). Posto isso, uma única frase pode ser considerada como um todo, ou ainda uma palavra pode ser uma fagulha de pensamento inextinguível.

Resultados e discussão Hoje, ao estudarmos a poética contemporânea, encontramos, segundo Guimarães (2009), um grupo de poetas que representa o que de mais importante se produziu em poesia lírica no Brasil. Nomes como Armando Freitas, Ivan Junqueira e Paulo Leminski, por exemplo, que por meio de um toque individual, dão nova importância à poesia lírica brasileira contemporânea. Por isso, ao trabalhar o período contemporâneo da literatura, é importante discutirmos a forte presença da tecnologia, bem como a preferência dos alunos por textos que traduzem bem a realidade da era digital, visual e principalmente da pressa. Para isso, podemos recorrer a variados objetos de estudo, ou seja, hoje, existe uma gama de novos autores e textos que precisam ser explorados, visto que muitos deles concretizam em seus escritos a realidade e os anseios dos leitores do século XXI.

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Desse modo, considerando essas questões, a obra Eu me chamo Antônio, de Pedro Gabriel, foi apresentada aos alunos do 3º ao do Ensino Médio, os quais, em sua maioria, já conheciam a página do autor no facebook. Após a leitura realizada pelos discentes, discutimos questões relacionadas à forma e ao conteúdo dos poemas e frases do livro. Principalmente como, a partir de um registro espontâneo da linguagem, fora de parâmetros eruditos, o autor elabora seus versos, tendo como suporte inicial os guardanapos de papel. O Eu lírico, Antônio, usa trocadilhos e musicalidade nos versos, além disso, a poesia tem forte vínculo com o aspecto visual, visto que o desenho da grafia e as imagens, criadas nos guardanapos pelo próprio Antônio, são frequentes. Pedro Gabriel, a partir da voz de Antônio, trata de temas universais como amor, solidão, saudade, medo e outras relações humanas. Com base na teoria sobre suportes e gêneros textuais desenvolvidos por Marcuschi (2003), existem dois tipos de suporte em que os textos são veiculados: o convencional e o incidental. De acordo com o autor, o suporte convencional é elaborado a fim de portar textos verbais e não verbais, e o incidental é aquele ocasional. Logo, o primeiro suporte utilizado pelo autor é o incidental, guardanapo, e o segundo um convencional, livro. Vale destacar também que o poema é um gênero livre, maleável, pois esse gênero permite mais variações em sua criação, visto que a criatividade, inovação e originalidade marcam seu processo de produção. Tais variações e inovações não dizem respeito somente às construções discursivas, mas também pode se realizar através do suporte. Assim, o suporte inicial é o guardanapo e, mesmo quando a obra impressa é produzida, Pedro Gabriel reúne esses guardanapos dentro do suporte livro em uma proposta diferenciada de edição. Portanto, além de discutirmos os temas e a forma dos poemas, foi de extrema importância observar e registrar a leitura feita pelos alunos, receptores, e como esse suporte diferenciado atraiu a atenção da classe. De acordo com Zilberman (1989), a obra sempre evoca a participação ativa de seu receptor, então a proposta de trabalho busca resgatar os horizontes de expectativas do leitor, sua interpretação e as transformações que ele pode criar no texto. Por isso, além do estudo, os alunos tiveram a oportunidade criar seus próprios versos, também escritos em guardanapos de papel. Assim, de acordo com Lyra (1986), a poesia está no mundo originariamente, antes de estar no poeta ou no poema, isso pode ser comprovado pela simples constatação de que determinados objetos/situações do mundo são "poéticos". Logo,

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com está prática, os alunos puderam expressar a sua leitura da palavra e principalmente a sua leitura de mundo, evocando uma prática educativa libertadora, baseada na proposta da autonomia de Paulo Freire (2002). Segundo este autor, o respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceber uns aos outros. O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia transgride os princípios fundamentais éticos de nossa experiência enquanto educador. Após essa produção dos próprios poemas, os alunos selecionaram seus versos preferidos da obra Eu me chamo Antônio (2013) e iniciamos a montagem da exposição. Os textos de Pedro Gabriel e os textos dos alunos foram expostos para o público em uma galeria montada com todos os elementos e características que a aproximasse de um bar. Esta escolha ocorreu porque o autor Pedro Gabriel relata no prefácio da obra que Antônio, autor que assina os versos, produz os guardanapos em bares do Rio de Janeiro. Logo, esta informação estimulou nossa criatividade para montar a exposição. Pensando na importância da interação do público como agente ativo no processo literário, existia um espaço na galeria destinado aos visitantes, para que estes também pudessem deixar registradas, no guardanapo, suas impressões da vida e do mundo que os cercam e que pudesse traduzir em versos a sua essência. Desse modo, a encarnação do texto em uma materialidade especifica carrega diferentes interpretações, compreensões e usos. Isto quer dizer segundo Roger Chartier (1998) que “cada leitor tem uma apropriação da obra que recebe”. (CHARTIER, 1998, p. 88). Portanto, a leitura mostra-se como uma prática criadora, uma atividade produtora de sentidos singulares, de significações de modo nenhum completamente redutíveis às intenções dos autores dos textos ou dos produtores de livros.

Considerações Finais A linguagem literária permite que as palavras assumam vida própria, com novas significações, pois, o texto é repleto de significantes atrelados às várias áreas dos saberes. Assim, cabe ao leitor construir os sentidos do texto, o que só é possível através da prática leitora.

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Portanto, não há dúvidas de que esta prática social transformou e transforma as relações sociais humanas. Dessa forma, então, a leitura passa a revelar os anseios de uma comunidade, como forma de denúncia, súplica, revolta, desânimo e perspectivas atuais e futuras. Segundo Zilberman (1989) é fundamental que o público seja fator ativo no processo literário, já que as mudanças de gosto e preferência interferem não apenas na circulação ena fama dos textos, mas também em sua produção. Além disso, a sociedade dispõe de mecanismos que facilitam ou inibem a difusão de uma obra ou e um autor; dentre estes está a escola, que desempenha o papel mais determinante. A leitura de textos literários é marcada pela pluralidade do mesmo, que segundo Martins (2006) se caracteriza pela inter-relação entre os diversos códigos temáticos, ideológicos, linguísticos, estilísticos etc. Logo, a leitura é uma atividade de integração de conhecimento. Assim, a literatura não é um objeto isolado, devemos considerar a situação de produção e recepção de um texto, a forma como o mesmo chega ao público, ou seja, o suporte, e as interferências feitas pelo leitor. De acordo com Martins (2006), o sentido não esta no texto, mas é construído pelos leitores na interação o lido. É justamente a partir dessa interação do leitor com o escrito que o estudo da literatura se torna significativo. Os jovens nascem e vivem na era digital dos computadores e principalmente celulares, onde digitam mensagens instantâneas ou participam de redes sociais.Nesse contexto, é preciso que a escola repense as práticas pedagógicas de leitura e considere a importância dos suportes no processo de construção do significado do texto e no processo de formação dos leitores. Assim, darão acesso à leitura na sua plenitude. Entretanto, segundo a escola dificilmente incitou o exercício da leitura, a não ser quando condicionado a outras tarefas, a maior parte de ordem pragmática. Hoje, o estímulo à leitura mostra-se como necessidade e, para efetivar o trabalho da escola e do professor, temos alternativas e materialidades diversas. Logo, cabe agora refletir se a escola oferece ao aluno-leitor um novo olhar sobre a realidade que o cerca, se estimula nele o movimento, o despertar da visão crítica e reflexiva do real através da recepção da leitura literária. Seguindo a perspectiva dialógica de Paulo Freire (2002) o direito da palavra não é de um ou de outro, mas sim é direito de todos os homens. Segundo o autor, reconhecida a

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instituição escolar como gestora da sua própria prática educativa, é importante que a escola se firme como um corpo que se desenvolve a partir de um movimento dialógico, que convida a todos para participar e transformar o mundo vivido e compartilhado. Assim, como professores e formadores de sujeitos críticos e leitores, devemos potencializar a construção de uma vivência escolar plural e democrática que valorize a trajetória de vida de cada sujeito e reconheça o espaço escolar como uma oportunidade de todos, juntos, tornarem-se pessoas melhores.

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LADDAGA, Reinaldo. Uma fronteira do texto público: literatura e meios eletrônicos. In: Literatura e Mídia. Heidrumkrieger Olinto e Karl Erick Sholhammer. Rj: editora Puc-Rio, 2002. LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ed. Ática. 1993ª LYRA, Pedro. Conceito de poesia. São Paulo: Ática, 1986. Série Princípios. MARCUSCHI, L.A. Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucena, 2003. MARTINS, Ivanda. A literatura no ensino médio: quais os desafios do professor? In: Português no ensino médio e formação do professor, Clécio Bunzen e Márcia Mendonça (org). São Paulo: Parábola, 2006 PAZ, Octavio. A outra voz. Trad. Wladir Dupont. São Paulo: Siciliano, 1993. PEREIRAS, Maria Antoniela [et al] .Dez anos formando leitores: literatura e políticas de rede. Belo Horizonte: Faculdade de letras da UFMG, linha Ed. Tela e Texto, 2008. QUEIROZ, Rita de C. R. Informação Escrita: Do manuscrito ao texto virtual. VI Encontro Nacional de Ciência da Informação – Informação, Conhecimento e Sociedade Digital,Salvador, BA, 2005. SHELLEY, PercyBysshe. Uma defesa da poesia. In: Defesas da Poesia. Sir Philip Sidney e PercyBysshe Shelley. Ed. Iluminuras: São Paulo 2002. YUNES, Eliana (Org). Pensar a leitura: complexidade. Rio de Janeiro: Ed PUC-Rio 2002. YUNES, Eliana. Tecendo um Leitor: uma rede de fios cruzados. Curitiba: Aymará, 2009. ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: editora Ática, 1989. ZILBERMAN, Regina. A leitura no Brasil: sua história e suas instituições. s/d. Disponível em < http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/regina.html> . Acesso em 01mar. 2015

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Anexos Galeria da exposição de artes

Produção em sala

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Mural de participação do público na exposição

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O DIÁRIO DE UMA PROFESSORA: REFLEXÃO NA PRÁTICA DOCENTE Áida Silva Penna Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade Federal de Viçosa. E-mail: aida.penna@ufv.br

Resumo: Nos anos 90, surgiu uma maior preocupação com a educação, principalmente, nas Américas. O que acontece é uma mudança no paradigma educacional que volta suas inquietudes para o âmbito do professor como agente reflexivo diante sua prática docente nas obras de Schön (1995), Gómez (1995) e Lalanda e Abrantes (1996). Devido fatores de alta complexidade que permeiam o processo de ensino-aprendizagem, muitas vezes, há uma necessidade de repensar a prática docente como uma maneira transformadora e inovadora de se atuar. Assim, ao longo de uma caminhada de modificações, ora se aproximando de perspectivas tradicionais sobre o que é reflexão ora afastando, o que se interessa é todo um crescimento e desenvolvimento da área no que diz respeito ao profissional reflexivo permitindo, assim, uma atualização dos assuntos e estudos a ele relacionados. E, claro, se interessa num desenvolvimento profissional do docente voltado para a operação cotidiana da prática reflexiva em sala de aula. Diante disso, no presente trabalho, tenho como finalidade mostrar aos professores e futuros professores a importância da reflexão sobre a prática docente e como esta reflexão não deve ocorrer no vazio do pensamento, mas a partir das experiências do professor fundamentada nas teorias que englobam esta conduta. Portanto, para este fim, utilizo como corpus de análise um diário de bordo que fiz durante atuação como professora de Língua Inglesa no segundo semestre de 2014 devido à necessidade de se privilegiar a análise reflexiva do docente em exercício da profissão. Palavras-chave: Reflexão na prática docente. Processo ensino-aprendizagem em Língua Inglesa. Diário de bordo.


Introdução “Sua experiência docente, se bem percebida, e bem vivida, vai deixando claro que ela requer uma formação permanente do ensinante. Formação que se funda na análise crítica de sua prática.” (FREIRE, 2001, p.260)

Nos anos 90, surge uma maior preocupação com a educação, principalmente, nas Américas. O que acontece é uma mudança no paradigma educacional que volta suas inquietudes para o âmbito do professor como agente reflexivo diante sua prática docente (SCHÖN, 1995; GÓMEZ, 1995; LALANDA e ABRANTES, 1996). O trecho acima foi extraído da carta que o renomado educador Paulo Freire fez aos professores que foi publicado no começo do século XXI. Neste, temos um provocante texto que atenta para as questões que envolvem a prática do professor, cuja temática baseia-se na formação do professor, do processo de ensinoaprendizagem e, inclusive, da prática docente do educador. Se nos atentarmos ao significado da palavra ‘prática’ do trecho acima que é um substantivo feminino que se refere à prática docente do professor, segundo o dicionário Michaelis1 dentro de vários significados, temos: “prática; prá.ti.ca sf (gr praktiké) 5. Execução repetida de um trabalho ou exercício sistemático com o fim de adquirir destreza ou proficiência: A prática leva à perfeição; 7. Habilidade em qualquer ocupação ou ofício adquirida por prolongado exercício deles: Ter muita prática; reforça ainda mais a posição de Paulo Freire perante o ensinante como sujeito que está em constante processo de formação e, é claro, que esta tarefa não pode começar a ser feita aleatoriamente e sem preparo. Já se pensarmos em questões políticas segundo Pimenta (2005) e apoiando-se na história brasileira percebemos que, nas poucas políticas públicas que foram feitas, a educação sempre esteve à margem do desenvolvimento do país, pois foram ineficientes. A título de exemplificação, a autora Pimenta (2005) recorre a antecedentes históricos que mostram a defasagem de profissionalização que o professor possuí, como podemos ver: segundo pesquisas de Luiz Pereira o Censo Escolar do Brasil, Inep, 1965, ser professor estava relacionada a uma ocupação feminina pautadas em características missionárias e aptidão materna, baixos salários

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Este significado da palavra foi extraído de um dicionário online que inclui o novo acordo ortográfico da língua Portuguesa.

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e poucas horas trabalhadas sem prestígio social; quase a metade dos docentes eram improvisados e não possuíam formação além da 2ª série primária (Inep, 1965). Segundo Marques (2014, p. 767), há “sinais inequívocos das dificuldades que se antepõem à formulação e implementação de políticas de estado para a área da educação. Não obstante estas indicações, pode-se dizer que surge uma política nacional de formação de professores para a educação básica”, porém essas políticas que surgem são desprovidas de competência para a transformação da educação brasileira, o que nos mostra poucos ou ausentes resultados efetivos. Isso, sem contar o alto índice de evasão de estudantes nos cursos de licenciatura que, por sua vez, reflete desfavoravelmente na educação básica do país: As políticas de incentivo à formação de professores no Brasil parecem não estar conseguindo mantê-los na instituição até a conclusão do curso. Isso significa que o professor necessita muito além de incentivos no que diz respeito à sua formação em nível superior. Necessita ser valorizado enquanto docente; necessita ter voz, autonomia; necessita poder pensar acerca do seu fazer e ser docente; necessita ser ouvido; necessita participar como protagonista das reformas educacionais, pois é ele quem melhor conhece as mazelas que permeiam a Educação brasileira, e não apenas como um telespectador ou como alguém obrigado a replicar o que não professores decidem na e pela Educação. (FELICETTI e FOSSATTI, 2014, p. 279)

O Trecho acima nos apresenta e alerta para a complexa situação a qual a educação se encontra nos dias atuais e que independente das políticas e qualidade delas há ainda problemas de profissionalidade dos que fazem as políticas, já que não dominam conhecimentos teóricos e práticos da área. Corroborando ainda com o fato de que as alterações e propostas em mudanças na área da educação devem ser feitas por profissionais conhecedores desse campo de conhecimento, o autor Nóvoa (1995, p. 4) recorre à Adolfo Lima (1915) que nos mostra que “O poder político é, por definição, incompetente para exercer a função educadora e tratar de assuntos doutra técnica que não seja a da política. [...] Um recrutamento de professores só pode ser feito por quem conheça perfeitamente as necessidades do ensino [...] feito pelos seus iguais”. Apesar deste autor já ter pontuado esta incompetência dos políticos de estabelecer políticas públicas à praticamente 100 anos atrás, tal fato não se deve a uma mera coincidência, uma vez que dada a complexidade de fatores que permeiam o processo de ensino-aprendizagem há, com certeza, uma necessidade de repensar tudo o que envolve a prática docente como uma

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maneira transformadora e inovadora de se atuar atentando, sobretudo na concepção do que seria o papel do professor na contemporaneidade. Acontece que algumas intervenções que são feitas no ramo (conteúdo a ser ensinado, provas a serem dadas aos alunos e os resultados da turma que indiretamente avaliam o professor) acabam privilegiando um tipo de ensino que não prioriza o saber para aprender e ter conhecimento, mas sim saber para conseguir uma boa nota o que acaba camuflando e dificultando ainda mais qualquer melhora na educação. Com isso em mente, recorremos a Schön (1995) que esclarece que o sistema educativo mesmo recebendo interferências de políticas públicas ainda muito precisa mudar para melhorar a qualidade do ensino principalmente aqui no ocidente. Ele ainda amplia que não é uma questão de ignorar toda uma precedência histórica, mas que se ficarmos no sistema e aceitarmos como ele é jamais conseguiríamos explorá-lo e melhorá-lo. Temos, sim, pois que desenvolver a compreensão que temos deste sistema para nos afastarmos dele que possivelmente não será o modelo do futuro.

Objetivos Ao recorrermos aos trabalhos de pesquisadores da área, como bem visto no item acima, percebemos como estes autores defendem que o conhecimento da prática deve e tem que ser levado em consideração para uma modificação na e sobre a docência. Mesmo ao longo de uma caminhada de modificações ora aproximando de perspectivas tradicionais sobre o que é reflexão ora afastando o que se interessa é todo um crescimento e desenvolvimento da área no que diz respeito ao profissional reflexivo permitindo, assim, uma atualização dos assuntos e estudos a ele relacionados. E, claro, permitindo um desenvolvimento profissional do docente voltado para uma melhor operação cotidiana da prática reflexiva em sala de aula que inclusive é o que se interessa neste artigo, afinal. Diante disso, no presente trabalho, tenho como finalidade mostrar aos professores e futuros professores a importância da reflexão sobre a prática docente e como esta reflexão não deve ocorrer no vazio do pensamento, mas a partir das experiências do professor fundamentada nas teorias que englobam esta conduta.

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Metodologia Apontando para o fato de que a reflexão que o professor faz sobre a sua prática docente é sob o seu próprio ponto de vista, partirei da análise das minhas reflexões em torno das aulas que dou para uma demonstração mais detalhada do importante papel da experiência que o professor tem e que vai sendo acumulado ao longo de sua carreira. Nesse sentido, no presente trabalho tomo como foco as reflexões feitas pelo professor atreladas ao seu conhecimento tanto teórico quanto prático. Portanto, para este fim, utilizo como corpus de análise um diário de bordo que fiz durante atuação como professora de Língua Inglesa no segundo semestre de 2014 em virtude da necessidade de se privilegiar a análise reflexiva do docente em exercício da profissão. Devido à capacidade de explicação e auxílio na interpretação/reflexão das ações dos professores em sala de aula, utilizarei como aparato teórico o conceito do termo reflexão de J. Dewey, as concepções e contribuições de Schön e ainda algumas críticas a eles relacionadas. O diário de bordo foi feito durante a minha atuação como professora nas aulas de Língua Inglesa no Celin (Curso de Extensão de Língua Inglesa) do Departamento de Letras e Artes (DLA) da Universidade Federal de Viçosa – MG. Como a reflexão foi um ato próprio do professor e, portanto, do ponto de vista do mesmo acredito que não há problema algum eu mesma analisar as minhas reflexões. Além disso, gostaria de esclarecer que estas reflexões foram feitas após cada aula de inglês dada. A professora (no caso eu) era aluna de pós-graduação categoria mestrado no curso de Letras na área de Linguística na linha de pesquisa Linguística Aplicada voltando sua pesquisa para o processo de ensino-aprendizagem em sala de aula, durante a confecção do diário de bordo. Diante disso, para uma forma clara e objetiva de compreender este estudo, o texto foi organizado da seguinte maneira: num primeiro momento, inicio uma breve retomada dos princípios teóricos, que melhor justificam meus argumentos para a análise das minhas reflexões obtidas através de um diário de bordo feito por mim mais especificamente durante as aulas que ministrei de Língua Inglesa. Depois, apresento a explicação/análise/reflexão dessas anotações sobre minhas aulas, com uma verificação das competências aí presentes em termos de potencialidades e limitações que as caracterizam. E, por fim, apresento as considerações finais com uma conclusão e discussão diante dos resultados encontrados. Além

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disso, levo em conta fatores de experiência de vida, de conhecimento do contexto de ordem sociocultural permeados pela semântica e pela pragmática já que muitas vezes a coerência de fatos se faz através destes fatores. Cabe ressaltar ainda que é muito difícil mencionar termos como ‘prática reflexiva’, ‘reflexão’, ‘pensamento’, ‘pensamento reflexivo’, etc sem remeter aos teóricos a que esses termos diretamente se relacionam. Por isso, quando eu estiver relacionando ao termo utilizado por um estudioso isso será devidamente informado. Mas, quando eu estiver apenas me referindo ao sentido mais geral da palavra vocês notarão que não especificarei já que a intenção será apenas o significado da palavra, a palavra como uma forma e expressão das ideias que aqui abordarei.

Revisão Bibliográfica

Racionalidade Técnica x Racionalidade Prática Gómez (1995) aborda o fato de que a atual sociedade – sobretudo a ocidental – está insatisfeita com os resultados da educação que se encontra em difícil situação. Apesar de avanços nas políticas públicas em favorecimento ao processo de escolarização, muitos integrantes do governo acabam colocando a total responsabilidade do ensino nas mãos dos professores e alunos que, na maioria das vezes, são as vítimas de todo um desenvolvimento histórico. Para o autor, além de considerar que os professores são desamparados pelo poder público em termos de infraestrutura e salários, configuração do currículo, organização social da escola, recai ainda sobre ele preocupações da sua formação – já que muitos professores possuem lacunas na formação docente. Conforme Gómez (1995) o entendimento da profissão de professor não deve propagar um pensamento de que ele é o detentor do conhecimento que deve ser transmitido ao aluno no processo de ensino-aprendizagem, pois o conhecimento não é um produto que auxiliará os aprendizes a solucionar problemas. Diante disso, essa área de estudo que foca na formação docente foi ficando cada vez mais notada por estudiosos e, a fim de melhor compreender, investigar e analisá-la o autor recorre a dois tipos de concepção: a racionalidade técnica e a racionalidade prática. Esse termo de racionalidade técnica foi proposto pelo estudioso Schön em 1983, conforme Gómez (1995)

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que mostrava que o profissional tinha uma atividade sempre mais voltada para o instrumental, ou seja, para a resolução de problemas o profissional precisava recorrer a teorias e técnicas científicas. Nas palavras do autor “Para serem eficazes, os profissionais da área das ciências sociais devem enfrentar os problemas concretos que encontram na prática, aplicando princípios gerais e conhecimentos científicos derivados da investigação” (Gómez, 1995, p. 96). Porém, o autor Gómez (1995) recorre a Habermas (1971, 1979) para mostrar o quanto ineficaz este modelo é ao se aplicar aos problemas humanos já que acaba deixando de lado um caráter moral e político que geralmente define uma ação profissional. Em se pensar nos problemas educativos percebemos ainda mais essa deficiência, pois a situação de ensino é variável e complexa sem contar que as pessoas mudam, os professores e a sociedade e com todos eles os problemas educacionais também, não podendo, assim, ter uma teoria única capaz de ser aplicável a todo o momento que se depara a um determinado conflito. Já o outro modelo de racionalidade prática aborda quase que o contrário considerando o professor como um profissional reflexivo em que é a partir da análise da sua prática o profissional precisa enfrentar problemas complexos que estão presentes no cotidiano escolar, para então compreender como é o uso dos saberes teóricos, como resolvem situações conflitantes e incertas, como reelaboram rotinas, como inventam hipóteses, etc. Assim, essa reflexão não é simplesmente um processo individual, fora de conteúdo e contexto.

Conhecimento-na-acção, Reflexão sobre a ação e sobre a reflexão-na-acção e Reflexão-naacção Para compreender ainda mais sobre esse componente da atividade do professor profissional prático Gómez (1995) distingue três conceitos: conhecimento-na-acção, reflexãona-acção e reflexão sobre a acção e sobre a reflexão-na-acção conforme as teorias de Schön. O primeiro deles, diz respeito ao conhecimento e capacidade que o indivíduo vai adquirindo durante a sua prática e que na sua ação, muitas vezes, se tornam esquemas automáticos e rotineiros. O segundo é quando o profissional pensa sobre o que faz e ao mesmo tempo atua, ou seja, há um processo dialógico com a provável situação conflitante com uma interação própria e particular que precisa de intervenção. E o último, é quando o professor faz uma análise à “posteriori”, ou melhor quando o professor se depara com uma situação conflitante, faz seu

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diagnóstico e elabora metas e hipóteses para enfrentá-la. Esses três conceitos fazem parte do pensamento prático profissional. Todos esses três processos não tem nenhum que é melhor ou pior que o outro, eles apenas se completam já que não são por si independentes. Tomado essas considerações sobre o pensamento prático do professor coube ao autor, então, discutir um modelo reflexivo artístico da formação do professor para justamente discutir sobre a formação profissional.

Em torno das ideias de John Dewey Algumas ideias de John Dewey podem ajudar professores – sobretudo de línguas – a se tornarem mais conscientes como mediadores no processo educacional. Suas teorias também levam a refletir sobre a forma como os professores enxergam os alunos, o que devem esperar deles, e como podem envolvê-los na própria aprendizagem de línguas. Para desenvolver esta discussão abordarei um pouco sobre os conceitos de Dewey de conhecimento, ação, teoria e prática. Segundo Biesta e Burbules (2003), Dewey acreditava que o conhecimento é um produto das operações existenciais e conceituais dos indivíduos. Em outras palavras, o organismo humano aprende quando interage com o ambiente no qual está inserido. De acordo com a sua filosofia, é agindo e refletindo sobre as conseqüências de nossas ações que adquirimos conhecimento. Considerando-se que a realidade social e cultural está sempre em movimento e em transformação, Dewey argumenta que o conhecimento não é uma entidade estável. O conhecimento "novo" influencia nossas ações futuras, que por sua vez provocam novas consequências. Ainda abordando a filosofia da ação de Dewey, os autores Biesta e Burbules (2003) também nos mostram as implicações para o desenvolvimento dos professores como educadores. Dewey sugere que o professor, ao refletir continuamente sobre sua prática, melhor compreende o processo de ensino-aprendizagem o que, consequentemente, melhora a qualidade na sua prática. Ao interpretar e dar sentido às ações do professor ele acaba criando suas próprias teorias de ensino-aprendizagem de línguas e esta suposição leva a outra questão discutida por Dewey: teoria e prática.

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Além disso, o estudioso Dewey defende que não há diferença epistemológica entre teoria e prática. Ele afirma que estes são diferentes práticas que envolvem conhecimento e ação. Nesse sentido, os dois iriam produzir objetos de conhecimento, que serviriam como instrumentos nas ações diárias da vida escolar do professor. Considerando-se que os futuros professores e os atuantes podem integrar esses diferentes objetos de conhecimento para resolver os problemas que se deparam na sala de aula. Dewey deixa claro, assim que não há nenhuma razão para priorizar a teoria em detrimento da prática ou vice-versa. Portanto, os professores não só poderiam informar sua prática com os conteúdos produzidos por pesquisas, mas também poderiam produzir conhecimento por eles mesmos, refletindo sobre sua prática. A idéia de Dewey de conhecimento e ação nos dá um papel importante e ativo na construção de nossa compreensão do meio ambiente de uma forma mais consciente. Ele também chama a atenção para as responsabilidades que as pessoas têm de relacionar uma com as outras. Os profissionais da educação devem estar preocupados com o tipo de interação que eles ajudam a criar no ambiente de aprendizagem e o quanto eles inspiram seus alunos a serem ativos nesse processo.

Resultados e Discussões Nessa seção escolhi 9 trechos de todo o texto existente no diário de bordo para serem analisados como subsídios práticos para o desenvolvimento desta análise. Assim, visando uma melhor compreensão dos dados, organizei uma análise que contempla simultaneamente uma breve contextualização do plano de aula, a reflexão ali envolvida e ainda aspectos teóricos e práticos da prática docente que envolveram a reflexão feita pela professora. Como bem dizem Biesta e Burbules (2003) motivados pelas teorias de J. Dewey, o ensino não é sobre o ensino de verdades universais e fatos. Trata-se de ajudar os alunos a construirem o seu próprio conhecimento sobre o assunto a ser estudado/aprendido. Assim, num primeiro exemplo de análise, percebemos como a professora se preocupa em construir o conhecimento e entendimento do conteúdo trabalhado com os alunos:

Trecho I

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Já na aula de hoje consegui fazer toda essa construção [do conhecimento] com meus alunos explorando todo o texto do exercício; consegui obter deles a resposta correta e o raciocínio e compreensão da ‘Grammar’! Nesta aula, a professora estava um pouco preocupada se os alunos conseguiriam compreender o uso de will + probably, definitely e might que envolvem aspectos gramaticais por meio da leitura de um texto, pois a professora acreditava que o ideal não era dar a resposta/regra gramatical aos alunos, mas sim construir isso com eles, fazê-los perceber por si só o sentido e uso. Portanto, com o objetivo de os alunos aprenderem a utilizar estas partes gramaticais compreendendo o sentido delas a professora dividiu um texto que continha will + probably, definitely e might em quatro partes e entregou cada parte para um grupo. Os alunos tinham que ler o trecho e compreender o sentido. Como uma maneira de conseguir retirar dos alunos o sentido central de cada parte do texto a professora pediu que eles explicassem do que se tratava e ainda fez as seguintes perguntas: What is the extract about? / O texto é sobre o que?; Which words in the text show us possibility or impossibility? / Quais palavras do texto nos mostra possibilidade ou impossibilidade?; Which word shows us that you are sure that something will or won’t really happen? / Qual palavra nos mostra que você tem certeza que algo irá ou não irá acontecer? Isso implica que os professores devem envolver os alunos em práticas nas quais eles têm papéis ativos. Na maioria das vezes, os docentes estão muito preocupados em "fazer" as coisas, a fim de ajudá-los a aprender enquanto o que realmente deve ser feito é deixá-los fazerem as coisas por si mesmos. O papel do professor seria oferecer-lhes oportunidades, e ajudá-los a interagir com o mundo ao seu redor e, para refletir sobre como eles afetam e são afetados por suas próprias ações. Conhecimento seria a consequência desse processo de aprendizagem e entender mais sobre seu ambiente cultural e social. Porém, percebemos que esse alcance positivo da professora para com seus alunos não foi uma mera coincidência já que a própria professora reconhece que parte desse sucesso foi a sua experiência e reflexão sobre duas aulas de turmas anteriores que havia dado exatamente a mesma matéria:

Trecho II

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A primeira turma que trabalhei esta aula (final de 2013) não foi legal, pois apesar de eu ter tido um bom plano de aula eu me apavorei e não consegui que meus alunos entendessem esse uso do ‘will’. E o mais interessante (...) no final quando eu devia ‘tirar’ dos alunos o sentido do uso de ‘will’ com ‘probably’ e ‘definitely’ eu acabei falando tudo, a regra e o significado. (...) Acredito que mesmo tendo feito todo um trabalho anterior e bem planejado de Lesson Plan me faltou aquela real vivência da sala de aula (...). Percebo hoje o quanto mudei como professora e finalmente consegui um bom resultado com os alunos em ensino de gramática. Segundo Gómez (1995), a formação de professores deve considerar que “as orientações adotadas ao longo da sua história encontram-se profundamente determinadas pelos conceitos de escola, ensino e currículo prevalecentes em cada época” o que ter atualmente o professor como o detentor do conhecimento e do saber já está muito ultrapassado, principalmente com a chegada das tecnologias. Hoje um aluno pode muito bem verificar a tradução de uma palavra na internet através do celular que ele carrega em seu bolso. Cabe, então, um outro papel do professor que não o de simplesmente aquele que passa o conteúdo aos alunos. Nesse sentido, a racionalidade técnica acaba sendo deixada de lado pela professora que notadamente se preocupa com a forma com que os alunos irão compreender o sentido e uso de ‘will’ já que na racionalidade prática o professor é visto como aquele que reflete sobre sua profissão para perceber a melhor maneira de solucionar problemas de ensino-aprendizagem que venham a ocorrer durante suas aulas e o que não é o ideal. Neste caso, percebemos que o problema não vinha exatamente de dúvidas dos alunos, mas na própria atuação do professor que nas duas turmas anteriores não havia conseguido ter um bom desempenho em sua aula, pois se apressou dando as respostas e regras gramaticais aos alunos. Porém, como muito bem defendido por Schön (1995) deve-se existir um “mundo virtual” onde o professor em processo de formação pode exercer sua prática sem grandes culpas, ou melhor, um cenário que o professor vai elaborando e reelaborando todo um repertório da sua prática de maneira a sempre avaliar e modificar sua maneira de operar em sala de aula. Neste sentido, o Celin encontra-se como o local ‘virtual’ onde os alunos de Letras podem melhor se formar como professores sendo o practium reflexivo que é o lugar onde eles podem refletir, recapitular, errar sem qualquer danos maiores ou responsabilização sobre os feitos já que é o tempo todo supervisionado e orientado pelo profissional formador. E, isso, é o que inclusive

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percebemos com o próximo trecho quando a professora estava trabalhando uma atividade de Reading que tinha uma compreensão do texto:

Trecho III Os alunos tiveram muitas questões [no sentido de dúvidas] relativas a vocabulário e isso apesar de já esperado por mim foi ruim, pois toda hora eu parava a aula. Se eu for dar uma aula com tantas palavras desconhecidas por eles eu vou tentar trabalhar o vocabulário antes de cada atividade. Acredito que isso não foi esperado por mim porque com os alunos anteriores não havia acontecido. Com as duas últimas frases da professora neste trecho percebemos que naquela a professora reflete sobre como daria outra atividade que os alunos não conhecem bem o vocabulário já na última percebemos que a professora compara uma turma com a outra que é de mesmo nível tentando entender porque ela não pensou em trabalhar o léxico que era desconhecido pela turma. Esta alteração entre uma turma e outra é muito recorrente já que os alunos são mesmo diferentes, como bem podemos notar nos trechos abaixo:

Trecho IV até VI Percebi que os alunos são mais quietos (se comparar com os alunos da turma 1) Percebi que gastamos cerca de 20 minutos a mais nesta atividade em relação à turma 1. Para mim, isso ocorreu pois os alunos tiveram mais dificuldades de falarem em inglês... Porém, como os alunos são mais lentos em tudo tive que passar três vezes a mais a música do que a outra turma. Além disso, percebi que tinham o dobro de dúvidas de vocabulário. Nos três trechos acima (trechos de IV até VI) a professora escreveu em seu diário de bordo uma atividade que foi feita nas duas salas, mas que de acordo com os alunos tomou um ritmo diferente ora positivamente ora negativamente. Tal fato realmente ocorre, pois temos alunos diferentes e se dentro de uma mesma turma há esta variação imagina então em turmas diferentes e com dias diferentes? Parece ter mais discrepância. Em um determinado momento a professora chega até a formular uma hipótese de que os alunos que possuem aulas quartas e sextas-feiras já estão mais cansados pelo fato de a aula abarcar o meio e o final da semana que

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eles acabam aprendendo menos do que deveriam sendo alunos um pouco mais fracos. Porém, cabe ressaltar que a professora, com base em sua experiência em sala de aula, comparando uma turma com a outra e ainda modificando sua prática a fim de ter um melhor desempenho em suas aulas ela descobre que quando mistura várias atividades que são bem diferentes uma das outras e que exigem diferentes habilidades no inglês (reading, speaking, listening, writing) os alunos acabam indo melhor. Como por exemplo, no trecho abaixo:

Trecho VII Felizmente, ao prosseguirmos com as outras atividades que eu tinha planejado tudo correu bem. Acredito que foi por causa da diversidade de recursos utilizados, pois saímos do papel que foi atividade em grupo e fomos para slides que foram atividades com imagens que integravam todos e também perguntas que eu selecionava o aluno que iria responder. Isso se dá, talvez, pelo fato de uma aula muito ‘maçante’, no sentido de estar fazendo a mesma atividade, seja bem mais cansativa e os alunos acabam perdendo a atenção depois de um certo tempo na mesma atividade de listening, por exemplo. Um outro aspecto importante que podemos pontuar com a análise das aulas é a questão do professor reflexivo que consegue atuar de maneira efetiva e singular adaptando sua aula à realidade dos alunos quando ela mesma altera uma atividade no momento em que esta dando aula ou muda o seu próprio plano de aula de modo a melhor adequá-lo aos alunos dali. É segundo o pensar de Schön (1995), que o professor deve ser aquele que tem a sensibilidade de lidar com situações específicas da melhor maneira possível. É nesse sentido que Schön (1995) defende o aprendizado do talento artístico da prática profissional do professor sendo crucial na competência profissional dele. Este autor esclarece, ainda, que o profissional artístico seria aquele capacitado para operar com situações de dúvidas, peculiaridade e desacordo. Este aspecto é o abordado no conceito de reflexão-na-acção, segundo a sua teoria, na qual mostra a importância de o professor perceber as necessidades que seus alunos têm no momento da prática e da capacidade que este tem de modificar uma ou outra atividade de maneira melhor atender ao seu aluno. Isso foi inclusive observado pelo seguinte texto da professora:

Trecho VIII

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Depois de fazer a correção dos exercícios que estavam na folha resolvi alterar o ‘step 6’ da aula deixando o ‘writing skil’ para casa, pois pude observar que os alunos estavam mais cansados. Foi aí que tive a ideia de pedir os alunos em pares ler em voz alta o diálogo e que grifassem todas as palavras que hesitavam pronunciar. Foi uma ótima atividade e antes mesmo de fazê-la perguntei qual das duas atividades eles gostariam de fazer. Além disso, pedi para que em casa eles escutassem o diálogo várias vezes focando nas palavras que grifaram procurando pronunciá-las corretamente. Neste trecho acima, percebemos ainda como a professora esta agindo e refletindo sobre as conseqüências das ações ali feitas e adquiridas do conhecimento. Como bem vimos em Dewey, o conhecimento é uma atividde efêmera e que se modificam ao longo do tempo. O conhecimento que o professor adiquiriu nas aulas anteriores o qual ele atuava como ‘artístico’ já que desenvolveu uam sensibilidade para com a aula e com os alunos de maneira a perceber as reais necessidades alí reivindicadas/necessitadas pelos alunos e alterar seu plano de aula de forma a melhor atendê-los. Antes desse conhecimento/domínio artistico o professor ainda se encontrava mais engessado em seu plano de aula e com menos possibilidade de mudança, transformação:

Trecho IX (...) acho que eu deveria ter percebido que os alunos eram mais lentos e ao invés de ter feito a atividade dos ‘friends’ eu deveria ter feito as ‘cards’, pois eles iriam falar mais já que percebo que grande parte deles tem muita dificuldade e, então, só na aula seguinte a atividade dos ‘friends’. Assim, percebemos que este domínio artistico que foi adquirido pelo professor acabou influenciando sua dinâmica em sala de aula de modo que a alterar suas aulas. À medida que o professor, no nosso caso, tem um pensamento individual sobre suas ações ele analisa sua compreensão anterior do objeto e/ou ação vindo com uma perspectiva mais ampla sobre o mesmo. Esta ligação permanente entre ação, conseqüência e conhecimento fornece ao indivíduo muitas possibilidades de atuação o que lhe dá a oportunidade de agir de forma mais inteligente/consciente. Percebe-se que nem sempre a professora consegue atuar de forma “artística” com os alunos já que neste último trecho e momento analisado ela escreve em sua reflexão que já que

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tinha percebido que os alunos eram mais lentos e gastariam mais tempo em uma determinada atividade, ela então deveria ter feito uma outra que desse conta de terminar naquela aula o que nos mostra mais uma vez como a prática em sala de aula possui crucial importância para a formação do bom professor.

Considerações Finais O diário de bordo da professora de inglês foi descrito e analisado por meio da interpretação das reflexões e ações da professora em sala de aula tendo em mente o conceito de reflexão do estudioso J. Dewey, as concepções e aparato teórico de Schön e ainda algumas críticas a ele relacionadas. Após a retomada das teorias e críticas recorrentes, parti para uma breve descrição do contexto

que se encontrava o professor

e em

seguida para

a análise dos

enunciados/pensamentos/reflexões que a professora fez em seu diário. Verifiquei, ainda, como é importante a reflexão das ações dos professores e futuros professores sobre a sua prática e como estas reflexões não são feitas em um vazio de pensamento/conhecimento, mas sim por meio das experiências que o professor possui e que são embasadas tanto pela teoria quanto pela prática em sala. Além disso, percebemos que a coerência de alguns trechos se fez por meio de fatores extralinguísticos e com a pontuação do contexto ao qual determinado excerto se encontrava já que foram retirados de diferentes aulas. Por meio do pensamento reflexivo o docente possui várias possibilidades de melhor atender seus objetivos e, consequentemente, refletindo em uma boa educação/ensino para seus alunos. Porém, neste caso percebemos que como bem disse Lalanda e Abrantes (2005) a reflexão é indispensável ao docente, mas ele deve sim ampliar a sua capacidade de atuação extrapolando os limites de sala de aula chagando assim às questões e necessidades da sociedade ao redor. Concluindo, então, como bem Zeichner (2008, p. 548) orientou, a formação docente só será válida se contribuir para um desenvolvimento educacional justo e humano, acadêmico, político e pessoal de modo que reflita diretamente nas lutas sociais: “O propósito de se trabalhar para a justiça social é uma parte fundamental do ofício dos formadores de educadores em sociedades democráticas e não deveríamos aceitar outra coisa, a não ser algo que nos ajude a progredir em direção a essa realização”.

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Ainda há, com certeza, há muito que se pesquisar sobre a concepção de reflexão e a importância para a formação de professor já que envolvem aspectos muito mais amplos que não apenas uma sala de aula, pois envolvem aspectos políticos, sociais, culturais e econômicos.

Referências Bibliográficas

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O ITEM DE AVALIAÇÃO FECHADO: ENTRE O GÊNERO DE ESPECIALIDADE, A CONSTELAÇÃO E A COLÔNIA DE GÊNEROS Bruno de Assis Freire de Lima Professor no Instituto Federal Minas Gerais. Doutorando em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais, brunoaflima@gmail.com

Resumo: O estudo das linguagens especializadas ganha especial destaque a partir da década de 1980, com as obras de Lothar Hoffmann (FINATTO e ZÍLIO, 2015) e sua preocupação com as linguagens técnico-científicas, seus textos, seus modos de dizer, seus vocabulários e suas terminologias. Hoffmann desenvolve diversas reflexões sobre essas linguagens, trazendo à baila importantes conceitos para esse campo de investigação, como os textos e os gêneros de especialidade. É no contexto das linguagens especializadas que se situa o gênero “item avaliativo” (LIMA, 2016), pertencente às práticas discursivas da avaliação da aprendizagem escolar. Em sua estrutura composicional, o item fechado (questão de múltipla escolha) é formado por outros gêneros (MATTOS, LIMA et al, 2010), situando o item como “gênero colônia” (HOEY, 2001) e na “constelação de gêneros” (MARCUSHI, 2000; BHATIA, 2004; SWALES, 2004). Nesse sentido, este artigo discute os gêneros que compõem as práticas discursivas do Programa de Avaliação da Aprendizagem Escolar (PAAE-MG), como também os gêneros que compõem o gênero item, a saber: habilidade, texto de suporte, comando, alternativas de resposta e resolução justificada. Há, portanto, três perspectivas de análise para o item: como gênero de especialidade, como gênero colônia e como constelação de gêneros. Por meio do estudo descritivo de itens avaliativos do PAAE-MG, mostro que o item se situa exatamente no espaço “especialidade-colônia-constelação” e que, para produzir avaliações consistentes é necessário conhecer os gêneros de especialidade que circulam nos programas avaliativos, bem como dominar os aspectos estruturais e funcionais que sustentam os gêneros que compõem as práticas avaliativas a partir do gênero item. Palavras-chave: Item avaliativo. Gênero de especialidade. Gênero colônia.


Introdução As práticas avaliativas escolares decorrem da utilização de variados gêneros textuais, independentemente das disciplinas ou componentes curriculares. Na escola, alguns gêneros são mais recorrentes nas avaliações de algumas disciplinas, como os “problemas”, tipicamente encontrados em física e matemática; “mapas”, comuns em geografia e história. Há ainda gêneros que são comuns na avaliação de diferentes áreas, como “resumo” e “seminário”. Finalmente, a avaliação escolar também faz uso do gênero item (questão), que é comum nas práticas avaliativas de qualquer disciplina. Trato dessa relação entre avaliação e/em gêneros com mais detalhes em trabalho anterior (LIMA, 2016). Em se tratando das avaliações internas, promovidas pelos próprios professores, os gêneros circulam livremente. As aulas e práticas avaliativas de língua portuguesa certamente são as maiores difusoras de gêneros. É comum a utilização de tiras, artigos de opinião, charges, contos, propagandas, poemas, campanhas publicitárias, anedotas, requerimentos, dentre vários gêneros. Talvez não haja limite para utilização de gêneros em aulas e práticas avaliativas dessa disciplina. Apesar dessa flexibilização na utilização dos gêneros em contexto avaliativo, as avaliações oficiais ou avaliações externas, promovidas no âmbito das políticas públicas, tradicionalmente são compostas por itens avaliativos, sejam eles fechados (múltipla escolha), sejam eles abertos (discursivos). Logo, muitos gêneros cumprem o propósito avaliativo (carta, resumo, resenha, seminário etc.), muitos gêneros participam do processo avaliativo, gerando a produção de outros gêneros que serão instrumentos de avaliação (como um longa-metragem que gera debates; charges que geram redações escolares; gêneros da esfera jornalística que geram semináriosetc), mas somente o item tem apenas uma função: avaliar. Trata-se de gênero exclusivo da avaliação da aprendizagem, o que chamo de “gênero prototípico da avaliação” (LIMA, 2016). A utilização dos itens em avaliações internas tornou-se uma constante, principalmente após o advento de avaliações oficiais, como PISA, ENEM, Prova Brasil, dentre outras. É constante a crença do “treino”, a partir da máxima de que quanto mais contato os estudantes tiverem com os itens fechados, mais eles estarão preparados para avaliações externas. Independentemente de qual seja o fator que motiva a busca pelo item fechado nas avaliações

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internas, uma pergunta é certa: Os professores e demais membros do corpo pedagógico escolar conhecem o gênero item a ponto de produzirem avaliações consistentes no que diz respeito à estrutura e funcionamento desse gênero? A resposta dessa pergunta talvez esteja longe de ser alcançada, mas minha função como pesquisador e estudioso desse gênero é oferecer meios para sua compreensão e produção. Pensando nesse propósito, neste trabalho abordo o item fechado por três perspectivas, a saber: a) o item como gênero de especialidade (FINATTO e ZÍLIO, 2015); b) o item como constelação de gêneros (MARCUSHI, 2000; BHATIA, 2004; SWALES, 2004; BIASIRODRIGUES, 2012) e c) o item como gênero colônia (HOEY, 2001). Meu objetivo é oferecer ao leitor discussões sobre linguagem de especialidade, sobre constelação de gêneros e sobre gênero colônia aplicadas ao item. Para isso, utilizo como exemplo questões extraídas de um programa de avaliação promovido pelo governo de Minas Gerais, como será discutido na seção 1.

Para organizar as discussões, dividi o texto em 3 seções, assim especificadas:

1. Estrutura formal do gênero item: Nessa seção, apresento os aspectos estruturais do gênero, com base nos trabalhos de Lima e Mattos (2010) e Brasil (2009); 2. O item como gênero de especialidade: A partir do trabalho de Hoffmann citado em Finatto e Zílio (2015), nesta seção situo o gênero item no contexto especializado da avaliação da aprendizagem escolar, discutindo o conceito de gênero de especialidade e suas implicações para as práticas avaliativas; 3. O item como constelação de gêneros e como gênero colônia: Nessa seção, discuto o item como constelação de gêneros e como colônia, conforme propõe Hoey (2001) e outros autores. Mostro a importância de cada gênero que compõe a constelação e o próprio item, ressaltando as implicações no processo de elaboração/resolução da questão.

Dando

sequência

ao

trabalho,

termino

tecendo

considerações

finais,

nas

quaisrecomendo aos cursos de formação de professores a inserção do gênero item como objeto de ensino-aprendizagem, tanto por meio das discussões sobre avaliação e políticas públicas, quanto por meio do estudo de sua estrutura e função.

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Estrutura formal do gênero item O item é um gênero definido como unidade básica de um instrumento de coleta de dados, que pode ser uma prova, um questionário etc. Nos testes educacionais, item pode ser considerado sinônimo de questão, termo mais popular e utilizado com frequência nas escolas. (Brasil. Inep, 2010:07).

Assim, as questões que compõem as avaliações são itens, que podem ser objetivos, criados a partir de respostas orientadas; ou discursivos, nos quais o avaliando é quem constrói a base de resposta. Nos termos a que interessa este trabalho, estou considerando o item objetivo (questão de múltipla escolha), cuja elaboração pressupõe respostas criadas por especialistas, e que passarão pelo julgamento do avaliando. É ele quem deve optar por aquela resposta que seja mais condizente com a situação-problema proposta no gênero. Para elaborar o item, o especialista precisa estar atento a dois ingredientes básicos: por que e como avaliar. De acordo com Mattos, Lima et al (2010), nas práticas escolares, a avaliação existe em função da aprendizagem. Para os autores, é necessário dar visibilidade a comportamentos que expressem conhecimentos e habilidades. Esse é o papel dos instrumentos de avaliação, como as provas e os testes escolares. Sua função é provocar respostas que sejam a expressão das aprendizagens e manifestação dos conhecimentos e habilidades que as constituem. É por isso que se avalia: verificar se há relação entre conhecimentos e habilidades com níveis e etapas de ensino. Quanto ao “como” se avalia, Mattos, Lima et al (2010) defendem que conhecer a estrutura formal do gênero item é fator preponderante em avaliação escolar. Segundo os autores, princípios didáticos e orientações teóricas são importantes no processo de elaboração de itens, uma vez que devem ser redigidos de forma clara e precisa. Uma questão deve informar ao avaliando o que se exige dele e como o mesmo deve proceder. Erros de comunicação, decorrentes da má qualidade da questão, geram resultados pouco fidedignos. Por outro lado, criatividade é fundamental para atrair a atenção e envolver o aluno. (p. 4)

Conhecer a estrutura formal do item caracteriza a necessidade de conhecimento técnico especializado. Isso situa a avaliação da aprendizagem escolar no contexto das linguagens especializadas. Para chegar ao item, o elaborador precisa conhecer outros textos/gêneros que

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normatizam e teorizam sobre o item. Trata-se da matriz curricular1, que apresenta o conjunto de habilidades que devem ser avaliadas, e do guia de elaboração de item, documento que parametriza tecnicamente o gênero item. Assim, os itens e demais gêneros que promovem as avaliações externas estão situados no que se denomina “gêneros de especialidade”2 (FINATTO e ZILIO, 2015). Os itens que servem de exemplo neste trabalho foram retirados do banco de itens do Programa de Avaliação da Aprendizagem Escolar de Minas Gerais (PAAE-MG). Este é um programa de avaliação “misto”, cujos resultados operam nos níveis das avaliações internas e externas3. O objetivo do PAAE é a realização de diagnósticos da aprendizagem escolar e a geração de informações para a auto avaliação do professor e da escola, tendo por finalidade a coleta dos dados necessários para subsidiar intervenções que promovam a melhoria da aprendizagem, a prática docente e o ensino. Com base nos dados fornecidos pelo PAAE, as equipes escolares devem planejar e desenvolver aulas, respeitando o estágio de aprendizagem dos alunos, adequar as atividades didáticas, buscando sempre a promoção do sucesso escolar de todos os alunos e o aprimoramento da competência docente (site do PAAE). Mattos, Lima et al (2010) apontam 10 tipos de itens fechados, subcategorizados em função de algum aspecto de sua estrutura, como lacunas a serem preenchidas; interrogativas diretas ou afirmativa incompleta, por exemplo4. A imagem 1 corresponde a um item de biologia do ensino médio. Trata-se de um item do tipo “afirmação incompleta”, pois a situação-problema posta será coerentemente interpretada se considerada como contínuo de uma das alternativas de resposta. A alternativa, nesse tipo de item, completa a afirmação iniciada na situação-problema. As informações grafadas em vermelho são termos que identificam as partes do item e foram acrescentadas à imagem original da questão.

1

Denominada Currículo Básico Comum (CBC) nos domínios do PAAE. O conceito de gênero de especialidade será discutido na seção 2. 3 Não é objetivo discutir a natureza do PAAE, mas os itens que constituem suas avaliações. 4 Para conhecer mais sobre os tipos de itens fechados, consulte o Guia de Elaboração e Revisão de Itens do PAAE, disponível em: https://goo.gl/pLJMQJ 2

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(Imagem 1: Item de Biologia. Fonte: Banco do PAAE. Adaptado.)

O ponto de partida para a elaboração do item é a habilidade do CBC. No exemplo, o elaborador precisou criar uma questão que verificasse a capacidade do avaliando de “elaborar explicações sobre a evolução dos seres vivos...”. Para cumprir sua atividade, o elaborador buscou por um texto de suporte, o qual contém informações relacionadas com a habilidade em questão. Trata-se de um instrumento de contextualização da habilidade. De posse do texto de suporte, o elaborador cria a situação-problema, parte do item destinada a orientar o avaliando sobre como proceder diante da questão. A redação dessa parte precisa ser clara o bastante, a ponto de garantir a compreensão sobre o que se deseja como resposta para o item. Por fim, as alternativas de resposta, que devem ser redigidas a partir de uma série de critérios técnicos, como paralelismo, ordenação lógica e plausibilidade (MATTOS, LIMA et al, 2010).A tabela 1 sintetiza a correspondência entre partes do item e suas funções na constituição do gênero. Parte do item Habilidade

Função na constituição do gênero Indicar a capacidade cognitiva que será avaliada no item.

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Texto de suporte

Contextualizar o assunto/tema/conteúdo relacionado à habilidade.

Situação-problema

Orientar sobre procedimentos cognitivos para resolução do item.

Alternativas de resposta

Fornecer respostas plausíveis para a resolução da situação-problema. (Tabela 1: Funções das partes do item. Arquivo pessoal.)

A habilidade é uma informação que circula na comunicação técnica, entre especialistas. O item, quando aplicado ao avaliando, não apresenta o registro de qual habilidade está sendo avaliada. Já o texto de suporte é bastante variável: em princípio, qualquer gênero textual pode cumprir sua função5. Esses textos também podem ser criados pelos elaboradores, recolhidos de outros autores e até mesmo adaptados de fontes diversas. Pode haver ainda itens sem texto de suporte, mas são mais raros e incorrem na cobrança de conhecimentos decorados, o que é contraproducente nas teorias de aprendizagem vigentes (LUCKESI, 2011). Quanto à situaçãoproblema, precisa conter uma indagação, uma hipótese, algo que precise de uma solução. No exemplo da imagem 1, questiona-se sobre as conclusões derivadas da comparação dos desenhos do texto de suporte. Finalmente, as alternativas de resposta, que devem ser embasadas nas informações do texto de suporte. Na seção seguinte, trato do item como gênero de especialidade. Antes, porém, retomo o conceito de gênero, justificando por que o item se enquadra nessas categorias. O item como gênero de especialidade Ao definir gêneros textuais, Marcuschi (2008) diz que Gênero textual refere os textos materializados em situações comunicativas recorrentes. Os gêneros textuais são os textos que encontramos em nossa vida diária e que apresentam padrões sociocomunicativos característicos definidos por composições funcionais, objetivos enunciativos e estilos concretamente realizados na integração de forças históricas, sociais, institucionais e técnicas.” (p.155)

5

Na prática, alguns gêneros não configuram nos itens, como a propaganda e algumas notícias. O argumento, porém, é político e não pedagógico. Propagandas nos itens podem denotar o uso de um banco de questões mantido pelo estado como promotor de determinadas marcas ou serviços. Quanto às notícias, muitas delas são perecíveis, ou seja, sua interpretação depende de conhecimentos contextuais muito precisos, fortemente apegados a datas. Isso reduz o tempo de “vida útil” do item, que precisaria ser constantemente monitorado e substituído no banco de itens.

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Considerando que as avaliações promovidas pelo PAAE são “situações comunicativas recorrentes”, e que os textos que circulam na situação de avaliação apresentam “padrões sóciocomunicativos [...] realizados na integração de forças [...] institucionais e técnicas”, o item, por ser realizado nessas condições, é um gênero textual. Ele é encontrado no cotidiano daqueles que trabalham com avaliação e daqueles que são avaliados. Sua circulação está restrita a um contexto específico de uso, um contexto técnico especializado. Mas essa propriedade especializada não é específica dos itens e nem de um grupo específico de gêneros: variam de acordo com as especialidades. Krieger (2004) aponta que as áreas de conhecimento científico, técnico ou profissional são marcadas por um uso específico do léxico, que se reflete na terminologia. As características da comunicação especializada também são marcadas por um uso específico da gramática (ZÍLIO, 2015). Assim, nos textos que compõem o PAAE, haverá termos (por exemplo: habilidade; questão; resposta; múltipla escolha; assinale etc.), como também recorrência de padrões gramaticais em detrimento de outros (predomínio de períodos simples e curtos; presença de construções injuntivas, etc), além, é claro, de gêneros típicos dessa esfera de comunicação especializada. Com o avanço dos estudos das linguagens especializadas, principalmente a partir da década de 1980 (FINATTO e ZÍLIO, 2015), as áreas de especialidade passam a contar com outras frentes de estudo e análise além do léxico (terminologia)6. Nesse momento, o termo deixa de ser o elemento central dos estudos de linguagem especializada, e passam a ser considerados textos,

gêneros

e

gramática

de

especialidade7.

São

sistematizados

textos

e

gênerosespecializados, criados em situações de comunicação específica, com circulação entre especialistas.Sager (1980), citado por Ciapuscio (2004), desenvolve a noção de textos de especialidade, caracterizados como ...sistemas semióticos complexos, semiautônomos baseados na e derivados da língua geral; seu emprego pressupõe educação especial e está restrito a

6

A Terminologia convive harmonicamente com as demais abordagens sobre linguagens especializadas. Terminologias, gêneros e gramáticas de especialidade se complementam na constituição das linguagens especializadas. 7 Para maiores informações sobre gramática de especialidade, consulte FINATTO e ZÍLIO (2015).

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comunicação entre especialistas do mesmo campo ou em um relacionamento estreito”. (posição 294:2706.8)

Essa consideração enquadra o item da imagem 1 como texto de especialidade. Nele, encontramos elementos da língua comum: “asa”, “braços”, “ilustração”, frases declarativas, período composto etc. Também há elementos da linguagem “do especialista”, marcada na biologia: “nicho ecológico”, “nadadeira”, “braço humano” etc, e na avaliação: alternativas de resposta, situação-problema, habilidade, etc. Além de ser exemplo de texto de especialidade, o item se constitui como gênero de especialidade, conforme as ideias desenvolvidas por Hoffmann (apud Finatto e Zílio, 2015). Para o autor, paralelamente ao léxico especializado, a comunicação especializada também desenvolveu seus próprios gêneros textuais. A maioria destes já havia sido produzida até a metade do século XX. Exemplos são a monografia científica, o artigo científico, a resenha científica, o livro didático para ensino superior, a dissertação de mestrado, a tese de doutorado, a entrada de dicionário e de enciclopédia, as normas, o registro de patentes, a lei, o contrato, o ensaio especializado, a homenagem, o anúncio de livro, o registro, o resumo (de artigos), a sinopse, as instruções de uso, a aula expositiva e a palestra (p.28).

Nas práticas comunicativas de uma comunidade especializada circulam então textos, gêneros, léxico e gramática específicos, como na avaliação. A imagem 2 apresenta a organização da linguagem especializada da avaliação no âmbito do PAAE. Embora sejam citados os mecanismos linguísticos que compõem as linguagens especializadas, o objetivo é situar o item como gênero de especialidade, motivo pelo qual foi descrita a extremidade esquerda da imagem.

8

A obra de Ciapuscio está disponível em formato digital (Kindle Book). Não há a numeração de páginas, como nos livros tradicionais. A ABNT ainda não regulamentou a referência bibliográfica para esse tipo de publicação, motivo pelo qual adotei a indicação da “posição da informação”, conforme indicado no leitor digital Kindle.

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(Imagem 2: Linguagem especializada da avaliação. Fonte: Arquivo pessoal.)

As informações da imagem 2 contribuem para caracterizar o item como gênero de especialidade. Esse gênero só ocorre na esfera das práticas avaliativas, e sua elaboração está condicionada às orientações técnicas, normativas, políticas e pedagógicas de outros textos e gêneros. Sua composição é mediada pelos interesses técnicos, normativos, políticos e pedagógicos do PAAE. A linguagem empregada nos itens reflete as características composicionais da comunicação especializada. Na seção seguinte, o item é abordado pelo viés da constelação e colônia de gêneros, considerando diversos autores, mas principalmente Hoey (2001), cuja metáfora de gênero como colmeia servirá de ponto de partida para as discussões pretendidas.

O item como constelação e colônia de gêneros Diversos autores, como Marcushi (2000), Hoey (2001), Bhatia (2004) e Swales (2004), tratam de “agrupamentos de gêneros”. Esses agrupamentos são designados como constelação de gêneros e como colônia de gêneros. Gêneros com essa propriedade são metaforizados por Hoey (2001), como uma colmeia9. Para o autor, “Nas colmeias e nos formigueiros, todas as criaturas individuais servem a um fim superior, não é a sobrevivência individual que importa, é a sobrevivência da colônia” (p. 74).

9

O autor denominaa constelação de gêneros também como “gênero colmeia”.

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Em linhas gerais, esses autores mostram que: a) a constelação de gêneros está em uma comunidade discursiva estruturada, na qual há gêneros que convivem harmonicamente, de maneira a garantir a comunicação dessa comunidade. O importante não é o “gênero-em-si”, mas o resultado desse agrupamento, e b) a colônia de gêneros é formada por outros gêneros, subgêneros ou partes discretas, onde também o que importa não são as partes isoladas, mas o resultado que elas produzem. O gênero item pode ser facilmente alocado nessas duas classes propostas. Ele convive com os gêneros Guia de Elaboração de Itens e Currículo (CBC)10, de forma a garantir a constelação de gêneros que garante a realização do PAAE:

(Imagem 3: Constelação no PAAE. Fonte: Arquivo pessoal.)

Quanto à colônia de gêneros, Hoey (2001) aponta 9 propriedades que a caracterizariam11: 1) O significado independe da sequência; 2) As unidades adjacentes não formam prosa contínua; 3) O contexto é estruturado; 4) A autoria é coletiva; 5) Um componente pode ser usado sem fazer referência a outro; 6) Os componentes podem ser usados novamente, em outros textos e contextos; 7) Os componentes podem ser alterados, removidos, acrescentados; 8) Há componentes que têm a mesma função; e 9) Os componentes apresentam algum tipo de sequência. Para analisar o item à luz das propriedades propostas pelo autor para o reconhecimento do gênero colônia, vou considerar o exemplo da imagem 4. Antes, porém, é necessário

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Certamente há outros gêneros nessa constelação, como avisos, e-mails, memorandos, gabaritos, etc. Estou citando apenas os três gêneros que, além de pertencerem à constelação, também são gêneros de especialidade. 11 O autor pondera que nem todas as propriedades se manifestam da mesma maneira em todos os textos.

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questionar se as partes que compõem o item são, de fato, outros gêneros. Talvez não sejam, mas mais importante que classificar essas partes, é compreender seu funcionamento na estruturação do item. Em princípio, assumo que essas partes são, sim, gêneros. Para justificar essa posição, argumento que cada uma dessas partes possui outras funções comunicativas fora do item, como mostrarei na sequência.

(Imagem 4: Item de Língua Portuguesa. Fonte: Banco do PAAE. Adaptado.)

Propriedade 1: O significado independe da sequência Para esta propriedade, o que importa são os recursos utilizados que devem servir como pistas para a construção de sentido durante a leitura. Em outras palavras, não há necessidade de se conhecer o conteúdo informativo das partes do item, mas saber, previamente, quais são as suas funções. Assim, é importante saber que o “Texto de suporte” apresenta a base de onde surgirá uma “situação-problema”. Essa, por sua vez, apresentará como proceder diante da questão, e assim por diante. Propriedade 2: As unidades adjacentes não formam prosa contínua Cada uma das partes que compõem o item cumpre uma função comunicativa específica, conforme explicitado na Tabela 1. Diferentemente da propriedade 1, aqui há o interesse no conteúdo veiculado em cada unidade adjacente. Essas unidades não formam prosa contínua,

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mas o conteúdo de cada uma dessas partes parametriza a compreensão geral do gênero. Em outras palavras, unidades adjacentes são dissociadas em unidades discretas. Propriedade 3: O contexto é estruturado De acordo com Hoey (2001), a colmeia é tão importante para a abelha quanto o contexto é para a colônia de gêneros. Sem o contexto, não haveria como caracterizar a colônia. Na prova (onde os itens são aplicados), há uma série de outros gêneros introdutórios, como cabeçalho e instruções, importantes para que se compreendam os itens. Nos próprios itens, há partes mais introdutórias que – ainda que não sejam obrigatórias – cumprem essa função. É o caso, por exemplo, de frases de apresentação do texto de suporte, capazes de contextualizar de onde vem a informação que servirá de base à questão.

(Imagem 5: Item de Língua Portuguesa. Fonte: Banco do PAAE. Adaptado.)

Propriedade 4: A autoria é coletiva

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O item é produzido por um especialista, mas não podemos afirmar que ele detém exclusivamente a sua autoria. A habilidade do CBC, por exemplo, não foi produzida pelo autor do item. O mesmo vale para o texto de suporte, cuja autoria é de outra fonte. Vale ressaltar, ainda, que o item passar por revisões pedagógicas e de linguagem, ou seja: outros profissionais contribuem para a autoria da questão. Propriedade 5: Um componente pode ser usado sem fazer referência a outro As unidades que compõem a colônia são independentes umas das outras. A situaçãoproblema, habilidade do CBC e até mesmo as alternativas de resposta de um item podem se repetir ipis litteris em outro item. Da mesma forma, o texto de suporte pode ser usado várias vezes em outros itens que contenham outras habilidades, situações-problema e alternativas de resposta. A dependência entre os componentes se dá dentro do mesmo texto. Propriedade 6: Os componentes podem ser usados novamente, em outros textos e contextos A habilidade pode ser usada para planejar aulas. O texto-suporte do exemplo, a fábula, pode ser usado em diversos contextos. O mesmo se diga da situação-problema: em aulas, conferências, artigos etc. Também as alternativas de resposta servem em bate-papo, situações formais e informais de aprendizagem etc. Propriedade 7: Os componentes podem ser alterados, removidos, acrescentados As habilidades previstas no CBC, sem exceção, podem constituir novos itens. Ou seja, é um componente que pode ser alterado. Há itens que não possuem texto-suporte, fazendo deste componente algo que pode ser removido da colônia. As alternativas de resposta podem ter mais de quatro opções12. Propriedade 8:Há componentes que têm a mesma função Para Hoey, mesmo que alguns componentes da colônia migrem para outras ou mesmo se realizem como “gênero independente”, não haverá alterações em suas funções. Essa é uma propriedade questionável, basta pensar que a função do texto-suporte no item é contextualizar a situação-problema e, fora do item, serve como fábula (no caso do exemplo). Propriedade 9: Os componentes apresentam algum tipo de sequência. 12

Geralmente os itens possuem quatro ou cinco alternativas de resposta. No PAAE, os itens são padronizados com quatro alternativas.

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O item se constitui com princípios próprios. A partir da habilidade, busca-se por um texto de suporte que, por sua vez, dará origem à situação-problema à qual se seguem alternativas de resposta. É contraproducente pensar na produção desse gênero em sentido inverso. Há um princípio cronológico e organizacional que estrutura a composição desse gênero.

Considerações finais Usado em contexto avaliativo, o gênero item tem sido constantemente agregado às práticas de avaliação interna, pelos motivos expostos ao longo deste trabalho. Desse modo, a prática docente vem adotado o item como uma constante, seja em avaliações informais (cotidianamente nas aulas), seja em avaliações formais (como provas e testes). Embora pareça algo simples, a estrutura do gênero item requer uma série de cuidados, que vão desde a escolha sobre o quê avaliar, passando pelo como avaliar, até chegar em aspectos específicos da linguagem especializada, como por exemplo os paralelismos gramatical, semântico e de extensão, além de sua terminologia, gêneros e gramática de especialidade. Certamente, conhecer a linguagem especializada e os demais gêneros que subsidiam a elaboração e aplicação dos itens é algo importante, que otimiza o processo avaliativo. Diante desses pontos, urge que a avaliação, nas suas mais diversas frentes de estudo e aplicação, seja constantemente debatida, seja em cursos de licenciatura, seja em formação continuada. É necessário romper com a crença de que “professor sabe fazer questão”. Elaborar uma boa questão, consoante a linguagem especializada, seja ela do PAAE ou de qualquer outro programa avaliativo, é sinal de práticas avaliativas mais eficazes, mais eficientes, cujos resultados refletirão de maneira mais adequada na relação de ensino e aprendizado.

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O DESAFIO DO PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA NA FORMAÇÃO DE LEITORES EM TEMPOS DE NATIVOS DIGITAIS Estela da Silva Leonardo Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Viçosa. Área de concentração: Estudos Literários. E-mail: estela.s.leonardo@gmail.com

Resumo: A educação não acompanhou a mudança de perfil dos jovens, nativos da era digital. Em diferentes áreas do saber constatamos a necessidade de mudanças das práticas didáticas de forma a garantir o envolvimento do aluno com o processo de ensino-aprendizagem. Em relação ao ensino de Literatura, que pressupõe a prática de leitura de textos literários, temos cenário semelhante, pois seja dentro ou fora do espaço escolar, ela tem perdido espaço gradativamente. Deste modo, é necessário refletir e conhecer as características desses nativos digitais, para pensar estratégias que garantam o espaço da leitura na sala de aula e torne o ensino de Literatura motivador na e para além da escola. Assim, este artigo, tem como objetivos refletir sobre o perfil do aluno atual, problematizando sua formação crítica, a partir da prática de leitura de textos literários, discutir como as instâncias escola/professor/metodologias se correlacionam, e sinalizar para a instrumentalização das tecnologias da informação e comunicação como estratégias profícuas para o ensino da Literatura. Conclui-se sobre a necessidade premente de repensar as estratégias de ensino de literatura e incorporar outras que promovam a construção do conhecimento coletivamente e o envolvimento do aluno, enquanto sujeito ativo no processo de aprendizagem. Palavras-chave: Prática de leitura. Escola. Metodologias. Aluno. Tecnologias.


Introdução Celulares na mão, fones de ouvido, informação ao alcance de um clique. É esse o perfil da geração de alunos atual. Dominados por uma nova linguagem, na qual as tecnologias permitem a conexão instantânea em quase todos os lugares, identificamos que este perfil reflete claramente no comportamento escolar. Nesse sentido, é preciso fazer alguns apontamentos. Necessitamos pensar a articulação do comportamento destes alunos com sua formação crítica. Esta articulação, acreditamos, se dá entre a escola, o professor de Língua Portuguesa e Literatura e as metodologias. Inserido neste contexto, defendemos que um dos caminhos é a instrumentalização das tecnologias da informação e comunicação (TICs) como estratégias de ensino. Portanto, os objetivos deste artigo são apresentar e comentar o perfil do aluno atual, influenciado fortemente pelas tecnologias; problematizar a formação crítica do aluno, a partir da leitura de textos literários; discutir como a escola, enquanto corresponsável pela formação do aluno, os professores e a metodologia se relacionam no processo de ensino; e, sinalizar que uma das alternativas para se pensar o ensino de Literatura é a partir de estratégias didáticas utilizando as TICs. Para isso, esse trabalho, de caráter exploratório, apoia-se na perspectiva defendida por alguns autores tanto de áreas da Educação e Literatura e Ensino, como aqueles que discutem a utilização das TICs no processo de ensino. As práticas tradicionais precisam ser repensadas, dando lugar a métodos de parceria e colaboração, no qual o aluno seja agente de construção do conhecimento, e não apenas desenvolva, mas também potencialize habilidades como autonomia, senso crítico, e capacidade de multitarefas, isto é, de realizar diversas tarefas ao mesmo tempo, tais como enviar mensagens de texto, falar no telefone, navegar na Internet e ver televisão simultaneamente (ROBERTS, 2005). Assim, a função do professor vai se transformando de um simples detentor do poder na sala de aula, tornando-se mediador do conhecimento, como já pressupunha Freire em sua Pedagogia da Autonomia, apontando que ensinar não é transferir conteúdo a ninguém, assim como aprender não é memorizar o perfil do conteúdo transferido no discurso vertical do professor. Ensinar e aprender têm que ver com o esforço metodicamente crítico do professor de desvelar a compreensão de algo e com o empenho igualmente

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crítico do aluno de ir entrando como sujeito em aprendizagem, no processo de desvelamento que o professor ou professora deve deflagrar. (FREIRE, 2002, p 118-119).

Se o cenário educacional, em diferentes áreas do saber, nos chama atenção, vale dar destaque ainda mais ao ensino de Língua Portuguesa e Literatura. Segundo dados da Prova Brasil, de 2013, a proporção de alunos, em todo território nacional, com aprendizado adequado, no que concerne à competência de leitura e interpretação de textos, é de 23% (vinte e três) no 9º(nono) ano. Entre o 6º(sexto) e 9º(nono) anos, temos um período decisivo no processo de formação do leitor, pois "é no interior destes que muitos alunos ou desistem de ler por não conseguirem responder às demandas de leitura colocadas pela escola, ou passam a utilizar os procedimentos construídos nos ciclos anteriores para lidar com os desafios postos pela leitura, com autonomia cada vez maior.” (BRASIL, 1998, p.70) Este quadro é mais alarmante quando se trata da leitura de textos literários. Temos percebido que a leitura tem sido uma prática cada vez menos frequente no espaço escolar. Podemos considerar várias causas para o afastamento da Literatura: nível elevado de alunos com deficiência na leitura e interpretação de textos; dificuldade na expressão escrita e oral; falta de assimilação da norma linguística ocasionando desinteresse pela matéria e, principalmente a não aquisição do hábito da leitura, que acaba gerando a falta de formação integral que una conhecimento intelectual e emocional. Segundo Kleiman (2000) apud Bem (2009, p.8) “muitas das deficiências do ensino da leitura, nesse caso, no Ensino Fundamental, são resultantes de metodologias inadequadas e desmotivadoras”. Assim, entendemos que a mudança das práticas e estratégias pode ser um elemento primordial para o êxito no ensino de Literatura, que promova a formação do leitor e não somente a transmissão de conhecimentos historiográficos. A aproximação entre o perfil do aluno e a prática da leitura foi divulgada pela pesquisa Retratos da Leitura do Brasil1, que em sua terceira edição apresenta dados de 2011, onde a porcentagem de leitores no ano foi de 50% (88, 2 milhões) da população. A principal motivação para a leitura segundo os dados da mesma pesquisa é a possibilidade de atualização cultural e de conhecimentos gerais (55%). O segundo motivo 1

A pesquisa Retratos da Leitura é a única pesquisa, em âmbito nacional, que tem por objetivo avaliar o comportamento leitor do brasileiro, segundo informações do Instituto Pró-Livro.

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apontado para se ler um livro foi a busca pelo prazer que esta prática proporciona, o gosto pela leitura e ainda uma vontade espontânea (49%). Além desses dados, é necessário destacar alguns outros, extraídos da monografia apresentada em 2014 pela autora deste artigo, intitulada “Ensino de literatura mediado pelas tecnologias da informação e comunicação: Desafios e perspectivas 2”. No que concerne ao objetivo da leitura de textos literários os participantes desta pesquisa apontaram as possibilidades de busca de conhecimento, de viajar nos pensamentos, de fugir da realidade e também a oportunidade de lazer. Em relação ao suporte de leitura, foram citadas as redes sociais, os livros didáticos, as revistas de histórias em quadrinhos e os livros de ficção. Por fim, uma constatação importante, aferida a partir das respostas dos alunos que participaram dessa pesquisa, é a de que os alunos leem, sendo as adaptações fílmicas e as histórias em quadrinhos os conteúdos mais presentes em seu cotidiano como leitores. Assim, é necessário compreender que muitos dos alunos que hoje estão nas salas de aula são ainda leitores cotidianos, e não leitores do cânone, como, muitas vezes, a escola preconiza. Chartier (1998) afirma que, independentemente da posição canônica, aqueles que são considerados não-leitores leem, mas leem coisa diferente daquilo que o cânone escolar define como uma leitura legítima. O problema não é tanto o de considerar como não-leituras estas leituras selvagens que se ligam a objetos escritos de fraca legitimidade cultural, mas é o de tentar apoiar-se sobre essas práticas incontroladas e disseminadas para conduzir esses leitores, pela escola mas também sem dúvida por múltiplas outras vias, a encontrar outras leituras. É preciso utilizar aquilo que a norma escolar rejeita como um suporte para dar acesso à leitura na sua plenitude, isto é, ao encontro de textos densos e mais capazes de transformar a visão do mundo, as maneiras de sentir e de pensar. (CHARTIER, 1998, p.103-104)

Ademais, a prática de leitura demanda tempo e recolhimento – características ainda pouco frequentes nesta geração. Daí ser maior o desafio da escola e, consequentemente do professor de Língua Portuguesa e Literatura, sendo esse ensino uma tarefa árdua nos tempos de dispersão e rapidez da informação. A literatura no ambiente escolar deve ser pensada não somente enquanto disciplina curricular, mas também como hábito que deveria ser incorporado no cotidiano das pessoas e, portanto, entendemos que ela constitui-se como um direito de todo cidadão. 2

Monografia apresentada à ao Departamento de Letras da Universidade Federal de Viçosa, em julho de 2014, como requisito para a obtenção do título de Licenciado em Letras - Português/Literatura.

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Assim como é resguardado ao aluno acesso à educação, à saúde e ao saneamento básico é também direito dele ter acesso a arte, incluindo a literatura. Corroborando com isto, Candido (1988, p.175) afirma que a literatura “parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito”. O direito do aluno à leitura de textos literários precisa então, ser assegurada também e, principalmente pela escola. Ainda sobre o processo de ensino da Literatura, Yunes (2002) expõe que o movimento que a literatura desencadeia, de natureza catártica, mobiliza os afetos, a percepção e a razão convocados a responder às impressões deixadas pelo discurso, cujo único compromisso é o de co-mover o leitor, de tira-lo de seu lugar habitual de ver as coisas, de fazê-lo dobrar-se sobre si mesmo e descobrir-se um sujeito particular. O processo não é tão simples e rápido, mas uma vez desencadeado, torna-se prazeroso e contínuo. (YUNES, 2002, p.27)

Deste modo, constatando que o texto literário possibilita a reflexão crítica, a construção do conhecimento e o prazer estético, e estando a leitura presente no cotidiano de uma parcela considerável de brasileiros, compreendemos que o ensino de literatura na prática, deve ser repensado. A literatura é compreendida como um conhecimento possível e desejável na formação do aluno e, embora a vivência e o contato com os textos literários devam surgir antes mesmo da escola, é no espaço escolar que ela deve ser explorada, garantindo que ler seja uma prática social e habitual dos alunos. Nas palavras de Pereira (2004) a escola, com seu espaço, seu tempo, seu ritmo, seus rituais e, sua população deve ser ponto de apoio, ou seja, lugar de experimentação, realização, confronto, conflito, entusiasmo, sucesso e prazer; lugar de alegria na construção do conjunto dos poderes sociais e realizações complexas.(PEREIRA, 2004, p.80)

Constatamos que o público atual tem se transformado e evidenciado características de uma geração de nativos digitais, conforme expressão cunhada por Prensky (2001) ao se referir aos “‘falantes nativos’ da linguagem digital dos computadores, vídeo games e internet.”(PRENSKY, 2001, p. 1) Cabe-nos fazer uma ressalva quanto a esta definição, tendo em vista que, nem todos os alunos podem ser considerados nativos digitais. Apesar disso, acreditamos que o comportamento desses jovens tem se modificado e, aos poucos, evidenciado a necessidade de novas estratégias didáticas, que tomem como ponto de partida o desenvolvimento de potencialidades que a presença da tecnologia tem propiciado.

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Já a terminologia Geração Z é utilizada por alguns pesquisadores para caracterizar os nascidos depois dos anos noventa. O “Z” vem da expressão “zapear”, que tem como significação mais próxima, trocar os canais da televisão constantemente com um controle remoto, em busca de algo interessante. Zap, do inglês, significa “fazer algo muito rapidamente” e também “energia” ou “entusiasmo”. (TOLEDO, ALBUQUERQUE, MAGALHÃES, 2012, p.3) Em muitos dicionários de Língua Portuguesa a expressão “zapear” ainda não possui definição, já que esta terminologia é ainda recente. Entretanto, o dicionário online Priberam traz um significado semelhante ao apresentado anteriormente, a saber: o ato de “mudar consecutivamente de canal de televisão com o controle remoto; fazer zapping.” (DICIONÁRIO PRIBERAM DA LÍNGUA PORTUGUESA). Seguindo estas terminologias e definições Neto e Franco (2010) caracterizam o aluno de hoje. Segundo eles a tendência é que os alunos estejam com o fone nos ouvidos a todo instante, ao mesmo tempo em que estão realizando outras atividades e assistindo TV. Por isso, alguns chamam esta geração de “geração silenciosa”. Rápidos e ágeis com os computadores têm dificuldades com as estruturas escolares tradicionais e, muitas vezes, com os relacionamentos interpessoais, uma vez que a comunicação verbal é dificultada pelas tecnologias presentes a todo o momento. (NETO; FRANCO, 2010, p.14)

Vale comentar que, ao mesmo tempo em que temos a proximidade virtual oportunizada pela internet, também temos uma sensação de isolamento, decorrente de seu uso não direcionado. É intrigante constatar que vivenciamos um momento histórico, no qual sujeitos distantes fisicamente interagem de forma instantânea com apenas um toque. Se essa prática é social e inevitável, como se dá esse percurso na escola? A escola tem importante papel na transmissão e construção de saberes, enquanto corresponsável pela formação crítica do aluno em diferentes âmbitos do conhecimento. Segundo Brito (2012, p.35) “a capacidade de ler e a prática de leitura têm implicações importantes na participação social dos indivíduos, contribuindo decididamente para sua maior produtividade, intervenção política e social, organização da vida prática”. O mesmo autor completa que a “leitura, passa a ser entendida como prática social circunstanciada, favorecendo o alargamento do espírito e das possibilidades de atuação na sociedade”. (BRITO, 2012, p.48)

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Dessa forma, o comprometimento da escola com a formação de leitores é determinante para uma formação escolar adequada. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para o ensino fundamental apontam que cada escola tem uma cultura própria permeada por valores, expectativas, costumes, tradições, condições, historicamente construídos, a partir de contribuições individuais e coletivas. No interior de cada escola, realidades econômicas, sociais e características culturais estão presentes e lhe conferem uma identidade absolutamente peculiar. (BRASIL, 1998, p. 86)

Sobre o processo de aprendizagem em âmbito escolar os PCNs assinalam que as aprendizagens realizadas na escola serão significativas, na medida em que os professores “conseguirem estabelecer relações substantivas e não-arbitrárias entre os conteúdos escolares e os conhecimentos previamente construídos por eles, num processo de articulação de novos significados”. (BRASIL, 1998, p.38) É no espaço escolar que o aluno será apresentado a novos conhecimentos e aperfeiçoará tantos outros. Nesse ínterim, o papel da escola, e, por conseguinte do professor, em contato contínuo com o aluno, é desafiador, pois ele precisa criar ações que tornem possível ao aluno o envolvimento e engajamento no processo de ensino. Conforme Almeida (2000, p.41) o docente precisa “promover a aprendizagem do aluno para que este possa construir o conhecimento dentro de um ambiente que o desafie e o motive para a exploração, a reflexão, a depuração de ideias e a descoberta”. Considerando que a leitura é cambiante conforme os anos e não estática e imutável, continuamente é preciso vê-la como atividade vivenciada em sala de aula, e construída através dos tempos. Nesse processo contínuo de aprendizado, demarcamos a importância da articulação da gestão pedagógica da escola e da necessária motivação do aluno, todavia, salientamos a importância do professor, pois o ensino de Literatura, muitas das vezes será desafiador, o que vai exigir um profissional que seja além de pesquisador também e, principalmente, leitor de textos literários. O docente precisa conhecer além das dificuldades da inserção da leitura de textos literários na sala de aula, também reconhecer-se como sujeito em constante aprendizado. Conhecer o perfil do aluno, que hoje frequenta a escola, é apenas uma das etapas para se repensar a prática de ensino. O docente necessita também de possíveis estratégias e recursos que possam ser incorporados à sua metodologia. Vale salientar o crescente número de projetos públicos e privados que tem surgido nos últimos anos, com o intuito de investigar e repensara

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educação, a partir de propostas que tem proporcionado a personalização do ensino e apresentado novas oportunidades de aprendizagem, como o especial Tecnologia da Educação3. Igualmente, diversas pesquisas têm sido desenvolvidas no intuito de investigar o ambiente escolar e traçar um perfil dos envolvidos na gestão educacional e dos alunos. São exemplos as pesquisas Retratos da leitura no Brasil4e a TIC Educação. Vale destacar ainda a recente discussão sobre a Base Nacional Comum Curricular5, prevista pelo Plano Nacional da Educação e, agora – 2015 – em pauta. Considerando-se o perfil do aluno, o uso de tecnologias aplicadas ao ensino é uma das possibilidades que tem sido cogitada. Portanto, a pressuposição de que ensinar literatura, utilizando as tecnologias como mediadoras no processo de ensino-aprendizagem contribui na formação do leitor e na formação de qualidade na educação é válida. Assim, defendemos articulação entre ensino de literatura e tecnologias, justificada se considerarmos o perfil dos alunos atuais, nativos “da era digital e conectados na rede seja pelo computador pessoal, celular, Ipad e etc.” (NONATO; PIMENTA; FERREIRA, 2012, p.2) Dessa forma, acreditamos que explorar a prática de leitura de textos literários através dos recursos e possibilidades presentes nos meios tecnológicos pode favorecer o interesse do aluno pela leitura, já que os jovens estão familiarizados com estes suportes digitais em seu cotidiano. Segundo dados da pesquisa Juventude Conectada6 42% dos jovens afirmam que o equipamento mais usado para acesso à internet é o celular. Dos respondentes, 89% utilizam o 3

Esse projeto, divulgado pelo portal Porvir, foi produzido a partir dos documentos Inovações Tecnológicas na Educação: Contribuições para Gestores Públicos, elaborado pelo Movimento Todos Pela Educação e o Inspirare, e Conectividade nas escolas públicas brasileiras, realizado pelo Porvir/Inspiraree a Fundação Lemann, com apoio do Instituto de Tecnologia & Sociedade do Rio (ITS) e da rede Nossas Cidades. (Informações retiradas do próprio portal Porvir, disponível em: http://porvir.org/especiais/tecnologia/) 4 O Instituto Pró-Livro ao divulgar dados da 3ª edição dessa pesquisa sobre o comportamento leitor do brasileiro busca subsidiar estudos e promover o debate sobre os avanços e os impasses que esses resultados revelam. Além disso, espera contribuir para que esses estudos possibilitem avaliar e orientar políticas públicas e ações do governo, organizações não governamentais e entidades do livro, voltadas a melhoria dos indicadores de leitura e acesso ao livro no Brasil. (Informações da própria pesquisa. Disponível em: http://prolivro.org.br/home/index.php/atuacao/25-projetos/pesquisas/3900-pesquisa-retratos-da-leitura-no-brasil48) 5 Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/inicio>. 6 Pesquisa realizada pela Fundação Telefônica Vivo em parceria com o Ibope, o Instituto Paulo Montenegro e a Escola do Futuro, da Universidade de São Paulo (USP) e divulgada em 2014. A pesquisa teve como objetivo entender oportunidades, transformações e tendências do comportamento jovem na era digital, a partir de quatro

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notebook para estarem conectados em suas próprias casas e 29% os tablets. Isto ajuda a desconstruir a ideia equivocada de que a tecnologia atrapalha o hábito de leitura dos jovens. O que o nosso estudo procura demonstrar é exatamente a possibilidade de o ensino de Língua Portuguesa e Literatura ser favorecido através do uso de tecnologias enquanto instrumentos de ensino. O papel da escola, por conseguinte, é o proporcionar que a relação entre tecnologia e conhecimento seja favorável a um processo de construção do saber que seja pautado, não apenas pela mera transmissão e reprodução de conhecimento e informações. Devemos refletir com atenção, entretanto, a respeito da inserção desta ou daquela tecnologia, pois conforme Moran (1995) as tecnologias de comunicação não mudam necessariamente a relação pedagógica. Elas tanto servem para reforçar uma visão conservadora, individualista, como uma visão progressista. Consoante a isto Valente (2002) aponta que os conhecimentos técnicos e pedagógicos devem crescer simultaneamente. “O domínio das técnicas acontece por necessidades e exigências do pedagógico e as novas possibilidades técnicas criam novas aberturas para o pedagógico, constituindo uma verdadeira espiral de aprendizagem ascendente na sua complexidade técnica e pedagógica” (VALENTE, 2002, p.23). Utilizar as tecnologias enquanto instrumentos da prática didática, na criação de estratégias de ensino de Literatura, demonstra que esses recursos tecnológicos podem e devem funcionar como aliados no processo de aprendizagem, dando atenção ao fato de “que as tecnologias, seus recursos e suas ferramentas não têm significado pedagógico se forem tratadas de forma isolada e desconexa do processo educativo. É o professor quem atribui valor pedagógico a elas, tornando-as geradoras de situações de aprendizagem.”(CARLINI; TARCIA, 2010, p. 47) Assim, a utilização adequada de quaisquer recursos digitais vai depender da articulação entre a escola, o professor e as metodologias que serão utilizadas para diferentes públicos. A escola, enquanto corresponsável pela formação do aluno, precisa ser espaço de um repensar de mudanças. Entendemos que, para refletir e planejar o uso de tecnologias aliadas à educação, é preciso “o envolvimento de novas formas de ensinar, aprender e de desenvolver eixos de investigação: educação, ativismo, empreendedorismo e comportamento, segundo informações da Fundação Telefônica.

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um currículo condizente com a sociedade tecnológica, que deve se caracterizar pela integração, complexidade e convivência com a diversidade de linguagens e formas de representar o conhecimento” (TORNAGHI et. al, 2010, p.47). Do mesmo modo, Allan (2015) aponta que o surgimento de novos formatos pedagógicos, reforçados pelo ingresso de recursos tecnológicos na educação, é um catalisador de inovações em curso que tem levado a escola para muito além de suas salas de aula, de suas bibliotecas e de universos até então restritos às suas comunidades de professores e alunos. (ALLAN, 2015, p.25)

Assim, as potencialidades que a internet possui passam a ser aliadas do processo de ensino-aprendizagem. Ainda em seus primeiros passos de mudança, a escola já demonstra alguns traços do surgimento de um novo modo de pensar o ensino. Há ainda o fato do necessário diagnóstico do perfil dessa geração. Explorar suas habilidades e potencialidades diante de situações-problema, estudos de caso (individuais ou coletivos) e pensamento rápido frente a questionamentos pode favorecer a construção do conhecimento nas diversas áreas do saber. Dessa forma, propostas como ensino híbrido7, sala de aula invertida8, gamificação9, aprendizagem colaborativa10, entre outras metodologias tem o potencial de apresentar novas oportunidades de aprendizagem. Concluímos que se as TICs forem implementadas enquanto instrumentos da prática didática, se oportunizará que o ensino de leitura de textos literários seja mais atrativo, e por consequência forme leitores críticos e familiarizados com o aspecto lúdico da linguagem literária.Ademais, apesar da Literatura não existir enquanto disciplina no Ensino Fundamental, compreendemos que ensinar a ler textos literários é um dos requisitos principais para se obter uma formação cultural mais abrangente. Apesar do desafio a ser enfrentado ser árduo, 7

Neste tipo de abordagem metodológica, tem-se a combinação de atividades utilizando recursos tecnológicos presencial e virtualmente. O foco do processo de aprendizagem está no aluno e a sala de aula torna-se um espaço de aprendizado ativo. 8 Nela, altera-se a lógica de organização do espaço de sala de aula. Os recursos tecnológicos funcionam como apoio para o aprendizado de conteúdos que ocorre em casa. A sala de aula, enquanto espaço físico, é utilizada para resolução de exercícios, tirar dúvidas com o professor e realizar discussão. 9 Consiste na integração de elementos presentes em jogos (níveis, badges, competição, etc.) ao currículo escolar. O diferencial é que o aprendizado ocorre por meio de brincadeiras, nas quais teoria e a prática estão integradas. 10 Na aprendizagem colaborativa a construção do conhecimento ocorre coletivamente, por meio da interação entre os alunos e deles com o professor. A tecnologia potencializa esse processo de aprendizagem, pelas redes sociais e demais recursos de comunicação e compartilhamento de informações.

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acreditamos na perspectiva do ensino de leitura de textos literários e na formação do leitor, utilizando o potencial tecnológico.

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“QUE CURSO DE LETRAS QUEREMOS?”: ANÁLISES E REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO POLÍTICA DE PROFESSORES DE LÍNGUAS. Flávia Marina Moreira Ferreira Universidade Federal de Viçosa, flaviamarinaf@gmail.com

Hilda Simone Henriques Coelho Universidade Federal de Viçosa, hildasimonecoelho@gmail.com

Resumo: Este trabalho é uma pesquisa qualitativa, com foco em análise documental, com o objetivo principal de verificar a matriz curricular de três cursos de Licenciatura em Letras de diferentes regiões do Brasil, com relação à formação oferecida aos estudantes (futuros professores de línguas), referente às Políticas Públicas de Ensino (PPE) e\ou às Políticas Linguísticas (PL). Para a realização deste trabalho, buscamos nos apoiar em pesquisadores da área da Linguística Aplicada (LA) que apontam para a importância dos professores conhecerem os aspectos políticos que envolvem o processo de ensino e aprendizagem de Língua Inglesa (LI) (GARCEZ, 2013; MACIEL, 2013; ROJO, 2013; RAJAGOPALAN, 2014). Para a análise da matriz curricular, foram escolhidos dois cursos de Licenciatura em Letras, de habilitação dupla (Português\Inglês), e um curso de Licenciatura plena em Língua Inglesa. Foi observado por meio dos dados analisados, que os cursos de Letras ainda não oferecem aos estudantes uma formação crítica e social que os deem suporte teórico o suficiente para atuar, politicamente, em relação ao trabalho docente e, até mesmo, entender as PL que envolvem o processo de ensino e aprendizagem de língua. Palavras-chave: Formação Inicial. Política Linguística. Ensino e aprendizagem de línguas.


Introdução Ao voltarmos nossas atenções para a área da LA podemos verificar autores (CELANI, 1992; LEFFA, 2001) definindo o campo de estudo como uma área híbrida, que estabelece diálogo direto com várias outras áreas de saberes, tais como, a sociologia, a antropologia, a linguística, a biologia, dentre outros, inclusive, com a área de estudos políticos. Esta definição se torna clara e evidente ao entendermos a língua como uma entidade que, não apenas, possui aspectos políticos, mas, também, como uma entidade política em sua essência. Rojo (2013) aponta para a importância de reconhecermos, enquanto linguistas aplicados, nossa atuação política frente a todos os assuntos que envolvem a Língua Materna ou uma Língua Estrangeira em nosso país. Segundo a autora, o processo de ensino e aprendizagem, a utilização de determinada língua, e até mesmo o controle social que é empregado por meio desta, são questões de ordem política. Por isso, acreditamos que não devemos fechar nossos olhos para uma visão crítica acerca as PPE e/ou PL que envolvem o uso e ensino das línguas, com o objetivo de permitir a propagação de uma visão linguística crítica em nosso ambiente profissional. Atualmente dentro do campo de estudos referentes à área de Formação de Professores, pesquisadores voltam seus estudos para a formação crítica (GIMENEZ & MONTEIRO, 2010). Revoga-se a importância de se oferecer uma formação crítica por ser entendido a necessidade de se preparar profissionais que estejam aptos a atuarem no atual sistema de ensino, composto de salas de aula que se caracterizam como espaços complexos, dinâmicos e em constante modificação (MICCOLI, 2010; FRAGA, 2014). Fica evidente que não podemos continuar formando professores não conscientes dos aspectos sociais e políticos que envolvem o processo de ensino e aprendizagem. Segundo Fraga (2014), “é urgente formar professores de língua que concebam seu objeto de estudo também a partir de uma dimensão política (p.47)”, deixando claro a necessidade dos cursos de formação inicial oferecerem aos estudantes muito mais do que disciplinas teóricas que apresentam “fórmulas mágicas” prontas e fechadas para ensinarmos línguas aos alunos nas escolas. É necessário acreditarmos na importância de formarmos professores críticos e políticos, conscientes de seus papeis em meio ao ambiente escolar. Na próxima seção apresento os objetivos delineados para a realização deste trabalho.

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Objetivos Entendendo a importância de se oferecer uma formação crítica e política aos professores, e questionando até que ponto estamos a oferecendo em nossos cursos, surgiu o interesse em realizar este estudo. Temos por objetivo investigar a formação política que vem sendo oferecida aos futuros professores de Línguas, nas Universidades Federais em nosso país. Por meio da análise de três matrizes curriculares de instituições diferentes, em regiões distintas do Brasil, observando as disciplinas oferecidas que favorecem esta formação política. Na próxima seção apresento a metodologia de pesquisa deste trabalho.

Metodologia Neste estudo foram analisadas três matrizes curriculares de diferentes cursos de Licenciatura em Letras, sendo dois de habilitação dupla Português-Inglês, e um curso de habilitação plena em Língua Inglesa. As faculdades são de três regiões diferentes do Brasil: Sudeste, Sul e Centro-Oeste. As matrizes curriculares foram pesquisadas nos sites dessas universidades federais, e os nomes das instituições foram preservados por questões éticas. Durante a análise foi observado quais das matrizes curriculares oferecem aos alunos disciplinas que envolvem conhecimentos sobre PPE ou sobre PL. A análise se deu por meio da observação dos títulos das disciplinas dos cursos. Tendo apresentado brevemente a metodologia de pesquisa empregada neste trabalho, discorro abaixo sobre o referencial teórico.

Referencial Teórico O tema acerca das PL vem ganhando espaço dentro da área da LA e isto pode ser percebido através dos congressos que abordaram este tema, como por exemplo, o X CBLA (Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada), realizado no Rio de Janeiro (UFRJ), em 2013, pela ALAB (Associação de Linguística Aplicada do Brasil) que teve como tema central as PL. É possível observar também trabalhos que vem sendo realizados, nos últimos anos, por pesquisadores da área (GARCEZ, 2013; LEFFA, 2013; MACIEL, 2013; MONTE MÓR, 2013;

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RAJAGOPALAN, 2013; CORREA, 2014; FRAGA, 2014; JABUR, 2014; KRAMSCH, 2014). Apesar do tema de estudo ainda não estar entre os eixos mais populares da LA, como por exemplo, a formação de professores, o processo de ensino e aprendizagem de língua estrangeira ou o uso de tecnologias, as PL estão ganhando seu espaço dentro da área, por mostrar sua relevância no processo de formação de novos professores e até mesmo no processo de ensino dentro dos contextos educacionais. Segundo Correa (2014), “é preciso reconhecer a importância de revisitar e de discutir política linguística continuamente” (CORREA, 2014, p.19). Entendemos por PL, leis e diretrizes de ensino postuladas pelo Governo com relação ao processo de ensino e aprendizagem, uso e reconhecimento de uma Língua Materna e/ou Língua Estrangeira em determinado território. Além de ser entendido como normas, leis e diretrizes ditadas por um órgão superior, Silva (2014) afirma que as políticas são feitas em um âmbito prático e social e que uma política apenas pode ser considerada como tal, quando de fato ela estiver implementada na sociedade. Correa (2014), também, afirma que as políticas ocorrem tanto “de cima para baixo” quanto “de baixo para cima”. Isto aponta a importância dos professores e demais agentes educacionais para a implementação e consequente realização das políticas propostas pelo Governo. Acreditamos que a preocupação em abordar as questões políticas que envolvem o processo de ensino e aprendizagem de línguas advém da importância de compreendermos, como professores e pesquisadores, os aspectos políticos que permeiam nosso sistema de ensino. Fraga (2014) aponta em um dos seus trabalhos que diante da sala de aula marcada pela heterogeneidade social, onde a diferença passa a ser vista não mais como algo singular, mas como algo comum, é difícil imaginar uma não formação política dos professores. Ao pensarmos no processo de ensino e aprendizagem de línguas, é importante enxergar que as salas de aula são inegavelmente globais. Não dá para encarar mais as aulas de Língua Estrangeira como uma aula em que os estudantes possuem todos os seus conhecimentos e interesses em comum com os outros colegas. Os estudantes são pessoas de classes sociais diferentes, de educação e hábitos diversos e possuem histórias de vida que os diferem uns dos outros (KRAMSCH, 2014). É neste cenário que se encaixa e se vislumbra o trabalho do professor consciente de seu papel político frente à educação. Por isso, alegamos que os cursos

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de formação de professores devem buscar formar professores para além das competências linguísticas-pedagógicas e que sejam capazes de desempenharem um papel linguístico-social. Ao mencionar o sistema de ensino americano das Universidades, com relação à educação em língua estrangeira, Kramsch (2014) menciona os objetivos mostrados no relatório do Comitê AdHoc da Associação Americana de Língua Moderna em 2007, com relação ao que se espera dos futuros professores de línguas, O objetivo... não seria simplesmente produzir graduados mais bem preparados para enfrentar uma variedade de necessidades nacionais e sociais identificadas, embora só isso já teria um valor bem significativo. Nosso objetivo é um sistema de educação superior que englobe os benefícios educacionais distintos de estudar línguas estrangeiras e culturas ao desenvolver os poderes do intelecto e da imaginação, a habilidade e complexidade, e entender até que ponto a cultura e a sociedade são criadas na linguagem (MLA, 2008, p.288, apud KRAMSCH, 2014, p.14).

Essas questões são também levantadas para a formação de professores em nosso contexto nacional. Fraga (2014) defende a necessidades dos cursos de formação inicial e continuada de Licenciatura em Letras abordar temas relativos às PL com o intuito de oferecer aos professores suporte teórico e prático para que eles estejam aptos a atuarem nas salas de aula. Correa (2010, apud Fraga, 2014) afirma que para formar professores preparados para atuarem em salas de aulas diversificadas, com um olhar multilíngue sobre o ensino, é necessário: [...] observar como funcionam as políticas linguísticas, trazendo-as para o centro do debate. Entre os muitos conhecimentos, que são exigidos daqueles que estão em fase de formação para atuar como docentes e como pesquisadores e também dos que já estão formados e atuando em sala de aula, temos como planejamento linguístico, normal culta, norma padrão, acordo ortográfico, entre outros afetos aos estudos da linguagem, precisam tornar-se palavras ou expressões significativas, por assim dizer, passíveis de reflexões mais aprofundadas. Dessa forma, é possível contextualizar melhor as escolhas linguísticas, os panoramas plurilíngues, os contextos de variação linguística, e também a defesa das configurações monolíngues e homogêneas, incluindo as exigências de domínio das regras que fazem parte de tais configurações (CORREA, 2010, p.40-41, apud FRAGA, 2014, p. 51).

Corroboramos a reflexão feita por Correa (2010) e endossamos que os futuros professores precisam conhecer sobre as políticas linguísticas para que sejam capazes de atuar politicamente e de modo critico consciente em sala de aula e demais contextos educacionais.

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Sobre o formato de formação ainda oferecido pelo curso de Letras, Fraga (2014) cita Marcuschi (2009) ao dizer que ainda temos como perspectiva a acumulação de conhecimento, onde oferecemos um grande número de disciplinas teóricas, mas não ensinamos aos alunos, sobre o que devemos fazer com esse conhecimento, perpetuando o pensamento de que “o mais importante é dominar muitos saberes, mesmo que não saiba o que fazer com eles” (p.55). Conforme aponta estudo realizado por Ferreira & Coelho (2013), este questionamento feito por estudantes no papel de futuros professores, com relação a não se sentirem preparados para a carreira docente, é mais comum do que se pensa. As autoras apontam em seus estudos relatos de professores em pré-serviço, que alegam não se sentirem preparados para ‘enfrentarem’ a sala de aula, tanto linguisticamente quanto pedagogicamente e apresentam dados (FERREIRA & COELHO, 2014) que mostram que as emoções sobre o ‘medo’ da sala de aula e a sensação de “despreparo”, fazem com que muitos futuros professores optem por outras carreiras que não envolvam a sala de aula. Segundo Fraga (2014), existem várias formas de oferecer aos professores em formação uma visão política acerca do processo de ensino e aprendizagem de línguas, porém o importante é que esta formação aconteça. Em trabalho semelhante ao nosso, a autora aponta dados referente a formação política de algumas matrizes curriculares de cursos de graduação e de pósgraduação do Brasil. A autora concluiu que ainda é pequena a discussão direta sobre a formação política nos cursos de formação de professores de Línguas. Fraga observou disciplinas relativas a formação política não diretamente ligadas ao curso de Letras, e muitas disciplinas que podem envolver a discussão política, mas que não a trazem como foco principal, como pode ser observado no quadro abaixo:

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Quadro I: Reprodução – Disciplinas de políticas Linguísticas presentes em cursos de graduação brasileiros. (FRAGA, 2014, p. 54). NOME DA DISCIPLINA

CURSO

CARÁTER DA

INSTITUIÇÃO

DISCIPLINA Bacharelado Políticas linguísticas

em

Obrigatório

Linguística

semestre)

Licenciatura em Letras

Eletivo

(1º

(7º semestre)

UFSCar

UFSC

Política linguística

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Os dados trazidos pela autora confirma a importância de investigarmos a formação que está sendo oferecida aos professores durante a graduação, e ratifica o argumento que trazemos inicialmente sob o valor que devemos dar a formação política, que ainda é escassa, mesmo com o crescimento da área nos últimos anos, conforme apontado por pesquisadores da LA (LEFFA, 2013; RAJAGOPALAN, 2013; CORREA, 2014). Além da importância da formação política para atuação em sala de aula, Rojo (2013) acrescenta que existem vários campos em que os linguistas aplicados poderiam exercer suas funções.

A autora exemplifica: trabalhos que podem ser realizados acerca das línguas

minoritárias; trabalhos realizados juntos às associações políticas e agências de Fomento; trabalhos em estâncias maiores, como a criação de diretrizes de ensino e de políticas educacionais, e também localmente, em escolas, ou cidades, como por exemplo, no quadro II abaixo: Quadro II: Atuação política a nível macropolítico e micropolítico plausível a professores e pesquisadores. ATUAÇÃO POLÍTICA A NÍVEL MACROPOLÍTICO

ATUAÇÃO POLÍTICA A NÍVEL MICROPOLÍTICO

Atuação em cargos federais, como por exemplo, no

Colaboração para o projeto político pedagógico (PPP)

ministério da educação.

da escola em que atua

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Atuação em agências de Fomento

Elaboração de aulas contextualizadas com a realidade dos alunos

Realização de pesquisas acerca dos estudos sobre o

Participação em sindicatos regionais de professores

processo de ensino e aprendizagem de LI Atuação em sindicatos nacionais dos professores

Elaboração de projetos de ensino de LI tanto a nível local (ou regional) com os outros colegas da área

Participação em programas governamentais, como o

Busca constante pela formação continuada

PNLD, por exemplo. Fonte: Elaborado pelas autoras.

Como pode ser observado no quadro II, existem vários campos em que os linguistas aplicados poderiam atuar. Como afirma Garcez (2013), a formação acadêmica dos estudiosos da linguagem parece não contribuir suficientemente para a atuação política destes, o que possivelmente, justifica a baixa representatividade dos colegas da área em esferas políticas. Observamos então que além de inserir as disciplinas e proporcionar reflexões sobre as políticas públicas, é importante incentivar uma postura política em sala de aula, durante a formação inicial, para que a identidade de profissional politicamente engajado perpetue no exercício docente e se reflita em uma prática de ensino mais eficiente. Após ter apresentado a importância da formação política para o professor atuante no sistema de ensino, apresento na próxima seção os dados e discussões referentes a pesquisa realizada neste trabalho. Resultados e discussões A primeira matriz curricular analisada é da faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, localizada na região Sudeste. Em seguida apresentamos os dados da universidade localizada na região Sul. Por último, apresentaremos a discussão sobre a faculdade do CentroOeste. A última mencionada é a que oferece o curso de Licenciatura em Letras, em habilitação plena. Faculdade de Letras (Região Sudeste).

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A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas investigada na região sudeste oferece o curso de Licenciatura em Letras que é composto de oito semestres letivos mínimos, com duração máxima de doze. O Curso é feito de 780 horas de disciplinas obrigatórias, e os alunos devem cumprir mais 780 horas de disciplinas optativas livres. Além disso, são necessárias 120 horas de disciplinas optativas eletivas. Encontramos na matriz curricular desse curso apenas uma disciplina que está nomeada diretamente com um tema sobre PL. O título desta disciplina é “Políticas Linguísticas na América Latina” e está classificada como uma disciplina optativa livre que pode ser cursada no oitavo período, ou seja, na “reta final” da graduação. Foi encontrada, também, na matriz curricular de disciplinas obrigatórias uma matéria intitulada “Questões Sociolinguísticas do Inglês”, no quinto período do curso. Através do título da disciplina, é possível inferir que talvez exista a possibilidade de serem abordados temas relativos à politicas linguísticas. Em situação semelhante, encontra-se a disciplina intitulada “Tópicos da Linguística Aplicada”, que está classificada como uma disciplina optativa eletiva, oferecida no sétimo período letivo do curso e que, também, pode apresentar temas que envolvem a formação política aos alunos. No curso de Letras desta Faculdade é possível perceber que a única disciplina que poderia oferecer aos estudantes uma visão acerca das PL e PPE, ocorre no último período do curso e se apresenta como uma disciplina optativa, ou seja, não necessariamente o aluno vai ter acesso a ela até o término do seu curso. Além do mais, mesmo que o aluno opte por esta disciplina, acreditamos que o último período do curso talvez não seja prazo suficiente para o aluno desenvolver uma formação critica acerca do tema que influencie sua prática docente. Desta forma, acreditamos ser no mínimo questionável um curso composto de oito semestres letivos oferecer apenas três disciplinas relativas a formação crítica/política durante toda a graduação. Faculdade de Letras (Região Sul). O Curso de Licenciatura em Letras de uma universidade federal alocada na região Sul do país é composto de oito semestres letivos e tem como objetivo geral, de acordo com a

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informação vinculada no site oficial do curso, formar os alunos pedagogicamente e linguisticamente. A licenciatura, que é oferecida em horário vespertino, é composta de 55 disciplinas que estão divididas entre os eixos Português e Inglês. O curso é formado por 1800 horas em sala de aula, 400 horas de estágio curricular supervisionado, 400 horas de práticas curriculares vivenciadas ao longo do curso e 200 horas de atividades complementares. Além disso, requer que os estudantes cursem pelo menos 100 horas em formação livre. Ao verificar a matriz curricular do curso, pudemos encontrar uma disciplina que está diretamente ligada às políticas públicas intitulada “Educação Brasileira Organização e Políticas Públicas” e outras três disciplinas que podem estar relacionadas ao tema, que são: “Sociolinguística”, “Linguística Aplicada e Ensino da Língua Portuguesa” e “Linguística Aplicada e Ensino da Língua Inglesa I”. O fato de concentrar todas essas disciplinas no terceiro semestre letivo não colaboram para a formação contínua acerca deste assunto. Além do mais, novamente foi possível observar apenas uma disciplina relacionada diretamente ao tema de políticas, como na faculdade anterior, e outras três matérias co-relacionadas ao tema que podem vir a trabalhar discussões relacionados as políticas linguísticas, mas não necessariamente o farão. Apesar de esta ser a faculdade que ofereceu mais disciplinas relativas (direta ou indiretamente) as PPE e PL (quatro disciplinas em detrimento as outras faculdades que oferecem três), acreditamos que concentrar as disciplinas em um único semestre não seja o mais adequado, visto que os alunos estarão diante das discussões políticas apenas durante um período e possivelmente não terão oportunidades de retomar essas reflexões ao longo do curso. Acreditamos que o ideal seria uma formação que perpasse toda a trajetória acadêmica dos futuros professores. Faculdade de Letras (Região Centro-Oeste) O curso de Licenciatura em Letras de uma Universidade Federal locada na região CentroOeste do país é composto de oito semestres letivos e é ofertado no período da manhã. O curso oferece seis opções de habilitação em língua estrangeira, que o aluno deve escolher após cursar 75% das matérias em comum a todas as habilitações.

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O curso apresenta a seguinte carga horária: disciplinas de núcleo comum: 512 horas; matérias do núcleo específico 1680 horas; disciplinas do núcleo livre 256 horas; 400 horas de prática como componente curricular, e por último 200 horas de atividades complementares. Na matriz curricular do curso de Letras desta universidade, observarmos duas matérias que podem estar relacionadas à formação política para os graduandos. A primeira delas, em caráter obrigatório, a qual acreditamos estar direcionada ao tema discutido neste trabalho, é a disciplina intitulada: “Políticas Educacionais no Brasil” e a segunda, optativa, e que não está diretamente relacionada ao tema, que é a “Sociolinguística”. Ao analisar a matriz curricular do curso de Letras desta Universidade é possível observar apenas duas disciplinas que podem propiciar uma formação crítica/política aos futuros professores. Embora esta instituição ofereça a licenciatura plena em uma língua, parece não ter tido como preocupação principal a formação política. Ao realizar uma comparação entre as matrizes curriculares que foram analisadas, esta é a graduação que ofereceu o menor número de disciplinas sobre o tema dentre os três cursos investigados. Abaixo apresentamos um quadro comparativo com os dados analisados dos três cursos:

Quadro III: Visualização dos dados obtidos através da análise das três matrizes curriculares dos cursos de Licenciatura em Letras em diferentes regiões do país Curso

Títulos das disciplinas

Tipos das disciplinas

Universidade Federal localizada na Região Sudeste. A.

1)“Questões Sociolinguísticas do A. Inglês” 2)“Tópicos da Linguística Aplicada” 3)“Políticas Linguísticas na América Latina” 1) “Educação Brasileira Organização e Políticas Públicas” 2) “Sociolinguística” 3) “Linguística Aplicada e Ensino da Língua Portuguesa” 4) “Linguística Aplicada e Ensino da Língua Inglesa I” 1) “Políticas Educacionais no Brasil”

1) Disciplina obrigatória B. Disciplina optativa eletiva 3) Disciplina optativa livre

Universidade Federal localizada na Região Sul.

Universidade Federal localizada na Região Centro-Oeste.

2) “Sociolingüística Fonte: Elaborado pelas autoras.

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1) Disciplina obrigatória 2) Disciplina obrigatória 3) Disciplina obrigatória 4) Disciplina obrigatória

1) Disciplina obrigatória 2) Disciplina optativa


Através da tabela é possível verificarmos que a faculdade de Letras da Região Sul é a que mais oferece disciplinas relativas às PL, e a Universidade da Região Sudeste e da Região Centro-Oeste oferecem menos disciplinas, sendo que grande parte das matérias oferecidas são de caráter optativo. Considerações finais e sugestão para estudos futuros. Ao analisarmos as três matrizes curriculares estudadas nesta pesquisa é possível concluir que apesar dos cursos oferecem algumas disciplinas referentes a formação política linguísticas essas não estão presentes nas matrizes curriculares com notoriedade. Muitas vezes são disciplinas optativas ou apenas não estão estruturadas de forma a propiciar uma formação política/crítica contínua aos estudantes. Isso significa que, com base nos dados apurados neste estudo, os cursos de licenciatura em letras ainda não estão oferecendo uma formação política sólida e consistente aos alunos, assim como apontado por Fraga (2014). Sugerimos portanto, que os formadores de professores aproveitem as oportunidades de reformulação de matrizes curriculares dos cursos em que atuam para incluir disciplinas relativas as PL. Além disso, sugerimos também que até mesmo as disciplinas que não tragam esta temática como foco principal, possam ser lecionadas sob uma perspectiva crítica e política, com o objetivo de oferecer uma boa formação aos estudantes, Acreditamos que é através de uma formação sólida, política e crítica que poderemos contribuir para um processo de ensino e aprendizagem de qualidade. Sugerimos como estudos futuros, pesquisas mais abrangentes que verifiquem quais experiências de ensino referentes a PL estão sendo oferecidas aos estudantes. Além de estudos que investiguem a formação inicial, sugerimos pesquisas que demonstrem a importância da formação política e crítica aos graduandos para os formadores de professores, para que estes acreditem e vejam a importância de oferecer esta formação aos seus estudantes e possam lutar por melhorias nas matrizes curriculares dos cursos em que atuam e oferecem aos futuros professores de Línguas. Por fim, sugiro também trabalhos que demonstrem aos professores os aspectos políticos que estão envolvidos dentro do processo de ensino e aprendizagem de Línguas com o objetivo de que estes assumam as funções políticas necessárias dentro de seus espaços docentes.

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UM AUTOESTUDO SOBRE A TRAJETÓRIA DAS CRENÇAS DE UMA PROFESSORA DE INGLÊS EM FORMAÇÃO INICIAL Gabriela Vieira Pena Universidade Federal de Viçosa, gabriela.pena@ufv.br

Ana Maria Ferreira Barcelos Universidade Federal de Viçosa, anamfb@ufv.br

Resumo: O estudo sobre crenças tem crescido bastante, principalmente no que diz respeito às crenças de professores (pré e em serviço) e de alunos no ensino e aprendizagem de línguas (BARCELOS, 2006, 2007; LIMA 2005; VIEIRAABRAHÃO, 2004; CONCEIÇÃO, 2004). Este trabalho se caracteriza como um autoestudo (DINKELMAN, 2003; SAMARAS & FREESE, 2009; REZENDE, 2014), de natureza qualitativa, o qual permite a investigação das próprias práticas de ensino e de aprendizagem baseada nas experiências pessoais e profissionais de um professor em formação inicial. Este autoestudo teve por objetivos: a) investigar crenças presentes na experiência de aprendizagem de inglês de uma professora em formação inicial no curso de Letras de uma universidade federal da zona da mata de Minas Gerais; b) verificar se e de que forma esse conceito se relaciona à prática de ensino da professora e c) se essas crenças se modificam ao longo dessa trajetória. A fundamentação teórica baseou-se em estudos sobre crenças a respeito de ensino e aprendizagem de línguas (BARCELOS, 2007; ZEMBYLAS, 2006). Os resultados sugerem a supremacia da crença na habilidade oral como fator fundamental ao aprender a língua inglesa, crença essa que sofre ressignificações durante a trajetória. Além disso, foi possível compreender que as crenças enquanto aluna influenciaram de forma significativa a prática da participante em suas primeiras experiências de ensino de inglês. Palavras-chave: Crenças. Autoestudo. Formação de Professores.


1. Introdução Situado no âmbito dos Estudos Linguísticos em Linguística Aplicada (doravante LA), este trabalho apresenta um recorte dos resultados obtidos em uma pesquisa de Iniciação Científica financiada pelo programa PIBIC/CNPq e desenvolvida no Departamento de Letras da Universidade Federal de Viçosa. Tal pesquisa engloba estudos sobre crenças relacionadas ao ensino e aprendizagem bem como sobre a formação de professores de língua inglesa (doravante LI). No campo da LA, tem sido marcante o número de trabalhos sobre crenças de professores (pré e em serviço) e de alunos no ensino e aprendizagem de línguas (BARCELOS, 2006, 2007; LIMA 2005; VIEIRA-ABRAHÃO, 2004; CONCEIÇÃO, 2004); e também sobre as emoções presentes na sala de aula (SÓ, 2005; GARDNER & LAMBERT, 1972; WRIGHT, 2006). Porém, tal campo carece de estudos que focam a relação entre esses conceitos. Assim, este trabalho se justifica pelas seguintes razões. Em primeiro lugar, por fornecer informações que auxiliam na formação de professores uma vez que as crenças podem influenciar as identidades profissionais e a forma pela qual os futuros professores irão atuar no mercado de trabalho. Em segundo lugar, por reconhecer que as crenças presentes nessa trajetória podem moldar as ações que dizem respeito ao empenho dos futuros professores durante os cursos de graduação. Além disso, difere-se da maioria dos estudos sobre professores, pois caracteriza-se como um autoestudo (SAMARAS, 2011), o qual proporciona autorreflexão e análise ativas das próprias experiências de ensino e aprendizagem de uma professora em formação inicial. Por fim, esta pesquisa pretende despertar o interesse pelos estudos de crenças a partir de um ponto de vista dinâmico, contribuindo para a área de ensino de línguas. Este trabalho longitudinal teve por objetivo investigar a minha própria trajetória de ensino e aprendizagem de língua Inglesa enquanto aprendiz e professora em formação inicial no curso de graduação em Letras entre os anos de 2014 e 2016, tendo por foco minhas crenças e emoções bem como a relação entre esses conceitos. Entretanto, por questões de espaço e tempo, neste artigo abordo apenas minhas crenças.

2. Metologia

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Este trabalho é identificado como um autoestudo, um tipo de pesquisa já bem consolidado no exterior (DINKELMAN, 2003; SAMARAS & FREESE, 2009); porém ainda pouco explorada no Brasil (REZENDE, 2014). O autoestudo é um tipo de pesquisa qualitativa onde o professor investiga e reflete através de e sobre suas próprias experiências (DINKELMAN, 2003) a fim de entender sua própria prática, além de sua trajetória de ensino e aprendizagem.

2.1 Instrumentos de Coleta de Dados Para a realização do trabalho, foram utilizados os seguintes instrumentos de coleta de dados: a) Narrativas escritas: A primeira1 foi escrita em junho de 2014, na qual registro os primeiros contatos com a LI e as demais experiências relacionadas a esta língua estrangeira até o quinto período da graduação. A segunda2, escrita em julho de 2015 em inglês, abrange as experiências vivenciadas por mim durante um curso de treinamento de professores de Inglês e suas contribuições para meu desenvolvimento profissional e linguístico. b) Diários: Ao total foram mantidos dois diários escritos originalmente em Inglês. O primeiro3, datado de agosto a dezembro de 2014 com 47 entradas, no qual registro os momentos de contato com a LI durante um intercâmbio realizado em Nova York, além de relatar as crenças, emoções e expectativas que eu apresentava sobre o tempo de imersão em um país falante da LI. O segundo4, de agosto de 2015 a junho de 2016 com 64 entradas, apresenta anotações sobre minhas primeiras experiências como professora de Inglês em um projeto de ensino e extensão. Para a análise qualitativa dos dados, foram realizadas as etapas de redução dos dados em frases curtas e conceitos chaves, com foco nas palavras utilizadas pela participante

1

NA – Narrativa de Aprendizagem NTP – Narrativa sobre o Curso de Treinamento de Professores 3 DA – Diário de Aprendizagem 4 DEE – Diário das experiências de Ensino 2

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(CRESWELL, 1998; PATTON, 1990), codificação dos dados a partir das unidades significantes (LINCOLN & GUBA, 1985) e agrupamento das unidades semelhantes em categorias maiores, as quais foram revisadas repetidamente.

2.2 Descrição dos contextos e da participante Visto que o autoestudo caracteriza a investigação de um participante principal que investiga sua própria prática (REZENDE, 2014), apresento, nesse momento, meu breve perfil pessoal e profissional enquanto participante dessa pesquisa. Tenho vinte e três anos e moro em uma cidade da zona da mata de Minas. Estudei o ensino fundamental e médio em uma escola pública da cidade em questão, onde o ensino de inglês era praticamente escasso, e nunca havia tido contato com cursos privados de inglês até ingressar em uma universidade da zona da mata mineira. Em 2012, movida pela crença de que o inglês é, além de uma língua reconhecida mundialmente, uma língua privilegiada no que diz respeito às oportunidades de emprego, dei início à minha formação profissional no curso de licenciatura em Letras com habilitação dupla Português/Inglês nessa universidade. Nos primeiros períodos do curso, tive um pouco de dificuldade em me ver enquanto estudante desta língua e, por algumas vezes, pensei em desistir do curso por não me sentir capaz de aprender a LI. No primeiro semestre de 2013, iniciei como aluna de um curso de extensão em língua inglesa, um programa de extensão da própria universidade que tem como objetivo proporcionar a oportunidade de estágio para alunos do curso de Letras com habilitação em inglês a partir do ensino de LI, onde pude aprofundar meus conhecimentos da LI e despertar meu interesse por ensinar inglês. Em agosto de 2014, realizei uma viagem para os Estados Unidos com o intuito de aprofundar os conhecimentos da língua, e por lá estudei durante quatro meses em um curso privado de inglês localizado em Manhattan, onde concluí o nível avançado do curso. Ao voltar para o Brasil, dei início a um curso de treinamento de professores oferecido pelo curso de extensão, anteriormente mencionado, que durou um período acadêmico e teve como objetivo preparar os alunos de Letras para o ensino de inglês como possíveis futuros professores do curso. No segundo semestre de 2015, iniciei como professora de inglês no

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referido curso de extensão onde tenho lecionado por um ano e meio nos níveis iniciais e esta tem sido minha primeira experiência com o ensino de LI. Por toda essa trajetória de resistência à aprender a LI desde que ingressei no curso de Letras e superação, vi o autoestudo como uma possibilidade de, através de uma visão longitudinal deste processo, investigar e refletir sobre minha própria prática enquanto aluna e professora pré e em serviço afim de compreender como as minhas crenças influenciaram a forma pela qual me posicionei em cada etapa durante essa trajetória. 3. Revisão de Literatura Nesta seção, discuto teoricamente o conceito de crenças que é fundamental para o desenvolvimento e compreensão deste trabalho. 3.1 Crenças sobre ensino e aprendizagem de línguas A pesquisa sobre crenças teve início nos anos 90 com estudos a respeito de alunos (BREEN, 2001; BARCELOS & KALAJA, 2003), e principalmente de professores de línguas em formação inicial (SILVA, 2000), professores em serviço (KUDIESS, 2005; ROLIM, 1998; REYNALDI, 1998), e professores em formação inicial – em serviço (GIMENEZ, 1994; NONEMACHER, 2002; SILVA, 2004; GRATÃO, 2006). No que diz respeito ao momento atual, alguns dos estudos carecem de teorias que englobam uma abordagem sociocultural (BARCELOS & KALAJA, 2011) sobre crenças, bem como estudos que abordem os conceitos de crenças e emoções de forma interligada. O conceito de crenças tem sido amplamente discutido no Brasil e existem várias definições para o termo (vide BARCELOS, 2003; BARCELOS, 2004, 2006). Neste trabalho, adoto a definição de crenças como: [...] uma forma de pensamento, como construções da realidade, maneiras de ver e perceber o mundo e seus fenômenos, co-construídas em nossas experiências resultantes de um processo interativo de interpretação e (re) significação. Como tal, crenças são sociais (mas também individuais), dinâmicas, contextuais e paradoxais. (BARCELOS, 2006:18)

Esse conceito de crenças compreende sua essência e traz contribuições para o contexto sociocultural envolvido no processo de ensino e aprendizagem de línguas. As crenças são assim

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definidas como sócio-cognitivas, dinâmicas e submetidas ao contexto ao qual estão inseridas, exercem um papel fundamental tanto no ensino quanto na aprendizagem de línguas e se relacionam de forma complexa com as emoções (ARAGÃO, 2011; ZEMBYLAS, 2006; BRACELOS, 2013, 2015) e com as ações que envolvem esse processo. Neste sentido, as crenças possuem caráter interativo, social e contextual pois são construídas a partir das experiências de um indivíduo no ambiente em que está inserido, de suas normas sociais e da influência e orientação de outros e, como consequência dessa interação, as crenças podem afetar a forma pela qual uma pessoa interpreta a si mesma, ao mundo e aos seus comportamentos. 4. Resultados e discussão Visando a melhor organização das discussões dos dados, a minha trajetória de ensino e aprendizagem de Inglês durante esses anos (2014-2016) foi classificada em três períodos: 1- Período 1: O momento em que me caracterizava apenas enquanto aprendiz5. Esse período compreende, principalmente, os primeiros contatos com a língua através do curso de Letras e a fase de estudos no exterior e foi analisado através da primeira narrativa e do primeiro diário. 2- Período 2: Diz respeito ao momento mais direcionado à formação profissional através de um curso de treinamento de professores, caracterizando o período como professora em formação inicial, mas também já iniciando minha atuação, analisado através da segunda narrativa. 3- Período 3: Momento das primeiras experiências de ensino de Inglês em um curso de extensão; registrado no segundo diário. Por meio de análise das narrativas e diários sobre os momentos de contato com a LI, foi possível identificar a crença sobre o desenvolvimento da habilidade oral da língua, já que a crença sobre a importância da habilidade oral se manteve presente durante toda a esta trajetória do processo de aprender e de ensinar a LI. Essa crença na importância do desenvolvimento da habilidade oral em oposição às demais (fala, escrita, compreensão oral), foi identificada como 5

Essa divisão é apenas para ter uma organização didática dos períodos, já que a fase de aprendiz na verdade, não se apenas ao Período 1, mas perpassa todas as outras até o momento atual.

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fonte de motivação e objetivo para aprender a segunda língua. Para melhor ilustrar essa crença, destaco alguns excertos retirados das narrativas e diários: Excerto 1 Sobre as nativas, a gente tem a oportunidade maravilhosa de poder ter aula de conversação com elas. É muito importante ter um espaço a mais para treinar nossas habilidades orais. [...] Eu tento ir em todos os “Conversation Club”, porque é muito engrandecedor pra mim, eu aprendo vocabulário, pronúncia, e ainda desenvolvo minha oralidade. [...] Não tem nada mais legal pra mim do que quando consigo conversar com uma delas em inglês, mesmo que seja trocar duas ou três frases [...]. (NA, 2014) Excerto 2 Eu podia aprender como me comportar como uma professora e tudo isso de uma forma interativa, o que também me ajudou muito a melhorar minha habilidade comunicativa. (NTP, 2015, tradução minha)

Conforme ilustra o excerto 1, as primeiras experiências vivenciadas com o Inglês já apontavam a valorização do desenvolvimento da oralidade como um dos aspectos fundamentais à aprendizagem da língua ainda no primeiro período da trajetória. Nesse trecho da narrativa, relato o contato que tive com as English Teacher Assistants durante o quinto período da graduação e caracterizo esse contato como uma “oportunidade maravilhosa”, algo “muito importante” e “muito engrandecedor” para mim, enfatizando-o como importante para que eu aprendesse e praticasse a oralidade. Nota-se nesse excerto que usar e aprender a língua seria, prioritariamente, o desenvolvimento e a aquisição da modalidade oral. Além disso, no excerto 2, a preocupação em desenvolver a oralidade continua presente no segundo período da trajetória, o de treinamento enquanto professora de LI. O treinamento, conforme narrei, proporcionava, além de conhecimentos teóricos e práticos sobre o ensino, a melhoria da habilidade comunicativa durante este processo, unindo-se à crença de que o professor deve ser fluente e possuir domínio do Inglês. Como consequência da crença da primazia da habilidade oral, um dos aspectos no qual eu prestava atenção enquanto aluna era a metodologia adotada nas aulas. No primeiro dia de aula no exterior, registro no excerto 3a forma pela qual um cartaz que estava em sala de aula chama minha atenção: Excerto 3

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O que eu mais gosto na aula foi uma propaganda “Você terá os alunos falando mais e o professor menos”. Isso é exatamente o que eu vi em aula. Nós temos que falar o tempo todo. Especialmente porque ninguém ali fala a mesma língua e nós precisamos nos comunicar uns com os outros. (DA 15/09/14, tradução minha)

Possivelmente esse cartaz tenha proporcionado uma identificação entre o ideal do curso privado e o meu próprio enquanto aprendiz, no que concerne as estratégias de aprendizagem. Realço no excerto 3que eu estava satisfeita com a metodologia e a abordagem adotadas pelo curso pois, daquela forma, os alunos eram obrigados a utilizar a língua alvo em sala de aula uma vez que esta era a única forma de comunicação entre nós, já que cada um possuía uma nacionalidade diferente. Pode-se afirmar que, nesses momentos, o uso da língua era validado quando aparecia de forma oral e, assim, usar a LI seria, principalmente, falar. Além disso, essa crença corrobora para as crenças de que: a) desenvolver a aprendizagem do Inglês é praticar a habilidade de fala; e b) o aluno deve dominar o turno da fala em sala de aula. No que refere a ressignificação dessa crença entre os períodos, tanto no período enquanto aprendiz quanto no período 3, enquanto professora, a preocupação com a oralidade se manifesta em relação à proficiência linguística exigida para o professor de língua Inglesa. Em ambos os períodos, o domínio total da LI pelo professor em serviço é reforçado, conforme narro nos excertos 4 e 5 que seguem: Excerto 4 Lembro que a professora parecia não conhecer bem o idioma e, portanto, não tinha muita coisa para dar. (NA) Excerto 5 Eu pensei: “Agora, eu sei um pouco mais de Inglês, mas eu não acho que isso é suficiente para ser professor, eu posso aprender com o curso, mas eu não sei se eu estou preparada para ensinar as pessoas, talvez eu não tenha conhecimento suficiente” (NTP, 2015, tradução minha).

Nos excertos acima, retirados respectivamente da narrativa sobre os primeiros contatos com a língua enquanto aprendiz e da narrativa escrita no período de treinamento, aparece registrada a crença da necessidade de se ter domínio da língua que se ensina. Durante o período 2, como mostra o excerto 5, mesmo que o treinamento fosse visto como uma oportunidade de desenvolver também a habilidade oral, eu não me sentia capaz de

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ensinar, pois considerava minha proficiência linguística insuficiente para tal. Esse momento retoma a crença sobre o professor que também apareceu na narrativa no período 1logo nos primeiros contatos com a LI ainda na escola pública, onde eu reforçava o quão importante era o professor ser proficiente naquilo que ensina (excerto 4). Ao relatar esses primeiros contatos com a língua alvo, menciono a crença que eu tinha da professora daquela disciplina. No excerto 4, deixo clara a minha crença de que, para ser um bom professor, é necessário ter domínio sobre a língua, além de demonstrar insatisfação quanto a professora. Portanto, se o professor não conhece bem o idioma, ele não está apto a ensinar ou não pode ensinar o conteúdo de forma eficaz. Nesse sentido, minhas crenças enquanto aprendiz influenciam de forma direta meu comportamento e minhas crenças enquanto futura professora. Assim, essa é uma crença possivelmente arraigada desde o início do percurso de aprendizagem, conforme sugere o excerto 4 e que permanece durante os próximos períodos na trajetória. No último período da trajetória, com foco nas minhas primeiras experiências enquanto professora de LI em um curso de extensão, por se tratar de um período em que o foco é o próprio período de atuação profissional, as crenças aparecem mais diretamente direcionadas ao próprio processo e ambiente de ensino e aprendizagem. Assim, como reflexo das minhas crenças enquanto aluna, valorizo a importância de falar inglês em sala de aula no momento de atuação profissional, tanto por parte dos alunos quanto por minha parte: Excerto 6 Eu acho que eu continuo falando em Português em sala de aula e eu preciso de me observar para falar mais em Inglês porque isto é importante para mim e para meus alunos. (DEE 09/10/15, tradução minha) Excerto 7 Hoje eu coloquei meus alunos para falar bastante em sala de aula. Às vezes eu acho que eles têm dificuldade para falar. Então, eu fiz várias atividades de conversação e, para a minha felicidade, percebi que eles estavam falando mais que antes e que eles não estão mais envergonhados por conversar com os colegas. (DEE 06/11/15, tradução minha)

Nesses excertos, retomo a fala sobre a valorização da prática oral em sala de aula. No excerto 6, tem início uma cobrança pessoal pelo fato de estar falando em Português no momento das aulas enquanto eu deveria estar utilizando a LI, tanto para meu benefício, quanto para o dos próprios alunos. Além disso, assim como eu reconhecia a dificuldade que tinha para falar inglês

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no período de aprendizagem, tento facilitar o desenvolvimento da habilidade oral dos meus alunos por meio de atividades de conversação, como comprova o excerto 7. Entretanto, apesar da crença na oralidade enquanto habilidade fundamental, acredito que a gramática como aspecto linguístico deveria ser explicada em Português: Excerto 8 Eu comecei a explicar a eles sobre o Presente Simples, nesse momento eu falei em Português, eu não sei porque, mas eu acredito que é mais fácil para eles entenderem e eu acho que gramática é muito importante e eles têm que ter isso em mente. (DEE 19/08/15, tradução minha)

No excerto 8, é possível notar que a crença de que os aspectos gramaticais devem ser ensinados na língua materna entra em contradição com a crença anterior sobre a superioridade da fala na LI. Na nota do dia dezenove de agosto de 2015, menciono uma mudança de comportamento a respeito ao uso da língua alvo em sala de aula. Mesmo me cobrando a usar a LI, como anteriormente mencionado durante os períodos 1 e 2, passo a me posicionar de forma diferente ao que acredito devido à crença de que ensinar gramática na língua materna facilita a compreensão do tópico pelos alunos. Além disso, aponto a gramática como um aspecto importante para a aprendizagem. Sendo assim, a crença maior de que se deve falar inglês em sala de aula é colocada em segundo plano no momento em que opto por falar português como uma estratégia didática para facilitar o ensino. Apesar desse conflito entre as crenças, o sistema de crenças não é alterado e a ideia central da importância da oralidade não é extinta ou invalidada, pois esta se caracteriza como principal e enraizada e, portanto, difícil de ser removida ou alterada, principalmente por dizer respeito às experiências pelas quais estive envolvida desde o início da trajetória com a LI. Isso está relacionado ao sistema de crenças, conforme proposto por Rokeach (1968, apud BARCELOS, 2009), no qual a crença central de que usar a língua significa se comunicar oralmente, está intrinsicamente ligada às crenças periféricas detectadas no meu sistema de crenças como, por exemplo, de que a habilidade oral é mais importante que as demais, que o professor tem que ter domínio oral da língua e que ambos, professores e alunos, devem usar a língua alvo em sala de aula para se comunicar, pertencendo o direito de turno maior da fala ao aluno.

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5. Conclusões Conforme proposto em um dos objetivos dessa pesquisa, foi possível identificar uma crença dominante durante minha trajetória enquanto aprendiz e professora pré-e-em-serviço de língua inglesa, a qual diz respeito ao desenvolvimento da habilidade linguística oral. Considerando a crença sobre a supremacia da oralidade para o processo de ensino e de aprendizagem de LI, pode-se afirmar que essa crença sofreu ressignificações durante o percurso analisado. No período 1, a crença de que aprender a LI é aprender e ser capaz de comunicar-se oralmente impulsiona a crença de que o aluno deve falar em inglês o tempo todo em sala de aula. Consequentemente, dei início a uma cobrança pessoal de que eu deveria desenvolver a habilidade oral enquanto aluna, já que estava aprendendo a LI. Nesse sentido, nas situações em que tinha uma boa relação com a oralidade, conseguia me comunicar em Inglês e me ver enquanto usuária da língua. Essa crença permaneceu durante toda a trajetória. Porém, no período 2, a crença na oralidade volta a superfície relacionada, dessa vez, ao perfil do professor de inglês ideal, aquele que deve dominar a LI e ser fluente. Essa crença colabora para minha cobrança pessoal não apenas enquanto aluna, mas como futura professora da língua. Nesse período, mesmo participando de um curso de treinamento de professores, e sentia insegura quanto a proficiência linguística, fazendo com que eu me visse como alguém que não estava preparada linguisticamente para o ensino de língua. Por fim, no período 3, a crença aparece relacionada diretamente ao ensino uma vez que eu estava atuando enquanto professora e, como consequência, tentava proporcionar oportunidades para que meus alunos pudessem desenvolver a habilidade oral em sala de aula ao mesmo tempo em que eu me observava para falar inglês o máximo que eu pudesse. Acredito que este autoestudo auxiliou em minha reflexão como aprendiz e professora, uma vez que foi possível reconhecer os motivos das escolhas das minhas ações enquanto professora em formação, estando minhas crenças enquanto aprendiz influenciando diretamente minha atuação em sala de aula. A partir dessa pesquisa foi possível compreender melhor a prática de ensino e aprendizagem da LI e um dos fatores que podem interferir e guiar a forma pela qual lidamos com as experiências desta trajetória, no caso, as crenças, reconhecendo o

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ensino de língua como atividade de reflexão e de interpretação das próprias experiências (BARCELOS, 2006). Este trabalho traz implicações importantes para formadores de professores de LI. A partir dos resultados, os professores formadores poderão conversar com seus alunos a respeito das crenças e da forma como elas moldam os processos de ensinar e aprender uma segunda língua, bem como propor atividades para auxiliar os alunos a observarem e se aventurarem na compreensão de suas próprias crenças durante a trajetória de aprendizagem e de ensino da língua.

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O DESEJO DE SER PROFESSOR DE INGLÊS: QUEM SÃO, DE ONDE VIERAM E PARA ONDE VÃO OS PROFESSORES EM FORMAÇÃO INICIAL Jamylla Barbosa Moreira Mestranda em Linguística Aplicada- UFV, jamyllabm_08@yahoo.com.br

Resumo: Atualmente existe um decréscimo no interesse pelas licenciaturas e alguns alunos ao se formarem em Letras não querem dar aulas e buscam empregos em outros setores (GATTI, 2010; GIMENEZ, 2013). Entretanto, pode-se dizer que há alunos que logo ao ingressarem no curso desejam ser professores de inglês e manifestam a vontade de experenciar esta prática. Este artigo tem como objetivo identificar como se constitui o desejo de ser professor de língua inglesa dos alunos em formação inicial do curso de Letras que escolheram esta habilitação. O referencial teórico baseou-se nos estudos sobre o desejo e identidade no ensino/aprendizagem de língua estrangeira (PAÍN, 1996; RAJAGOPALAN, 1998; SOUZA, 2011; FERNANDES, 2006; SALUM, 2007; LEMKE, 2008; ARAGÃO, 2008, MOTHA, 2014). O instrumento de coleta de dados utilizado foi uma narrativa escrita dos participantes de um treinamento oferecido aos que querem atuar como professores de inglês em um curso de extensão oferecido em uma universidade no interior de Minas Gerais. O resultados sugerem que apesar de pouca atratividade na carreira docente, os participantes já manifestam logo o desejo de serem professores ao ingressarem no curso. Percebeu-se que esse desejo está relacionado à motivações e crenças sobre o ensino anteriores a sua formação, tais como interesse na língua e por sua cultura, experiências negativas e/ou positivas como aprendiz da língua, incentivo familiar ou contato com a prática de ensino. Esses fatores, aliados ao desejo, contribuem para a formação de sua identidade enquanto professor em pré-serviço de inglês. Palavras-chave: Desejo. Identidades. Formação de Professores. Língua Inglesa.


1. Introdução: Como professora de Língua Inglesa (LI), percebo que muitos dos meus colegas de profissão que se formaram e começaram a dar aulas, principalmente em escolas, ficam desmotivados com essa profissão e acabam exercendo outra carreira, seja por condições financeiras ou sociais, ou por desafios, como a indisciplina e falta de recursos didáticos. Segundo Gimenez (2013), apesar de o nosso país formar muitos profissionais para a área de línguas, existe um decréscimo no interesse pelas licenciaturas, e muitos formandos não querem dar aulas e buscam empregos em outros setores. Entretanto, apesar da pouca atratividade na carreira docente, pode-se dizer que há alunos que ao ingressarem no curso de Letras desejam ser professores de inglês; muitos deles com pouco idade já manifestam este desejo. A transição de ser aluno para ser professor, segundo Flores (2000), encontra-se marcada pela interação complexa entre suas perspectivas, experiências de aprendizagem, motivações, anseios, crenças e práticas distintas e, por vezes, conflitos, que implicam na (trans)formação de suas identidades. O autor afirma ainda que os futuros professores possuem um conjunto de “representações” (Flores, 2000, p. 10) e de ideias sobre o processo de ensino, sobre o que significa ser professor e o tipo de docente que gostariam de ser conforme lhe foi interiorizado ao longo e/ou paralelamente a sua trajetória escolar. Para Isaia e Bolzan (2009), os processos formativos são construídos a partir de experiências vividas pelos sujeitos/professores. No âmbito das pesquisas em Linguística Aplicada (LA) sobre a formação de professores de língua estrangeira (LE), a identidade de um indivíduo é vista como um construto das práticas sociais, na linguagem e através dela. (RAJAGOPALAN, 1998; MOITA LOPES, 2002). Percebe-se que a identidade profissional dos participantes se desenvolve em um processo de construção estabelecido ao longo da história pessoal imbricado em relações socialmente constituídas associadas ao seu processo de ensino e aprendizagem de LI anteriores a sua formação. Para Lemke(2008), nós somos o que desejamos, assim, é interessante conhecer como se constitui o desejo pela prática docente e quais experiências contribuem para a construção das identidades do professor em formação (SALUM, 2007). As pesquisas que se ocupam de questões relacionadas ao desejo e identidades podem fornecer subsídios teóricos e práticos para compreender e refletir sobre as expectativas e intenções dos (futuros) professores de línguas em sua formação (VIEIRA-ABRAHÃO, 2001;

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PAIVA, 2005; CELANI, 2010). Assim, este artigo tem como intuito identificar como se constitui o desejo de ser professor de LI dos alunos em formação inicial. Este estudo qualitativo foirealizado com alunos de Letras da habilitação de inglês, participantes de um curso treinamento de professores, para atuarem em curso de extensão pertencente a uma aniversidade no interior do estado de Minas Gerais, o qual consiste em uma formação pedagógica e estudo sobre abordagens de ensino e aprendizagem dessa língua.

2. Objetivos 2.1 Objetivo Geral Este estudo tem como objetivo principal identificar como se constitui o desejo de ser professor de inglês dos alunos em formação inicial que estagiam em um curso de extensão de LI pertencente a uma universidade Fedeal de Minas Gerais.

2.2 Objetivos específicos a) Investigar como se constitui o desejo de ser professor de LI dos alunos em formação inicial; b) Identificar quais fatores são citados por esses alunos que influenciam em seu desejo de serem professores; c) Conhecer os desejos dos participantes para a sua futura prática no referido curso de extensão de inglês. Na próxima seção, será apresentado a metodologia utilizada neste estudo.

3. Metodologia Nesta seção, em primeiro momento, apresento a natureza da pesquisa, o contexto e os participantes deste estudo; em seguida, discorro sobre o instrumento de coleta utilizado: a narrativa escrita. Por fim, explico os procedimentos utilizados na análise dos dados.

3.1 Natureza da pesquisa Esta é uma pesquisa de natureza qualitativa. Neste tipo de pesquisa “o trabalho de descrição tem caráter fundamental em um estudo qualitativo, pois é por meio dele que os dados

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são coletados” Manning (1979, p.68). Assim, deve-se ter como foco a intenção de buscar compreender o fenômeno, observando minuciosamente cada detalhe nas informações obtidas. Ainda segundo o autor, esta é uma ação importante na pesquisa qualitativa, e quanto mais o pesquisador se apropria de detalhes, melhor compreende-se a experiência que foi compartilhada pelo participante.

3.2 Contexto e Participantes O estudo foi realizado no contexto de um projeto de ensino, pesquisa e extensão, que oferece cursos curso de extensão para a comunidade universitária em uma universidade federal localidada no interior de Minas Gerais. O curso de extensão iniciou-se em 1998 a partir da iniciativa de professores do departamento de Letras, a qual ele está vinculado e tem por objetivo auxiliar no aperfeiçoamento profissional dos estudantes, através da oferta de curso de LI a baixo custo para a comunidade. Antes de começarem a lecionar, entretanto, os candidatos são selecionados, primeiramente por uma entrevista e em seguida participam de um curso de treinamento com noções básicas sobre ensino das habilidades da língua, gramática e gerenciamento de sala. Os participantes deste estudo são alunos em formação inicial do curso de Letras que escolheram a habilitação de LI. Eles foram selecionados em uma entrevista para participar do treinamento. Vinte e um estudantes se candidataram e foram aprovados, sendo que a maioria deles está nos anos iniciais do curso de Letras; quatro desses estão no estágio final de sua formação. A faixa etária é entre 17 a 23 anos de idade. Dentre os participantes, apenas três já haviam atuado como professores particulares de inglês antes de ingressarem no curso de Letras. Além disso, todos fizeram curso de inglês paralelo e/ou depois ao seu processo de aprendizagem na escola.

3.3 Instrumentos de coleta de dados O instrumento de coleta de dados utilizado nesta pesquisa foia narrativa escrita. De acordo com Vieira-Abrahão (2004), a narrativa escrita, é bastante utilizada nos estudos qualitativos na LA e procura compreender, explorar ou descrever acontecimentos e contextos complexos, além de propiciar aos futuros professores o conhecimento sobre os processos

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formativos, bem como o reconhecimento da formação como espaço para desenvolvimento da reflexão crítica. Ao narrar suas histórias de vida, suas trajetórias pessoais e/ou profissionais, os sujeitos da pesquisa permitem investigar suas concepções, práticas, conhecimentos, e significados de aprendizagens durante sua formação. Conforme Telles (2002), este tipo de pesquisa, favorece a participação ativa dos sujeitos pesquisados à medida que possibilita o maior controle sobre as escolhas e os recortes das informações repassadas ao pesquisador. Solicitei aos alunos em um de seus encontros semanais que escrevessem uma narrativa escrita sobre o seu processo de ensino e aprendizagem de inglês relatando fatos, acontecimentos, episódios e pessoas que possam ter motivados e influenciados de algum modo em seu desejo de ser professor de LI. Para isso, eles receberam um guia com algumas perguntas para ajudá-los a narrar a sua história e experiências positivas e negativas no seu processo de aprendizagem de LI na escola; seus desejos de serem professores de LI; as experiências e/ ou expectativas em relação à prática de ensino. A narrativa foi pedida no início mês de abril de 2016 e foram entregues no final do mesmo mês. Apesar de serem 21 alunos, somente 11 me enviaram suas narrativas. Desses, três estão em estágio final de sua formação, os outros são calouros. De acordo com os procedimentos éticos de pesquisa, antes de iniciar a coleta de dados, foi enviado um termo de consentimento detalhando como funcionaria a pesquisa para professora responsável pelo treinamento. Além disso, cada participante assinou um termo de compromisso permitindo sua participação neste estudo. Todos foram identificados por um pseudônimo escolhido por eles.

3.4 Análise dos dados A análise dos dados foi feito de acordo com os parâmetros de análise qualitativa (Patton, 1990), em um primeiro momento, li todas as narrativas buscando identificar categorias significativas de análise mais recorrentes em relação ao contato com o inglês, na escola e/ou seu cotidiano; expectativas como professor; experiências que os motivaram a lecionar; e o desejo pela prática de ensino em seu processo de formação inicial. Após essa primeira identificação, procurei agrupar as de maior ocorrência em categorias maior referentes ao desejo

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de ser professor desses alunos e as experiências anteriores à sua formação que contribuíram para a construção de sua identidade profissional. Tendo descrito a metodologia, a seguir apresento o referencial teórico eu que este artigo se baseia.

4. Revisão bibliográfica Segundo Fernandes (2006), embora exista uma vasta literatura acerca da formação de professores, em especial de LE, esse assunto ainda exige novas discussões visando a uma formação profissional significativa ao contexto atual de ensino (TELLES, 1999, 2004; ABRAHÃO, 2001; GIMENEZ, 2004; MATEUS, 2005; CELANI, 2010). Uma das discussões mais presentes na formação de professores diz respeito ao conceito de identidades e emoções. Para Dublar (1997) apud Calvo (2013), a identidade é um produto de contínuas socializações vivenciadas pelo indivíduo desde seu nascimento, pois em suas diversas dimensões, o profissional se desenvolve na relação com o seu meio social. Sendo assim, ela não é estável, mas dinâmica, ou seja, está em contínuo processo de construção. Lemke (2008) enfatiza o caráter múltiplo da identidade, pois “agimos de modo diferente com as crianças e com nossos parceiros, em situações formais e informais, em nossos ambientes profissionais e pessoais” (LEMKE, 2008, p.18- minha tradução)1. Ele afirma que sentimentos como o desejo e o medo podem influenciar a maneira de ser do sujeito: “Nós somos o que tememos, somos o que desejamos. ‘Quem somos nós?’ É a questão básica de identidade”2 (LEMKE, 2008, p.26minha tradução). O papel do desejo na construção das identidades começou a ser desenvolvido pela teoria feminista, entretanto, relacionada ao gênero (BUTLER, 1993). De acordo Lemke (2008), em uma perspectiva sócio-cultural, os valores e pretensões do indivíduo são fundados no desejo, pois através do tempo e situações em nossas vidas, podemos ter anseios e desejos recorrentes que moldam nossas identidades. A partir disso, torna-se necessário discutir sobre a constituição do desejo, bem como a identidade do professor à luz da LA.

1

We act differently with children and with peers, in formal situations and informal ones, in our professional settings and in our intimate settings (LEMKE, 2008, p. 26). 2 We are what we fear, we are what we desire. 'Who are we?' is the basic question of identity(LEMKE, 2008, p. 26).

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4.1 Desejo Para Motha (2014), apesar da sua centralidade dentro da prática TESOL (Teaching English to Speakers of OtherLanguages3), a construção do desejo não recebe ainda grande atenção como nos estudos culturais (Ahmed, 2004), estudos pós-coloniais (Young, 1995), estudos feministas (Kristeva, 1980), filosofia (Deleuze e Guattari, 1977), e da psicanálise (Lacan, 1977). De acordo com o autor, tais teorias reconhecem a importância de discutir de forma intrínseca o entendimento da condição humana. No entanto, o desejo, por vezes, tem sido sub-teorizado nos estudos de segunda língua (L2). Conforme Paín (1996), o desejo no processo de ensino e aprendizagem não é de “pulsão”, mas se refere ao desejo do outro, do mundo e/ou de si próprio. No entanto, ainda são poucos os estudos sobre essa temática no campo da LA.Segundo Fernández (1991), é importante relacionar aos estudos sobre ensino e aprendizagem de LE questões ligadas aos desejos inconscientes, habitualmente estudadas isoladamente, pois o sujeito é caracterizado como desejante, movido por um querer, marcado por representações atribuídas as suas experiências e/ou ao discurso do outro. ParaMotha (2014), no processo de ensino e aprendizagem de LI, o desejo associa-se à vontade de aprender o idioma, às identidades culturais que a língua representa e às imagens do indivíduo associadas ao uso dessa língua. De acordo com Andrade (2008), o desejo é moldado a partir de uma necessidade “criada” e expressado a partir de “algo causador do desejo” (ANDRADE, 2008, p. 15), que se refere a uma energia criadora que impulsiona o sujeito, colocando-o em transformação. Assim, é importante que se compreenda não somente o que queremos, mas porque queremos algo, e quais as expectativas e motivações que impulsionam nossos anseios (AHMED, 2004 apud MOTHA, 2014).

Assim, como o desejo, as identidades estão sempre em formação e

representam uma re-significação de valores e atitudes por parte dos futuros professores (SALUM, 2007).

3Ensino

de inglês para falantes de outras línguas (minha tradução). TESOL é uma organização internacional de profissionais a fim de avançando a qualidade do ensino de Inglês, através do desenvolvimento profissional, pesquisa, normas, e advocacia. (Disponivél em :www.tesol.org/about-tesol/association-governance#sthash.XorYy8CL.dpuf . Acesso: 29 de Maio.

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4.2 As identidades na formação do professor de LE

A construção das identidades do professor é um processo culturalmente inscrito e, por isso, aberto e mutável, envolvendo sentidos, valores e imagens do que significa ser professor num dado contexto (SACHS, 2001).Rajagopalan (1998) afirma que a identidade de um ser humano se constitui na língua e através dela. O autor argumenta que não seria possível realizar uma discussão sobre identidades sem se discutir acerca da linguagem uma vez que segundo ele, o indivíduo não nasce com uma predisposição identitária fixa, sendo que é através da língua que esse se constrói, a qual, semelhante ao indivíduo, está constantemente passando por um processo de transformação e evolução. Conforme Rajagopalan(2003, p. 69), as línguas são a própria expressão da identidade de quem delas se apropriam. Sendo assim, ao ter contato com outros idiomas e/ou ser por eles influenciado na sua forma de perceber o mundo e a si mesmo, o indivíduo está redefinindo sua própria identidade, uma vez que, quem aprende uma língua nova está se redefinindo como uma nova pessoa. Beijaardet al (2011apud Stein,2013, p. 2) definem identidades como “um processo em desenvolvimento de integração entre o lado pessoal e o profissional de se tornar e ser professor”. Nesse sentido, as identidades se relacionam à representação de si, que, consequentemente, define quem o sujeito é. Souza (2011) afirma que “a constituição do sujeito é marcada pela heterogeneidade, provenientes de interações sociais, pluralidade de papeis e vozes” (SOUZA, 2011, p. 89). Em outras palavras, a identidade é múltipla, ou seja, as identidades são um processo contínuo de construção baseado no significado que cada indivíduo tem a respeito da prática docente levando em consideração sua história de vida, representações, saberes, angústias e anseios, do sentido que tem em sua vida o ser professor, nesse estudo, de LI (PIMENTA, 1997). No que diz respeito à formação do professor, Feiman-Nemser (2001) defende que a construção de sua identidade profissional, em especial, os em formação inicial, implica na combinação, por vezes conflituosa, entre o seu passado e a sua situação presente, que constitui suas percepções em relação ao ensino e ao ser professor. Desse modo, o contexto social, cultural e o contato coma prática de ensino, bem como as histórias de ensino e aprendizagem, antes de

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sua formação, tornam-se importantes para compreender como se constitui a sua identidade profissional. Na seção seguinte, apresento os resultados e as discussões dos dados.

5. Resultado e discussão dos resultados

A análise das narrativas dos participantes permitiu identificar dois aspectos relacionados à sua identidade profissional: suas experiências como aprendiz e/ou de ensino anteriores à sua formação além de a aprendizagem na escola. Em relação às experiências anteriores, os participantes citaram como fator principal no desejo de ser professor, o interesse em conhecer a cultura dos falantes do inglês durante sua infância ou adolescência, o que os levou a querer aprender e ter mais contato com o idioma. Este fato pode ser verificado no relato de um dos participantes: As minhas primeiras lembranças sobre meu interesse por idiomas e culturas diversas é sobre um fato ocorrido ainda na minha infância(...) comecei a buscar por mais contatos com a cultura norte americana: escutava muitas músicas do seguimento pop que eram transmitidas nas rádios, assistia séries e filmes. Como resultado desse contato intenso com o inglês, nasceu a necessidade de estudar o idioma. (Laura)

Esse excerto sugere que a aprendizagem de línguas de Laura não ocorreu somente na escola, mas também pelo seu contato com a língua fora deste contexto, seja através de músicas, filmes e series, influenciando sua vontade de estudar mais o inglês. Segundo Schutz (2014), “as características dos ambientes que frequentamos representam os fatores externos” (SCHUTZ, 2014), os quais motivam e podem contribuir para uma aprendizagem significativa. Outras experiências, como por exemplo, a de tradutor e de ensino, motivou um dos participantes a escolher o curso de Letras:

Todo o processo de aprendizagem em língua inglesa começou de maneira autônoma, fui profundamente influenciado por jogos eletrônicos. Eles foram os verdadeiros instigadores da minha curiosidade em imergir de maneira decisiva na língua. (...)Minhas maiores experiências na língua inglesa foram como tradutor de artigos científicos (...) e aula particular. (Laura)

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Nesse relato vê-se que o contato com a língua no cotidiano de Laura possibilitou a autonomia em sua aprendizagem, e, consequentemente, sua experiência de tradutor de texto e dar aulas, influenciando não só o desejo de se tornar usuária da língua, mas também a escolha de sua profissão, no caso, professor. Para Flores (2000), a construção das identidades do indivíduo enquanto ser humano, assim como seus valores morais, ocorre na interação deste com os diversos ambientes sociais que ele convive. Borges (2011) também afirma que a decisão por uma profissão não é uma escolha individual, mas pode ser construída por um conjunto de fatores externos que envolvem também as pessoas que nos relacionamos em nossa vida. Desse modo, pode-se dizer que o desejo também pode ser influenciado pelo discurso do outro. No caso de Mary, a decisão de ser professora, a princípio, foi influenciada pelo incentivo dos seus pais que percebiam sua vocação, como se percebe no excerto a seguir:

O desejo de se tornar uma professora veio da minha família, porque eles enxergavam em mim uma capacidade para ensinar e uma paciência com os jovens com dificuldades na aprendizagem. Quando tinha quinze anos comecei a dar aulas particulares, porém de todas as matérias e foi assim que amadureci a ideia de me tornar uma professora de português e de Inglês, pois eram as matérias que tinha mais facilidade e das quais eu mais gostava. (Mary)

Nesse excerto, percebe-se que experiência que Mary teve em dar aulas particulares durante sua adolescência a possibilitou perceber o seu gosto pelo o inglês e sua motivação em lecionar. Em relação a experiência de aprendizagem na escola, em três relatos, observou-se que as imagens mais recorrentes em relação ao ensino regular, seja público ou privado, esta associada à insatisfação, indisciplina, desmotivação e a precariedade no ensino regular; conforme expressa o excerto a seguir:

Durante o período escolar meu contato com o Inglês foi extremamente baixo, jamais alcançaria a fluência se não fosse o curso privado e dedicação extra a partir de filmes, séries e anotações de vocabulário. As aulas na escola giravam em torno de traduções com dicionários ou matérias repetitivas, além de professores desestimulados que me faziam não querer escolher tal profissão. (Mariana)

De acordo com Almeida (2011), as crenças sobre a prática de ensino e o perfil de um

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professor estão relacionadas às imagens sociais e ao contexto de ensino em que ele está inserido. Observa-se que a crença de Mariana de não conseguir desenvolver as habilidades comunicativas de LI na sala de aula, como a fala, influenciou-a em sua escolha profissional. A princípio, ela não queria ser professora. Entretanto, o gosto pela língua e a falta de um ensino efetivo na escola, fomentou o seu desejo de lecionar e, consequentemente, enquanto futura professora, proporcionar um ensino motivador aos seus alunos, conforme ela explica: Algum tempo depois de me graduar na escola, refleti e vi que devia sim trabalhar com algo que gostava, o Inglês, mas de uma forma totalmente diferente dos professores do ensino médio, e escolhi o curso de Letras. (Mariana)

Deste modo, a realidade vivida por Mariana como aprendiz de inglês nos seus tempos de escola, propiciou suas reflexões acerca de sua formação. Ou seja, as expectativas dos participantes e o desejo de ser um bom professor estão relacionadas com as experiências negativas, o que influencia em sua identidade. A este respeito, Nice decidiu: “tentar sempre dar o melhor de mim como professora de inglês para tentar fazer a diferença no meio desse turbilhão de sentimentos ruins que acercam nossa profissão” (Nice). Ela ainda afirma: “Eu desejo ensinar o inglês de maneira agradável” (Nice). Pode-se inferir que ao afirmar querer ter uma prática agradável, Nice refere-se a sua busca por um método ideal que proporcione um processo de aprendizagem significativo e que possa condizer com a realidade dos seus futuros alunos. Se para Mariana, foi o método desmotivador em suas aulas de inglês que a influenciou no desejo de ser professora e querer fazer diferente, para Renato, a experiência positiva de aprendizagem dele na escola por meio de sua relação com alguns de seus professores e seus métodos de ensino, o motivou a ser professor dessa língua. (...) meu interesse e gosto pelas aulas me inspiraram positivamente até o ponto de eu também quereria ser professor de Língua Inglesa. Não há, no entanto, apenas um único professor o qual me identifiquei mais, e sim a maioria deles, uma vez que se dedicavam constantemente ao ensino e isso foi um dos motivos pelo qual também desejo seguir o mesmo caminho deles. (Renato)

Percebe-se que a maneira que os ex-professores de Renato se dedicavam a ensinar o inglês despertou nele a vontade de querer escolher tal profissão. De acordo com Borges (2011),

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independente da forma como os professores anteriores a sua formação docente os marcam, seja negativa ou positivamente, eles vão fazer parte da construção de sua identidade docente, e, consequentemente, influenciaram em sua prática de ensino (BORGES, 2011). A experiência de ensino de inglês antes de ingressar no curso de Letras, foi fundamental para três participantes, os quais tiveram a oportunidade de trabalhar em curso de línguas. Nesta perspectiva, a prática os possibilitou compreender como se desenvolve o processo de ensino, e também a criar expectativas acerca da profissão de professor, conforme ilustrado no excerto de Laura:

Então faltando um mês para o ENEM, uma tia minha me chamou para trabalhar na escola dela como monitora de inglês. Fiquei extremamente animada com o convite e senti uma motivação que até então não havia experimentado. Passei uma semana fazendo treinamento e comecei a trabalhar. (...) O tempo foi passando nessa empresa e tive momentos de grandes realizações: quando os alunos se mostravam interessados, se mostravam receptivos com os jogos didáticos que eu os apresentava e até com a minha maneira de ensinar. Mas durante esse período, comecei a considerar o curso de Letras. (Laura)

Este excerto nos faz pensar que a experiência positiva que a participante teve em relação a sua metodologia na sua prática de ensino impulsionou a sua escolha de cursar Letras, pois em sua narrativa ela afirma que tinha interesse por Psicologia. Para Dewey (1933 apud BARCELOS, 2004) as experiências se relacionam com a interação e adaptação dos indivíduos ao contexto em que estão inseridos. A oportunidade de lecionar em curso de inglês fez com que ela conhecesse a realidade do aprendiz desse contexto e motivou a querer ser uma profissional na área. Apesar disso, diante da sua indecisão de cursar Letras ou Psicologia, uma visita à amostra de profissões em uma universidade perto de sua cidade, fez com que ela conhecesse a grade curricular dos dois cursos, o que reafirmou a sua vontade de lecionar, conforme ilustrado no seguinte excerto: Assim, resolvi ir em uma mostra de profissões da UFMG, para concretizar essa ideia. No evento eu tive a oportunidade de conferir as bancas dos dois cursos e a banca de Letras me deixou muito mais empolgada que a de Psicologia. Então a partir daí, a minha decisão estava de fato tomada. (Laura Cabral)

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Nesse excerto, percebe-se que ao conhecer o currículo de Letras seu desejo pela licenciatura foi aguçado, influenciando sua decisão de cursar Letras. Aragão (2008) afirma que a motivação se origina e/ou está associada ao desejo do indivíduo, às suas expectativas no processo de ensino e às perspectivas futuras com relação ao uso de LI. As experiências de ensino de inglês fizeram com que Renato e Mariana se sentissem confiante e confortável, em sua prática diante da realidade vivida por eles naquele contexto. Isso pode ser observado nos seguintes excertos: “importante e me deixou mais confiante quanto à minha escolha profissional” (Mariana) “minhas expectativas estão de acordo com a realidade do ensino do inglês, e com isso me sinto mais confortável e mais incentivado e a continuar nesse caminho”. (Renato). Como se sabe, as emoções, por vezes, são "motores para nosso comportamento e motivadores para ação significativa" (BARCELOS, 2013, p.11). Nesse caso, as emoções contribuem para expectativas positivas em relação a sua prática futura. Por outro lado, oito participantes não tiveram contato com a prática de ensino antes de seu ingresso no curso de Letras. Desse modo, suas expectativas se relacionam com a oportunidade de conhecer e compreender sobre as metodologias e estratégias de ensino de inglês durante seu processo de formação. Como já dito anteriormente, a maioria deles está em formação inicial, e veem o curso preparatório no qual participam como uma oportunidade de refletir e exercer sua prática docente. Isso pode ser observado nos fragmentos a seguir:

Nunca tive experiência como professores de LI. Para ser sincera, eu quero aprender a ser uma boa professora durante a minha formação (...) e conseguir abrir portas grandes no futuro. (Marcus) é uma oportunidade maravilhosa de aprender e gerar experiências com a prática em sala de aula. (Clara)

Pode-se observar que ambos participantes veem o curso de extensão como uma primeira oportunidade de conhecer a prática de ensino, e importante experiência que podem leva-los a outras experiências profissionais. Os que já tiveram contato com o ensino de inglês consideram o referido curso preparatório como uma oportunidade de aprender mais e conhecer outros métodos significativos: “preciso relatar o quão importante está sendo aprender técnicas de

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ensino que são motivadoras e objetivas e, que ao mesmo tempo, podem fornecer uma nova visão para o ensino de línguas” (Paulo). Em geral, os participantes deste estudo desejam para sua futura prática de ensino: proporcionar um ambiente agradável em sala de aula, sentir confiante em ensinar, aprender métodos de ensino motivadores, ser um bom professor, e promover uma metodologia que atenda a necessidade do aluno. Percebe-se que o curso de treinamento de professores em questão é a primeira e/ou mais uma oportunidade de exercer e refletir sobre a prática diante de suas perspectivas antes do início de sua formação, expectativas futuras e conhecimentos não apenas como usuário, mas aquele que aprende e/ou ensina o inglês. Portanto, ao conhecer a sua trajetória de ensino e aprendizagem de LI, pode-se dizer que a construção da identidade dos participantes enquanto futuros professores dessa língua se relaciona com suas experiências anteriores ao seu ingresso no curso de Letras, seja em casa, na escola e/ou em curso de línguas, influenciam sua escolha profissional.

5. Considerações Finais As experiências pelas quais passamos ao longo de nossa vida nos permitem estruturar e definir nossas identidades. A partir da análise dos dados, identificou-se que um conjunto de experiências, como aprendiz e/ou com a prática de ensino, positivas ou negativas, são mediadoras na formação e transformação das identidades dos futuros professores. Do querer a ser professor, constatou-se que há uma relação intrínseca entre as dimensões pessoal e profissional dos participantes. Os dados obtidos em suas trajetórias, antes ou depois de ingressarem no curso de Letras, envolve tanto as fases da vida, marcadas pela subjetividade, ou seja, pelo contato com a língua em diversos contextos, como familiar ou escolar; quanto o saber fazer, o contato e as representações em relação ao ensino de inglês antes da escolha profissional. Pode-se dizer que o desejo para ser professor originou-se do interesse, autonomia na aprendizagem e/ou contato no cotidiano com a língua, o que propiciou a esses futuros professores, antes de ingressarem no curso, uma identidade de ser professor e, consequentemente, fomentou o seu desejo de ensinar a LI. O desejo de ser professor dos participantes associa-se também a promover um ensino diferente das experiências negativas

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no seu processo de aprendizagem de inglês na escola, assim como percebeu-se em alguns relatos. O uso da língua em seu cotidiano, o processo de ensino/ aprendizagem que motivaram a sua escolha profissional, moldam seus processos indenitários e a maneira como cada um se sente e se diz professor durante sua formação. Em resumo, cabe aos cursos de formação, neste caso o de Letras, a responsabilidade de propiciar um ambiente significativo e prazeroso na construção do processo de identidade docente, no caso, de inglês. Ademais, visto que aquele que se prepara para ser professor também viveu o papel de aluno, é importante que eles tenham a oportunidade de refletir sobre suas experiências anteriores e as expectativas futuras acerca da prática de ensino de LI. Espero que este estudo possa contribuir para a reflexão dos formadores de professores com sugestões de ideias das motivações e do tipo de expectativas que os alunos em formação têm com relação a sua prática e o seu futuro profissional.

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GÊNEROS TEXTUAIS E O ENSINO DE LIBRAS COMO L2 Isabelle de Araujo Lima e Souza Graduada em Ciências Sociais. (UFV), mestranda em Letras. (UFV). E-mail: isabelle.araujolima@gmail.com

Sirlara Donato Graduada em Letras. (UFV). E-mail: sirlaradonato@gmail.com

André dos Santos Souza Graduado em Ciências Sociais. (UFV)

Ana Luisa Borba Gediel Doutora em Antropologia Social (UFRGS). E-mail: ana.gedielufv@gmail.com

Resumo: Partimos destas perspectivas teórico-metodológicas de Marcuschi (2003;2005) e Bakhtin (2003), e buscamos analisar as aulas de uma turma do Curso de Extensão em Língua Brasileira de Sinais (CELIB), durante o primeiro semestre de 2016. Neste trabalho, em específico, discorreremos acerca dos gêneros usados nas aulas das turmas do nível 2. Uma das propostas previstas para as turmas deste nível é o uso do espaço, a marcação temporal, o uso de classificadores, o jogo de papéis e a apontação. Na turma 1 foi utilizado o gênero fábula, e na turma 2 o relato pessoal dos surdos. No presente trabalho optamos por analisar apenas o gênero utilizado na turma 2. A proposta era que ao final do semestre letivo os estudantes fizessem uma produção final sinalizando em LIBRAS o que haviam feito na semana. Através de uma pesquisa qualitativa, na qual utilizamos o estudo de caso como metodologia de coleta de dados, onde os pesquisadores desenvolveram observações das aulas durantes o semestre, registrando as suas reflexões em diários de campo. Através da análise dos dados, percebemos que o ensino de LIBRAS através dos gêneros textuais faz com que os estudantes consigam perceber a língua em uso, o processo de construção do conhecimento ocorre por uma abordagem mais socio-interacional, e utiliza-se menos a memorização como recurso metodológico para o ensino de língua de sinais. Palavras-chave: LIBRAS. Ensino Aprendizagem. Gêneros. LA. Ferramenta didática.


1. Introdução O reconhecimento da LIBRAS enquanto língua oficial é recente no Brasil, sendo promulgada em de 2002 a Lei Nº. 10.436que reconhece a LIBRAS como a segunda língua oficial do país. Em 2005 foi instituído o decreto 5626, neste consta que os estudantes surdos têm direito a ter acesso ao ensino na sua língua nativa, sendo o conhecimento mediado por um intérprete de português/LIBRAS. Nesse decreto ainda ficou estabelecido que todos os cursos de licenciatura, pedagogia e fonoaudiologia deveriam ter a disciplina de LIBRAS como disciplina obrigatória na matriz curricular. As universidades teriam até 2010 para poder ofertar a matéria e contratar novos professores. Visto essa demanda recente tanto dos movimentos sociais surdos como a necessidade de formar profissionais capacitados para atuar nesse novo mercado de trabalho, a Universidade Santa Catarina (UFSC) criou o primeiro curso de Letras/LIBRAS, na modalidade de licenciatura e de bacharelado. Em 2007 criou-se o primeiro curso presencial que visa formar intérpretes de português/LIBRAS, sendo o profissional bacharel em letras, e formar professores para poderem atuar no ensino de LIBRAS como L1 e como L2 (GEDIEL, 2010). Conforme pode-se observar através deste histórico o ensino de LIBRAS ainda está em processo de consolidação, antes o ensino da língua era feito por instituições religiosas ou por familiares como ressalta Assis (2010). A oficialização da língua e o seu status linguísticos tem pouco mais de 10 anos, e mais recente ainda são as pesquisas voltadas para o ensino de LIBRAS seja como L1 ou como L2 conforme a pesquisa feita por Souza e Barcelos (2016). No presente trabalho discorreremos acerca do ensino de LIBRAS para ouvintes no Curso de Extensão em Língua Brasileira de Sinais (CELIB) da Universidade Federal de Viçosa (UFV). O CELIB também se configura como um espaço de ensino, pesquisa e extensão, além de ser uma instituição a qual visa formar futuro professores. A partir dos estudos de Bakhtin (2003) compreendemos que a língua é uma ação social, e as pessoas comunicam-se por meio de gêneros, tendo em vista essa premissa entendemos que o ensino de línguas deve ser feito por meio de uma abordagem sócio-comunicativa, ensinando

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os aspectos linguísticos e gramaticais dentro do contexto sociocultural em que estes elementos se encontram. Neste trabalho nos filiamos a perspectiva de língua e linguagem de Bakhtin (2003), e dialogamos com a concepção de gênero apresentada por Marcuschi (2003;2005), mas também ao conceito apresentado por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), para podermos refletir acerco do ensino da LIBRAS para ouvinte. O presente trabalho está organizado do seguinte modo: 2) Gêneros e ensino de língua, onde discorreremos sobre como os gêneros são utilizados como ferramenta didática e pedagógica; 3) Metodologia, em que abordaremos os pressupostos teóricos que foram utilizados para a análise de dados 4) Ensino de LIBRAS para ouvintes, nesta sessão abordaremos como os gêneros foram utilizados como instrumentos didáticos nas aulas das turmas de básico 2 do CELIB.

2. Gêneros e o ensino de línguas Bakhtin (2003) redefiniu a percepção que até então existia sobre os gêneros, pois antes dele desenvolver a sua teoria, pensava-se que os gêneros existiam apenas no domínio literário e que seriam finitos, podem ser classificados em três categorias: lírico, épico e dramático. Bakhtin (2003) então, re-significa essa concepção de gênero ao afirmar que as pessoas só se comunicam por meio de gêneros, sendo assim existe um número infinito de gêneros, alguns classificáveis e outros não. Os gêneros, conforme o autor supracitado, são relativamente estáveis, eles são socialmente, culturalmente e historicamente situados. Ou seja, há gêneros que podem existir em determinada cultura, mas podem não existir em outras. Além disso os gêneros dialogam como as questões culturais e sociais de sua época, por isso existem gêneros que eram comuns em um determinado período histórico e que passam a não ser tão utilizados em algum outro momento, cedendo espaço para novos gêneros. Marcuschi (2003) chega a afirmar que os novos gêneros são criados com base nos gêneros mais antigos, e que eles não surgem de forma espontânea, pelo contrário estão sempre dialogando com as velhas bases.

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Autores da área de Linguística Aplicada (LA) como Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004); Miller (2009) e Swales (2009) perceberam que os gêneros poderiam ser uma ferramenta eficaz para ensinar línguas, tornando os aprendizes em leitores e escritores mais hábeis, capacitando-os para comunicarem-se em diferentes situações sociais. Embora esses autores tenham foco diferente acerca de como o gênero deve ser mobilizado no ensino, bem como as diferenças conceituais existentes na teoria acerca de gêneros, compreendê-los é essencial para podermos discutir acerca do uso de gênero no ensino de línguas contemporâneo. Swales (2009)filiado à LA, destacou-se na área por desenvolver estudos que visavam utilizar os gêneros no ensino de inglês para fins específicos, seu foco era nos aspectos linguísticos presentes no texto acadêmico e profissional. Ao fazer uma releitura de Swales, Hemais e Biasi-Rodrigues (2005) afirmam que: (...) Swales se mantém fiel a uma abordagem que se apoia em uma análise linguística que revela muito da construção do texto e das práticas sociais (acadêmicas e profissionais) que determinam as escolhas linguísticas que configuram o texto. Pode-se dizer que, pra Swales, essa abordagem tem grande relevância para o ensino, visto que a conscientização linguística torna o ensino/aprendizagem mais eficaz (HEMAIS; BIASI-RODRIGUES, p. 109, 2005).

Assim, Swales (2009) nos auxilia a pensar em como podemos utilizar os gêneros no ensino de línguas, assim ao ensinar a língua através do gênero, ele procura fazer com que os estudantes consigam perceber as diferentes manifestações linguísticas através do texto. Ou seja, os gêneros são reconhecíveis a partir do seu propósito comunicativo, como determinados aspectos linguísticos e textuais fazem com que eles sejam reconhecíveis e aceitos pela comunidade discursiva. Dessa maneira, uma resenha ou um resumo, apesar de terem uma base comum, podem ter diferentes estruturas, as quais são legitimadas pela comunidade discursiva em que são veiculados. Além do Swales (2009), a Miller (2009) é uma outra autora centra para podermos compreender como os gêneros podem ser utilizados no ensino e aprendizagem de línguas. Miller (2009) vinculada a departamento de Comunicação Social, em diálogo com outras áreas do conhecimento, demonstra que quando um sujeito produz um discurso ele tem o público como foco. Dessa maneira, ela está filiada a retórica americana, a qual tem como foco o auditório, e

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não apenas os ornamentos utilizados na linguagem. Então, Miller (2009) ao definir o gênero como um artefato cultural, ela defende a ideia de que este é uma forma de agir em relação ao outro, é uma mediação entre a ação e a estrutura social. Para a autora, o gênero seria uma ação retórica tipificada, as quais são uma reposta a uma determinada demanda social. Em seus ensaios Miller (2009) pretende pensar o gênero como um termo médio entre ação e estrutura, então ele propõe que o gênero seja pensado a partir do conceito de estruturação de Giddens (1984). A estrutura para Giddens (1984) apud Miller (2009) não é apenas o fim, mas também o meio pelo qual os indivíduos realizam suas ações, a partir dessa concepção Giddens (1984) opõem-se a dualidade existente na teoria sociológica, que para explicar as relações sociais ora tem como foco as ações individuais ora as estruturas sociais. O dualismo proposto por Giddens resolve esse dilema enfrentado por muitos teóricos sociais, colocando a ação e a estrutura a partir de uma relação interdependente. Ao ter como base a perspectiva teórica de Giddens (1984), Miller (2009) compreende os gêneros como um artefato cultural, por meio do qual os indivíduos agem no mundo a partir de ferramentas fornecidas pelo seu contexto cultural e social maior, embora suas ações sejam individuais, os sujeitos agem dentro dos limites estruturais da sociedade a que pertencem, pois,para ter uma relação social é preciso que haja um entendimento mínimo comum entre os indivíduos. É deste mesmo modo que os gêneros se apresentam na sociedade. Os gêneros não são apenas uma forma de agir no mundo, mas também dizem muito a respeito da cultura e da sociedade a qual pertencem (MILLER,2009). Assim, quando Miller (2009) propõem pensar o gênero como artefato cultural, ela sugere que o gênero seja visto como um Antropólogo enxerga um artefato cultural, ou seja percebê-lo “como um produto, que tem suas funções particulares, que se encaixa dentro de um sistema de funções e de outro artefato.” (MILLER, 2009, p. 49). O gênero, então, possui uma função específica, mas também diz muito acerca da economia, da política, da cultura, e da sociedade de sua época. No intuito de fazer essa relação entre a macro a microanálise Miller tem o intuito de pensar o gênero “como um constituinte específico e importante da sociedade, um aspecto principal de sua estrutura comunicativa, uma das estruturas de poder que as instituições exercem.” (MILLER, 2009, p. 52). Ao fazer tal definição Miller (2009) acredita que o gênero

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é capaz de reproduzir e gerar reproduções manifestas nas mais diversas situações. Quando faz essas afirmações Miller não nega o gênero como ação social, mas quer dizer que o gênero é também estrutura social. Para compreender o conceito de gênero trabalhado em seu ensaio, Miller (2009) propõe o conceito de comunidade virtual. A comunidade retórica como vê Miller (2009) não seria a comunidade homogênea e do consenso, muito pelo contrário ela propõe um conceito de comunidade que parta da heterogeneidade, da disputa, e do dissenso, pois as diferenças são fundamentais e geram multiplicidade das comunidades. Em suma, Miller (2009) que colocar em seu ensaio que o gênero não pode ser visto apenas a partir da retórica clássica. Ele é ação e estrutura, estão relacionados a contextos passados e a contextos não-retóricos. Os gêneros de acordo com Miller (2009) possuem o poder pragmático de ação social, e enquanto pragmático eles auxiliam pessoas a realizar trabalhos propósitos reais, além de ajudarem comunidades virtuais “a reproduzir e reconstruir a si mesmas para continuarem as suas histórias.” (MILLER, 2009, p.58). Enquanto Miller reconhece os gêneros como um termo médio entre a ação e a estrutura social, para Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) o gênero seria um instrumento didático pedagógico para o ensino de línguas, o foco dos autores é nas práticas de leitura e produção de textos, logo a forma como o professor trabalha depende de como o mediador do ensino usará o gênero em sala de aula. Segundo Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) é importante buscar integrar a realidade do estudante no processo. Trabalhar na introdução da língua, como ela opera a partir de uma experiência do sujeito. Além disso, quando o professor propõe desenvolver o ensino e aprendizagem por meio de gêneros, essa ferramenta pedagógica deve respeitar a etapa de desenvolvimento social e cognitivo em que o aprendiz encontra-se. Em ano iniciais é possível levar para sala de aula gêneros que tenham uma estrutura linguística mais simples, a fim de desenvolver a habilidade oral e escrita dos estudantes. Conforme avança-se o ciclo também aumenta-se a complexidade dos gêneros.

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Segundo os autores, ainda é possível utilizar o mesmo gênero em ciclos diferentes desde que sejam abordados de formas diferente, sempre respeitando a etapa do desenvolvimento do estudante. Em séries iniciais, por exemplo. É possível trabalhar com o gênero resumo, desse modo os estudantes podem levar um livro para ler em casa, e num momento posterior cada um pode compartilhar com os colocas sobre o que leu no livro. Neste caso o objetivo seria trabalhar a expressão oral dos estudantes, sem se ater aos aspectos linguísticos, textuais e gramaticais desse gênero. Conforme o desenvolvimento dos ciclos é possível retomar o gênero resumo, e cada vez mais aumentar o grau de complexidade do gênero até trabalhá-lo em sua totalidade. Apesar de Segundo Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) abarcarem apenas o ensino de francês como língua materna nas escolas, eles influenciaram muitos estudiosos como Marcuschi (2003;2005) principalmente na área de Linguística Aplicada ao ensino de línguas, e auxiliaram-nos a refletir acerca do uso de gêneros tanto no ensino e aprendizagem de língua materna quanto no ensino e aprendizagem de língua estrangeira. A linguagem está presente em todas as esferas das relações humanas, assim ela tem uma função social e comunicativa, pois é por meio desta que as pessoas expressam suas ações e realizam as suas atividades cotidianas. Marcuschi (2003) coloca que as pessoas a todo o momento produzem textos, sejam estes de forma oral ou escrita, deste modo é preciso compreender os gêneros textuais a partir de “formas culturais e cognitivas da ação social corporificadas de modo particular na linguagem” (MARCUSCHI, 2005). Marcuschi (2005) propõem que os gêneros textuais sejam analisados a partir de uma ótica sociocultural, e não como modelos estanques e rígidos, pois assim como as relações sociais os gêneros são algo dinâmico e variam de acordo com o contexto social, histórico, cultural e político. Logo, não é possível pensar em gêneros textuais apenas pela sua forma, mas é preciso estar atento a sua função sócio comunicativa. Deste modo, Marcuschi (2005) observa que atualmente há uma tendência de evitar uma postura e classificação de cunho mais estrutural sobre os gêneros textuais, para privilegiar o seu lado dinâmico, processual, social, interativo e cognitivo.

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Acreditamos que a abordagem sociodiscursiva é uma das ideias centrais trabalhadas por Marcuschi (2005), pois ele sugere que os gêneros textuais são uma “ação social tipificada”, ou seja, são as diferentes situações sociais que os tornam reconhecível. Assim, não é possível classificar um gênero por meio “rígido”, uma maneira mais adequada de acordo com o autor seria compreendê-lo a partir das práticas sociais, diferentes relações de poder, e das atividades sociais e discursivas de cada sociedade e cultura. Por meio de uma interpretação de Marcuschi (2005) é possível compreender o gênero textual como algo plástico e dinâmico, entretanto este possuí uma identidade social e organizacional. O autor não ignora os aspectos linguísticos do gênero, contudo o seu foco está na funcionalidade do texto e em seus aspectos sócio cognitivos, pois de acordo com Marcuschi:

Os gêneros se configuram de maneira plástica e não formal; são dinâmicos, fluindo um do outro e se realizando de maneira multimodal; circulam na sociedade das mais variadas maneiras e nos mais variados suportes. Exercem funções sócio cognitivas e permitem lidar de maneira mais estável com as relações humanas que entra a linguagem. (MARCUSCHI, p. 23, 2005).

Tendo em vista que os seres humanos produzem textos em suas práticas cotidianas, e estes se manifestem em algum tipo de gênero textual. Marcuschi (2005) defende a ideia de que quando alguém domina algum gênero textual, ele não domina uma forma linguística, mas uma maneira de se realizar socialmente, pois “a apropriação dos gêneros é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática nas atividades comunicativas humanas. ” (BROCKART, p.103, 1999 apud MARCUSCHI, p. 29,2005). Marcuschi (2003;2005), Swales (2009) e Miller (2009), todos inspirados em Bakhtin (2003), são úteis para podermos refletir acerca de como podemos ensinar os estudantes a compreenderem e produzirem textos a partir das suas práticas sociais e discursivas, e não apenas através dos aspectos formais da língua. Dessa maneira, partimos dessas correntes teóricas para podermos analisar o uso do relato pessoal no ensino da LIBRAS como L2.

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3. Metodologia O presente trabalho trata-se de uma pesquisa qualitativa, em que os pesquisadores desenvolveram um estudo de caso (Yin, 2005), que contava: com a observação participante das aulas de LIBRAS da turma de básico 2, com as anotações do diário de campo, com as análises dos planos de aula utilizados no decorrer do semestre e com os materiais didáticos levados pela professora. Durante o primeiro semestre de 2015, foram desenvolvidos acompanhamentos das duas turmas de básico 2, entretanto optamos neste trabalho por abordar apenas um gênero, sendo o relato pessoal, pois consideramos ser este um gênero desencaixado, que está presente também na conversa cotidiana. Embora a fábula, o gênero utilizado na turma 1, fosse outra opção de escolha metodológica para ensinar o conteúdo proposto às turmas do básico 2, ele trata-se de um presente no domínio literário. Por serem de domínios diferente, optamos por abordar neste trabalho apenas um dos dois gêneros, e o relato pessoal torna-se mais adequado à perspectiva de ensino de línguas que estamos adotando aqui. Filiamo-nos a perspectiva sócio interacionista do ensino de línguas, como posto por Castro (2002). A turma 2, que foi analisada por nós, iniciou o curso com dez alunos, e ao longo do semestre houveram três desistências, terminando com sete estudantes. O período sobre o qual discorreremos aconteceu nos dois últimos meses, de maio a julho, neste momento a turma contava com setes aprendizes. Discorreremos, então, nas próximas seções sobre a análise do relato pessoal como uma ferramenta didático pedagógica para ensinar LIBRAS para estudantes ouvinte, que ainda estão em processo de aquisição de linguagem. Logo, além de ensinar a gramática e a estrutura linguística da LIBRAS, foi necessário introduzir alguns vocabulários básico, tentando desenvolver um ensino centralizado nas experiências prévias dos estudantes.

4. O uso de gêneros nas aulas do CELIB

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No primeiro semestre de 2015 uma das propostas para o básico 2 eras de que os professores ensinassem os estudantes produzirem narrativas, através desse tipo textual seria ensinado os aspectos linguísticos e gramaticais da LIBRAS. A fim de trabalhar com esse tipo textual foram utilizados dois gêneros diferentes, na turma 1 o professor optou por trabalhar com fábulas, e na turma 2 a outra professora trabalhou com depoimentos e relato pessoal. Através desses gêneros os estudantes aprenderiam a usar classificadores, fazer o jogo de papéis, utilizar o espaço de forma que a sinalização se tornasse mais clara e precisa. Neste trabalho discorreremos sobre essas duas experiências pedagógicas.

4.1 O Depoimento e o relato pessoal no ensino de LIBRAS

Partimos da definição do gênero relato que foi posta por Souza (2015), em que:

A finalidade desse gênero é relatar, oralmente ou por escrito, episódios marcantes da vida de quem escreve, experiências vividas que se encontram guardadas em suas lembranças, em sua memória. O texto deve apresentar uma sequência cronológica, podendo conter expressões responsáveis por marcar a passagem no tempo e a localização no espaço. Por tratar-se de um texto no qual se relatam experiências pessoais, é pontuado pela expressão da subjetividade e o locutor se projeta no texto como entidade individual, por isso o uso da primeira pessoa do singular é bem frequente. O tema abordado referese a experiências pessoais, lembranças, memórias, fatos marcantes para o locutor. A progressão temática é evidente porque em geral é linear e a linguagem é pessoal, subjetiva, direta e deve se adequar à situação de produção. (SOUZA, p. 39, 2015)

Apesar de Souza (2015) dissertar sobre o gênero relato presente nas línguas de modalidade orais auditivas, existem alguns elementos semelhantes com o gênero relato nas línguas de modalidade espacial visual. Podemos ressaltar como semelhanças a marcação espacial e temporal, a pessoalidade, a subjetividade da produção que tratará de uma sequência

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de ações vividas pelo locutor. Estes seriam alguns aspectos similar, mas como Bakhtin (2003) já ressaltara os gêneros são maleáveis, sendo sensíveis a cultura e a sociedade a qual pertencem, tendo que a língua é uma ação social, não podemos dizer que os sujeitos agem linguisticamente da mesma maneira em todas as culturas. Assim, embora exista o gênero relato na LIBRAS, é concebível que este sofra variações que são próprias da cultura surda. Uma das propostas para as turmas de básico 2 era que fossem trabalhados os classificadores, os verbos direcionais, a marcação temporal e a marcação espacial. Desse modo, a professora da turma optou por utilizar o gênero relato pessoal, a fim de ensinar esses elementos linguísticos e gramaticais através do texto. Optou-se por se trabalhar com este gênero, pois o curso tem como objetivo ensinar LIBRAS para que os ouvintes possam comunicar-se com os surdos em diferentes situações sociais, e o gênero relato pode estar presente em diferentes domínios, entre eles a conversa cotidiana. Logo, a professora partiu do princípio que ao trabalhar com o gênero relato pessoal ela conseguiria ensinar os aspectos linguísticos e gramaticais propostos pela ementa do curso do básico II, e conseguiria fornecer instrumentos para que os estudantes pudessem ser agentes através da LIBRAS. A expectativa era que através do gênero relato eles conseguissem expressar desejos, resgatar experiências e memórias utilizando a LIBRAS, sendo assim mais reflexivos e críticos por meio da linguagem, também capazes de se comunicarem de forma hábil com os surdos. Para cumprir tais propósitos a professora desenvolveu uma sequência de atividades, a fim de preparar os estudantes para desenvolverem a atividade final, sendo o gênero relato pessoal. Assim, a professora levou para a sala de aula um gênero autêntico, que foi baixado na internet da plataforma Youtube, em que uma surda sinalizava a história de sua vida, relatando como foi a convivência com a família ouvinte em que nasceu, e como era a sua relação com o marido surdo e os filhos ouvintes. Como os estudantes ainda estavam em processo de aquisição de linguagem, sendo necessário o aprendizado de alguns vocabulários específicos, o vídeo foi dividido em três partes

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para que além de discutir sobre os aspectos do gênero levado, fosse possível, também, aprender a usar novos sinais. Apesar de não ter realizado uma sequência didática Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), foram utilizados alguns princípios de Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004)que a professora julgou relevante para aquele momento de ensino e aprendizagem de LIBRAS. Dessa maneira, em uma aula ela fez a apresentação do gênero, explicando o que era o gênero relato pessoal em LIBRAS, qual a sua função e o seu propósito comunicativo. Em seguida, mostrou alguns vídeos de relatos dos surdos, e pediu para que os estudantes discutissem quais os elementos eram semelhantes nos vídeos apresentados. Como as aulas ocorriam apenas uma vez por semana, sendo de três horas semanais, era fundamental que os estudantes desenvolvessem parte das atividades em casa, para poderem praticar o que foi aprendido em sala de aula. Apresentado o gênero que seria trabalhado durante os dois meses de aula, a professora passou a mostrar, através de vídeos em que os surdos faziam o relato pessoal, os elementos linguísticos e gramaticais da LIBRAS. Assim, procurava estimular os alunos a desenvolverem a percepção de como o surdo utilizava classificadores, fazia o jogo de papéis para poder encaixar diferentes personagens, sinalizava a marcação temporal e espacial, fazia uso do espaço e da apontação. Por se tratar de uma língua de modalidade diferente da língua nativa dos estudantes, esse processo de percepção dos aspectos linguísticos e gramaticais da LIBRAS foram necessárias despender cerca de um mês de aula. Além disso, eles eram estimulados a desenvolverem as suas próprias produções em LIBRAS, ora em pequenos grupos ora em duplas, quando estavam em sala de aula. Em casa, era pedido para que eles fizessem filmagens sinalizando, e enviassem a professora a fim dela corrigir, dar o retorno aos estudantes, para eles poderem refazer, caso fosse necessário. Depois de cerca de um mês desenvolvendo as atividades em casa e em sala de aula, eles deveriam produzir um vídeo final, neste eles deveriam relatar como foi a semana, sendo fundamental utilizar os classificadores, a marcação espacial, a marcação temporal, o jogo de papéis, a apontação e, no mínimo, cinco verbos de concordância. Após a correção do vídeo

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notou-se que os estudantes os quais desenvolveram o maior número de atividades, inclusive refazendo os vídeos, obtiveram um desempenho maior, sinalizando de forma hábil em LIBRAS. Em contraposição a isso, os alunos menos frequente e que desenvolveram um menor número de atividades, não conseguiram desenvolver todos os pontos que foram exigidos na produção final. O uso do gênero relato pessoal pode ser considerado uma boa opção para poder trabalhar os aspectos linguísticos e gramaticais propostos pela ementa do básico dois, pois os alunos conseguiram desenvolver uma boa percepção da sinalização. Contudo, a forma como esse gênero foi trabalhado em sala de aula fez com que a atenção estivesse voltada para os aspectos textuais, sendo os aspectos contextuais e discursivos colocados em segundo plano. Ressaltamos esse ponto como um aspecto a ser melhorado, pois consideramos que para os aprendizes serem autônomos, reflexivos e críticos no processo de aprendizagem da L2 é necessário que ele tenha uma percepção clara da cultura e da situação social. Assim, colocamos a necessidade de desenvolvimento de pesquisas futuras as quais abarquem o uso de gêneros para o ensino de LIBRAS seja como L1 ou como L2, pois é um campo recente que ainda está em processo de consolidação.

4. Conclusão No presente trabalho procuramos discorrer acerca do uso de gêneros no ensino e aprendizagem de LIBRAS como L2, para tanto nos filiamos a teoria de Bakhtin (2003) e aos autores da LA que utilizam o conceito de gêneros para pensar no ensino e aprendizagem de línguas, sendo eles: Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004); Miller (2009) e Swales (2009). Além destes, mobilizamos também, uma das primeiras reflexões de Marcuschi (2003;2005) acerca dos gêneros textuais, pois ele foi um dos primeiros a discutir o ensino do Português de uma abordagem mais dialógica da linguagem, por meio do uso de gêneros. Apesar destes teóricos não terem abordado as línguas de modalidade espacial visual, através da experiência pedagógica no CELIB, nós percebemos que os gêneros, enquanto um

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instrumento didático, poderiam ser uma opção para ensinar LIBRAS a ouvintes. Assim, os professores das turmas do básico 2 procuraram ensinar a língua por meio de uma abordagem mais sócio comunicativa, ensinando não apenas as questões relativas a estrutura linguística e gramatical, mas também trazendo o contexto social em que a língua é utilizada. O intuito das aulas era fornecer instrumentos para que os estudantes se tornassem mais autônomos na aprendizagem de língua, e fosse capaz de se comunicarem de forma mais hábil com os surdos sinalizantes1 da LIBRAS. A fim de cumprir tais objetivos utilizamos dois gêneros, em duas turmas diferentes, a fim de ensinar os classificadores, jogos de papéis, verbos direcionais e de concordância, marcação temporal, marcação espacial e novos sinais. Na turma 1 foi utilizado a fábula e na turma 2 o relato pessoal, no entanto neste trabalho abordamos apenas a experiência com a segunda turma. O relato pessoal foi o gênero escolhido pela professora por se tratar de um gênero desencaixado, o qual pode estar presente em vários domínios diferentes, possuir funções e propósitos comunicativos variados. Um dos domínios em que esse gênero pode ser encontrado é na conversa cotidiana, por isso a opção pelo gênero, pois julgou-se que o ato de ensinar LIBRAS através deste gênero os tornaria agentes mais autônomos na LIBRAS. Além disso, o relato pessoal caracteriza-se pela sequência de ações temporais e espacialmente delimitadas, além de ter como foco as experiências vivenciadas pelo locutor, sendo um gênero marcado pela pessoalidade e subjetividade. Estas características tornaram-se adequadas para ensinar o que foi proposto pela ementa do curso do básico 2, sem perder de vista o ensino centralizado nas experiências prévias dos estudantes. No decorrer dessa experiência de ensino e aprendizagem de LIBRAS por meio de gêneros, percebemos que o uso de gêneros é uma opção para ensinar a língua de forma contextualizada, e capaz de tornar os ouvintes em sinalizantes mais ativos. Por outro lado, o pouco tempo destinado as aulas de sábado fez com que os aspectos sociais e discursivos do

1

Utilizamos o termo sinalizantes para definir as pessoas que utilizam línguas de sinais para se comunicar.

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relato pessoal não fossem trabalhados na íntegra, como se espera ao levar um gênero para a sala de aula. Por fim, ressaltamos a necessidade do desenvolvimento de mais pesquisas voltadas ao ensino e aprendizagem de LIBRAS, seja como L1 ou como L2, por meio de gêneros. Pois, devido ao recente reconhecimento da LIBRAS enquanto língua oficial do Brasil, o pouco tempo de criação do curso de Letras/LIBRAS, as questões relativas ao ensino e aprendizagem desta língua são igualmente novas. Mas, acreditamos que é preciso desenvolver mais pesquisas na área, uma vez que elas são fundamentais para auxiliar a formação de novos professores, de pesquisadores e de aprendizes da LIBRAS.

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FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM LIBRAS: UM CAMINHO PARA A INCLUSÃO ESCOLAR Janayna Avelar Motta Mestranda em Extensão Rural - Universidade Federal de Viçosa, jana_avelar@yahoo.com.br

Ana Luisa Borba Gediel Professora de LIBRAS/Departamento de Letras - Universidade Federal de Viçosa, ana.gedielufv@gmail.com

Resumo: Esta pesquisa visa analisar o envolvimento dos professores da educação básica com a LIBRAS e verificar como esse contato reflete em seu trabalho em sala de aula. Dessa forma, o objetivo do trabalho é identificar os impactos do projeto “Formação inicial e continuada com os professores da educação básica” que foi desenvolvido com o intuito de perceber se estes incorporaram os métodos do curso em sala de aula. Para isso, utilizamos a observação participante, na qual o curso foi acompanhado. Posteriormente realizamos uma entrevista com os professores para conhecer suas percepções a respeito da LIBRAS. Neste processo, os resultados alcançados foram satisfatórios, uma vez que os professores desmistificaram crenças a respeito da LIBRAS. Verifica-se, com a pesquisa, por meio das observações e entrevistas, um interesse dos professores em obterem uma formação adequada em Língua de Sinais para atenderem à demanda e fazerem parte do processo de inclusão dos alunos Surdos nas escolas de acordo com a legislação vigente na LDB/Lei 9394/96. Palavras-chave: Formação de Professores. LIBRAS. Inclusão.


1. Introdução A educação básica tem passado por vários desafios referentes ao processo de inclusão da diversidade em sala de aula nos últimos vinte anos no Brasil. Dentre as temáticas que merecem atenção está a inclusão das pessoas SurdasI que utilizam a Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS como principal forma de comunicação e expressão. Para tanto, esforços para adequações na formação de professores frente à legislação vigente (BRASIL, 1996; BRASIL, 2002; BRASIL, 2005), tem sido realizados a partir da motivação dos próprios professores na rede regular de ensino para a formação específica da LIBRAS como segunda língua, e, por outro lado, por meio de atividades desenvolvidas via Instituições de Ensino Superior, no intuito de oferecer subsídios de formação e trocas de saberes conforme a realidade em questão. Ao considerar a legislação vigente e o contexto das escolas públicas da região da Zona da Mata Mineira, foi realizada uma pesquisa por meio do projeto “Formação Inicial e Continuada de Professores: Abordagem Inclusiva na Educação Básica”, desenvolvido com o financiamento da Capes-FapemigII. Tal projeto teve ampla abrangência, com o propósito inicial de oferecer um curso de LIBRAS. O mesmo, foi realizado com docentes da rede municipal de educação, em uma cidade da Zona da Mata de Minas Gerais. Para este estudo, o objetivo centrou-se em analisar e descrever como os professores participantes do curso veem o desenvolvimento do projeto, isto é, quais eles consideram que sejam os avanços e os desafios encontrados para atender aos alunos Surdos no ensino regular. Além disso, verificamos, a partir do ponto de vista dos professores, como a aprendizagem da LIBRAS influenciou como meio de inclusão e ressignificação no processo de ensino e aprendizagem. Para a concretização do trabalho foi realizada observação participante das aulas de LIBRAS, com todos os professores envolvidos, e uma entrevista semi-estruturada, com alguns desses professores. A pesquisa também foi fundamentada nas concepções da teoria de pesquisa colaborativa na qual, segundo Mateus (2006), todos os envolvidos no processo aprendem juntos, pois em um só espaço interagem pesquisadores, futuros professores e docentes atuantes na escola parceira, além dos bolsistas. Verificamos a emergência de discutir a formação de professores a partir do ponto de vista dos próprios professores, no sentido de dar visibilidade aos desafios e perspectivas que estão sendo acionadas durante o processo de formação continuada. Desse modo, descrevemos

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os participantes da pesquisa e o desenvolvimento metodológico da pesquisa. Posteriormente, apresentamos uma breve discussão sobre a formação de professores e a inclusão do ensino da LIBRAS nesse contexto. Em seguida, desenvolvemos dois tópicos com base nas narrativas dos professores para a análise dos dados. E, por fim, traçamos algumas considerações envolvendo as perspectivas da formação de professores e a inclusão de alunos Surdos na rede regular de ensino.

2. Objetivos 

Analisar e descrever como os professores participantes do curso veem o desenvolvimento do projeto, isto é, quais eles consideram que sejam os avanços e os desafios encontrados para atender aos alunos Surdos no ensino regular.

Verificar, a partir do ponto de vista dos professores, como o ensino e aprendizagem da LIBRAS influenciou no processo de inclusão escolar.

3. Metodologia A partir do desenvolvimento de uma pesquisa qualitativa, com o acompanhamento do Curso de LIBRAS realizado em uma escola Municipal, localizada na Zona da Mata Mineira, foram verificadas as transformações significativas na prática docente, a partir da perspectiva dos cursistas. Para chegar a tais constatações, foi realizada observação participante no decorrer de toda a realização do curso, com o uso do caderno de notas e as descrições detalhadas no diário de campo. Todos os professores aceitaram participar da pesquisa, a qual foi realizada após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética de Pesquisa (CEP). Desse modo, os 15 professores participantes expuseram seus relatos e ideias acerca do processo de inclusão de alunos Surdos no âmbito da escola regular durante as observações participantes. Para a obtenção das narrativas foram realizadas entrevistas com 4 dos professores. A fim de preservar o anonimato dos participantes elaboramos uma tabela, que segue abaixo, com as letras do alfabeto não manual, utilizados como nomes fictícios dos professores entrevistados. A tabela traz também o cargo dos entrevistados. Isto foi usado como critério para

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selecionar os professores/entrevistados que estavam no curso há mais tempo e que fossem professores do ensino fundamental ou de Língua Portuguesa efetivos na escola. A partir disso, as perguntas da entrevista foram elaboradas considerando a importância de aprender LIBRAS para a utilização em sala de aula no diálogo com os alunos Surdos; a formação do professor em LIBRAS através do curso; a busca pela interação/inclusão dos alunos Surdos e ouvintes. Dessa forma, tais respostas obtidas pelos professores/entrevistados levaram a discussões teóricas em relação à Língua de Sinais e Educação Inclusiva e à Formação Inicial e Continuada. Sinais/Nomes fictícios

Cargo

Perguntas

Prof. de Ensino

1 – O curso está colaborando com a sua atuação com pessoas surdas? 2 – As metodologias utilizadas no curso estão favorecendo o aprendizado? 3 – Os conhecimentos adquiridos estão sendo colocados em prática? 4 – Que fatores motivaram seu interesse em aprender LIBRAS?

Fundamental Prof. de Língua Portuguesa Prof. de Ensino Fundamental Prof. de Ensino Fundamental

Quadro 1: Participantes da pesquisa. Elaborado pelos autores.

A partir das entrevistas foi possível ter um melhor entendimento sobre a compreensão dos professores acerca do processo educacional via constituição da legislação, assim como a reflexão sobre a necessidade da formação de professores em LIBRAS. O tópico referente a análise dos dados discute as respostas obtidas nas entrevistas com os avanços e desafios dos professores referentes a educação inclusiva.

4. Revisão bibliográfica A formação de professores e as interelações entre a teoria e a prática contribuem para um diálogo permanente nas constantes ações em que esses dois eixos perpassam durante o processo.

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O trabalho docente exige, portanto, domínio das capacidades e habilidades especializadas pelos professores, tornando-o competente para desenvolver atividades individuais e em grupo. A partir das considerações de Gramsci (1981) entendemos que a teoria e a prática são expressas como a práxis, sendo um processo contínuo em que o ser humano pode mudar por meio do diálogo. Desta forma, o momento de interação entre os envolvidos, compreendido por trocas de experiências e questionamentos é profícuo porque contribui para sujeitos mais críticos e reflexivos sobre suas próprias práticas. É visível que essa lógica de ensino e aprendizagem vem sendo debatida e aderida nas últimas décadas, a partir da formação e dos saberes docentes constituídos pelas práticas cotidianas e comunicação entre os professores, conforme Tardif (2007): Os saberes oriundos da experiência de trabalho cotidiana parecem constituir o alicerce da prática e da competência profissionais, pois essa experiência é, para o professor, a condição para a aquisição e produção de seus próprios saberes profissionais (TARDIF, 2007, p.21).

Destacamos que os saberes docentes tornam-se significativos quando conciliados à efetiva prática em sala de aula, juntamente com os discentes, pois a prática educativa no cotidiano de cada aluno auxilia na aquisição de conhecimentos. Esse espaço educativo deve ser o local em que a troca de conhecimentos/saberes entre docentes e discentes sejam ressignificados, uma vez que os sujeitos estão em constantes transformações. Esse novo contexto reflete o panorama legislativo a partir dos anos 2000, com a criação de leis específicas ao reconhecimento do status linguístico da LIBRAS e, posteriormente, a necessidade de sua disseminação no sistema educacional. A Lei nº 10.436, de 24 de Abril de 2002, estabelece o reconhecimento da LIBRAS como a língua utilizada pelas comunidades Surdas como a garantia de inclusão, conforme expresso: Art. 1º - É reconhecida como instrumento legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS e outros recursos de expressão a ela associada. Parágrafo único - Entende-se como Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, formam um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, originários de comunidades de pessoas surdas do Brasil.

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A partir da lei conhecida como “Lei de LIBRAS”, o Decreto 5.626/05, incide na necessidade de formação linguística dos professores em formação, o que vem a modificar a dinâmica de ensino e aprendizagem no ensino superior e nos professores que estão em formação continuada e já atuam como educadores em escolas da rede regular de ensino. A partir de então, percebemos que a formação dessas turmas nas escolas públicas brasileiras tornou-se mais evidente e as discussões acerca da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) na educação e, também, do ensino de Português como segunda língua (L2) foram adensadas. Souza (2006) corrobora a ideia de que a LIBRAS está tendo um grande avanço no seu reconhecimento, que é visível no seu contexto histórico, pois ao longo do tempo várias organizações lutaram para sua visibilidade, fazendo esforços para assegurar os direitos dos surdos. Vemos esse reconhecimento nos estudos que envolvem a Língua de Sinais e na sua consolidação para as pessoas Surdas conforme postula a lei mencionada. Nesse contexto analisar e pesquisar sobre a formação continuada de professores no processo de formação em LIBRAS possibilita uma reflexão sobre quais saberes estão sendo incorporados por meio do curso de formação, e também como eles interferem na formação e prática desses educadores e futuros educadores. Compreende-se que tais mudanças não ocorrem somente pela incorporação de novos paradigmas de comportamentos da sociedade, mas é necessário investigar e refletir suas motivações.

5. Resultados e discussões 5.1 Formação de professores em LIBRAS: reflexões sobre as demandas inclusivas Por muitos anos a Escola Especial foi o único meio disponível para atender às demandas dos alunos referentes à educação de Surdos. Apenas em 1996, com a LDB - Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional de nº 9394, é que esse modelo de educação começa a ser, de fato, considerado e, por sua vez, discutido pela sociedade. Surge, portanto, uma política pública no âmbito da educação assegurando que os alunos com necessidades especiais deveriam frequentar as instituições formais de ensino, que visam atender à inclusãoIII. Nesse sentido, foi possível observar, nas narrativas dos professores entrevistados, uma grande preocupação com a inclusão de alunos Surdos em escolas de ensino regular. Ao

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mencionarem os principais aspectos que estimulavam a aprendizagem da LIBRAS,

relata

que o principal aspecto que motivou o meu aprendizado foi a preocupação em estar preparada para atuar na educação inclusiva. Observa-se, ainda, a complementação da fala da professora: Busquei aprender a Língua de Sinais a fim de saber comunicar e ensinar os alunos surdos que estão chegando na escola, fazer parte desse processo de inclusão (sic) (Prof. Educação Básica). Objetivando atender a essa inclusão, a LDB nº 9394, de 20 de dezembro de 1996, postula que todos os alunos, independentemente de suas especificidades, devem ser incluídos na educação regular. No entanto, tal afirmativa exige a implementação de estratégias de ensino por parte dos professores para conseguir alcançar o público, no caso alunos ouvintes e Surdos. Além da aprendizagem da língua como meio de comunicação, as estratégias são consideradas importantes ferramentas para uma educação de qualidade, igualitária e prioritária para todas as pessoas. Com isso, para atender a essa educação de qualidade defendida pela LDB, dois dos professores entrevistados destacaram a importância de especialização e qualificação para ser um bom profissional (para os entrevistados vem no sentido de ter domínio da teoria e segurança para desenvolver a prática em sala de aula), bem como saber fazer uso adequado de estratégias metodológicas que alcancem o ensino e aprendizagem de todos os alunos, como foi identificado por: Meu primeiro motivo por querer

aprender a LIBRAS surgiu quando

comecei a dar aula para Surdos e vi a necessidade de uma especialização (sic) (Prof. Ensino Fundamental). Nessa mesma perspectiva

, também relata interesse em aprender LIBRAS

em comparação com o professor que busca novas possibilidades de ensino e aprendizagem, conforme descrito: Como professor temos sempre que estar em busca de coisas novas que nos ajudem no exercício da profissão. Meu interesse em aprender a Língua de Sinais veio junto com essa busca de querer aprender mais. Dessa forma, o curso foi uma ótima oportunidade de ensino-aprendizagem (sic) (Prof. Português).

Ao analisar as falas dos professores entrevistados é possível perceber o quanto a educação carece de formações na área da LIBRAS, uma vez que, contribuem para a segurança

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do professor em sala de aula ao deparar com alunos surdo. Além disso, o aluno tem a oportunidade de aprender com segurança, pois, a LIBRAS bem como outros recursos linguísticos a ela associado é reconhecida como meio legal de comunicação e expressão das pessoas Surdas no Brasil. Ora, como a LIBRAS é uma língua reconhecida pela legislação como o principal modo de comunicação e expressão das pessoas Surdas no Brasil, torna-se de suma importância que os docentes conheçam e façam uso deste sistema linguístico. Este constitui um grande passo para a acessibilidade e a inclusão das pessoas Surdas nas diferentes esferas sociais. Ainda a respeito da valorização da Língua de Sinais, Quadros (2008) propõe a construção de metodologias pedagógicas que abordem de forma apropriada os conteúdos para alcançar o propósito de ensino e aprendizado de todas as pessoas, levando em consideração a diferença cultural existente no espaço educacional. Assim, ao reconhecer a LIBRAS como uma língua que promove a comunicação, expressão e transmissão de informação entre surdo-surdo e ouvinte-surdo, compreende-se o porquê de, ao utilizar e ensinar a Língua de Sinais, promovermos a inclusão. Mittler (2003) afirma a ideia de inclusão quando retoma que atualmente está crescendo a luta pelo respeito à diversidade social, sendo importante a presença de uma escola que atenda todas as pessoas nela inseridas, sem classificar e rotular, esse é um fator necessário não somente na Educação Especial como em todas as escolas.

Por meio da fala de percebe-se também que a busca pela inclusão torna-se cada vez mais incorporada à prática docente. Mesmo quando não se tem alunos Surdos ou com algum tipo de atendimento especializado, os profissionais percebem a necessidade de se ter uma formação para que, no momento em que houver tais demandas eles saibam lidar com a situação. Nota-se a preocupação na fala a seguir: Meu interesse em aprender a Língua de Sinais veio juntamente com o curso de capacitação. No início do curso vi a importância dessa aprendizagem, mas antes não via tanta importância por não estar diretamente ligada a pessoas surdas (sic) (Prof. Ensino Fundamental).

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Com isso, a educação inclusiva pode ser uma proposta para superação das situações de exclusão, estimulando a participação de todos no âmbito social e fazendo com que nenhum indivíduo do grupo seja excluído. Nesse sentido, a educação inclusiva torna-se uma possibilidade de educação formal a partir da matrícula de alunos Surdos na rede regular de ensino. Levando em conta o contexto de cidades do interior da Zona da Mata Mineira, os quais não possuem escolas Bilíngues, e que as pessoas Surdas ainda estão em processo de consolidação política para a busca de direitos, a construção de conhecimentos por meio da escola de educação básica torna-se uma possibilidade de obtenção de acessibilidade. 5.2 Formação Inicial e Continuada A Formação Inicial caracteriza-se como o ponto de partida, na trajetória acadêmica, para o aprendizado. Já a Formação Continuada é compreendida como um processo de ressignificação das experiências profissionais, agregando novos valores e competências. Assim, a formação propicia um grande desenvolvimento de competências dos profissionais para atender a demanda da diversidade em sala de aula. Nessa perspectiva nota-se que a formação profissional abandona a concepção formal de educação, em que o sujeito é colocado como passivo, e avança em direção a uma educação cidadã. Freire (1970) afirma que a constituição de uma educação dialógica ocorre como a práxis, onde é possível viabilizar a ação e a reflexão das pessoas, as levando a constante transformação: O educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os “argumentos de autoridade” já, não valem. Em que, para ser-se, funcionalmente, autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra elas (FREIRE, 1970, p. 39).

No processo de formação, conforme a ótica de Freire, todos são educados em conjunto, tanto o docente quanto o aluno, por isso o professor deve-ser consciente de que é um mediador em constante transformação. Para tanto, Zeichner (2005) destaca a importância de pesquisas de formação de professores em diferentes áreas dos saberes para discutir semelhanças e especificidades da

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formação. Assim, é necessário que tenha programas de formação docente e mudanças de perfil dos professores que atuam em escolas públicas, principalmente. Além disso, é necessária a avaliação constante desses programas. Dessa forma, o curso de formação continuada em LIBRAS possibilitou a percepção de que os professores estão preocupados com sua formação, pois em vários momentos é possível observar, inclusive a partir das entrevistas, o anseio de estudar, aperfeiçoar-se e colocar a LIBRAS em prática na sala de aula. Ao discorrem sobre o curso de LIBRAS e as possíveis ressignificações das estratégias de ensino utilizadas nas aulas para o contexto do ensino fundamental com a presença de alunos Surdos, percebemos as aulas estão colaborando para a atuação dos mesmos com pessoas surdas. Foi visto claramente na fala de

que o curso de formação auxiliou nessa formação, quando

diz que Com certeza. Tenho aluno surdo em minha turma e o curso está contribuindo para a minha atuação como profissional qualificado a atender crianças ouvintes e surdas (sic) (Prof. Ensino Fundamental). Percebe-se que a participação do professor no curso de LIBRAS possibilitou uma qualificação acerca da inclusão dos alunos em sala de aula. O curso despertou além da consciência da importância de comunicação entre os alunos a necessidade de aprender novas estratégias de ensino para que essa comunicação se concretize de forma singular. Como é apontado também na fala de:

Sim. Apesar de não trabalhar diretamente com crianças

surdas, sei que a escola possui crianças surdas e acho importante sabermos a LIBRAS para podermos comunicar com essas crianças quando necessário (sic) (Prof. Português). Evidenciamos o interesse dos professores em se qualificar e aprender LIBRAS para obter êxito na comunicação com os alunos Surdos, uma vez que a escola propõe o trabalho de inclusão e, por isso, atende alunos Surdos. Essa busca de formação profissional docente vem sendo alvo de pesquisas e debates educacionais, pois as novas tecnologias e a diversidade cultural determinam uma ação por parte do professor, exigindo que ele se capacite para atender às diferenças e assegurar os direitos de todos. Configura-se, desta forma, novos rumos para o ensino da LIBRAS em cursos de formação de professores nos processos de formação inicial e continuada. Assim, percebe-se a importância dessa formação docente, pois, segundo Ferreira (2009) não é possível pensar a

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formação de professores para alunos Surdos de maneira isolada. Contudo essa formação plural deve ter suas consequências refletidas na sociedade como todo – se faz importante repensar a escola, a aprendizagem e a formação do professor para adequar-se às exigências e desenvolver o conteúdo de forma dialógica a todos. Os reflexos dessa formação são notórios também na fala de

posto

que

a

professora diz acreditar que o curso tem dado um feedback positivo na sua atuação, principalmente em relação ao aluno-professor-família, conforme segue: Acredito que sim, agora posso conversar mais com os alunos surdos da escola e com a Luciana (mãe surda de uma aluna ouvinte) sem precisar dela ficar fazendo somente a leitura labial (sic) (Prof. Educação Básica). Nesse contexto Matias-Pereira (2008) destaca que o professor tende a transformar seu espaço de atuação, a fim de alcançar o desenvolvimento das novas tecnologias de transmissão de informação e conhecimento, atendendo a aceleração dos meios de comunicação capazes de modificar tais perspectivas de formação dos seres humanos. Com isso, a formação profissional, segundo Giroux (1997), está ligada à interação e vivência: Formar-se supõe troca, experiência, interações sociais, aprendizagens, um sem fim de relações. Ter acesso ao modo como cada pessoa se forma é ter em conta a singularidade da sua história e, sobretudo, o modo singular como age, reage, e interagem os seus contextos. (GIROUX, 1997, p. 115).

Nesse processo de formação deve ser considerado o saber docente, que é constituído através “de uma reflexividade crítica sobre as práticas e de (re)construção permanente de uma identidade pessoal”, ou seja, é pela experiência vivenciada pessoal e profissionalmente que o professor reconstrói sua identidade (NÓVOA, 1992, p. 25). Uma das principais questões que perpassa a escola nesse sentido vem da formação de professores que, para Salles (2007), deverá desenvolver-se em ambiente acadêmico e institucional especializado. Esse ambiente poderá promover a investigação dos problemas dessa modalidade de educação, buscando-se oferecer soluções teoricamente fundamentadas e socialmente contextualizadas.

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Para isso, mesmo os professores que ainda não tiveram alunos Surdos conseguem reconhecer a importância do aprendizado da LIBRAS para uma comunicação futura, como diz : Por enquanto não, pois não

tenho alunos Surdos. Mas creio que o curso me ajudará

muito

posso ter alunos Surdos e ao trabalhar com eles estarei

futuramente,

porque

mais preparada e com menos medo (sic) (Prof. Educação Básica). Devem ser utilizados, então, métodos e técnicas que contemplem linguagens e códigos apropriados às situações específicas de aprendizagem, incluindo-se, no caso de surdez, a capacitação em Língua Portuguesa e em Língua de Sinais.

6. Considerações finais As discussões que envolvem a formação de professores vem se ampliando significativamente, porém apenas pesquisas não bastam. É necessário que as reflexões influenciem o cotidiano escolar, isto é, que as teorias e suas discussões promovam a melhoria efetiva na vida prática de docentes e discentes. Nesse processo, que foi acompanhado e analisado durante nossa pesquisa, buscou-se entender como os docentes constroem seus conhecimentos e reflexões acerca de sua formação acadêmica e das atividades do cotidiano a respeito da inclusão, por meio do Curso de Formação em LIBRAS. Destacamos, então, a LIBRAS como uma língua necessária para o aprendizado do aluno Surdo, bem como sua interação com os ouvintes e professores. Ao concluir a presente pesquisa percebe-se que a LIBRAS ainda encontra resistência no que diz respeito a ser uma língua efetivamente incluída na escola de ensino regular, uma vez que, pela legislação, todos os professores precisam conhecer e saber se comunicar por meio dela, haja vista a educação inclusiva. Porém, na realidade estudada, temos professores sem formação adequada e escolas sem recursos para que aquela seja uma escola efetivamente inclusiva, agradável, eficiente e segura para os estudantes Surdos. Isso decorre de um processo de formação inicial e continuada precária, no qual ou inexiste o ensino e aprendizagem da LIBRAS nos currículos, ou, quando existe, é ineficiente e falho, a ponto de não assegurar a qualidade da atuação docente por meio de mediações pedagógicas, como elementos do processo formativo.

194


Está pesquisa apontou que os debates que envolvem a formação de professores e a construção de saberes a partir da práxis são ressignificados a partir da inserção da LIBRAS como mais um componente a ser experienciado no âmbito educacional. Pode-se também afirmar que o processo educacional caracteriza-se, dentre outros, com a presença de pessoas Surdas e ouvintes dividindo o mesmo ambiente em salas de aula. Ao analisar às entrevistas dos professores sujeitos da pesquisa, percebemos uma importante reflexão sobre a formação teórica e a prática vivenciada dia-a-dia em sala de aula. Essas reflexões parecem atender ao que se propõe, quando se pensa em formação teórica/prática no processo de ensino aprendizagem. Nessas análises, observamos a importância da formação de professores em LIBRAS, pois ao final do curso, os mesmos se apresentavam seguros de seu papel na comunidade escolar e a possibilidade de seguir estudando em uma especialização e aprendendo novas estratégias de ensino. Isso reforça a relevância do desenvolvimento dessa pesquisa, pois as ações dos professores participantes do curso passaram a repercutir no âmbito da sala de aula. Assim, a validade do curso é apontada não somente como um potencial de sensibilização e aprendizado do nível básico da LIBRAS, mas também por corroborar com a inserção dos professores de forma engajada no processo de formação e reflexão destes com suas próprias práticas educativas e inclusivas.

Referências Bibliográficas BRASIL. Lei Federal nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília 1996. ______. Decreto nº 5.626 de 22 de dezembro de 2005, que regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais -LIBRAS, e o art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Publicado no Diário Oficial da União em de 22 de dezembro de 2005. ______. Declaração de Salamanca e linha de ação sobre necessidades educativas especiais. Brasília: CORDE, 1994. FERREIRA, B. M. S. A LIBRAS na Formação do Professor: Por uma Educação Inclusiva de Qualidade. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/154654366/A-LIBRAS-na-Formacaodo-Professor> Acessado em: 19/05/2016. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970. GIROUX, H.A. Os professores como Intelectuais: Rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artes médicas, 1997.

195


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NOTAS I

O termo comunidade Surda é considerado êmico e, em específico a palavra Surda, com a letra S em maiúscula,

ocorre para a denominação daquelas pessoas que se consideram culturalmente diferentes e que utilizam a LIBRAS como primeira língua (PADDEN & HUMPHRIES, 2006). O projeto de “Formação de Professores em LIBRAS” teve parceria via o edital “Fapemig 13/2012, Pesquisa em

II

Educação Básica, Acordo Capes-Fapemig”, para obter verbas suficiente para desenvolver toda pesquisa proposta. O mesmo iniciou em 2013 e finalizou em 2015. III

Utilizamos como referência sobre inclusão a declaração de Salamanca (1994) na qual estimulou

discussão acerca da inserção e valorização do indivíduo diante da educação, a fim de que os governos “adotem o princípio de educação inclusiva em forma de lei ou de política, matriculando todas as crianças em escolas regulares, a menos que existam fortes razões para agir de outra forma”.

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A REPRESENTAÇÃO DA MEMÓRIA EM O AMANUENSE BELMIRO Aliny Santos Justino Professora substituta de Língua e Literatura Francesa na Universidade Federal de Viçosa. Doutoranda em Teoria e Crítica Literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: alinyufv@gmail.com

Resumo: Essa pesquisa concentra-se na abordagem da memória como temática e parte decisiva da construção literária de O amanuense Belmiro (1937), romance de Cyro dos Anjos. Nesse romance, temos a figura conflituosa do narradorpersonagem Belmiro Borba que, desde o primeiro momento, se diz empenhado em escrever suas memórias e, dessa forma, reviver seu passado. Entretanto, tal empreendimento mostra-se falho, em certa medida, já que, aos poucos, Belmiro percebe que o presente vai tomando conta da narrativa e, o que era para ser um livro de memórias, acaba por se tornar uma espécie de diário, em que relata todas as suas altercações com a realidade. Contudo, no desenrolar desses apontamentos diários, Belmiro insere várias evocações de seu passado e de seu clã: a família Borba. Nesse momento, instala-se um grande conflito entre narrar o presente e rememorar o passado – o diário e as memórias – e que será predominante em todo o processo ficcional. Nesse processo constitutivo do narrador-personagem, também é bastante decisivo seu caráter onírico. Belmiro não apenas oscila entre a narrativa de sua realidade cruel e do seu passado, como é acometido por fantasias. Logo, seus relatos, tanto os relacionados ao presente, quanto os relacionados ao passado, são afetados por sua imaginação. Nosso objetivo é tratar da representação da memória no romance a partir das considerações feitas pelo próprio narradorpersonagem. Neste sentido, veremos como a memória vai sendo representada na narrativa através das reflexões tecidas por Belmiro acerca do passado e da memória, em que também se inserem as reflexões sobre recordação e esquecimento. Para isso, a análise destas reflexões incluirá as formulações teóricas de Ricoeur (2007) e Weinrich (2001), sobretudo quando analisarmos as diversas alusões a Bergson e a Proust, presentes no romance. Em seguida, abordaremos a relação entre memória, passado e imaginação, que interfere decisivamente em seu presente. Palavras-chave: Memória. Romance. Cyro dos Anjos.


Tomando por base a hipótese de Proust apud Weinrich (2001, p. 207) de que “a literatura e a memória são próximas” e de que “para um escritor a realidade só se forma na memória”, temos em O amanuense Belmiro a construção de uma realidade conflituosa em que a memória exercerá um papel estruturador. Belmiro Borba é um burocrata, funcionário da Seção de Fomento Animal, que vive em grande conflito com o mundo – grande traço do seu processo constitutivo. De um lado está a riqueza do seu mundo interior e, de outro, a realidade, a qual ele vê como sendo a força destruidora que o impede de ser tudo aquilo que deseja ser. Em consequência deste conflito é que o narrador-protagonista empreende seus mergulhos no passado, na sua cidade natal – Vila Caraíbas –, para tentar buscar nessas rememorações dos “tempos idos” os seus pontos de apoio, que se materializariam na forma de um livro de memórias. Não obstante, seu empreendimento torna-se falho à medida que o projeto de memórias dá lugar a um diário em que relata os acontecimentos de sua vida em Belo Horizonte e de seus amigos. Logo, vê-se que há na narrativa uma relação conflituosa entre narrar o presente e rememorar o passado – entre o projeto de um livro de memórias e a elaboração do diário – que que será predominante em todo o processo ficcional. Na verdade, o personagem é um ser que não se sente à vontade no mundo em que vive. Assim, este compromisso assumido consigo mesmo de escrever as memórias de sua família, na realidade, assumiria a forma de um doce e cômodo refúgio. A partir disto, iremos abordar a presença de dois componentes decisivos na estruturação de O Amanuense Belmiro e que compõe a representação da memória: as considerações feitas pelo narrador-personagem Belmiro, a tematização da memória e seus consequentes desdobramentos no livro através da relação intrínseca entre memória, imaginação e passado. Primeiramente, trataremos da representação da memória no romance a partir das considerações feitas pelo próprio narrador-personagem. Neste sentido, veremos como a memória vai sendo representada na narrativa através das reflexões tecidas por Belmiro acerca do passado e da memória, em que também se inserem as reflexões sobre recordação e esquecimento. Para isso, a análise destas reflexões incluirá as formulações teóricas de Ricoeur (2007) e Weinrich (2001), sobretudo quando tratarmos das diversas alusões a Bergson e Proust, presentes no romance. Em seguida, abordaremos a relação entre memória, passado e imaginação, que se estabelece desde as referências ao mito Donzela Arabela – relacionado à intrínseca ligação entre as lembranças do

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passado do narrador-personagem e o imaginário construído por ele mesmo –, que interfere decisivamente em seu presente.

As considerações de Belmiro acerca do passado e da memória Como vimos, Belmiro é um ser que não se sente à vontade na dimensão temporal em que está submetido, o tempo presente. Está sempre oscilando entre a narrativa de sua realidade cruel e seu passado. Não por acaso, não há um só capítulo do romance em que o narrador-personagem não se embrenhe na dimensão temporal do passado. Tais rememorações configuram sua tentativa de escrever suas memórias, sendo esse o terceiro projeto que empreende, pois fracassara nos dois anteriores. Seu interesse pela rememoração do passado representa, em verdade, uma tentativa de reviver os tempos idos, porquanto é no passado que encontraria a si mesmo e se sentiria completo. O presente não o interessa, uma vez que é o responsável por seu desconforto em relação ao mundo. Ao mesmo tempo em que realiza um esforço constante de relembrar o passado, Belmiro questiona o porquê de buscar esses resquícios da vida para reintegrá-los à alma, se estes já não estão lá. Todo esse empenho revela-se, para o personagem, uma “vã tentativa de reintegração de porções que se desprenderam da alma nesse trajeto imenso. Em cada ramo do caminho ficou um pouco de nossas vestes e é inútil voltar, porque os bichos comeram os trapos que o vento não levou” (ANJOS, 2001, p. 60). Desse modo, o amanuense parece nos dizer que mergulhar em si mesmo para buscar suas lembranças, na tentativa de recompor os quadros do passado para revivê-los, é inútil. Sob sua perspectiva é impossível retratar com exatidão um tempo que já se foi, pois muito do que constitui o passado, já se perdeu. O desejo de memórias do narradorpersonagem parece revelar-se, desde o início, fadado ao fracasso. Em sua constante necessidade de refúgio no passado, Belmiro deixa claro a importância que as paisagens assumem nesse processo, visto que está sempre procurando aquelas que mais lhe aprazem. Entretanto, conclui que as paisagens do mundo caraibano não se acham no espaço, mas no tempo. Por conseguinte, o panorama do seu tempo é o passado – é lá que estão os cenários que lhe dão abrigo. Em seguida, o amanuense ratifica seu pensamento, ao relatar a última ida a Vila Caraíbas, em 1926, na ânsia de rever as velhas paisagens. Nesse relato descreve as transformações físicas sofridas pela cidade ao longo dos anos e percebe que:

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As coisas não estão no espaço, leitor; as coisas estão é no tempo. Há nelas ilusória permanência de forma, que esconde uma desagregação constante, ainda que infinitesimal. Mas não me refiro à perda da matéria, no domínio físico, e quero apenas dizer-lhe que, assim como a matéria se esvai, algo se desprende da coisa, a cada instante: é o espírito cotidiano, que lhe configura a imagem no tempo, pois lhe foge, cada dia, para dar lugar a um novo espírito que dela emerge. Esse espírito sutil representa a coisa, no momento preciso em que com ela nos comunicamos. Em vão o procuramos depois: só veremos outro, que nos é estranho. Na verdade as coisas estão é no tempo, e o tempo está é dentro de nós. A essência das coisas, em certa manhã de abril, no ano de 1910, fugiu nas asas do tempo e só devemos buscá-la na duração do nosso espírito. (ANJOS, 2001, p. 97-8).

Assim sendo, procurar as lembranças dessa cidade é buscar uma espécie de morte, pois o passado é aquilo que deixou de existir como presente e se arremessou para trás. Enfim, representa um mundo que já morreu. Por mais que arrisquemo-nos a ir à busca de um panorama do passado, só o encontraremos em nós mesmos. Nessa ratificação de Belmiro, podemos compreender uma das alusões a Henri Bergson, explicitadas por Ricoeur. Para esse autor, quando um determinado evento nos marca afetivamente, esse permanece em nosso espírito, inscrevendo-se em nós. A inscrição seria a permanência dessas impressões e a duração dessas inscrições-afecções, que conservam o segredo dos vestígios mnemônicos, sendo esse um pressuposto fundamental apontado por Ricoeur. Devido à duração das inscrições-afecções é que se torna possível o reconhecimento, pois este é a prova incontestável de que as impressões sobreviveram. O reconhecimento, como resultado de uma memória bem sucedida, “consiste na exata superposição da imagem presente à mente do rastro psíquico, também chamado de imagem, deixado pela impressão primeira” (RICOEUR, 2007, p. 438). Dessa forma, o reconhecimento é a evidência da representação presente de uma coisa ausente e passada, ou ainda, consiste na percepção de uma coisa que esteve presente, ausentou-se e tornou a voltar à memória. Bergson identifica duas formas de memória que consistem em “duas modalidades de reconhecimento, a primeira se fazendo pela ação, a segunda por um trabalho do espírito ‘que iria buscar no passado as representações mais capazes de se inscreverem na situação atual, para dirigi-las rumo ao presente’” (apud RICOEUR, 2007, p. 440). O viés da psicologia também vai ao encontro dessa distinção de Bergson, ao notar que o passado se conserva através de duas

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formas, por um lado, o movimento físico e, por outro, as imagens-lembranças; uma diz respeito à memória que revê e a outra à memória que repete. Portanto, o fenômeno de reconhecimento está associado à sobrevivência das imagens-lembranças em estado latente. Em decorrência desse fato, Bergson infere que o passado só pode ser entendido como tal por sua existência junto ao presente que ele já o fora algum dia. A distinção entre presente e passado é ainda complementada por Ricoeur da seguinte forma: [...] a ideia de latência invoca a de inconsciente, se chamarmos de consciência a disposição para agir, a atenção á vida, pela qual se exprime a relação do corpo com a ação. Insistamos com Bergson: ‘Nosso presente é a própria materialidade de nossa existência, isto é, um conjunto de sensações e de movimentos, nada mais’. Disso resulta que, por contraste, por ‘hipótese’ o passado é ‘o que não age mais’. (RICOEUR, 2007, p. 442).

Resta a crença que nos é dada, através do reconhecimento, de que nossas lembranças não estão perdidas. Pelo contrário, elas podem sobreviver e voltar à memória. Outra alusão presente no romance, refere-se às afirmações de Marcel Proust a respeito da memória. Na verdade, a memória e seu conjunto de lembranças que Belmiro teima em trazer à tona, através de um esforço de recordação, ilustram a forma de uma memória voluntária. Entretanto, as lembranças que vem espontaneamente a Belmiro são parte de uma memória involuntária. Para Proust, a memória voluntária corresponde a uma memória da inteligência, consequência de um esforço dirigido para a rememoração que, do seu ponto de vista, não é capaz de oferecer um panorama verdadeiro do tempo passado. Essa memória é trazida à tona para a execução de objetivos ordinários e, logo depois, retorna para um esquecimento, igualmente ordinário. Não há poeticidade nesse tipo de memória, tornando-a desimportante para a literatura, sob a ótica de Proust. Em oposição, a memória involuntária acena com extremo júbilo para a criação literária. Essa memória não sucumbe à razão e nem ao desejo de rememoração, ela se dá de maneira espontânea, sem que esteja a sua espera. Por essa razão é que Proust a vê como mais fidedigna ao passado, pois a memória involuntária espera para que as lembranças retornem de forma espontânea, sem que um esforço, no sentido de trazê-las à tona ou de lutar contra o esquecimento, estrague a própria lembrança:

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[...] é uma memória a longo prazo, que abrange o tempo de vida da pessoa. Anos e décadas podem estar entre a percepção sensorial inicial e a vivência lembrada efetuada. Frequentemente trata-se do retorno a uma lembrança da infância (mas não da mais remota!) que dessa maneira avança num grande salto temporal para o mundo de um adulto que recorda. (WEINRICH, 2001, p. 211).

De acordo com Belmiro, essas lembranças estão no tempo e suas essências permanecem dentro de nós através do processo de duração, que encontra sua justificação em Bergson. Para esse autor, o passado, representado através das imagens que compõem essas lembranças, contém partes das referências das situações do mesmo, e a memória é, nesse caso, a absorção dessas partes. No entanto, Proust não encara do mesmo modo. Para ele, o longo intervalo entre a experiência vivenciada e seu retorno em forma de lembrança “não é sentido como duração mas permanece inconsciente em sua extensão temporal” (WEINRICH, 2001, p. 211). Em outro momento da narrativa, Belmiro está a passar pelo Carlos Prates quando se depara com uma roda de música, composta por várias mulheres dançando. Essa imagem é suficiente para incitá-lo a ver na roda de Belo Horizonte, as rodas que eram frequentes em Vila Caraíbas. Depois de descrever as cenas de sua infância e mocidade, o amanuense reflete sobre o processo de rememoração. Segundo o narrador-personagem, a poeticidade dos acontecimentos só é percebida através do fenômeno da rememoração: No momento preciso em que certos quadros se desdobram aos nossos olhos, quase sempre não lhes percebemos a intensidade lírica, nem lhes apreendemos a substância rica de poesia. Nosso olhar circula vago e às vezes quase indiferente. Mais tarde é que, através da memória, vamos com os olhos da alma penetrar no âmago daquelas paisagens extraordinárias. Quanto o inconsciente é fino, sutil, receptivo, nos seus trabalhos subterrâneos! Só hoje, depois de uma ascensão lenta, as camadas profundas me trazem o panorama, a cor, a luz, o tom e a música de longínquos dias, que pareciam perdidos. (ANJOS, 2001, p. 164-5).

No momento em que os eventos acontecem, é impossível que captemos sua vivacidade. Portanto, de acordo com a perspectiva do narrador, o presente só ganha substrato lírico quando se transforma em passado, através da rememoração. Pela ação da memória involuntária, o inconsciente trabalha acrescentando às lembranças, as emoções que eram desconhecidas. De acordo com Weinrich, existem alguns instrumentos que são capazes de sugerir à rememoração,

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no caso de Belmiro, o mais comum é a audição – haja vista a relevância da música como fator desencadeante de vários processos de rememoração na obra. A música traz à tona o mundo de doces melodias, dos vultos femininos e de lirismo, que sempre fizeram parte de sua essência. Dessa forma, a audição é o instrumento que transporta o amanuense para as lembranças do passado, sendo o portador da memória poética, que desencadeia a segurança para o personagem de que ele esteja diante da felicidade de uma memória verídica. Nesse sentido, vemos que uma recordação verídica dá ao personagem,a felicidade e a sensação de vencer a morte, de vencer o tempo. A felicidade, talvez, resida no fato de que, conseguindo trazer à tona uma imagem verídica do passado, o tempo não tenha agido com sua força desagregadora sobre tudo, portanto, aquilo que se queria lembrar ainda não se dissolveu. Para Weinrich, Proust via nos cinco sentidos uma importância relevante para o tipo de memória “que quer lembrar durante um tempo mais longo” (WEINRICH, 2001, p. 209), pois eles conferem maior durabilidade às suas próprias impressões. A ênfase na durabilidade das impressões, proporcionada por esses sentidos, talvez explique a importância e a presença constante da audição nos processos de rememoração empreendidos por Belmiro. Disso resulta a intensidade poética das rememorações de Belmiro, uma vez que elas são sugeridas por estes sentidos “‘mais profundamente’ instalados são por isso também os sentidos mais poéticos” (WEINRICH, 2001, p. 210). Outro fator que corrobora a concepção de Belmiro sobre a poeticidade presente nas lembranças que são rememoradas, deve-se a uma porção precisa de memória e de esquecimento, assim como nas rememorações descritas por Proust. De acordo com Weinrich: Obviamente está exatamente no esquecimento prolongado, em cujo regaço uma experiência real pode amadurecer em sua essência poética, a fonte daquela mais-valia poética que distingue um pedaço de vida quando atravessou o esquecimento e dele ressurge renovada e transformada. (WEINRICH, 2001, p. 211).

Assim sendo, a poeticidade das lembranças está diretamente relacionada à atuação da memória involuntária, uma vez que ela que retira as lembranças do fundo do esquecimento, sem a interferência da razão e do desejo de lembrar. Essas lembranças trazidas à tona, por serem “purificadas de toda a contingência pela longa duração do esquecimento, são essencialmente

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humanas e fundamentalmente poéticas” (WEINRICH, 2001, p. 212). Posto isso, torna-se válida a percepção de Belmiro de que as situações tornar-se-iam mais poéticas quando transformadas em passado, retornadas ao presente através da rememoração. No capítulo 4, Belmiro narra uma noite insone de Natal, em que é acordado pelo cachorro do vizinho e lança seu sapato na intenção vã de fazê-lo parar de latir. Todavia, antes de adentrar nos pormenores do acontecimento, o amanuense tece um comentário que faz alusão a uma teoria da reminiscência, como podemos observar: [...] apenas impressões vagas, prestes a se apagarem, me vinham das coisas, e a uma reminiscência tênue (fraca), quase a esvaecer, reduzia-se esta lembrança permanente com que, no estado de vigília, a memória sustenta, a cada instante, nossa precária unidade psíquica, ligando o momento que passou ao momento presente. (ANJOS, 2001, p. 29).

Sob sua ótica, a memória é a faculdade responsável por tentar sustentar as lembranças, ligando o momento que passou ao presente, a cada instante, para que a lembrança se torne permanente. No entanto, as lembranças permanentes reduzem-se a lembranças vagas e difusas até serem esquecidas. Não obstante, em oposição à recordação, temos o esquecimento e seus efeitos que ameaçam a memória. De acordo com Ricoeur, o esquecimento possui dois saberes díspares, o interior e o exterior. O primeiro diz respeito à capacidade de duração das impressõesafecções e o segundo decorre do funcionamento do próprio corpo. Portanto, a recordação tem como antagonista o esquecimento, pois é contra ele que o esforço de busca resiste. Assim sendo, Ricoeur traz à tona o desconhecimento que se tem a respeito da origem do esquecimento, pois “trata-se de um apagamento definitivo dos rastros do que foi aprendido anteriormente, ou de um impedimento provisório, este mesmo eventualmente superável, oposto à sua reanimação?” (RICOEUR, 2007, p. 46). Por essa razão é que a recordação e todo seu esforço de luta contra o esquecimento gera certa inquietude, já que o resultado bem-sucedido – a memória feliz – é incerto. O esquecimento é um impedimento que pode ser momentâneo ou o resultado do desgaste natural e inevitável dos rastros, das afecções originárias, causada pelo tempo. Sob esse aspecto, “boa parte da busca do passado se encaixa na tarefa de não esquecer” (RICOEUR, 2007, p. 48) e o esforço de recordação representa o embate da memória contra o esquecimento.

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No início do capítulo 15, Belmiro relata o esquecimento de Arabela/Carmélia por alguns dias e, em virtude disso, busca as razões de tal acontecimento. Nesse momento, entra em cena seu caráter racionalizador e o personagem trama uma teoria do esquecimento. De acordo com o amanuense, o esquecimento é o que dá repouso à nossa sensibilidade e é por essa razão que Deus dispõe de inúmeros subterfúgios que o favorecem. A perspectiva de Silviano é de que “[essas intermitências] é que entretém a vida e a preservam de efeitos devastadores de um sentimento intenso e continuado” (ANJOS, 2001, p. 57). Entretanto, segundo Belmiro, ao se entreter com esses subterfúgios ou intermitências, aquilo que se queria esquecer volta com uma força ainda maior, devido a uma “ardilosa conspiração das coisas”(ANJOS, 2001, p.58).Ao tecer seus comentários a respeito da mnemopoética de Proust, Weinrich destacou a semelhante importância do esquecimento para a arte da memória, aliando, consequentemente, a poética do esquecimento à poética da memória – tendo em vista o interesse de Proust especificamente direcionado à memória involuntária – que só retorna ao presente depois de passar por um longo esquecimento. Evidentemente, no Amanuense, o par memória-esquecimento não apresenta a mesma natureza, todavia, seu significado pode ser estendido para o âmbito do romance. Nesse sentido, podemos estabelecer outra ordem de relações entre memória e esquecimento na narrativa. Vimos que o romance apresenta o embate travado pelo narradorpersonagem entre narrar o presente ou rememorar o passado e outro, em um nível mais interno, onde o personagem luta entre o permanecer imerso em si mesmo como fuga da realidade ou entregar-se a esta. No segundo caso, poderíamos entender a imersão empreendida pelo amanuense como um esforço direcionado ao esquecimento. Dessa forma, a tentativa do amanuense de rememorar o passado, contém uma dimensão de esquecimento, na medida em que seu projeto de memórias é uma das maneiras que empreende para fugir de sua existência ordinária e alheia a uma significação. No entanto, Belmiro não obtém êxito nessa tarefa, posto que sua escrita se concentre no tempo presente. Novamente, recobramos a sua teoria do esquecimento, mas dessa vez para explicar o insucesso de sua escrita memorialística. O fenômeno do esquecimento – escrever o passado – tem por objetivo dar repouso à sensibilidade, prevenindo de altercações mais acirradas, causadas pelo presente e sua força desagregadora. A empreitada pode resistir, mas,

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não por muito tempo, pois o que queríamos esquecer volta de forma mais intensa, consequentemente, o presente toma conta da narrativa. Em suma, escrever sobre o passado é procurar esquecer o presente, visto que este esquecimento apaziguaria a dor do contato com a realidade esmagadora. O esquecimento é um desejado refúgio, onde Belmiro tira as forças para continuar vivendo e, segundo Weinrich, toda a fonte de intensidade poética está no esquecimento.

A relação entre passado, memória e imaginação Outro ponto a ser apresentado e que faz parte do processo constitutivo desse narradorpersonagem, relaciona-se ao seu caráter onírico. Belmiro não apenas oscila entre a narrativa de sua realidade cruel e de seu passado, como é acometido por fantasias. Logo, seus relatos, tanto os relacionados ao presente quanto os relacionados ao passado, são afetados por sua imaginação. Diante disso, a narrativa estabelece uma relação intrínseca entre a memória, o passado e a imaginação, sobretudo, tendo em vista às referências ao mito Donzela Arabela e ao Problema Fáustico. Esses dois conceitos fazem parte de um imaginário construído pelo próprio narrador e se entrelaçam às lembranças de seu passado em Vila Caraíbas. Esse imaginário não afeta apenas suas lembranças, mas também, sua relação com o tempo presente, principalmente sua vida amorosa. A primeira referência o Problema Fáustico surge no capítulo 20, quando Belmiro relata uma determinada noite em que resolve ir à casa de Silviano1 e, na ausência deste, acaba lendo, por acaso, seu diário, em que constam suas anotações sobre o problema fáustico. Neste diário, Silviano tece seus comentários acerca desse problema, que consiste no “amor (vida) estrangulado pelo conhecimento” (ANJOS, 2001, p. 67). Mais tarde, já na presença de Silviano, os dois amigos travam uma conversa sobre as inquietações faústicas, que estariam presentes na forma do mito Donzela Arabela, confidenciado pelo amanuense. De acordo com Silviano, o mito Donzela Arabela é um símbolo fáustico que configura a “aspiração do imaterial (insubstancial) e do intemporal feminino” (ANJOS, 2001, p. 70), ou melhor, a aspiração daquilo que não é material e que está fora do tempo, de tornar-se material 1

Silviano faz parte do círculo de amigos pessoais de Belmiro. Com ele, o amanuense trava as conversas mais densas acerca da literatura e da filosofia. É considerado o amigo filósofo.

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e inserir-se nesse mesmo tempo, representando “a vida que foge diante do asceta!” (ANJOS, 2001, p. 71). Dessa forma, o mito que tanto preenche a vida de Belmiro, constitui um símbolo fáustico do asceta – daquele que renuncia ao prazer. Esse símbolo é fruto do que a imaginação do asceta cria e representa a irrealização do seu desejo. Nesse caso, o mito Donzela Arabela é a vida que foge, estrangulada pelo conhecimento – é o fantasma do desejo a que ele renuncia, mas que está a assombrá-lo. Porém, o mito Donzela Arabela não é o único símbolo fáustico apresentado pela narrativa, pois constantemente há referências às moças em flor. Essas também entrariam neste conceito, posto que representem, de alguma forma, essa vida que foge. Assim sendo, as moças em flor também se configuram aspirações atemporais, como Jandira2 bem nota, ao lamentar-se pelo fato de ela mesma ser o oposto deste símbolo fáustico, já que essas estão sempre protegidas por um sistema que as torne impossíveis para os homens. Impossibilidade esta que gera todo um mundo de doces fantasmas, desencadeando o sentimento amoroso. Um exemplo dessa referência encontra-se no capítulo 18, em que Belmiro é levado por Glicério3 para um jogo de pôquer na casa do Senador Furquim. Lá, depara-se com um baile, em que havia muitos jovens rapazes e moças em flor. Belmiro permanece a um canto da casa a observar o baile e volta ao passado, relembrando os bailes e as moças de Vila Caraíbas. Surge um desconforto perturbador que o faz sentir a necessidade de fugir das moças em flor, sobretudo de Carmélia, pois este contato deixa ainda mais evidente a passagem do tempo. Para o amanuense: “Receber o calor dos novos e sofrer-lhes o contato ainda é pior que o frio de uma velhice que nos espreita” (ANJOS, 2001, p.63), por essa razão, é melhor refugiar-se no passado – onde o tempo não passa, está estático. “A quem vai passando, o melhor é esconder-se nas cavernas do peito e nelas procurar o panorama do seu tempo” (ANJOS, 2001, p. 63), e criar fantasmas que o façam esquecer-se das ideias cruéis que o amofinam. A primeira referência ao mito “Donzela Arabela” aparece no capítulo 7 do romance, quando na terceira noite de Carnaval, Belmiro desce à Avenida para observar o movimento. Ao analisar as colombinas da Praça Sete, o narrador-personagem é conduzido por um cordão de

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Jandira também faz parte do mesmo círculo de amigos de Belmiro, sendo a única representante feminina. Glicério é o colega da Seção de Fomento Animal que Belmiro procura inserir ao seu círculo de amigos pessoais apenas para obter informações a respeito de Carmélia, posto que o novato fosse conhecido da família da moça. 3

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foliões até um baile de carnaval, em um clube da cidade. Em certo momento, uma moça o pega pela mão e junto a outros foliões rodopiam pelo salão. Assim, é nesse baile que ele se depara com o amor, pois esta linda jovem lhe roubará vários momentos de delírios. Futuramente, Belmiro até vem a conhecer seu nome, Carmélia, mas nada mais que isso. Carmélia exercerá tal fascínio em Belmiro, que ele acabará relacionando-a ao mito da Donzela Arabela,que tem origem em sua infância, nas noites da Fazenda, onde contava-se a história de Arabela, uma linda donzela que morrera de amor e entoava tristes canções na torre de um castelo. Durante todo o baile, permanece nessa divagação, fora do tempo e do espaço e só dá conta de si ao raiar do dia seguinte. O mito passa a preencher sua vida, fazendo com que se entregue às emoções e devaneios, em busca de sua conciliação com o mundo.O Belmiro que sucumbe ao mito é o Belmiro patético e obscuro, que se entrega ao mundo de sensibilidade – evocando o passado – em detrimento do Belmiro sofisticado e racional – que se atém ao relato do presente. Para o amanuense, o mito é o alimento para os homens e com propósito, é desse alimento que sua vida irá se nutrir ao longo de toda a narrativa. A partir desse episódio, Belmiro passa a criar toda a sorte de fantasias em torno de Carmélia, que tem sua imagem real associada à figura da Donzela Arabela. Em alguns momentos da narrativa, Belmiro procura analisar com objetividade o que se passara no Carnaval. Sob sua perspectiva, é essencial para sua vivência buscar dentro de si material para suas “combustões interiores” (ANJOS, 2001, p. 40), pois são essas que, de certa forma, acalmam seu espírito. Contudo, há momentos em que a realidade se impõe e o obriga a retornar de seus passeios interiores. Contudo, a alma não satisfeita e a vida que “não se conforma com o vazio” (ANJOS, 2001, p. 41) criam uma armadilha contra si mesmo – a qual o amanuense explica da seguinte forma: Para iludir-lhe o espírito vaidoso, oferecem-lhe o presente sob aspectos enganosos, encarnando formas pretéritas. Trazem-lhe uma nova imagem de Arabela, humanizando o “mito da donzela” na rapariga da noite de carnaval. Foi hábil o embuste, e o espírito se deixa apanhar na armadilha... (ANJOS, 2001, p.40).

Preso neste “embuste”, põe-se a procurar a Donzela por todos os lugares, com o espírito inquieto e atordoado pelo fenômeno de humanização do mito. Esse mito representa a associação entre a lembrança de uma lenda do passado e a figura real do presente. Ricoeur, ao estudar a

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relação entre lembrança e imaginação, tem como ponto chave a seguinte indagação: “Como explicar que a lembrança retorne em forma de imagem e que a imaginação 4, assim mobilizada, chegue a revestir-se das formas que escapam à função do irreal?” (RICOEUR, 2007, p. 66). Para desatar esta questão, Ricoeur recorre, como possibilidade de trabalho, a Bergson e à sua concepção da passagem da lembrança pura à lembrança-imagem. Dessa forma, existiria uma lembrança pura, ainda não travestida em imagem, que passaria desse estado puro a uma forma imagética. A lembrança-imagem seria uma forma intermediária, resultante da união entre a memória que revê e a memória que repete. Essa união ocorreria no fenômeno do reconhecimento, portanto, a recordação também conteria a chave da transformação da lembrança pura em imagens. O trabalho da memória, desse modo, traduz-se em tornar uma lembrança virtual em uma imagem presente. Contudo, esses dois pontos do processo, o estado virtual e a imagem, são distintos, destacando a seguinte ressalva: Imaginar não é lembrar-se. Uma lembrança, a medida que se atualiza, provavelmente tende a viver numa imagem; mas a recíproca não é verdadeira, e a imagem pura e simples só me levará de volta ao passado se eu realmente tiver ido busca-la no passado, seguindo assim o progresso contínuo que a trouxe da obscuridade para a luz (RICOEUR, 2007, p. 68, grifos do autor).

Retomando a narrativa, depois de andar em busca da sua própria criação, Belmiro confessa que essa ideia se dissipara. No entanto, as divagações não cessam e, mesmo quando descobre algumas informações mais contundentes a respeito de Carmélia, sua existência real não se desvincula da mítica Arabela.Com isso, Belmiro oscila entre enxergar Carmélia como figura humana de um mundo real – e nestes momentos afirma que seu desejo é da pessoa e não do mito que ela representa –, ou inter-relacionar essas duas figuras de sua esfera amorosa. No segundo caso, Belmiro se rende ao mundo da imaginação e concebe maneiras de encontrar e se apresentar à moça, salvando a família de qualquer infortúnio. O amanuense permanece oscilando entre reagir e entregar-se aos devaneios e evocações do mito. Em seus momentos de reação, filosofa sobre o mito que criara que, segundo o próprio, se deve ao luar caraibano e reconhece que seus sentimentos não estão direcionados à figura real de Carmélia:

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Nota-se que a imaginação é tomada no sentido de manipulação, formação das imagens.

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E criei um ser fantástico, onde só entram tênues traços da moça; o mais, já se sabe, é contribuição do luar caraibano, das noites ermas, de todo o monstruoso romantismo, secreção mórbida da fazenda e da Vila. Pura imaginação: tudo se resume nisso e nada há além disso. A Carmélia que amei não existe. (ANJOS, 2001, p. 78).

Logo, a partir de uma imagem nebulosa de uma Carmélia real, Belmiro uniu o mito de sua infância, numa atitude de humanização do símbolo fáustico que criara. A sua imaginação se empenha em torno da criatura. No entanto, a figura de Carmélia associa-se não somente ao mito infantil, mas também à imagem de Camila – seu amor de infância que morrera em Vila Caraíbas. As lembranças de Camila e todo o sentimento amoroso que se associa a ela, subsistem no adulto e unem-se à imagem da Carmélia real, a ponto de Belmiro confessar a si mesmo: “Por que te deixei, Camila? Na verdade, eu te amava. O que eu amo nessa Carmélia, que não atinjo, é, talvez, apenas a tua imagem” (ANJOS, 2001, p. 118). Já no capítulo 54, o amanuense parece, enfim, optar por uma direção. Já não reage contra o romantismo que o invade, posto que este seja terno e a fuga é inútil. A escolha por tornar-se um ser onírico o leva a tramar um arranjo, para o entendimento de seu símbolo fáustico. Nele, a Carmélia construída por si mesmo, em detrimento da Carmélia real, será sempre dele, em suas visões, e jamais sofrerá a ação desagregadora do tempo. Esta Carmélia, ora assume seu aspecto real, ora assume o aspecto de Camila. Por esse viés, Carmélia seria apenas um momento da atemporal Arabela, uma lenda criada por ele mesmo que se relaciona, também, às lembranças de Camila. Belmiro está certo de que a convivência viria a destruir a lenda, fruto de sua solidão e da distância decisiva entre a Carmélia que aspira e a Carmélia real. Seria uma lenda criada pela necessidade de dar sentido a uma vida sem sentido. O sentimento amoroso de Belmiro está associado à tentativa de dar significado, de florear e criar habitantes ou seres que preencham sua sensação de vazio. Não obstante, vemos que o sentimento amoroso do narrador-personagem revela-se apenas como elemento mediador do conflito entre o mundo real e o mundo imaginário. Além disso, o princípio em que jaz e se fortifica um mito é o fato da impossibilidade de viabilizá-lo. Desse modo, o amor é impraticável e inviável, sendo assim, o mito permanecerá sempre vivo. A realização do amor, a configuração do mito, seria uma profanação. Portanto,

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ama-se pela simples contemplação do amor, pois o sentimento amoroso nutre-se dele mesmo. Ama-se aquilo que jamais poderá realizar-se, como o narrador mesmo afirma: Mesmo que, algum dia, Carmélia a mim viesse, as bodas seriam impossíveis. O sistema Carmélia e o sistema Borba se repelem. [...] E, ai de mim, estou que o casamento não baniria os mitos. Mito tocado é mito morto, e a imaginação busca outros, sentindo-se ludibriada. Fique Arabela no seu nicho. (ANJOS, 2001, p.120).

Dessa forma, embora Belmiro desista do seu livro, a propósito de seu passado, e passe a concentrar-se no seu presente, há aqueles aspectos do passado que persistem no seu presente. Um exemplo bem nítido é o que se pode chamar de sua idealização da mulher e do amor. As lembranças da figura feminina do passado, Camila, associam-se à figura mítica de Arabela, representando a inviabilidade de realização de seu desejo – uma vez que Camila morrera ainda jovem, impossibilitando qualquer relacionamento futuro entre ambos. Por conseguinte, da impossibilidade de viabilização é que se nutre a permanência das lembranças deturpadas de Camila, ainda no adulto – pois, nesse caso, Camila não é menos míticado que a Donzela Arabela, tendo em vista que a timidez de Belmiro e a morte precoce da moça não promoveram mais que uma idealização da mulher e do amor. A presença imaginária de Arabela, pertencente ao seu mundo infantil, aliada à figura construída de Camila, continuam presentes na vida do adulto, travestindo-se em Carmélia. Consequentemente, a lembrança que Belmiro associa ao passado infantil “se produz no terreno do imaginário. Resulta daquilo que podemos chamar de a sedução alucinatória do imaginário” (RICOEUR, 2007, p. 69). Esse ato imaginativo que deturpa a lembrança rompe com a distância temporal, transformando o passado num dado-presente. Isso se deve ao fato de a imaginação ser associada por Sartre a um ato mágico, que consiste em materializar, através da imagem, aquilo que pensamos, anulando a sua ausência e a sua distância, como se tratasse de uma simulação. Desse modo, “O ‘não estar ali’ do objeto imaginado é recoberto pela quase-presença induzida pela operação mágica. A irrealidade se encontra conjurada por essa espécie de ‘dança do irreal’ (RICOEUR, 2007, p. 69). Assim sendo, a cilada do imaginário alimenta o que Sartre denomina como a “patologia da imaginação”, ancorada na alucinação, ou ainda, um modo patológico de inoculação do passado no presente, com o intuito de assombrá-lo. De acordo com

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Sartre, a mudança da imaginação para a alucinação, origina uma correspondência entre a fenomenologia da memória e a da imaginação, em que a lembrança-imagem equivale a uma forma intermediária entre a ficção e a alucinação. Desse modo, a idealização da mulher e do amor, simbolizadas através do mito Donzela Arabela, se estende às lembranças que Belmiro cultiva de Camila, afetando a construção de sua imagem, que permanece no presente e se associa à Carmélia – que, assim como as duas figuras míticas, é o símbolo do desejo inviável. Por conseguinte, a imagem de Carmélia é afetada pela transfiguração do mito Donzela Arabela e das lembranças deturpadas de Camila. Por essa razão é que podemos entender a permanência do passado de Belmiro em seu presente. Como vimos, ao longo deste trabalho, diante das oscilações constantes entre rememorar o passado e narrar o presente, a narrativa estabelece uma relação intrínseca entre a memória, o passado e a imaginação, sobretudo, tendo em vista às referências ao mito Donzela Arabela e ao Problema Fáustico. Estes dois conceitos fazem parte de um imaginário construído pelo próprio narrador e se entrelaçam às lembranças de seu passado em Vila Caraíbas. Este imaginário afeta, não apenas suas lembranças, mas, também sua relação com o tempo presente, principalmente sua vida amorosa. Nesse sentido, as memórias que Belmiro escreve – seja as que remetem ao passado, ou as que se dizem o relato do presente – assinalam-se um romance engendrado pelos preceitos imaginativos do próprio narrador. O passado em forma de lembranças associa-se à imaginação e volta ao presente, em sua forma escrita, ajudando a construí-lo. Sob tais aspectos, podemos concluir que o romance se constrói partindo das recordações que são adicionadas ao imaginário do narrador-personagem. Ao tratarmos da oposição entre o projeto idealizado por Belmiro e o diário que escreve, também podemos compreender que permanece em evidência o caráter de fixação mnemônica – em que as situações do presente, ao passarem pela escrita, são fixadas e transformam-se em memória. Como vimos, o amanuense explora os temas proustianos, – seja nas constantes reflexões sobre seus conflitos nos domínios do tempo, seja através da dialética existente entre seu desejo de rememorar (memória voluntária) e a impossibilidade de cumpri-lo, e a evocação do passado que surge, a despeito de sua vontade (memória involuntária), ou ainda, nas divagações que compõem seu processo amatório. Enfim, como discorremos, a memória é representada no romance como um elemento fundamental e estruturador a partir das relações

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que apontamos – seja pela riqueza das considerações feitas pelo narrador-personagem acerca do passado e do passado e da memória, bem como das suas reflexões sobre a importância da recordação e do esquecimento para a construção da memória, seja pela relação indissociável entre a memória, o passado e a imaginação.

Referências Bibliográficas ANJOS, Cyro dos. O amanuense Belmiro. 16. ed. Belo Horizonte: Garnier, 2001. 227 p. BERGSON, Henri. Matéria e Memória:Ensaio sobre a relação do corpo com espírito. Tradução de Paulo Neves. 3. ed.São Paulo: Martins Fontes, 2006. 291 p. RICOEUR, Paul. Memória e imaginação; O esquecimento e a persistência dos rastros. In: ______. A memória, a história e o esquecimento. Tradução de Alain François. Campinas: Ed. Unicamp, 2007 p. 25-70; 436-451. WEINRICH, Harald. Uma poesia da lembrança surgida das profundezas do esquecimento (Proust). In: ______. Lete: arte e crítica do esquecimento. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 207-212. .

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EDUCAÇÃO PARA A LUTA: UMA LEITURA DO CONTO “FAUSTINO”, DE JOSÉ LUANDINO VIEIRA Diana Gonzaga Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa, dianagonzagapereira@gmail.com

Resumo: Pretende-se, no presente artigo, incentivar o ensino das Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa na sala de aula, bem como discutir as possibilidades e direitos dos cidadãos à educação. Para esta proposta pedagógica, serão analisados fragmentos do conto “Faustino”, de autoria do angolano José Luandino Vieira, publicado no livro A Cidade e a Infância, em 1957. Como suporte para esta proposta, também serão abordados pressupostos teóricos do pedagogo Paulo Freire e do filósofo Michel Foucault. É importante para o professor estar atento às novas manifestações literárias e, neste sentido, a Literaturas Africanas vêm enriquecer o ensino de Literatura, não apenas por sua importância para o resgate das raízes culturais brasileiras, mas também como um instrumento de denúncia e de luta a favor da inclusão e igualdade de direitos na sociedade. Palavras-chave: Literatura e Ensino. Ficção contemporânea Africana. Sociedade.


A humildade exprime uma das raras certezas de que estou certo: a de que ninguém é superior a ninguém. Paulo Freire Uma criança, um professor, um livro e um lápis podem mudar o mundo. Malala Yousafzai Iniciaremos este artigo a partir do seguinte pressuposto, transcrito da Declaração Universal dos Direitos Humanos: Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional dever ser generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito.1 (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS)

O artigo vigésimo sexto da Declaração Universal dos Direitos Humanos é preciso no que diz respeito ao direito e ao acesso de todas as pessoas à Educação, independendo de classe, raça, crença ou de quaisquer outros fatores. Em virtude disso, o governo, em parceria com a comunidade, tem o objetivo de fazer valer, na prática, este pressuposto. Paulo Freire, em seu livro, Pedagogia do oprimido, analisa as relações de poder que se estabelecem na sociedade e afirma que a palavra, ou melhor, o conhecimento da palavra – entende-se o nosso discurso e o dos outros – é uma (e talvez a única) forma de libertação diante da opressão diária, em todas as suas mazelas (FREIRE, 1987). A principal forma de opressão, à qual Freire se refere – e interfere – é a relacionada à educação. Ao se defender uma práxis, na qual o ensino deveria ser baseado na relação equivalente entre aluno, professor e contexto, de modo que a troca de conhecimento proporcionadas por esses elementos se desse de maneira recíproca, algumas justas considerações merecem ser levantadas. A primeira, que se sobressai às outras, é quanto à definição desses sujeitos, agentes ou pacientes, ou seja, quem é o opressor e quem é o oprimido. A seguinte poderia ser acerca dos motivos pelos quais consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos, um artigo voltado

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Artigo 26º transcrito da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: www.ohchr.org

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à defesa e garantia de todos à educação. Numa terceira, poderíamos questionar o porquê de, mesmo com esses direitos assegurados, o que se vê, na realidade, é uma prática completamente diferente e um ensino precário, decadente e, socialmente, pouco útil. Poderíamos, ainda, problematizar uma quarta questão, sobre o posicionamento dos governos em relação a propostas realmente efetivas no sentido de melhorar ou, ao menos, minimizar os prejuízos de diversas ordens que se desenvolvem paralelamente ao problema de políticas públicas qualitativas voltadas à educação. Vamos nos ater a essas, em princípio. Para tentar respondê-las, tomaremos como ponto de partida, o pensamento de Michel Foucault, a respeito das relações de poder. Há, segundo o filósofo, estruturas de dominação, que, automaticamente, garantem a manutenção do poder do dominador em detrimento do dominado. Essa microfísica do poder, como denomina, abrange todo o sistema que rege a sociedade – cada época, com sua episteme, ou seja, seu conjunto de valores e normas que ditam a conduta do indivíduo a fim de integrá-lo ao coletivo – de modo que é impossível que o sujeito se dissocie dessa lógica sistematizada, ou, quem o fizer, será facilmente taxado como louco (não vamos entrar, aqui, na questão da loucura, também analisada por Foucault). (Cf. FOUCAULT, 1978). Quem é, portanto, o opressor e o oprimido? É obvio que a figura do opressor vem de cima, dos ricos, dos governos, das leis. E o oprimido é a população, são os pobres, os analfabetos, os negros, a marginalidade, em geral. Mas o que Foucault traz à tona é uma observação que vai além do óbvio. A sociedade normatizada, que ele analisa não é outra senão aquela em que os indivíduos vivem oprimidos pelas leis, mas, principalmente, pelas normas. Fica explícita, portanto, a dificuldade em sair da opressão, já que é a própria sociedade que normatiza a conduta dos sujeitos e são estes que as determinam, de maneira que, podemos concluir, o oprimido perpetua a opressão. Para exemplificar essa primeira questão, utilizaremos alguns fragmentos retirados do conto “Faustino”, de José Luandino Vieira, presente na obra A cidade e a infância, de 1957. Vale lembrar que se trata de um autor português naturalizado angolano e o espaço é constituído, portanto, neste cenário. Faustino é o seu nome. Faustino António. O dia inteiro ele tira o boné, abre a porta do elevador, fecha a porta do elevador, tira o boné, abre a porta do elevador.

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_ Bom dia, m’nha senhora! _ Muito obrigado m’nha senhora! Às vezes descansa. O prédio só tem três andares. Mas há os miúdos todos que brincam no elevador. E ele é o responsável. Pelo elevador e pelos meninos. (VIEIRA, 2007, p. 79)

A constituição da personagem Faustino, negro, operador do elevador é objetiva quanto à sua profissão e posição social, mas, é nas entrelinhas que se configura seu caráter e personalidade. Trata-se de um homem polido e claramente, normatizado, condicionado a agir do modo como age, tirando e colocando o boné em sinal de respeito àqueles que utilizam de seu serviço. Ele sorri sempre. Ganhou aquele jeito de sorrir, apanhou aquele jeito, pois naquele trabalho, tem de ser assim (...) _Negro! Disse o menino deitando a língua de fora. Faustino sorriu. Sorri sempre. (Ibid, p. 80)

Faustino está condicionado a fazer o seu trabalho da melhor maneira possível. E o faz. Faz até além do que deveria, operando o elevador e vigiando as crianças que por lá brincam. Apoiados no exemplo de Faustino, podemos analisar o segundo e o terceiro questionamento apontados anteriormente. Consta, na DUDH (Declaração Universal dos Direitos Humanos) que todas as pessoas têm aceso à educação. Ora, se há a necessidade de uma cláusula específica sobre a obrigatoriedade e garantia de educação a todos, isto se deve ao fato de que, provavelmente, a muitos, esse acesso é negado ou negligenciado. Logo, para entendermos o porquê de, mesmo constando na Declaração, ainda haver pessoas que não usufruem desse direito, recorreremos, novamente, ao pensamento de Foucault a respeito da sociedade normativa. Contrariando a Lei e priorizando a norma, vemos em Faustino o exemplo perfeito da opressão sofrida pela personagem no meio em vive, porque tinha o hábito, ou melhor, o gosto pelo estudo. Mas quando tinha um momento livre senta-se na cadeira da sua pequena mesa e estuda. Geometria. Geografia. Vai lendo o livro de leitura. Os olhos abremse com as palavras e o cérebro baralha-se com o que está escrito. “A casa.” A casa tem muitos quartos. O quarto disto. O quarto daquilo. O quarto das costuras. O quarto das crianças. O quarto das crianças! Mas em casa dele os irmãos pequenos (...) dormem todos juntos com a irmã e a mãe!

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Os olhos mostram-lhe casas novas. Casas nunca vistas no seu mundo. Nem mesmo no bairro dos brancos. Faustino estuda para fazer o exame da quarta classe. (VIEIRA, 2007. p. 80)

O desejo do operador de elevador de continuar estudando (e ele pretende concluir, a princípio a quarta classe, isto é, um grau mínimo de escolaridade), fato que deveria ser louvado, lhe é escancaradamente retirado. Não pela lei, mas pela norma, afinal, por que um preto deveria estudar? Quanto mais um preto que já tinha um emprego, o que não era muito fácil na Angola colonizada... Então hoje não rega as avencas e a relva? As flores estão quase murchas. Caramba! P’ra que é que te dão duzentos angolares por mês? Já não tens idade para estudar. Estudar não é para ti. Trabalha, trabalha. Tens de lavar as escadas... (Ibid. p. 81)

Há uma necessidade, por parte do poder, em manter as coisas como estão, de modo a garantir a ordem e impedir mudanças. O que Paulo Freire chama de Pedagogia da Libertação não é admitido em Angola, neste período – até porque, ainda segundo Freire, a escola é, antes de tudo, um espaço político e, estamos falando de um país ainda sob domínio de Portugal. É interessante notar o contraponto que há, no conto de Luandino, a respeito do posicionamento das esferas estabelecidas pelas classes. As crianças, brancas, moradoras do prédio onde Faustino trabalhava, colocam-se de maneira oposta a do empregado, em relação aos estudos: E ficava triste quando via a senhora do terceiro gritar para a filha, menina sardenta dos seios púberes: _ Belita, vem estudar! _ Não quero, mãe! Ficava triste porque ele queria estudar. (Ibid. p. 83)

A personagem fica triste porque queria estudar e este direito, se não lhe era, teoricamente, negado, era, constantemente, debelado. E o seu desejo não é bem visto pelos componentes desse sistema hierárquico. Percebemos, mais adiante, que nem mesmo a professora, que é quem deveria dar o suporte para que Faustino seguisse seus estudos, consegue se desatar das normas que lhe são estabelecidas. Três andares de escadas esfregadas com piaçaba!

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Eué, não ia ter tempo hoje de estudar Geometria. A sô pessora ia ralhar outra vez. Ele bem dizia que às vezes não tinha tempo. Mas a senhora tirava os óculos e respondia irritada: _Quem não tem tempo, não estuda! (VIEIRA, 2007, p. 81)

A figura de Faustino merece destaque por configurar a oposição ao sistema normativo vigente. Ele é um negro que quer, mais do que isso, gosta de estudar. Ao contrário das grosserias que lhe eram constantemente dirigidas, ele mantém a sua educação e, opondo-se mais uma vez à rudez do seu ambiente hostil, ele é sensível: Aiué, Faustino, tem de ser primeiro as flores. Disso ele gostava. Gostava muito de flores, de capim. O que ele estudava melhor eram as Ciências. Sabia tudo. Faustino gostava de flores. Regava-as com carinho, não deixava cair a água muito perto, salpicando-as só. Depois colhia uma e dizia em voz baixa: _ Pedúnculo, cálice, corola... (Ibid, p. 81 - 82)

São estas mesmas flores, arrancadas por ele, que alegorizam o rompimento de Faustino com o sistema que o oprime. As flores que o operador de elevador planta, cuida e estuda simbolizam o seu florescimento em relação ao seu mundo. A oposição, mais uma vez presente, agora se configura por questionamentos pessoais da personagem. Percebemos, portanto, a ação do poder avassalador da educação emergente neste contexto. Faustino agora poderia se perguntar: quem é, de fato, o superior, o evoluído, o privilegiado? Nas mãos de quem estava, realmente, o poder de ir à luta? Haveria, na verdade, uma distinção fundamentada entre brancos e negros, capaz de justificar tamanho desrespeito? E, o mais importante, haveria como romper as amarras que o prendia àquela situação, que era sua e de toda uma nação discriminada? Sim. Para esta última pergunta, a resposta é sim e, esta, Faustino, provavelmente, já aprendera em um de seus livros, na sua pequena mesinha, no canto do elevador, no parco tempo que lhe sobrava para os estudos. Ele sabia, na verdade, de muitas coisas. Sabia que aquele sistema estava errado. Sabia onde estava a solução. Sabia que deveria fazer alguma coisa. E faz. O encarregado vem ralhar-lhe, como de costume: _Que chatice! Já te disse mais uma vez que o teu trabalho não é estragar as flores. Estás aqui para regares e não para lhes tocares. As flores são para a senhora do prédio. Qualquer dia vias para a rua. Pretos há muitos para este emprego. Ora esta, a mexer nas flores! Isso não é para as tuas mãos. Anda lá.

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Anda lá depressa a regar o jardim que ainda tens de lavar as escadas. (VIEIRA, 2007, p. 82)

Esperando, talvez, a submissão de Faustino diante da grosseria – tirar o boné, sorrir e colocar o boné – o encarregado não contava com a mudança de postura do porteiro:

Faustino não sorriu. Não gostava que o encarregado dissesse aquilo. Flores são flores, não são de um nem de outros. São de todos. Nascem da terra se os brancos plantam ou se os pretos plantam. E não nascem mais bonitas por serem plantadas por brancos. (Ibid, p. 82)

Essa passagem, essa resposta de Faustino, é a concretização da mudança que ele vive a partir de sua visão adquirida com os estudos. Estudar lhe abriu a mente, a visão, o caminho, os outros caminhos. Cortou mais uma flor. Despiu a farda e pegou nos seus livros. O encarregado correu atrás dele (...) Pelo caminho abriu as Ciências, pensou em Maria, os dois sem emprego, e foi desfolhando a última flor colhida: _Cálice, corola, androceu... (Ibid, p. 83)

Mesmo sabendo que não seria fácil dali em diante, Faustino foi capaz de sair de sua situação opressora e o fez, como dito por Paulo Freire, com a única arma capaz de fazê-lo: o acesso à educação. Seria redundante dizer que podemos ter a dimensão dessa transformação pelo que foi retratado na obra de Luandino. Com o pouco contato com os estudos, Faustino muda – não se sabe o que é feito desse personagem – mas, sabemos que a mudança já ocorreu. O pensamento crítico, questionador já foi semeado em seu canteiro e, se é verdade que colhemos o que plantamos, é possível concluir que Faustino, em breve, florescerá nas terras que são tão suas, como de todos os outros. Retornando ainda uma vez, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, percebemos que a maior luta, não é outra, senão permitir, em qualquer esfera de poder em que estejamos, que outras pessoas tenham acesso a essa arma transformadora.

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Malala Yousafzai2, em seu discurso na Organização das Nações Unidas, em 12 de julho de 2013 (Dia de Malala, como ficou conhecido) diz, sobre o acesso à educação: “Só percebemos a importância da luz quando vemos a escuridão. Percebemos a importância da nossa voz quando somos silenciados. Percebemos a importância de lápis e livros quando vimos as armas.” (YOUSAFZAI, 2013). A educação é potente ao ponto de assustar os centros mais autoritários do poder. A educação é, na verdade, o poder. O poder de insubmissão, de questionamento, de libertação. Faz parte do instinto dos poderosos negar o acesso a ela aos que estão subordinados, porque são imperiosos em muitos aspectos, mas sabem que não há arma, espada ou guerra capaz de vencer a educação. Por isso, na literatura, a hostilidade para com o negro Faustino, que “era um negro porteiro que tinha mania de estudar” (VIEIRA, 2007, p. 83). Por isso, na vida real, a bala contra a cabeça de Malala, no Paquistão. Por isso o “acidente” que calou Anísio Teixeira3 ou o assassinato do professor Carlos Mota4, no Rio de Janeiro. Por isso, tantos atentados às escolas pelo mundo. Por isso, o descaso do governo com a educação. Se ninguém fosse privado desse direito, os impérios não se sustentariam porque não houve e não haverá um só caso em que a força vence o esclarecimento. Por isso, a luta!

Referências Bibliográficas FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 15.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000. _____. Pedagogia do oprimido. 17.ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2009. _____. Arqueologia do Saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. VIEIRA, JosLuandino. A Cidade e a Infância. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. YOUSAFZAI, Malala. Eu sou Malala: a história da menina que defendeu o direito à educação e foi baleada pelo Talibã. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

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Paquistanesa, nascida em 1997, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz, pela defesa dos Direitos Humanos das Mulheres e o acesso à educação para as crianças, sendo, por isso, vítima de um atentado pelo governo Talibã, em outubro de 2012, no qual quase perde a vida. 3

Educador brasileiro difusor dos pressupostos da Escola Nova, encontrado morto em um fosso de elevador, em 1971. 4 Professor assassinado por alunos, em 2008, por tentar impedir o tráfico de drogas na escola.

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Referências Eletrônicas www.ohchr.org/EN/UDHR/Pages/Introduction.aspx >Acesso em: 19/11/2016 (Declaração Universal dos Direitos Humanos)

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UM MUNDO FADADO À REPETIÇÃO: A UNIVERSALIZAÇÃO DA HISTÓRIA EM ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ, DE JOSÉ SARAMAGO Francyane Canesche de Freitas Mestranda em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Viçosa, bolsista de produtividade da CAPES, francyanefreitas@gmail.com.

Resumo: Este trabalho visa compreender a complexa relação entre Literatura e História na obra Ensaio sobre a Lucidez, do escritor português José Saramago. Para realizá-lo partimos de duas afirmações do próprio autor no Jornal de Letras, Artes & Ideias, a primeira de que “o historiador é um selecionador” e a segunda de que “a tarefa do romancista é a de substituir o que foi pelo que poderia ter sido”. Traçamos, a partir destas afirmações, um percurso histórico sobre o processo através do qual as duas áreas se aceitaram como mutuamente complementares e compreenderam que ambas consistem em “sistemas de significação através dos quais damos sentidos ao passado” (HUTCHEON, 1991, p.122). Para este percurso, nos valemos dos estudos de Roani (2010) e Reis (2012) que retratam os momentos através dos quais a História e a Literatura passaram até se entenderem como narrativas; os de Marinho (2008) que expõem o momento no qual a literatura percebeu que poderia valer-se da história para trazer à tona o que poderia ter acontecido e os de Carr (2002) que tratam do caráter selecionador do historiador. Em seguida, entramos no campo da representação do real, buscando compreender, como Saramago, em Ensaio sobre a Lucidez (2004), joga com as coordenadas do tempo e do espaço para construir uma história metamorfoseada que representa ao mesmo tempo diversos fatos históricos, uma vez que sua proposta, neste segundo ciclo de obras, é construir uma literatura universalizante. Assim, a História adquire um caráter menos palpável, uma vez que não se apresenta sob a forma de eventos históricos datados, fornecendo ao mundo fictício a capacidade de moldar-se a diversos mundos reais. Palavras-chave: Literatura. História. Pós-modernismo. Saramago.


José Saramago e a sua proximidade com a História Segundo Arnaut (2008), as obras saramaguianas instauraram novos rumos na literatura portuguesa, surpreendendo-nos no tocante aos conteúdos e aos aspectos formais, permitindonos uma identificação com nossas experiências individuais e, também, com a memória coletiva, visto que suas obras retomam temas com os quais a sociedade lidou e lida até hoje. O homemescritor por trás destes textos fez de sua vida um longo processo de aquisição de consciência política e de desenvolvimento da capacidade ideológica. Tal processo pode ser percebido através de um aperfeiçoamento da construção narrativa e das temáticas de suas obras ao longo das publicações e, por este motivo, não vemos como acaso a afirmação de que Saramago não reconhece mais sua primeira obra, publicada em 1947 e intitulada Terra do Pecado, como sendo sua, já que as mudanças são visíveis. Diante deste refinamento da escrita saramaguiana, percebe-se uma incorporação cada vez maior da necessidade de participação do leitor, não somente contribuindo para com o texto, mas também com o mundo que o cerca. Assim, o leitor encontra nas obras de Saramago um ambiente no qual agir com passividade não é aceitável, já que os romances exigem dele um papel mais interventivo, incitando-o a questionar e a perceber o que os olhos não podem ver, principalmente no que tange à historiografia. Quando pensamos em José Saramago como escritor é praticamente impossível não evidenciar esta ligação com a História, principalmente a portuguesa. Desde que decidiu dedicarse à escrita ficcional aos 53 anos, Saramago incorporou em suas obras a característica pósmoderna de “recodificar o passado” (HUYSSEN, 2000), a qual utiliza-se de fatos históricos com a finalidade de chamar a atenção para a parcialidade destes, ou seja, levanta suspeitas sobre o discurso oficial da História. Para Linda Hutcheon, “a ficção pós-moderna sugere que reescrever ou reapresentar o passado na ficção e na história é –em ambos os casos – revelá-lo ao presente, impedi-lo de ser conclusivo e teleológico.” (HUTCHEON, 1991, p. 147). O livro Memorial do Convento, publicado em 1982,está entre os romances que apresentam esta atitude saramaguiana, já que nesta obra o autor articula o plano da História com o da ficção, lançando mão de um fato histórico – a construção do convento de Mafra pelo rei D. João V – retomando-o como memória da nação e, simultaneamente, caricaturando os personagens históricos nele entrelaçados, retirando, assim, sua grandeza histórica para transferi-

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la ao povo, que na ótica de Saramago foi quem realmente construiu o convento, mas teve sua participação apagada pela História. Este traço da pós-modernidade caracterizado pelo ato de repensar a história ironicamente define-se como paradoxal, já que, ao mesmo tempo, afirma e questiona o passado. Linda Hutcheon destacou esta complexa relação entre a literatura e os fatos históricos no seu livro Poética do pós-modernismo: [...] o pós-moderno realiza dois movimentos simultâneos. Ele reinsere os contextos históricos como sendo significantes, e até determinantes, mas, ao fazê-lo, problematiza toda a noção de conhecimento histórico. Esse é mais um dos paradoxos que caracterizam todos os atuais discursos pós-modernos (HUTCHEON, 1991, p. 122).

A presença deste questionamento em relação ao que a História diz ter acontecido pode ser justificada, no caso dos romances de José Saramago, principalmente, por duas considerações feitas pelo próprio autor em artigo publicado no Jornal de Letras, Artes & Ideias acerca da relação entre História e Ficção. A primeira consiste em declarar o historiador como “um escolhedor de fatos [...] que, ao escolher, abandona deliberadamente um número indeterminado de dados, em nome de razões de classe ou de Estado, ou de natureza política conjuntural [...]” (SARAMAGO apud ARNAUT, 2008, p.80). A segunda, apoia-se na concepção de que a tarefa do romancista é a de fazer “explodir o que até então parecia indiscutível: por outras palavras, substituir o que foi pelo que poderia ter sido” (SARAMAGO apud ARNAUT, 2008, p.82). Partindo destes excertos, percebemos que ao apresentar o caráter selecionador do historiador, Saramagoretrata um momento da historiografia, no qual, segundo Roani (2010), abandona-se o ideal positivista que, por pregar a cientifização do pensamento e do estudo humano, acaba por se negar a considerar que o trabalho do historiador também consiste em uma representação do real e passa a entender que “[...] em história tudo é discurso sobre algo que aconteceu ou que acontece, o qual é elaborado através de uma narração que imaginariamente, no momento presente, lança-se à tentativa de resgatar e recompor o real do tempo passado” (ROANI, 2010, p. 141). José Carlos Reis (2012), quando escreve sobre Hayden White e a historiografia pós1989, também retrata este momento, afirmando que o trabalho dos historiadores consiste em produzir narrativas que, por sua vez, se aproximam mais da literatura que da ciência. Além

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disso, o autor afirma que, para White, “história e mito se fundem, fato e fantasia se misturam” (REIS, 2012, n.p.) e que [...] o historiador não pode continuar tão ingênuo, não pode mais ignorar a estreita relação entre história e mito. A história não é uma ciência porque não é realista, o discurso histórico não apreende um mundo exterior, porque o real é produzido pelo discurso. O que o historiador produz são “construções poéticas”. É a linguagem que constitui o sentido. A história é uma representação narrativa de representações-fontes (WHITE apud REIS, 2012, n.p.).

Consequentemente, ao aceitar que o historiador também faz uso do imaginário para resgatar seu passado, revela-se a subjetividade dentro da História, sobre a qual Agustina BessaLuís tratou em Fama e Segredo na História de Portugal ao destacar que “não há História sem que o fator humano intervenha desde o mais profundo da natureza humana” (BESSA-LUÍS apud MARINHO, 2008, p.143). Assim, percebemos que a História está constituída de julgamentos subjetivos, sendo o historiador aquele que decide o que é relevante ou não para ser lembrado, ou seja, seu papel é definir o que vai ou não ficar para a história, já que, como afirmou Edward HalletCarr: A história consiste num corpo de fatos verificados. Os fatos estão disponíveis para os historiadores nos documentos, nas inscrições, e assim por diante, como os peixes na tábua do peixeiro. O historiador deve reuni-los, depois levá-los para casa, cozinhá-los, e então servi-los da maneira que o atrair (CARR, 2002, p.45).

Se ao destacar a presença da subjetividade no discurso histórico, Saramago mostra que a História poderia caminhar de mãos dadas com a Literatura, quando ele concebe o romancista como aquele que preenche as lacunas da História ou que a questiona a partir de suas possibilidades, o autor português reforça que estes são campos não excludentes e passíveis de diálogo. Assim, aponta para o instante em que “a literatura percebeu que poderia, com toda a legitimidade, explorar os interstícios silenciados, os segredos escondidos, que lhe acenavam em todas as palavras não ditas e situações não esclarecidas” (MARINHO, 2008, p. 136). Esta conjuntura está bem representada no que chamamos pós-modernidade, na qual é frequente o uso da ironia nos meios literários para repensar o passado, gerar reflexão sobre o presente, bem como questionar a ideia de uma História única, tal como foi apresentado acima em Memorial do Convento. Linda Hutcheon (1991) discorreu sobrea maneira pela qual estes dois discursos nos permitem entender o passado, afirmando que:

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O que a escrita pós-moderna da história e da literatura nos ensinou é que a ficção e a história são discursos, que ambas constituem sistemas de significação pelos quais damos sentido ao passado (“aplicações da imaginação modeladora e organizadora”). Em outras palavras, o sentido e a forma não estão nosacontecimentos, mas nossistemas que transformam esses “acontecimentos” passados em “fatos” históricos presentes. Isso não é um “desonesto refúgio para escapar à verdade”, mas um reconhecimento da função de produção de sentido dos construtos humanos. (HUTCHEON, 1991, p.122)

Seguindo essa linha de relação de proximidade com a História, José Saramago escreveu diversas obras até o ano de 1995, quando publicou Ensaio sobre a Cegueira e adentrou por um caminho universalizante. Neste momento, as ligações explícitas entre sua escrita e os fatos históricos, antes tão presentes, foram se dispersando e, por este motivo, os críticos determinaram o fim da “portugalidade intensa” e o início do segundo ciclo de obras do autor. Neste trabalho, pretende-se evidenciar que o caráter histórico se manteve presente no projeto de escrita saramaguiano, mas de forma surpreendentemente nova. Neste novo ciclo de obras, que se inicia com Ensaio sobre a Cegueira (1995) e finaliza com Ensaio sobre a Lucidez (2004), a História não se perde, ela se transmuta, adquirindo um caráter menos palpável, uma vez que não se apresenta sob a forma de eventos históricos específicos, ou seja, datados.

O segundo ciclo de obras: uma análise da História universalizada em Ensaio sobre a Lucidez Para essa nova construção textual que se deu no segundo ciclo de obras, Saramago retira dos fatos a sua localização temporal, bem como espacial e lança-os num mundo ficcional de modo que a História continue presente, mas metamorfoseada. Nesse ínterim, Maria de Fátima Marinho destaca que “o romance joga com o tempo e suas coordenadas, como joga com as semelhanças especulares de personagens e pessoas e com modos de interpretar e iludir os enredos repetidos e renovados”(MARINHO, 2008, p. 137), apontando-nos, ainda que em outro contexto, a atitude saramaguiana destes novos romances. Neles, o autor brinca com as representações, ampliando as possibilidades de identificação e exigindo maior participação do leitor em sua obra. Assim, ao transferir para o leitor a responsabilidade de reconhecer os traços históricos presentes em seus romances, Saramago constrói um discurso universal visto que seu mundo

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fictício se molda a diversos mundos reais, ou seja, cada leitor poderá identificar a representação com um fato histórico diferente espacial e temporalmente.Dentro deste viés, podemos afirmarque ele constrói “mundos possíveis como se fossem reais, ou [...] mundos possíveis, mas com marca do condicional, que lhes imprime a contrafactualidade” (MARINHO, 2008, p.138). Nestas criações do segundo ciclo o ficcional se apresenta como alegoria e funciona como uma distopia na qual temos o retrato de um mundo abandonado pela razão, caracterizado pelo totalitarismo e pelo controle opressivo. Apesar da produção abandonar o caráter metaficcional neste momento, de maneira alguma deixa de evidenciar aspectos que conectam a obra à realidade circundante. Desta forma, o que Saramago constrói nos seus romances é um retrato do homem do seu tempo, com a tentativa de lutar “contra a globalização capitalista pósmoderna em sua tarefa completada da alienação” (WANDERLEY; BRAGA, 2011, p.425-426). Belmira Magalhães define este mundo retratado pelo escritor português nos romances de segunda fase, ou seja, o mundo pós-moderno, acelerado e destituído de razão: No mundo contemporâneo, pós-moderno, desideologizado com a ajuda frenética da mídia, o sujeito volta a perder a força adquirida com a modernidade. [...] O sujeito pós-moderno não tem um projeto para ser executado. Reflete sobre o seu tempo e tenta vive-lo aceitando todas as respostas como verdadeiras, ou sem nenhuma verdade. (MAGALHÃES, 2002, p.77)

Diante desta sociedade desestabilizada e desorientada, Saramago acredita que é preciso “transformar a realidade como se apresenta, ou mudar a compreensão que temos dela” (MOISÉS, 2013, p.528). Para ele, estamos cegos diante de tanta informação e não conseguimos reparar no que está diante de nós. Assim, quando Andreas Huyssen (2000) se pergunta se “as relações entre memória e esquecimento [...] sendo transformadas, sob pressões nas quais as novas tecnologias da informação, as políticas midiáticas e o consumismo desenfreado [estão] começando a cobrar seu preço” (HUYSSEN, 2000, p.18) ele dialoga com os dois ensaios de Saramago, no qual tanto o capitalismo, em Ensaio sobre a Cegueira, quanto a sociedade do espetáculo, em Ensaio sobre a Lucidez, estão representadas de modo a destacar o preço a ser pago por aqueles que não reparam, que não vêm além daquilo que está na tela das televisões e que se aceitam manipular, ou seja, um povo que se esquece e/ouse lembra daquilo que interessa aos “grandes”.

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A partir deste diálogo, constatamos, também, que José Saramago viu-se diante do fato de que os acontecimentos históricos estão fadados a se repetir (GINZBURG, 2007) e aproveitou-se disso para criar uma sequência narrativa entre dois romances, Ensaio sobre a Cegueira e Ensaio sobre a Lucidez, que dariam segmento à história mundial, marcada por diversas epidemias, mostrando o efeito cíclico do universo. A peste negra, que deixou 50 milhões de mortos na Europa no século XIV, bem como a epidemia de gripe espanhola que fez 20 milhões de vítimas entre 1918 e 1919, são exemplos desta repetição histórica. No entanto, faz-se importante destacar que, nas duas narrativas saramaguianas, essa proliferação da “doença “não parece ser apresentada devido à pestilência, mas sim em virtude da necessidade de um “renascer” depois do caos que as tragédias exigem, remetendo-nos à ideia do autor de que “não mudaremos a vida, se não mudarmos de vida”1. Ensaio sobre a Lucidez, romance que destacaremos nesta análise, pode ser caracterizado como distópico, no qual o enredo gira em torno da população de um país democrático que decide utilizar seu direito ao voto livre e secreto para mostrar sua insatisfação com o sistema, recheando as urnas de votos em branco. O governo, por sua vez, responde com atitudes totalitárias, transformando a capital, foco dos brancosos2, em uma cidade sitiada, manipulada através das mídias, a fim de tentar reconduzir a sociedade ao seu curso ideal. Assim, a obra retrata uma manifestação pacífica contra o sistema democrático, trazendo à tona as atitudes governamentais em relação aos traços do totalitarismo, bem como a espetacularização do mundo orquestrada pela mídia manipulada pelos governantes. Através deste romance, podemos evidenciar claramente como Saramago universaliza os eventos ao não nomear-lhes, já que o objetivo do próprio autor é mostrar-nos o que não queremos ver e, segundo ele, quando damos nomes às coisas, colocamos um muro diante de nós que não nos permite ver o outro3. Desta forma, ao levantar a temática da desobediência civil no início da obra, o autor português nos fala da história mundial sem fixá-la num ponto específico da linha do tempo, permitindo-nos pensar sem as grades de um sistema datado. Assim, é na mente do leitor que se materializarão os acontecimentos eé a memória que permitirá 1

El Tiempo, Bogotá, 9 de Julho de 2007. In José Saramago nas Suas Palavras Brancosos foi o nome dado pelos governantes da obra àqueles que votaram em branco nas eleições. 3 El Mundo (Suplemento La Revista de El Mundo), Madrid, 25 de Janeiro de 1998. In José Saramago nas Suas Palavras 2

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a reconstrução de fatos históricos a partir da representação literária, tais como o processo de independência da Índia, sob a figura de Mahatma Gandhi, que liderou uma manifestação política pacífica contra a dominação britânica, do mesmo modo que Martin Luther King na luta pelos direitos civis e pelo fim da segregação racial nos Estados Unidos na década de 1960, entre outros casos. Ao colocar esta atitude aliada ao descontentamento para com a democracia, Saramago também consegue remeter-nos ao presente da sociedade ocidental, dominada por um sistema que vem se apresentando cada vez mais problemático e mostrando um número crescente de insatisfação social. Por outro lado, quando pensamos nas atitudes totalitárias que Saramago aponta em sua obra, mediante o comportamento dos partidos da esquerda, da direita e do meio, nos deparamos com situações as quais o mundo não deseja reviver, mas, para que tais coisas não se repitam, é preciso enxergar além do que é veiculado pela mídia, ou seja, ser crítico para com aquilo que nos chega como informação. Mais uma vez a proposta do prêmio Nobel se justifica com base na história e nos remete à frase adotada como lema pelos países que passaram pela transição da ditadura ao regime democrático na América Latina: “Lembrar para não repetir”. Deste modo, percebemos, mais uma vez, que estamos lidando com fatos palpáveis, mas que, na obra, não se materializam num tempo e espaço preciso. Valendo-se da distopia, o escritor português nos faz rememorar o nazismo e o fascismo, bem como o poder exercido pelas instituições hegemônicas no mundo. A obra traz à superfície, no que tange a estas atitudes, a instauração do estado de exceção, que se apresenta possível em todo e qualquer governo no qual há um ser humano a frente do poder com autoridade suficiente para efetivá-lo, como foi o caso dos governantes de Ensaio sobre a Lucidez. Assim, através dessa possibilidade, podemos perceber seu perigo à espreita de qualquer democracia, uma vez que esta situação imposta é uma maneira legal de se retirar os direitos da população, em conjunturas que o Estado considera excepcionais. Foi o que aconteceu na Alemanha nazista sob a liderança de Hitler, bem como, em diferentes escalas, nas ditaduras ao redor do mundo e, se seguimos a perspectiva saramaguiana, pode retornar à nossa realidade se não houver observação. Evoca-se, dentro destas atitudes dos governos totalitários, as políticas propagandísticas, as quais, como apresentou-nos Hanna Arendt, em As origens do totalitarismo (1989), em casos de exceção funcionam de maneira efetiva, visto que ao mesmo tempo em que as pessoas passam

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a tomar como verdade que não existem direitos humanos inalienáveis, aqueles que estão no poder revelam hipocrisia e covardia para com os acontecimentos. Estas políticas serviram de suporte para a manutenção do nazismo, do fascismo, do franquismo e de outros governos totalitários, já que criavam a ideia de uma nação unida e em progresso, com o objetivo de inibir qualquer rejeição por parte da população quanto ao sistema implantado.Este uso é o mesmo feito por parte dos governantes da obra de José Saramago, na tentativa de eliminar a possibilidade de um possível motim contra a retirada do governo da capital. Encontram-se na obra, ainda dentro deste contexto, os meios de comunicação em massa como aparelho ideológico do Estado, a fim de alienar não apenas pelo excesso, mas também pela manipulação. Os governantes de Ensaio sobre a Lucidez utilizam do jornal e da televisão para levar a população a acreditar no seu ponto de vista, manipulando acidentes, informações e imagens, mas também fazem destes meios uma maneira de manter as aparências, a fim de que não ocorra uma revolta maior que a dos votos em branco, esta que será esquecida assim que o “culpado” aparecer, bem como a cegueira foi apagada da memória assim que voltaram a enxergar. Huyssen (2000) alerta para o fato de que a explosão de informações é uma maneira de levar ao esquecimento, até mesmo porque “muitas das memórias comercializadas em massa que consumimos são ‘memórias imaginadas’ e, portanto, muito mais facilmente esquecíveis do que as memórias vividas” (HUYSSEN, 2000, p.18).

Considerações Finais Para concluir, diante da exposição destes aspectos históricos impregnados na obra saramaguiana, pudemos perceber como ele se refere ao passado sem marcá-lo pontualmente na linha do tempo. O fato de Saramago abster-se de nomear e datar os fatos históricosnão significa queo escritornão almejavaque seus leitores tivessem acesso a determinados eventos da História, mas sim que ele desejava algo muito maior: a possibilidade de entender o mundo como um todo, afastando as antigas fronteiras que definiam sua literatura como essencialmente portuguesa e iniciando uma escrita para o mundo, sem fixar-se num espaço e tempo precisos. O autorconstruiu seu texto de modo a levar o leitor a entendernão apenas o passado, mas também a supor o futuro e, em um único romance, permitiu que se enxergasse histórias de diferentes nações em diferentes épocas, instigando seu interlocutor a perceber que o que

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aconteceu, por vezes, torna a acontecer. Além disso, Saramago reforça que o homem deve, através da rememoração dos eventos históricos, esquivar-seda “amnésia social” (BURKE, 2000) que tomou conta da cultura contemporânea. Desta forma compreendemos que quando Saramago, ao trabalhar sob o viés da universalização, se propõe a sair da superfície do indivíduo para adentrar no que significa ser humano, ele nos leva a compreender a nossa situação enquanto ser social. O escritor português modifica o nosso modo de ver já que, a partir desta observação mais ampla da História, o ser humano tem a oportunidade de analisar suas atitudes, podendo olhar a si mesmode fora da realidade na qual vive. Um olhar que está fora do contexto, normalmente faz-se mais crítico, efetivando a proposta do autor de Ensaio sobre a Cegueira eEnsaio sobre a Lucidez de que as pessoas comecem a reparar nos detalhes e no que está por baixo daquilo que se pode ver superficialmente.

Referências Bibliográficas ARENDT, H. As origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. ARNAUT, A. P. José Saramago. Lisboa: Edições 70, 2008. BURKE, P. Variedades da história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. CARR, E. H. O historiador e seus fatos. In: _____.O que é história?. 8 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. pp. 43-65. GINZBURG, C. A áspera verdade – um desafio de Stendhal aos historiadores. In: _____. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. pp.170-188 HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991. HUYSSEN, A. Passados, presentes: mídia, política, amnésia. In: _____. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumento, mídia. Tradução: Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. pp. 9-40 LOPES, J. M. Saramago: Biografia. São Paulo: Leya, 2010. MAGALHÃES, B. História e Representação Literária: um caminho percorrido. Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.6. Belo Horizonte, 2002. pp. 67-81 MARINHO, M. de F. A construção da memória. In: Veredas. Vol. 10. Santiago de Compostela, 2008. pp. 135-148 MOISÉS, M. A literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2013. REIS, J. C. Teoria e História: tempo histórico, história do pensamento histórico ocidental e pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.

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ROANI, G. L. Narrativas de travessia do tempo: Literatura e História. In: CAMPOS, M. C. P.; ROANI, G. L. (Orgs.). Literatura e Cultura: Percursos críticos. Viçosa: Editora da Universidade Federal de Viçosa, 2010. pp. 137-148 SARAMAGO, J. Ensaio sobre a lucidez. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. _____. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. _____. Memorial do Convento. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. WANDERLEY, M. C.; BRAGA, A. A. Estado de exceção e representações literárias: Ensaio sobre a cegueira, Ensaio sobre a Lucidez e A peste. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica. Rio de Janeiro, v.3, n.3, p.415-431, set.-dez., 2011.

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O DIÁLOGO ENTRE LITERATURA E HISTÓRIA EM A ILUSTRE CASA DE RAMIRES, DE EÇA DE QUEIRÓS Giovana Berbert Lucas Mestranda em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Viçosa, bolsista de produtividade da CAPES, giovanaberbertl@gmail.com.

Resumo: Esta pesquisa investiga o diálogo entre as disciplinas Literatura e História no romance A Ilustre Casa de Ramires (1900), do escritor português Eça de Queirós, tendo como objetivo analisar como se dá a interlocução entre essas duas áreas de conhecimento no processo de escrita da novela histórica “A Torre de D. Ramires”, incorporada na narrativa queirosiana. Buscou-se examinar o processo de escritura do romance histórico, identificando os recursos discursivos, como a intertextualidade, a paródia, a ironia e metaficcionalidade, o que nos levou à “metaficção historiográfica”, gênero teorizado por Linda Hutcheon (1991), estudiosa do pós-modernismo. Metodologicamente, desenvolve-se uma análise teórico-crítica da obra queirosiana, tendo em vista outras leituras teóricas de textos que abordam a interlocução entre o discurso literário e o histórico, bem como de estudos que contemplam a trajetória literária de Eça de Queirós, analisando criticamente suas obras.Através das discussões empreendidas notamos como Eça de Queirós conseguiu realizar, no romance em questão, um rico e instigante diálogo entre a narrativa literária e a histórica, bem como uma corrosiva e irônica crítica à sociedade e à cultura portuguesa do final do século XIX. Palavras-chave: Interdisciplinariedade; Intertextualidade; Literatura Portuguesa.


1. Introdução Este trabalho investe no estudo da relação entre Literatura e História no romance português do século XIX, particularmente na valorização teórico-crítica da prosa lusitana do período realista-naturalista. O estudo foi empreendido mediante a análise do romance A Ilustre Casa de Ramires de Eça de Queirós. A obra queirosiana consiste, em termos artísticos, na mais expressiva realização do romance português de todos os tempos. Os romances do autor representam a consolidação, em coordenadas lusitanas, dos principais caminhos ficcionais assumidos pelo romance europeu do século XX. Com argúcia, ironia e capacidade de crítica social, o escritor lusitano submeteu a sociedade portuguesa a um exame impiedoso, que incidiu sobre os vários extratos que a compunham, como o clero, a política e a educação. No projeto artístico queirosiano manifestase a intencionalidade de recriar as cenas da vida portuguesa. Tal intencionalidade levou o romancista a lançar mão, para elaboração das tramas romanescas, de elementos e referências oriundos da história europeia. Estes elementos e referências podem ser visualizados na obra A Ilustre Casa de Ramires, publicado postumamente em 1900, romance no qual Eça de Queirós, sob a pena de Gonçalo Mendes Ramires, o protagonista, compõe a novela histórica “A Torre de D. Ramires”. Para Antonio Candido, a novela e o romance encaixam-se, “como partes necessárias de um todo” (2000, p. 17), pois a novela histórica, à Walter Scott, não se inclui de maneira autônoma ao romance, mas “como fios de uma tapeçaria que vão compondo o desenho por meio de cores intercaladas” (ibidem, p. 18). Neste romance, a personagem protagonista Gonçalo Mendes Ramires narra, através da novela histórica “A Torre de D. Ramires”, o grande feito de seu antepassado, Tructesindo Mendes Ramires, o qual, ao honrar sua palavra ao rei morto, d. Sancho, captura e mata o bastardo Lopo de Baião, que além de enfrentar as tropas enviadas por Tructesindo para o auxílio da filha de d. Sancho, d. Sancha, também mata o filho de Tructesindo, Lourenço Ramires. Assistimos, através de um narrador em terceira pessoa e onisciente, o processo de composição da obra, observando todos os mecanismos escriturais dos quais Gonçalo Mendes Ramires se vale, iniciando assim seu diálogo entre o romance histórico de Walter Scott e com a História Portuguesa.

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O estudo divide-se em três partes – Literatura, história, memória; Eça de Queirós e o realismo português; Análise da obra – nos quais buscamos leituras teórico-críticas que embasassem nossa pesquisa. No primeiro capítulo – Literatura, história, memória – tratamos dos entrecruzamentos entre Literatura e História, desde A poética, de Aristóteles, até A poética do pós-modernismo (1991), de Linda Hutcheon. Traçamos um breve panorama das interlocuções já realizadas, valendo-nos de teóricos como Hayden White (1994), Györg Lukács (2001) e Le Goff (2003). Em Eça de Queirós e o realismo português nos debruçamos sua inserção no realismo e na recepção crítica d'A Ilustre Casa de Ramires, elaboramos a revisão bibliográfica de autores como Carlos Reis (2005; 2009), Miguel Real (2006) e Álvaro Campos Matos (2014). Este capítulo colabora para a compreensão da obra analisada e suas relações com a ideologia queirosiana e sua estética. Na Análise da obra articulamos as discussões levantadas nos primeiros capítulos, analisando a obra realista e tomando como foco a produção escritural da novela histórica, na qual Eça critica o romantismo, através da novela histórica “A Torre de D. Ramires”, e antecipa elementos presente no pós-modernismo, demonstrando a qualidade literária e humana de suas obras.

2. Literatura, História, Memória Um retorno à ligação entre Literatura e História é primordial para compreendermos a que nível esta ligação ocorre na obra A Ilustre Casa de Ramires, de Eça de Queirós. Os campos de estudo da Literatura e da História sempre se interseccionaram, ora unindo-se, ora repelindose, mas é fato que estas áreas têm muito em comum. Sobre as semelhanças entre as disciplinas, Hutcheon (1991, p. 141) afirma que ambas buscam a sua fonte de força na verossimilhança (mais do que em uma verdade factual), são construções linguísticas com forma narrativa convencionalizada, além de serem intertextuais, desenvolvendo-se a partir de textos passados. Aristóteles, na Arte Poética, defende a não distinção entre historiador e poeta por via da estética literária de cada um, mas os diferencia no plano do conteúdo, já que um “escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido” (ARISTÓTELES, 2003, p. 43). Logo, a

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diferença não reside no plano formal, já que um historiador pode escrever sobre os fatos valendo-se de versos. O mesmo é confirmado por Hayden White ao explicar que os teóricos pré-Revolução Francesa compreendiam que, ao representar eventos reais no discurso histórico, era inevitável o uso de técnicas ficcionais, já que a escrita, mesmo que histórica, é um exercício retórico, portanto a avaliação deve ser feita através de princípios literários e científicos: Embora admitissem a necessidade geral de relatos históricos que tratassem de eventos reais, e não imaginários, os teóricos desde Bayle até Voltaire e de Mably reconheciam a inevitabilidade de um recurso a técnicas ficcionais na representação de eventos reais no discurso histórico. [...] A escrita era um exercício literário, especificamente retórico, e o produtor desse exercício devia ser avaliado tanto segundo princípios literários quanto científicos (WHITE, 1994, p. 139).

O entrecruzamento entre Literatura e História é percebido, de maneira mais nítida, no surgimento do romance histórico, através das obras de Walter Scott, no início do século XIX. György Lukács dedica a obra O Romance Histórico para o estudo da origem e características deste gênero. A partir do retorno à história das Revoluções Industriais e Francesa e das conquistas napoleônicas, Lukács conclui que a gênese do romance histórico reside na fé na ressurreição da nação através da grandeza nacional recordada. É neste momento histórico de revoluções que o indivíduo toma a consciência da história, “de que essa história é um processo ininterrupto de mudanças e, por fim, de que ela interfere diretamente na vida de cada indivíduo” (LUKÁCS, 2011, p. 38). O autor húngaro afirma que, apesar de existirem romances com temática histórica nos séculos XVII e XVIII, os escritores destes não percebiam os traços que são específicos do tempo narrado, como a cor local através do retrato dos costumes, por exemplo, apenas se aproveitavam de temas e ambiente históricos. Para Lukács, o que falta no romance social realista é o “elemento especificamente histórico” (LUKÁCS, 2011, p. 33). Este elemento estaria presente no romance histórico de Scott, no qual observamos: “o amplo retrato dos costumes e das circunstâncias dos acontecimentos, o caráter dramático da ação e, em estreita relação com isso, o novo e importante papel do diálogo no romance” (ibidem, p.47). A grandeza de Scott está, para György Lukács, em sua aptidão para dar vida aos tipos sociais históricos, realizando assim uma reviravolta na literatura universal. Estas personagens

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sociais, os heróis dos romances históricos, são medianos, ou seja, não há personagens importantes da história como figuras centrais do enredo, mas Scott busca apresentar a realidade da época através da vida cotidiana do povo, dos homens medianos. Os romances históricos se caracterizam, também, pelo caráter didático. Sobre este traço, Marinho (1999, p. 15) comenta: Falando raramente no presente, Scott significa-o através da figuração literária de épocas passadas, contribuindo para uma certa faceta didáctica tão ao gosto dos românticos. A ideia de que um livro de História preside a grande parte do nosso século XIX e princípio do XX, chegando Herculano a afirmar que Walter Scott ou Alfred de Vigny ensinam mais do que historiadores [...].

Em Portugal, o romance histórico ganhou espaço quando a obra de Scott já não era mais canônica (CHAVES, 1979). Para Castelo Branco Chaves este retardamento é resultado do atraso da vida e política lusitanas, além do alheamento dos portugueses frente aos movimentos culturais e artísticos europeus. Para Machado (1979), foi o período do romantismo lusitano que definiu a razão de ser do povo português. Os principais autores de textos nacionalistas foram Almeida Garrett e Alexandre Herculano, buscando em fontes medievais o fulcro de uma literatura nacional e própria (CHAVES, 1979). Conforme Chaves (1979, p. 12), Garrett e Herculano buscariam no Portugal medievo “o autêntico Portugal com as suas vigorosas forças criadoras, que só o povo guardava ainda nos seus costumes, crenças e tradições”, buscando sobretudo uma literatura que se mostrasse pedagógica, em consonância com Marinho (1999, p. 15), acima citada. O romance histórico surge em Portugal não apenas como meio cultural e artístico, mas um dos mais vastos e ricos recursos ao divertimento dos espíritos” (CHAVES, 1979, p. 27). Após o desenvolvimento do romance histórico, o positivismo trouxe à tona severas distinções entre Literatura e História, relacionando esta à verdade e aquela à mentira. Somente durante o Pós-modernismo que a Literatura se volta para a História. Porém, tal como a concepção de História sofre alterações, o romance também passa por modificações. Para Elisabeth Wesseling, segundo a interpretação de Marinho (1999, p. 37), “o pós-modernismo das últimas décadas teria feito reviver o entusiasmo por um passado que não está terminado, mas que se constrói em cada acto de escrita [...] numa tentativa de desconstrução”, tão logo percebemos que a intenção do diálogo entre Literatura e História não é mais a ressurreição da

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glória nacional da Idade Média e tampouco o ensino de história por vias literárias: o interesse é a desconstrução histórica por intermédio da Literatura, mostrando quão frágeis são as concepções da História como verdade absoluta e incontestável, traço postulado pelos historiadores positivistas, que concebem a História como uma ciência neutra. É a partir dessa compreensão que o termo metaficção historiográfica é concebido, como toda obra que, além de refletir sobre o processo de escrita, se valerá da matéria historiográfica para contestá-la, buscando o que há de real e de ficcional dentro da história que chegou a nós. É, portanto, uma ficção sobre a prática de escrita de uma ficção, e é historiográfica porque toma como objeto a História.Hutcheon (1991, p. 146) afirma que A metaficção historiográfica sugere que verdade e falsidade podem não ser mesmo os termos corretor para discutir a ficção, [...] só existem verdades no plural, e jamais uma só Verdade; e raramente existe a falsidade per se, apenas as verdades alheias. A ficção e a história são narrativas que se distinguem por suas estruturas, estruturas que a metaficção historiográfica começa por estabelecer e depois contraria, pressupondo os contratos genéricos da ficção e da história.

O que Linda Hutcheon propõe com a terminologia e sua explicação é o questionamento da veracidade dos documentos históricos postulados como verdadeiros e inquestionáveis, posto que, em consonância com Le Goff, o documento histórico é uma “montagem” da História, e não a História. Logo, o papel da metaficção é questionar verdades e versões. Hutcheon tem a consciência de que a história é “força modeladora” (p. 151) e a metaficção historiográfica não postula que o passado, ao qual temos acesso de maneira contextualizada e, portanto, via construção humana, é “real”. A metaficção historiográfica, como forma de operação da textualidade literária, opera através de procedimentos como a intertextualidade, a ironia ou a paródia, por exemplo. Na metaficção historiográfica há autorreflexividade do processo da escrita da história e suas relações com a Literatura. O trecho a seguir explica, nas palavras de Hutcheon (1991, p. 168) o papel problematizador da metaficção historiográfica: [...] metaficção historiográfica é especificamente duplicada em sua inserção de intertextos históricos e literários. Suas recordações gerais e específicas das formas e dos conteúdos da redação da história atuam no sentido de familiarizar o que não é familiar por meio de estruturas narrativas (muito familiares conforme afirmou Hayden White - 1978a, 49-50), mas sua autorreflexividademetaficcional atua no sentido de tornar problemática

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qualquer dessas familiarizações. A ligação ontológica entre o passado histórico e a literatura não é eliminada (cf. Thiher 1984, 190), mas sim enfatizada. O passado realmente existiu, mas hoje só podemos "conhecer" esse passado por meio de seus textos, e aí se situa seu vínculo com o literário.

Não são apenas os textos pertencentes à Literatura canônica ou erudita que serão utilizados como intertextos na metaficção, mas todas as fontes em quaisquer práticas que possam atuar dentro da sociedade. Para Hutcheon, “tudo – desde os quadrinhos e os contos de fadas até os almanaques e os jornais – fornece intertextos culturalmente importantes para a metaficção historiográfica” (1991, p. 173). Outro procedimento do qual os textos metaficcionais se utilizam é a paródia. Para Linda Hutcheon (1991, p. 28) “a paródia é uma forma pós-moderna perfeita, pois, paradoxalmente, incorpora e desafia aquilo a que parodia”, ou seja, incorpora e desafia o passado, no caso das metaficções historiográficas. Hutcheon acrescenta que a paródia reconsidera a ideia da originalidade, ou seja, reconhece o caráter intertextual dos textos. Considera ainda que “a paródia não é a destruição do passado; na verdade, parodiar é sacralizar o passado e questionálo ao mesmo tempo” (HUTCHEON, 1991, p. 165) e Marinho (1999, p. 40) acrescenta a tarefa de perpetuar o passado, mesmo através do ridículo. Maria de Fátima Marinho prossegue afirmando que ao dar novas significações a um texto preexistente, através da paródia, o autor necessita do reconhecimento do leitor, senão não haverá o efeito paródico, que se baseia sempre em um processo de metaficção. E conclui: a existência de conscientes efeitos paródicos e irónicos de referentes actuais de há muito estabelecidos leva a necessariamente a uma leitura crítica, pois que pressupõe um código cultural comum entre produtor e receptor do texto. Só reconhecendo o cânone a que o texto alude, pode o leitor detectar o abuso irónico que dele é feito [...]. (MARINHO, 1999, p. 40)

Notamos através deste trecho a necessidade de identificação do texto aludido na paródia para a compreensão da ironia, figura de linguagem que beneficia o processo paródico. Para Hutcheon (1991, p. 38) a ironia tem potencial subversivo na “contestação das pretensões universalizantes da arte ‘séria’”. A autora húngara argumenta, baseando-se em Humberto Eco, que, embora haja quem pense que o jogo da ironia é contrário à seriedade, ele está intrinsecamente envolvido na seriedade do objetivo e do tema. Na verdade, talvez a ironia seja a única forma de podermos ser sérios nos dias de hoje. Em nosso mundo não há inocência, ele dá a entender. Não podemos deixar de perceber os discursos que precedem e contextualizam tudo aquilo

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que dizemos e fazemos, e é por meio da paródia irônica que indicamos nossa percepção sobre esse fato inevitável. Aquilo que "já foi dito" precisa ser reconsiderado, e só pode ser reconsiderado de forma irônica. (idem)

A partir deste panorama da fecunda relação entre Literatura e História, especialmente através da metaficção historiográfica e seus procedimentos, compreendemos mais claramente os procedimentos realizados na confecção de A Ilustre Casa de Ramires, por Eça de Queirós.

3. A Ilustre Casa de Ramires No romance A Ilustre Casa de Ramires (ICR) temos como protagonista o jovem Gonçalo Mendes Ramires, bacharel em Direito pela Universidade de Coimbra, herdeiro de terras de Treixedos e Santa Ireneia. Personagem esférica ou complexa, contraditório em suas atitudes, marcado por antinomias de caráter: sincero e hipócrita, covarde e valente, regenerador e histórico. Gonçalo pertence à milenar família Ramires, sendo esta mais antiga do que o próprio Portugal nação, por este motivo sentindo-se superior, entretanto, a casa Ramires passa por uma fase decadente, pois suas terras estavam arrendadas (alugadas) por um valor que não permitia uma vida estável ao jovem Gonçalo, o último fidalgo da Torre, acometendo-o de um espírito de inferioridade. O protagonista ambiciona um cargo político, porém não há esperanças para tal, pois o partido Regenerador, do qual fazia parte, ocupava o lugar da oposição e não havia previsões para a queda do Partido Histórico do poder. Gonçalo encontra-se com um amigo dos tempos da faculdade, José Lúcio Castanheiro, em uma das viagens para Lisboa, e é seduzido pela ideia da elaboração de um romance sobre sua família que comporá os “Anais de Literatura e de História”. O jovem resolve escrever a novela histórica “A Torre de D. Ramires”, na qual narraria o grande feito de um de seus antepassados, Tructesindo Mendes Ramires, que viveu na mesma Torre, no século XIII. Seu principal plano é a autopromoção em Portugal e, quiçá, ocupar um cargo na política. Em sua empreitada literária, Gonçalo se vale de textos históricos como História Genealógica, obras de Walter Scott, e o Panorama de Alexandre Herculano, além do poema “Castelo de Santa Ireneia”, de autoria do tio Duarte, publicado há 50 anos no jornal local. A narrativa prossegue em dois planos: a vida enfadonha de Gonçalo Mendes Ramires e a busca da ascensão social através da política; e a feitura do romance histórico “A Torre de D.

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Ramires”. Enquanto o Fidalgo da Torre (Gonçalo) narra os grandes feitos de seu antepassado, vive também uma vida monótona e covarde no Norte de Portugal. A obra é tecida através dos vários contrastes implícitos entre as atitudes de Gonçalo Mendes Ramires e as atitudes de Tructesindo Ramires. Após inúmeras experiências vividas por Gonçalo, ele finalmente sente-se um verdadeiro Ramires, tal como seu antepassado, e é eleito como deputado de Vila Clara com muitos votos e sua novela é publicada e recebida com louvor pela crítica. Entretanto, mesmo vivenciando momentos de sucesso, Gonçalo rompe com Cavalheiro, parte para a África em busca de novos projetos e se ausenta de Portugal por quatro anos. O romance termina com a comparação de Gonçalo com o próprio Portugal. Apesar de Carlos Reis (2005) notar que a reflexão sobre Portugal e a História Portuguesa está presente em toda a trajetória de Eça, percebemos que o interesse queirosiano pela disciplina da História é mais aguçado em sua última fase.A História Portuguesa esteve presente de maneira mais enfática n’A Ilustre Casa de Ramires, pois a comparação entre o tempo da narrativa (o presente da época), vivido por Gonçalo, e a narrativa histórica sobre o antepassado Tructesindo, em “A Torre de D. Ramires”, permite ao leitor notar os contrastes entre atitudes do passado e do presente histórico de Portugal. Esta relação entre passado e presente, segundo Reis (2005, p. 33), é, em outros termos, “a dialética entre tradição e renovação”, a qual a Geração de 70 (das Conferências do Cassino) já vivenciou. Porém, a intertextualidade queirosiana com a História não se limita apenas à História de Portugal: em suas obras, Eça visita temas caros à História de todo o Ocidente, temas os quais intrigavam a Geração de 70, como “o Progresso e a Razão, a Cidade e o Indivíduo, a Prosperidade e a Pobreza, o Campo e o Ruralismo, a Educação do Cidadão, o Corpo da Mulher e o Amor, o Bem e o Mal, a Virtude e a Santidade, o Saber e a Ignorância, a Igreja e a Salvação” (REAL, 2006, p. 133). Notamos nesta obra duas temáticas que se destacam das várias interpretações literárias disponíveis: a decadência de Portugal, sendo pautada em conexões que a obra estabelece com a realidade histórica portuguesa; e, a natureza metalinguística do romance, a qual Eça faz uso para reflexões acerca da criação literária, mais especificamente do romance histórico, se servindo, como é do estilo queirosiano, de fina ironia. O retorno de Eça a uma temática histórica faz parte desta última fase de escrita queirosiana – o último Eça. Para Miguel Real (2006), em consonância com Padilha, Pageaux e

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Luzes, Eça de Queirós “procede neste romance à afirmação de uma literatura autoconsciente, exploradora em profundidade de complexos processos realistas” (p. 213), e prossegue afirmando que o romance ICR representa, através da figura do seu protagonista, Gonçalo, “a conquista da maturidade psicológica e narrativa de Eça” (p. 214). Real (2006) prossegue afirmando que Eça apresenta, ao longo da década de 1890, uma fase de “sensibilidade e consciência profundamente empenhadas na elevação econômica e social das massas urbanas e rurais ‘pobres’” (p. 13). O último Eça não tem ideologia ou partido político, mas é humanista: A expressão “humanismo” significa aqui o ponto de vista de um autor que planeia colocar-se epistemologicamente acima dos grupos sociais em contenda, dos interesses conjunturais da sociedade, visando abarcar a Sociedade e a História como um todo, uma espécie de olhar majestático por que conclui que o que acontece atualmente já de modo semelhante aconteceu em outras épocas (tempo) e em outras sociedades (espaço). Assim, o humanismo conduz, normalmente, a um certo relativismo comparativista entre épocas e sociedades diferentes e este relativismo conduz, por sua vez, a um certo ceticismo, que serão justamente o relativismo e o ceticismo do Último Eça. (REAL, 2006, p. 67)

Como escritor, Eça privilegiou a subjetividade, além do fator estilístico de comparação entre momentos históricos, geográficos ou civilizacionais, para conquistar exemplos universais e meta-históricos (REAL, 2006). Percebemos este recurso comparativo na obra A Ilustre Casa de Ramires ao captarmos, através da comparação de momentos históricos distintos, a relação entre tradição e progresso do povo Português. Cleonice Berardinelli (1971 apud REAL, 2006) faz uma observação interessante ao considerar os cinco romances queirosianos – O Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio, Os Maias, A Cidade e as Serras e A Ilustre Casa de Ramires – como um todo, uma macrossequência, e A Ilustre Casa de Ramires é o clímax, representando o ambiente da alta burguesia e da fidalguia. Carlos Reis (2009) reconhece que o tema de maior relevo na obra é a relação que o intelectual estabelece com o seu passado, a relação de tradição e renovação, ou seja, a relação de Portugal com sua memória histórica. Este tema é presente em Eça desde a Geração de 70, logo justificando outra afirmação de Reis: a de que os anos de 1888 a 1900 podem ser denominados “Eterno Retorno”, devido ao retorno a temas, valores e processos aparentemente superados (REAL, 2006, p. 50-51).

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Em vista de todos os comentários aqui inseridos – que são apenas uma porção, haja vista a multiplicidade de comentários acerca do romance – percebemos que os comentaristas chegam a um senso comum: diante de uma obra tão rica de sutilezas e ambiguidades, o que resta a nós, leitores, são leituras minuciosas e agudas, para estarmos atentos ao que Eça, como um clássico, tem a nos dizer.

4. Análise da Obra Através da escrita da novela histórica “A Torre de D. Ramires”, Eça de Queirós questiona os processos escriturais do romance histórico no modelo romântico através da paródia, revelando um processo metaficcional, posto que acompanhamos o passo a passo da escrita da novela de Gonçalo. O primeiro recurso utilizado é a intertextualidade, presente nas primeiras páginas do texto queirosiano. A intertextualidade surge do cruzamento de diversas vozes presentes em um único discurso, que faz parte de toda a comunicação humana. Nota-se a intertextualidade na cena a seguir: Diante dessa varanda, na claridade forte, pousava a mesa – mesa imensa de pés torneados, coberta com uma colcha desbotada de damasco vermelho, e atravancada nessa tarde pelos rijos volumes da “História genealógica” todo o “Vocabulário”de Bluteau, tomos soltos do “Panorama”, e ao canto, em pilha, as obras de Walter Scott sustentando um copo cheio de cravos amarelos. E daí, da sua cadeira de couro, Gonçalo Mendes Ramires, pensativo diante das tiras de papel almaço, roçando pela testa a rama de pena de pato, avistava sempre a inspiradora da sua Novela - a Torre, a antiquíssima Torre, quadrada e negra sobre os limoeiros do pomar que em redor crescera [...] robusta sobrevivência do Paço acastelado, da falada Honra de Santa Ireneia, solar dos Mendes Ramires desde os meados do século X. (QUEIRÓS, 2013, p. 5, grifos nossos)

Através de uma descrição tipicamente realista, percebemos como o narrador retrata o espaço, nomeando os livros que estavam em cima da imensa mesa. Desta forma identificamos os autores e a intertextualidade se torna explícita, mostrando ao leitor que o romance histórico a ser composto por Gonçalo não é uma obra neutra e original, mas fruto de suas pesquisas e leituras em obras fontes, que, certamente, são frutos de outras leituras, conforme Bakhtin (1992).

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A atitude de Gonçalo ao recorrer a outros textos, além de revelar a intertextualidade, também corrobora “a tentativa de se situar na linha clássica dos romances históricos” (MARINHO, 1999, p. 108): “Depois, do pó das suas estantes, desenterrou as obras de Walter Scott, volumes desirmanados do Panorama, a História de Herculano, o Bobo, o Monge de Cister.” (QUEIRÓS, 2013, p. 20). Entretanto, a autora também pontua a ironia desta busca pela linha clássica, quando Gonçalo atira a obra de Walter Scott, conforme observamos: “E de repente, com um berro, Gonçalo agarrou de sobre a mesa um volume de Walter Scott, que atirou sem piedade, como uma pedra, contra a tronco de uma faia.” (ibidem, p. 69). Claro está que Gonçalo vale-se das obras clássicas como material de consulta para a composição de seu romance, revelando a paródia que Eça de Queirós realiza ao afirmar que o gênero do romance histórico seria como uma fórmula, seguindo-se o modelo scottiano. Os textos de Herculano e de Scott servem, segundo Marinho (1999, p. 109-110), “apenas para criar cor local e a História de Portugal [...] para citar emblematicamente”. Tais textos mostram o cuidado de Eça de Queirós na demonstração dos passos necessários à feitura de um romance histórico, como se figura “A Torre de D. Ramires”. Eça atenta-se ao que Lukács (2011, p. 47) denomina como “o amplo retrato dos costumes e das circunstâncias dos acontecimentos” dentro da obra scottiana. Portanto, ao investigar as obras de Herculano e Scott, Gonçalo busca a cor local, os costumes e as circunstâncias da época que narra, para dar mais veracidade à sua narrativa. Contudo, apesar de assistirmos aos costumes da época, o fazemos através de uma linguagem que foi modernizada em referência ao momento narrado. Marinho (1999, p. 24) afirma que a prática da não-modernização da linguagem “levaria inevitavelmente à incompreensão de grande parte do público”, portanto, Gonçalo, influenciado pela atitude de Scott em Ivanhoe, moderniza sua linguagem em prol da compreensão do público, apesar de valer-se de alguns léxicos da época, apreendidos no dicionário de sinônimos: “Mas quando Gonçalo, enlevado no trabalho, tentava reproduzir, com termos bem sonoros,avidamente rebuscados no Dicionário de Sinônimos [...]” (QUEIRÓS, 2013, p. 173). Esta consulta, além de reafirmar a preocupação de Gonçalo com o processo de feitura do romance histórico, temperado com a cor local, também confirma o caráter metaficcional da obra, ao revelar ao leitor o trabalho realizado no processo de escrita.

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Gonçalo moderniza a linguagem, mas mantém a psicologia das personagens, traço queLukács percebe, através da obra de Scott, pois o autor escocês reconhece a importância de não transportar para a narrativa valores e ideias do momento da enunciação, devido ao risco de anacronismos. Logo, Gonçalo dá a suas personagens a honra vivida e defendida pelos indivíduos dos anos medievais. Por meio de uma fala forte e conhecida de Tructesindo (sob à escrita de Gonçalo), nos faz conhecida a honra dos Ramires: “Filho e amigo! De mal ficarei com o Reino e como Rei, mas de bem com a honra e comigo!” (QUEIRÓS, 2013, p. 60). Entre todos os antepassados importantes, Gonçalo elege como personagem central de sua novela histórica seu antepassado Tructesindo Ramires. Esta personagem é inserida em um tempo histórico real, quando havia a disputa de interesses entre Dom Afonso II e suas irmãs, D.ª Teresa e D.ª Sancha: “O Rei de Portugal só queria que nenhum palmo de chão português, baldio ou murado, jazesse fora de seu senhorio real. Escasso e ávido, El-Rei D. Monso?... Mas não entregara ele à senhora D. Sancha oito mil morabitinos de ouro?” (ibidem, p. 58). Ao inserir a personagem ficcional neste contexto histórico, Eça de Queirós obedece, novamente, aos preceitos scottianos, onde há coexistência entre os “episódios e personagens históricos e ficcionais num mesmo universo diegético” (MATIAS, 2009, p. 101). Partindo da obra de Herculano, marco da intertextualidade no texto queirosiano, Gonçalo reconstitui o ambiente medieval, no qual transitam personagens históricas – D. Afonso II, D.ª Teresa e D.ª Sancha – e personagens ficcionais – Tructesindo Mendes Ramires e Lourenço Mendes Ramires. Alcmeno Bastos afirma que o romance histórico para Lukács “assentava justamente na atribuição do papel de herói não a uma figura reconhecidamente histórica, mas a uma figura inventada ou de pouca expressão na cena histórica reconstituída” (2007, p. 93). Em consonância com os moldes do romance histórico scottiano, Gonçalo insere suas figuras históricas como personagens secundárias, dando apenas sustentação à narrativa de fundo histórico, portanto não há relato da psicologia das personagens históricas, justamente para não adentrar no mérito da historiografia. Gonçalo não recorre apenas a textos “oficiais” para a constituição da “A Torre de D. Ramires”, mas o poemeto do tio Duarte, “Castelo de Santa Ireneia”, é o mais explorado na escrita da novela. Este texto foi composto pelo tio de Gonçalo e publicado em um jornal semanal de circulação provinciano chamado “O Bardo”, extinto há algumas décadas. Gonçalo o considerava como “a sua obra”:

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E o trabalho, a composição moral dos vetustos Ramires, a ressurreição arqueológica do viver Afonsino, as cem tiras de almaço a atulhar de prosa forte - não o assustavam... Não!, porque felizmente já possuía a "sua obra" - e cortada em bom pano, alinhavada com linha hábil. Seu tio Duarte, irmão de sua mãe (uma senhora de Guimarães, da Casa das Balsas), nos seus anos de ociosidade e imaginação, de 1845 a 1850, entre a sua carta de Bacharel e o seu Alvará de Delegado, fora poeta - e publicara no “Bardo”, semanário de Guimarães, um Poemeto em verso solto, o “Castelo de Santa Ireneia”,que assinara com duas iniciais D. B. (QUEIRÓS, 2013, p. 7, grifo nosso)

O trecho da obra, além de expressar o sentimento de posse de Gonçalo para com o poemeto, também revela a tranquilidade de Gonçalo frente à grande missão de compor a obra que ressuscitaria os “vetustos1 Ramires”, posto que sua tarefa seria a de recortar e alinhar com “linha hábil” a história já narrada de tio Duarte. À primeira vista a atitude de Gonçalo nos parece um plágio, mas o próprio, através da voz onisciente do narrador de A Ilustre Casa de Ramires, excluí tal possibilidade: E era um plágio? Não! A quem, com mais seguro direito do que a ele, Ramires, pertencia a memória dos Ramires históricos?A ressurreição do velho Portugal, tão bela no Castelo de Santa Ireneia, não era obra individual do tio Duarte - mas dos Herculanos, dos Rebelos, das Academias, da erudição esparsa. E, de resto, quem conhecia hoje esse Poemeto, e mesmo o “Bardo”,delgado semanário que perpassara, durante cinco meses, há cinquenta anos, numa vila de Província?...! (QUEIRÓS, 2013, p. 19, grifo nosso)

Gonçalo Ramires confirma novamente a sua posse da memória materializada no texto e a compartilha com Herculanos, Rebelos, com as Academias e com a erudição esparsa. Notamos como a memória funciona como “identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia” (BURKE, 1997, p. 469, grifo do autor). A memória dos Ramires, materializada no poemeto, funciona como a identidade da grandeza que Gonçalo Ramires sente, porém, ao mesmo tempo que funciona como individual, ele a compartilha com a coletividade personificada na erudição acadêmica portuguesa. É importante pontuar que os principais textos usados como intertexto e fonte de inspiração para Gonçalo são o poemeto do tio Duarte e o “Fado dos Ramires”, composto por Videirinha, apontando para o que Hutcheon (1991, p. 173) atesta como textos “culturalmente

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Respeitáveis, veneráveis.

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importantes para a metaficção historiográfica”, não figurando apenas as obras canônicas e eruditas, mas textos populares, como o poemeto publicado em um semanário da região e o fado composto pelo ajudante de farmácia, Viderinha. No trecho abaixo podemos notar que além do recém descoberto talento de Gonçalo, quando nota que, finalmente, não escreveu um trecho baseado no prometo do tio, o narrador queirosiano nos fornece um exemplo dos traços da metaficção historiográfica: o acréscimo de informações históricas por parte do escritor literário. Gonçalo acrescenta informações ao relato, preenchendo lacunas que o poemeto do tio Duarte não havia ocupado. Este grito de fidelidade, tão altivo, não ressoava no poemeto do tio Duarte. E quando o achou, com inesperada inspiração, o Fidalgo da Torre, atirando a pena, esfregou as mãos, exclamou, enlevado: - Caramba! Aqui há talento! (QUEIRÓS, 2013, p. 60)

Gonçalo toma o texto do tio Duarte como factual, e, através de sua criação humana, transmite aos leitores a ideologia da lealdade à palavra por parte da família Ramires como uma metonímia de todos os portugueses do século XIII. Identificamos aqui o que Hutcheon afirmou ser o material base da metaficção historiográfica, já que Gonçalo se vale do poemeto de seu tio, não fazendo distinção entre texto erudito ou não. Notamos, através de toda esta análise, os processos usados por Gonçalo para narrar sua novela, dialogando assim com o romance histórico, gênero que dialoga com a História. Porém, Eça de Queirós constrói algo novo, que é A Ilustre Casa de Ramires.

5. Considerações finais Após a análise teórico-crítica da obra queirosiana A Ilustre Casa de Ramires, pontuamos diversas características recorrentes no texto, como a intertextualidade constante com os textos de Alexandro Herculano e Walter Scott, além da paródia do romance histórico, manifestada no processo de composição do romance, como uma espécie de “receita”. Isso nos revela o caráter metaficcional da obra, demonstrando o processo de manipulação dos dados históricos e dos intertextos, principalmente do poemeto do tio Duarte. Os processos acima descritos configuram-se nas inovações ficcionais da narrativa pósmodernista (HUTCHEON, 1991), o que demonstra a modernidade na escrita de Eça (MARINHO, 1999, p. 106). É plausível que Eça não se valeu destes recursos narrativos

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consciente de que estava a antecipar um movimento com cerca de 100 anos de diferença, mas comprova como Eça antecipa alguns recursos. Apesar das inovações trazidas por Eça na ICR, a obra não pode ser considerada uma metaficcção historiográfica, pois o leitor não é levado à autorreflexão da manipulação da matéria histórica, contestando-a, trazendo a narrativa da minoria ou buscando o que há de real ou ficcional no discurso histórico. O que Eça propõe é a autorreflexão do processo de construção do gênero romance histórico, valendo-se de recursos recorrentes na metaficcção historiográfica, mas não a identificando como tal. Portanto, Gonçalo não questiona acerca da veracidade dos textos de Herculano ou do poemeto do tio Duarte, apenas os usa como intertextos para a construção de seu romance. Marinho (1999, p. 113) afirma que A Ilustre Casa de Ramires “mima satiricamente um processo típico do primeiro Romantismo e o seu ingénuo entusiasmo pela reconstituição histórica. A metanarrativa ajuda a desmistificar a realidade sociocultural, mostrando ostensivamente os seus processos de funcionamento”. Logo, há pequenos indícios de uma metaficcção historiográfica, mas, seria mais seguro considerar a obra como uma metaficção do romance histórico. Baseando-nos em sua fineza irônica e nos trechos da obra analisados, assistimos à criação de uma novela histórica na qual Eça satirizava o romance histórico, entretanto Álvaro Lins (1959 apud MATOS, 2014, p. 511) afirma que, embora a intenção era a sátira ao gênero, Eça acabou por realizar uma reabilitação do romance histórico, sendo uma “pequena obra-prima da história portuguesa”. Do caráter metaficcional da obra, ressaltamos: o momento em que Gonçalo reflete acerca do plágio do poemeto e de sua decisão, mostrando-nos o que há por trás da escrita de um texto; a busca no dicionário de sinônimos, palavras e expressões que se encaixem no contexto da época e na leitura dos textos de Herculano, empenhando-se na descrição dos costumes da época, dando ao texto o ambiente medieval do qual fazia parte. Além disso, enfatizamos o momento no qual Gonçalo acrescenta informações não retiradas do poemeto do tio Duarte, mostrando-nos suas reações: “Este grito de fidelidade, tão altivo, não ressoava no poemeto do tio Duarte. E quando o achou, com inesperada inspiração, o Fidalgo da Torre, atirando a pena, esfregou as mãos, exclamou, enlevado: - Caramba! Aqui há talento!”

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(QUEIRÓS, 2013, p. 60). Esta cena é exemplar do caráter metaficcional da obra, pois demonstra, claramente, as reações do escritor Gonçalo ao produzir a novela histórica. Ao contrário, não buscamos uma interpretação única e definitiva: procuramos dar ao leitor uma possibilidade de leitura da obra (a ICR como metaficção paródica do romance histórico), e não a única possibilidade. Valemo-nos novamente de Antônio Cirúrgião quando este afirma ser a ICR um “romance tão bem estruturado e tão cheio de sutilezas e ambiguidades, que tem desafiado – e continuará desafiando –, para prazer nosso e glória de Eça, a perícia e agudeza dos leitores e dos críticos” (1969 apud MATOS, 2014, p. 513). Concordamos com o autor e nos alegramos com as possibilidades que uma obra clássica, como a queirosiana, nos fornece, tendo sempre algo novo a dizer. Esperamos que outras análises sejam realizadas para o enriquecimento da fortuna literária de Eça de Queirós, possibilitando-nos novas leituras. Referências Bibliográficas ARISTÓTELES. Arte Poética. São Paulo: Martin Claret, 2003. BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BURKE, Peter. A escrita da história. São Paulo: Editora da UNESP, 1992. CANDIDO, Antonio. Ironia e latência. In: BERRINI, Beatriz (org.). A ilustre Casa de Ramires. Cem anos. São Paulo: EDUC, 2000. p. 17-26. CHAVES, Castelo Branco. O Romance histórico no Romantismo português. Lisboa: Biblioteca Breve / Instituto de Cultura Portuguesa, 1979. HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo: história, teoria e ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991. LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003. LUKÁCS, György. O romance histórico. São Paulo: Boitempo, 2011. MARINHO, Maria de Fátima. O Romance Histórico em Portugal. Porto: Campo das Letras, 1999. MATIAS, Felipe dos Santos. A Ilustre casa de Ramires: entrecruzamento da ficção com a História em Eça de Queirós. 2011. 130 p. Dissertação – Universidade Federal de Viçosa. Viçosa, 2011. MATOS, A. Campos. Eça de Queiroz: Uma Biografia. São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas: Editora da Unicamp, 2014. QUEIRÓS, Eça de. A Ilustre Casa de Ramires. Porto: Porto Editora, 2013. REAL, Miguel. O Último Eça. Porto: Quidnovi, 2006. REIS, Carlos. Eça de Queirós. Lisboa: Edições 70, 2009. ___________. O essencial sobre Eça de Queirós. Lisboa: INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005. WHITE, Hayden. Trópicos do discurso. Ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: EDUSP, 1994.

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O ARQUIPÉLAGO EM CHAMAS (1884): FILELENISMO E REVOLUÇÃO GREGA EM JULES VERNE Princisval Ferruce Mestrando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa, princisval.ferruce@hotmail.com

Resumo: Pouco conhecido, O arquipélago em chamas, romance histórico publicado em 1884, ambientado no contexto da Revolução Grega, é mais uma das aventuras de Jules Verne cujo cenário é um local distante das fronteiras da França. A partir das reflexões de Edward Said (2011), que interpreta o autor como uma espécie de rapsodo do Neocolonialismo, o presente trabalho objetiva demonstrar que há, em seu texto, tanto a celebração de mais um triunfo particular do exército francês quanto a celebração de uma reconquista do poder de tutela do berço da civilização ocidental. Berço que possuía como guardiã, desde o século XIV, uma sociedade não cristã. Ademais, ao construir sua história, Verne desloca a importância da participação do nativo grego no conflito para personagens ingleses e, sobretudo, franceses. Seu texto não está interessado em oferecer aos gregos uma interpretação da Revolução que atuará na sua autoestima enquanto membro de um Estado-nação recém constituído, visto que a história possui um papel primordial na construção do indivíduo e na construção de um país. Está interessado, pois, na autoestima do próprio francês enquanto povo “eleito” para exercer uma pretensa missão civilizatória. Palavras-chave: Neocolonialismo. Literatura Francesa. Literatura, História e Memória.


Introdução

Agora me sinto alegre e inspirado em chão clássico; Mundo de outrora e de hoje mais alto e atraente me fala. Aqui sigo eu o conselho, folheio as obras dos velhos Com mão diligente, cada dia com novo prazer. (Goethe)

O nome Jules Gabriel Verne (1828-1905) espontaneamente nos remete à gênese da moderna ficção-científica. Famoso por obras como Viagem ao centro da terra (1864), Vinte mil léguas submarinas (1870) e A volta ao mundo em oitenta dias (1873), sua reputação legada à posteridade está em estreita relação com seu projeto literário, resultado, em grande parte, de um flerte bem sucedido com a ciência oitocentista. Ainda que sob o ponto de vista histórico sua paternidade com relação ao gênero acima citado seja discutível, sua obra total, – de fato inovadora do ponto de vista temático e ilusoriamente despretensiosa do ponto de vista formal – compreende, além de sessenta e quatro Viagens Extraordinárias, dezoito novelas, quatro obras de divulgação geográfica, além de peças teatrais que variam em popularidade. Mas, como observou o filósofo francês Marc Soriano (apud BENÍTEZ, 1990, p. 253), “a maior parte é mal conhecida e às vezes completamente ignorada”. Entre os anos de 1875 e 1914, período denominado pelo historiador britânico Eric Hobsbawm (1988) como a Era dos Impérios, as principais potências industriais da Europa Ocidental empreenderam ao redor do globo um processo de expansão e dominação, política, econômica e cultural, tendo como principais alvos sociedades asiáticas e, sobretudo, africanas (BRUIT, 1986). Esse modelo de política externa, protagonizado principalmente por Inglaterra e França, nasceu como resposta às necessidades crescentes impostas pelo Capitalismo Industrial oitocentista. O período em questão, conhecido pela antonomásia século da ciência, é profuso em ideias que, sob o rótulo de científicas, acabaram por legitimar ações de dominação. O darwinismo social, tentativa de aplicação das teorias de Charles Darwin ao estudo das sociedades, assim como as ideias de Arthur de Gobineau, mormente as encontradas em seu famoso estudo Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1855), são exemplos de ideias

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que influenciaram de forma expressiva o século XIX e, consequentemente as produções literárias. O arquipélago em chamas (1884), romance histórico ambientado na Guerra de Independência da Grécia, também chamada Revolução Grega, conflito ocorrido entre 1821 e 1829, é um dos textos menos afamados de Verne. Concebido num contexto em que o autor já desfrutava de grande popularidade entre seus contemporâneos, ajuda a referendar a ideia de Edward Said presente em Cultura e Imperialismo de que seus escritos, “baseados no ânimo e interesse pela aventura no mundo colonial, longe de lançar dúvidas quanto à iniciativa imperial, servem para confirmar e celebrar seus êxitos” (2011, p. 298). Nesse sentido, Verne pode ser lido como uma espécie de rapsodo moderno, um divulgador dos feitos e conquistas do Imperialismo. Ainda que sua obra não se limite a epopeizar as conquistas dos impérios ultramarinos, seu trabalho, assim como toda criação de cunho literário, não se desassocia do mundo social que o circunda, visto que a narrativa ficcional é um registro expressivo das temporalidades. Sendo assim, pode sinalizar os “traços comportamentais, sociais, políticos e culturais de uma dada historicidade. Pode ainda registrar concepções políticas e filosóficas” (MARSON, 2004, n.p.). Contemporâneo de Flaubert, Balzac e Victor Hugo, porém contrário a seus pares das letras, empenhados em maior ou menor grau, com as escolas românticas ou realistas, Verne desviou o olhar da sociedade francesa para regiões que figuravam entre as aspirações das grandes potências de sua época. Essa mudança de foco se explica e se potencializa com o contexto do dezoito, permeado pela ideia de progresso, uma vez que o aperfeiçoamento da ciência “estimulava o homem a olhar para fora de si, e a arte não poderia deixar de absorver e retratar essa nova realidade” (FACCIOLI, 2012, p. 165). Quanto a seu projeto literário, as Viagens Extraordinárias, projeto esse delimitado e aplicado de forma coerente até seus últimos anos de vida, alerta-nos Pierre Versins (1969) que só existe equivalência dentro da literatura na Comédia Humana de Honoré de Balzac. O escritor realista, em sua tentativa de abarcar em seus romances toda a complexidade da sociedade francesa entre os períodos da Revolução à Restauração, esbarrou de maneira inevitável em questões políticas relativas ao seu tempo. Igualmente, e talvez de maneira mais transparente,

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Jules Verne se encontra coadunado à justificativa paternalista neocolonial, a missão civilizatória. Se por um lado Verne “desprezou as extravagâncias poéticas e as alegrias místicas dos utopistas, sua tendência para moralizar, edificar, convencer, permanece intacta em sua obra” (LACASSIN, 1969, p. 102). Para falar de seus textos, portanto, além de considerar os discursos da política neocolonial e a ciência do período, faz-se necessário evocar a histórica e conflituosa relação entre Oriente e Ocidente. Após estas breves considerações, O arquipélago em chamas será aqui analisado como mais um capítulo do secular embate entre a civilização cristã ocidental e a civilização islâmica oriental. Seu romance, ao propor como o real poderia ter sido, carrega em si, com seus inevitáveis anacronismos, um objetivo pedagógico explícito. Ao rememorar distintos períodos da história da Grécia, o autor, além de valorizar arbitrariamente a intervenção francesa na guerra em detrimento da participação dos nativos, elege como antagonista principal da história grega a quatrocentenária influência muçulmana. A Antiguidade presente Geograficamente, a Grécia se localiza no continente eurasiano, ocupa mais especificamente o sul da Península Balcânica. A moderna ideia de ocidentalidade está intrinsecamente ligada à Grécia Antiga. É indubitável sua importância em campos tais como a filosofia, o teatro, as artes plásticas a arquitetura etc. Embora exista uma aura quase mágica envolta em sua história e em seus personagens reais ou míticos, os gregos contemporâneos não são herdeiros diretos dos antigos e, já não eram na época em que Verne concebeu O arquipélago em chamas. Mais do que um povo homogêneo e uma raça superior, ao longo da história “os gregos souberam incorporar elementos culturais de outros povos à sua própria civilização, adaptando-os às suas necessidades” (FUNARI, 2006, p. 25). Edward Said em Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (2007) já evidenciou que mais que uma categoria geográfica, Oriente é antes uma categoria cultural. A linha fantasmagórica que afasta e dualiza leste e oeste é definida antes pela questão da alteridade e não a partir da demarcação de uma fronteira física ou um acidente geográfico específico. O cenário no qual o romance de Verne se desenrola não é senão uma Grécia híbrida, com matizes culturais variados, com o agravante de

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grande parte de seu território pertencer desde o século XIV ao Império Otomano, antagonista cultural mais próximo do Ocidente Cristão desde pelo menos o século XIII. A reação à dominação, existente desde os primórdios da soberania turca, se intensificou no século XIX, graças em parte, aos movimentos nacionalistas que ocorreram em toda a Europa Ocidental. O fascínio exercido pela cultura grega e a influência de sua história induziram diretamente o olhar de grande parte da sociedade para o conflito de independência. Pode-se destacar o papel da intelectualidade romântica que traduzia o conflito como uma possibilidade concreta para libertar o berço da civilização. Jules Verne, que nasceu no período em que as guerras emancipatórias estavam em curso, se apresenta em O arquipélago em chamas como um amante da cultura grega clássica nos moldes similares à sua geração anterior. Seu texto, ao revelar certo saudosismo em relação à antiga terra do herói Ulisses, está em perfeita harmonia com o fileleno mais célebre de todos, o poeta britânico Lord Byron. O autor francês, ao contrário de Byron – que chegou a lutar na guerra, vindo a morrer de uma febre contraída em batalha – nunca esteve em solo grego. Ao construir seu romance, ele lança mão de um conhecimento histórico e geográfico minucioso, oriundos de documentos que estavam à sua disposição. Outrossim, serviu-se também de uma mentalidade advinda da geração romântica que orientaliza a história recente da nação grega. O arquipélago em chamas, ao interpretar e descrever um fato histórico de ordem local, mas de importância simbólica universal, convoca um futuro. Convocação esta que se relaciona às interpretações de fatos, ou leituras construtoras de passados convenientes que autorizam crenças ou opções presentes (MARINHO, 2008). Se em outras obras reivindica e celebra conquistas territoriais para os impérios neocoloniais em um universo periférico bárbaro e ignoto, em O arquipélago em chamas, ao evocar uma conquista militar específica do exército francês, celebra tanto a reconquista territorial de um arquipélago arbitrariamente estigmatizado como leste, como a reconquista do direito de tutela de uma das civilizações portadoras da gênese do ocidente, que tinha como algoz e carcereira uma sociedade muçulmana. Uma das características mais ímpares de Verne, seu jargão técnico-científico, pois seus textos absorvem as descrições dos geógrafos, dos naturalistas e dos sábios (BORDERY apud

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BENÍTEZ, 1990), aparece em O arquipélago em chamas tanto na linguagem náutica empregada quanto na descrição geográfica do arquipélago. Entretanto, o que se destaca em comparação com outras obras mais conhecidas não é a transposição para o texto de elementos da tecnologia oitocentista, é antes o apelo à história, tanto a antiga quanto a recente, e a elementos mitológicos. Após evocar nomes como Leônidas, Ésquilo, Sófocles, Platão, Aristóteles, Hipócrates e Alexandre, reportando-se ao período áureo da civilização grega, Verne comenta o início de seu declínio, a partir da colonização romana: Depois dessa época, sucessivamente invadido pelos visigodos, vândalos, ostrogodos, búlgaros, eslavos, árabes, normandos e sicilianos, conquistado pelos Cruzados no comêço [sic] do século XIII, dividido em um grande número de feudos no século XV, o país, tão sacrificado, tanto na antiguidade quanto nos tempos modernos, desceu ao último degrau da escala, caindo na mão dos turcos, sob dominação muçulmana (VERNE, 1965, p. 37).

A ação de O arquipélago em chamas se inicia no ano de 1827, ano em que de fato a intervenção europeia mostrou-se mais efetiva no conflito entre turcos e gregos. Do ponto de vista histórico, com o apoio das grandes nações, após sangrentas batalhas, a revolução logrou êxito, culminando na criação do Estado Grego (ALMEIDA, 2013). O título do romance referese tanto às batalhas que incendiavam as ilhas gregas quanto às ações de pirataria que tornavam a navegação nos mares Jônicos e Egeu empreendimento de risco. O enredo gira em torno de três personagens: o pirata Nicolau Estarcos, que renuncia à nacionalidade grega, e que utilizando o epíteto Sacratife é o vilão da história. O herói Henrique d’Albaret, capitão tenente da marinha real francesa, altruísta, fileleno por excelência, figura empenhada em libertar o povo grego; e, por fim, Hadjina Elizundo, que também grega e filha de um rico banqueiro, rejeita a fortuna deixada pelo pai. As narrativas de aventura que envolviam piratas e os mares não eram novas. Daniel Defoe e Jonathan Swift são apenas os exemplos mais famosos. O próprio Verne, apaixonado pelo oceano, em obras anteriores como Os filhos da Capitão Grant (1868), A ilha misteriosa (1874) e A escola dos Robinsons (1882), já havia explorado essas temáticas em maior ou menor

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intensidade1. Podemos ainda destacar que, um ano antes de O arquipélago em chamas, Robert Louis Stevenson havia publicado uma obra que se tornaria célebre, A ilha do tesouro (1883). O trabalho de descrição das ilhas gregas contemporâneas ocorre principalmente em comparação com a Grécia homérica, Jules Verne evoca também, reduzidas vezes, o romano Virgílio. O narrador assim se expressa quando Nicolau Estarcos, a bordo de sua embarcação, se aproxima de Tiaqui, a antiga Ítaca: Esta ilha, de oito léguas de comprimento por légua e meia de largura, singularmente penhascosa, soberbamente selvagem, rica em azeite e vinho que produz com abundância, conta uma dezena de milhar de habitantes. Sua história particular deixou, todavia, um nome célebre na antiguidade. Foi a pátria de Ulisses e Penélope, cuja lembrança ainda se encontra nos cumes de Anogi, nas profundezas da caverna de Santo Estêvão [sic], em meio às ruínas do monte Etos, através dos campos da Euméia, junto ao rochedo dos Corvos, por sôbre [sic] o qual devem ter escoado as poéticas águas da fonte de Aretusa (VERNE, 1965, p. 80-81).

Além de referências a personagens mitológicos ou históricos como Ulisses, Aquiles e as nove musas, Verne rememora importantes guerras e batalhas da Antiguidade como as Guerras Messênicas, conflito célebre entre Esparta e Messênia. Porém, mais nocivo que qualquer destruição advinda de uma guerra distante temporalmente, para os gregos, o grilhão otomano é a pior marca de sua história: No entanto, ao aproximar-se mais da Arcádia, a antiga Ciparíssia, que foi o principal pôrto [sic] da Messênia, no tempo de Epaminondas, e depois um dos feudos do Francês Ville-Hardouin, após as cruzadas, que espetáculo desolador para os olhos, que mágoa dolorosa para quem quer que tivesse a religião das recordações! Dois anos antes, Ibraim havia destruído a cidade e massacrado crianças, mulheres e velhos! Ficara em ruínas o velho castelo construído sôbre [sic] o local da antiga acrópole. Em ruínas a sua igreja de São Jorge, que os fanáticos muçulmanos haviam devastado (VERNE, 1965, p. 71-72).

Na descrição das cidades, passado e presente coexistem em um mesmo espaço. Templos dedicados aos deuses antigos disputam o ambiente com igrejas cristãs ortodoxas. As populações

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Um fato curioso acerca de sua biografia diz respeito à sua fuga de casa aos onze anos no La Coralie, embarcação que partia em direção às Índias. Quando seu pai se deu conta, Verne já se encontrava em Paimboeuf, o porto que se seguia à sua cidade natal, Nantes (MORÉ, 1969).

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das numerosas ilhas, em termos culturais, são representadas como distintas entre si. José Ribeiro Ferreira, em seu estudo A Grécia Antiga (1992), esclarece que a Grécia da Antiguidade estava dividida em um número considerável de pequenas cidades estado independentes, algumas com um espaço territorial e volume populacional mínimo. Cada pólis continha suas especificidades, com seus modos de vida e costumes variados. Em Verne, em certo sentido, a pólis ainda vive. Em seu processo de descrição do arquipélago, não homogeneíza os nativos e menos ainda os idealiza. Da mesma forma que são representados como herdeiros dos antigos, pelo menos herdeiros de uma terra com a digital impressa de um passado longínquo e soberbo, esse passado mostra-se distante e irrevogavelmente irrecuperável. Alguns, inclusive, são representados como selvagens, indiferentes em relação ao futuro de sua nação: Os maniotas, ou pelo menos aquêles [sic] que com êste [sic] nome vivem naquelas pontas alongadas, que separam os golfos, permaneceram semibárbaros, mais ciosos de sua própria liberdade que da liberdade de sua pátria. [...] Brigões, vingativos, transmitindo de pais a filhos, como os corsos, os ódios de famílias que só se saciam com sangue, bandidos de nascença, apesar de hospitaleiros, assassinos, quando o roubo exige o assassínio, afirmam, entretanto, êsses [sic] rudes montanheses que são descendentes diretos dos espartanos (VERNE, 1965, p. 13).

De fonte disseminadora de padrões de comportamento, quanto mais distante temporalmente de sua história modelo e mais próxima da influência islâmica, o grego parece incorporar elementos negativos de personalidade. Por outro lado, os personagens centrais, salvo Sacratife, o pirata traidor da pátria, estão relativamente em harmonia com o conceito de virtude grega, a aretê. Para o grego antigo, a ação impensada, violenta e excessiva é típico do bárbaro, do estrangeiro. O comportamento ideal seria aquele pautado pela moderação, pelo autocontrole, quer no domínio público quer no privado (FERREIRA, 1992). O personagem mais identificado com essa virtude não é um grego, é o francês: Henrique d’Albaret, capitão tenente da marinha real, um dos mais jovens oficiais de sua patente, agora licenciado por tempo indeterminado, alistara-se, desde o princípio da guerra, sob a bandeira dos filelenos franceses. Com vinte e nove anos de idade, de estatura regular, de constituição robusta, que o capacitava a suportar tôdas [sic] as fadigas da vida de marinheiro, êsse [sic] jovem oficial, pela graça de suas maneiras, pela distinção de sua pessoa, pela franqueza de seu olhar, pelo encanto de sua fisionomia, pela segurança de suas

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amizades, inspirava desde o primeiro momento uma simpatia que intimidade prolongada só conseguia aumentar (VERNE, 1965, p. 48).

Após constatar que o herói de Verne incorpora e exala essa essência superior, convém lembrar que muitos dos personagens de outras histórias são colagens de indivíduos reais. Não cópias autênticas de uma personalidade particular, mas uma inspiração explícita. O autor se baseia em importantes militares, cientistas ou exploradores. No caso de Henrique d’Albaret, pode-se fazer um paralelo com numerosos militares importantes que lutaram na guerra – o próprio Verne cita-os – como o marechal francês Saint-Jean d’Angely e o Conde Cochrane2. Altruísmo Imperialista Edward Said (2011) já observou que, nas aventuras de Jules Verne, os exploradores ou aventureiros, após encontrarem o que estavam procurando, salvo raríssimas exceções, retornam para casa, sãos e salvos, geralmente mais ricos. O arquipélago em chamas segue mais ou menos esse paradigma, com apenas uma ressalva: após longos e variados percalços, Henrique d’Albaret e Hadjina, ao final da trama, deixam o território grego em direção à França, arruinados financeiramente. Said, novamente, explicita que tanto o Imperialismo quanto o colonialismo “são sustentados e talvez impelidos por potentes formações ideológicas que incluem a noção de que certos territórios e povos precisam e imploram pela dominação” (2011, p. 40). A formação ideológica de Verne, em sintonia com a noção da existência de uma súplica por dominação, ao transferir o cenário de sua obra da África para a Grécia, converte a dominação em uma intervenção altruísta. Algo impensável quando se trata das hostis relações entre os colonizadores e colonizados da Europa e da Índia, Europa e China, Europa e África etc. A importância histórica da Grécia e sua posição geográfica são os principais elementos que possibilitam esta conexão salutar. Após a embarcação de Henrique d’Albaret derrotar o principal pirata que amedrontava o arquipélago:

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O aristocrata escocês Thomas Alexander Cochrane (1775-1860), além de sua participação na Revolução Grega, teve participação efetiva nas guerras napoleônicas e nos movimentos de independência da América. Cochrane foi também organizador da Armada Imperial Brasileira, tendo papel de destaque na tentativa de unificação do território brasileiro.

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– Viva a Grécia! – gritou Henrique d’Albaret, no mesmo tempo que o pavilhão da Sifanta era içado do tôpo [sic] do mastro grande. – Viva a França! – respondeu a tripulação, associando êstes [sic] dois nomes que haviam estado tão estreitamente unidos durante a guerra da independência (VERNE, 1965, p. 222).

No texto, a salvação da Grécia não se manifesta apenas nas realizações militares. Henrique d’Albaret salva Hadjina e liberta diversos helenos da escravidão. Henrique d’Albaret no campo de batalha, salva a vida de Andrônica Estarcos, figura feminina forte, heroína nacionalista. Henrique d’Albaret ainda, como capitão da embarcação Sifanta, é o responsável direto por livrar os mares do vilão Sacratife e da pirataria que afligia os mares que banhavam o arquipélago. A utilização da história em textos que explicitamente não pretendem fazer estudos rigorosos e científicos do passado constrói um passado verossímil mas não verdadeiro. Esse passado acaba por legitimar comportamentos, opções e sobretudo códigos nacionais (MARINHO, 2008). O arquipélago em chamas é, nesse sentido, uma obra fundadora de paradigmas. Ao resgatar um episódio específico da história grega, Verne cria uma situação que atesta uma ação imperialista isolada, mas, em um sentido mais profundo, ratifica sobretudo um conjunto de ideologias que faziam parte da mentalidade europeia da segunda metade do século XIX. A questão da nacionalidade tem papel central na obra. Dentro do arquipélago, a figura de Andrônica Estarcos, mãe do cruel e famigerado Sacratife, tem um sentido arquetípico. Ao longo do texto, Verne, aludindo a alguns episódios da guerra, coloca em relevo inúmeros massacres empreendidos tanto do lado Grego quanto do Otomano. Após o marido ser assassinado pelos turcos, Andrônica lançou-se contra a tirania islâmica. O filho, Nicolau, paradigma de um não nacionalista, segue um caminho diametralmente oposto; se lança aos mares para aprender o oficio de marinheiro, como também os talentos necessários à prática da pirataria. Após um longo período distante, ao retornar à sua terra natal: Nicolau Estarcos percorria com os olhos habituados às trevas toda aquela imensidade. Há, no olhar do marinheiro, um poder de penetração que lhe permite ver onde os outros nada enxergariam. Naquele momento, porém, parecia que os fatos exteriores não eram capazes de impressionar o capitão da Carista, habituado certamente a cenas bem diferentes. Não. Era para dentro

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de si mesmo que olhava. Aquêle [sic] ar natal, que é como que o hálito da pátria, êle [sic] o respirava quase inconscientemente. E permanecia imóvel, pensativo, os braços cruzados, enquanto a cabeça, desembaraçada do capuz, conservava-se fixa como se fosse de pedra (VERNE, 1965, p. 28).

No momento em que Nicolau Estarcos se depara com o local de seu nascimento, no capítulo dois, intitulado Frente a Frente, Verne ainda não havia explicitado o caráter sádico do personagem. Apesar de Nicolau ser pirata, Verne, em um primeiro momento, deixa em aberto a possibilidade de que ele se redima e tome como sua uma batalha que já havia exterminado vários de seus conterrâneos. Ao entrar em contato com a antiga casa paterna: Ali, teve como que um movimento de hesitação. Não há coração tão endurecido que não se sinta opresso em presença de certas recordações do passado. Não nascemos em certo lugar para nada sentir diante do chão em que nos ninou nossa mãe. As fibras do ser não se podem desgastar ao ponto de não vibrar pelo menos uma, quando as saudades a tocam (VERNE, 1965, p. 31).

Ao longo do romance Verne faz questão de explicitar que o povo grego, do mesmo modo que não é composto por uma massa uniforme de pensamentos, culturas e ideais, se posiciona de distintas maneiras quando o assunto é assumir um papel ativo na luta contra a dominação turca. Nicolau era um não patriota, mas não se manteve neutro com relação ao conflito. Utilizando o caos da guerra, alia-se aos inimigos com fins de enriquecimento. Toma parte inclusive de massacres. Sua atitude de traição à pátria é um caminho sem volta. Momentos antes de entrar na antiga casa: Nesse momento abriu-se a porta vagarosamente. Uma mulher apareceu na soleira. Estava vestida com o trajo das maniotas; saia preta de algodão, com orla vermelha; corpete escuro, apertado na cintura; na cabeça gorro pardacento, cingido por fita com as côres [sic] da bandeira grega. [...] Era Andrônica Estarcos. Mãe e filho, há tanto tempo separados de corpo e alma, encontravam-se frente a frente. Nicolau Estarcos não esperava encontrar-se em presença da mãe... Tal aparição deixou-o aterrado. Andrônica, o braço estendido em direção ao filho, proibindo-lhe acesso à casa, disse-lhe apenas estas palavras com voz que se tornava terrível, por partir dela: - Jamais Nicolau Estarcos tornará a pôr os pés na casa de seu pai. Nunca mais! (VERNE, 1965, p. 33-34).

Em uma das inúmeras batalhas em que tomou parte, Andrônica reconheceu o filho ao lado dos otomanos em um assassínio. As categóricas palavras de impedimento de acesso à

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residência que Andrônica lançou ao descendente, obviamente, estão relacionadas à imagem de assassino que estigmatizou o filho. Personificação da liberdade, ao estilo representado por Eugène Delacroix em A Liberdade Guiando o Povo, Andrônica, renega Nicolou não tanto pelo assassinato em si, mas pelo fato de que tal crime ocorre em mancomunação com o inimigo otomano. O filósofo Michel Serres (apud BENÍTEZ, 1990), faz uma analogia interessante ao comparar a obra de Verne com a Odisseia de Homero ou Ulisses de Joyce; cada viagem em Verne é um trecho do ciclo homérico ou decorrer de uma hora em Dublin. As cosmovisões distintas de Homero e Verne, assim como as condições de produção e singularidade de cada contexto, possibilitaram o parto de formas e conteúdos literários distintos. Odisseu viu muitas das coisas enxergadas igualmente por Henrique d’Albaret. A visão de ambos, contudo, é o espectro de seus autores. A Odisseia, de certa forma, com seu caráter fantástico, se propõe como realidade. A obra de Verne se apresenta ao entretenimento, mas, mesmo em determinados momentos quando se propõe a levantar questões históricas mais sérias, como caso de O arquipélago em chamas, encontra sérias limitações. Considerações finais A história tem um papel importante na construção do indivíduo e na autoestima de um país (MIRANDA, 2012). Entretanto, quando os membros da nação não representam a si mesmos o resultado pode ser nocivo. O papel de forja identitária aventado em O arquipélago em chamas é falho em dois pontos cruciais: primeiro, já nasce despido de identificação cultural com o povo grego contemporâneo; Verne se identifica com a Grécia apenas por meios indiretos: seu passado longevo, histórico ou mitológico, e o filelenismo atuante da década de 1820. Segundo, ao contrário dos romances de Balzac e Victor Hugo que tinham como objetivo delimitado ajudar a tornar coesa uma sociedade que pouco tempo antes havia saído de uma sangrenta revolução, a França na qual Verne concebe sua obra já é um grande império neocolonial. Seu texto não goza de todas as características definidoras do romance histórico tradicional. Romances históricos tais como Os Chuans (1829) de Balzac ou Noventa e três (1874) de Victor Hugo foram expressões de um povo que conviveu com inúmeras

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transformações sociais e políticas. São tentativas de resgatar o espírito de união e o nacionalismo. Verne não está preocupado em oferecer aos gregos uma interpretação da Revolução Grega que atuará na autoestima destes enquanto membro de um Estado-nação. Está interessado, sim, na autoestima do próprio francês enquanto povo predestinado a exercer a missão civilizatória. Seu texto deve ser elucidado como uma projeção das preocupações de sua época. As tentativas de transformar história em literatura, comumente, transformam o tema em algo moralizante ou heroico. Nesse caminho, os personagens representam valores morais e éticos. Essa transformação de personagens em virtudes são meios encontrados pelo narrador para criticar o presente, e no caso de Verne, para se filiar ao presente. Referências bibliográficas ALDEIDA, L. C. S. Armênios e Gregos otomanos: a polêmica de um genocídio. 2013. 157 f. Dissertação (Mestrado em História Social), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. BENÍTEZ, Juan José. Eu, Júlio Verne. São Paulo: Mercuryo, 1990. BRUIT, Hector. O Imperialismo. Campinas: Atual, 1986. FACCIOLI, Luiz Paulo. Júlio Verne. In: MASINA, Lea (org.). Guia de leitura: 100 autores que você precisa ler. Porto Alegre: L&PM POCKET, 2012. FERREIRA, José Ribeiro. A Grécia Antiga. Lisboa: 70, 1992. FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. São Paulo: Contexto, 2006. HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios (1875-1914). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. LACASSIN, Francis. Os náufragos da terra: os primórdios da ficção-científica. In: BELLOUR, Raymond; BROCHIER, Jean-Jacques. Júlio Verne: uma literatura revolucionária. São Paulo: Documentos, 1969. MARINHO, Maria de Fátima. A construção da memória. In: Veredas. Revista da Associação Internacional de Lusitanistas. Vol. 10. Santiago de Compostela, 2008, pp. 135-148. MARSON, Izabel Andrade. Obras de ficção revelam características de momento histórico. Disponível em: <http://www.comciencia.br/entrevistas/2014/10/entrevista2.htm>. Acesso em: 28 mai. 2016. MIRANDA, ANA. A arte de fingir que se mente. In: Revista de História da Biblioteca Nacional, número 76. Rio de Janeiro. 2012. Disponível em: <http://www.revistadehistoria. com.br/secao/entrevista/a-arte-de-fingir-que-se-mente>. Acesso em: 28 mai. 2016. MORÉ, Marcel. Um revolucionário subterrâneo. In: BELLOUR, Raymond; BROCHIER, JeanJacques. Júlio Verne: uma literatura revolucionária. São Paulo: Documentos, 1969. RIBEIRO, Rosária Cristina Costa. A espacialidade no romance histórico francês no século XIX: Balzac, Hugo e Elémir. 2013. 171 f. Tese (Doutorado) - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciencias e Letras (Campus de Araraquara), 2013. SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011. ______. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007.

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AS RELAÇÕES DE TRABALHO NA NARRATIVA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA DE LUIZ RUFFATO Camila Galvão de Sousa Mestranda em Letras, área de concentração Estudos Literários, na Universidade Federal de Viçosa. E-mail: camigalvaos@gmail.com

Joelma Santana Siqueira Doutora em Literatura Brasileira pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Professora permanente do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Viçosa. E-mail: jandraus@ufv.br

Resumo: O presente artigo, vinculado à pesquisa de dissertação de mestrado intitulada “Personagens em trânsito: do trabalho ao lar em O mundo inimigo de Luiz Ruffato”, busca analisar a trajetória de uma personagem específica do romance-mosaico O mundo inimigo de Ruffato, segundo volume da pentalogia Inferno Provisório, publicado em 2005 pela editora Record, sob a perspectiva das relações de trabalho, categoria ainda silenciada e invisibilizada na narrativa brasileira contemporânea, conforme reitera Regina Dalcastagnè (2012). Trata-se de Marlindo, pajem de Osvaldo, pai de Hélia e Luzimar, cujo núcleo narrativo é focalizado na terceira narrativa-capítulo do romance, denominada “O barco”, e trajetória é marcada pela instabilidade em diversos níveis. A metodologia empregada baseou-se na análise crítica interpretativa do texto literário a partir de pesquisa bibliográfica em textos de áreas diversas do conhecimento, com ênfase ao trabalho na perspectiva econômica e às particularidades da narrativa contemporânea. Palavras-chave: Inferno Provisório. Literatura e Sociedade. Literatura Brasileira Contemporânea. Romance Contemporâneo. Literatura e Trabalho.


A partir da consolidação do modo de produção capitalista, na transição do século XIX para o XX, a industrialização passou a caracterizar a sociedade moderna e a ser o seu principal fator de transformação, como destaca Henry Lefebvre (2001). Consequentemente, houve a necessidade de redimensionar o perfil da cidade, o que refletiu em diversos aspectos do cotidiano de seus habitantes, principalmente no que tange às questões do universo do trabalho. André Gorz (2007) ressalta que o trabalho, na perspectiva econômica, dessa forma, tornou-se o “cerne de nossa existência, individual e social”, formando uma “sociedade de trabalhadores” (GORZ, 2007, p. 21). O texto ficcional pode problematizar aspectos sociais, sem, no entanto, deixar de cumprir seu papel como expressão artística. Na perspectiva crítica de Antonio Candido, o estudo de relação entre literatura e sociedade possibilita a apreensão de camadas mais profundas de um texto literário ao assimilar “a dimensão social como fator de arte” (CANDIDO, 2000, p. 8). Dessa forma, os aspectos externos (valores e ideologias) se tornam internos (modalidades de comunicação), pois o “traço social constatado é visto funcionando para formar a estrutura do livro” (p. 8). O texto literário não deve ser observado como documento e representação social, pois, para se ler o literário, é fundamental apreender, tanto quanto o seu conteúdo, a sua forma, já que ambos formam uma unidade inseparável. Apesar da diversidade e da ampliação de abordagens da literatura contemporânea, como afirma Regina Dalcastagnè (2012), o campo brasileiro ainda é extremamente homogêneo, com a predominância de escritores homens, brancos, escolarizados e de classe média, bem como de suas personagens que compartilham do mesmo perfil. No entanto, quando há representação de violência urbana, por exemplo, as personagens são negras e moradoras de periferia. Ou seja, são perspectivas escassas que não representam a pluralidade de nossa sociedade. Luiz Ruffato, nesse sentido, é um contraexemplo pela legitimidade de seu lugar de fala ao representar, na saga Inferno Provisório, uma “sociedade de trabalhadores” em Cataguases, Minas Gerais, espaço ficcional das narrativas e cidade natal do escritor. De família humilde, o escritor perpassou por inúmeras experiências profissionais, ainda em Cataguases: pipoqueiro, caixeiro de botequim, balconista de armarinho, operário têxtil, torneiro-mecânico e gerente de lanchonete. Sua trajetória pessoal, portanto, pode relacionar-se à sensibilidade e à diversidade

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de suas narrativas: “Conheço bem a realidade de humilhação, dificuldades financeiras e sonhos da classe operária” (RUFFATO, 2011)1, afirma o escritor em entrevistas. Inferno Provisório revela o compromisso social e o engajamento de Luiz Ruffato, pois, através de uma narrativa moderna, retrata aspectos relevantes da sociedade brasileira sob uma perspectiva diferente da que tem sido identificada por Dalcastagnè, enfatizando o cotidiano do trabalhador em cinco volumes: Mamma, son tanto felice (2005), O mundo inimigo (2005), Vista parcial da noite (2006),O livro das impossibilidades (2008) e Domingos sem Deus (2011). Cada volume da pentalogia é formado por diversas narrativas-capítulos que compõem um romancemosaico, já que podem ser lidas isoladamente, mas se interpenetram em alguns momentos, seja para afirmar ou contradizer dados, acompanhar a trajetória de personagens ou para focalizar aspectos sociais, a partir de um mesmo cenário principal, a cidade de Cataguases, e sob uma mesma perspectiva, a do trabalhador urbano. Subvertendo, assim, a história contada somente por aqueles que detêm o “poder” e abarcando o cotidiano das camadas pobres da sociedade, com seus sonhos, anseios e dificuldades. Em novembro de 2016, uma nova edição do Inferno Provisório foi lançada pela Companhia das Letras que reúne os cinco romances em um único volume revisado, reescrito e reestruturado pelo autor Com base nessas observações iniciais, o presente artigo busca analisar a trajetória de uma personagem específica do romance-mosaico O mundo inimigo, segundo volume da pentalogia Inferno Provisório, publicado em 2005 pela editora Record, a partir de questões relacionadas ao trabalho. Trata-se de Marlindo, cujo núcleo narrativo é apresentado em “O barco”, terceira narrativa-capítulo do romance. A metodologia empregada baseou-se na análise crítica interpretativa do texto literário a partir de pesquisa bibliográfica em textos de áreas diversas do conhecimento, com ênfase ao trabalho na perspectiva econômica e às particularidades da narrativa contemporânea.

Narrativa brasileira contemporânea

RUFFATO, Luiz. “Ficção de Luiz Ruffato permanece fiel à classe operária”. 09 dez 2011. G1, blog Máquina de escrever. Entrevista concedida a Luciano Trigo. Disponível em <http://g1.globo.com/platb/ maquinadeescrever/2011/12/09/ficcao-de-luiz-ruffato-permanece-fiel-a-classe-operaria/> Acesso em 25 mar 2015. 1

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Giorgio Agamben, no ensaio intitulado “O que é o contemporâneo” (2009), desenvolve sua abordagem com base na afirmação de que o contemporâneo é o intempestivo, de Roland Barthes, e, portanto, observa que ser contemporâneo é ser capaz de manter “fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro” (AGAMBEN, 2009, p. 62) e ainda nesse escuro perceber uma luz. Karl Erik Schollhammer, em Ficção brasileira contemporânea(2009), em busca do conceito de contemporâneo, recupera o ensaio de Agamben e conceitua o contemporâneo como “aquele que, graças a uma diferença, uma defasagem ou um anacronismo, é capaz de captar o seu tempo e enxergá-lo” (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 9). O que não representa um conceito fechado, pois a literatura contemporânea pode não ser exatamente aquela que representa a atualidade, já que pode tratar de um passado perdido ou até mesmo de um futuro utópico. No livro em questão, Schollhammer faz um mapeamento da produção ficcional brasileira das últimas décadas, com suas respectivas rupturas e continuidades, destacando a pluralidade de autores e estilos, que perpassam pelas narrativas tradicionais, pelas formas ultracurtas de minicontos, por estruturas complexas e fragmentadas, experiências de linguagem e de estilos, como também por composições híbridas que mesclam o literário e o não literário. O desafio, porém, está em lidar e expor “as questões mais vulneráveis do crime, da violência, da corrupção e da miséria”, como argumenta o autor (p. 14). A partir dessa perspectiva, o professor destaca inúmeros autores, enfatizando suas publicações e comentando algumas delas, que se dividem, segundo ele, em basicamente duas categorias: os que reinventam o realismo “à procura de um impacto numa determinada realidade social” ou para “refazer a relação de responsabilidade e solidariedade com os problemas sociais e culturais de seu tempo”; e os que buscam uma consciência subjetiva, aproximando o literário “ao mais cotidiano, autobiográfico e banal, o estofo material da vida ordinária em seus detalhes mínimos”. Todavia, tal classificação não possui a intenção de reduzir a especificidade de cada texto literário, principalmente pelo fato de que “a literatura que hoje trata dos problemas sociais não exclui a dimensão pessoal e íntima, privilegiando apenas a realidade exterior; o escritor que opta por ressaltar a experiência subjetiva não ignora a turbulência do contexto social e histórico” (p. 15).

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Schollhammer apresenta a multiplicidade e a heterogeneidade dessa nova geração de escritores que ganharam mais espaço na mídia, inclusive com a presença em programas especificamente literários na televisão, mas que ainda não conquistaram um aumento significativo de leitores efetivos no país, conforme destaca a terceira edição da pesquisa “Retratos da leitura no Brasil”, publicada em 2014 pelo Instituto Pró-Livro2. Regina Dalcastagnè, ao também compor uma espécie de panorama da literatura brasileira contemporânea, sob outra perspectiva, principalmente no livro Literatura brasileira contemporânea: um território contestado (2012), reitera que, apesar dessa diversidade e ampliação, o campo ainda é extremamente homogêneo, com a predominância de escritores homens, brancos, de classe média, com escolaridade superior e moradores de grandes cidades. Esse perfil também é predominante na composição de suas personagens, como ressalta Dalcastagnè em pesquisa intitulada “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”, cujo resultado também está publicado nesse mesmo livro. Sendo que quando há a representação das vítimas de violência urbana, elas são negras e moradoras de periferia. Ou seja, são perspectivas escassas que não representam a pluralidade da sociedade brasileira. Dessa forma, considerando os elementos do que Antonio Candido (2006) denominou “sistema literário”, Dalcastagnè discute o perfil extremamente limitado de produtores literários, de grupos representados, e, consequentemente, de consumidores de literatura. Essa questão reitera a desigualdade social do país e a necessidade de uma democratização na sociedade, como também na literatura. Ao observar “como [os escritores] são parecidos entre si, como pertencem a mesma classe social, quando não têm as mesmas profissões, vivem nas mesmas cidades, tem a mesma cor, o mesmo sexo...” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 8), a pesquisadora apresenta estatisticamente a limitação de perspectivas representadas na literatura contemporânea, principalmente pela ausência de pobres e negros (escritores e personagens), que, dessa forma, não expressam as diferentes maneiras de ver e de perceber o mundo.

A pesquisa “Retratos da leitura no Brasil”, realizada pelo Instituto Pró-Livro, publicada em 2014 a partir de dados coletados em 2013, possui como objetivo verificar o perfil dos leitores e as mudanças em seu comportamento por região. Vale destacar que a pesquisa considera como leitor aquele que declarou, no momento da entrevista, ter lido pelo menos um livro, inteiro ou em partes, nos últimos três meses. Disponível em <http://prolivro.org.br/home/images/relatorios_boletins/3_ed_pesquisa_retratos_leitura_IPL.pdf> Acesso em 21 ago 2016. 2

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Quando surgem novas vozes, pertencentes a grupos silenciados ou não autorizados, com outras perspectivas e abordagens, como Maria Carolina de Jesus, para citar um entre os poucos exemplos, causam um desconforto e precisam ter seu lugar de fala, sua legitimidade e sua autoridade reforçados constantemente pela academia, antes de qualquer debate estético, por serem considerados como literatura “menor” ou de cunho sociológico, conforme reitera Dalcastagnè. Dessa forma, entram em debate, fundamentalmente, questões de acesso à voz e de representação dos diversos grupos sociais a partir do lugar de fala: afinal, “quem fala em nome de quem”? (p. 17). Assim, as temáticas que buscam representar o outro literariamente estão em voga na contemporaneidade, mas as vozes que falam em nome desses grupos silenciados não pertencem efetivamente a eles, na maioria dos casos. Ou seja, poucos são os exemplos “daqueles autores que seriam eles próprios ‘o outro’” (p. 24). Dalcastagnè, na pesquisa mencionada enfatiza, portanto, a homogeneidade de grupos representados literariamente, em consonância com a monopolização daqueles que obtêm o lugar de fala. Entre os dados coletados, sendo que fez parte de seu corpus um total de 258 romances publicados entre os anos de 1990 e 2004 pelas editoras centrais no campo literário brasileiro no período (Record, Companhia das Letras e Rocco), foram destacados 165 autores e 1245 personagens consideradas “mais importantes”. A partir desse corpus foi observada a “invisibilização de grupos sociais inteiros e o silenciamento de inúmeras perspectivas sociais” (p. 149). As narrativas contemporâneas, em que predominam o espaço urbano e o período histórico atual, possuem, em linhas gerais, o perfil de personagens masculinas, brancas, heterossexuais e de classe média, assim como seus autores, conforme comentado. É notável a ausência das classes populares. O que não é de exclusividade da literatura, lamentavelmente. Mulheres, negros e trabalhadores, principalmente, são socialmente excluídos e “estão subrepresentados no parlamento (e na política como um todo), na mídia, no ambiente acadêmico” (18). Sobre o trabalhador brasileiro que, antes da ditadura militar era “um outro desconhecido” (p. 30), sendo que obtinham destaque bandidos, malandros e vigaristas, ainda é difícil encontrar sua representação “como alguém com uma história, um passado, projetos e sonhos, parecidos ou não com os nossos” (p. 31). Ou seja, o trabalhador é tratado como um

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conjunto uniforme, uma categoria, assim como já fazia Aluísio Azevedo em O Cortiço (1890). No entanto, como acrescenta o crítico Paulo Franchetti, para o caso de Azevedo, “o que se perde em profundidade e em particularização é compensado pela visão de conjunto” (FRANCHETTI, 2012, p. 57). Regina Dalcastagnè explica que “os autores brasileiros se mostram muito mais sensíveis à variedade das vivências dos estratos sociais mais próximos ao seu” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 31). Portanto, mesmo quando objetivam realizar um painel da vida contemporânea, a predominância é a classe média “como se a diferença que separa um médico de um advogado fosse mais significativa do que aquela que afasta um balconista de lanchonete de um motorista de ônibus” (p. 31). As relações profissionais predominantes na narrativa contemporânea apresentam as personagens masculinas como incorporadas ao mercado de trabalho, enquanto as femininas permanecem confinadas ao espaço privado. Há também a predominância do universo masculino nas relações de amizade ou de inimizade. Quando são referenciadas, as profissões ou ocupações masculinas que se sobrepõem nas narrativas do período analisado são as de escritor, bandido, artista e estudante, respectivamente nessa ordem. Enquanto dona de casa, artista, sem ocupação e empregada doméstica são destinadas às personagens femininas. No entanto, “é como se o trabalho – com todo o seu universo, formado pelos colegas e os chefes, as pressões, o cansaço, as intrigas, os jogos de poder, as fofocas no botequim ao final do dia – não fosse um tema digno para a literatura” (p. 169), explica Dalcastagnè. Nesse contexto, Luiz Ruffato é um contraexemplo, como ainda enfatiza Dalcastagnè, pois apresenta na saga Inferno Provisório “um quadro sensível e diversificado do mundo do trabalho no Brasil das últimas décadas” (p. 31), com sua respectiva pluralidade e subjetividade, a partir de sua vivência, de seu lugar de fala. A partir dos dados coletados, Regina Dalcastagnè aponta observações extremamente interessantes, porém vale ressaltar sua colocação ao se referir à literatura como um espaço de liberdade e sem compromisso com o real, mas ainda sim extremamente excludente por silenciar determinados grupos sociais e, dessa forma, permanecer inacessível para muitos.

Sociedade de trabalhadores

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O polissêmico vocábulo trabalho, quando se refere à atividade profissional, na perspectiva econômica como fonte de subsistência e acúmulo de material, denota uma experiência contingente e ressignificada no tempo. De caráter pejorativo, indigno e inferior, por representar a dimensão das necessidades do ser humano, na Antiguidade, para citar um exemplo, passou, gradativamente, na sociedade capitalista moderna, com a ascensão da burguesia, a ser socialmente remunerado, capaz de garantir uma posição de destaque e respeito e, especialmente, o fator mais importante de socialização, de integração social. Conforme argumenta André Gorz, em Metamorfoses do trabalho(2010), o sentido contemporâneo do termo trabalho foi uma invenção da modernidade, que, com o industrialismo, tornou-se o “cerne de nossa existência, individual e social”, formando, assim, uma “sociedade de trabalhadores”. Trata-se, em linhas gerais, de uma “atividade que se realiza na esfera pública, solicitada, definida e reconhecida útil por outros além de nós e, a este título, remunerada”. E, é através dela que, fundamentalmente, “adquirimos uma existência e uma identidade sociais (isto é, uma “profissão”), inserimo-nos em uma rede de relações e de intercâmbios, onde a outros somos equiparados e sobre os quais vemos conferidos certos direitos, em troca de certos deveres” (GORZ, 2007, p. 21, grifos do autor). Sobre o processo de transformação das relações de trabalho, Max Weber, em A ética protestante e o espírito do capitalismo, com primeira edição brasileira publicada em 1967, também citado por Gorz, observa que a transição do sistema de produção em domicílio, em que ainda não havia uma racionalidade econômica efetiva, para o sistema das fábricas, ocorreu gradativamente a partir de mudanças nos paradigmas religiosos que passaram a valorizar o trabalho com base nos conceitos de vocação e predestinação. Enquanto o primeiro sistema representava um modo de vida “confortável” com poucas horas trabalhadas por dia, ganhos moderados, mas suficientes “para levar uma vida respeitável e, em tempos favoráveis, economizar um pouco” (WEBER, 2001, p. 56), e com boas relações entre concorrentes; o segundo, guiado pelo empreendedor, capaz de reformular, controlar e racionalizar o sistema já existente de maneira fria e brutal, transformando os camponeses em operários, apresentava um novo espírito: “o espírito moderno do capitalismo” (p. 57). Ao “racionalizar a tecelagem, dominar os custos, tornar este custo rigorosamente calculável e previsível graças à quantificação e à normatização de todos os seus elementos”, a

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racionalidade econômica foi levada até suas “últimas consequências” (GORZ, 2007, p. 26). Tornando-se, assim, “irracional”, como reitera Weber, por se tratar da conduta em que “o homem existe para o seu negócio, quando deveria ser o contrário” (WEBER, 2001, p. 59). Ou ainda, complementando com a perspectiva de Karl Marx, no “Manifesto do Partido Comunista”, de 1848, com contribuições de Engels, quando destaca que a sociedade ficou reduzida a “simples relações monetárias”, que não levavam em consideração o fator humano em seu funcionamento, pois “tudo que era sólido e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profanado” (MARX, 1848, p. 3). Dessa forma, surge uma nova classe de “operários-proletários totalmente despossuídos, reduzidos a nada mais que força de trabalho indefinidamente intercambiável, sem nenhum interesse particular a defender” e sem “qualquer atributo humano” (GORZ, 2007, p. 28), pois não havia nenhuma consideração à individualidade e às motivações de cada um deles. Todavia, o processo de mecanização do trabalho, como também do trabalhador, passou por resistências desde o início de sua implantação, principalmente no que se refere à jornada integral de trabalho, necessária para calcular com precisão o custo e o rendimento da produção. Weber explica que o operário não questionava quanto poderia receber por dia se trabalhasse mais, mas sim “perguntava-se: quanto devo trabalhar para ganhar o salário de 2,5 marcos que eu ganhava antes e que bastava para as minhas necessidades tradicionais?” (WEBER, 2001, p. 51). Ou seja, a oportunidade de trabalhar menos foi bem mais atrativa do que trabalhar mais. Por esse motivo é que como estratégia para imposição da nova ordem havia “coerção ao rendimento, pela imposição de ritmos e cadência”, e salários “mais e mais rebaixados de tal modo que o operário precisava penar uma boa dezena de horas diárias, para garantir sua subsistência” (GORZ, 2007, p. 29). Além disso, recrutavam uma mão-de-obra inexperiente, formada, principalmente, por jovens da zona rural e imigrantes, porque eram “mais permeáveis que a classe operária tradicional, em razão de seu desenraizamento social e cultural, às seduções do consumismo” (p. 51). Assim, como destaca Gorz, foi preciso regulamentar a conduta, tornando, todas as esferas da sociedade e da vida dos indivíduos, racionais, previsíveis e calculáveis, para garantir o funcionamento efetivo das organizações. No entanto, essa transformação não deixou de caracterizar um progresso, principalmente por seu caráter social.

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Houve, portanto, “uma revolução, uma subversão do modo de vida, dos valores, das relações sociais e das relações com a natureza” (p. 30) que, principalmente, desconectou o tempo de trabalho e o tempo de viver. O salário tornou-se fundamental para suprir satisfações que somente o dinheiro poderia comprar e a finalidade essencial do trabalho alienado (de acordo com a concepção de Marx) passou a ser “ganhar o suficiente para comprar as mercadorias produzidas e definidas pela máquina social em seu conjunto” (p. 30). Há, dessa forma, na sociedade capitalista, alienação e monetarização do trabalho, do consumo e das necessidades do indivíduo. Gorz denomina de esfera da heteronomia as atividades preestabelecidas dos trabalhadores heterodeterminados, bem como sua conduta e suas relações, transformando-os em “engrenagens de uma grande máquina” (p. 40) e garantindo o mínino de integração social. A partir desse raciocínio, “os indivíduos são levados a funcionar de maneira complementar, à maneira dos órgãos de uma máquina, em vista de fins que, com frequência, desconhecem e são diversos daqueles propostos a sua busca pessoal” (p. 42, grifos do autor.). Portanto, os chamados instrumentos reguladores (incitativos e prescritivos) são criados para motivar os trabalhadores a almejar objetivos que não são reconhecidos por eles e a executar “um trabalho de que é impossível gostar” (p. 40, grifos do autor), manipulando-os de forma invasiva, mas “confortável”. Há, dessa forma, um contraditório regime de coerção seguido de incitação ao consumo, em que há “uma manipulação suavemente insinuante que instrumentaliza os valores não econômicos às finalidades econômicas” (p. 57). Na prática, não é uma simples tarefa, já que é necessário impor condições de trabalho que necessitem de bens compensatórios e educar os trabalhadores a “preferirem essas compensações no lugar das condições de trabalho relativamente confortáveis” (p. 51, grifos do autor), geralmente reforçadas pela publicidade comercial. O que ocorre apenas se houver a integração funcional efetiva dos trabalhadores. Os reguladores incitativos garantem estímulos e recompensas materiais e individuais “externas ao trabalho, às coerções, frustrações e sofrimentos inerentes ao próprio trabalho funcional” (p. 50, grifos do autor), tais como dinheiro, segurança e prestígio. Eles se caracterizam como contendo “um elemento de luxo, de supérfluo, de sonho que, ao designar o

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comprador como um “feliz privilegiado”, protege-o contra as pressões do universo racionalizado e a obrigação de se conduzir de maneira funcional” (p. 52). É um processo instável e um poderoso fator de desintegração social, como salienta Gorz, pois o sistema é obrigado a sempre oferecer compensações monetárias maiores para que o trabalhador nunca se sinta plenamente satisfeito: “O indivíduo socializado pelo consumo não é mais um indivíduo socialmente integrado, mas um indivíduo levado a desejar “ser ele mesmo”” (p. 53). Ou ainda como bem denomina Gorz, trata-se de uma socialização asocial. Sendo assim, até mesmo aqueles que não pertencem às camadas assalariadas desejarão pertencer para suprir as necessidades geradas pelo consumismo. Em contrapartida, os reguladores prescritivos, através dos quais o Estado “responde à dimensão coletiva das buscas individuais, restringindo-as por contra-finalidades que visam a impedir a ruína de todos” (p. 54), levam os indivíduos, sob penalizações, a adotarem as condutas regulamentadas e formalizadas por procedimentos da organização. Há, dessa forma, um “esfacelamento da vida dos próprios indivíduos”, pois “vida profissional e vida privada são dominadas por normas e valores radicalmente diversos, e até contraditórios” (p. 43). Conforto e prazer tornam-se, nesse contexto, sinônimo de êxito profissional. Bem como as virtudes da vida privada de “bom pai, bom marido, apreciado pelos vizinhos” (p. 44), são baseadas no status e na eficácia profissional. Em síntese, a ordem econômica moderna é que determina “o estilo de vida de todos os indivíduos” (p. 44) e que desagrega “as redes de solidariedade e ajuda mútua, a coesão social e familiar, o sentimento de pertencimento” (p. 53), inclusive daqueles que dela não participam ativamente. O que ocasiona uma desmotivação por parte do trabalhador funcionalizado, que, retraído pela normatização do mundo social, ou mais especificamente pela “megamáquina industrialburocrática” (p. 49), começa a se integrar e a se organizar em uma sociedade informal, à margem, “sobre a base do trabalho clandestino, do mercado negro, da troca direta, das redes e células de ajuda mútua” (p. 48). Ou até mesmo recusando efetivamente o trabalho. Em suma, a integração funcional ocasionou uma desintegração social, em todos os aspectos, questão que se revela contrária ao comunismo, à utopia marxiana. Assim, há uma intensificação da coerção com os reguladores prescritivos, bem como com as “leis contra a ‘vagabundagem’ e a mendicidade, a obrigação de aceitar o trabalho

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proposto sob pena de deportação, trabalhos forçados ou morte por inanição” (p. 49) para garantir o processo de educação e socialização do trabalhador, que deve reproduzir atitudes instrumentais, como, por exemplo, pensar que o mais importante é o salário ao fim do mês e, na postura de consumidor, cobiçar as “mercadorias e os serviços mercantis como se estes fossem a própria finalidade de seus esforços e significassem os símbolos de seu sucesso” (p. 50).

A trajetória de Marlindo O mundo inimigo é constituído por doze narrativas-capítulos, que se associam, fundamentalmente, por dois pontos: o estrato social das personagens, que pertencem à classe trabalhadora, e o espaço central, que é o Beco do Zé Pinto, situado no bairro Vila Teresa em Cataguases. A presença de um narrador em terceira pessoa é recorrente. No entanto, não é possível afirmar que seja apenas um no conjunto das narrativas do romance pois, além de não explicitar a relação entre os doze capítulos, o narrador (ou os narradores) se comporta(m) de diferentes maneiras para acompanhar as trajetórias das personagens, dando-lhes voz, e, inclusive, alterando as estruturas frasais e da narrativa. Ou seja, a narração não ocorre fixa em apenas uma personagem e, portanto, não há nenhuma protagonista, pois cada narrativa-capítulo focaliza um núcleo de personagens. Também não há uma organização temporal linear no romance, nem uma delimitação de início e fim. Trata-se, portanto, de uma opção ética e estética de Luiz Ruffato, que coloca em destaque identidades não narradas com frequência pelos escritores brasileiros contemporâneos, como aponta pesquisa coordenada por Regina Dalcastagnè. A terceira narrativa-capítulo de O mundo inimigo, intitulada “O barco”, narra, em terceira pessoa, a trajetória de Marlindo. Primeiramente, o narrador focaliza a personagem mastigando “a aba do chapéu de palha que giragirava” em suas “mãos turbeculosas”, em pé, mantendo a distância hierárquica de “três degraus abaixo” para conversar com Dona Geralda, mãe de Osvaldo, de quem era pajem. O motivo da conversa era uma “caridade”, um pedido para que Luzimar, de dez anos, acompanhasse o pai no trabalho, sob a justificativa de que a mãe, Zulmira, “lavava roupa pra-fora o dia inteiro”, a irmã, Hélia, trabalhava na fábrica para complementar a renda da família e Marlindo “Não queria que [o filho] ficasse vadiando por aí...

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É muita tentação... Pode fazer alguma bobiça...” e sob a promessa de que ele não atrapalharia (RUFFATO, 2005, p. 41). Mesmo contrariada, Dona Geralda aceita a presença do menino desde que ele também ajudasse nas tarefas da casa: “Põe uma enxada na mão dele, manda capinar o quintal até a beira do rio... Dou uns trocados para ele, se ficar bom” (p. 41). A narrativa prossegue, em linhas gerais, mesclando esse período em que Luzimar ajudava seu pai, cuja predominância é do discurso direto, com perspectivas e reflexões das personagens sobre questões diversas do cotidiano, seja do núcleo familiar de Marlindo, que morava no Beco do Zé Pinto, ou do núcleo de Dona Geralda, que representa o único núcleo narrativo de classe média do romance. Enquanto os demais personagens trabalham para alcançar o básico da subsistência, na família de Dona Geralda há possibilidades mais alargadas de conforto e segurança. Dessa forma, em um movimento em que o narrador onisciente se aproxima e emite o ponto de vista de suas personagens, mas que também opina em alguns momentos, o discurso de Marlindo é que obtém destaque no que tange ao universo do trabalho. Inclusive, essas oscilações narrativas são expressas também por elementos gráficos: espaços em branco separam os momentos narrativos dos mais reflexivos. Vale destacar que o título da narrativa-capítulo, “O barco”, remete ao episódio em que Luzimar, filho de Marlindo, rouba um barco para Osvaldo ambicionando um jogo de botão para exibir aos amigos do Beco. Aos quarenta e três anos, sendo que “o povo daria bastantes mais” (p. 43),o pajem Marlindo é caracterizado como envelhecido pelo excesso de trabalho, cujas marcas estão expressas em seu próprio corpo, conforme ilustra o fragmento a seguir que merece transcrição pela sutileza e precisão dos elementos que compõe a descrição da personagem: Franzinho, magro, transparente. Uma larga estrada devastara seus cabelos, no antigamente, e uma berruga enorme encapelava seu cocoruto. Rosto escavado pela bexiga, olhos mel escondidos em covas enegrecidas. Desconhecia pai e mãe, indigentes enterrados em rasas sepulturas no cemitério de Guiricema. Dera duro para engrenar como gente. O pão que o diabo amassou, comera com gosto (p. 43).

O campo semântico (“devastara”, “encavado”, “escondidos”, “covas” etc.) que permeia essa descrição, seguido de umaexpressão popular complementada (“comera com gosto”), começa a oferecer indícios, pela perspectiva do narrador, da trajetória de Marlindo, narrada de

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forma não linear nas páginas subsequentes. Em seguida, o ponto de vista da narrativa começa a se aproximar de Marlindo ao apresentar suas experiências de trabalho. Já casado com Zulmira, Marlindo perpassou por inúmeras cidades e categorias de emprego: desde uma roça de arroz à função de pajem: Num ano só, seis vezes mudaram. De cidade. Uma roça de arroz desandada, em Guiricema. Mão na frente, mão atrás, em Cataguases. Rachando lenha em Dona Eusébia. Chutando lata em Cataguases. Vendendo caramujo em Leopoldina. Cataguases, novamente. E Zulmira deu um basta. Um chega. Morreriam de fome em Cataguases. Pronto! Assumiu a rédea. Marlindo demandou serviço na Industrial. Carteira assinada. Varria o chão, avolumando o algodão pelos cantos. Deu para trás. Não nascera para empregado. Comprou um carrinho-de-pipoca. Arrumou licença na Prefeitura para trabalhar na Praça Rui Barbosa, em frente ao Cine Edgard. Sobrevivia. Mas, meu deus, e a paradeira? Fez-se sócio de uma venda na Vila Minalda. Nas prateleiras, macarrão, apenas. Do fino, do grosso, goela-de-pato, cabelo-de-anjo, estrelinha. Só mosquitos ultrapassavam a soleira. De volta à labuta. Agora, graças a Deus, achara-se. Pajem (p. 44).

A estrutura sintática fragmentada da passagem em destaque, cujos períodos curtos subvertem regras gramaticais normativas, reitera instabilidade profissional de Marlindo entre Cataguases e cidades adjacentes. Assim como a fluidez do mar registrada na partícula inicial de seu nome. As primeiras atividades da personagem estão relacionadas à economia rural (“roça de arroz”, “rachando lenha”) e, portanto, são caracterizadas por uma rotina mais flexível, mas não menos intensa. Em seguida, com a decisão de se estabelecer em Cataguases, é representado o desenvolvimento da cidade, situada na zona da mata mineira, que, após o período de urbanização, industrialização e modernização, no início do século XX, tornou-se um póloindustrial e proporcionou a formação de uma classe operária na região, pois Marlindo, de carteira assinada, começa a trabalhar na fábrica. Percebendo uma inadaptação ao ser subordinado pelo sistema fabril, buscou atividades autônomas: pipoqueiro e sócio de uma venda, que também não deram certo. Nesse momento, é que entra o papel fundamental de Zulmira, lavadeira de roupas analfabeta. O fato de que Marlindo se fixou como pajem de Osvaldo, que, aos dezessete anos, doente dos nervos, percebeu a inutilidade de sua vida, se deve à postura de sua esposa, que deu basta naquela situação: “Agora apagara o facho. Assentara praça. Graças à Zulmira, verdade seja dita. Tinha que reconhecer. Por ele, estaria vagando ainda, sem pouso, nem repouso. Ela bateu o pé.

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Manhou. Não ia mais ficar rolando morro abaixo” (p. 44). É interessante destacar o reconhecimento de Marlindo para com sua esposa, já que ele não era capaz de sozinho determinar seu próprio destino. Como pajem, sua função era basicamente medicar o menino nas horas certas com injeções calmantes. E, a partir de então, tornou-se um “outro homem” (p. 45), de acordo com a perspectiva da ética protestante: se converteu para a Igreja Quadrangular, talvez para aliviar o peso da vida, e, consequentemente largou cigarro, bebida e pensamentos ruins, não agrediu mais os filhos. Mesmo não se adaptando ao sistema de incitação e coerção da indústria capitalista, Marlindo passou a ter consciência de que era importante almejar uma colocação para ascender socialmente e garantir uma identidade, mas ainda reproduzindo o pensamento enraizado na sociedade sobre a naturalização da violência contra a mulher, pois para a filha desejava apenas um bom marido que não a violentasse: Hélia, menina-moça, habitava o mundo da lua. À espera de um príncipe encantado. Que nunca apareceria. Porque não existem. Mas, vá meter isso na cabeça-dura dela! Tentara arrastá-la, Deus era testemunha. Conseguia era o deboche. A esculhambação. Namoradeira, fazia vista grossa aos deslizes. Orava por ela. Para que arrumasse logo um marido. Um homem bom. Que não batesse nela (p. 45).

Enquanto para Luzimar: Já o menino, o preocupava. Sonhava, com o aval de Deus, um mundo melhor para ele. Um curso de toneiro-mecânico no Senai. Ou de ajustador mesmo, já estava bom. Morando em São Paulo. Endinheirado. Sem precisar de passar necessidade. Dando de presente para a mãe um geladeira. Ou uma enceradeira. Orgulho da família. Bem-falado (p. 45).

Nesse fragmento é possível refletir sobre a transformação de pensamento e postura de Marlindo que, com o desenvolvimento da cidade de Cataguases, de economia agrária para industrial, bem como sua trajetória de incertezas, frustrações e privações, fez com que desejasse para o filho um futuro diferente do seu. Além de um curso técnico no Senai, almejava a mudança para a capital paulista. O que revela a consciência de que, mesmo com o crescimento da pequena Cataguases, as oportunidades eram limitadas. Enquanto São Paulo recrutava, principalmente de

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zonas rurais, a partir do período do Estado Novo, a mão-de-obra então necessária para as ambições políticas. O salário como objetivo primordial do trabalho também é destacado pela perspectiva de Marlindo que desejava um filho assalariado e com boas condições financeiras, mesmo que distante da família, capaz de presenteá-los com bens de consumo e garantir status na vizinhança. Porém sabia do empenho e investimento necessários para tais conquistas e reflete: “Mas, para isso, precisava de firmeza. Determinação. Meu Deus, quantos sacos de serragem? quantos carrinhos-de-mão cheios de toquinhos teria de empurrar ainda para a mulher ferver roupa para fora? Quantos? (p. 45). Marlindo não reaparece em outras narrativas-capítulos de O mundo inimigo. No entanto, seus filhos, Hélia e Luzimar, protagonizam respectivamente “A solução” e “Amigos”. Enquanto Hélia, ainda adolescente, apresenta sua rotina estressante na fábrica, com assédios de seu contra-mestre, e a ambição de mudar de vida. Luzimar, anos depois, revela que também se tornou um operário frustrado em Cataguases, que sua mãe continuava como lavadeira e que Hélia se casou e teve três filhos, contrariando seus sonhos adolescentes. Dessa forma, a partir da análise da trajetória da personagem selecionada, é possível refletir sobre principalmente duas questões. Primeiro, as estratégias narrativas utilizadas por Luiz Ruffato para dar voz e vez às personagens que compartilham de seu estrato social. Há no conjunto das narrativas um narrador onisciente (ou vários narradores) em terceira pessoa que se comporta(m) de diferentes maneiras nas doze narrativas-capítulos para se aproximar da perspectiva de suas diversas personagens, o que oferece mais sensibilidade à narrativa. Por isso, é que Ruffato representa um contraexemplo da literatura brasileira contemporânea, já que, a partir de seu lugar de fala, representa a classe trabalhadora com seus anseios, sonhos e dificuldades. Segundo, a representação do trabalho em O mundo inimigo que, sob a perspectiva da racionalidade econômica e a partir do desenvolvimento da cidade, passou a ser fundamental para o cotidiano de suas personagens. Porém, tais mudanças, como pode ser observado na trajetória de Marlindo e de seu núcleo narrativo, não ofereceram uma mudança significativa na qualidade de vida de sua família ao passar das gerações. O que permite uma discussão sobre os efeitos do processo de desenvolvimento ocorrido no país, que alimentava o desejo da população

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em ascender socialmente e adquirir bens de consumo, a partir do processo de monetarização e normatização da sociedade capitalista. Talvez por isso é Ruffato utiliza um romance fragmentado, tal como a vida precária e esfacelada de suas personagens.

Referências Bibliográficas

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A MECÂNICA POÉTICA DE SOPHIA DE MELLO BREYNER AOS OLHOS DO POETA JOÃO CABRAL DE MELO NETO Cleonice Alves de Castro Antunes Universidade Federal de Viçosa. E-mail: cleonice.antunes@ufv.br

Joelma Santana Siqueira Universidade Federal de Viçosa. E-mail: jandraus@ufv.br.

Resumo: João Cabral de Melo Neto produz uma poesia caracterizada pela objetividade que, unida a sua pouca vocação para o lirismo tradicional, leva-o para o caminho da crítica, se destacando pelo comentário a respeito de outros artistas. Inclui-se aí o poema “Elogio da usina e de Sofia de Melo Breiner Andresen”, que trata da poesia dessa escritora portuense. Na leitura dos textos de crítica sobre A educação pela pedra (1966), no qual poema se inclui, apreende-se sua natureza metalinguística e pedagógica. Como toda crítica carrega em si aspectos do que critica, no poema tornam-se evidentes certos paradigmas da poética cabralina, que perpassam toda sua obra. Seguindo uma metodologia de análise crítica e interpretativa, observou-se tanto os aspectos semânticos quanto formais do poema, com a consulta da fortuna crítica do escritor. Na análise fica evidente a maneira como o léxico selecionado possibilita a associação das imagens e ideias construídas, além da própria forma do texto se apresentar em relação com o seu conteúdo. A produção do engenho, aproximada da escrita de certos poetas, é direta, porém lenta e passiva, e assim são também os versos que as descrevem. Na usina, há uma mecânica que faz depuração do caldo da cana enquanto este é processado, incluindo mais etapas no produção, que contudo é mais veloz e ativa, como evocam o ritmo e a eufonia do poema. No primeiro caso, seu fruto é o açúcar mascavo, informe, como os poemas de autores que apenas encaixam suas inspirações em linguagem poética. No segundo, o açúcar é cristalino, com formas bem definidas. Ao fim, apreende-se que Cabral elogia em Sophia um processo de escrita calculado e preciso, comum a ambos, que evita excessos na criação poética para que o poema reconstrua a realidade enquanto objeto autônomo. Palavras-chave: Literatura brasileira. João Cabral de Melo Neto. Metapoesia. Poesia crítica.


Introdução A poeta portuense Sophia de Mello Breyner Andresen (1919 – 2004) conta na sua “Arte Poética V”, publicada pela primeira vez em Ilhas, de 1989, que aprendeu a poesia pelo ouvido, acreditando que ela existia imanente em todas as coisas e que bastava manter-se atenta e em silêncio para que o poema lhe surgisse. O pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920 – 1999), por sua vez, relata que tinha o hábito de ler poesia de cordel aos funcionários do engenho de sua família durante a infância, mas que nunca fora atraído pela música ou pela musicalidade dos poemas. Décadas depois, ambos vêm a se conhecer e mantêm uma relação de admiração mútua por suas obras, apesar das diferenças nessa formação inicial e no modo como perspectivam a poesia. Durante a sua carreira de diplomata, João Cabral esteve por anos na Espanha, para onde se mudou pela primeira vez em 1947. Nas décadas seguintes, visitou Portugal diversas vezes, conforme relata o estudioso da literatura brasileira Arnaldo Saraiva. No período de 1982 a 1984, Cabral atuou como Cônsul-geral no Porto, cargo que reassumiu de 1986 a 1987. Da cidade de Sophia, João Cabral comentou em uma entrevista à rádio Antena 1, no momento de sua volta definitiva ao Brasil, que levava “muito boas recordações e confesso que me senti aqui um pouco como se estivesse no Recife” (MELO NETO, 1987, apud SARAIVA, 2014). Essa longa estadia na península ibérica possibilitou que os dois poetas se conhecessem, e é do contato que tem com João Cabral na Espanha que Sophia de Mello Breyner obtém o tema para escrever Cristo Cigano, seu sétimo livro de poesia, de 1961. As diferentes dedicatórias da obra são todas dirigidas ao autor pernambucano. Na sua terceira edição, publicada em 2003, lêse que João Cabral: “Nunca erra a direcção/ De sua exacta insistência/ Não diz senão o que quer/ Não se enebria em fluência”. Mas também Sophia é tema da poesia de Cabral quando, em A educação pela pedra (1966), é publicado o poema “Elogio da usina e de Sofia de Melo Breiner Andresen” - com o nome da poeta grafado desta maneira -, que possui uma crítica do seu fazer poético. O objetivo desse trabalho é a construção de uma análise do poema “Elogio da usina e de Sofia de Melo Breiner Andresen”. Nesse estudo visou-se depreender, por consequência, além das características poéticas de Sophia elogiadas por Cabral em seu poema, uma apreciação mais apurada dos fazeres poéticos de ambos escritores, uma vez que a seleção para a crítica de

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determinados aspectos da arte de Sophia evidencia não somente o estilo dela, mas também as inclinações poéticas de João Cabral. A pesquisa segue uma metodologia de análise crítica e interpretativa do poema em questão, para tanto, fez-se necessário o estudo prévio de um referencial teórico sobre o livro em que ele se inclui, A educação pela pedra (1966). Assim, a leitura do poema é contextualizada através da crítica do livro, seguindo principalmente as obras de Nunes (1971), Barbosa (1975), Secchin (1985). Nessa análise, são observados tanto elementos formais quanto temáticos do poema. Com o aparato teórico estudado até aqui, os resultados depreendidos são interpretados, a fim de se caracterizar com precisão o que João Cabral de Melo Neto elogia na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen. “Elogio da usina e de Sofia de Melo Breiner Andresen” Décimo livro de João Cabral de Melo Neto, A educação pela pedra foi publicado pela primeira vez em 1966, e contém textos de 1962 a 1965. Antonio Carlos Secchin (1985), em João Cabral: a poesia do menos, já sobre o título da obra, comenta que: é revelador de três tendências do poeta, concentradas num só sintagma: a) o veio pedagógico de sua poesia - educação - como proposta de modelos éticos/estéticos de apropriação do real; b) a ênfase no nome concreto - pedra; c) o desejo de que as 'lições' do real emanem de processos localizáveis nas próprias coisas, e não dos invertimentos apriorísticos da subjetividade: educação pela pedra. (SECCHIN, 1985, p.223, grifo do autor)

O caráter de uma didática do objeto não é observado apenas por Secchin. João Alexandre Barbosa (1975) discute que o título, que serve ao livro e ao poema homônimo, pode se referir tanto à aprendizagem do poeta a partir do objeto pedra, quanto ao ensinamento que o poeta transmite ao leitor através da pedra. É a materialidade da pedra que a transforma em um instrumento que possibilita a troca de conhecimento. Qualquer que seja a leitura que se faça do título “o objeto (pedra) é que instaura a aprendizagem e, portanto, poeta e leitor estão os dois lançados no mesmo processo de 'leitura' do objeto” (BARBOSA, 1975, p.226). Vale ressaltar que o léxico “pedra” não é novo na poesia de Cabral, basta lembrar seu primeiro livro, Pedra do sono. Os temas da obra já foram notoriamente trabalhados pelo autor e, também formalmente, o livro potencializa certos aspectos chave da poesia cabralina. Desse modo, temos a recorrência

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da prosificação e do texto lógico. Pode-se tomar como exemplo “Catar feijão” no qual, de acordo com Secchin: “O duplo compasso semântico [...], enlaçando o catar e criar, enfatiza uma convergência para o menos: a eliminação da matéria supérflua ('e depois, joga-se fora o que boair')” (1985, p.234, grifo do autor). O excesso deve ser descartado, mas a palavra que é pedra deve ser selecionada e mantida. É palavra dura, que incomoda, que provocará no leitor um efeito que vai além de uma leitura irrefletida: “a pedra dá à frase seu grão mais vivo:/ obstrui a leitura fluviante, flutual,/ açula a atenção, isca-a como o risco”. Há uma valorização do trabalho cuidadoso da escrita, características que o poeta, enquanto crítico, constantemente ressalta. Benedito Nunes (1971), em João Cabral de Melo Neto: poetas modernos do Brasil, também observa esses aspectos. Sobre o modo como a prosificação poética é criada, e as consequências que ela traz ao processo de leitura, comenta que, em A educação pela pedra, “Os versos marcam diferentes compassos que se deslocam, formando de um para outro figura rítmica variável, que não coincide com nenhum dêles, pois que a todos se alonga numa elocução contínua, horizontal, cujo andamento é o da prosa” (NUNES, 1971, p.132-133). Antonio Carlos Secchin cita essa como uma das maiores inovações dentro do percurso poético cabralino. É a nova “prática sistemática do verso longo, não rigidamente isossilábico, mas em torno do hendecassílabo” (SECCHIN, 1985, p.224, grifo do autor), fugindo do formato popular da quadra das obras anteriores de Cabral, Serial e Quaderna. Quando do lançamento do livro, em uma entrevista a José Carlos de Vasconcelos para o suplemento mensal “Vida Literária e Artística”, do Diário de Lisboa , João Cabral revela o porquê da escolha da métrica: Eu até agora só tinha escrito versos com o máximo de 8 sílabas. E pus a mim mesmo o problema de saber se a secura dos meus poemas não seria uma consequência disso. E resolvi então que os poemas de A educação pela pedra teriam todos pelos menos 9 sílabas. O meu esforço foi escrever um verso mais largo, mas sem cair em retórica; sem aguar o verso. (MELO NETO, 1966, apud ATHAYDE, 1998, p.92, grifo do autor)

Na mesma entrevista Cabral destaca outro ponto de inovação, a permutação dos versos, tanto intergrupais quanto intragrupais. Dos 48 poemas que compõe o livro “metade deles são sobre Pernambuco, a outra metade não; metade dos poemas tem 24 versos, a outra metade 16; metade dos poemas são simétricos, os outros são assimétricos; metade dos poemas associamse, aglutinam-se, outra metade repelem-se” (MELO NETO, 1966, apud ATHAYDE, 1998,

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p.114). Esclarece-se assim o porquê de A educação pela pedra quase “se chamar O duplo ou a metade” (ibdem). Tamanha rigidez pode parecer prejudicial à escrita, mas o método de composição que o autor escolhe para si é propositalmente esse, pois crê que os limites que se impõe, quando reconhecidos pelo leitor, conferem à obra maior chance de comunicabilidade, grande ponto de discussão da poesia moderna (HAMBURGER, 2006). É seguindo tal lógica que João Cabral de afirma que, inicialmente, na composição de um texto, ele necessita de “barreiras vazias”: A princípio, eu preciso de barreiras vazias. A educação pela pedra é um livro baseado na dualidade. Uma vez, os concretistas publicaram um manifesto de Max Bill, que falava nas 7 leis da estrutura. Acho que são apenas 4: polarização, que prefiro chamar de dualidade, progressão, enumeração e desenvolvimento lógico. (MELO NETO, 1985, apud ATHAYDE, 1998, p.115)

“Elogio da usina e a Sofia de Melo Breiner Andresen” se vale da dualidade, como indica o próprio título. Enquadrando-o nas categorias anteriores, o poema tem uma temática não exclusivamente pernambucana e 16 versos assimétricos cujas metades se repelem. Assim, a primeira estrofe dedica-se à descrição da mecânica do engenho, para que a mecânica da usina (e de Sophia), oposta a esta, só venha a ser comentada na segunda parte do poema. O engenho banguê (o rôlo compressor, mais o monjolo, a moela de galinha, e muitas moelas e moendas de poetas) vai unicamente numa direção: na ida. Êle faz quando na ida, ou ao desfazer em bagaço e caldo; êle faz o informe; faz-desfaz na direção de moer a cana, que aí deixa, e que de mel nos moldes madura só, faz-se: no cristal que sabe, o do mascavo, cego (de luz e corte). 2. Sofia vai de ida e de volta (e a usina); ela desfaz-faz e faz-refaz mais acima, e usando apenas (sem turbinas, vácuos) algarves de sol e mar por serpentinas. Sofia faz-refaz, e subindo ao cristal, em cristais (os dela, de luz marinha).

Para compreensão do poema, é necessário reconhecer o valor semântico das suas

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palavras-chave opostas: engenho e usina. A primeira, é polissêmica. Na história da literatura ocidental, o engenho das ideias, especialmente valorizado no humanismo e, por consequência, na poesia neoclássica, é a faculdade criadora do escritor. Ele não seria adquirido através do estudo, tampouco da experiência, como acontecia com o conceito de arte. Percursor da palavra “gênio”, correspondia ao dom inato para a criação que tinham os poetas (MOISÉS, 1997). Para Cabral, o talento para transformar determinada realidade, seja ela originária da primeira ou da terceira pessoa, em linguagem poética, não exigiria tanto esforço por parte de tais autores. Na sua perspectiva, há nesse caso um processo de composição em que se desconstrói o real, refazendo-o em linguagem poética, sem qualquer espécie de análise ou retomada do produto uma vez reproduzido. Esses poetas contentam-se em enquadrar seus temas nos paradigmas de uma poética que não se preocupa em torná-los criações próprias e autônomas. O engenho de açúcar, descrito no poema, teria um processo análogo ao desses autores. Da passagem da cana entre os rolos da moagem extrai-se seu caldo que é reduzido em fogo brando nos tachos. Esse processo é passivo, assim como a fase seguinte, em que o melado é deixado para esfriar em moldes, cristalizando-se e formando o açúcar mascavo. Desfaz-se a cana em líquido, que depois se solidifica na sua forma bruta sem que o processo de desconstrução se repita de qualquer modo. O resultado, o açúcar mascavo, tem aspecto terroso, e seus cristais são pouco definidos, como os poemas líricos que, para Cabral, não se constituem enquanto objetos autônomos. Ainda nessa estrofe observa-se a presença de outras imagens com sentido similar, e o mesmo valor depreciativo. O “rolo compressor”, que a tudo destrói indistintamente; o “monjolo”, pilão em grande escala que, pela força da água, faz movimentos repetitivos, destruindo os grãos em uma farinha rústica; a “moela da galinha” órgão do sistema digestivo desses animais, que contém pequenas pedras e areia para triturar os alimentos; e própria “moenda”, mecanismo que, extraindo o caldo a partir da compressão da cana, participa da fase inicial da produção do “engenho banguê”. Por outro lado a usina, cujo processo inicial da moenda é similar ao do engenho, segue um caminho diverso. O caldo da cana é quimicamente tratado e o seu próprio bagaço serve como combustível para o fogo que gerará o vapor para a sua pasteurização. Só depois acontece

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a redução para formar o açúcar, que já se apresenta em cristais brancos, purificado de toda a matéria indesejada. O resultado, límpido, assemelha-se àquela poesia fruto de um cuidadoso processo de engenharia, e não de engenho, valorizado por Cabral. Na translação semântica da fabricação do açúcar pela usina, para a fabricação do poema por Sophia, é evidente a presença de um vocabulário de instrumentos ligados à natureza marítima, comum na escritora. Assim, no seu trabalho de construção e reconstrução, Cabral aponta que Sophia de Mello Breyner se utiliza de ferramentas como sol e a água do mar, menos tecnológicas que as da usina, mas que auto sustentam um poema cuja temática diz respeito a elas próprias, como o bagaço da cana é combustível para sua transformação em açúcar. Outra palavra significativa é “cristal”, mineral de formas definidas que, ao contrário do açúcar mascavo, reflete a luz. Como toda a poesia tem como característica inerente a união entre os significantes e significados, é importante também observar a forma de “Elogio da usina...”. Um estudo da sua métrica mostra que, dos dez primeiros versos da primeira estrofe, sete são hendecassílabos, dois são decassílabos, e um é eneassílabo. Já na segunda estrofe, quatro de seis versos são decassílabos, um é hendecassílabo e outro é dodecassílabo. Efetuando a sua escansão, o resultado é o seguinte: O en/ge/nho/ ban/guê/ (o rô/lo/ com/pre/ssor/, mai/s o/ mon/jo/lo,/ a/ moe/la/ de/ ga/li/nha, e/ mui/tas/ moe/la/s e/ moen/das/ de/ poe/tas) vai u/ni/ca/men/te/ nu/ma/ di/re/ção/: na i/da. Ê/le/ faz/ quan/do/ na i/da/, ou ao/ des/fa/zer/ em/ ba/ga/ço e/ cal/do/; ê/le/ fa/z o in/for/me; faz/-des/faz/ na/ di/re/ção/ de/ moe/r a/ ca/na, que aí/ dei/xa/, e/ que/ de/ mel/ nos/ mol/des ma/du/ra/ só/, faz/-se/: no/ cris/tal/ que/ sa/be, o/ do/ mas/ca/vo/, ce/go/ (de/ lu/z e/ cor/te). 2. So/fia/ vai/ de i/da e/ de/ vol/ta/ (e a u/si/na); e/la/ des/faz/-fa/z e/ faz/-re/faz/ mai/s a/ci/ma, e u/san/do a/pe/nas/ (sem/ tur/bi/nas/, vá/cuos) al/gar/ves/ de/ so/l e/ mar/ por/ ser/pen/ti/nas. So/fia/ faz/-re/faz/, su/bin/do ao/ cris/tal/, em/ cris/tais/ (os/ de/la/, de/ luz/ ma/ri/nha).

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Apesar da inconstância da métrica do poema, ele não parece irregular no tamanho de seus versos. Na obra de João Cabral, a conquista de uma ilusória equidade métrica em versos de tamanhos diferentes é efetuada através do ritmo. O impulso rítmico, de acordo com Tomachevski (1927): reduz-se à observação das variantes características de um verso dentro dos limites das obras unidas pela identidade da forma rítmica [...]; ao estabelecimento do grau de sua frequência; à observação dos desvios do tipo; à observação dos sistema segundo o qual se organizam os diferentes aspectos fônicos do fenômeno estudado (os pretensos traços secundários do verso); à definição das funções construtivas desses desvios [...] e à interpretação das observações. (TOMACHEVSKI, 1927, p.152)

Procurando fazer essa diferenciação rítmica, consegue-se perceber que, na primeira parte do poema, a tonicidade é mais espaçada, com tendência a versos de quatro ou três sílabas tônicas. A identidade rítmica da segunda parte do poema é bastante diferente. Os versos têm tonicidades mais concentradas, tendendo a quatro e cinco sílabas tônicas. Esse contraste tornase ainda mais evidente quando se recorda que, em geral, a métrica da segunda estrofe é mais curta do que a da primeira, tornando a sua sonoridade muito mais marcada. O en/ge/nho/ ban/guê/ (o rô/lo/ com/pre/ssor/, mai/s o/ mon/jo/lo,/ a/ moe/la/ de/ ga/li/nha, e/ mui/tas/ moe/la/s e/ moen/das/ de/ poe/tas) vai u/ni/ca/men/te/ nu/ma/ di/re/ção/: na i/da. Ê/le/ faz/ quan/do/ na i/da/, ou ao/ des/fa/zer/ em/ ba/ga/ço e/ cal/do/; ê/le/ fa/z o in/for/me; faz/-des/faz/ na/ di/re/ção/ de/ moe/r a/ ca/na, que aí/ dei/xa/, e/ que/ de/ mel/ nos/ mol/des ma/du/ra/ só/, faz/-se/: no/ cris/tal/ que/ sa/be, o/ do/ mas/ca/vo/, ce/go/ (de/ lu/z e/ cor/te). 2. So/fia/ vai/ de i/da e/ de/ vol/ta/ (e a u/si/na); e/la/ des/faz/-fa/z e/ faz/-re/faz/ mai/s a/ci/ma, e u/san/do a/pe/nas/ (sem/ tur/bi/nas/, vá/cuos) al/gar/ves/ de/ so/l e/ mar/ por/ ser/pen/ti/nas. So/fia/ faz/-re/faz/, su/bin/do ao/ cris/tal/, em/ cris/tais/ (os/ de/la/, de/ luz/ ma/ri/nha).

Alguns aspectos da eufonia do poema também se destacam através da acentuação.

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Observando-se as tônicas de cada verso, constata-se que alguns fonemas significativos são recorrentes. No primeiro, os nasais com /m/ e

/n/ são mais constantes e produzem,

principalmente quando em sequência, certo efeito de monotonia e lentidão. É o caso do terceiro verso, que ainda é reforçado pela recorrência do encontro vocálico /oe/. Ainda nessa estrofe, expressões como “mel nos moldes” conseguem resultados parecidos. Na segunda parte do poema, o fonema que é mais constante é /f/. Fricativo, pode ser somado a outros dessa categoria presentes na estrofe, /v/, /s/ e /z/, que totalizam quatorze sílabas. As consoantes fricativas são reconhecidas por provocar efeito de velocidade, criando a ideia de um processo muito mais ativo. Além disso, dentro dos versos, elas muitas vezes se apresentam em sequência, “desfaz-faz e faz-refaz”, construindo um texto que parece avançar na tônica, para depois retomá-la, como fazem as ondas do mar. Nessa estrofe, também repetemse alguns sons vocálicos, /i/ e /a/, sempre intercalados por uma consoante nasal /n/, /m/ ou /ɲ/. É o caso de “usina”, “acima”, “turbinas”, “serpentinas” e “marinha”. Essa recorrência, que provoca a abertura da articulação, parece dar maior claridade ao texto, e configura um tipo de rima menos comum na poesia em língua portuguesa, a rima toante, típica do verso medieval e espanhol (CANDIDO, 2006, p.64). A combinação dos fonemas escolhidos, em conjunto com os aspectos rítmicos já comentados, acaba por reforçar toda a unidade de sentido do poema. O ritmo poético se constrói no tempo, e o resultado da identidade rítmica e fonética da primeira estrofe, comparado ao da segunda, é mais arrastado e lento, em contraste com um mais veloz. O tempo da primeira parte do poema – e do engenho, e de certos poetas – é marcado pela lentidão, enquanto o da segunda – e da usina, e de Sophia – se constrói de maneira rápida, mas com uma repetição muito mais ativa e evidente. Considerações Finais Em “Elogio da usina...” João Cabral de Melo Neto, mais do que criticar, educa. Enquanto, tematicamente, trata dos problemas e vantagens de duas mecânicas poéticas opostas, demonstra na sua forma exatamente como se pratica a produção que valoriza. Com sua estrutura bipartida e contrastante, o poema simultaneamente desfaz uma poética e faz outra. João Cabral, ao eleger Sophia como sua matéria poética, faz uma poesia crítica em

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elogio ao seu método de escrita, ao mesmo tempo em que o reproduz algumas das suas características. O que Cabral parece também admirar na poesia de Sophia de Mello Breyner é, além de seu método, seu resultado. O poema que sobe ao cristal, mesmo quando envolto na temática do sol e do mar, é a depurada imitação da realidade, que se faz através da atenção à linguagem. A poesia de Sophia se configura longe de uma representação do sentimento interior, é recriação de uma experiência de exterioridade, que comunica com rigor e clareza, e cumpre assim a função verdadeira da poesia para Cabral. Referências Bibliográficas ADORNO,Theodor W. "Palestra sobre lírica e sociedade". In.: _____. Notas de literatura. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003, p.65-89. ALFERI, Pierre. “Rumo à Prosa”. LEMOS, Masé; GLENADEL, Paula (trad.). ALEA, Rio de Janeiro, v.15/2, jul-dez, p.423-427, 2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/alea/v15n2/11.pdf> Acesso em: 30 de agosto de 2016. AMORIM, Oswaldo. “João Cabral de Melo Neto - entrevista: a arquitetura do verso”. Revista Veja. Rio de Janeiro: Abril, n.199, 1972. ARAGÃO, Eloísa da Silva. “Sophia de Mello Breyner Andresen: vida militante”. Anais do XXII Encontro Estadual de História da ANPUH-SP. Santos: 2014. Disponível em: <http://www.encontro2014.sp.anpuh.org/resources/anais/29/1406766054_ARQUIVO_ELOIS AARAGAOARTANPUH2014SANTOS30JUL2014.pdf>. Acesso em: 05 de novembro de 2016. ATHAYDE, Félix de (Org.). Idéias Fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 151p. BARBOSA, João Alexandre. A Imitação da Forma: uma leitura de João Cabral de Melo Neto. São Paulo: Duas Cidades, 1975. 229p. BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia. 6ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 275p. BOSI, Viviana. “Cabral aporta em Portugal: poesia brasileira lida pela crítica portuguesa atual”. Revista Abril, Niterói, v.7, n.15, p.143-160, 2015. Disponível em: <http://www.revistaabril.uff.br/index.php/revistaabril/article/view/310>. Acesso em: 25 de agosto de 2016. BRIK, O. “Ritmo e Sintaxe”. In.: Vários. Formalistas Russos. Porto Alegre: Editora Globo. 3ªed. 1976. 280p. CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. João Cabral de Melo Neto. São Paulo: Instituto Moreira Sales, 1996. 134p. CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. 6ª ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006. 164p. _____. Literatura e Sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre azul, 2006. 199p. CASTELLO, José. João Cabral de Melo Neto: o homem sem alma. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. 272p.

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A VOZ DA MORTE NO TEXTO LITERÁRIO Katrícia Costa Silva Soares de Souza Aguiar Doutoranda em Literatura pela Universidade de Brasília; Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa. E-mail: katriciasilva_@hotmail.com

Resumo: O presente artigo objetiva investigar a representação literária da História no romance Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, através da análise da morte, buscando entender seus desdobramentos na obra e seu caráter historiográfico e denunciativo. Para tanto, o trabalho examina como a relação entre a escrita literária e o discurso historiográfico se dá no referido romance, possuindo a morte como chave analítica. Demonstrando, enfim, que a forma como a representação literária da morte se dá na narrativa faz com que a mesma se apresente como uma voz no texto literário que problematiza o passado histórico de violência da sociedade brasileira, constituindo-se um indicativo das atitudes e dos comportamentos humanos, um meio de discussão da História e da própria vida humana. Palavras-chave: Voz. Morte. Literatura. História.


Para começo de conversa Enquanto fenômeno estético concretizado através das relações sociohistóricas de um dado contexto, a Literatura possibilita o rompimento das “grades” dos períodos históricos. Através dela, o leitor viaja no tempo e no espaço, dialoga com homens e culturas de séculos distantes e conhece fatos que precederam o momento em que vive. Compreendida dessa forma, a Literatura torna-se uma ferramenta que possibilita o acesso, de forma lúdica, mas ao mesmo tempo crítica, a outras áreas do conhecimento, como a História. Isso porque, considerado um bem atemporal, de natureza ficcional, o texto literário constitui-se em um instrumento capaz de discutir inúmeras questões presentes no real, como ocorre no romance Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, considerada a mais ousada e complexa obra do autor – não só pela extensão ou enredamento, mas por sua importância na história da Literatura brasileira. Com seu caráter ficcional, essa narrativa discute desde valores, culturas, fantasias, medos e variados sentimentos do ser humano, até acontecimentos históricos ocorridos na sociedade brasileira. Por meio de um texto polifônico, fragmentado, descontínuo e ambíguo, o escritor faz da História matéria para a Literatura, compreendendo-a como discurso que se apropria para transfigurar. Dessa maneira, mesmo mantendo referências e diálogo com a realidade, episódios e figuras históricas são ficcionalizados e modificados no romance; aliás, são problematizados, uma vez que a representação literária da História na obra se dá sem compromisso com a realidade referenciada. E assim, enquanto transfiguração da História do Brasil, numa diversidade de representações, essa narrativa lança um olhar crítico sobre o país, questionando os poderes instituídos e o uso privativo da História em função dos interesses de grupos sociais. Essas constatações instigaram a escolha da obra supracitada como objeto de análise para este trabalho, pois, já que a mesma é rica em aspectos histórico-literários, torna-se relevante estudos que os analisem. Afinal, constitui-se de suma importância discutir a pertinência de um texto literário impulsionar discussões a respeito do relativismo da História, ou seja, a não existência de uma verdade única e acabada, mas sim de várias possibilidades de interpretações, incitando discussões e reflexões sobre as “verdades históricas” e os problemas sociais.

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Todavia, o que é posto e discutido em um texto literário, mesmo quando toma o real como referente, é, muitas vezes, considerado como fictício, no sentido oposto ao real. Entretanto, como questionou Roland Barthes:

A narração dos acontecimentos passados, submetida vulgarmente, na nossa cultura, desde os Gregos, à sanção da "ciência" histórica, colocada sob a caução imperiosa do "real", justificada por princípios de exposição "racional", diferirá esta narração realmente, por algum traço específico, por uma indubitável pertinência, da narração imaginária, tal como a podemos encontrar na epopeia, o romance ou o drama?1

Impulsionada por essas inquietações e questionamentos, esta pesquisa possui como objetivo geral investigar a representação literária da História no romance Viva o povo brasileiro, através da análise da morte como desencadeadora das ações principais da narrativa e criadora de heróis no enredo, buscando entender seus desdobramentos na obra, bem como seu caráter historiográfico e denunciativo. A escolha pela morte como chave interpretativa se deu por considerá-la uma ideia plurissignificativa, possibilitando que seu conceito seja trabalhado de maneira subjetiva e simbólica, congregando várias áreas do saber. Levando em conta, ainda, a proposta interdisciplinar e, de certo modo, comparativa deste trabalho – já que apesar de se firmar no campo da Literatura, este trabalho também bebe, entre outras, na fonte da História, se torna oportuna a possibilidade de trabalhar a morte como viés de análise. Aliás, a morte é uma dimensão essencial e inerente à existência do ser humano – o que o particulariza como mortal, como a própria denominação dá a entender, uma vez que a consciência do estar vivo só é possível porque existe a consciência da morte –, discutir o tema seria, por consequência, discutir sobre o homem, sua existência, suas crenças e conflitos. Afinal, é o homem o único animal com consciência da sua limitação e finitude; o que faz da morte um dos maiores enigmas da existência humana. Entendê-la é uma tarefa que percorre a história da humanidade ao longo dos séculos. Na verdade,

1

BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988, p.20.

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A natureza da morte, bem como a própria realidade da morte e do morrer, têm sido consideradas como estando na base da cultura, remetendo para a estruturação da própria vida. [...] a morte modela o carácter e o significado das práticas e das relações sociais, refletindo a sua importância em todas as áreas da existência humana, da esfera pública à privada2.

Talvez por essa razão, o tema morte impulsione tantas reflexões em várias áreas do saber, estando presente nas ciências sociais e humanas, mas também nas ciências naturais e exatas. No campo das artes, e em especial da Literatura, é tema recorrente. A morte, porém, não é a temática central do romance ou um aspecto patente, mas, uma apreciação atenta da obra; como se buscou fazer, buscará torná-la perceptível como um elemento importante de compreensão desse texto literário e um viés de análise instigante. Para tanto, o texto organiza-se em três partes distintas, discutindo questões diversas, mas que, no entanto, se entrelaçam para a defesa de um mesmo ponto, a saber: a representação literária dos eventos históricos no romance corpus desse estudo, tendo a morte como chave interpretativa de análise. O intuito, todavia, não é tecer conclusões de forma categórica ou fechada, o que seria inviável diante da riqueza de temáticas da narrativa, mas, cooperar para o debate e favorecer outras possibilidades de análise do romance Viva o povo brasileiro, uma vez que se entende que o recorte analítico desta pesquisa constitui-se um aspecto ainda pouco explorado pela crítica literária. Nessa perspectiva, este trabalho pretende ser o início e não o fim de uma das muitas leituras e interpretações que o referido romance proporciona.

A Literatura como expressão da reiteratura como expressão da realidade: morte e História em Viva o povo brasileiro Tendo em vista que a Literatura não se constitui uma cópia da realidade, mas uma transfiguração desta, uma vez que seus referenciais não aparecem apenas de modo explícito, observar os fatores internos e externos que sustentam o texto literário contribui para analisar os seus elementos histórico-sociais como fruto de um contexto mais amplo. Concebida dessa maneira, a Literatura será uma forma de representação do homem, dos seus sentimentos e 2

HOWARTH, Glennys; LEAMAN, Oliver.(Coord.).Introdução. In: Enciclopédia da morte e da arte de morrer. Tradução de 100 folhas. Lisboa: Quimera, 2004, p. XIII.

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conflitos provenientes do convívio em sociedade, envolvendo visões de mundo diversas, entre infinitas possibilidades de leituras e interpretações. E assim, o campo literário pode ser considerado um meio de acesso ao universo real, sobre o qual, muitas vezes, lança um olhar crítico, que possibilita ao leitor reflexões e questionamentos a respeito da sociedade, não apenas daquela em que se passa o enredo, mas também do contexto de produção do texto, e ainda da que o leitor está inserido. Isso confere atualidade à obra, uma vez que mesmo sendo longínquaa época na qual a narrativa se contextualiza, é possível perceber aspectos da contemporaneidade tanto do escritor, quanto do leitor no texto, como acontece com Viva o povo brasileiro. Diante disso, pode-se compreender que o real está presente na Literatura mesmo quando não se apresenta de maneira evidente e para além da referência que ela faz ao mundo extratextual ou aos fatos e personagens históricos. Todo texto literário fala, no mínimo, de duas realidades. A primeira é a realidade do escritor, uma vez que enquanto ser histórico e social, conta, mesmo que de maneira indireta ou inconsciente, a sua própria realidade, ou ao menos uma história a partir da sua realidade. A segunda seria a realidade do contexto em que o enredo da obra é ambientado, mesmo quando isso acontece no plano sobrenatural ou nos romances de ficção científica, por exemplo. A essas duas realidades, pode ser adicionada uma terceira, que é a realidade do leitor, que durante a leitura que faz do texto literário, não deixa de depositar a sua própria realidade, a sua experiência de vida, o seu contexto histórico e seus anseios. Decerto por isso, um livro nunca é o mesmo para todos, ele é sempre diferente e único para cada leitor. O real ainda está presente na Literatura em outra dimensão importante: por meio dos sentimentos. Não só os do literato, impressos e transmitidos ao longo da produção escrita, mas também através dos sentimentos que esse texto desencadeia no leitor. É possível afirmar que essas emoções não são reais? Como negá-las? Pois como adverte Wolfgang Iser: “Evidentemente, há no texto ficcional muita realidade que não só deve ser identificável como realidade social, mas que também pode ser de ordem sentimental” 3. Até porque, o leitor que fecha o livro não é o mesmo que o abriu.

3

ISER, A. Wolfgang.2002, p.958.

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Partindo desses pressupostos, cabe ressaltar queo referido romance concentra sua ação no século XIX, com exceção do segundo capítulo e dos dois últimos que contemplam, respectivamente, os séculos XVII e XX. Ao situar a maior parte da narrativa nesse período, João Ubaldo Ribeiro retoma, justamente, o processo de construção da sociedade e identidade brasileiras e de afirmação do sentimento nacional. Entretanto, não mais centrada na figura indígena ou numa imagem de unidade da nação, como acontecia no Romantismo, e sim abordando a mistura dos diferentes componentes – o índio, o ocidental e o africano, sem se esquecer, ainda, do imigrante, que também compõe essa combinação –, que estão no cerne da sua formação, vistos pelo autor como uma verdadeira amálgama. Na narrativa, o leitor acompanha desde antes da chegada dos portugueses, quando os tupinambás viviam sozinhos e em paz, da presença dos espanhóis, holandeses e franceses, até a vinda “dos pretos de várias nações da África”4, quando já “não havia mais índios como antes”5. De todas essas raças miscigenadas, nasce o povo brasileiro, que tem suas identidades, história e nacionalidade marcadas, desde a sua gênese, pela mistura – na maioria das vezes, realizada de maneira violenta e desigual –, mas não só no seu momento de geração, uma vez que as desigualdades sociais e o preconceito racial irão marcar a História do Brasil até a contemporaneidade. Para discutir e problematizar como se deram essas misturas e o processo de constituição da sociedade e das identidades brasileiras, o autor ambienta a maior parte do enredo na Bahia, mais precisamente na ilha de Itaparica, como faz com grande parte dos seus textos. Para falar dessas temáticas, a escolha por tal espaço se deu não apenas para garantir verossimilhança à obra, já que foram nas praias baianas que os portugueses desembarcaram ao adentrar o país e por lá iniciaram o processo de colonização, fazendo das mesmas, na visão do narrador: “Às costas da terra mais brasileira que existe”6, mas também, por conta desse passado histórico que, conforme João Ubaldo Ribeiro destacou certa feita:

No Brasil, não há lugar em que essa mistura de corpos e mentes seja tão universalizada quanto na Bahia, onde faça parte tão entranhada da paisagem 4

RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro, 2014,p. 245. Idem, p.67. 6 Idem, p.32. 5

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humana. [...] Aqui, se dissolveram, numa mistura esplendorosa e fecunda, original e única, raças, crenças, costumes, falas, hábitos, gostos e aparências, e é difícil avaliar como isso é precioso e raro, forte e delicado ao mesmo tempo. Basta trazer à mente a história pregressa e presente de nossa espécie, para verificar como dificilmente, ou nunca, esse fenômeno acontece. Mas acontece aqui, e assim, define a nossa identidade7.

Na obra, porém, os poderosos desprezam sua pátria e o estado onde vivem, exatamente por considerá-los “berço” de negros, mestiços, índios e pobres. Julgam-se “europeus desterrados”, valorizam somente o que é de fora da sua nação, rejeitam a Bahia e toda a sua diversidade racial e cultural:

Na verdade, passara, como Henriqueta, a ter horror à Bahia, lugar atrasado, de gente tacanha e limitada, cidade imunda e desconfortável, conversas destituídas de interesse e uma mestiçagem generalizada, que não podia deixar de chocar uma pessoa bem acostumada8.

Propagam, assim, a concepção de que a classe dominante é superior aos demais cidadãos. No entanto, apesar de terem aversão aos seus compatriotas e vergonha do lugar onde habitam, não deixam suas terras, pois querem delas sugar as riquezas:

- Que espécie de peixes há cá? Não pode haver bons peixes em águas tão quentes, nada aqui é apropriado, nada daqui pode ser vivido aqui. Há coisas que podem ser tiradas daqui e levadas para bom uso cristão, mas meu pai, talvez seja o destino, não o homem não pode viver aqui, é mundo para as raças serviçais embrutecidas9.

Pensando no recorte analítico deste trabalho, tratar do tema da morte, para problematizar a História do Brasil, tomando por cenário a Bahia não foi um ato arbitrário, decerto. Afinal, como ironicamente lembra o narrador,

7

RIBEIRO, João Ubaldo Ribeiro. “Discurso de posse de João Ubaldo Ribeiro na Academia de Letras da Bahia”. 22 nov. 2012. Disponível em: https://academiadeletrasdabahia.wordpress.com/2012/12/27/discurso-de-posse-dejoao-ubaldo-ribeiro/. Acesso em: 15 de jul. de 2016. 8 Idem, p.511. 9 Idem, p.64.

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De mortes bonitas é farta a memória do Recôncavo, tantos os santos homens que se defrontaram de maneira edificante com a gadanha da Grande Ceifadeira, assim legando às gerações subseqüentes exemplos inesquecíveis do bem morrer. Não há mesmo família ilustre que não se compraza em relembrar as diversas mortes belas que cada uma conta em seu acervo tanatológico, seja pelas derradeiras palavras exaladas, seja pelo manto de doçura e paz a envolver o preciso momento do trespasse, seja pelo estoicismo do moribundo, seja pela venusta paisagem ou especialíssimas circunstâncias a cercar os óbitos repentinos, seja comoção do povo nas exéquias - tudo isto fazendo com nestas questões letais, não exista no mundo lugar tão ufano10.

Assim, a forma como a ambientação se constitui, desde o tempo ao espaço, reforça a relação entre a Literatura e a sociedade, que se influenciam mutuamente no romance, uma vez que os fatores sociais atuam concretamente na estrutura do texto, fazendo com que “os valores e ideologias contribuam para o conteúdo da obra”11. Nesse sentido, é relevante evidenciar que o ano da escrita e publicação do livro, 1984, corresponde a um momento histórico decisivo para o país. Trata-se da ocasião em que, duas décadas após o início da Ditadura Militar, diversos setores da sociedade civil buscavam ampliar seu horizonte de participação política; vivia-se um coletivo desejo de recuperar a identidade nacional comprometida pelo sistema do regime, que vivia seus últimos instantes, posto que a democracia seria reimplantada no ano seguinte, com a eleição de Tancredo Neves para a presidência. 1984 entraria para a História como o ano das “Diretas Já”, movimento que lutava pelo direito ao voto para as eleições presidenciais do ano seguinte, reunindo milhares de pessoas em comícios pelas principais cidades do país. Deste modo, o objeto de representação do romance é o passado, mas o ponto de partida é a realidade da época, isso porque o narrador fala a partir do século XX, principalmente, sobre o anterior, retomando-o para problematizar a identidade nacional, que estava em formação no século XIX, porém em reconstrução no século XX, em razão do sistema opressor do governo ditatorial, que reprimia, limitava e subjugava a liberdade e as identidades do povo brasileiro. Partindo desses recortes temporais para pensar a temática analisada neste artigo, podese inferir que a obra possibilita uma reflexão sobre a morte por intermédio de dois períodos fundamentais para a formação da sociedade brasileira. Nas fases de colonização e 10 11

Idem, p.208. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006, p. 40.

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independência do Brasil, processos marcados por mortes violentas, as primeiras vítimas foram os índios, que outrora habitantes e donos das terras, com a vinda dos portugueses, se tornaram cada vez mais escassos, como destaca o narrador:

Porque os índios praticamente não existiam mais e os poucos que havia ou se escondiam nos cafundós das matas ou passavam o tempo furtando e mendigando para beber, cair pelas calçadas e exibir as doenças feias que sua natureza lhes trazia12.

Em seguida, os negros se tornaram o alvo principal da crueldade de outros homens, sendo tratados como animais abatidos segundo a vontade do seu dono. Isso quando a morte não se dava antes de chegar ao Brasil, ainda nos navios, nos quais eram trazidos aos montes em condições precárias, ou ainda por exaustação pela força do trabalho escravo. Quando a obra discute esse tema situando-o nesses momentos históricos – como acontece com a escolha da Bahia como espaço da narrativa –, não é apenas para garantir a verossimilhança, mas também para problematizar o passado violento da sociedade brasileira. Afinal, as mortes narradas no romance muito dizem sobre o comportamento dos sujeitos no contexto em que estão inseridos; representam seus costumes, a maneira como veem a vida, como enxergam e tratam o outro, conforme aconteceu com a morte do perverso barão Perilo Ambrósio. Depois de todas as crueldades que cometeu, de ter sido o responsável pelo assassinato de muitos negros, em alguns casos cometidos com as suas próprias mãos, o barão “teve a maldade castigada”13. Privados do acesso às armas dos brancos, os escravos, diante da sua condição servil, diferentemente dos seus senhores, quando tiravam a vida de alguém, precisavam fazê-lo clandestinamente, usando seus próprios recursos. Assim procederam Dandão e Budião, que

tinham uma canastra contendo muitos segredos do destino do povo, muitas defesas e muitas receitas de orações e feitiços. E, por meio dessas orações e feitiços, bem como pela ajuda de outros como eles, conseguiram dar uma certa

12 13

RIBEIRO, João Ubaldo. Op. cit, p.47. Idem, p.508.

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bebida ao barão, o qual foi estuporando aos poucos, até morrer uma das piores mortes que já se viu na Bahia, contando as pestes14.

O real motivo da morte do barão não poderia ser descoberto, fazendo com que os autores do crime, apesar de orgulhosos do feito, mantivessem o ato em sigilo, não podiam contar a sua própria história. Contudo, a morte do barão tinha uma voz, que dizia muito sobre o que seus escravos sentiam e queriam falar, mas não podiam, pois eram silenciados pela violência e opressão. Budião, porém, não se conteve, no leito de morte do seu senhor, foi porta-voz da mensagem:

Não podia falar alto, era obrigado a cochichar, mas tinha certeza de que o barão escutava tudo, estava escutando tudo e estava com medo! Budião retorceu os beiços, esticou a língua, a arreganhou as ventas, fez a careta mais feia que pôde, aproximou-se mais, o barão derretido de pavor. - Cão dos infernos! - roncou Budião. - Tu vai morrer! Tu vai morrer, Satanás! O barão estremeceu, fez um esforço inútil para afastar o tronco, quis fechar os olhos e não pôde. - Tá com medo agora, desgraçado, condenado! Isso é pelas malvadezas que tu fez, pelas línguas que tu cortou, pela morte de Inocêncio, por tua perversidade e por ser quem é. E te conto mais, viu, infeliz, desgraçado, quem te matou foi eu, foi esse nego daqui que te matou! Aaarrr, vai morrrreeer, vai morreeeer!15

A morte, assim, torna-se um indicativo das relações sociais no romance, uma vez que lembra ser o homem um ser biológico, mas também social. Dessa maneira, o modo como as personagens morrem revelam os conflitos de classes, transformando a morte em um mecanismo de poder. Outro exemplo nessa perspectiva são as mortes do caboclo Capiroba, que “foi enforcado de madrugada, olhando as mãos e pulsos amarrados”16, e de sua filha Vu, “enterrada viva de cabeça para baixo, cavando cova bem funda para muito bem enterrar”17, por serem, ambos, “comedores de gente”. Sinique, por sua vez, mesmo tendo comido “um pedacinho de Aquimã,

14

Ibidem. Idem, p.204. 16 Idem, p.70. 17 Idem, p.86. 15

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aliás não só um pedacinho, mas quase uma gamela cheia”18, por ser um “holandês superior”, teve uma morte diferente:

Foi levado ao ferreiro, que lhe limou o arganel do nariz; ao barbeiro, que lhe fez curativos e lhe pensou os pequenos ferimentos que são naturais aos bichos brabos de cercado; à casa de uma família, onde lhe deram água esquentada, comida cristã e cama limpa forrada; ao conselho de guerra, que o condenou a ser decentemente fuzilado; a um poste, onde foi manietado, disse umas últimas palavras que ninguém entendeu, recebeu muitos balaços mal colocados e demorou um pouco a morrer19.

Em todas essas mortes, destaca-se a figura do padre, sempre chamado para dizer “umas palavras em língua mágica, pronunciadas com o braço direito levantado”20, “vindo depois do enterramento para tudo abençoar muito bem abençoado”21, inclusive os mortos condenados pela igreja ou pelo governo, que representam forças de interesses que se fundem na narrativa. A presença do eclesiástico é apresentada para as personagens no enredo como demonstração da misericórdia e da bondade cristã, mas, na verdade, constitui-se mais uma demonstração da força e do domínio da fé imposta. João Ubaldo Ribeiro trata de todas essas questões num momento de muitas mortes violentas no Brasil, e, por isso, um contexto de luto22. Depois de vinte anos sob o regime militar, que deu fim a incontáveis vidas, a esperança dos brasileiros se via comprometida. O autor, impossibilitado de abordar as mortes, opressões e violências do seu presente, diante da censura do governo militar, volta ao passado, na tentativa de resgatar no já vivido esses mesmos elementos, que fazem parte não só da formação da sociedade e identidades nacionais, mas da

18

Idem, p.67. Idem, p.70. 20 Ibidem. 21 Idem, p.86. 22 A partir da esteira teórica de Alberto Moreiras, Ceccantini reflete a respeito das relações entre Viva o povo brasileiro e o momento histórico no qual o livro foi escrito e publicado, para dizer que o pensamento pós-ditadura, que se exerce numa perspectiva de luto, vai influenciar a Literatura produzida nesse período, como aconteceu com o romance em questão. Analisando o pensamento de luto na referida obra, o estudioso conclui: “É um pensamento que é produto de uma situação de depressão, voltando-se frequentemente ao passado histórico, na ânsia de lá encontrar linhas de identidade”. CECCANTINI, João Luís C. T. Brava gente brasileira. In: VÁRIOS AUTORES. João Ubaldo Ribeiro. Cadernos de Literatura Brasileira, nº7. Instituto Moreira Salles, mar. 1999, p.115. 19

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sua realidade contemporânea, que é do mesmo modo desigual e tirânica, uma vez que continuava sendo, como é evidenciado no romance:

Um Brasil onde muitos trabalhavam e poucos ganhavam, onde o verdadeiro povo brasileiro, o povo que produzia, o povo que construía, o povo que vivia e criava, não tinha voz nem respeito, onde os poderosos encaravam sua terra apenas como algo a ser pilhado e aproveitado sem nada darem em troca, piratas de seu próprio país23.

O escritor, todavia, constrói na narrativa uma representação literária da morte que vai além da mesma como a responsável em pôr fim à vida, pois funciona, ao mesmo tempo, como elemento desencadeador de uma nova vida para outras personagens, resultando em mudanças sociais importantes. Dessa maneira, a morte é apresentada como possibilidade de esperança e renovação, um ímpeto transformador, num contexto em que o Brasil começava a despertar para um recomeço, mesmo diante de tantas mortes violentas cometidas na ditadura, que ainda aterrorizavam a população. Isso porque, por muito tempo, a morte foi usada como mecanismo de opressão, numa tentativa de silenciar as vozes que surgiam contra o governo ditador. João Ubaldo Ribeiro, desse modo, ambienta o seu texto no pretérito para problematizar tanto o passado quanto o presente; fala do ontem, mas também do hoje e do agora, da sua contemporaneidade, levando o leitor a pensar como essas questões são pertinentes para refletir as relações na sociedade atual. Na última ação do romance, outra desencadeada por uma morte, é possível perceber mais uma crítica aos aspectos sociais que, na narrativa, são apontados como futuro, porém correspondem à realidade vigente no Brasil e no mundo. Por motivo do funeral da personagem Patrício Macário, diante da importância e prestígio do falecido, os habitantes da ilha de Itaparica se mobilizaram para o sepultamento e última homenagem “ao grande general a quem todo mundo queria bem”24. Aproveitando que muita gente estava fora de casa, os ladrões Leucino Batata, Nonô do Candeal e Virgílio Sororoca invadem residências, inclusive a do defunto, à procura de qualquer coisa de valor que pudessem vender.

23 24

RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Op. Cit., p.476. Idem, p.650.

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Da casa de Macário, roubam a canastra, a que, misteriosamente, o general herdou de Maria da Fé, depois do encontro que teve com o filho. Acreditando que dentro dela teria objetos valiosos, os bandidos levam-na, já que não logram êxito ao tentar abri-la no local do furto. Por envolver, mesmo que indiretamente, a heroína, a narração desse episódio é cercada por contornos míticos. Os ladrões, inexplicavelmente, não conseguem abrir o baú. No entanto, um deles consegue enxergar o que há no seu interior. Mesmo não sendo capaz de explicar com exatidão o conteúdo aos demais, sabe que lá está vendo o futuro:

- Eu estou vendo o futuro! - Vendo o futuro? O futuro como? - Não sei, só sei que é o futuro, é uma coisa que tem aqui que mostra que é o futuro. - Que coisa é essa? - Não sei dizer, é uma coisa. - Ora, deixe de querer fazer os outros de besta, você não está vendo futuro nenhum, não está vendo é nada. - Estou, estou, estou! - Então diga que bicho vai dar amanhã, que bicho vai dar? - Não é esse tipo de futuro que eu estou vendo. É como se tivesse aqui uma voz me cochichando para explicar o que tem lá dentro, mas não tem voz nenhuma, porém tem. Menino!25

O que a voz misteriosa diz não faz sentido para os criminosos, embora lhes surpreenda e assuste. O que se vê pela canastra é ladrão “de terno, de duque, de colete e gravata de seda, alfinetes de brilhantes, botuaduras de péurulas, sapato de corcodilo, água de cheiro no subaco de vintes contos a gota”, que diferentes deles, não entram “nas casas metendo a mão em tudo dos outros”, como também não “tocam no dinheiro, tudo tem uns cartãozinho”. Nesse futuro, “o dinheiro não tem nome de dinheiro”26, e os ladrões não falam de dinheiro, apesar da imensa riqueza que possuem:

- Que nome tem o dinheiro? - Todo tipo de nome. E verba, é dotação, é uma certa quantia, é age, é desage, é numerário, é honorário, é remoneração, é recursos alocado, é propriação de reculso, é comissão, é fis, é contisprestação, é desembolso, é crédio, é transferência, é vestimento, é tanto nome que se eu fosse dizer nunca 25 26

Idem, p.653. Idem, p.653-654.

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que acabava hoje e tem mais coisa para ver. Dinheiro mesmo é que ninguém fala, todo mundo tem vergonha de falar que quer dinheiro. - Vergonha de dinheiro si? - Grande vergonha! Todo mundo manda o dinheiro para fora e tem tanto acanhamento que, quando alguém conta que eles mandaram o dinheiro para fora, eles ficam acanhados e mandam prender esse dito certo alguém e, se esse dito certo alguém continuar falando no dinheiro que eles malocaram, eles mandam matar esse dito certo alguém!27

Ainda que o futuro pareça absurdo e incoerente para os ladrões, uma das primeiras perguntas que fazem é:

- Muita gente morta aí? - Chiii! Tem uma bomba que não deixa a alma do vivente nem sair, torta a alma também. Tá escrito aqui: nada non suferfife a uma prosãotelmonucreá, nem as arminhas, as alminhas! - Botaram a bomba aí? - Botaram não, tão querendo botar, que é para garantir a paz. Se ninguém se comportar, morre todo mundo, morre até as alminhas no telmonucreá! - Mas então ninguém morreu ainda, pode morrer mas não morreu. - Morreu, sim! Tá morrendo! Tem um menino aqui de oito anos que está carregando a irmã de dois anos que um americano deu um tiro sem querer, depois que outros americanos jogaram uma bomba na casa do pai dele sem querer, na hora que os americanos entraram para invadir a terra dele para salvar ele, só que não sobrou ninguém, ficou tudo salvo. Tem gente morrendo também de todo jeito, morrendo muito de fome, cada menino magro que parece uma taquara, tudo os aribus vindo para comer. Muito aribu gordo!28

Apesar dos larápios não terem consciência disso no enredo da obra, a morte, mais uma vez, indica o comportamento do homem no seu contexto e as suas relações sociais, como acontece em todo o romance. Quando a narrativa passa do discurso indireto livre para o discurso direto, o que se revela– nesse caso, pelas vozes das personagens, que por pertencerem à classe menos favorecida, não são ouvidas –, é o caráter histórico e denunciativo do texto, que mesmo escrito em 1984, continua atual, uma vez que as críticas são feitas a problemas sociais que podem ser facilmente percebidos na realidade de hoje.

Para finalizar 27 28

Idem, p.654. Idem, p.654-655.

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Viva o povo brasileiro problematiza questões sociais e históricas, utilizando a Bahia e a ilha de Itaparica como metáforas do Brasil e do seu povo, não se limita a projetar uma imagem estável da sociedade brasileira, antes o contrário. Com esse romance, João Ubaldo Ribeiro propõe uma reflexão mais ampla sobre a formação da sociedade e das identidades nacionais, Isso porque a obra congrega o erudito e o popular, o imaginativo e o histórico, num cruzamento de aspectos culturais indígenas e africanoscom elementos característicos da tradição ocidental, como o cristianismo. Numa narrativa ambígua e, concomitantemente engajada, integra o branco, o negro, o índio e seus descendentes, destacando os menos favorecidos, marginalizados no processo de formação da identidade nacional pela historiografia oficial. Na construção da transfiguração da História feita no enredo, a morte é utilizada como recurso fundamental para tanto, ao estabelecer uma relação com a realidade histórica do Brasil, não só para garantir a verossimilhança da obra, mas para problematizar o passado histórico de violência da sociedade brasileira, as relações de classes, os conflitos sociais e as opressões sofridas, principalmente pelos negros. Assim, a representação literária que autor constrói da morte faz com que a mesma constitua-se num indicativo das atitudes e dos comportamentos humanos, o que lhe confere cunho histórico e denunciativo. Afinal, como discute Giorgio Agamben, todo animal tem na morte violenta uma voz. Para o estudioso, a morte e a linguagem são essências humanas e motores dialéticos, e a ideia da negatividade fundamental do ser da linguagem e do ser do homem, o que autor chama de Voz, que delineia o indivíduo e é, antes de tudo, a representação da morte. O homem, nesse viés, “é o animal que possui a faculdade da linguagem e o animal que possui a faculdade da morte”29, um falante, pelo qual se constrói o que diz, ou seja, a morte, que pode ser compreendida como uma voz que tem muito a dizer a respeito do homem, da vida e da História humana, como acontece no romance analisado. Ao mesmo tempo em que a morte pode ser lida como mais uma voz nas obras – ao passo que muito diz, problematiza e denuncia –, também é usada como instrumento de violência e opressão, é responsável por calar as vozes que emergem das margens e tentam contar a sua própria história em busca de representação, pondo fim a vida e logo a linguagem, fundamentais 29

AGAMBEN, Giorgio. A Linguagem e a Morte: um seminário sobre o lugar da negatividade. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006, p.10.

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para a condição humana. A forma como o romance trata dessa temática, relacionando-a com a realidade histórica do Brasil, tanto a do contexto no qual se passa a narrativa quanto a do período de produção da obra, convida o leitor a refletir sobre a sua contemporaneidade, observando mais criticamente os problemas atuais da sociedade. As questões sociais apresentadas no texto, como a distribuição de riquezas e, por consequência, a desigualdade social, apesar de contextualizadas, principalmente, no século XIX, são problemas que afligem o Brasil até os dias de hoje. De maneira análoga, acontece com o preconceito racial e com o tratamento dispensado aos índios, que podendo até seremjustificados no contexto da narrativa – tendo em vista que se passa numa época em que o negro era visto apenas como elemento servil e objeto sexual; e o índio considerado um selvagem –, são conjunturas que ainda fazem parte da realidade brasileira. Afinal, mesmo no século XXI, o negro continua marginalizado, apesar das mudanças alcançadas com o crescimento dos movimentos pelos seus direitos no Brasil. A abolição extinguiu a escravidão, mas não o preconceito, que persiste nos dias de hoje, muitas vezes, de maneira velada e hipócrita. Os índios, aliás, não ocupam um lugar social muito diferente. Se foram considerados heróis nacionais, ideal de pureza e amabilidade – servindo de referência para a construção e difusão da ideia de uma identidade brasileira no período oitocentista, agora, o heroísmo não lhe cabe mais. Depois de construída e consolidada a nacionalidade e a identidade pátrias, o indígena não se fez mais necessário, tornou-se dispensável para os interesses vigentes. Entender esses aspectos sociais como um legado da História de violência da formação da sociedade brasileira, desde a sua gênese, contribui para analisá-los com maior criticidade e como frutos de um contexto mais amplo. Quando a Literatura participa e coopera para esse movimento, como faz o romance Viva o povo brasileiro, passa a assumir um papel que vai além do estético, do lúdico e do entretenimento. Torna-se um instrumento de denúncia, um agente de transformações sociais. Decerto, não de maneira imediata ou técnica, mas através de mudanças, que aparentemente individuais e simples, podem ser potencializadas quando o leitor, munido dos sentimentos, humanidade e empatia propiciados pelo texto literário, converte-se num sujeito crítico diante do outro e do mundo.

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Referências AGAMBEN, Giorgio. A Linguagem e a Morte: um seminário sobre o lugar da negatividade. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006. BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. CECCANTINI, João Luís C. T. Brava gente brasileira. In: VÁRIOS AUTORES. João Ubaldo Ribeiro. Cadernos de Literatura Brasileira, nº7. Instituto Moreira Salles, mar. 1999. HOWARTH, Glennys; LEAMAN, Oliver.(Coord.).Introdução. In: Enciclopédia da morte e da arte de morrer. Tradução de 100 folhas. Lisboa: Quimera, 2004. ISER, A. Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. Tradução de HidrunKrieger Olinto e Luiz Costa Lima. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. ______. “Discurso de posse de João Ubaldo Ribeiro na Academia de Letras da Bahia”. 22 nov. 2012. Disponível em: https://academiadeletrasdabahia.wordpress.com/2012/12/27/discurso-deposse-de-joao-ubaldo-ribeiro/. Acesso em: 12 de nov. de 2016.

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O SANTO E A PORCA: TRAÇOS DA COMÉDIA CLÁSSICA NO TEATRO DE ARIANO SUASSUNA Juan Filipe Stacul Universidade Federal de Viçosa. E-mail: juan.stacul@ufv.br

Resumo: Pretende-se, no presente trabalho, realizar uma leitura da peça O Santo e a Porca (1957), de Ariano Suassuna, observando os elementos da Comédia Clássica ali presentes, especificamente, do período denominado Comédia Nova. Analisa-se, a respeito da composição da peça, como uma série de elementos presentes na Comédia Nova são apropriados por Suassuna, estabelecendo, ao mesmo tempo, um diálogo de tradição e de ruptura. Suassuna, ao dialogar com os tipos da comédia clássica, constrói uma obra didaticamente importante, mas faz mais: transcende os moldes greco-romanos para evidenciar que apesar do universalismo da arte antiga, o sujeito e o mundo ainda estão longe de serem delimitados ou fotografados pela literatura. O diálogo com o teatro clássico, a construção da narrativa e das personagens e a organização arquitetural do texto dramático-narrativo são campos profícuos para debates que podem sugerir várias perspectivas analíticas para a crítica literária contemporânea. Acredita-se, nesse sentido, que uma das propostas estéticas do escritor consista, basicamente, na apropriação intertextual da forma e do conteúdo do teatro grego para a constituição de uma obra singular sobre a vida no sertão e a cultura nordestina. Palavras-chave: Literatura comparada, Teatro, Ariano Suassuna, O santo e a porca


Introdução Pretende-se, no presente trabalho, realizar uma leitura da peça O Santo e a Porca (1957), de Ariano Suassuna, observando os elementos da Comédia Clássica ali presentes, especificamente, do período denominado Comédia Nova. Acredita-se, nesse sentido, que uma das propostas estéticas de Suassuna consiste, basicamente, na apropriação intertextual da forma e do conteúdo do teatro grego para a constituição de uma obra singular sobre a vida no sertão e a cultura nordestina. Para perseguir o objetivo ora traçado, dividiremos nosso trabalho em três partes: primeiramente, apresentaremos um breve perfil das origens e da definição da comédia na Grécia Antiga, visitando os três momentos de solidificação do gênero cômico e as principais características de cada período. Pretendemos, com isso, vislumbrar de forma panorâmica os elementos que serviram de base para a composição do teatro clássico e, em outro contexto, das obras que deste se serviram – inclusive a de Ariano Suassuna. No segundo momento da nossa discussão, pretendemos situar historicamente o teatro de Plauto e traçar um perfil de suas principais caraterísticas. Verifica-se, com isso, uma série de elementos presentes na obra deste autor essenciais para a compreensão do que foi o terceiro momento da dramaturgia cômica na Grécia, conhecido com Comédia Nova. São, especificamente, os elementos desta terceira corrente que servem de base para a estruturação de O Santo e a Porca, peça assumidamente inspirada na produção de Plauto. Por último e, por isso mesmo, com especial ênfase, apresentamos uma leitura da obra de Suassuna, perseguindo as seguintes indagações: de que forma o autor dialoga com a comédia clássica e quais são os elementos dos quais se apropria na composição de sua obra? Quais são as subversões realizadas por Suassuna e de que forma o autor as utiliza para criar uma literatura, de certa forma, original? Como a intertextualidade com os modelos clássicos pode lançar novos olhares para a percepção da cultura nordestina e sua presença na literatura do autor? A partir desse arcabouço e na tentativa de responder os problemas apresentados, inicialmente, nas próximas linhas, apresentaremos uma discussão sobre os momentos em que a comédia se constituiu e se consolidou na Grécia Antiga, desde os festivais dionisíacos até a estruturação de um modelo dramático capaz de suprir as necessidades socioculturais e artísticas

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da época. Iniciamos, portanto, conforme já nos sugeria Aristóteles, “como é natural, pelas coisas primeiras” (ARISTÓTELES, 1966, p. 68).

1. Comédia clássica: origens e conceito Sabe-se, atualmente, que o conceito de comédia pode assumir diferentes possibilidades interpretativas, devido à pertinência de sua apropriação para as mais diversas representações artísticas, tanto no teatro, quanto na literatura, no cinema e na televisão. Nesse sentido, acreditase que uma breve contextualização do termo se faz necessária, sobretudo para uma demarcação de nosso objeto, na tentativa de minimizar possíveis ambiguidades na leitura que ora propomos. Em primeiro lugar, ressaltamos que a referência à comédia traçada no presente trabalho diz respeito à Comédia Clássica, forma discursiva oriunda da antiguidade grega, entre os séculos VI e II a. C., cujos autores foram responsáveis por estabelecer uma tradição dramática que, ainda hoje, reverbera nas mais diversas composições artísticas, assim como se mostra presente como um legado da cultura ocidental. Segundo Mafra (s.d.), as origens da comédia grega remontam às festas populares em celebração ao deus Dionísio, conhecidas como phallophória. Nessas comemorações, o povo, em procissão, exibia o falo, símbolo da fertilidade, assim como cantava e dançava em tom jocoso e alegre, por ocasião da vindima (época de colheita da uva). Com o tempo, estas celebrações teriam se enriquecido com a presença de palhaços, dançarinos e saltimbancos, até convergir para o que conhecemos como a comédia clássica. Foi Aristóteles, em sua Poética, quem nos forneceu o primeiro arcabouço teórico que norteava a composição e a compreensão da comédia na Grécia Antiga. Ao estabelecer os fundamentos dos três gêneros artístico-literários (épico, lírico e dramático), o autor assim conceituava o subgênero dramático comédia: A comédia é, como dissemos, imitação de homens inferiores; não, todavia, quanto à toda a espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do torpe que é o ridículo. O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anódina e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara cômica, que, sendo feia e disforme, não tem [expressão de] dor. (ARISTÓTELES, 1966, p. 73)

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Observa-se, segundo a noção aristotélica, que a comédia passou a ser definida a partir de uma oposição com a tragédia: esta seria responsável pela representação da ação de “homens elevados”, enquanto aquela, pela de “homens inferiores”. Ambas se caracterizariam, no entanto, pelo caráter representativo, mimético. Essa definição é bastante paradigmática, pois aponta para a face marginal que estava na “essência” da composição cômica clássica. Advinda das festas populares, dos ditos “homens menores”, a comédia permaneceu como relacionada a esse universo, retratando as classes subalternas da antiga Grécia e seus dramas cotidianos. Importante observar, a partir dessa breve visão panorâmica do termo, que a Comédia na Grécia Antiga estruturou-se, enquanto composição artística, a partir de três modelos preponderantes (de acordo com o período histórico em que se insere): A Comédia Antiga, A Comédia Média e a Comédia Nova. A Comédia Antiga tratou-se, segundo Mafra (s.d.), do período que foi “dos primórdios até a maioria das obras e Aristófanes”, seu principal poeta. Caracterizou-se, nesse momento, pela sátira pessoal, voltada a questões de ordem filosófica e política. Estruturou-se, basicamente, em cinco partes, prólogo, párodo, cenas dialogadas, parábase e êxodo, conforme nos apresenta o autor: Havia, como na tragédia, um prólogo e um párodo (abertura do espetáculo e a entrada do coro). Seguiam-se cenas dialogadas, uma espécie de duelo entre dois contendores. A cena principal era executada pelo coro e chamava-se parábase, uma apresentação satírica em que o coro, ocupando o espaço dos atores e voltado para o público, interpelava os políticos e os poetas com ataques violentos. O desfecho da comédia era o êxodo, quase sempre uma festa ou banquete. (MAFRA, s.d., p. 5)

A estrutura cômica desta primeira fase foi apropriada por uma série de autores, estando presente desde a composição de Crates (486 a.C.) à de Aristófanes (445 a.C.), com sutis transformações durante este percurso histórico. No entanto, o tom ofensivo da Comédia Antiga não sobreviveu à censura do governo grego que, ameaçado pelos ataques pessoais fortemente encenados nesse momento do teatro, proibiu uma série de composições e estabeleceu limites à encenação artística.

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A censura da comédia e a consequente necessidade de readequação da forma dramática, abriu precedentes para a formação de um segundo momento do Teatro Grego, marcadamente menos político e mais voltado para questões da vida cotidiana. Surgiu, então, a chamada Comédia Média, ou a comédia dos tipos. Nesse segundo momento, entraram em cenas as personagens caricaturais, como o parasita, a prostituta, o escravo, etc. A mudança na forma como a comédia se constituía trouxe, também, alterações na estrutura dramática. A partir da Comédia Média, o coro perdeu a importância e a parábase deixou de existir. Houve, nesse caso, a constituição de uma arte de transição que, tendo Aristófanes como um de seus grandes nomes, abriu o campo artístico e cultural para o surgimento da denominada Comédia Nova. A Comédia Nova tratou-se de uma produção que deixou de lado uma série de características de suas percursoras para instaurar-se enquanto uma arte capaz de dar conta das transformações sociais e políticas pelas quais a Grécia passava naquele momento. Nesse contexto, os ataques políticos e as paródias mitológicas cederam lugar a uma produção voltada à análise da sociedade e dos sujeitos. A esse respeito, Mafra (s.d.) esclarece-nos que “o cômico [na Comédia Nova] está na análise da personalidade, nos quiproquós, nas situações e nos tipos populares. O estudo dos costumes e dos caracteres para a ser o ponto comum dos autores da comédia.” (MAFRA, s.d., p. 6) Importante ressaltar, ainda, segundo Mafra (s.d.), que a Comédia Nova estruturou-se de forma marcadamente diferente, tendo como características centrais: a) passou a incluir-se um prólogo expositivo, à maneira das tragédias de Eurípedes; b) o coro deixou de ter importância como autor para ser um mero divisor dos momentos da peça e c) a ação passou a ser distribuída em cinco partes, chamadas de atos. Essas mudanças são indispensáveis para que possamos analisar a obra de Plauto, comparativamente ao teatro de Ariano Suassuna, conforme esboçamos na apresentação deste trabalho. Cabe ressaltar que Plauto foi um autor da Comédia Nova e, como tanto, sua obra dialogou tanto com a composição artística supracitada quanto com os valores ideológicos e culturais que se relacionavam à produção deste terceiro momento do Teatro Grego. A seguir, para que se compreenda melhor esse processo, apresentaremos um breve esboço da obra do

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autor, assim como uma análise de sua produção, à guisa de colocar em questionamento alguns operadores que apontem para uma leitura comparativa com a obra de Suassuna.

2. AULULARIA: FACES DA SOCIEDADE GRECO-ROMANA NA COMÉDIA PLAUTINA Cabe ressaltar, incialmente, que Plauto era, na verdade, um poeta latino. Na verdade, a Comédia Nova apesar da origem grega, foi basicamente produzida e executada em território romano. Isso se deu pelo processo de incorporação da cultura grega em Roma e, consequentemente, de reconfiguração dos moldes de composição artística. Há de se falar, portanto, de uma comédia latina nesse período, ou, para ficar em um meio-termo, de uma comédia greco-latina (produzida em Roma, mas aos moldes gregos). Titus Maccius Plautus nasceu em Sársina, Úmbria; em 250 a.C. A respeito do autor, sabe-se que é o primeiro nome latino do qual se tem registros de textos completos. Foi responsável por uma vasta produção cômica, dentre as quais se destacam Anfitrião, Menecmos, O Soldado Fanfarrão e O Velho Avarento. Em suas peças, os tipos populares e as situações cotidianas são colocados em evidência, trazendo à tona uma comicidade voltada para as situações constrangedoras do cotidiano doméstico. Em O Velho Avarento (Aulularia), somos colocados diante da história de Euclião, um homem sovina que esconde uma grande fortuna em uma panela e, na tentativa de proteger o tesouro (que julga estar à mercê de todos com os quais se relaciona), insere-se em uma série de eventos inusitadamente cômicos, inclusive prometendo à mão da filha, por interesse, a Megadoro, seu vizinho rico. Cego pelo pensamento paranoico, Euclião prende-se na própria armadilha, perdendo o tesouro – mas, ao final da peça, recupera-o e reintegra-se à família, por meio do casamento de sua filha com o homem que esta amava verdadeiramente.

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Figura 1: Aulularia, de Plauto (FRANCKEN, 1877, p. 6)

A respeito da composição da peça, pretendemos levantar, inicialmente, alguns aspectos centrais, os quais apresentaremos como eixos nodais para a leitura que ora propomos da obra de Ariano Suassuna. Dentre estes, o primeiro se trata da forma como a personagem Euclião é construída e que aspectos estéticos e socioculturais se relacionam com sua constituição. Para tanto, cabe-nos citar, a título de exemplo, um trecho inicial da peça, em que o espectador é colocando diante de Euclião pela primeira vez: EUCLIÃO - Por favor, fecha a porta com os dois ferrolhos. Vou já. (Resmungando) Que tormento ser obrigado a sair de casa. Por Hércules, saio muito a contragosto; mas sei o que devo fazer. O presidente de nossa cúria anunciou que vai distribuir moedas de prata para os cidadãos. Se não reclamo as minhas, se não as procuro, creio que toda gente suspeitará que tenho ouro em casa. Pois não é verossímil que um homem pobre faça tão pouco caso de um ouro que não o vá buscar. Pois, agora, não obstante toda a minha cautela para que ninguém soubesse, parece que toda gente já sabe, toda gente me cumprimenta com mais amabilidade que antes. Aproximam-se, param, apertamme as mãos, perguntam-me como estou de saúde, o que é que faço, como vão os negócios. Bem, vou indo para onde tenho de ir, depois voltarei para casa o mais depressa possível. (PLAUTO, 2012, p. 12)

Esse trecho é paradigmático por dois motivos: primeiramente, por traçar o perfil tipológico da personagem, construído a partir da figura do velho avarento; em segundo lugar,

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por apresentar, já no princípio da peça, o elemento catalizador do conflito, a saber, a paranoia de Euclião. A caracterização da personagem é, nesse sentido, um elemento de crucial importância para a peça, pois está intimamente relacionada às expectativas do público e ao perfil cultural e psicológico de determinados estratos sociais preponderantes na sociedade greco-latina. Conforme mencionava-se anteriormente, a comédia é a manifestação artística das fissuras, das margens. Na representação cômica, vêm à tona os sujeitos que não são dignos de tragédia, as classes subalternas. Assim, Euclião insere-se como um elemento de mediação entre dois universos da representação – não pertence à nobreza e tampouco à criadagem, mas inserese no limiar dos conflitos de classe que servirão de estopim ao desenvolvimento do drama. Dessa forma, ao trazer à tona as particularidades da personalidade de Euclião e os prenúncios de peripécias da personagem para proteger o seu ouro, Plauto estabelece uma série de pontos de conexão importantes para a obra em questão. Afinal, O Velho Avarento está no limiar de duas culturas – modelo grego em território romano – e precisa, ao mesmo tempo, vincular-se às expectativas formais e às necessidades pragmáticas do contexto em que insere. Se a caracterização inicial da personagem já nos traz uma série de discussões extremamente relevantes para a análise da obre de Plauto, o desenvolvimento do enredo é ainda mais importante para que localizemos o perfil dramático greco-romano e, consequentemente, suas implicações para a produção contemporânea – objetivo central da presente pesquisa. O segundo elemento a ser observado é, portanto, o desenvolvimento da peça. A esse respeito, destacamos dois elementos: a divisão em atos e a presença do prólogo. A divisão em atos é um elemento importantíssimo para a construção da comédia grecolatina em sua terceira fase. Nesse quesito, podemos observar que a peça de Plauto divide-se em cinco partes, o que remontaria a uma das principais inovações do denominado Teatro Novo, no qual podemos situar a obra do autor. Em uma edição em latim da obra, datada de 1877, podemos encontrar a seguinte estruturação (FRANCKEN, 1877, p. 6):

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Argumentum I

Scena Octava

Argumentum II

Scena Nona

Dramatis Personae

Actus Tertius

Prologus

Scena Prima

Actus Primus

Scena Secunda, Tertia, Quarta

Scena Prima

Scena Quinta et Sexta

Scena Secunda

Actus Quartus

Actus Secundus

Scena Prima

Scena Prima

Scena II-VI

Scena Secunda

Scena Septima

Scena Tertia

Scena Octava

Scena Quarta et Quinta

Scena Nona et Decima

Scena Sexta

Actus Quintus

Scena Septima

Fragmenta Aululariae

Observa-se, com base neste sumário, que além da divisão em cinco atos, há a presença do prólogo, algo que, como discutiremos a seguir, também se trata de um recurso importante para a construção do teatro de Suassuna. O prólogo, tanto na obra greco-romana quanto na brasileira, insere-se como um elemento de forte contextualização pragmática e de diálogo prévio com o público, preparando-o para uma série de questões relacionadas ao conteúdo teatral e sua relação com determinada realidade cultural. Assim, prólogo e divisão em atos, mais do que meros elementos de organização textual, dizem respeito a uma série de expectativas socioculturais vinculadas ao momento de produção e recepção da obra. Exigia-se, nesse quesito, ainda, uma estruturação formal que dialogasse com um modelo, pois, para a garantia de determinado status, haveria de se deixar claro que produzia-se teatro tal como como faziam os gregos. Isso diz muito – acrescendo-se ao conteúdo da peça – sobre a sociedade romana neste período e, sobretudo, sobre o lugar da arte nessa sociedade. No prólogo, o Deus Lar se apresenta. Conta como atravessou séculos cuidando da família de Euclião e como, geração após geração, viu os homens da família se afundarem em seu próprio egoísmo. Por último, o Deus Lar narra que vê na filha de Euclião, Fédria, uma esperança e, por isso, pretende ajudá-la a encontrar um bom marido. Conclui sua fala,

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onisciente, observando as ações de Euclião, que está prestes a verificar onde escondeu seu tesouro. A partir dessa breve apresentação, o espectador já fica conhecendo o perfil dos protagonistas e qual será o eixo sobre o qual a peça será constituída. O prólogo, portanto, além de um elemento importante para a caracterização estrutural da Comédia Nova, é um recurso extremamente útil para estabelecer o diálogo com o público e situá-lo no enredo. Assim como, conforme nos aponta Gilbert Norwood (1963), para que, hoje, possamos compreender como era a sociedade greco-romana e, sobretudo, a plateia da comédia de Plauto. Nas palavras do autor, “os prólogos de Plauto frequentemente contêm apelos comuns do diretor para a plateia, o que nos dá uma boa quantidade de informação, assim como materiais sobre como o público era composto”. (NORWOOD, 1963, p. 33, tradução minha).

Figura 2: Trecho do Prólogo de Aulularia (FRANCKEN, 1877, p. 6)

Além desses dois elementos referentes à organização estrutural da peça, prólogo e ato, gostaríamos de destacar a construção tipológica de algumas personagens, à guisa de estabelecer pontos de contato com a obra de Ariano Suassuna. Para tanto, centrar-nos-emos na caracterização, específica, de dois tipos presentes na obra: primeiro, obviamente, a figura do velho avarento, representada por Euclião; em segundo lugar, Estáfila, a escrava, uma das figuras mais importantes para o desenvolvimento do enredo.

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A respeito de Euclião, já destacamos algumas características que lhe são próprias, no início deste trabalho. Cabe ressaltar, no entanto, que a principal marca da personagem (já evidenciada no título da peça) é o fato de ser avarento. A avareza de Euclião será preponderante para a caracterização tipológica e pejorativa que se constrói sobre sua figura. Assim, o autor intensifica os defeitos de Euclião por meio de uma conjugação de fatos agravantes de sua caricatura: a personagem é mesquinha, cruel, maltrata os escravos e é rabugenta com os vizinhos e com a família. Para Euclião, importa unicamente o tesouro que esconde e a necessidade de protegê-lo a qualquer preço. A caracterização de Euclião se conjuga, para reforçar o sentido da peça, com a construção de outras personagens fundamentais: os escravos. Estes são, afinal, tipos de especial relevância para a obra de Plauto como um tudo e não são escassos os trabalhos que se debruçam sobre a presença de escravos na produção do autor. A esse respeito, Kathleen Mccarthy (2009), argumenta que os escravos, especialmente em O Velho Avarento, desempenham a função de desencadeadores da narrativa, além de serem, de forma muito marcada, essenciais para a construção do próprio protagonista, Euclião. Nas palavras da autora, a ação dramática da peça abre-se com o velho homem dirigindo-se a uma velha escrava de sua casa, batendo nela, e ameaçando feri-la com ainda mais violência, caso encontrasse um porrete. O tratamento com os escravos reforça, assim, a sua caracterização como um misantropo irascível e contribui para o tema fundamental da peça: o isolamento inicial e eventual reintegração de um indivíduo desviante nas relações sociais de sua comunidade. (MCCARTHY, 2009, p. 97)

Tal característica pode ser observada com bastante propriedade, a título de exemplo, em um dos diálogos de Euclião com Estáfila, o qual, inclusive, serve de base para análise de McCarthy: EUCLIÃO - Sai, estou mandando. Vamos, sai. Por Hércules, é preciso que vás para fora, espiã, com esses teus olhos que esmiúçam tudo. ESTÁFILA - Mas, porque bates em mim, uma pobre infeliz? EUCLIÃO - Para que sejas mesmo infeliz, e para que, má, como és, leves uma vida infeliz, digna de tua maldade. ESTÁFILA - Mas por que motivo me puseste agora para fora de casa?

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EUCLIÃO - Devo, acaso, dar-te as razões do que faço, armazém de pancadas? Botate bem para fora da porta. Para lá, por favor. Vejam só como anda! É, mas sabes que é que te espera? Por Hércules, que se eu tiver hoje na mão um pau ou um aguilhão, eu mostro como te farei alongar esse passo de tartaruga. ESTÁFILA - Antes me levassem os deuses à forca que servir-te deste jeito. (PLAUTO, 2012, p. 11)

Nesse trecho, podemos observar que Euclião se constrói a partir de um antagonismo com Estáfila. Esse fato, além de evidenciar um projeto de crítica social à relação entre mestre e escravo na cultura greco-romana, insere-se como um elemento indispensável à estética de Plauto, em que tal relação (mestre e escravo) se constitui como um eixo fundador da narrativa. Além disso, verificamos, desde o primeiro contato com Estáfila, que esta não é uma escrava comum – o escravo, na obra em questão, com sua inteligência e malícia, é o principal desencadeador de peripécias e responsável pela condução do enredo.

Figura 3: Diálogo de Euclião e Estáfila (FRANCKEN, 1877, p. 6)

Tais elementos (constituição de tipos, relação mestre e escravo), conjugados com os anteriormente apresentados (prólogo e divisão em atos) servirão, a partir das próximas páginas, como base para compreensão dos diálogos existentes entre a Comédia Nova de Plauto e a obra dramática de Ariano Suassuna – seja pela aproximação entre estes elementos, seja por sua reconstrução artística por meio de paródias e ironias.

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3. O santo e a porca: revisitando à comédia clássica O Santo e a Porca, peça de Ariano Suassuna, foi escrita em 1957 e montada pela primeira vez em 1958, no Rio de Janeiro, pelo Teatro Cacilda Becker, sob direção de Ziembinski. O enredo centra-se na história de Euricão, um velho rico e avarento que esconde a fortuna que herdara do pai em uma porca de madeira. Trata-se, conforme assume o próprio autor, de uma apropriação paródica da Aulularia de Plauto (O Velho Avarento), adequada à realidade do sertão nordestino. Interessante notar, a respeito da composição da peça, que uma série de elementos presentes na Comédia Nova são utilizados por Suassuna, estabelecendo, ao mesmo tempo, um diálogo de tradição e de ruptura. Daí destacarmos, anteriormente, alguns recursos centrais do modelo greco-romano, sobretudo por sua pertinência para a compreensão do trabalho estético realizado por Suassuna. A respeito disso, discutiremos, a seguir, como o autor se apropriou destes modelos e de que forma lançou mão de tais recursos ao longo do desenvolvimento de O Santo e a Porca. O primeiro recurso a ser destacado se trata da presença do prólogo, em ambas as peças. Conforme observamos anteriormente, o prólogo foi um importante elemento incorporado pelo Teatro Novo, em diálogo com modelos da tragédia, para situar o espectador no universo dos fatos que estão sendo narrados e, também, para traçar um perfil realista dos tipos e dos acontecimentos que ali são esboçados. Recurso semelhante é apresentado por Suassuna, que na composição do prólogo da peça não só situa os fatos narrados dentro de um tempo e de um espaço especifico, como também responde às críticas de seus contemporâneos e traça, para o leitor, um rico perfil do contexto de produção e de recepção de sua obra. No prólogo de Suassuna, no entanto, de forma diferente ao que ocorria no modelo grego, a voz autoral não é diluída em figuras do imaginário mítico, mas trazida à tona diretamente pela inserção da figura do autor no cerne da composição textual. Para que possamos observar com clareza a forma como esse prólogo é construído e como se trata de um importante elemento para a visualização de seu universo contextual,

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apresentamos o trecho em que o autor responde às críticas que lhe foram atribuídas à época da primeira montagem de O Santo e a Porca: Considero-me um realista, mas sou realista não à maneira naturalista – que falseia a vida – mas à maneira de nossa maravilhosa literatura popular, que transfigura a vida com imaginação para ser fiel à vida. Não tem sentido, portanto, dadas as características de meu teatro, dizer como disseram alguns críticos ilustres, que é inverossímil que um avarento ignorasse uma operação bancária e perdesse, assim, seu tesouro. Em primeiro lugar, mesmo que isso fosse impossível na vida, não o seria em meu teatro, onde um cangaceiro se deixa enganar por uma flauta e um conto do vigário – no caso, o Padre Cícero – e onde os anjos se vestem de judeus e os diabos de frades ou de vaqueiros; e em segundo lugar, mesmo na vida, o caso é tão possível que aconteceu; foi em Taperoá, com uma pessoa avarenta, por sinal pertencente à minha família. Na agência do Banco do Brasil, em Campina Grande, onde ela foi trocar seu dinheiro, avisada por um tio meu, juntou gente para ver aquelas notas, guardadas durante tanto tempo que ninguém as conhecia mais. (SUASSUNA, 2012, p. 34)

Ao observarmos esse trecho, portanto, fica claro que o prólogo desempenha um papel primordial na composição de Suassuna. Com este, esboça-se uma série de elementos com os quais o espectador deverá se ambientar para imergir com maior propriedade no universo ficcional esboçado pelo autor e para visualizar de forma mais panorâmica a proposta de um diálogo intertextual e, ao mesmo tempo, condizente com a realidade que o cerca. Assim como a comédia clássica, a arte de Suassuna propõe-se “realista”, pretende ser uma mimese, uma representação da realidade nordestina e dos “tipos” que a constitui. Além do prólogo, a divisão em atos é um elemento muito bem apropriado pelo teatro de Suassuna. Assim como, na comédia clássica, a divisão em atos permitia um deslocamento do espectador pelo enredo, evidenciado tensões e estabelecendo uma adesão à realidade representada nos palcos, a suspensão proposta pela divisão da peça de Suassuna estabelece o mesmo tipo de diálogo com o público. Além de “segurar” o espectador, de conduzi-lo, a divisão em atos é responsável por estabelecer os espaços sociais de cada personagem, seus locais de fala. Assim, se no primeiro ato temos esboçado um diálogo entre patrão e empregada, no outro ato teremos um diálogo entre dois vizinhos (o rico e o pobre), no outro, os amantes, etc. Essa sucessão de momentos,

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portanto, contribui para o delineamento dos tipos a partir de uma demarcação clara do local a qual pertence e, sobretudo, de onde para onde poderá falar. Observamos que Suassuna incorpora a estrutura da Comédia Nova, sobretudo do teatro de Plauto, com bastante propriedade: a partir do prólogo e da divisão em atos, o autor nos coloca diante de episódios cotidianos de determinada realidade e, com a intermitência dos lugares de fala, diante de personagens que seriam arquetípicas do sertão nordestino, ricamente presentes na cultura popular ali representada. A esse respeito, um terceiro elemento, nesse caso, paratextual, enriquece a proposta de Suassuna: o uso de xilogravuras no início de cada ato. Este elemento, em especial, bastante característico da cultura nordestina, sobretudo de nossa mundialmente conhecida literatura de cordel, inserem o leitor da peça em um universo próprio, com códigos específicos, e intensificam a proposta autoral de estabelecer uma representação mimética do cotidiano e da vida cultural nordestina em sua produção literária.

Figura 4: Ilustrações de O Santo e a Porca (SUASSUNA, 2012, p. 38)

Além destes elementos de organização estrutural da peça, destacamos a composição das personagens como um eixo nodal entre a obra de Suassuna e a de Plauto. Destacamos, especificamente, a caracterização das personagens subalternas – os escravos e empregados. Se, na obra de Plauto, o tratamento aos escravos era uma das marcas centrais para a estruturação da narrativa e para o contato desta com determinada realidade social, na obra de Suassuna isso acontecerá de forma análoga.

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Emergem, dessa forma, em O Santo e a Porca, empregados que são o arquétipo de um determinado tipo de “malandragem” nordestina, já presente em personagens como Chicó e João Grilo, em O Auto da Compadecida, por exemplo. Assim, os empregados ganham ricos contornos no teatro do autor, sendo responsáveis pela construção as peripécias e fundamentais para o desdobramento do enredo. Para a nossa análise, destacamos a personagem Caroba que seria, na apropriação paródica, equivalente à Estáfila. Na obra de Suassuna, Caroba é a empregada de Euricão e, assim como Estáfila, em Aulularia, estabelece na narrativa um jogo de relações de poder que é tanto necessário à contextualização da peça quanto à caracterização, por meio da antítese, da personagem protagonista – o velho avarento. Caroba é, portanto, um contraponto à figura de Euricão (O Euclião de Suassuna), mostrando ao público o quanto este é desprezível no trato com os empregados e o quanto é desconfiado de tudo e de todos. Além disso, Caroba tece toda a teia de intrigas que constitui o enredo da peça, desde o casamento da filha de Euricão, até o roubo do tesouro do velho (a porca de madeira). Nesse jogo, de forma criativa e bem-humorada, a empregada coloca os mestres uns conta os outros e os manipula para benefício próprio. Não seria incorreto afirmar, pois, que a trama de Suassuna só e torna possível pela atuação desta personagem “secundária”. Daí mais uma aproximação com a comédia plautina: O Santo e a Porca é, também, uma comédia dos subalternos, ou seja, uma representação predominantemente marcada pela atuação e, até mesmo, protagonismo das personagens tidas como de menos importância para o teatro clássico, a saber, os empregados, os escravos, as pessoas pobres, etc. A respeito do protagonismo de Caroba, destacamos o trecho abaixo, a título de exemplo: MARGARIDA – Você acha que é possível? DODÓ – Ouvi papai falar em casamento mais de uma vez, para sondar minha opinião. MARGARIDA – E se for, o que é que a gente faz, meu Deus? CAROBA – É deixar as coisas como estão. Se o senhor tiver habilidade, pode ser que o seu pai não o reconheça, pelo menos hoje. Quando ele chegar, já é quase noite. Com a corcova, a perna curta, a barbicha e a boca torta, o senhor bem que pode passar por outro. Então a gente vê o que faz, examina tudo, vê se é casamento mesmo e pode então partir daí para resolver tudo.

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DODÓ – Como? CAROBA – Eu sei lá, na hora se vê. MARGARIDA – (A Dodó) Você acha que está bem assim? CAROBA – Pode ser que não esteja, mas é o jeito. (SUASSUNA, 2012, p. 62)

No excerto em questão, Margarida, filha de Euricão, suspeita que um rico coronel da cidade pretende desposá-la. A moça, no entanto, é apaixonada pelo filho deste mesmo coronel, Dodó. Ambos (Margarida e Dodó) estão desesperados com a possibilidade de seu amor se tornar proibido e, angustiados, conversam com Caroba a respeito da situação. O que podemos observar neste momento em particular, é que Caroba assume as rédeas da situação e concatena a melhor forma de livrar os amantes de um destino indesejável. A cena é paradigmática por mostrar a centralidade de Caroba no desdobramento das ações: A personagem se insere de forma nuclear na tentativa de resolução de vários conflitos e, com isso, acaba por manipular as personagens com o objetivo de ajudá-las, sim, mas também de nitrir-se das oportunidades para beneficiar-se de alguma maneira. É assim que Caroba será responsável por restabelecer vínculos amorosos desfeitos, arranjar casamentos e, é claro, tornar público o tesouro de Euricão – desmascarando o patrão mentiroso. Convergimos, portanto, a partir de tais observações, para a constatação de que a atuação de Caroba se relaciona diretamente com a de Euricão. Sem que houvesse essa personagem para expor o seu segredo, mesmo que de forma indireta, por meio da manipulação de situações, não haveria o eixo estruturador da peça. Afinal, como já é sugerido desde o título, a descoberta da porca é a grande chave para se desvendar todos os enigmas que rondam a figura misteriosa do velho avarento. Ao final da peça, será Caroba, irônica, a responsável por proferir o destino cruel de seu patrão, quando todos os nós se desfazem e vem à tona a difícil realidade: o tesouro de Euricão, na verdade, não valia nada. A porca de madeira continha, na verdade, dinheiro fora de circulação. O velho avarento, sem aquilo a que mais se apegara, estava completamente só: MARGARIDA – Seu Eudoro tem razão, papai, o mundo não se acabou. Tudo pode recomeçar, o senhor vende esta casa e vai morar conosco.

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EURICÃO – Você não está entendendo nada! E como ficaria eu? Você casa com Dodó, Benona com Eudoro, Caroba com Pinhão. Não vê que eu fico só? No meio disso tudo, com quem casaria eu? CAROBA – Com a porca. E, se ela não serve mais, com Santo Antônio. (SUASSUNA, 2012, p. 238)

Forte, incisiva, a fala de Caroba é a voz da consciência recaindo sobre a figura decadente de Euricão. É a constatação de que, após anos de desrespeito aos outros, com base na certeza de um dinheiro que seria sua bengala na velhice, Euricão, na verdade, ao contrário do Euclião plautino, perdeu tudo aquilo que deveria realmente importar: sua família e seus amigos. Nesse momento, em um exame de autoconsciência, a própria personagem coloca-se diante do dilema que se descortina, como que uma catarse ou descoberta epifânica: EURICÃO – Estão ouvindo? É a voz da sabedoria, da justiça popular. Tomem seus destinos, eu quero ficar só. Aqui hei de ficar até tomar uma decisão. Mas agora sei novamente que posso morrer, estou novamente colocado diante da morte e de todos os absurdos, nesta terra a que cheguei como estrangeiro e como estrangeiro vou deixar. (SUASSUNA, 2012, p. 238)

O que há de se destacar, no entanto, a respeito deste momento final da peça, é que, apesar de construir-se em diálogo intertextual com a obra de Plauto, a peça de Suassuna encerrará com uma subversão. Se, na comédia clássica, o desfecho era sempre o momento da festa e da farra, em O Santo e a Porca, será o da penitência e da autocrítica. Euricão, ao final da peça, está sozinho, pensativo, cheio de dúvidas e angústias. De forma marcante, a última frase da peça é uma pergunta: “Que quer dizer isso, Santo Antônio? Será que só você tem a resposta? Que diabo quer dizer tudo isso, Santo Antônio” (SUASSUNA, 2012, p. 240). O Santo, assim como a porca, no entanto, são meras figuras de madeira e barro, não podem responder as angústias de Euclião. Assim, antagonicamente à comédia plautina, em Suassuna não há mais salvação para o homem moderno, com seus deuses e mitos em decadência, com a racionalidade superando a crença cega. Há, apenas, o silêncio. Um silêncio contemplativo, intimista, um voltar-se do homem para si mesmo na tentativa de compreender o que antes era facilmente explicável pela existência do mundo metafísico. O silêncio do homem que, no final das contas, percebe que

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tudo o que acreditava está vencido, sendo substituído por um novo mundo, marcado pelo egocentrismo e pela solidão.

Considerações Finais O Santo e a Porca é uma obra única na nossa literatura e na nossa dramaturgia. Suassuna, com sensibilidade e precisão, esboça uma história que, apesar do diálogo com o teatro clássico, transborda suas fronteiras para constituir-se como um retrato preciso da realidade brasileira contemporânea e das relações socioculturais que alicerçam nossas estruturas de classe e de convivência social. Além do caráter regionalista, no entanto, a obra de Suassuna também estabelece patamares para uma reflexão sobre o sujeito moderno e seu deslocamento diante das incertezas e angustias do mundo contemporâneo. Dessa forma, os tipos clássicos se reconfiguram para personagens mais densas, complexas, que se revelam por meio do estereótipo, mas indicam uma série de nuances que os arquétipos não conseguem dar conta. Nesse contexto, Caroba e Euricão, os dois personagens que pretendemos destacar no presente trabalho, mostram as sutilezas da subjetividade e a riqueza da personalidade humana por trás das aparências e das categorizações sociais. Concluímos, portanto, com a certeza de que a obra de Suassuna se situa como um campo rico de debates, que está longe de ser esgotados com essa breve análise que aqui apresentamos. O diálogo com o teatro clássico, a construção da narrativa e das personagens e a organização arquitetural do texto dramático-narrativo em Suassuna são campos profícuos para debates que podem sugerir novas perspectivas analíticas e conceituais para a crítica literária contemporânea. De nossa parte, esperamos ter contribuído minimamente para que se visualize, mesmo que a partir de um mero vislumbre, a riqueza e a originalidade da obra deste grande mestre da nossa literatura, assim como a precisão estética de suas narrativas – sempre vinculada, inclusive, a uma proposta política de mostrar as cores da cultura nordestina e, por extensão, as múltiplas faces da arte brasileira. Suassuna, ao dialogar com os tipos da comédia clássica, constrói uma obra didaticamente importante, mas faz mais: transcende os moldes greco-romanos para evidenciar que apesar do universalismo da arte antiga, o sujeito e o mundo ainda estão longe de

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serem delimitados ou fotografados pela literatura. Um universo dinâmico, em transformação, essa é a grande matéria da obra de Suassuna.

Referências ARÊAS, Vilma. Iniciação à comédia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. ARISTÓTELES. Poética. Trad. por Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Editora Globo, 1966. BRANDÃO, Junito. Teatro grego: Eurípides, Aristófanes. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, s.d. BRANDÃO, Junito. Teatro grego: origem e evolução. São Paulo: Ars Poética, 1992. São Paulo: Cultrix, 1973. FREIRE, António. O teatro grego. Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia, 1985. MAFRA, Johnny José. O legado da comédia latina. Belo Horizonte: Edição do Autor, 2011 MAFRA, Johnny José. A comédia e suas origens na Grécia: síntese histórica. Belo Horizonte: s.n.; s.d. MAFRA, Johnny José. Cultura clássica grega e latina. Belo Horizonte: Editora Puc Minas, 2010. MCCARTHY, Kathleen. Slaves, Masters, and the Art of Authority in Plautine Comedy. Princeton: Princeton University Press, 2009. MENEZES, Eduardo. O riso, o cômico e o lúdico. REVISTA DE CULTURA VOZES, Petrópolis. Ano 68, v. 68, n. 1, Jan. /fev. 1974. p. 5-16. NORWOOD, Gilbert. Plautus and Terence. New York: Cooper Square Publishers, 1963. PLAUTO, Tito Mácio. O Velho Avarento. Trad. Aída Costa. Org. Johnny José Mafra. Belo Horizonte: s.n., 2012. STEWART, Roberta. Plautus and Roman Slavery. Chichester: John Wiley & Sons, 2012. SUASSUNA, Ariano. O Santo e a Porca. 26. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012. [Recurso eletrônico]

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A INFLUÊNCIA DA CRÍTICA MUSICAL DE GABRIEL PEVERONI EM SUA OBRA EL EXILIO SEGÚN NICOLÁS (2004) Eulálio Marques Borges Mestrando em Estudos Literários - Literaturas Moderna e Contemporânea - pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: eulaliomarques@hotmail.com

Resumo: Nascido no Uruguai e parte de uma geração de escritores que sempre se esforçou, e continua se esforçando, para distanciar-se da literatura latino-americana mais realista e calcada no nacionalismo, Gabriel Peveroni encontrou na música, em especial nos estilos pop e rock, uma aliada ao momento de construir uma narrativa moderna, urbana e em nada folclórica. Seu trabalho como crítico musical de uma classe considerada under,nas revistas Posdata e Rolling Stone, assim como o conhecimento aí adquirido, se transpuseram para a obra que aqui analisamos, El exilio según Nicolás (2004), que trabalha também com tópicos da ficção científica e do multiterritorialismo. Parte de um trabalho mais amplo e detalhado, este artigo se baseará em entrevistas concedidas pelo próprio Peveroni e nos pressupostos teóricos de Aínsa (2012) para mostrar como a música, em especial a produzida pelos grupos Suede, Los Redondos e Sex Pistols, influenciam a narrativa em que aqui nos debruçamos, ajudando-nos a compreendê-la melhor através de vozes heterogêneas que surgem de um ambiente externo. Palavras-chave: Música. Peveroni. Pop. Rock.


Introdução Nascido em 1969 na cidade de Montevidéu, onde ainda vive, Gabriel Peveroni começou sua carreira de escritor publicando poesias. Em entrevista concedida a J. Pardo (2005), o autor afirma que se aproximou do gênero por uma necessidade emocional, por enxergá-lo como uma ponte capaz de comunicar-se com os romances, o teatro e que, mesmo tendo se distanciado desse tipo de produção com o passar dos anos, continua considerando-o “[...] el arte mayor de laescritura, al igual que elcuento, y que por esarazóndebe ser defendido de los oportunistas y talenteadores.” (PEVERONI, 2005, p.10). Entre seus vários livros de poemas se destacam Princesa deseada (1991), El bordado eterno (1995), Poemas religiosos (1996), mcMorphine (2006) y El show debe continuar (2008). Outro gênero ao qual se dedicou e pelo qual recebeu reconhecimento foi a dramaturgia, principalmente por meio das obras Sarajevo esquina Montevideo (2003), El hueco (2004), Luna roja (2006), Berlín (2007), Exterminio (2008),El gimnasio (2013) eGroenlandia (2005), essa última ganhadora do Prêmio Nacional de Dramaturgia em seu mesmo ano de produção, e todas encenadas no Uruguai sob direção de MaríaDodera. Além de sua produção como poeta e de seus romances levados ao teatro, publicou os livrosLa cura (1997), Tobogánblanco (2009) e El exilio según Nicolás (2004), foco deste trabalho. El exilio según Nicolás foi escrito por Gabriel Peveroni durante um período em que os efeitos da crise financeira uruguaia persistiam em todas as camadas sociais do país. Assim, podemos afirmar que a situação econômica pela qual passava o Uruguai influenciou o autor ao momento de criar a história de Nicolás, um sujeito de trinta anos que mente a seus amigos afirmando estar em Miami com sua família quando, na verdade, decidiu exilar-se em seu próprio apartamento e criar uma espécie de reality show online chamado Vidas Cruzadas. Os motivos que o levam a tal atitude são, em parte, pessoais, mas também possuem relação com o momento conturbado de seu país, realidade que aqui funciona como um pano de fundo para o desenvolvimento de uma história que foge justamente do realismo típico das produções latinoamericanas e vai de encontro aos gêneros como o suspense e a ficção científica, dialogando também, e a todo momento, com a música pop e rock de língua inglesa ou espanhola. Considerando que este artigo é um recorte de um trabalho mais extenso, detalhado e que analisou três aspectos dentro do livro El exilio según Nicolás (o uso de elementos pertencentes

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à ficção científica, os múltiplos territórios e a dialética entre música e literatura), nos dedicaremos a analisar apenas este último item, apoiando-nos em Aínsa (2012), em entrevistas concedidas pelo próprio Peveroni (2005, 2013), nas biografias de bandas e cantores e nas análises de letras de músicas mencionadas ao longo da narrativa. Dessa forma, a fim de entender melhor como Gabriel Peveroni constrói uma trama moderna, urbana e nada regionalista, pretendemos por meio destetrabalho analisar a influência pop e rock dentro de El exilio según Nicolás e sua contribuição para a estruturação de uma história que foge do considerado tipicamente latino-americano.

A dialética entre música e literatura na narrativa hispano-americana moderna Em seu texto “La voracidade antropológica delnuevo realismo”, Fernando Aínsa (2012) comenta um pouco sobre a incorporação de tópicos e temas da cultura popular ao patrimônio literário latino-americano atual, que se enriquece com a condensação de componentes como o cinema, o futebol e, em especial, a música. De acordo com o autor, essa abertura que faz dialogar diferentes formas de arte e de expressões populares supõe uma assimilação dos produtos culturais tradicionalmente relegados e considerados subgêneros, como os folhetins, a radio e as telenovelas, mas que são representativos “[...]delimaginariocolectivo presente enmitos e íconos de lasociedad de consumo […]” (AÍNSA, 2012, p.23) com a chamada “literatura literária”. Além disso, a partir deste diálogo entre distintas formas de produzir arte, a visão da literatura como um produto já feito deu lugar à investigação dela como uma produção em que seu caráter social se manifesta em seus materiais, bem como em seu processo constitutivo, o que expressa o caráter e as práticas sociais da comunidade em que está inserida (BAKTIN apud AÍNSA, 2012). No fragmento que segue vemos um pouco melhor a visão que Aínsa tem sobre a nova narrativa que se produz na América Latina: En general, el estilo de esta nueva ficción es más clásico y menos barroco, más atenido a la narratividad que a la experimentación formal, donde las estructuras internas son menos visibles y se privilegia el argumento, la historia con minúscula y el testimonio vital más entrañable. Buena parte de esta producción elige como estilo un realismo descriptivo, cuando no testimonial, en el que pueden reconocerse sin dificultad los lectores. La palabra, solemne y responsabilizada del pasado, cede el tono grandilocuente, cuando no retórico de que se creía investida, a la crónica burlona y desacralizada de la aventura del latinoamericano en el mundo. En la fiesta de la lengua a la que se entrega

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recupera giros y expresiones cotidianas presentes en diálogos callejeros, “fragmentos” de todo tipo, eslóganes publicitarios y letras musicales de tangos, boleros y rancheras, citas literarias, directas referencias cinematográficas, al teleteatro, incluso el circo y al deporte, especialmente el fútbol y el boxeo (AÍNSA, 2012, p.24).

A música, seja com o tango, o bolero, a salsa ou o chá-chá-chá, todos estilos tipicamente hispano-americanos e populares, possui um espaço privilegiado neste jogo polifônico de influências com a literatura. Aínsa (2012) afirma que estes ritmos, que partem “[...]de un discurso enunciado desde la marginalidad (cuando no de la exclusión), para insertarse en el estallido de la pluriculturalidad y de la hibridación cultural contemporánea del que la música es su vehículo más emblemático […]” (AÍNSA, 2012, p.26) contribuem muito no momento de produzir a literatura realista atual. Como consequência, a leitura que a percepção musical do texto literário nos permite ter deixa de lado a simples visão abstrata do representado e se amplia a uma “audição” em que se escutam diferentes discursos culturais, vozes heterogêneas dos diferentes personagens e distintos níveis de expressão de uma época (BAKTIN apud AÍNSA, 2012). Ainda de acordocomAínsa (2012): En las interferencias entre composición musical y estructura novelesca se concentra lo mejor del espíritu de esas “voces que están en el aire” de un continente, donde música y literatura comparten una aventura creativa cada vez más “polifónica” y “heteroglósica” (AÍNSA, 2012, p.25).

Entretanto, na discussão proposta por Fernando Aínsa há um problema que se dá devido à sua visão idiossincrática sobre a América Latina. Ao mencionar os ritmos musicais considerados típicos do subcontinente, como a salsa, o tango, o bolero e o chá-chá-chá, outros estilos de origem estrangeira, porém de grande influência em muitos países hispânicos, como o pop e o rock, são ignorados por ele apesar de fazerem parte da realidade musical da região. É que, ainda que estejam em um mesmo continente e tenham passado por uma história muito similar, as nações latino-americanas não são idênticas em suas expressões culturais, e nem homogêneas internamente, o que consequentemente as faz incluir em suas literaturas realidades distintas e com influências musicais que não se restringem apenas ao que se considera hispanoamericano desde uma perspectiva tradicionalista e redutora. Essa ideia de um continente homogêneo que indiretamente difunde Aínsa se opõe à defendida por Fresán (2012) 1, pela

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Para mais informações, pode ser consultado o texto Boomtown o Diario para una relectura de Cienaños de soledad y apuntes para unproyecto de serie para la HBO, disponível em http://www.cervantesvirtual.com/.

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antologia McOndo (FUGUET e GÓMEZ, 1996) e por Peveroni (2004),que propõem mostrar ao mundo uma visão menos condescendente da América Latina em relação ao que se vinha estabelecendo nas segunda, terceira e quarta gerações do boom latino-americano e do chamado Realismo Mágico por nomes canônicos como o de Gabriel García Márquez.Nessa construção de uma literatura menos realista e tradicional, a música possui uma importância ímpar, principalmente na obra de Peveroni, como veremos adiante.

Gabriel Peveroni e sua relação com a música Parte de uma geração que começou a publicar nos anos de 1990 e que se posicionava contra a narrativa histórica e preocupada com o revisionismo do passado, Peveroni sempre valorizou seu compromisso com a literatura em si mesma e com temas relacionados ao tempo presente, à cidade em que vive, ao seu barulho típico, à modernidade e aos temas polêmicos como as drogas. Dessa forma, podemos afirmar que ele se encaixa em um grupo que tinha e ainda tem o desejo de romper com uma literaturafolclórica e nacional marcada pelo tradicionalismo, pelo realismo e valorizada não apenas pelas editoras uruguaias, mas também pelo conservador público leitor do país. Em entrevista realizada por Diego Recoba (2013) para o blog Ya Te Conté, o autor de El exilio según Nicolás deixa clara a sua filiação à escritores como Alberto Fuguet, um dos organizadores do livro McOndo(1996)2, e Gustavo Escanlar, escritor uruguaio mais preocupado pela estética de suas produções que com seu conteúdo sociale que faleceu muito jovem, transformando-se no mito da geração de Peveroni, aqueles que foram adolescentes no Uruguai dos anos oitenta. A música encontra um espaço fundamental em vários trabalhos de Gabriel Peveroni. Em entrevista concedida a Rivera (2013), o escritor afirma que sempre gostou de escrever mais sobre a música uruguaia ou latino-americana que sobre o cinema ou a literatura em si mesma, algo que fez e ainda faz como jornalista, pois este espaço lhe dá mais oportunidade de discussão

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O grupo McOndo, nome de alusão irônica à famosa cidade de Macondo, de Gabriel García Márquez, tinha como principais proposta e objetivo revelar uma faceta mais moderna e desconhecida da literatura produzida na América Latina. Assim, lançou-se em 1996 uma antologia de contos homônima que reunia escritores latino-americanos desconhecidos do grande público na intenção de provar a existência de uma literatura regional não consoante com os estereótipos românticos e folclóricos legitimados pelas grandes editoras internacionais e inclusive pelas hispânicas.

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e de polêmicas. O trabalho de crítico musical se desenvolveu, primeiramente, na revista Posdata, onde entre suas várias funções lhe cabia escrever sobre cantores da classe maisunder, como David Bowie, sendo que atualmente é também correspondente da Rolling Stone e escreve regularmente na revista uruguaia Caras, Caretas. Na literatura, sua relação com a música é visível em obras como 50 ciudadesmusicales(2013), em que seu personagem principal viaja a várias partes do mundo acompanhado da sonoridade de diferentes bandas, cada uma representando um dos lugares visitados. El exilio según Nicolás, foco de análise desse artigo, também nos mostra essa relação entre música e literatura proposta por Peveroni, que aqui se dedica a registrar uma geração uruguaia moderna, inquieta, conectada ao mundo, atenta aos novos meios de comunicação e influenciada por tudo o que é pop ou rock, opondo-se totalmente aos estilos considerados tipicamente latino-americanos como o tango, o chá-chá-chá e a salsa. A dialética entre música e literatura dentro do livro se desenha a partir da interferência musical na narrativa em si e nas características psicológicas dos personagens, todos eles influenciados porcantores e bandas de língua inglesa ou espanhola que se distanciam dos estereótipos mais folclóricos. Esse traço fundamental para a compreensão de El exilio según Nicolás nos permite inferir que Gabriel Peveroni é um autor que se opõe à conhecida e errônea concepção do tipicamente latinoamericano, como comprovaremos a seguir.

O diálogo entre música e literatura em El exilio según Nicolás Como afirmamos anteriormente, ainda que se limite a discutir as influências dos ritmos musicais latino-americanos na literatura contemporânea, Aínsa (2012) assinala corretamente que as vozes externas de cantores e/ou bandas criam uma musicalidade nas narrativas atuais, tornando possível a escuta de outros discursos culturais, outras vozes heterogêneas de uma determinada época e que não pertencem ao narrador.Em El exilio según Nicolás, o protagonista Nicolás é a representação de muitos uruguaios desejosos de sair do país durante a grave crise financeira de 2002 e que se sentiam sem lugar em sua própria terra natal. Esse sentimento de não pertencer a uma determinada sociedade, que aqui se exemplifica pela ideia de não se sentir o “típico latino-americano” e, consequentemente, estar incômodo com a cultura na qual nasceu,

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pode ser visto pela preferência dada pelo personagem principal a cantores/bandas norteamericanos e europeus, como podemos ver no fragmento abaixo: Se ve que le gustaba el rock en español, situación que no me molestó pese a que mis oídos estaban puestos a lo que pasaba en el pop inglés. Para mí el mundo se reducía a Pulp, Starsailor, Radiohead, Placebo y los inagotables Smiths, el grupo que mejor había sobrevivido el dictamen de tiempo entre los exitosos de los años ochenta (PEVERONI, 2004, p.149-150).

Percebe-se, portanto, que Nicolás tem clara a sua preferência por grupos estrangeiros de pop e de rock. Nesta seleção se encontram diferentes cantores e bandas que muitas vezes são apenas mencionados, mas que já demonstram a valorização, pelo protagonista, do que é produzido fora do Uruguai. São elesLos Redondos, Muse, Elvis Presley, Suede, Christina Aguilera, Eminem, Bob Dylan, Bob Marley, Pulp, Starsailor, Radiohead, Placebo, Smiths, Marilyn Manson, Los Ilegales, Michael Jackson, Butthead, Café Catuba, Madonna, Chemical Brothers, Andrés Calamaro, Sex Pistols, El HombreBurbuja, Soda Stéreo e Shakira. Neste seleto grupo ganham um principal destaque abanda britânica Suede, a argentina Los Redondos e a polêmica Sex Pistols, por manterem todas elas uma especial relação entre suas composições e os personagens/momentos da história construída por Peveroni. Surgida em 1989, na Inglaterra, com Brett Anderson como vocalista, Bernar Butler na guitarra, Matt Osman no baixo e Simon Gilbert na bateria, Suede divulgou seu primeiro single, “The Drowners”, em 1992, conquistando a crítica, o público e lançando no ano seguinte seu primeiro álbum. Com grande influência do glam rock, estilo musical surgido nos anos de 1970caracterizado por buscar a frescura do antigo rock’n’rollperdida nas letras do rock psicodélico e por incluir em suas roupas elementos considerados femininos, como a maquiagem, estampas de leopardo, botas de pluma e purpurina3, o CD teve um grande êxito, fazendo com que o grupo lançasse, nos anos seguintes, discos que os consolidaram no mercado fonográfico europeu. O lançamento de Head Music (1999) deu início à última etapa do grupo, já marcada por algumas polêmicas que envolviam o vício de Anderson a heroína; nesses anos, o eletrônico foi incorporado à música produzida pela banda, que se separou em 2002 e se reuniu

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Marc Bolan e David Bowie foram artistas precursores desse movimento. Vale ressaltar que Gabriel Peveroni, quando trabalhava na revista Posdata, se dedicava justamente a discutir sobre os artistas considerados unders, o que comprova sua relação de longa data com um estilo musical que foge dos estereótipos latino-americanos.

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novamente em 2011, lançando desde então os discos Dog Man Star (remastered) (2011), Bloodsports (2013) y Night Thoughts (2016). (WIKIPEDIA, 2016). Entre as canções de Suede que aparecem em El exilio según Nicolás se encontram duas que integram o CD Head Music. São elas: “She’s in fashion”, um pop rocktranquilo, quefalasobreumamulhermoderna, queaparecenarádio, natelevisão e nacapa das revistas, comovemos no fragmento “She's the face on the radio/She's the body on the morning show/She's there shaking it out on the scene/She's the colour of a magazine/And she's in fashion/She's in fashion” (VAGALUME, 2016); a segundamúsica é “Savoir Faire”, quetrata de umamenina sexy, rica, levementegrosseira, a seumodoexcêntrica e, principalmente, livre: “She live in a house she stupid as a mouse/and she going where the lights are on/She shaking obscene like a fucking machine/and she's gone gone gone/She cooking crack giving us heart attack/and she living in a kooky show/She open your mind for the millionth time/and then go gogo” (VAGALUME, 2016). As duas canções mencionadas dialogam bem com a personagem María, o amor mal resolvido de Nicolás que se caracteriza por ser uma jovem rica, sexy em sua simplicidade, moderna, tranquila e livre, ainda que tenha alguns momentos de instabilidade emocional que a fazem distanciar-se de Nico (como muitas vezes é chamado), ou tomar decisões passionais repentinamente. O verso “Shelives in a houseshe'sstupid as a mouse”, em “SavoirFaire”, evidencia algumas das atitudes mais impulsivas que ela tem com o protagonista, quem a deixa confusa devido às suas ações inexplicáveis, como a suposta mudança a Miami.Por outro lado, a passagem “Oh andifshetellsyouisthenismylove”, de “She’s in fashion” (VAGALUME, 2016),pode representar o poder que María tem sobre Nicolás, que depois de tantos anos ainda continua apaixonado por ela. Na citação abaixo vemos uma melhor descrição da personalidade de María desde a perspectiva sentimental do protagonista: María pertenece a esa raza de los que no se caerán nunca y seguramente se deba al alto grado de inocencia que ella tiene en dosis ilimitadas. Prueba de ello es que es capaz de disfrutar como nadie de las pequeñas cosas, que son en definitiva las más importantes. Por esa misma razón es que aparece y desaparece sin plantearse malentendidos. Simplemente lo hace, como si en verdad el tiempo no transcurriera. Esa cualidad suya me llevó a bastantes sinsabores, especialmente por la capacidad de recordar los detalles más pequeños de algo que sucedió meses o años antes. Y como yo no tengo memoria; mejor dicho tengo aunque sensiblemente distorsionada, siempre se

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hizo difícil que pudiéramos compartir cada presente que yo exigía y ella banalizaba. Mientras yo le ponía una energía descomunal a cada cosa que planeaba para conquistarla, María simplemente estaba allí, ligera, etérea, a su manera disfrutando. (PEVERONI, 2004, p.232-233).

Mais que o diálogo que estabelece com María, as duas canções de Suede que compõem o CD Head Music e que Peveroni usa e menciona ao longo da trama são o que mantêm a união dos dois personagens. Isso mostra que, mais do que descrever alguém em partes, aqui a dialética entre música e literatura nos ajuda também a compreendem um sentimento entre uma pessoa e outra e a relação estabelecida por ambas, como vemos nos fragmentos que seguem: Pasaba largos momentos mirando por la ventana, sintiendo la desesperación en las lágrimas que me corrían por la cara, y otros en que ponía la música a todo volumen, preferentemente ese disco de Suede, el único que lograba evadirme. (PEVERONI, 2004, p.102). El auto era un Fiat Palio, del padre de María, y ella se puso al volante sin descuidar un detalle. Obviamente me quería provocar, aunque los otros dos no se dieran cuenta. Puso el disco de Suede, que seguramente había vuelto a comprar. Se salteó los dos primeros tracks: “She’s in fashion” y la voz amanerada de glam rock inundó el mínimo espacio del auto. (PEVERONI, 2004, p.272).

Se o grupo britânico Suede possui uma intrínseca relação com o momento presente da vida de Nicolás, o de rock argentino Los Redondos é o pano de fundo para o reencontro entre o protagonista e o seu antigo melhor amigo, Rodión. Essa tentativa de reconciliação não poderia vir acompanhada de outros cantores, já que a banda liderada por Indio Solari fez parte de uma importante fase do passado dos dois personagens, como vemos na passagem seguinte: Ya lo dije, iba para atrás y para adelante. Canciones hay muchas, pero ninguna tan encantadora y fulminante como “Ji JiJi”, de los Redondos, esa que está en el disco Oktubre, de cuando todavía eran una buena banda. “No lo soñé”, gritábamos con Rodi hace unos cuantos años, acompañando la voz del Indio en cualquier calle. Que pasaran esa canción en una discoteca suponía todo un acontecimiento, y habíamos descubierto que existía un solo lugar en todo Montevideo en donde se atrevían a pasar a los Redondos y cosas viejas de los Cure y los Damned (PEVERONI, 2004, p.182-183).

Los Redondos iniciaram sua carreira na cidade de La Plata, Argentina, em 1976. Suas primeiras apresentações misturavam música, teatro e ballet, e os shows em pubs e casas noturnas vieram apenas em 1981, uma mudança que impulsionou a trajetória do grupo, fazendoo gravar um primeiro demo no ano seguinte e o CD de estreia, Gulp!, em 1984.O reconhecimento massivo chegou um pouco mais tarde, em 1986, com o disco Oktubre, que conseguiu uma boa avaliação do público e da crítica principalmente por conta dos hits “Fuegos

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de Oktubre”, “Semen-up” e “Jijiji”. A partir daí, as apresentações da banda ganharam uma maior dimensão e eles passaram a se apresentar em grandes estádios como o Racing Club de Avellaneda e o Chateau Carreras, lugar do concerto que terminou de maneira trágica, com a morte de um fã. A separação aconteceu em 2001 devido à divergências entre os membros e, desde então, todos eles seguem carreira solo (WIKIPEDIA, 2016). Ainda que durante sua etapa final o grupo tenha enfrentado problemas entre seus integrantes, Los Redondos são considerados hoje em dia uma das bandas de rockargentino mais influentes em toda a história do gênero no país; sua influência é perceptível nas bandas La Renga, Callejeros, Los Piojos, Los Gardelitos e várias outras. Além disso, com suas letras fortemente marcadas pelas metáforas e pela influência do vanguardismo, representando assim um paradigma contra cultural, muitos os admiram por sua originalidade e por não se apoiarem nos meios massivos para difundir seu trabalho, mantendo-se sempre à margem social, por mais que tenham feito shows em grandes estádios (WIKIPEDIA, 2016). “Jijiji”, um dos principais hits do grupo, é considerado por muitos o verdadeiro hino do rock argentino, sendo classificado pela Rolling Stone (2002) e pela MTV (2002) como o quinto tema de rock mais importante do país. Com tal importância no cenário musical portenho, Peveroni traz essa canção para dentro da trama de El exilio según Nicoláse bebe de sua letra e de seu ritmopara dar ao leitor um pano de fundo à amizade juvenil de Nicolás e Rodión. Kleiman (2014) afirma, em entrevista dada à revista Rolling Stone no ano de 2007, que Indio Solari, vocalista de Los Redondos, comentou sobre o real sentido da canção, que falasobre a paranoia da droga, enquanto o título se assemelha a uma risada perversa, bidimensional, que diz muito sem dizer nada. Se analisamos a letra da música, vemos primeiramente, por meio da passagem “Los ojosciegosbienabiertos/¡no mires por favor! y no prendas la luz.../La imagen te desfiguró” (VAGALUME, 2016), que se trata do pedido de um usuário de drogas que não quer ser visto devido aos efeitos do uso abusivo de narcóticos como a cocaína, que deixa a pessoa elétrica e a destrói lentamente. Por outro lado, os versos “Este film da una imagenexquisita/esos chicos son como bombas pequeñitas/elpeorcamino a lacuevadelperico/para tipos que no duermen por lanoche” (VAGALUME, 2016) reiteram a ideia do consumo de entorpecentes por uma geração que cresceu nos anos de 1980 e 1990 e que se caracterizou pela rebeldia, pela prevalência do

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sentimento de liberdade e pelo exagero nas ações, que em muitos casos resultaram em mortes prematuras.Por fim, vemos o “resultado final” do abuso de drogas no fragmento “El montaje final es muy curioso,/es en verdad realmente entretenido/vas en la oscura multitud desprevenido/tiranizando a quienes te han querido/No lo soñé -¡ieee-eeeeh!” (VAGALUME, 2016), que nos mostra a extensão do sofrimento aos familiares e amigos dos usuários, que ainda que pareçam viver dentro de um filme de terror, na verdade não estão sonhando. Essa breve análise nos confirma até aqui que Peveroni está, em El exilio según Nicolás, dialogando com bandas e canções contemporâneas à sua juventude e que não apenas fogem dos ritmos considerados tipicamente latino-americanos, como também trata de uma realidade nada folclórica, romantizada e sem a intenção de denunciar ou promover mudanças sociais4. A droga, por exemplo, além de aparecer nos versos de “Jijiji” sem nenhum falso moralismo, é também o principal tema que envolveu e expôs à imprensa o polêmico grupo Sex Pistols, que possui também uma relevância na compreensão da trama na qual aqui nos debruçamos. Formada na cidade de Londres, em 1975, a banda britânica de punk rock Sex Pistols não durou mais de três anos e, neste curto espaço de tempo, lançou somente quatro singles e um álbum chamado NeverMindtheBollocks, Here’sthe Sex Pistols (1977). Com uma história marcada pelos showsque sempre geravam problemas aos organizadores e pelo abusivo uso de drogas do baixista Sid Vicious, em 1978, após uma turnê turbulenta nos Estados Unidos, o grupo teve fim (WIKIPEDIA, 2016). Entretanto, a curta história da banda não impediu que a crítica os considerasse um dos grupos de punk rock mais influentes do mundo. O punk é um movimento cultural e musical surgido nos Estados Unidos durante a década de 1970 que se difundiu posteriormente na Inglaterra e em outros países europeus. As letras desse estilo de música se caracterizam por serem barulhentas, rápidas e por tratarem de temas como os ideais anarquista, niilistas e revolucionários, abordando também o desemprego, a guerra, a violência, as drogas e o sexo. Estes pensamentos mais libertários, junto a uma linguagem sem pudores e a uma imagem de anti-ídolo são visíveis na figura de Sid Vicous, que teve sua vida retratada no

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Achugar (2008) menciona que as drogas já não cumprem somente com um papel lúdico e recreativo entre os jovens, mas que se transformaramem uma plataforma reivindicativa e em um programa político dentro da literatura dos novos escritores uruguaios. Entretanto, este comentário se mostra ingênuo quando vemos que autores como Peveroni (2004) ou Sanchiz (2011), as usam em seus livros como um elemento mais dentro da trama, já que, na verdade, os narcóticos sempre fizeram parte da realidade em que vivemos.

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filme Sid e Nancy (1986). Baseado em fatos reais, a história protagonizada por Gary Oldman e ChloeWebb mostra a intensa relação do baixista dos Sex Pistols com sua namorada estadunidense, os dois adeptos ao estilo de vida punk rock e viciados em heroína. Com um final trágico marcado pela morte prematura de ambos, a obra dirigida por Alex Cox retrata de maneira fiel o cenário mais rebelde em que viviam vários jovens ingleses daqueles anos. O movimento punk chegou aos países latino-americanos mais tarde devido às ditaduras das décadas de 1960 e 1970 que assolaram a região e controlavam as novidades estrangeiras; o personagem Nicolás, dentro desse contexto, é um desses jovens que viveu, durante os anos 80, a onda desse estilo musical em Montevidéu. A última música que o protagonista de El exilio según Nicolás escuta antes de sair de sua prisão voluntária é “Anarchy in the U.K.”, single dos Sex Pistos que critica duramente a coroa britânica e a submissão da população diante da imagem real. Por meio dos versos “Anarchy for the U.K/It'scomingsometimeandmaybe/I give a wrong time

stop

a

trafficline/Your

future

dreamis

a

shopping

scheme

'cos

I/I

wannabeanarchy!Inthecity” (VAGALUME, 2016) vemos que o eu-lírico deseja uma extrema mudança na postura social das pessoas que vivem em um país que ele não admira. Tal posição combativa contra a própria nação é também visível em Nicolás, que se exilia para fugir de um Uruguai em crise que não o representa e que, em vários momentos, ele chega a negar, como vemos logo ao início do livro nas frases “Ya no soporto este país de mierda.” (PEVERONI, 2004, p.24) e “Acá, si tenés más de veinticinco años, no tenés nada para hacer más que mirar la televisión como un idiota.” (PEVERONI, 2004, p.24). Não apenas isso, os versos iniciais da canção, que dizem “I amanAntichrist/I amananarchist/Don'tknowwhat I want” (VAGALUME, 2016) expõem, junto à rebeldia do cantor, a dúvida sobre o que ele realmente deseja. O exílio impulsivo de Nicolás, que surgiu em um momento de rebeldia, e o fato de não saber o rumo que dará a sua vida após se trancafiar por meses em sua casa nos permitem concluir que a música escutada pelo personagem central da obra não só dialoga com a relação que o protagonista tem com o seu país, como também com sua vida pessoal; a saída de Nico de seu exilio após escutar “Anarchy in the U.K.” mostra como a música, sua letra e sua melodia o ajudam a superar um momento de crise particular. O fragmento abaixo ilustra a passagem em que o personagem de Peveroni escuta a canção dos Sex Pistols.

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Busqué entre mis discos y encontré la canción que necesitaba. La escuché varias veces, sin parar. Es imposible que otra canción pueda alcanzar la misma ternura exasperada, el mismo dolor dulce, el sutil arrebato destructor de “Anarchy in the UK” de los Sex Pistols. Hacía años que permanecía olvidada en mi colección de discos, pero ahora le ponía el mejor fondo musical a lo que acontecía. (PEVERONI, 2004, p.237)

Portanto, é perceptível que Gabriel Peveroni traz para a narrativa de El exilio según Nicolás um conhecimento musical adquirido por ele durante sua juventude através do contato com bandas estrangeiras (argentinas e inglesas) que em nada se assemelham aos ritmos tidos como tipicamente latino-americanos. Interessante também é observar como esse diálogo entre música e literatura se dá de maneira natural, e não forçada, mostrando uma importância fundamental das canções ao momento de ajudar o leitor a compreender a história aqui proposta.

Conclusões Claro está que Peveroni recebe uma grande influência da música de língua espanhola e inglesa em sua formação, transpondo todo esse conhecimento adquirido durante seus trabalhos para as revistas Posdata e Rolling Stone ao momento de produzir El exilio según Nicolás. Porém, é visível que sua produção não se insere dentro do que Aínsa (2012) denomina como a nova narrativa hispano-americana, já que não há influência dos ritmos considerados tipicamente latinos, mas apenas críticas aos estilos e aos grupos mais tradicionais, como o uruguaio Los Fatales5.Podemos afirmar, com segurança, que o escritor uruguaio faz parte de outra geração de escritores, a McOndo, que se caracterizou pela oposição à literatura canônica quando lançou, no ano de 1996, a compilação de contos homônima. Vale ressaltar também que a música não funciona, dentro da trama, somente para um melhor entendimento da psique de personagens como Nicolás, María ou Rodión, mas também nos ajuda a compreender melhor as complicadas relações mantidasentre eles, seja no momento presente ou em um tempo passado. Além disso, muitos dos personagens da história se comunicam através de mensagens subliminares contidas em trechos de canções enviadas por email, fato que nos revela outra faceta damúsica dentro da trama que aqui estudamos. Dessa

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Ao início do livro, quando Nicolás mente aos seus amigos dizendo que está se mudando a Miami, ele afirma, em tom jocoso, que caso sinta falta de viver no Uruguai, escutará, para que esse desejo passe, um disco do grupo Los Fatales, banda montevideana que se caracteriza por misturar em suas composições ritmos tipicamente latinos.

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forma, Peveroni contribui, ao negar o óbvio, para o desenhar de uma nova narrativa uruguaia e hispânica que se distancia do realismo mágico calcado no regionalismo e no folclore, e por muitos anos difundido por autores como García Márquez. Paralelamente, o autorse volta mais ao cosmopolitismo típico das sociedades urbanas contemporâneas e ao estético quando nos revela os diálogos existentes entre o pop, o rock e a cultura uruguaia. Referências Bibliográficas ACHUGAR, H. El descontento y la promesa:nueva/joven narrativa uruguaya. Uruguay: Ed: Trilce, 2008. AÍNSA, F. Palabras nómadas. Nueva cartografía de la pertenencia. Madri: IberoamericanaVervuert, 2012. ANARCHY IN THE U.K..In: VAGALUME. Disponível em: http://www.vagalume.com .br/sex-pistols/anarquia-para-o-reino-unido.html. Acesso em: 02 abril 2016. COX, A. Sid y Nancy. [Filme-video]. Produção de Eric Fellner, direção de Alex Cox. Londres, Initial Pictures, U.K. Productions Entity, Zenith Entertainment, 1986. DVD, 114 min. col. son. FRESÁN, R. Boomtown o Diario para una relectura de Cien años de soledad y apuntes para un proyecto de serie para la HBO. Biblioteca virtual Miguel de Cervantes, Madri, 8 de novembro de 2012. Disponível em http://www.cervantesvirtual.com/. Acesso em 5 de junho de 2015. FUGUET, A.; GÓMEZ, S. McOndo. Chile: Ed: Gijalbo-Mondadori, 1996. GLAM ROCK. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Florida: Wikimedia Foundation, 2016. Disponível em: https://es.wikipedia.org/wiki/Glam_rock. Acesso em: 26 março 2016. JIJIJI. In: VAGALUME. Disponível em: http://www.vagalume.com.br/los-redondos/jijiji-no-losone.html. Acesso em: 01 abril 2016. JIJIJI. In WIKIPEDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2016. Disponível em: https://es.wikipedia.org/wiki/Ji_ji_ji. Acessoem 01 abril 2016. KLEIMAN, C."Jijiji", el mejor tema de los Redondos según Rolling Stone. Revista Rolling Stone, Buenos Aires, 06 junho 2014. Disponível em http://www.rollingstone.com.ar. Acesso en 05 fevereiro 2016. LA VERDADERAHISTORIA DE "JIJIJI" LOS REDONDOS. (2010 Marzo, 11) Taringa. Disponible en http://www.taringa.net. Acceso en 05 febrero 2016. PATRICIO REY Y SUS REDONDITOS DE RICOTA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Florida. WikimediaFondation, 2016. Disponível em: https://es.wikipedia.org/wiki/Patricio_Rey_y_sus_Redonditos_de_Ricota. Acesso em: 29 março 2016. PEVERONI, G. El exilio según Nicolás. Montevidéu: Ed: Santillana, 2004. _____________. Entrevista a Gabriel Peveroni. Montevidéu, Ya Te Conté, 8 janeiro 2013. Entrevista a Diego Recoba. Disponível em: http://www.yateconte.com/2013/01/entrevista gabriel-peveroni-parte-1.html. Acesso em 02 abril 2016. ——————. Poesía, cinismo, bloggers y otras formas del desierto contemporáneo. Montevideo, Biblioteca G.Peveroni, 2005.Entrevista a J.Pardo. Disponível em

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“A HISTÓRIA DO JOÃO-DE-BARRO”: O USO DA LITERATURA INFANTIL COMO INSTRUMENTO PARA A EDUCAÇÃO AMBIENTAL Laís Gumier Schimith Universidade do Estado de Minas Gerais – Unidade Ubá, lais.gumier@gmail.com

Priscila Paschoalino Ribeiro Universidade do Estado de Minas Gerais – Unidade Ubá, priscilapaschoalino@yahoo.com.br

Resumo: A relação homem/natureza tem acarretado uma grave crise socioambiental, sendo frequente a presença de tal temática em obras literárias, incluindo histórias infantis. A partir da análise do livro “A história do João-de-barro”, de Priscilla de Paula, pretendese demonstrar o potencial de tais livros para a sensibilização ambiental de crianças bem como embasar práticas de Educação Ambiental. A princípio realizou-se um levantamento bibliográfico em três áreas principais: Literatura e Literatura Infantil; Análise de imagens; Educação Ambiental. A partir deste material, executou-se a análise da obra. O livro foi escrito e ilustrado por Priscilla de Paula com base nas histórias contadas por sua avó na infância. A história aborda a vida do João-de-barro, que morava em uma floresta tranquila até esta começar a ser desmatada e o pássaro precisar buscar outro local para viver. As ilustrações transmitem infantilidade, pois foram produzidas com a técnica de aquarela, possuindo um traçado bem definido, e as cores incluídas ultrapassam um pouco os contornos. O emprego das tonalidades e cores das ilustrações mudam conforme o desenvolvimento da história e despertam várias emoções. No livro, a associação das linguagens verbal e visual enriquece a possibilidade de práticas de sensibilização ambiental: as representações de uma fauna e flora variada e rica levam à reflexão acerca da interdependência entre os seres vivos e a dimensão dos efeitos da degradação; a derrubada do Jequitibá e a revoada de pássaros demonstram a impotência de outros seres vivos frente ao poder de atuação humana. A escolha da obra “A história do João-de-barro” foi pontual, pois permite diálogos com a sociedade, a memória, a cultura popular e Educação Ambiental. Este livro pode servir para indicar condutas, dicas e lições para alcançar comportamentos responsáveis perante o meio ambiente, bem como desperta reflexões acerca da consequência da interferência humana no equilíbrio ecológico. Palavras-chave: Meio ambiente. Livro infantil. Análise textual. Proposta educacional.


1 Introdução Nos últimos anos, sobretudo a partir do século XX, a questão ambiental se caracterizou como motivo de preocupação e um sério problema de ordem mundial. Isso aconteceuquando se tornaram perceptíveis e notórios o aquecimento global, os níveis de poluição, bem como a extinção de várias espécies animais e vegetais. Hoje há uma crise ambiental complexa e multidimensional, a qual abrange esferas políticas, sociais, intelectuais, culturais, econômicas, morais, éticas e legais(ALBUQUERQUE, 2007; CARVALHO, 2006).É pertinente ressaltar, que, conforme exposto por Capra (1982, p. 11), as facetas desta crise interferem em “todos os aspectos de nossa vida — a saúde e o modo de vida, a qualidade do meio ambiente e das relações sociais, da economia, tecnologia e política”. Para modificar esse quadro de degradação ambiental e impedir seu agravamento, é imperativa a necessidade de firmar uma relação diferente entre o homem e a natureza (LAYRARGUES, 2006). A Educação Ambiental (EA) representa uma forma de se atender o caráter multifacetário da problemática ambiental e promover a adoção de novos hábitos e atitudes. Carvalho (2006, p. 52) a considera como uma prática de sensibilização com potencial para “chamar a atenção para a finitude e a má distribuição no acesso aos recursos naturais e envolver cidadãos em ações sociais ambientalmente apropriadas”. Reigota (2012) preconiza uma EA ligada à ampliação da participação política dos cidadãos, de maneira a promover a busca pela consolidação da democracia, pela resolução da problemática ambiental assim como pelo estabelecimento de uma sociedade mais harmônica, equitativa e com melhores condições de vida. Espera que a partir da EA seja firmada uma nova aliança entre o ser humano e a natureza bem como entre os próprios seres humanos, proporcionando a qualquer espécie biológica a convivência e sobrevivência com dignidade. Seguindo esta linha de pensamento, a EA é direcionada “para formar cidadãos conscientes, onde os mesmos consigam tomar algumas decisões que possam contribuir positivamente para se construir uma sociedade mais sustentável, pensando no seu meio, e que ajam em coletividade” (GRZEBIELUKA; KUBIAK; SCHILLER, 2014). Carvalho (2006, p. 180) ressalta que diversas atividades de EA ensinam “o que fazer e como fazer certo, transmitindo uma série de procedimentos ambientalmente corretos. Mas isso nem sempre garante a formação de uma atitude ecológica, isto é, de um sistema de valores sobre

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como relacionar-se com o ambiente”.Posto isto, é preciso investir em uma EA significativa com viés de uma prática transformadora que leve a uma formação sólida de sujeitos conscientes e comprometidoscom os cuidados que devem ser adotados em relação ao meio ambiente (CARVALHO, 2006; GRZEBIELUKA; KUBIAK; SCHILLER, 2014). Para Figueira, Campos e Santana (2001),estratégias de formação realizadas com antecedência no desenvolvimento humano são as mais eficazes para se alcançar isso. A infância é apropriada para a obtenção de comportamentos responsáveis perante o meio ambiente pois, quanto “mais cedo a criança vivencia experiências que estimulem o respeito, a harmonia e o amor pelo meio ambiente, melhores adultos estarão sendo formados, capazes de transformar e modificar o mundo em que estão inseridos” (GRZEBIELUKA; KUBIAK; SCHILLER, 2014, p. 3882).Portanto, a criança deve ser tratada como agente social, capaz de empreender mudanças. Nesta perspectiva,a Literatura Infantil pode proporcionar um novo enfoque, diferente dos discursos pragmáticos ou teóricos (TAVARES, 2010), representando um instrumento promissor e com efeito profundo na sensibilização ecológica das crianças, visada pela EA. Existem vários tipos de histórias que abordam temas tais como poluição ea obtenção de zonas urbanas mais harmoniosas. Estas obras reproduzem o desejo de se alcançar um equilíbrio deserdado pelo progresso tecnológico e pelo crescimento urbano desenfreado (COELHO; SANTANA, 1996). Para Coelho (1991, p. 14), a Literatura Infantil pode atuar “como agente de formação, seja no espontâneo convívio leitor/livro; seja no ‘diálogo’ leitor/texto, estimulado pela Escola. É ao livro [...] que atribuímos a maior responsabilidade na formação da consciência-de-mundo das crianças e jovens”. Neste sentido, a Literatura pode ser reconhecida “como um dinâmico processo de produção/recepção que, conscientemente ou não, se converte em intervenção sociológica, ética ou política” (COELHO, 1991, p. 25, grifo do autor). Dessa forma, é relevante analisar como a Literatura Infantil, recurso de ampla circulação na sociedade, nas escolas e nas famílias, tem orientado os modos de se relacionar com o mundo, problematizando quais ensinamentos sobre EA podem-se apreender nesse material. Frente à importância da Literatura Infantil e da temática ambiental, pretende-se através deste trabalho

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demonstrar o grande potencial dos livros infantis em apontar condutas, dicas e lições a serem seguidas para alcançar um mundo melhor.

2 Objetivos Analisar a obra “A história do João-de-barro”, de Priscilla de Paula, com mirada em seu potencial mediador no trabalho de sensibilização ambiental de crianças. Também se pretende conhecer a abordagem dos conflitos ligados à temática ambiental, bem como verificar a existência de considerações acerca de diversidades culturais, sociais e naturais. 3 Revisão Bibliográfica A Literatura Infantil está incluída em duas áreas diferentes: Arte e Pedagogia. De acordo com Coelho (1991, p. 42), podemos dizer que, como ‘objeto’ que provoca emoções, dá prazer ou diverte e, acima de tudo ‘modifica’ a consciência-de-mundo de seu leitor, a Literatura Infantil é Arte. Por outro lado, como ‘instrumento’ manipulado por uma intenção ‘educativa’, ela se inscreve na área da Pedagogia. Entre os dois extremos há uma variedade enorme de tipos de literatura, onde as duas intenções (divertir e ensinar) estão sempre presentes, embora em doses diferentes. O rótulo ‘literatura infantil’ abarca, assim, modalidades bem distintas de textos: desde os contos de fadas, fábulas, contos maravilhosos, lendas, estórias do cotidiano... até biografias romanceadas, romances históricos, literatura documental ou informativa.

Além da relevância do prazer, emoção e divertimento propiciado ao se ouvir ou ler histórias infantis, estas auxiliam no desenvolvimento de linguagens, ideias, valores, emoções e sentimentos que regem a vida. Ademais, exibem o potencial de instigar o imaginário e estimular o desenvolvimento da criatividade e sensibilidade, ultrapassando as maneiras de conhecer e fazer(ABRAMOVICH, 1991). O psicanalista Walter Boechat afirma que a fantasia é benéfica para a criança lidar com o ambiente ao seu redor, bem como em outros momentos da vida, pois o homem criativo é aquele que fantasiou quando criança (DOMINGUES; FREITAS, 2012). Por exemplo, Alberto Santos Dumont (1873-1932) era ávido leitor de Júlio Verne, seu autor preferido, sendo reconhecida a importância das obras para estimularem sua imaginação, fascinando-o desde a infância e influenciando sua vocação de inventor. Hetzel (2001, p. 39) considera que, ao

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propormos às crianças e ao Brasil conservar o meio ambiente [...], estamos sugerindo que podemos superar as inúmeras ameaças que nosso próprio modo de viver vem provocando ao planeta e a nós mesmos. E, até hoje, não surgiu melhor combustível para a imaginação do que as histórias, a Literatura. Creio ser por isso, que, instintivamente, em todas as culturas, nos dedicamos a contar histórias às crianças desde a primeira infância: para alimentar sua imaginação, para humanizá-las e torná-las capazes de transformar o mundo.

Os discursos em prol da preservação do meio ambiente sofreram uma massificação de tal forma que perderam seu sentido e conteúdo. Ademais, a maneira como são disseminados dados e informações sobre a problemática ambiental pode assustar ou gerar desinteresse. Como resultado disto, é possível que crianças que nasceram em uma época que dissemina o ser “ecologicamente correto” podem apresentar comportamentos diferentes à conservação do meio ambiente, por causa da alienação de seu significado ou pela ausência de expectativa de mudança e solução de todo o problema, diante de sua gravidade (HETZEL, 2001). Sob este aspecto, a Literatura Infantil pode fornecer a leveza exigida a fim de instigar o leitor para imaginar formas de superar a problemática ambiental, devido à abordagem dessa questãopor meio de histórias divertidas, com elementos ficcionais e um caráter lúdico, imaginário e de entretenimento (FIGUEIRA; CAMPOS; SANTANA, 2001). Conforme exposto por Coelho (1991, p. 15, grifo do autor), desde seu surgimento, a Literatura parece estar relacionada à função básica de “atuar sobre as mentes, onde se decidem as vontades ou ações, e sobre os espíritos, onde se expandem as emoções, paixões, desejos, sentimentos de toda ordem...”. Este autor explica que O impulso para ‘ler’, para observar e compreender o espaço em que vive e os seres e coisas que convive, é condição básica do ser humano. Desde que a inteligência humana teve condições para organizar, em conjunto coerente, as formas e situações enfrentadas pelos homens em seu dia-a-dia, estes foram impelidos a registrar, em algo durável, aquelas experiências fugazes. A descoberta da arte das cavernas, de há 12 ou 15 mil anos atrás, feita por arqueólogos, mostra, de maneira inequívoca, este impulso essencial que leva o homem a expressar através de uma forma (realista ou alegórica) suas experiências de vida. Ao estudarmos a história das culturas e o modo pelo qual elas foram sendo transmitidas de geração para geração, verificamos que a Literatura foi o seu principal veículo. Literatura oral ou Literatura escrita foram as principais formas pelas quais recebemos a herança da Tradição que nos cabe transformar, tal qual outros o fizeram, antes de nós, com os valores herdados e por sua vez renovados. É no sentido dessa transformação

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necessária e essencial [...] que vemos a Literatura Infantil o agente ideal para a formação da nova mentalidade que se faz urgente (COELHO, 1991, p. 15, grifo do autor).

Neste sentido, para Coelho e Santana (1996, p. 61), exatamente por atuar no espaço interior do indivíduo e, consequentemente, na formação de sua consciência de mundo, a Literatura contém os pressupostos almejados pela EA. Esta, por sua vez, conforme exposto por Sauvé (2005, p. 317), Trata-se de uma dimensão essencial da educação fundamental que diz respeito a uma esfera de interações que está na base do desenvolvimento pessoal e social: a da relação com o meio em que vivemos, com essa ‘casa de vida’ compartilhada. [...] Mais do que uma educação ‘a respeito do, para o, no, pelo ou em prol do’ meio ambiente, o objeto da educação ambiental é de fato, fundamentalmente, nossa relação com o meio ambiente.

Dessa forma, a EA pode exercer o papel de transmitir conhecimentos e informações, de forma a provocar e instigar os indivíduos para lhes estabelecer o sentimento de ligação com o seu meio, levar à sensibilização de seu papel para a transformação social, assim como o desenvolvimento de atitudes conscientes e participativas. Sua realização pressupõe “que haja uma prática baseada na reflexão/ação, onde se deve pensar a natureza estando dentro de um sistema ecossocial, pois todos os indivíduos estão envolvidos de uma maneira ou outra em questões ambientais” (GRZEBIELUKA; KUBIAK; SCHILLER, 2014, p. 3884). A criança passa por diferentes fases que orientam a aquisição de conhecimentos, valores e sentimentos e acarretam a constituição de sua personalidade. Assim, é indispensável que entre em contato com leituras que veiculem valores ou padrões ideais, para que conheça e consiga atuar um dia em sua realidade. Também deve ser mostrada a responsabilidade de cada um em fazer sua parte para conquistar uma sociedade melhor.(TAVARES, 2010). Para tal, as crianças devem passar por experiências enriquecedoras, que favoreçam “a elaboração de concepções em relação a como usufruir dos recursos oferecidos pela natureza, criando assim um novo modelo de comportamento, buscando equilíbrio entre o homem e o ambiente” (GRZEBIELUKA; KUBIAK; SCHILLER, 2014, p. 3889). É necessário aproveitar este recurso, que pode servir para transmitir ideias, valores e preocupações com o meio ambiente, atendendo, dessa forma,

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os preceitos da EA de agir na formação cidadã e, por consequência, o estabelecimento de uma nova relação entre homem e meio ambiente (COELHO; SANTANA, 1996; TAVARES, 2010). 4 Metodologia Para analisar os discursos que reverberam modos de agir em relação ao ambiente presentes no livro “A história do João-de-barro”, foi realizado um levantamento bibliográfico de três áreas principais: Educação Ambiental; Literatura e Literatura Infantil; Análise de imagens. O material trabalhado compreende livros, artigos científicos, monografias, teses, dissertações e obras relacionados a estas temáticas. Alguns autores relevantes para desenvolver este estudo foram Candido (2000), Albuquerque (2007), Odum (2004), Faria (2004), Farina, Perez e Bastos (2008). 5 Resultados e discussões O livro “A história do João-de-barro”, publicado em 2010, foi escrito e ilustrado por Priscilla de Paula1 a partir das histórias contadas por sua avó na infância. Permeada pela imaginação existente nos relatos de memória e literatura oral, a criação da obra remete a uma característica marcante no início do estabelecimento da Literatura Infantil: a transcrição de histórias presentes no meio oral para o escrito. Este gênero incorporou diversas histórias e narrativas tradicionais, de caráter fantasioso, transmitidas inicialmente de forma oral entre gerações (FARIA, 2004). Outro aspecto relevante a se analisar é o público ao qual se destina a obra. O público é responsável por atribuir sentido e realidade à obra, sendo o elemento de ligação do autor e de sua própria obra (CANDIDO, 2000). Durante a criação da história infantil, é imprescindível considerar as particularidades de seu leitor/receptor, devendo ser apropriada para a compreensão e interesse da criança. Coelho (1991, p. 28)realizou uma classificação dos leitores infantis alicerçada“na interrelação existente entre sua idade cronológica, nível de amadurecimento biopsíquico-afetivointelectual e grau ou nível de conhecimento/domínio do mecanismo da leitura”.Partindo deste pressuposto, definiu cinco categorias: pré-leitor, leitor iniciante, leitor-em-processo, leitor

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Artista plástica e professora da UFJF, na faculdade de Artes e Design.

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fluente, leitor crítico. Entre estas, a obra “A história do João-de-barro” seria mais apropriada para a categoria do leitor-em-processo (a partir dos 8/9 anos). Segundo Coelho (1991), nessa fase, a criança apresenta certo domínio do mecanismo de leitura, possui interesse por desafios e quaisquer tipos de questionamentos. Algumas características que “A história do João-de-barro” apresenta que a enquadra nesta categoria são: comunicação das imagens com o texto; o texto verbal é constituído por frases simples, em ordem direta e de comunicação imediata e objetiva; desenvolvimento da narrativa em torno de uma situação central, um problema, que deve ser resolvido até o fim; os momentos narrativos seguem um esquema linear de início, meio e fim. Vale ressaltar que qualquer leitura realizada em concordância com a essência da narrativa conduzirá o leitor a perceber e se conscientizar acerca do mundo a sua volta. Segundo Coelho (1991, p. 45-46, grifo do autor): Daí se deduz o poder de fecundação e de propagação de idéias (sic), padrões, ou valores que é inerente ao fenômeno literário, e que através dos tempos tem servido a humanidade engajada no infindável processo de evolução que a faz avançar sempre e sempre [...] No ato da leitura, através do literário, dá-se o conhecimento da consciência-de-mundo ali presente. Assimilada pelo leitor, ela começa a atuar em seu espírito (e conforme o caso a dinamizá-lo no sentido de certa transformação...). Mas, para que essa importante assimilação se cumpra, é necessário que a leitura consiga estabelecer uma relação essencial entre o sujeitoque lê e o objeto que é o livro lido.

Assim, para atingir sua premissa de sensibilização ambiental, bem como atender ao público a que se destina, a configuração da obra “A história do João-de-barro” foi concebida de maneira adequada. O livro desperta no leitor a preocupação com o meio ambiente, sobretudo a partir da destruição da floresta onde o João-de-barro morava. O pássaro se vê obrigado a procurar outro lugar para viver com sua família, frente à ameaça a que estavam expostos. Apesar de ficcional, esse enredo apresenta uma trama bastante verossímil, já que traz à tona questões socioambientais. A partir da história é possível refletir acerca das consequências da retirada da cobertura vegetal de forma desordenada e sem suaposterior reposição: redução da biodiversidade, empobrecimento do solo e também sua exposição a fatores erosivos, destruição de habitats. Ao

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mesmo tempo em que a retirada das árvores interfere na fauna, a redução do número de espécies animais também afeta as árvores. Por exemplo, os pássaros são importantes espécies polinizadoras e responsáveis pela dispersão de sementes. O pássaro João-de-barro tem sido cada vez mais encontrado em ambiente urbano devido à alteração de seu habitat natural, que são os campos – inclusive, o desmatamento figura como uma das principais causas disso. Apesar de o João-de-barro ser uma espécie bem adaptada para viver em zonas urbanas e de não se incomodar com a presença humana, no livro, o narrador do texto afirma que o pássaro ficou tão chocado e assustado com a interferência do homem no meio ambiente que chega a comparar a gravidade da situação ao apocalipse. A degradação ambiental tem sido causada em um ritmo muito acelerado, sem respeitar a dinâmica de transformação da natureza, nem seu tempo de reabastecimento. “A relação homem/natureza é, antes de tudo, uma relação do homem com ele mesmo, que age na natureza a partir de sua vontade e de seus planos” (ALBUQUERQUE, 2007, p. 36). Sendo a ação antrópica uma das principais causas do desequilíbrio ecológico vivenciado hoje e que ameaça a vida de inúmeras espécies (incluindo quem a realiza: o ser humano), observa-se a necessidade de repensar a relação com o meio ambiente. O homem procura compreender o seu meio desde que surgiu e, hoje, mais do que nunca, a humanidade necessita possuir um conhecimento inteligente do ambiente em que vive, condição de sobrevivência da nossa complexa civilização, uma vez que as <<leis da natureza>> fundamentais não foram revogadas; apenas a sua natureza aparente e as relações quantitativas se foram alterando à medida que a população humana foi aumentando e se expandiu o poder do homem para alterar o ambiente (ODUM, 2004, p. 3).

O livro também apresenta a possibilidade de uma relaçãomais harmoniosa entre homem e natureza, que atende ospreceitos da conservação do meio ambiente, que preza que o desenvolvimento e o uso dos recursos naturais sejam planejados a partir de leis ecológicas e humanas. Não significa completa restrição do uso, mas limitá-lo para apenas o necessário, ao invés do uso de forma indiscriminada tal como é hoje (ODUM, 2004). Para abordagem desta temática, Priscilla de Paula se vale das potencialidades da junção do texto escrito e imagético. A união destas duas linguagens faz com que as histórias sejam mais atrativas, além de poder facilitar a leitura e ampliar a eficiência de assimilação conceitual

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das informações presentes nos planos de expressão e de conteúdo visual e verbal. Costa (2008, p. 28) para quem não domina o alfabeto, a imagem permite manter o contato com o mundo e com a produção de sentidos. Seria, entretanto, minimizar o poder da imagem, tomá-la apenas no sentido informativo e preenchedor de lacunas culturais. A linguagem visual, tal como a verbal, possui sua estrutura própria, que a constitui como um todo orgânico, capaz de servir de instrumento de transmissão da herança cultural e de criação artística. Há, porém, na relação texto-imagem limites permanentes: nem a palavra consegue substituir a imagem, por mais que tente descrevê-la, nem a imagem é capaz de reproduzir a sonoridade da palavra e a multiplicidade de sentidos que ela é capaz de evocar. Mas, respeitando as respectivas idiossincrasias, texto e imagem podem somar-se e ampliar os sentidos das mensagens.

A associação entre estas duas linguagens pode acontecer de diferentes formas e níveis de complexidade, sendo observado na obraum diálogo congruente entre ambas – algo que é comum nas histórias infantis. Ao se realizar a análise das linguagens presentes no livro, é possível observar queé uma narrativa curta, portanto, um conto. É caraterizadopor apresentar um conflito, situado no tempo e no espaço, e por um pequeno número de personagens que são o João-de-barro e sua esposa, Dona Joana, a Vovó e seus netinhos. O emprego frequente do grau diminutivo e ricas descrições adjetivadas denotam o envolvimento do narrador com a história, remontando à própria genealogia desta obra, que pode ser caracterizada como um texto memorialístico, devido a sua origem nas narrativas da avó da autora. O texto é narrado em terceira pessoa e seu narrador é onisciente, pois sabe todos os sentimentos do João-de-barro. Para Santos e Oliveira (2001, p. 5), o narrador onisciente é privilegiado por saber o que se passa no íntimo das personagens, exibindo uma “visão por detrás da trama”.O envolvimento do narrador com o personagem perpassa todo texto, atravésda modalização do discurso. Em certos momentos ele usa o pronome possessivo para se referir a ele. Em outros, a modalização de afetividade conduz o fio narrativo. O personagem principal encerra em si lições da moral cristã e burguesa, como a dedicação ao trabalho e à família. A presença de sua companheira, Dona Joana, marca o espaço do diálogo do casal, cumprindo mais uma vez a moral burguesa. A modalização discursiva, que aponta para a gradação da decisão, denota a participação e a determinação conjunta.

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A aproximação do homem, que é percebida com os barulhos na mata e pela derrubada do jequitibá, constituem o clímax ou ponto da virada da história. A narrativa se encerra com o acolhimento da família do João-de-barro no seio da família de Vovó, sendo reestabelecido o equilíbrio familiar e natural naquele novo espaço. A narrativa se desenvolve em dois espaços diferentes, essenciais para o desenvolvimento da trama. De acordo com Borges Filho (2008, p. 1), o espaço abrange “tudo o que está inscrito em uma obra literária como tamanho, forma, objetos e suas relações”, sendo possível que desempenhe inúmeras funções. Na obra em questão, o espaço tanto permite que o personagem desenvolva sua ação, como também o influencia a tomar atitudes. Assim, o pássaro seguia sua vida normalmente até a interferência do homem impedir que concluísse suas atividades rotineiras.Outra função é a de representar os sentimentos vividos pelos personagens, existindo uma analogia entre o espaço no qual o personagem está presente e o sentimento que apresenta. Na representação do espaço, também é possível observar gradações ficcionais, havendo em diferentes níveis de concordância com a realidade. Na obra o espaço apresenta elementos presentes na vida real, tal como o sítio com árvores frutíferas, no qual vivia a Vovó. No livro “A história do João-de-barro” as duas linguagens presentes exibem a mesma importância:a verbal é completa, sem precisar das ilustrações para a compreensão da história; por outro lado, por meio das imagens é possível imprimir no leitor uma noção menos impactante da história, sem a mesma riqueza de detalhes observada no texto escrito. Segundo Faria (2004, p. 42), neste tipo de livro,“a imagem leva ao arejamento da página, a um descanso do texto escrito, que sempre obriga a um esforço maior de leitura, auxiliando o leitor a continuá-la pelos caminhos mais suaves da imagem”. Os textos verbal e visual no livro surtem um maior efeito em conjunto, pois isto enriquece e expande o campo de reflexão sobre a temática abordada. As ilustrações captam os principais momentos do texto escrito e são cruciais para suscitar emoções e mostrar valores, de uma forma que o texto escrito sozinho não conseguiria. Para exercer a complementaridade das ilustrações, Priscilla de Paula tira proveito do potencial emotivo e evocativo das cores para a polarização de sentido, empregando-as para transmitir sensações positivas e negativas, conforme o desenvolvimento da narrativa.

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SegundoFarina, Perez e Bastos (2008, p. 2), as “cores podem produzir impressões, sensações e reflexos sensoriais de grande importância, porque cada uma delas tem uma vibração determinada em nossos sentidos e pode atuar como estimulante ou perturbador na emoção, na consciência e em nossos impulsos e desejos”.Cabe ainda reforçar que: Sobre o indivíduo que recebe a comunicação visual, a cor exerce uma ação tríplice: a de impressionar, a de expressar e a de construir. A cor é vista: impressiona a retina. E sentida: provoca uma emoção. E é construtiva, pois, tendo um significado próprio, tem valor de símbolo e capacidade, portanto, de construir uma linguagem própria que comunique uma idéia (sic) (FARINA, PEREZ e BASTOS, 2008, p. 13, grifo do autor).

Na primeira parte do livro “A história do João-de-barro”, enquanto o ambiente permanece tranquilo e segue seu ritmo natural, predominam as cores: verde, sugere calma, esperança, equilíbrio, paz, tranquilidade, segurança, serenidade, suavidade; azul, transmite harmonia, paz, serenidade. Quando o pássaro retorna para seu ninho à noite (Figura 1), o uso de cores e tons escuros mantém a mesma sensação de serenidade, pois prevalece o azul-escuro, cor que remete à ideia de acolhimento, recolhimento, descanso, segurança. Nas próximas páginas é mostrada uma visão panorâmica de um ambiente com diferentes espécies de pássaros, cada um de uma cor, ressaltando a variedade de espécies relatada no texto. O fundo, que antes era azul, passa a ser de um tom pastel, o que coloca em primeiro plano os pássaros, destacando-os. No momento da queda do jequitibá (Figura 2), há uma mudança mais enfática das cores: o céu assume uma coloração violeta, que transmite a sensação de violência e agressão, sendo uma cor que se associa materialmente a enterro; as montanhas apresentam cor laranja, que sugere perigo, agressão, dominação, advertência; no tronco de jequitibá caído são usados tons avermelhados que se assemelham à sangria, remetem à ferida e morte, e o uso desta cor chama a atenção para o elemento no qual é usada, além de passar a sensação de perigo e violência. No novo local onde o pássaro constrói seu ninhoas cenas são retratadas com várias cores (Figura 3), predominando cores verdes e azuis, em tons mais vibrantes que o início da história, e que remetem a bem-estar e tranquilidade. Quando a avó se aproxima com o facão, continua o uso das mesmas cores, um possível indício de que não ocorrerá o mesmo que foi visto com a queda do jequitibá.

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Outro aspecto a se ressaltar foi o uso da técnica de aquarela para desenvolver as ilustrações. Estas apresentam um traçado bem definido, sendo que a inclusão de cores ultrapassa um pouco os contornos. Como resultado disto, as imagens transmitem infantilidade, como se a autora tivesse feito os desenhos em sua infância. Lambertucci (2015) também destaca que geralmente é através das ilustrações que a

Figura 1. Momento em que o pássaro retorna ao lar

Figura 2.Derrubada do jequitibá

Figura 3. Local onde o pássaro constrói seu ninho

emoção do personagem é demonstrada. No livro isto pode ser observado, sobretudo a partir dos olhos do João-de-barro e da Dona Joana: parecem olhos humanos, apresentam cílios e são expressivos. Isso não é verificado em outros pássaros ou até mesmo nos próprios filhotes do casal – os olhos da coruja também se destacam, mas isso já é algo presente na vida real. Em histórias infantis é comum a associação de algumas características humanas aos animais, técnica denominada de antropomorfização. Para Silva, Araujo e Piassi (2014, p. 3): O livro infantil, considerado como obra literária, é formado por um texto, escrito e ilustrativo, com elementos estéticos que compreendem os processos de estruturação de um discurso e ao mesmo tempo, formado por um contexto, que abrangem elementos sociais podendo ser construídos por ideologias metaforicamente representadas pelos personagens descritos pelos próprios elementos estéticos. Ao transpor esta ideia para as obras infantis com animais como personagens, podem-se destacar essas representações metafóricas na forma como o animal é figurado, seja por sua relação antropomórfica direta ou por sua condição de animal biológico no meio social, entre outras possíveis representações.

Com isso, parece que o casal que tem olhos diferentes é que realmente transmite suas sensações. Este elemento pode ser um índice figurativo da presença do narrador onisciente.

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Também é possível até inferir sobre a necessidade de um novo olhar do homem perante o meio ambiente. Em suma, é possível observar que a junção dos textos verbal e visual colaboram para o entendimento da temática abordada, exibindo potencial para promover uma experiência rica para a sensibilização ambiental. 6 Considerações finais A Literatura Infantil propicia uma visão transformadora e estabelece novos meios para reflexão, constituindo um bom mediador de ações de EA. Permeada por tradições orais ememórias fundadas na subjetividade, a obra de Priscilla de Paula é capaz de sensibilizar opúblico infantil quanto às formas de pensar e atuar sobre o meio ambiente. O principal tema abordado no livro “A história do João-de-barro” é a relação dos seres vivos com o seu meio. O texto verbal é simples e apresenta linguagem adequada ao seu público alvo. O texto imagéticotambém é simples em seu traço, mas apresenta-se elaborado em relação à paleta de cores que muda conforme o sentimento manifestado pelo personagem principal. A obra se mostrou apropriada, depois de sua análise, para o uso como metodologia alternativa de EA. As linguagens verbal e visual enriquecem a possibilidade de seu uso para a sensibilizaçãoambiental e aplicação como subsídio para praticar diferentes correntes da EA. Além deconter temas atuais, fonte de debates e reflexões, oportuniza vários diálogos, tanto com asociedade, quanto com a memória, com a cultura popular e com a EA. Referências bibliográficas ABRAMOVICH, F. Literatura Infantil: gostosuras e bobices. 2. ed. São Paulo: Scipione, 1991. ALBUQUERQUE, B. P. As relações entre o homem e a natureza e a crise sócio-ambiental. Monografia. Rio de Janeiro, RJ: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 2007. CABRAL, A. O ponto de mutação. 26. ed. São Paulo: Cultrix, 1982. p. 432. CANDIDO, A. Literatura e Sociedade. 8ª ed. São Paulo: T. A. Queiroz; Publifolha: 2000. CARVALHO, I. C. M. Educação Ambiental: Formação do Sujeito Ecológico. 2ª ed. São Paulo Cortez, 2006 COELHO, N. C. Literatura Infantil: teoria, análise e didática. 5ª ed. São Paulo: Ática, 1991.

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UMA ANÁLISE DA PEÇA A MEGERA DOMADA, DE SHAKESPEARE E DO MUSICAL KISS ME KATE Lorena Ribeiro Ferreira Graduanda em Letras – Português/ Inglês, Bolsista PIBIC/CNPq, Universidade Federal de Viçosa, lorena.r.ferreira@ufv.br

Sirlei Santos Dudalski Doutora em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês (USP), Professora Associada do Departamento de Letras (DLA/CCH/UFV), sirlei.dudalski@ufv.br

Resumo: Uma prática muito comum que herdamos dos vitorianos, difundida entre diferentes povos ao redor do mundo é a ação, ou a arte, de (re)contar histórias. Antes mesmo da era da globalização na qual vivemos hoje, do advento da internet, televisão ou rádio, muitas culturas se envolveram com traduções “interlinguais” e “adaptações interculturais”, segundo os ensinamentos de Linda Hutcheon (2013). A adaptação, processo que sempre esteve presente no imaginário humano, é uma dessas formas de recontar histórias. Além disso, adaptar sempre foi um tipo de arte fundamental ao mundo ocidental. É possível encontrar adaptações em diversos cenários, tais como na televisão, no cinema, nos palcos de musicais e teatro dramático, na internet, nos quadrinhos, nos romances, nos fliperamas e parques temáticos. Elas não são um acontecimento recente: até mesmo William Shakespeare, como nos lembra Hutcheon, “transferiu histórias de sua própria cultura das páginas para o palco, tornando-as assim disponíveis para um público totalmente distinto” (2013, p. 22). Uma das obras de Shakespeare que foi adaptada para diversos cenários é a comédia A Megera Domada. Ela foi adaptada para o musical da Broadway Kiss me Kate (1948), que foi agraciado com o Tony Award como o melhor musical do ano de sua produção e, posteriormente, gerou um filme homônimo dirigido por George Sidney. O presente artigo propõe a análise de um dos números presentes no musical Kiss me Kate e suas relações com A Megera Domada: I’mashamedthatwomen are sosimple. Palavras-chave: Peça shakespeariana; Musical; Adaptações


1. Introdução Uma prática muito comum que herdamos dos vitorianos, difundida entre diferentes povos ao redor do mundo é a ação, ou a arte, de (re)contar histórias. Antes mesmo da era da globalização na qual vivemos hoje, do advento da internet, televisão ou rádio, muitas culturas se envolveram com traduções “interlinguais” e “adaptações interculturais”, como salienta Linda Hutcheon (2013). A adaptação, processo que sempre esteve presente no imaginário humano, é uma dessas formas de recontar histórias. Além disso, adaptar sempre foi um tipo de arte fundamental ao mundo ocidental. As ideias podem e devem ser apropriadas e receber novos desdobramentos, as histórias podem ser contadas e recontadas. É possível encontrar adaptações em diversos cenários, tais como na televisão, no cinema, nos palcos de musicais e teatro dramático, na internet, nos quadrinhos, nos romances, nos fliperamas e parques temáticos. Elas não são um acontecimento recente: até mesmo William Shakespeare, como nos lembra Hutcheon, “transferiu histórias de sua própria cultura das páginas para o palco, tornando-as assim disponíveis para um público totalmente distinto” (2013, p.22). Ainda segundo Hutcheon (2013), Ésquilo, Racine, Goethe e da Ponte também recontaram histórias conhecidas em novas formas. As adaptações são tão fundamentais à cultura ocidental que parecem confirmar o insight de Walter Benjamin (1992, p. 90), segundo o qual ‘contar histórias é sempre a arte de repetir histórias’ (2013, p. 22).

William Shakespeare é um autor renomado que, além de ter contado histórias, recontou inúmeras outras em suas obras. Poeta e dramaturgo, Shakespeare nasceu na cidade de Stratfordon-Avon, na Inglaterra. Experimentou a riqueza em sua infância e a pobreza na sua juventude. De acordo com John Gassner (2002), ele não frequentou a faculdade e o fato de não ter o feito, não diminui nem um pouco a genialidade do autor. Por volta do ano de 1592, ele já se encontrava em Londres, trabalhando como ator, produtor e dramaturgo. Começou na Companhia de Lorde Strange e, com o passar dos anos, surgiram seus trabalhos literários para outras diversas companhias. Naquela época, muitos clássicos como a versão de North das Vidas de Plutarco e transcrições de Ovídio, Sêneca e Virgílio, já podiam ser encontrados em inglês, “muitos ensinamentos podiam ser colhidos nas conversas com atores e boêmios, bem como em numerosas peças mais antigas que o jovem Will leu ou adaptou” (GASSNER, 2002, p. 246). Justamente pelo fato de não ter frequentado a

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faculdade e ter obtido grande êxito na profissão escolhida, despertou, de acordo com Gassner em seu livro Mestres do Teatro I, [...] a inveja e a ira de Robert Greene, homem de academia, o qual, falando não apenas por si mesmo mas também por Marlowe e outros dramaturgos educados o chama de “corvo arrivista, embelezado com nossas penas, que se julga tão capaz de engrolar empolgadamente versos brancos quanto os melhores dentre vós; e sendo um completo Johannesfactotum, é em sua própria opinião o único ‘chacoalha-cena’3 do país” (2002, p. 245).

“No inglês, Greene usa a expressão Shake-scene, trocadilho intraduzível com o sobrenome do poeta, Shakespeare.” (GASSNER, 2002, p.245). Suas obras são consideradas por muitos como clássicos da literatura. Segundo o escritor brasileiro Machado de Assis (2006, p. 805), Shakespeare é, além de “gênio”, um “poeta essencialmente inglês”. A obra deixada por Shakespeare pode ser considerada universal, ou seja, abrange diferentes temas pertinentes à humanidade e esse é um dos motivos que nos leva a considerá-la como cânone da literatura. Entre as 40 peças de Shakespeare, encontram-se peças históricas, tragédias e comédias. Dentre estas, as primeiras obras do autor foram A comédia dos erros, A Megera Domada e Asalegres comadres de Windsor. Algumas adaptações fílmicas dignas de nota que tais peças ganharam foram As alegres comadres de Windsor, de 1982, dirigido por David Jones, As alegres comadres, filme brasileiro de 2003 dirigido por Leila Hipólito e A comédia dos erros, filme de 1983 que leva o mesmo nome que a peça, dirigido por James Cellan Jones. Apesar de as comédias terem sido colocadas em segundo plano desde a época de Aristóteles, delas podem ser feitas releituras tão magníficas quanto das tragédias. É importante ressaltar que as mulheres, nas comédias shakespearianas recebem posição de destaque. Isto ocorre, por exemplo, em A comédia dos erros, adaptação feita por Shakespeare de uma peça de Plauto, com as personagens Adriana e Luciana e também em A Megera Domada, com a personagem a quem o título se refere, Catarina. Dentre as primeiras obras de Shakespeare, a peça A Megera Domada (The TamingoftheShrew) foi publicada pela primeira vez no Primeiro Fólio, edição das trinta e seis peças feita em 1623, somente sete anos após a morte de Shakespeare. Escrita por volta de 15912, mesmo ano que A Comédia dos Erros, essa é uma das primeiras peças do “Bardo”. Em A Megera Domada, o autor extrai humor das personagens e não apenas de situações. “Sua megera

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Catarina e seu domador Petrucchio são personalidades vívidas e travam o duelo dos sexos com riqueza de divertimento. O riso começa a tornar-se uma das grandes realizações de seu criador.” (GASSNER, 2002, p. 257). Além da genialidade de A Megera Domada, podem-se destacar as adaptações geradas a partir de tal obra. Dentre suas adaptações, encontram-se a novela brasileira O Cravo e a Rosa, produzida pela Rede Globo de Televisão, transmitida entre os anos 2000 e 2001 e reprisada no programa Vale a Pena Ver de Novo em 2003 e 2013, e o musical Kiss me Kate (1948) que foi agraciado com o Tony Awardcomo o melhor musical do ano de sua produção. O musical deu origem a um filme homônimo em 1953, dirigido por George Sidney. Neste musical, assim como no texto de Shakespeare, há uma peça dentro da peça, ou melhor, um “show dentro do show”. Fred Graham (Howard Keel) e Cole Porter convidam LilliVanessi (KathrynGrayson) para atuar na peça A Megera Domada. Vale ressaltar que Fred e Lilli são um casal divorciado que passa a estar lado a lado novamente nos palcos, respectivamente, como Catarina e Petrucchio. Eles se envolvem em muitas aventuras antes e durante sua atuação na peça principal, a de Shakespeare. Um dos motivos desses conflitos é o ciúme que Lilli, mesmo sendo ex-esposa de Fred e estar noiva de outro homem, sente de Lois Lane (Ann Miller), amante de Fred Graham e atriz que também foi convidada por ele para participar do musical interpretando Bianca. A peça A Megera Domada de Shakespeare começa com um prólogo numa taverna, onde é contada a um funileiro bêbado que fizeram acreditar ser um lorde, uma comédia: a história do casamento e subjugação de Catarina à Petrucchio. Catarina e Bianca são filhas de Baptista Minola. Bianca, a mais nova, possui vários pretendentes, entretanto, não pode se casar até que a irmã mais velha Catarina se case. Isso acontece devido à forte personalidade de Catarina em contraste com a delicadeza de sua irmã Bianca. Catarina era considerada por todos como uma megera: ela não aceitava tudo aquilo que lhe era imposto, sem ao menos questionar e, por isso, a personagem pode ser considerada um exemplo de resistência ao modelo ideal de mulher daquela época. Petrucchio, um nobre falido de Verona, surge na trama procurando por um bom casamento e parece acabar com os problemas de Bianca quando desposa Catarina e usa de inúmeros artifícios para transformá-la em uma mulher submissa.

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2. Justificativa Dentre as justificativas principais do projeto em pauta, destacam-se a grandiosidade do escritor William Shakespeare e a permanência do clássico: mesmo depois de 400 anos da morte do autor, suas obras e os assuntos nelas tratados são atuais. Além disso, a pesquisa procura dar continuidade aos ensinamentos propostos por Linda Hutcheon (2013), em seu livro A Teoria da Adaptação, sobre a equivalente importância da adaptação em relação ao texto fonte. A produção hollywoodiana Kiss me Kate é uma obra de caráter relevante para que seja observado como o gênero musical consegue transpor ou reler aquilo que Shakespeare conseguiu há séculos com A Megera Domada, envolvendo o enredo; o show dentro do show, do mesmo modo como ocorre a peça dentro da peça; a trama; a criação das personagens e a música, a dança e os gestos como elementos que fazem parte da construção dessas personagens. Todos esses aspectos, como o esplendor do gênero musical, as incríveis produções da Broadway e os elementos resultados dessa somatória se fazem dignos de ser analisados, levando em consideração suas relações com uma obra anterior, neste caso A Megera Domada, através de discussões sobre os elementos da cena, do vestuário, dos gestos, da dança e de alguns números de Kiss me Kate que remetem o leitor à obra Shakespeariana. Nota-se que o gênero musical, apesar de bem presente nos palcos atuais, ainda é pouco estudado. Dentre os musicais da Broadway que tiveram performance apresentada no Brasil, podem ser citados O Beijo da Megera, montagem de Kiss me Kate produzido por Charles Möeller e Claudio Botelho e protagonizado por José Mayer em 2015, My Fair Lady (1962), primeira adaptação da Broadway no Brasil, LesMisérables, produzido por Cláudio Botelho em 2011, entre outros. Os resultados alcançados com esta pesquisa poderão fomentar importantes discussões sobre o gênero musical e sobre adaptações.

3. Objetivos Analisar a adaptação Kiss me Kate, musical de Cole Porter, e suas relações com a peça shakespeariana, A megera domada.

3.1. Objetivos específicos

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Analisar as obras A Megera Domada e Kiss me Kate, tendo como princípios norteadores os ensinamentos de Linda Hutcheon (2013) sobre adaptação;

Discutir a importância do texto fonte e da adaptação e desmitificar alguns preconceitos recorrentes em relação à adaptação;

Destacar e analisar a grandiosidade do gênero musical, as produções da Broadway e os elementos resultados da somatória de ambos;

Analisar minuciosamente o número musicalI’mashamedthatwomen are sosimple, presente em Kiss me Kate.

4. Metodologia Para realização desta pesquisa, foi feita a leitura e análise do texto fonte, A Megera Domada, de William Shakespeare, e analisamos a adaptação Kiss me Kate, dirigido por George Sidney. Concomitantemente, foi realizada a revisão de literatura abordando os temas e conceitos principais utilizados na pesquisa. Em seguida, fizemos a análise crítica das obras supracitadas e escolhemos alguns dos números musicais que compõem a adaptação. Dentre os escolhidos, analisaremos I’mAshamedThatWomen are soSimpleneste trabalho.

5. Revisão Bibliográfica 5.1. Sobre o texto fonte Muito se discute sobre a soberania dos clássicos diante das demais obras literárias. Alguns autores acreditam que os clássicos são obras intocáveis, que jamais deveriam ser modificadas. Entretanto, de acordo com Barboza, Brandão e Trevisam (2009), os clássicos são aqueles textos que podem ser revisitados inúmeras vezes e, em cada uma dessas vezes, serão capazes de gerar ao leitor novos e diferentes estímulos; um texto revisitado pode servir de matéria-prima para criação de outros textos, como um input. O clássico nos faz refletir sobre o tempo presente e sobre a herança deixada pelos nossos antecedentes, principalmente, no que diz respeito à literatura e às artes. Ainda segundo os autores, Longe de identificar-se apenas com a ideia de ‘cristalização’ de ‘obras’ e ‘autores’ consagrados demais para sofrerem ‘adulterações’ posteriores, poder-

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se-ia dizer que um clássico o é, justamente, porque se reinventa, foi uma e outra vez refeito na(s) cultura(s) pelos poetas e leitores. (BARBOZA, BRANDÃO E TREVISAM, 2009, p.8-9).

Uma boa discussão sobre os diversos conceitos de clássico é a encontrada em Ítalo Calvino. Em sua obra Por que ler os clássicos, o autor propõe ao leitor diversas propostas de definições para o termo clássico, que funcionam como motivadores para reforçar não somente a importância, mas o prazer em ler os clássicos e fomentar tal tipo de leitura. Das razões expostas por Calvino, é interessante destacar duas que explicam a escolha de um autor clássico como Shakespeare como objeto de estudo deste trabalho. Na primeira, Calvino diz que “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” (1993, p. 11). Em outras palavras, uma obra, por mais que seja clássica, sempre vai gerar no leitor emoções diferenciadas nas leituras que ele fizer de uma mesma obra. Além do mais, se um clássico tem mais o que “falar” ao leitor, ele pode fazê-lo através das adaptações. Já a segunda razão, complementa a primeira, dizendo que os textos carregam consigo marcas de leituras anteriores. Fazendo uma analogia àquilo dito por Calvino, se leio A Megera Domada, leio o texto de Shakespeare, sem esquecer-se de tudo que a personagem Catarina passou a significar durante os séculos, todas as impressões causadas por ela e o leitor deve se questionar se estes significados estavam no texto ou se foram criados, “dilatados” por ele. Se leio uma adaptação de uma obra, leio as impressões e releitura do autor sobre aquela obra. E, por conseguinte, o leitor terá suas próprias impressões tanto do texto anterior, quanto das adaptações geradas por ele. Calvino argumenta que “os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem e nos costumes)” (CALVINO, 1993, p. 11).

5.2. Sobre a adaptação Para discutir, portanto, sobre a peça de William Shakespeare e o musical de Cole Porter e a relação entre as obras, é necessário discutir alguns aspectos acerca das adaptações, primeiramente. Em seu livro Uma Teoria da Adaptação, Hutcheon desmitifica o que muitos

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dizem sobre a soberania do “texto fonte” em relação à adaptação. As adaptações se relacionam, declarada e definitivamente com textos anteriores. “O reconhecimento e a lembrança são parte do prazer (e do risco) de experenciar uma adaptação [...]” (HUTCHEON, 2013, p. 25). Ao assistir ao musical, inevitavelmente, o expectador experimenta tais sensações. Apesar dessa constante presença do texto anterior, proximidade e fidelidade não devem ser consideradas como julgamento ou foco de análise de uma obra. Uma discussão pertinente que diz respeito à adaptação, não somente em relação às suas características enquanto processo e produto, mas, bem como a desmitificação acerca de comentários depreciativos em relação ao assunto é apresentada no livro de Hutcheon. Como ela argumenta, as adaptações não devem, de maneira alguma, ser consideradas como secundárias e não devem ser minimizadas diante da obra dita “original”. A autora fala que “ser um segundo não significa ser secundário ou inferior; da mesma forma, ser o primeiro não quer dizer ser originário ou autorizado” (HUTCHEON, 2013, p. 13). São observados, então, no musical Kiss me Kate, vários aspectos que podem ser relacionados à peça A Megera Domada, além de ser rica em canções que fazem referência à obra e aos personagens da obra em questão. Na obra de Shakespeare, Catarina é tida como megera por não aceitar tudo aquilo que tentavam impor a ela. Naquela época, a mulher deveria ser obediente a quem quer que fosse sem poder questionar e, além disso, deveria se casar. Exatamente o oposto disso tudo, poderia ser encontrado em Catarina: era temida por todos por causa de seu temperamento forte, não aceitava os ditames da sociedade e não queria se casar. Já sua irmã Bianca, é extremamente dócil, obediente e tem vários pretendentes. Apesar de muitos duvidarem que isso acontecesse um dia, Catarina acaba se casando, depois de muita relutância, com Petrucchio e isso, ao contrário do que parece, não faz com que a personagem tenha se tornado submissa.

6. Resultados e discussões No filme homônimo ao musical de Cole Porter, dirigido por George Sidney, há um show dentro do show, assim como há a peça dentro da peça em A Megera Domada. No musical, a atriz Lili Vanessi (KathrynGrayson) fica claramente insatisfeita, pois Fred Graham (Howard Keel) chamara, além dela, sua atual amante Louis Lane (Ann Miller) para atuarem na peça de Shakespeare. Lili, então, pede para queTex, seu atual noivo, busque-a e leve-a de volta para a

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casa em razão de sua insatisfação. Tex chega ao local e Lili deixa o palco antes de realizar a performance de seu último número, a cena do discurso de Catarina. Fred, que interpreta Petrucchio, pede à uma outra atriz, Jeanie, que substitua Lili em seu papel de Catarina. Entretanto, quando Baptista Minola chama sua filha Catarina ao palco, Lili, que já não era mais esperada, aparece caracterizada como Catarina e surpreende a todos. Ela entra em cena, ajoelha-se e pergunta ao seu marido Petrucchio, respeitosamente, qual seu desejo. Petrucchio pede que Catarina diga às outras mulheres quais seus deveres perante seus senhores e maridos, assim como acontece no Ato V, cena II de A Megera Domada. Catarina, portanto, começa seu último discurso na última cena da peça. No discurso do musical, assim como na peça, Catarina fala sobre a pequenez das mulheres diante de seus esposos e de como elas devem ser obedientes a eles. O discurso reproduzido por ela reúne algumas partes do discurso proferido por Catarina na peça de Shakespeare. Na cena do musical, os holofotes são direcionados exclusivamente para Catarina e, além da luz, elementos como maquiagem, expressão facial, gestos, figurino e fundo musical conferem mais dramaticidade à cena. Segundo MarjorieGarber (2008, p. 71), é difícil ler o discurso com ironia 1. Entretanto, é menos difícil de notar essa ironia quando se assiste à performance. Desse modo, a ironia pode ser observada no número do musical de Cole Porter, assim como a dramaticidade que a atriz confere à cena. O discurso é recitado, não é cantado, e há um fundo musical melodramático que colabora na construção da dramaticidade e ironia da cena. Linda Hutcheon (2013, p. 48) afirma que As representações visuais e gestuais são ricas em associações complexas; a música oferece ‘equivalentes’ auditivos para as emoções dos personagens, e, assim, provoca reações afetivas no público; o som, de modo geral, pode acentuar, reforçar, ou até mesmo contradizer os aspectos visuais e verbais.

A cena é composta por um rico conjunto de elementos, citados anteriormente, que fazem com que aquilo que era imaginação, ao ler, se torne percepção. Visto que, ainda segundo Hutcheon (2013, p. 48), No modo contar – na literatura narrativa, por exemplo, - nosso engajamento começa no campo da imaginação (...). Mas com a travessia para o modo 1

“It is difficult to read—much less perform—these lines as ironic” (GARBER, 2008, p.71)

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mostrar, como em filmes e adaptações teatrais, somos capturados por uma história inexorável, que sempre segue adiante. Além disso, passamos da imaginação para o domínio da percepção direta (...).

As percepções experenciadas pelo expectador, portanto, serão únicas. 7. Considerações finais São inúmeras as semelhanças entre o número do musical de Cole Porter e a peça shakespeariana, entretanto, pelo fato de a essência e a especificidade dos diferentes modos aqui analisados, contar e mostrar, serem distintas cabe a nós analisarmos sem minimizar um modo em detrimento do outro. Ademais, fidelidade não deve ser critério para julgamento e/ou análise de uma obra. Afirma-se, aqui, através da análise de um dos números musicais de Kiss me Kate, a grandiosidade do gênero musical, que consegue transpor ou reler aquilo que Shakespeare conseguiu há séculos com A Megera Domada. Com o musical em questão o expectador tem a oportunidade de ter contato com um clássico shakespeariano que trata assuntos atuais, mesmo tendo sido escrito há séculos, epor meio de um conjunto de elementos que enriquece as percepções geradas por Kiss me Kate.

Referências bibliográficas ARISTÓTELES. Poética. Aristóteles. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os pensadores, 04). BARBOSA, Teresa Virgínia; BRANDÃO, Jacyntho Lins e TREVISAM, Matheus. Apresentação. In:Aletria: revista de estudos de literatura. n. 19, jul./dez. 2009. (Número especial: Herança Clássica). Belo Horizonte: POSLIT, Faculdade de Letras da UFMG. pp. 710. BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2008. BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Trad. José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. BOQUET, Guy. Teatro e Sociedade: Shakespeare. São Paulo: Perspectiva, 1969. CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos? São Paulo: Companhia das Letras, 1993. EVERETT, William A.; LAIRD, Paul R. (eds.). The Cambridge companion to the musical. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. ( Cambridge companions to music). GARBER, Marjorie. Shakespeare after all. New York: Anchor Books, 2004. GASSNER, John. Mestres do teatro I. Trad. Alberto Guzik e J. Gunsburg. São Paulo: perspectiva, 1974. HELIODORA, Barbara. Falando de Shakespeare. 1ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001. HELIODORA, Barbara. Por que ler Shakespeare. São Paulo: Globo, 2008.

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HELIODORA, Barbara. Reflexões Shakespearianas. Rio de Janeiro: Lacerda, 2004. HUTCHEON, Linda. A Teoria da Adaptação. 2ª ed. Santa Catarina: Editora UFSC, 2013. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. 1ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1999. PRADO, Decio de Almeida. A personagem teatral. In: Candido, R.P.G. et al. A personagem de ficção. 12ed. Sao Paulo. Perspectiva: 2002. SANDERS, Julie. Adaptation and appropriation. London: Routledge, 2006. SANDERS, Julie. “Shakespeare with a contemporary musical twist.” In: _____ Shakespeare and music: afterlives and borrowings. Cambridge/Malden: Polity, 2007. SANTOS, Marlene Soares dos. O cômico em Shakespeare: rindo com o bardo. Revista Entrelivros, Entreclassicos. Ed.2. 2006. SHAKESPEARE, William. A MegeraDomada.Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 1999. SHAKESPEARE, William. The Taming of the Shrew. In: The Complete Works. Oxford: Clarendon Press, 2005.

7.1. SITES <http://www.vam.ac.uk/page/m/musical-theatre/>. Acesso em 25 abr. 2016. <http://www.tonyawards.com/index.html>. Acesso em 25 abr. 2016.

7.2. MUSICAL EM DVD Kiss me Kate. Direção: George Sidney. Música: Cole Porter; Saul Chaplin; André Previn; Conrad Salinger.Intérpretes: Kathryn Grayson; Howard Keel; Ann Miller. Roteiro: Dorothy Kingsley. DVD (109 min.), widescreen, color. Produzido por Jack Cummings. Estados Unidos, 1953.

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HÁ ALGO DE PODRE NA REPÚBLICA DO BRASIL: UMA RELEITURA DE HAMLET NA CRÔNICA A CENA DO CEMITÉRIO, DE MACHADO DE ASSIS Rafael Lobão Gotti Universidade Federal de Viçosa, lobaogotti@gmail.com

Resumo: Hamlet é uma das peças mais encenadas da história do teatro ocidental e podemos considerá-la como um dos textos que inaugura a modernidade ao discutir questões como a repressão patriarcal à sexualidade feminina, luta de classes, a existência humana, além de englobar, como afirma Solange Ribeiro de Oliveira, “primorosa ourivesaria verbal e requintes de construção dramática, passando pela investigação psicológica – o mergulho nas profundezas do eu – sem descartar substratos históricos, sociais e metafísicos” (OLIVEIRA, 2008, p. 14).Com base na riqueza de temas que essa obra possui, o presente trabalho parte do texto shakespeariano para propor uma releitura da crônica conhecida como A cena do cemitério, de Machado de Assis – publicada no dia 3 de junho de 1894 na Gazeta de notícias –, na qual o texto machadiano parodia o ato V da peça, ressignificando alguns temas presentes nesta obra do dramaturgo inglês. Nossa proposta tem como objetivo discutir e indagar sobre as funções da incorporação dessa camada intertextual (BAKHTIN, 2002) no texto do autor brasileiro, observando o modo como Machado se serve do texto shakespeariano: recorta-o, transporta-o para outro gênero, outra época, flexibilizando personagens, apropriando-se de imagens e valores sem perder de vista o seu horizonte de diálogo. A análise deste trabalho nos permite avaliar o modo como Machado subverte o texto clássico e emprega-lhe novas formas e significados ao contextualizá-lo em outro espaço e tempo. Segundo Maria de Fátima Marinho (2008), “a literatura percebeu que poderia, com toda a legitimidade, explorar os interstícios silenciados, os segredos escondidos, que lhe acenavam em todas as palavras não ditas e situações não esclarecidas”, portanto, nossa tese se ancora na ideia de que Machado ao perceber essas lacunas do não dizer literário, as preenche, através de relações dialógicas estabelecidas com outros textos que complementam significativamente a leitura de sua obra. Palavras-chave: Dialogismo. Machado de Assis. Shakespeare. Crônica. Teatro.


Introdução As obras literárias que atravessam séculos e permanecem atuais até os dias de hoje, permitindo novas possibilidades de leituras além das já efetuadas anteriormente, inevitavelmente se fazem de tal modo devido à capacidade que elas têm de captarem aquilo que é universal aos homens, criando, assim, marcas de identidades culturais com os novos leitores que as contemplam com um olhar distante do tempo de produção de uma dada obra, sem que esta perca a essência do texto de outrora. Nesse sentido, podemos dizer que essa permanência do texto antigo o faz clássico, isto é, “aquilo que sobrevive, ou, como se quiser, resiste a sucessivas visitações sem perder a capacidade de gerar novos e estimulantes sentidos, novas e inusitadas, surpreendente e incômodas formas”; e ainda, acrescentar que “um clássico o é, justamente, porque se reinventa, foi uma e outra vez refeito na(s) cultura(s) pelos poetas ou leitores, assume ares ‘transgressivos’ até, sem deixar de ser um ponto de referência para o estabelecimento de continuidades e rupturas...” (BARBOSA, BRANDÃO e TREVISAM, 2009, pp. 7-10).Esse ponto de referência refere-se ao universal humano, que pode ser bem estudado se aprofundarmos nosso olhar em direção aos textos clássicos, como, por exemplo, as obras shakespearianas. Cremos ser unânime a opinião entre críticos de que esses textos compõem o cânone da literatura ocidental, sendo eles, muitas vezes, o ponto de partida de algumas discussões que dizem respeito à existência humana e suas relações com o mundo que a cerca, além de ser uma espécie de palimpsesto de diversos textos literários dos mais variados gêneros, desde crônicas, contos, até romances e roteiros de cinema. Hamleté uma das peças mais encenadas da história do teatro ocidental e podemos considerá-la como um dos textos que inaugura a modernidade ao discutir questões como a repressão patriarcal à sexualidade feminina, luta de classes, dentre outros temas. Além de englobar, como afirma Solange Ribeiro de Oliveira, “primorosa ourivesaria verbal e requintes de construção dramática, passando pela investigação psicológica – o mergulho nas profundezas do eu – sem descartar substratos históricos, sociais e metafísicos” (OLIVEIRA, 2008, p. 14), a peça Hamlet, inclusive, pode ter

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plantado a semente daquilo que futuramente seria a doutrina filosófica existencialista1 a partir do célebre monólogo do príncipe dinamarquês sobre o“ser ou não ser2”. O presente artigo parte do texto shakespeariano sobre o qual nos debruçamos para um aprofundamento da leitura, através de um olhar dialógico sobre os textos, da crônica conhecida comoA cena do cemitério, de Machado de Assis. O texto machadiano parodia o ato V da peça do dramaturgo inglês, dialogando abertamente com ele. Portanto, nossa proposta tem como objetivo discutir e indagar sobre as funções da incorporação dessa camada intertextual (BAKHTIN, 2002) no texto do autor brasileiro.

O discurso dialógico Na obra Problemas da poética de Dostoiévski, mais precisamente no capítulo O discurso em Dostoiévski, Bakhtin trata dos tipos de discurso na prosa sobre a obra dostoievskiana. Ao refletirmos sobre o discurso, encontramos a necessidade de reconhecer o discurso monológico e o discurso dialógico. Assim temos o primeiro, que não oferece espaço para uma réplica, e que é aquele que pode até mesmo apresentar dois juízos com uma relação lógica, mas que não apresentam uma relação dialógica. O discurso monológico é inexistente nos enunciados de um indivíduo. Já no discurso dialógico, segundo o autor, dois juízos convergem sobre um mesmo objeto, um mesmo tema, transpassando assim discursos de outrem e possibilitando que um juízo expresse uma posição, um comentário sobre o outro, fazendo com que ocorra uma interação entre eles. Há que se levar em conta, portanto, que dialogismo não se trata do diálogo onde há a interação entre enunciados de distintos indivíduos, qualquer enunciado carrega em si outros enunciados que o perpassam dialogicamente. Bakhtin também afirma que as relações dialógicas são extralinguísticas, afinal não podem ser desvinculadas do discurso, e não podem, também, existir nos elementos do sistema linguístico ou nas unidades sintáticas. Assim, sabe-se que todo enunciado é único e não se

1

Corrente filosófica desenvolvida no século XIX por Kierkegaard e que foi no século XX amplamente discutida e popularizada por Sartre na obra O existencialismo é um humanismo. Tal obra aponta para uma perspectiva na qual a essência precede a existência, sendo o livre e responsável pelo seu papel no mundo, isto é, não existe uma natureza humana, tampouco uma moral pré-estabelecida, mas sim as ações humanas que vão determinar o seu ser. Outros importantes existencialistas: Martin Heidegger, Friedrich Nietzsche, Karl Jaspers, Albert Camus, Simone de Beauvoir. 2

Hamlet, III, i.

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repetirá de forma alguma sob o mesmo contexto, o mesmo autor, a mesma intenção, o mesmo leitor/ouvinte, etc. A observação desses elementos extralinguísticos é, portanto, essencial no momento de uma análise literária como a que nos propusemos a fazer. Nas palavras do autor sabemos que: Ao mesmo tempo, não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua enquanto fenômeno integral concreto. A linguagem vive apenas na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, artística, etc.), está impregnada de relações dialógicas (BAKHTIN, 2002, p. 160).

O teórico russoainda fala sobre as vozes polifônicas, quando defende a posição de que não existe um discurso puro, isto é, “um membro de um grupo falante nunca encontra previamente a palavra como uma palavra neutra na língua, isenta das aspirações e avaliações de outros ou despovoada das vozes dos outros” (BAKHTIN, 2002, p. 176).

Assim,

temos na língua inúmeros discursos por onde perpassam textos, vozes, conceitos, etc. Ao falar sobre a realização dos discursos bivocais, o autor cita os fenômenos metalinguísticos do discurso-arte, são eles o discurso parodístico, a estilização e o skaz estilizado3. Conforme Bakhtin, ocorre dentro deles duas orientações significativas, duas vozes em um só discurso: Mas um autor pode usar o discurso de um outro para seus fins pelo mesmo caminho que imprime nova orientação significativa ao discurso que já tem sua própria orientação e conserva. Neste caso, esse discurso, conforme a tarefa, deve ser sentido como o de um outro. Em um só discurso ocorrem duas orientações significativas, duas vozes. Assim é o discurso parodístico, assim é a estilização, assim é o skaz estilizado (BAKHTIN, 2002, p. 164).

Esta concepção bakhtiniana sobre a possível finalidade do uso de um discurso de outrem se faz muito importante para a leitura de textos dialógicos, afinal como afirma o autor: "As palavras do outro, introduzidas na nossa fala, são revestidas inevitavelmente de algo novo, da nossa compreensão e da nossa avaliação, isto é, tornam-se bivocais" (idem, ibidem, p. 169).Como afirma Bakhtin, na estilização e na paródia o que o autor faz é empregar as palavras Segundo Bakthin, “o skaz é introduzido precisamente em função da voz do outro, voz socialmente determinada, portadora de uma série de pontos de vista e apreciações, precisamente as necessárias ao autor. Introduz-se, em suma, o narrador; o narrador propriamente dito não é um letrado, na maioria dos casos é um personagem pertencente a camadas sociais mais baixas, ao povo (precisamente o que importa ao autor) e traz consigo o discurso falado” (BAKTHIN, 2002, p. 192). 3

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de outro para expressar suas ideias, seja para engrandecer o discurso do outro, como na estilização, seja para ridicularizá-lo como na paródia. O fato de um determinado autor parodiar ou estilizar um texto não diminui seu valor estético, pelo contrário, cremos que ao fazer isso homenageia-se o texto fonte, tomando emprestado seu prestígio, além de ressignificá-lo dentro de outro contexto, fazendo ecoar valores e ideias que compõe o texto parodiado ou estilizado. É com base nesses conceitos que Bakhtin traz para seu texto, no qual os analisa no discurso dostoievskiano, que buscamos compreender a noção de dialogismo para empregarmos esse conceito nas relações entre os diálogos que o texto machadiano estabelece com o shakespeariano.

Há algo de podre na república do Brasil Primeiramente, é importante recapitular alguns episódios da peça Hamlet a fim de aproximar nossa leitura da obra para em seguida traçarmos um paralelo entre os dois textos e identificarmos aquilo que está nas entrelinhas do discurso machadiano através das relações dialógicas. A peça é a primeira grande tragédia do autor inglês e foi encenada em 1603 sendo sucesso de público imediato. Segundo Solange Oliveira, “a obra encontra o dramaturgo no ápice de seu gênio”. Publicada em good quarto4 um ano depois de sua primeira apresentação, a peça abrange temas relativos à moral, ao poder, à existência humana, e possui a “dupla capacidade, própria do texto clássico, de remeter ao universal, e, ao mesmo tempo, manter-se compatível com diferentes visões de mundo, trazidas pelas revoluções culturais” (OLIVEIRA, 2008, pp. 13-14). Assim como o texto shakespeariano é emulado em diversas criações literárias, Shakespeare também utilizou-se de lendas escandinavas, persas e célticas para compor Hamlet, além de incluir parte de uma peça italiana, Assassinato de Gonzago, através do recurso metalinguístico. Os textos literários entrelaçam-se invariavelmente em cadeias de textos antecessores como afirma Kristeva: “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é a absorção e transformação de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade e a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla” 4

Existia na época o bad quarto e o good quarto, sendo o primeiro uma cópia apressada e espúria e o segundo provavelmente o manuscrito do autor, que serviu de base para as edições modernas (OLIVEIRA, 2008).

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(KRISTEVA, 1978, p. 64). Essa ideia intertextual e de diálogos entre textos será importante na análise que nos propusemos a fazer. A peça shakespeariana composta por cinco atos, tem o seu primeiro ato dividido em cinco cenas. Logo no início temos a aparição do fantasma do falecido rei Hamlet no terraço do castelo em Elsinor, que pode ser visto como um recurso dramático utilizado pelo autor inglês para prender a atenção e conseguir o silêncio do público desde os primeiros momentos da encenação. A situação do reino da Dinamarca começa a ser colocada aos olhos dos espectadores e/ou leitores: sabe-se do casamento da rainha Gertrudes com o irmão do finado rei, Cláudio, que assume o trono; outras importantes personagens aparecem, sendo as instruções de Polônio ao filhos Laertes e Ofélia que nos é colocada logo em seguida – ao filho, o conselheiro do rei alerta sobre os problemas que seu primogênito pode encontrar durante sua estadia na França, e à filha para que não dê ouvidos às investidas amorosas de Hamlet, pois eles não faziam parte da mesma casta social que ela e seu amor poderia ser “alçapão pra apanhar rolinhas 5”. Ainda no primeiro ato, o príncipe dinamarquês se encontra com o fantasma de seu pai que lhe revela ter sido assassinado pelo próprio irmão enquanto dormia no jardim e roga ao filho que vingue sua morte. A partir desse ponto, o príncipe guarda o segredo para si e traça a estratégia de fingirse de louco para poder apurar melhor se a história que o fantasma lhe contara era realmente verdadeira, mesmo porque, segundo Oliveira (2008), a doutrina protestante que existia na Inglaterra na época do renascimento tinha como prerrogativa que fantasmas eram manifestações demoníacas. No segundo ato, composto por apenas duas cenas, o rei e rainha tentam descobrir os motivos que levaram Hamlet a ficar louco, convocando, para que prestem serviços à coroa, duas pessoas estimadas pelo príncipe, Guildenstern e Rosencrantz, pedindo-os que indaguem levianamente o melancólico amigo sobre os reais motivos que o atormentavam; enquanto isso, o príncipe põe em prática seu plano: se mantém afiado nos discursos, os quais transbordam de metáforas e ironias – “palavras, palavras, palavras6” – , intercalando momentos de lucidez e insanidade com as pessoas que o rodeiam, mantendo-se fiel apenas ao seu único amigo, 5

Hamlet, I, iii

Hamlet, II, ii. O príncipe ao ser perguntado o que estava lendo responde: “palavras, palavras, palavras” ironizando seu interlocutor. 6

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Horácio. Mais adiante, recém- chegado à corte, um grupo de teatro torna-se uma estratégia infalível para que Hamlet confirmasse as suspeitas levantadas pelo espectro do falecido rei: o príncipe pede que acrescentem algumas modificações na peça que ele sugerira que fosse representada, Assassinato de Gonzago, acrescentando falas de modo que incluiria a cena que o fantasma do finado pai havia-lhe narrado sobre o dia derradeiro de sua morte. O terceiro ato é estruturado em quatro cenas onde a carga dramática da peça ganha contornos mais fortes a cada uma delas: na primeira temos a tentativa de Polônio em desvendar os segredos da loucura de Hamlet, pois cria o conselheiro do rei que o amor não correspondido de sua filha ao príncipe foi o gatilho que disparou a perda de razão no jovem. Desse modo, promove um reservado encontro “ao acaso” com Ofélia, onde Cláudio e Polônio estariam ocultos a fim de escutarem a confissão do atordoado e melancólico filho de Gertrudes. Nesse momento nos defrontamos com a dúvida existencial que paira sobre os pensamentos de Hamlet: “ser ou não ser – eis a questão/ Será mais nobre sofrer na alma/ Pedradas e flechadas do destino feroz/ Ou pegar em armas contra o mar de angústias –/ E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir [...] 7”. Poderia o príncipe suicidar-se e por vim as angústias, indo contra a moral religiosa e sofrer pena de vagar entre almas perdidas numa eternidade de sofrimento, ou aceitar o absurdo da existência e manter-se firme perante os problemas e agir como dono do próprio destino executando seu plano de vingança? Eis a dúvida: reconhece-se um mundo sem possibilidades de mudança e a impotência que temos perante ele, sabendo que deve-se tomar uma decisão sem poder mensurar as consequências, sendo a única maneira que se tem para fugir desse problema conflita com a moral adotada na vida. Em seguida, o príncipe dissimula desprezo à Ofélia fazendo crer que a melancolia é o mal que lhe aflige. Na segunda cena, a linguagem metalinguística é aplicada com maestria quando dentro da peça de teatro temos a encenação de outra peça, dando-nos uma dimensão mais aproximada de como eram as apresentações no tempo do autor inglês, indo além do texto, transcendendo os aspectos linguísticos ao estabelecer relações dialógicas com algo extratextual, que é o ambiente do teatro físico e suas ações propriamente ditas. Ampliando essa dimensão metalinguística, Hamlet fazse de diretor ao explicar aos atores como gostaria que interpretassem sua contribuição à peça,

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Hamlet, III, i.

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sendo, portanto, diretor e autor, pois contribui com falas e cenas – inclusive, essa é uma das grandes habilidades de Shakespeare, recriar em cima de textos já prontos, enriquecendo-os com carga dramática e linguagem poética. Com a representação da peça Assassinato do Gonzago, Hamlet confirma suas suspeitas após o rei levantar-se e sair na sequência da cena que imitava o assassinato que ele cometera contra o próprio irmão para herdar a coroa e o leito fraterno. Em seguida, o príncipe é chamado para uma conversa com a sua mãe e a desmedida acontece, é nesse momento que a tragédia é colocada em marcha: aconselhada por Polônio a tentar dissuadir o filho de seus intentos, a matrona pensando que sua prole a mataria grita por socorro, quando o conselheiro do rei reage de trás da tapeçaria, onde ficara escondido para ouvir a conversa dos dois, Hamlet mata-o pensando tratar-se do rei. Pouco antes, porém, no caminho ao encontro da rainha, o príncipe vira seu tio/pai rezando e pensa em mata-lo ali mesmo, entretanto, a possibilidade de salvação de sua alma por uma possível redenção de ser morto enquanto rezava faz com que o jovem procrastine ainda mais sua vingança. No ato quatro, sete cenas são representadas na peça, onde o rei é informado da morte de seu conselheiro e busca tentar descobrir onde o corpo de Polônio se encontra. Sob o falso pretexto de proteger o príncipe, o rei decide mandar Hamlet para Inglaterra com seus supostos amigos Ronsencrantz e Guildenstern. Em seguida, Ofélia entra em um devaneio da loucura que a acometera devido a morte do pai, e seu irmão retorna à Dinamarca e quer vingar a todo custo sua de Polônio. Hamlet, que iria para Inglaterra, retorna e o rei aproveita-se do ódio de Laertes para incitá-lo a assassinar o jovem príncipe, pois se assim o fizesse garantiria um bom funeral para o pai e teria sua vingança consumada, e o rei resolveria os problemas que o príncipe estava lhe causando. Desse modo, elaboram um plano para que não fossem levantadas suspeitas do hediondo crime que confabularam. Nesse mesmo ato temos, além da aparição do exército norueguês liderado por Fortinbrás – que vai combater com a Polônia e pede passagem pacífica pelas terras dinamarquesas que foram perdidas por seu tio na guerra com o falecido rei Hamlet –, o suicídio de Ofélia: tomada pela loucura a jovem sobe em uma árvore e cai na água, afogando-se devido ao peso dos tecidos molhados de seu vestido. O quinto e último ato da tragédia é composto por duas cenas: a primeira no cemitério onde dois coveiros discutem questões sociais, como, por exemplo, o privilégio que a nobreza tem por possuir riquezas e terras, pois até uma suicida é enterrada em solo sagrado. Hamlet e

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Horácio, ao conversarem com os coveiros – aliás os únicos que se igualam ao príncipe em sagacidade e habilidade em estabelecer ambiguidades e aplicar boas metáforas em seus discursos – um deles mostra o crânio do antigo bobo da corte Yorick, o qual o príncipe conhecia. Este ironiza o estado em que o antigo bobo se encontra e entra em reflexões sobre a existência e a morte: “Alexandre morreu; Alexandre foi enterrado; Alexandre voltou ao pó; o pó é terra; da terra nós fazemos massa. Por que essa massa que ele se converteu não pode calafetar uma barrica?8”. Em seguida, chega o pequeno cortejo fúnebre para enterrar Ofélia e uma briga é travada entre Hamlet e Laertes. Nesse momento, o qual a loucura parece ter abandonado o príncipe, ele declara o imenso amor que sentia pela finada jovem. Na última cena temos a consumação plena da tragédia: o plano do rei em fazer Laertes duelar com Hamlet dá certo, porém tudo acontece de modo inesperado. Para garantir o sucesso da empreitada o irmão de Ofélia envenena a espada que ele usará para duelar com o príncipe e o rei envenena a taça de vinho que o jovem beberia, entretanto a rainha bebe a taça, ambos que duelam são feridos pela lâmina envenenada, Laertes anuncia que o rei conspirava contra o príncipe que põe fim ao seu plano de vingança traçado desde a revelação do espectro de seu pai. Após toda a tragédia que colocara fim aos nobres que controlavam o poder, Fortinbrás chega como uma espécie de deus exmachina9 e reinstaura a ordem no reino da Dinamarca. Nas palavras do agonizante Hamlet antes de morrer: “O resto é silêncio...10”. Partindo da cena da conversa dos coveiros, no último ato da peça, uma relação dialógica é estabelecida abertamente com a crônica de Machado de Assis – publicada no dia 3 de junho de 1894, conhecida como A cena do cemitério, na Gazeta de notícias – a qual o autor se coloca nessa mesma cena, porém com uma particularidade: os homens que ali cavavam além de coveiros “eram ao mesmotempo corretores, e tratavam de ossos e papéis”, e ele o próprio Hamlet: Sonhei que era Hamlet; trazia a mesma capa negra, as meias, o gibão e os calções da mesma cor [...] tinha a própria alma do príncipe da Dinamarca. Até aí nada houve 8

Hamlet, V, i.

Trata-se de um expediente do teatro trágico, uma “salvação inesperada e quase miraculosa [...] para fazer que situações desesperadas cheguem a uma solução [...] um deus punha as coisas em seus devidos lugares, fornecendo, portanto, uma solução 'externa' aos acontecimentos” (TOSI, 2010). 9

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Hamlet, V, ii.

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que me assustasse. Também não me aterrou ver, ao pé de mim, vestido de Horácio, o meu fiel criado José. Achei natural: ele não o achou menos (ASSIS, 1994, p. 173).

O sonho se deu devido ao fato de uma leitura noturna que fizera da gazeta de notícias sobre a cotaçãoda praça, a qual, segundo narra o autor, “não a licom igual indiferença, em razão das recordações que trazia do ano terrível (1890-91). Gastei mais tempo a lê-a e relê-la. Afinal pus os jornais de lado, e, não sendo tarde, peguei de um livro, que acertou de ser Shakespeare. O drama era Hamlet”. Essa mistura de “alhos com bugalhos” (p.173), ou seja, a obra do autor inglês e o contexto brasileiro do final do século XIX, permite novas interpretações para a crônica machadiana se fizermos uma leitura dialógica sobre a tragédia no reino da Dinamarca e o contexto socioeconômico do Brasil na virada do sistema político brasileiro – da Monarquia para República. À época em que a crônica machadiana fora produzida, o país acabara de se tornar uma república e uma febre de negócios e de especulação financeira ditavam o ritmo da economia brasileira. A cada dia bancos eram abertos e novas empresas, muitas das quais sequer existiam de verdade, vendiam seus projetos de industrialização fomentados pelo governo presidencial. Os novos bancos a fim de aquecerem o mercado interno passaram a produzir moedas e títulos a serem resgatados futuramente, porém o lastro dos bancos e futuras empresas, isto é, suas reservas de riqueza, não condiziam com o patrimônio que eles possuíam. Logo, muitos foram à falência e os títulos anteriormente valorizados passaram a valer quase nada. Essa crise ficou conhecida como Encilhamento, que segundo o historiador Boris Fausto, essa analogia com a preparação de cavalos de corrida – encilhamento – “teria sido aplicada à disputa entre ações de empreses na Bolsa do Rio de Janeiro, trazendo em si a ideia de jogatina” (FAUSTO, 2006, p. 252). Podemos atestar esse modelo econômico instaurado na sociedade brasileira, descritos pela pena de Machado de Assis com fina ironia ao nos contar sobre o primeiro encontro com os coveiros-corretores: A um deles ouvia bradar que tinha trinta ações da Companhia Promotora das Batatas Econômicas. Respondeu-lhe outro que dava cinco mil réis por elas. Achei pouco dinheiro e disse isto mesmo a Horácio, que me respondeu, pela boca de José: “Meu senhor, as batatas desta companhia foram prósperas enquanto os portadores dos títulos não as foram plantar. A economia da nobre instituição consistia justamente em não plantar o precioso tubérculo; uma vez que o plantassem, era indício certo da decadência e da morte”(ASSIS, 1994, p. 174).

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No texto shakespeariano os coveiros são os únicos a encararem a sabedoria de Hamlet com franqueza e igualdade, pois tratam-no com a mesma ironia que o príncipe destila a todos – “o senhor não sabe? Qualquer idiota sabe11” –, além de serem tidos por ele como espertos: O patife é esperto! Devemos falar com precisão, ou ele nos envolve em ambiguidades. Por Deus, Horácio, há uns três anos venho notando isso: nosso tempo se tornou tão refinado que a ponta do pé do camponês já está no calcanhar do cortesão; até lhe machucando os calos.12

Essa esperteza é transposta para os coveiros machadianos, visto que “faziam trocadilhos, como os coveirosde Shakespeare” (ASSIS, 1994, p. 174). Se aliarmos essa ideia ao modelo de jogatina financeira executados no Brasil nesse período, através das palavras do príncipe dinamarquês, temos o ethos dos corretores brasileiros sugerido por Machado, ou seja, aqueles que “devemos falar com precisão, ou ele nos envolve em ambiguidades”, além da ideia de que “há uns três anos” a sociedade vem sofrendo transformações significativas: na história brasileira, por exemplo, a chegada de imigrantes após a abolição dos escravos, a industrialização, o movimento de urbanização crescente, podem ser lidos, sob uma ótica dialógica entre os textos, como as mudanças que Hamlet observava no reino da Dinamarca também aconteciam de certo modo no Brasil – levando em consideração as diferentes condições sociais e históricas, poderíamos dizer que algo de novo estava acontecendo na sociedade. O texto parodiado, segundo Bakhtin, é aquele que acontece quando o autor alia à linguagem do outro à propósitos diferentes daqueles presentes no texto fonte, convertendo o discurso em “um palco de luta entre duas vozes” (BAKHTIN, 2002), ou seja, o que está dito no texto shakespeariano pode ser empregado ao texto machadiano nesse contexto. Mais adiante na crônica o autor no diz que “os primeiros títulos, em março de 1891, subiram a conto de réis; mas se nada há seguro neste mundo conhecido, pode havê-lo no incognoscível?”(ASSIS, 1994, p. 174). Na releitura que nos propusemos fazer da peça, poderíamos atribuir essa ideia de mundo conhecido e desconhecido como um diálogo com a célebre frase de Hamlet a Horácio: “há mais coisas no céu e na terra, Horácio/do que sonha sua

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Hamlet, V, i.

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Hamlet, V, i.

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filosofia13”, ou seja, Machado entende o funcionamento do capitalismo ascendente no mundo, o qual no Brasil começava a mostrar sua força, e nos sugere que em assuntos econômicos existem acontecimentos que fogem a nossa compreensão, isto é, poderíamos perfeitamente ler o trecho anterior no contexto brasileiro como há mais coisas entre a bolsa de valores e seus títulos, brasileiro, do que sonha sua economia. À luz da narrativa shakespeariana, Machado destila com equivalente argúcia sua ironia ao comparar um título dito seguro e lucrativo que os corretores prometiam aos seus sócios, a debênture14, com o crânio do bobo Yorick. Segundo Linda Hutcheon em seu livro Uma teoria da paródia (1985), “a ironia parece ser o principal mecanismo retórico para despertar a consciência do leitor”, sendo que ela “participa no discurso paródico como uma estratégia [...] que permite ao descodificador interpretar e avaliar” (p. 47), ou seja, nessa apropriação que o autor faz de um texto e ressignifica-o em outro contexto, o que se busca é transportar valores do texto fonte a fim de permitir um aprofundamento reflexivo maior sobre o novo tema, sendo a ironia um dos principais recursos que dispõe o texto parodístico para alcançar esse fim. A autora ainda acrescenta que a ironia é, por assim dizer uma forma sofisticada de expressão. A paródia é igualmente um género sofisticado nas exigências que faz aos seus praticantes e intérpretes. O codificador e, depois, o descodificador, têm de efectuar uma sobreposição estrutural de textos que incorpore o antigo no novo. A paródia é uma síntese bitextual(HUTCHEON, 1985, p. 50).

Nesse sentido, Machado transporta o mesmo tom de ironia usado por Hamlet, respeitando o modelo que estrutura o diálogo do príncipe com seu amigo Horácio no texto shakespeariano, alterando apenas o objeto que se deseja contemplar, adaptando as falas da peça para crônica para ajustar à realidade do contexto econômico brasileiro. Essa estratégia do autor brasileiro fica patente se observarmos os trechos que se seguem: Deixa eu ver. (Pega o crânio). Olá, pobre Yorick! Eu o conheci, Horácio. Um rapaz de infinita graça, de espantosa fantasia. Mil vezes me carregou nas costas; e agora, me causa horror só de lembrar! Me revolta o estômago! Daqui pendiam os lábios que eu beijei não sei quantas vezes. Yorick, onde andam agora as tuas piadas? Tuas 13

Hamlet, I, v. Debêntures são certificados ou títulos de valores mobiliários emitidos pelas sociedades anônimas, representativas de empréstimos contraídos pelas mesmas, cada título dando, ao debenturista, idênticos direitos de crédito contra as sociedades, estabelecidos na escritura de emissão(FAUSTO, 2006). 14

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cambalhotas? Tuas cantigas? Teus lampejos de alegria que faziam a mesa explodir em gargalhadas? Nem uma gracinha mais, zombando da tua própria dentadura? Que falta de espírito! Olha, vai até o quarto da minha grande Dama e diz a ela que, mesmo que se pinte com dois dedos de espessura, este é o resultado final; vê se ela ri disso! Por favor, Horácio, me diz uma coisa.15 Repetiu o nome do título. Uma debênture? — Uma debênture. Deixe ver, amigo. E, pegando nela, como Hamlet, exclamei, cheio de melancolia: — Alas, poorIorick! Eu a conheci, Horácio. Era um título magnífico. Estes buracos de olhos foram algarismos de brilhantes, safiras e opalas. Aqui, onde foi nariz, havia um promontório de marfim velho lavrado; eram de nácar estas faces, os dentes de ouro, as orelhas de granada e safira. Desta boca saíam as mais sublimes promessas em estilo alevantadoe nobre. Onde estão agora as belas palavras de outro tempo? Prosa eloqüente e fecunda, onde param os longosperíodos, as frases galantes, a arte com que fazias ver a gente cavalos soberbos com ferraduras de prata e arreios de ouro?Onde os carros de cristal, as almofadas de cetim? Dize-me cá, José Rodrigues(ASSIS, 1994, pp. 174-175).

Desse modo, na paródia que Machado faz da cena em questão a indiferença e desprezo de Hamlet está para Yorick, assim como a economia brasileira está para seus investidores, segundo o olhar irônico e perceptivo do autor brasileiro. Se antes eram tratados com consideração quando eram solicitados, hoje “me revolta o estômago” a sua presença. As belas palavras de promessa de lucro e rentabilidade “em estilo alevantado e nobre” se desfizeram completamente, e a “prosa eloqüente e fecunda, onde param os longos períodos, as frases galantes, a arte com que fazias ver a gente cavalos soberbos com ferraduras de prata e arreios de ouro” foram silenciadas, assim como as piadas de Yorick. Toda esperança daqueles que acreditaram em um novo modelo econômico que impulsionasse o país ao crescimento e industrialização é colocado em pé de igualdade com a caveira de uma personagem que dentro de suas perspectivas sociais só teve importância quando alegrava, passado o momento de prestígio não possuía mais valor. Assim foram as debêntures nos anos que se seguiram a crise econômica do Brasil na última década do século XIX: teve importante papel nos negócios, porém encontra-se completamente deteriorada como um crânio o qual o processo de decomposição deixara somente os ossos, ou seja, apenas um papel sem valor. Desse modo, com a sobreposição desses trechos podemos concluir que Machado não era muito crente em um avanço nos modelos econômicos, visto que a jogatina financeira especulativa não passava agora 15

Hamlet, V, i.

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de um monte de crânios que eram desenterrados para que abrisse espaço para novos defuntos, fazendo uma analogia com o corpo de Ofélia como um novo sistema econômico instaurado que morreria ainda jovem. As piadas de um bobo são como as promessas dos corretores, não tinham função prática era apenas diversão para entreter os poderosos, ou seja, uma simples corrida de cavalos onde aposta-se naquele que aparece com mais chances de sucesso. A proposta de expansão de crédito de Rui Barbosa16, visava “gerar a ideia de que a República seria o reino dos negócios. Formaram-se muitas empresas, algumas reais e outras fantásticas. A especulação cresceu nas bolsas de valores e o custo de vida subiu fortemente”, como afirma Boris Fausto (2006, p. 252). Essa ideia de “reino dos negócios” brasileiro pode ser vista como uma comparação ao reino da Dinamarca hamletiano: em seu trágico fim um estrangeiro assumiu o trono, o norueguês Fortinbrás; na tragédia da república brasileira, a soberania como nação independente também é herdada pelo capital estrangeiro – nesse caso pela Inglaterra em sua maior parte devido aos empréstimos cedidos sob o propósito de manter aquecida a economia e não frear o processo de industrialização. Não havia cem anos que o Brasil tinha ficado independente de Portugal e agora se via novamente completamente emparelhado com outro país tornando-se novamente colônia, ou seja, o aumento do custo de vida agrava as condições sócio-econômicas da maior parte da população brasileira, retrocedendo como aos tempos que antecederam a independência: toda a riqueza do país ficaria para apenas uma pequena parte rica, composta essencialmente por estrangeiros, enquanto os próprios brasileiros amargavam o sabor da pobreza necessitando de favores para terem qualquer mobilidade social. Essa comparação entre Brasil e o reino da Dinamarca hamletiano se faz muito produtiva se ainda levarmos em conta que somente presidentes militares haviam governado o Brasil17 à época da crônica machadiana, que nos leva a crer que o exército de Fortinbrás, isto é, os militares no governo, representam a maior força que o capital estrangeiro tinha para conquistar seu espaço: seja com poderio bélico como a colonização dos países africanos no século XIX, seja aproveitando-se de uma tragédia econômica na América Latina – e a guerra com a Polônia e o desfecho da tragédia shakespeariana, respectivamente. Ao

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Ministro da Fazendo do governo provisório do Marechal Deodoro (FAUSTO, 2006).

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Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto

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enxergar todo esse cenário onde a vida imita a arte, cremos que a conclusão que Machado chega e pretende sugerir aos leitores através dessa crônica é que “há algo de podre18” na república do Brasil.

Considerações finais Machado em sua obra estabelece diálogos com diversos autores 19 introduzindo em seu texto camadas intertextuais as quais ecoam em sua obra o mesmo prestígio e a autoridade legado pelo texto clássico – entendido aqui no sentido de algo que almeja à perenidade, que não seja apenas uma obra contemporânea, mas também extemporânea. Segundo Magalhães, “Machado de Assis faz surgir o homem que afirma e nega, realçando a relação entre individual e social. O sujeito se move, se percebe em algum lugar com determinadas relações [...] não há determinismo, mas olhar consciente sobre a realidade. O sujeito percebe as possibilidades e limites” (MAGALHÃES, 2002, p. 75). É esse sujeito que faz uma análise aguda, sensível e registradora da realidade que o circundava, o Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, aliando essa visão de mundo ao trabalho paciente e ininterrupto de um leitor voraz, que explicita em sua própria obra o seu vasto conhecimento literário.O autorse pôs de acordo com a tradição clássica e foi aos antigos que recorreu para aprimorar suas narrativas, segundo Coutinho, “essa noção clássica é a que comanda o pensamento estético de Machado de Assis. Sua norma é apoiar a criatividade no estudo das técnicas da arte literária através da observação dos modelos e das leis da poética” (COUTINHO apud ASSIS, 2006, p. 56). Nesse trabalho o que pudemos observar é que o autor brasileiro usa como modelo o texto shakespeariano, recorta-o, transporta-o para outro gênero, outra época, outra abordagem, flexibilizando personagens, apropriando-se de imagens e valores, sem perder de vista seu

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Hamlet, I, iv. No que se refere aos estudos machadianos dedicados a reconhecer a presença de outras literaturas/autores: Eugênio Gomes (1958) enfocou a influência inglesa, além de Helen Caldwell (2002), que analisa pormenorizadamente a maneira pela qual o romancista brasileiro constrói a narrativa de Dom Casmurro, tendo como horizonte de retrospecção o Otelo, de Shakespeare; Anita Novinsky (1990) chama a atenção para “o olhar judaico em Machado de Assis”. António Candido (1995), por sua vez, estuda as aproximações de estilo entre o autor e dois nomes: Sterne e Voltaire. Também sobre a presença de autores franceses em Machado, Gilberto Passos dedica uma série de estudos (PASSOS 1992, 1996a, 1996b, 2000 e 2003) Já Marcelo Sandmann (2004) levanta o questionamento sobre a presença portuguesa nos escritos do autor, chegando à constatação de que, em suas obras, Machado se vale da citação de inúmeros autores portugueses, com destaque para Almeida Garrett e Luís de Camões. 19

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horizonte de diálogo, o que permite ao leitor buscar outras referências no texto fonte que complementem sua narrativa. A peça Hamlet carrega significados através do tempo e do espaço, sendo revisitados e revigorados pela narrativa machadiana, sem que se perca a essência do clássico no texto machadiano que dialoga com o texto antigo, imitando-o e parodiando-o. A análise deste trabalho nos permitiu avaliar o modo como Machado se apropria do texto clássico sem que, como ele próprio afirmou, deixe de ser homem do seu tempo e de seu país. Segundo Marinho (2008), “a literatura percebeu que poderia, com toda a legitimidade, explorar os interstícios silenciados, os segredos escondidos, que lhe acenavam em todas as palavras não ditas e situações não esclarecidas”. Machado percebe essas lacunas do não dizer e as preenche: algumas com recortes sociais, outras sugereao leitor que faça sua contribuição e leia as entrelinhas deixadas por ele pelos diálogos quesua obra estabelece com os mais diversos textos.

Referências bibliográficas ASSIS, Machado de. Obra completa. v. 1. Romances. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006. ASSIS, Machado de. Obra completa. V. III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Disponível em: http://machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/cronica/macr12.pdf pp.173-175. BAKHTIN, Mikhail. O discurso em Dostoiévski. In: __. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro. Forense universitária, 2002, pp. 157-238. BARBOSA, Teresa Virgínia; BRANDÃO, Jacyntho Lins e TREVISAM, Matheus.Apresentação. In: Aletria: revista de estudos de literatura. n. 19, jul./dez. 2009. (Número especial: Herança Clássica). Belo Horizonte: POSLIT, Faculdade de Letras da UFMG. pp. 7-10. FAUSTO, Boris. História do Brasil. 14ª ed. São Paulo: EdUSP, 2010. KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1978. MAGALHÃES, Belmira. História literária: um caminho percorrido. In: Revista brasileira de Literatura Comparada, n. 1 (1991), Rio de Janeiro:ABRALIC, 2002, pp. 67-82. MARINHO, Maria de Fátima. A construção da memória. In: Veredeas, n. 10, Santiago de Compostela, 2008, pp. 135-148. OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. Hamlet: leituras contemporâneas. Belo Horizonte: Tessitura; CESh, 2008. SCHWARZ, Roberto. O paternalismo e a sua racionalização nos primeiros romances de Machado de Assis. In: __. Ao vencedor as batatas. 6. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012. pp. 83-116. SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2015. TOSI, Renzo. Dicionário de sentenças latinas e gregas. Trad. Ivone Castilho Benedetti. 3ª ed. São Paulo: Editora WMF, Martins Fontes, 2010.

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ANÁLISE DOS CONTOS A TERCEIRA MARGEM DO RIO, DE GUIMARÃES ROSA, E NAS ÁGUAS DO TEMPO, DE MIA COUTO Regina Costa Nunes Andrade Universidade Federal de Viçosa, rcnandrade11@gmail.com

Gerson Luiz Roani Universidade Federal de Viçosa, rcnandrade11@gmail.com

Resumo: Em várias de suas entrevistas ao longo do tempo, Mia Couto tem admitido ser o projeto artístico de Rosa seu expoente estético e poético. Nesse momento, surge a nossa indagação de até que ponto vai o limite da influência. Dessa maneira, nossa proposta de trabalho é estabelecer uma análise comparativista entre o conto A terceira margem do rio, do escritor brasileiro Guimarães Rosa, e Nas águas do tempo, do escritor moçambicano Mia Couto. Em ambos os contos as personagens não são nominadas, sendo o conto de Rosa composto pelo pai, mãe, irmã, irmão e o narrador-personagem; já o de Couto é composto pelo avô, neto e a mãe. Os contextos de produção literária de Guimarães Rosa e Mia Couto são muito diferentes, sendo que Couto toma “emprestado” a possibilidade de (re)criação da língua pela veia poética em prosa, já que, após a independência a República Moçambicana adota a Língua Portuguesa como idioma oficial. Assim, os neologismos e inserções de palavras em banto são tentativas de apropriar-se da língua do ex-colonizador e torná-la sua, com cores e nuances próprias, desde a construção do enredo à temática. O conto miacoutiano, assim como o de Rosa, traz a temática da existência, ser e pertencer, mas aborda também a problemática da conciliação entre o velho e o novo, o antigo e o moderno, em um território/país que ainda está se formando, se constituindo. O sertão e a savana possuem muitas semelhanças, especialmente nas distâncias, no tempo e na água como espaços em que o sagrado se manifesta, como vemos em ambos os contos. Nessa perspectiva, utilizamos os conceitos de intertextualidade e influência, de Julia Kristeva e Harold Bloom, respectivamente, aliando pressupostos teóricos de Tania Franco Carvalhal, Sandra Nitrini, dentre outros. Palavras-chave: Influência; intertextualidade; poeticidade.


INTRODUÇÃO A importância do escritor poder não ser escritor: É preciso estar livre para mergulhar no lado da nãoescrita, é preciso capturar a lógica da oralidade, é preciso escapar da racionalidade dos códigos da escrita enquanto sistema depensamento. Esse é o desafio de desequilibrista — ter um pé em cada um dos mundos: o da escrita e o da oralidade. Não se trata de visitar o mundo da oralidade. Trata-se de deixar-se invadir e dissolver pelo universo das falas, das lendas, dos provérbios. Mia Couto1

Iniciamos nosso trabalho com um trecho da fala de Mia Couto para a plateia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 2007, na qual explanou acerca da produção e do fazer literário de Guimarães Rosa, escritor brasileiro que, indubitavelmente, inspira o projeto literário miacoutiano. Essa influência se dá de maneira tão aberta que vários estudiosos têm trabalhado, dentro do campo da Literatura Comparada, com obras desses dois escritores, sobretudo seus contos. Em várias de suas entrevistas, Mia Couto tem admitido ser o projeto artístico de Rosa seu expoente estético e poético. Nesse momento, surge a nossa indagação de até que ponto vai o limite da influência Roseana nas produções do escritor moçambicano. Contudo, ao abordar o viés comparativista entre esses dois autores, nos é importante salientar que o projeto estético de uma literatura que almeja representar e (re)criar a linguagem de seu país, foi, primeiramente, apresentado a Couto por meio das obras deLuandino Vieira2, que, por sua vez, havia tido contato com obras roseanas. O escritor moçambicano diz que sua primeira leitura de um texto roseano foi durante o período pós-independência de seu país, em que se encantou por A terceira margem do rio, que 1

Intervenção na Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil, 2007. In: O sertão brasileiro na savana moçambicana. 2

Pseudônimo literário de José Vieira Mateus da Graça, que nasceu em Portugal, em 1935, mas emigrou com os pais para Angola em 1938. A luta contra a dominação portuguesa custou-lhe mais de uma década na prisão, onde escreveu boa parte de sua obra. Em 2006, recusou o Prêmio Camões invocando "razões pessoais e íntimas". Entre seus diversos volumes de narrativas, destacam-se os romances A vida verdadeira de Domingos Xavier e Nós, os do Makulusu (Ática, 1991). Fonte: http://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=02354

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faz parte do livro de contos Primeiras Estórias. Anos depois, em sua coletânea de contos intitulada Estórias Abensonhadas, Mia Couto abre o livro comNas águas do tempo, o qual possui ligação intrínseca como releitura do conto de Rosa. Desde o título do livro há a presença de Guimarães Rosa, uma vez que ao utilizar a palavra “estórias”, grafada com a letra “e”, denota tom conotativo, recurso linguístico apresentado aos escritores africanos em língua portuguesa por meio das obras de Guimarães Rosa. A respeito desse diálogo entre as produções desses dois escritores, salientamos que: Estudando as relações entre diferentes literaturas nacionais, autores e obras, a literatura comparada não só admite, mas comprova que a literatura se produz num constante diálogo de textos, por retomadas, empréstimos e trocas. A literatura nasce da literatura; cada obra nova é uma continuação, por consentimento ou contestação, das obras anteriores, dos gêneros e temas já existentes. Escrever é, pois, dialogar com a literatura anterior e com a contemporânea (PERRONE-MOISÉS p. 94).

Claro que essa busca pela literatura brasileira como referencial, especialmente ado movimento modernista e as produções da década de 30 do século XX,tem sua parcela histórica, já que o Brasil passou a servisto pelos escritores moçambicanos como alternativa a Portugal, o que remete à contraposição ao lusofonismo. Nossa propostade trabalho é estabelecer uma análise comparativista entre o conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, e Nas águas do tempo, de Mia Couto. Em ambos os contos as personagens não são nominadas, sendo o conto de Rosa composto pelo pai, mãe, irmã, irmão e o narrador-personagem; já o de Mia Couto, narrado em terceira pessoa,tem como personagens o avô, o neto e a mãe. Existem outros personagens, porém são apenas mencionados pelos narradores, sem perspectiva no desenvolvimento do enredo. Em A terceira margem do rio temos um narrador em primeira pessoa, que conta a “estória” de seu pai, por meio das reminiscências da infância até sua presente velhice. O pai fora um homem que se esquivava de toda e qualquer convivência com a família e com a sociedade, permanecendo em completa solidão no rio, em uma canoa muito pequena, fabricada especialmente para esta viagem a lugar nenhum, passando a viver “rio abaixo, rio a fora, rio a dentro”.

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O narrador, ainda menino, se compadece do pai e passa a furtar comida para ele, ao que a mãe “só se encobrindo de não saber. Ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir”, como nos relata o narrador. Os anos passam, a irmã casa-se, tem filho e passar morar na cidade, ao que posteriormente a mãe vai morar com ela. O irmão segue com a vida, indo embora. Permanece apenas o narrador-personagem, que se sente ligado ao pai. Após surgirem os cabelos brancos e sentir o peso da velhice, decide assumir o lugar do pai na canoa, mas ao ver pela primeira vez, em tantos anos, o pai esboçar reação em aceitamento da proposta, o filho foge por temeridade do desconhecido. Em seu leito de velhice relata esses pensamentos, indagando se realmente é “homem, depois desse falimento”. No conto de Mia Couto, Nas águas do tempo, o narrador também relata um acontecimento de sua infância, mas nos conta ainda enquanto criança uma experiência que passou com seu avô. Furtivamente o avô levava o neto ao lago, sem o consentimento da mãe do menino. Esse lago é o espaço do mítico e maravilhoso3, sendo que de uma de suas canas surgiu o primeiro homem. Esses passeios nada tinham aver com pescaria, pois o avôse levantava no concho e começava a acenar com seu pano vermelho para a outra margem, o neto não entendia muito bem aquela atitude. Em um desses passeios o menino resolve sair do barco, mas não alcança o fundo do lago, passando a ser puxado por um estranho redemoinho. Ao tentar socorrer o neto, o barco acaba por virar, ao que o avô orienta que ambos acenem. Assim, para o espanto do neto, o redemoinho some e eles se veem a salvo. Noutro momento, o avô novamente leva o menino ao lago, mas para o espanto do narrador, seu avô salta do barco e caminha para onde apontava e dizia ver os acenos com panos, ao que, pela primeira vez, o neto vê o pano branco e também o pano vermelho do avô embranquecer “em desmaio de cor”. Após esse breve resumo dos contos, partiremos para análise, na qual abordaremos os conceitos de influência e intertextualidade, de Harold Bloom e Julia Kristeva, respectivamente, aliando aos estudos teóricos de Sandra Nitrini e Tania Franco Carvalhal, dentre outros. Conforme salienta Nitrini (1997, p. 164) “a análise de uma obra literária buscará inicialmente 3

Ítalo Calvino, em Contos Fantásticos do Século XIX, explica que o maravilhoso se refere às fábulas e contos de fadas, em que o sobrenatural é perfeitamente possível já que o leitor, antes de iniciar a leitura, aceita a convenção da narrativa, que torna natural a existência de coisas impossíveis de acontecer. Disponível em: www.mundofabuloso.blogspot.com.br

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avaliar as semelhanças que persistem entre o enunciado transformador e o seu lugar de origem e, em segundo lugar, ver de que modo o intertexto absorveu o material do qual se apropriou”. Além de que “a intertextualidade e influência constituem conceitos que funcionam bem operacionalmente para se lidar com manifestações explícitas” (idem, p. 167), como ocorre em nossos objetos de análise.

Influência, intertextualidade e apropriação: o dilema na/da prosa poética É preciso chegar à ideia viva do que é o conto, e isso é sempre difícil na medida em que as ideias tendem ao abstrato, a desvitalizar seu conteúdo, ao passo que a vida rejeita angustiada o laço que a conceituação quer lhe colocar para fixá-la e categorizá-la. Mas, se não possuirmos uma ideia viva do que é o conto, teremos perdido nosso tempo, pois um conto, em última instância, se desloca no plano humano em que a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se me permitem o termo; e o resultado desta batalha é o próprio conto, uma síntese viva e ao mesmo tempo uma vida sintetizada, algo como o tremor de água dentro de um cristal, a fugacidade numa permanência. (CORTÁZAR, p. 147)

Sabemos que os contextos de produção literária de Guimarães Rosa e Mia Couto são muito diferentes. Couto toma “emprestado” a possibilidade de (re)criação da língua pela poética em prosa, pois, após sua independência, a República Moçambicana adota a Língua Portuguesa como idioma oficial. Desse modo, os neologismos e inserções de palavras em banto são tentativas de apropriar-se da língua do ex-colonizador e torná-la sua, com cores e nuances próprias, desde a construção do enredo a temática. Isso fica evidente no prólogo de Estórias Abensonhadas, onde Mia Couto escreveu: Estas estórias foram escritasdepois da guerra. Porincontáveisanos as armas tinham vertido luto no chão de Moçambique. Estestextosme surgiram entre as margens da mágoa e da esperança. Depois da guerra, pensava eu, restavam apenascinzas, destroçossemíntimo. Tudo pesando, definitivo e semreparo. Hoje sei quenão é verdade. Onde restou o homem sobreviveu semente, sonho a engravidar o tempo. Essesonho se ocultou no maisinacessível de nós, láonde a violêncianão podia golpear, láonde a barbárienãotinhaacesso. Emtodoestetempo, a terra guardou, inteiras, as suasvozes. Quando se lhes impôs o silêncioelas mudaram de mundo. No escuro permaneceram lunares. Estas estórias falam desse territórioonde nós vamos refazendo e vamos

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molhando de esperança o rosto da chuva, águaabensonhada. Desse territórioondetodohomem é igual, assim: fingindo que está, sonhando que vai, inventando quevolta (COUTO, 1996, p. 07).

Portanto, o elo produzido pelos trabalhos envolvendo esses dois escritores pode vir a ampliar o campo receptivo das obras de ambos, sendo instrumento de contato dos leitores moçambicanos com a literatura brasileira, e de leitores brasileiros com a literatura moçambicana. Mesmo os contextos sendo diferentes, o universo literário acaba por reforçar esse elo. Tanto que Carmen Lucia TindóSecco, ao comparar Guimarães Rosa (Brasil), Luandino Vieira (Angola) e Mia Couto (Moçambique), afirma que: Embora se inscrevam na esfera transgressiva da ficção contemporânea, não rompem com a tradição oral, trabalhando com a memória viva e com o imaginário mítico popular. Os três autores captam aspectos de suas realidades regionais: Guimarães focaliza o sertão de Minas, repleto de jagunços, de lendas e leis próprias; Luandinoficcionaliza a vida nos musseques luandenses, onde o português, mesclando-se ao quimbundo (uma das principais línguas nativas de Angola), se encontra africanizado; Mia Couto, por sua vez, traz para sua prosa os sonhos e as superstições do povo moçambicano, anestesiado pelos anos de guerra e violência (SECCO, 2008, p.61).

Assim, temos que a linguagem poética, os neologismos, a mescla de erudição, informalidade e ditados populares locais geram representações da língua e das sociedades marcadas pelas visões de mundo divergentes que se relacionam – urbano x rural, velho x novo, adulto x criança, rico x pobre, etc. – mas que, mesmo com décadas de diferenças, são da natureza humana. Fato esse que nos remete à Tania F. Carvalhal (1992, p. 63) quando diz que: A noção de originalidade, vista como sinônimo de “geração espontânea”, criação desligada de qualquer vínculo com obras anteriores, cai por terra. (...) Essa capacidade de inverter o estabelecido, de instigar uma releitura, se dá graças à interação dialética e permanente que o presente mantém com o passado, renovando-o (CARVALHAL, 1992, p. 63).

E ao que nos traz Harold Bloom em A angústia da influência:

Mas a influência poética não precisa tornar os poetas menos originais; com a mesma frequência os torna mais originais, embora não por isso necessariamente melhores. Não se pode reduzir as profundezas da influência

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poética a um estudo de fonte, à história das ideias, ao modelamento de imagens (BLOOM, 2002, p. 57).

De acordo com Sandra Nitrini (1997), a influência, como a que percebemos sofrida por Couto, não minimiza sua originalidade, no sentido de novidade (p. 134).Pois essa originalidade literária nada mais é que o “gênio criador que levou um escritor a escolher um assunto, modificar uma técnica, etc., nas suas relações complicadas e variáveis com a tradição, com as influências específicas que agiram sobre ele” (p. 141). Concordamos com Nitrini, uma vez que se “entregar” pura e simplesmente à influência não gera um bom texto, logo esse “gênio criativo” não está passível de permanecer em segundo plano, como pode vir a acontecer caso uma leitura comparativa se limite apenas a um estudo de fonte e aos aspectos das semelhanças. Compreendemos que o diálogo entre textos é próprio da linguagem poética, ainda mais que “toda sequência está duplamente orientada: para o ato da reminiscência (evocação de uma outra escrita) e para o ato de somação (a transformação dessa escritura)”(NITRINI, 1997, p. 162). Essa somação seria, segundo definição do dicionário Aurélio, “variação morfológica não hereditária”, de origem grega, que quer dizer corpo. Como explicamos na introdução, Mia Couto fez essa somação desde o título da coletânea, no conto de abertura, Nas águas do tempo, e ao longo de sua produção em prosa, deixando expressa a presença roseana, cabendo ao leitor identificar esses elementos. Em O sertão brasileiro na savana moçambicana, Mia Couto expõe a importância da oralidade como forma de (re)inventar os códigos de escrita que se impõem ao pensamento. Tendo Rosa como poeta em prosa, relata que: (...) Mais que a invenção de palavras, o que me tocou foi a emergência de uma poesia que me fazia sair do mundo, que me fazia inexistir. Aquela era uma linguagem em estado de transe, que entrava em transe como os médiuns das cerimônias mágicas e religiosas. Havia como que uma embriaguez profunda que autorizava a que outras linguagens tomassem posse daquela linguagem. Exatamente como o dançarino da minha terra que não se limita a dançar. Ele prepara a possessão pelos espíritos. O dançarino só dança para criar o momento divino em que ele emigra do seu próprio corpo. Para se chegar àquela relação com a escrita é preciso ser-se escritor. Contudo, é essencial, ao mesmo tempo, ser-se um não escritor, mergulhar no lado da oralidade e escapar da racionalidade dos códigos da escrita enquanto sistema único de pensamento. Esse é o desafio de desequilibrista – ter um pé em cada um dos

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mundos: o do texto e o do verbo. Não se trata apenas de visitar o mundo da oralidade. É preciso deixar-se invadir e dissolver pelo universo das falas, das lendas, dos provérbios (COUTO, 2005, p.107).

Neste ponto retornamos ao questionamento sobre o limite dessa influência. Na perspectiva de Julia Kristeva (1974, p. 64), “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade”. Esse mosaico é recorrente em Nas águas do tempo, ficando, em nossa leitura, a principal diferença, a novidade, como trazida por Sandra Nitrini, na temática do conto. O conto miacoutiano, assim como o de Rosa, traz a temática da existência, ser e pertencer, mas aborda também a problemática da conciliação entre o velho e o novo, o antigo e o moderno, em um território/país que aindaestá se formando, se constituindo. O sertão e a savana possuem muitas semelhanças, especialmente nas distâncias, no tempo e na água como espaços em que o sagrado se manifesta, como vemos em ambos os contos.No entanto, cabe destacar que esse processo não gera, como alguns levam a crer, um esvaziamento literário do conto de Mia Couto, afinal isso seria restringir o trabalho comparativo ao mero conceito de fonte edesprezar o processo transculturadorsofrido por Brasil e Moçambique e que está presente nos textos de ambos os escritores. Desse modo:

Ao contrariar uma certa ideia de modernização, Rosaacabou criando os pilares de uma outra modernidade estilísticano Brasil. Ele fez isso numa altura em que a literatura brasileiraestava prisioneira de modelos provincianos, demasiado próximado padrão de literatura portuguesa, espanhola e francesa. Deuma similar prisão ansiávamos, também nós, por nos libertar. O que Rosa instaura é o narrador como mediador de mundos.Riobaldo é uma espécie de contrabandista entre a cultura urbanae letrada e a cultura sertaneja e oral. Esse é o desafio que enfrentanão apenas o Brasil, mas também Moçambique. Mais queum ponto de charneira necessita-se hoje de um médium, alguémque usa poderes que não provêm da ciência nem da técnica paracolocar esses universos em conexão. Necessita-se da ligação comaquilo que João Guimarães Rosa chama de “os do lado de lá”.Esse lado está dentro de cada um de nós. Esse lado de lá é, numa palavra, a oralidade. (...) Através de uma linguagemreinventada com a participação dos componentes culturaisafricanos também nós em Angola e Moçambique procurávamosuma arte em que os excluídos pudessem participar da invençãoda sua História. (COUTO, 2007, pp. 102-104).

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A antropofagia oswaldiana, como nos traz Perrone-Moisés, justifica muito bem a proposta de apropriação literária empreendida pelos escritores moçambicanos, pois: A antropofagia oswaldiana nos permite superar essa “ansiedade”, acabar com todo complexo de inferioridade por ter vindo depois, resolver os problemas da má consciência patriótica que nos levam a oscilar entre a admiração beata da cultura europeia e as reivindicações estreitas e xenófobas pelo “autenticamente nacional”. (...) Já a Antropofagia nos salvam desses enganos e dessa má consciência, por assumir alegremente a escolha e a transformação do velho em novo, do alheio em próprio, do déjà vu em original. Por reconhecer que a originalidade nunca é uma questão de arranjo novo (PERRO-MOISÉS p. 98-99).

Realmente esse déjà vu é perceptível aos leitores brasileiros, que notam as constantes referências ao conto de Guimarães Rosa, que vão além dos recursos de linguagem e poeticidade, como, por exemplo, no cenário (rio/lago), os instrumentos (canoa/concho), no fato dos protagonistas narrarem, em primeira pessoa, experiências vividas da infância, as mães que se demonstram contrárias aos intentos dos homens (pai/avô), o aceno com panos brancos, etc. Mas Mia Couto apropria-se, devorando a técnica de roseana, para dar uma voz totalmente sua a uma outra realidade histórica, social e literária.

Além disso, o ponto de vista dos autores sobre os recursos utilizados na construção de suas escrituras, detêm alguma divergência, pois, enquanto Rosa se vale da tradição oral como algo evanescente e tenta demonstrar o imbricamento desses valores como os valores da modernidade, Mia vê essa tradição como algo que faz parte do presente, embora fragmentada e já imbricada a outras culturas, no entanto, não deixa de ressaltar que o seu povo vive com ela – a tradição – e com outros valores, simultaneamente (CHAGAS, 2006, p. 37).

Consequentemente, “um elemento, retirado de seu contexto original para integrar outro contexto, já não pode ser considerado idêntico” (CARVALHAL, 1992,p. 47). Então, como considerar que houve um “esvaziamento do recurso” poético por parte de Couto, restringindoo a apropriador imprudente? Pois, como observa Carvalhal, a análise “comparativista não se ocuparia a constatar que um texto resgata outro texto anterior (...), mas examinaria essas formas, caracterizando os procedimentos efetuados” (idem, p. 51-52).

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Ao nosso ver, Couto traz a carga semântica do conto de Guimarães Rosa, por meio da anamnésia, conforme apresentado por Nitrini (1997, p. 164), as referencias textuais propiciam duas leituras: uma “encarando-a como um fragmento qualquer que faz parte da sintagmática do texto”, ou a que nos é oportuna, já que volta ao “texto de origem, operando uma espécie de anamnésia, isto é, uma invocação voluntária do passado”, ampliando o “espaço semântico” do texto, pois lhe conferindo uma nova carga e mantem as vozes do texto anterior. Diante do já exposto, o que vemos em Nas águas do tempo é a superação da angústia, nos termos de Harold Bloom, pois “a posição do poeta, sua Palavra, sua identidade imaginativa, todo o seu ser, têm de ser únicos dele, e permanecer únicos, ou ele perecerá” (BLOOM, 2002, p. 119). Outra leitura possível entre os contos é o de prequel4, termo muito utilizado pelo cinema, que aportuguesado encontramos como “prequela”. Uma prequela refere-se a uma obra artística que contém os mesmos elementos ficcionais de uma obra prévia, a qual, mesmo sendo publicada posteriormente, traz elementos e explicações da obra anterior. Assim, poderíamos inferir que nesse diálogo entre passado e presente, tradicional e moderno, o neto que aprende com o avô o calar-se por saber e conversar sem nada falar poderia vir a ser o pai quieto e ensimesmado do conto roseano. Portanto, Nas águas do tempo seria lido como uma prequela de A terceira margem do rio, onde o pai seria o neto já adulto e está tentando se comunicar com os do “lado de lá”, a manter vínculo com o avô e os espíritos do passado, representadores da tradição. Afinal, como o próprio neto afirma no conto coutiano, mente que entende os propósitos do avô, mas ao final avista os panos, podendo ter sofrido com a inquietação do não entendimento, tal qual aflição sofrida pelo filho no conto de Rosa. A criança seria esse personagem chave, o elo ligação, já que o avô, mesmo adulto, “era um homem em flagrante infância”. Mia Couto reinventa o conto de Guimarães Rosa, apropriando-se de sua temática existencialista e prosa poética para dar uma nuance própria, inserindo seu conto – e demais obras – na realidade moçambicana e em seu universo cultural. Afinal:

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A literary, dramatic, or filmic work that prefigures a later work, as by portraying the same caracteres at a younger age. Pre+ (se)quel.Fonte: dictionary.reference.com/browse/prequel

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Toda repetição está carregada de uma intencionalidade certa: quer dar continuidade ou quer modificar, quer subverter, enfim, quer atuar com relação ao texto antecessor. A verdade é que a repetição, quando acontece, sacode a poeira do texto anterior, atualiza-o, renova-o e (por que não dizê-lo) o reinventa. (CARVALHAL, 1992, p. 53).

Essa é uma leitura muito particular, mas uma análise comparativista deve “explorar criticamente os dois textos, ver como eles se misturam e, a partir daí, como, repetindo-o, o segundo texto ‘inventa’ o primeiro. Dessa forma ele o redescobre, dando-lhe outros significados já não possíveis nele mesmo (CARVALHAL, 1992, p. 58).

Considerações finais De fato A terceira margem do rio encontra-se reelaborado pelas mãos de Mia Couto em Nas águas do tempo, ao passo que ao analisar as influências presentes na obra de um autor, tal qual o fizemos, “é certamente enfatizar antecedentes criativos da obra de arte e considera-la um produto humano, não um objeto vazio” (NITRINI, 1997, p. 130). Além disso, um escritor é, antes de tudo, um leitor, consequentemente “o produtor é também um receptor quando começa a escrever. Por meio dessas atividades, o sentido de uma obra está sempre se renovando como resultado do horizonte de expectativas” (idem, p. 171). Como Tania F. Carvalhal (1992, p. 53) expõe o “diálogo” entre dois texto é um espaço conflituoso, sendo o estudo comparativo sistemático que estabelece uma leitura intertextual e a análise dos elementos extratextuais. Afinal, como traz Sandra Nitrini, aodiscorrer sobre o conceito de influência na perspectiva de Paul Valéry, “os problemas de empréstimos, considerados, até então, por um grande número de estudiosos, dependência de autor em relação a outro, não aparecem mais como uma imitação, mas, ao contrário, como fonte de originalidade, isto é, como a intrusão do novo na criação”. Assim, uma análise por meio dos estudos de literatura comparada deve ir além do obvio e ultrapassar o simplismo de estudo de fonte. Vozes ecoam ao longo das narrativas, não apenas nos textos de Guimarães Rosa e Mia Couto, pois, como vimos, esse déjà vu é próprio da criação humana e da linguagem poética. Isso está em consonância com a impressão/sensação de contação de história, de oralidade presente nas obras desses dois escritores.

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Nas palavras de Mia couto: “quando o li pela primeira vez experimentei uma sensação que játinha sentido quando escutava os contadores de histórias da infância.Perante o texto, eu não lia simplesmente: eu ouvia vozesda infância. (COUTO, 2007, p. 107).São essas vozes de infância que nos acompanham, como se o texto estivesse lendo a nós, o que geram a identificação e empatia por parte do leitor. Afinal, como elabora Harold Bloom, o poeta forte é quem cria seus precursores.

REFERÊNCIAS Referencial Bibliográfico BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia. 2 ed. Trad.: Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Imago, 2002. CARVALHAL, Tania Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 1992. CHAGAS, Silvania Nubia. Nas fronteiras da memória: Guimarães Rosa e Mia Couto, olhares que se cruzam. 2006. 161f. Tese (Dourado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. USP, São Paulo. CORTÁZAR, J. “Alguns aspectos do conto”. In: Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1974. COUTO, Mia. “Nas águas do tempo”. In: Estórias abensonhadas. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. ______. “Encontros e encantos – Guimarães Rosa”. In: E se Obama fosse africano? E outras interivenções. Ensaios. São Paulo: Companhia da Letras, 2009. ______. “O sertão brasileiro na savana moçambicana”. In: Pensatempos. Textos de opinião. Maputo: Ndjira, 2005. KRISTEVA, Julia. “A palavra, o diálogo e o romance”. In: Introdução à Semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974. NITRINI, Sandra. “Conceitos fundamentais”. In: Literatura Comparada: história, teoria e crítica. São Paulo: Editora da USP, 1997. PERRONE-MOISÉS, Leyla. “Literatura comparada, intertexo e antropofagia”. In: Flores da escrivaninha: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. ROSA, Guimarães. “A terceira margem do rio”. In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. SECCO, Carmen Lucia Tindó. “Luandino Vieira e Mia Couto: intertextualidades”. In: A magia das letras africanas: ensaios sobre as literaturas de Angola e Moçambique e outros diálogos. 2. ed. Rio de Janeiro: Quartet, 2008. Referencial Eletrônico http://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=02354

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www.mundofabuloso.blogspot.com.br http://dictionary.reference.com/browse/prequel http://www.circulosdeleitura.org.br/site/2012/11/21/a-terceira-margem-do-rio-nas-aguas-dotempo/ http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/32996-novo-livro-de-mia-couto-peca-ao-sebasear-em-influencias.shtml#_=_

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INOVAÇÃO TECNOLÓGICA VOLTADA PARA A LIBRAS: AS TICs VOLTADA COMO METODOLOGIAS ATIVAS NO ENSINO SUPERIOR Isabela Martins Miranda Universidade Federal de Viçosa, isabelamartinsmiranda@gmail.com

Ana Luisa Borba Gediel Universidade Federal de Viçosa, ana.gedielufv@gmail.com

Victor Luiz Alves Mourão Universidade Federal de Viçosa

Resumo: A pesquisa que deu origem a este texto tem o propósito de mapear e analisar as diferentes estratégias de ensino que envolvem a LIBRAS, vinculadas às Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) no Ensino Superior. A emergência de verificar essas aplicações advém da necessidade de inclusão de atividades interativas na prática docente, a partir do uso de materiais didáticos construídos com o suporte das TICs em uma instituição de Ensino Superior da Zona da Mata Mineira. Em especial, neste trabalho apresentaremos a perspectiva metodológica que possibilitou desenvolver a primeira etapa da pesquisa, de cunho qualitativo. Para mapear os locais onde as TICs são utilizadas para o ensino da LIBRAS foi utilizado o Mapeamento por Redes de Contato (BARNES, 1964). Essa metodologia tem como objetivo observar a construção de laços de determinado tema em determinado ambiente, assim como a forma que acontece este processo e quais são os agentes presentes, seguidos da influência destes sobre o tema. É importante ressaltar a linearidade proporcionada por essa rede, a qual fornece apoio para traçar e entender quais projetos acontecem, onde estão concentrados, se há alguma hierarquia entre eles, quais recebem mais investimento e são mais destacados. Utilizando essa metodologia, foi consultada a segunda maior instância administrativa da organização com enfoque em ensino. A partir desta, traçamos um primeiro roteiro para verificar onde as TICs estavam sendo desenvolvidas e em qual delas havia a presença da LIBRAS. Como resultado, encontramos as áreas da instituição ligadas aos Departamentos de Letras, Informática e Tecnologia da instituição. Com base nesse setores, os coordenadores dessas instâncias foram entrevistados, assim como os colaboradores dessas pesquisas. A partir dos dados, observamos a localização de cada projeto envolvendo as LIBRAS e TICs, como também, os produtos e contribuições gerados em cada ação. Após o mapeamento, pretende-se entender a aplicabilidade das TICs mapeadas e se estas estão de acordo com seu propósito inicial de criação. Portanto, através do produto final deste trabalho, foi possível observar os projetos desenvolvidos na Instituição com enfoque na inclusão digital e social e, assim, identificar a importância dos usos das tecnologias utilizadas pelas unidades educacionais que compõem o Mapeamento de Redes realizado.

Palavras-chave: TICs; Libras; Inovação tecnológica;


Introdução O desenvolvimento tecnológico, a partir da última metade do século XX, trouxe consideráveis avanços aos conhecimentos no âmbito educacional. O acesso às diversas tecnologias possibilitou uma reconfiguração da estrutura física e do modo de ensinar e aprender. Isso propiciou desafios na perspectiva de uso de novos sentidos pelos sujeitos, os quais se encontram diante de um mundo que instiga suas percepções e suas cognições (LÉVY, 1999). As tecnologias utilizadas como recursos educacionais estão cada vez mais presentes na vida das pessoas, sendo necessária a adequação de professores e alunos. Segundo Silva (2009), o professor é uma peça chave na implantação dos processos de mudanças tecnológicas como recursos pedagógicos em sala de aula. “Se a escola não inclui a internet na educação das novas gerações, ela está na contramão da história, alheia ao espírito do tempo e, criminosamente, produzindo exclusão social ou exclusão da cibercultura” (SILVA, 2009, p.32). As Tecnologias da Informação e Comunicação – TICs – correspondem a todas as tecnologias que interferem e medeiam os processos informacionais e comunicativos dos seres. (RAMOS, 2008). A partir dessas, um conjunto de elementos para a interação com símbolos, imagens, documentações, palavras e vídeos passam a ser disponibilizados no ambiente virtual como material de ensino. Dessa forma, a inserção das TICs em disciplinas e cursos voltados para o ensino e aprendizagem da LIBRAS torna-se um desafio, uma vez que os saberes teóricos e práticos são colocados em reflexão, problematização e investigação no sentido de compreender as potencialidades referentes a cada tecnologia e suas contribuições ao processo de ensino e de aprendizagem e, também, pode trazer avanços e consequentemente mudanças - considerando sempre o público alvo. Nessa perspectiva, este trabalho tem o intuito de apresentar o mapeamento de rede (BARNES, 1964) enquanto estratégia metodológica e identificar, de modo geral, o uso das TICs em uma instituição de Ensino Superior da Zona da mata Mineira. Após esse mapeamento, o foco do artigo volta-se para a identificação e descrição das TICs utilizadas em uma disciplina ministrada no Ensino Superior, em específico, para auxiliar no processo de ensino e aprendizagem da Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS - como segunda língua para ouvintes.

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Desse modo, inicialmente, será descrito como foi feito o mapeamento das diferentes formas de abrangência das TICs no ensino e aprendizagem da LIBRAS no Ensino Superior. Posterior a essa visão geral possibilitada pelas redes, verificou-se a existência das TICs como propulsoras das metodologias ativas (MORAN, 2015) nas disciplinas que envolviam o ensino e aprendizagem da LIBRAS. É importante observar e questionar o uso das TICs, em especial no âmbito educacional, pois além de ferramenta de estímulo, são um recurso metodológico abrangente, de enorme visibilidade e inclusivo. Percurso Metodológico

Para o desenvolvimento deste trabalho foi realizada uma pesquisa qualitativa, investigativa e interpretativa, com base nos fundamentos científicos da pesquisa qualitativa de cunho empírico, a partir de técnicas da pesquisa social (observação participante, diários de campo, filmagem de aulas, oficinas e atividades envolvendo o ensino da LIBRAS). No âmbito da realização da pesquisa, tais instrumentos orientam a instrumentalização científica sugerida nos pressupostos metodológicos da pesquisa qualitativa, na perspectiva das Ciências Humanas. O instrumento metodológico de pesquisa que foi utilizado é mapeamento no formato de redes (BARNES, 1964). Acredita-se que dessa forma é possível descobrir as ligações tecnológicas envolvendo a LIBRAS de um âmbito mais amplo, sem restrições e com suposições embasadas. Além disso, o fato dos próprios contatos indicarem outros e se conectarem tornou a rede menos tendenciosa e mais consolidada. A metodologia por rede de contato permite que os participantes possam contribuir de maneira espontânea. Para coletar os dados referentes a essa pesquisa foram realizadas entrevistas no formato semi-estruturada. Para Triviños (1987), a entrevista semi-estruturada tem como característica questionamentos básicos que são apoiados em teorias e hipóteses que se relacionam ao tema da pesquisa. Esses questionamentos deram frutos a novas hipóteses surgidas a partir das respostas dos entrevistados. O foco principal seria colocado pelo pesquisador-entrevistador. As entrevistas foram motivadas pelos seguimento das indicações da rede. Sendo assim, a maioria das pessoas que foram entrevistadas e citavam outras pessoas, na maioria dos casos, estes já haviam sido entrevistados ou já estava no planejamento. Alguns que não foram

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entrevistados, há dois motivos: ou o projeto envolvido já havia sido contemplado ou não foi possível contatar a pessoa para participar da pesquisa. Por questões éticas, todos os entrevistados assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, conforme a resolução CNS 466/2012, o qual informa o sigilo da pesquisa. Todas foram gravadas com uma vídeo filmadora, transcritas e arquivadas, utilizadas somente para fins de coleta de dados. Os nomes dos entrevistados e das instituições foram preservados. Os entrevistados, foram classificados por ordem de entrevista, sendo que as mulheres foram denominadas de “Maria” e os homens de “João”, seguido por segundo nome aleatório com a inicial de letra em ordem alfabética. As instituições foram intituladas também em ordem alfabética por ordem de aparecimento do mapeamento. No que se refere à coleta e análise dos dados, algumas TICs também foram importante para a construção desse trabalho. Além de computador, câmera filmadora e impressora, algumas agiram estrategicamente. Uma ferramenta muito utilizada foi o Coggle. O aplicativo possibilita um mapa de ideias colaborativas, o objetivo é simplificar estruturas complexas, criar um espaço de compartilhamento de opiniões além de montar uma estrutura de mapeamento de pensamentos. Essa ferramenta foi essencial, pois a partir dela, conseguimos criar uma mapeamento visual da rede, de forma leve e sem muita informação, além da flexibilidade de inserir, editar e adicionar conteúdos. Outra TIC essencial na construção da pesquisa foram o Google Drive, tanto para armazenagem das entrevistas e arquivos, tanto para a criação de documentos, o Google Docs, que pôde ser compartilhado com os colaboradores, facilitando o processo de construção, escrita e revisão do trabalho. Mapeamento por rede: o processo de pesquisa Para mapear as TICs em uma Instituição da Zona da Mata Mineira foi utilizado o mapeamento por redes de contato de Barnes, 1964. Segundo o autor, a noção de rede social tem em vista a análise e descrição daqueles processos sociais que envolvem conexões que transpassam os limites de grupos e categorias. As conexões interpessoais que surgem a partir da afiliação a um grupo fazem parte da rede social total tanto quanto aquelas que vinculam

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pessoas de grupos diferentes. Portanto, para o autor, "rede" é um conjunto de relações interpessoais concretas que vinculam indivíduos a outros indivíduos. O mapeamento da rede ocorreu em três etapas: primeiro, mapeou-se as unidades que envolvem o ensino e aprendizagem da LIBRAS que usufruem das TICs como mediadoras do processo de ensino e aprendizagem na formação inicial de professores; segundo, identificou-se a construção de metodologias tecnológicas nos centros e unidades de Ensino Superior; e terceiro, foi evidenciada a aplicabilidade dessas de acordo com seu propósito inicial de criação. No que tange ao passo inicial de mapeamento da rede, é necessário visualizar qual ponto do ambiente possui maior influência sob os demais pontos. Desse modo, observando do ponto de vista administrativo, foi consultado o segundo maior órgão da instituição. Neste setor, foi realizada uma entrevista com o diretor diretor, que aqui foi denominado com o nome fictício de João André. Ele acredita que a instituição é referência no campo das TICs quanto a instalações, equipamentos e mão de obra, porém relata que esses recursos são pouco utilizados e é necessário desenvolver mais essa área. O entrevistado também deu sugestões de pessoas que acreditava estarem envolvidas com essa tecnologia. A partir dessa conversa, foi possível começar a traçar os primeiros contatos envolvendo as TICs e a LIBRAS. Para investigar o uso dessas tecnologias, as pessoas que apareciam na rede através de indicação dos outros consultados da rede, eram entrevistadas, discorriam seu conhecimento sobre o assunto e indicavam pessoas que acreditavam ter envolvimento com o tema. Barnes define como alfa os contatos mais influentes do meio, ou seja, “originador que toma a decisão de agir para atingir um objetivo específico, aquele que ativa algumas ou todas as relações sociais” (BARNES, 1964, p.167). Há também os conceitos de estrela e beta, que são os agentes ligados a alfa que complementam a rede. “Os indivíduos que estivessem em relação direta seriam Estrelas, enquanto aqueles que não fossem diretamente ligados a Alfa, mas estivessem ligados a um agente diretamente a ela relacionado, seriam Betas.” (Barnes, 1964, p.169). Segundo análise do Mapeamento de Rede de Contatos construído por essa pesquisa,, os elementos alfa são o João André, por sua autoridade na instituição; a Maria Beatriz, por ser a diretora da unidade de ensino à distância, unidade mais citada em todo mapeamento; a Maria

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Alice, pesquisadora sobre o tema TICs da unidade de línguas. Estrelas, aqueles com contatos diretos à Alfa, e diretamente envolvidos com a LIBRAS e as TICs, João Bosco, João Carlos, João Daniel, João Eduardo, João Felipe, João Hugo, Maria Dalva. Os betas, aqueles de contatos de segunda ordem com os Alfas, que são João Gabriel, Maria Carolina, Maria Eugênia, Maria Fernanda, estudante surdo e estagiários da engenharia. A organização da rede foi elaborada a partir dos recursos do coggle, conforme quadro que segue:

Quadro 1: Mapeamento de rede de contatos

Essa rede contato pode ser denominada rede efetiva pois não possui uma grande extensão. Limitada por haver várias repetições de estrelas e integrantes. É também classificada como aberta, devido a baixa intensidade de segregação dos papéis. Analisando um outro autor, também proposto pela pesquisadora Bela Feldman Bianco em seu livro Antropologia das Sociedades Contemporâneas, 1987, Mayer acredita que o conceito de rede proposto por Barnes se enquadra em situações pouco mutáveis, que são mais permanentes e pouco momentâneas. A rede avaliada pode ser considerada pouco mutável

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considerando apenas a organização estrutural da instituição, ou seja, do ponto de vista organizacional, pois as TICs ficam concentradas nas mesmas unidades. Já no sentido dos envolvidos dessa rede, o caminho de ligação dos nódulos é feito por pessoas mutáveis. Portanto, os alfas e estrelas são constantes, porém os betas são mutáveis. Observando o mapeamento, percebe-se o grande número de atividades em torno das TICs para o ensino e aprendizagem da língua, relacionado à disciplina de LIBRAS, que foi mencionada por vários pontos da rede. Nota-se também o envolvimento dos professores que atuam na disciplina como colaboradores no processo de produção e uso de TICs. As TICs na disciplina de LIBRAS A instituição oferece a disciplina LIBRAS, obrigatória para os cursos de licenciatura e optativa para todos os demais cursos vinculados à instituição. Isso está de acordo com a legislação vigente, que desde a legitimação da língua como meio de comunicação e expressão pela Lei 10.346 (BRASIL, 2002), teve maior visibilidade e repercutiu na criação do Decreto no 5.625 (BRASIL, 2005) que incide na obrigatoriedade da disciplina para todos os cursos, como informa o trecho: A Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (BRASIL, 2005, art. 3o).

A disciplina é oferecida pela Unidade de Línguas desde o ano de 2010, possui três professores efetivos, e disponibiliza semestralmente, de maneira interdisciplinar, conforme a grade curricular dos cursos. Há também a disciplina LIBRAS e letramento visual de surdos, obrigatória para o curso de Pedagogia. Desse modo, devido ao desenvolvimento de atividades envolvendo as TICs na instituição estudada, este trabalho trará algumas especificidades que vinculam o processo de ensino e aprendizagem da língua a partir do uso de recursos visuais e tecnológicos. Assim, os recursos das TICs foram observados como instrumentos que tornam as aulas mais interativas. Em destaque, sugerimos o uso de recursos audiovisuais, plataformas de

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aprendizagem e os aplicativos. Tais elementos serão descritos e analisados nos tópicos que seguem. 1. Recursos audiovisuais 1.1 Apresentações Multimídias Utilizada por todos os professores para melhor fixação do conteúdo em classe, as apresentações multimídias são páginas ou quadros elaborados em softwares específicos de apresentações que proporcionam uma melhor visualização do conteúdo. Esse recurso permite que ao mesmo tempo que apareça textos, surja também imagens que complementam o conteúdo. A principal finalidade é tornar aquela colocação mais interessante ao público e para isso há uma gama de elementos disponíveis, como cores, movimentos, formas de destaques. Além de tornar o conteúdo mais expositivo com imagens, tabelas e gráficos. 1.2 Videos Para enriquecer o conteúdo apresentado na disciplina, os professores utilizam bastante vídeos. Alguns, disponíveis na internet e outros confeccionados na Unidade de Ensino à Distância da Instituição. Um dos professores convida surdos para gravarem suas provas em LIBRAS utilizando os recursos da unidade. Filmes e documentários também são bastante explorados. Como forma de atividade avaliativa, é frequente que os professores peçam a seus alunos que confeccionem diálogos e aulas em LIBRAS. Esses são gravados pelo próprio aluno utilizando uma câmera seja própria ou a do celular. Cada professor explora o vídeo de uma forma, alguns pedem aos alunos que gravem em um CD, outros que levem em Pendrive USB e alguns até mesmo que enviem no aplicativo Whats App.

1.3 Lousa Digital Outra TIC que inovou o modo de lecionar a disciplina foi a Lousa Digital que é uma lousa, com o mesmo propósito do quadro negro, ensino aprendizagem, porém, abordado de forma mais interativa e utilizando recursos tecnológicos. Nela, além de ser possível acessar a

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internet e funcionar como um computador com uma tela maior e melhor, tudo escrito a partir dela fica salvo como se fosse uma apresentação multimídia que pode ser salva e utilizada depois. Por ser um recurso pouco comum na instituição, os alunos ficam muito interessados quando a lousa é utilizada, é notório que prestam mais atenção quando o conteúdo é exposto nesse recurso. 2. Plataformas de Aprendizagem 2.1 Plataforma de Aprendizagem Virtual A instituição possui um ambiente de Aprendizagem Virtual, o qual todos os alunos possuem cadastro. Através dessa plataforma interativa é possível acessar todos os materiais virtuais que o professor disponibiliza. Os mais comuns são as apresentações multimídias utilizadas em classe, há também textos e vídeos complementares, além de materiais extras. A plataforma também disponibiliza a opção de Chats, canal de conversa virtual onde os alunos podem interagir instantâneas através de salas de bate-papo. Ainda nessa linha, há o recurso de fórum, onde o professor problematiza uma discussão e os alunos podem discorrer sobre seus pontos de vista. Através desse ambiente virtual é possível realizar provas virtuais. Os professores da disciplina utilizam esse recurso semestralmente, onde por 24h disponibilizam a prova com as questões e opções de respostas virtualmente na plataforma. A avaliação virtual é um método de ensino e aprendizagem colaborativo, o qual possibilita a busca de maiores informações acerca da gramática, visualização de vocabulário da LIBRAS a partir do virtual, devido ao limite de tempo mais extenso para a pesquisa e realização do exame.

2.2 Jogos Virtuais Com o apoio da Secretaria de Ensino e Tecnologia de Minas Gerais, a Unidade de Educação à Distância, de 2011 a 2014, com a sua expertise em tecnologia e pedagogia, propôs uma série de materiais educacionais que repercutiram nos jogos virtuais para a plataforma UAITEC - Universidade Aberta e Integrada Tecnológica.

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O projeto possui materiais de outras disciplinas como física, química e matemática.Os focados em LIBRAS, trazem temas como datilologia, configuração de mão em contextos recreativos como jogos de corrida, jogo da memória. O objetivo dessa plataforma é contribuir para o ensino de LIBRAS aos alunos do ensino fundamental, médio e superior. Através do ambiente virtual, os professores disponibilizam esses jogos para os alunos se desenvolverem na língua, sendo notório o interesse deles com essa ferramenta.

3. Aplicativos 3.1 WhatsApp Um dos professores utiliza o aplicativo WhatsApp para que seus alunos enviem os vídeos avaliativos da disciplina. O WhatsApp Messenger é um aplicativo de mensagens instantâneas para Smartphones. Com ele, os usuários podem se comunicar com seus contatos que também têm esse software em seus smartphones, sem precisar telefonar ou enviar sms. O professor notou que quando pedia que os alunos postassem no Ambiente Virtual de Aprendizagem, ou levassem a sala de aula para todos assistirem, não havia um retorno dos colegas de classe, muitos demonstravam desinteresse, viam a tarefa como algo chato e trabalhoso. Após criar o grupo no aplicativo e pedir aos alunos para postarem os vídeos, o professor notou que o retorno foi muito maior. Os estudantes ficaram mais interessados, fizeram vídeos mais elaborados e comentavam sobre os vídeos dos colegas, algo que geralmente, nunca acontecia. 3.2 Socrative O aplicativo Socrative é uma ferramenta de interatividade que possibilita que professores conectem seus alunos a uma sala virtual de exercícios e jogos educacionais. O professor, no final de cada aula, após o conteúdo, disponibiliza um quiz no Socrative valendo 1 ponto. Os alunos têm uma resposta muito positiva a essa atividade, como podem usar seus celulares, eles não encaram a atividade como algo chato e massivo, algo que poderiam pensar caso o quiz fosse feito em uma folha A4.

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Levando em consideração os recursos supracitados, nota-se que o uso das TICs desperta o interessante dos estudantes, cumprindo com seu propósito que é tornar as aulas mais interativas e atrativas aos alunos. Segundo Gediel et al. (2016), a inserção do ambiente virtual de aprendizagem em disciplinas de LIBRAS, não conseguem sanar todas as lacunas existentes. É necessário planejar e desenvolver um plano contínuo para a disciplina com melhorias no percurso prático de apreensão linguística, uma vez que amplia o campo de possibilidades inclusivas no que se refere ao uso de mídias digitais e à abrangência dos aspectos visuais, de extrema importância para o acesso e uso da LIBRAS, já que apenas o uso dos recursos, sem uma proposta pedagógica, pode prejudicar a aprendizagem. É preciso propor TICs que realmente vão facilitar a construção do conhecimento, pois apesar da LIBRAS ser uma língua visual que pede o imagético, o uso saturado e até mesmo sem planejamento pode confundir o aluno, não fixando sua aprendizagem. O ambiente o qual a disciplina está inserida é propícia para o uso dessas tecnologias, afinal, são estudantes, em sua maioria jovens que possuem aparelho celular com câmera e disponibilidade para aplicativos, além da maior facilidade e desenvoltura para lidar com esse tipo de recurso. Conclusão A partir desse trabalho foi possível mapear as TICs utilizadas na instituição e analisar onde estão distribuídas, a qual unidade estão vinculadas e quem são os agentes atuantes. É possível concluir que o uso de TICs é uma alavanca no processo de ensinoaprendizagem já que os alunos demonstram maior interesse pelos conteúdos lecionados. A reflexão sobre estas experiências; a consolidação de metodologias ativas; a troca de informações e conhecimentos em torno do uso destas tecnologias: todos estes aspectos permitem que um uso aprimorado e consciente dessas TICs podem auxiliar na tarefa interativa docente-discente no processo de criação e consolidação de conhecimentos. No caso do ensino de LIBRAS o suporte imagético que estas tecnologias permitem adquire especial relevo: a possibilidade de criação, distribuição e reapropriação de vídeos, fotos e figuras auxilia no processo interacional de aprendizagem desta língua.

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O mapeamento destes usos possibilita, além da descrição do estado de arte atual na instituição pesquisada, estabelecer vínculos entre os atores de modo a trocar experiências e aprimorar a reflexão e prática de ensino-aprendizagem de LIBRAS. Não são somente os estudantes que aqui aprendem: são os próprios docentes que na reflexão coletiva e compartilhada sobre suas práticas podem, neste processo, aprimorá-la.

Referências Bibliográficas BARNES, J.A. Redes sociais e processo político. In: FELDMAN-BIANCO, Bela (Org.). Antropologia das Sociedades Contemporâneas. São Paulo: Global, 1987. _______. Class and Committees in a Norwegian Island Parish. Human Relations, n° 7, 1964. BRASIL. Lei no 10.436 de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS, e dá outras providências. Publicada no Diário Oficial da União em de 24 de abril de 2002. _______. Decreto no 5.626 de 22 de dezembro de 2005, que regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Publicado no Diário Oficial da União em de 22 de dezembro de 2005. GEDIEL, A. L. B.; SOARES, C; OLIVEIRA, C. O ambiente virtual como aliado no processo de ensino e aprendizagem da LIBRAS. Revista (Con) Textos Linguísticos, v. 10, n. 16. p.2437, Vitória, 2016. MAYER, A. A importância dos 'quase-grupos' no estudo das sociedades complexas. In: FELDMAN-BIANCO, Bela (Org.). Antropologia das Sociedades Contemporâneas. São Paulo: Global, 1987. MORAN, J. Mudando a educação com metodologias ativas. São Paulo: ECA USP, 2015 LEVY, P. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999. RAMOS, S. Tecnologias de Informação e Comunicação. (2008). Disponível em: http://livre.fornece.info/media/download_gallery/recursos/conceitos_basicos/TICConceitos_ Basicos_SR_Out_2008.pdf. Acesso em: out. de 2016. SILVA, M. Complexidade da formação de professores: saberes teóricos e saberes práticos. São Paulo: Editora UNESP, 2009. TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.

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OS GÊNEROS TEXTUAIS PRESENTES EM UM LIVRO DIDÁTICO DE EAD DO CURSO DE PEGADOGIA DO CEDERJ: MULTILETRAMENTOS EM QUESTÃO Jefferson Evaristo do Nascimento Silva UFRJ/CNPq/IFF, jeffersonpn@yahoo.com.br

Juliette Rodrigues Vasconcellos UFRRJ/UERJ, july_vasconcellos@hotmail.com

Annita Gullo UFRJ, annitagullo@gmail.com

Resumo: O Ensino a Distância (EAD) tem recebido, recentemente, um acréscimo substancial de alunos, motivados por fatores tão diferentes quanto intrigantes. De fato, é algo a ser considerado como um fenômeno complexo e cada vez mais atual. Junto a ele, uma série de mudanças pedagógico-teórico-práticas precisa ser efetivada, de forma a conseguir adaptar-se a este novo contexto educacional (BARRETO, 2003). Naturalmente, modalidades de ensino diferentes requerem formas de ensino diferentes (LIMA JUNIOR, 2005). Essas “formas de ensino diferentes” vão incidir diretamente sobre os gêneros textuais de forma mais ampla, uma vez que estes “permeiam nossa vida diária e organizam nossa comunicação” (ROJO e BARBOSA, 2015), estando presentes em todas as nossas atividades discursivas e dialógicas – atividades realizadas pela/com/na linguagem (SCHNEUWLY e DOLZ, 1999). Definitivamente, não basta “transpor” os mesmos gêneros para o computador e acreditar que o problema foi resolvido – ele vai muito além disso. Nesse contexto, os (multi)letramentos (ROJO, 2009; BRYDON, 2011; ROJO e BARBOSA, 2015; STREET, 2006) podem oferecer subsídios interessantes para o trabalho com gêneros textuais, apontando caminhos necessários para uma redefinição da prática docente no contexto EAD.Sendo assim, nossa intenção é iniciar uma problematização do uso dos gêneros textuais em um material didático de “Língua Portuguesa Instrumental” do curso de Pedagogia a distância do consórcio CEDERJ/CECIERJ. O curso em questão é organizado pela UNIRIO. Nossos objetos de análise são os diferentes gêneros textuais que são abordados nas primeiras três unidades do livro em questão. Como critérios de análise, nos valeremos dos pressupostos e das discussões acerca dos multiletramentos, buscando identificar se o que ocorre neste livro didático é uma mera reprodução do modo como esses gêneros textuais são utilizados em uma sala de aula presencial ou uma real mudança de perspectivas e paradigmas epistemológicos que são inerentes ao contexto EAD (PRETTO, 2003) e aos multiletramentos.

Palavras-chave: Material didático. Análise. EAD. Multiletramentos. Cederj.


Introdução Diferentes autores demonstram a importância do livro didático enquanto ferramenta pedagógica (TILIO 2006, 2008, 2012; Vilaça, 2009, 2010; Dias, 2009; Kumaravadivelu, 2006) para o ensino, pontuando seu papel central(izador) e sua situação de intensa utilização. De forma paralela, os estudos recentes demonstram como o Ensino a distância (EAD), a cada dia mais difundido, traz em si uma série de mudanças pedagógicas, teóricas, práticas e didáticas que modificam o processo de ensino-aprendizagem (BARRETO, 2003; LIMA JUNIOR 2005), que demandam novas perspectivas e orientações e que incidem diretamente sobre os materiais didáticos. Tomando por base o pressuposto de o livro didático ter relevância fundamental nesse processo (CRISTÓVÃO e DIAS, 2009; DIAS, 2009; TILIO, 2006, 2012) e considerando ainda que no contexto EAD, pelas suas próprias características (menor contato usual com o professor, autonomia dos alunos, ausência/diminuição da interação em aulas, dentre outros1), o livro é por vezes “o único recurso disponível” (DIAS, 2009) – como demonstraremos –, realizar uma avaliação crítica do material oferecido nos parece tarefa essencial. O Ensino a Distância (EAD) tem recebido, nos últimos anos, um acréscimo substancial de alunos. No Ensino Superior então, observamos um crescimento exponencial de matrículas (http://bit.ly/1LlNRv7 - acesso em 12/10/2016), motivados por fatores tão diferentes quanto intrigantes: tempo, distância, segunda graduação, facilidade de acesso e preço, dentre outros. De fato, é algo a ser considerado como um fenômeno complexo e cada vez mais atual. Junto a ele, uma série de mudanças pedagógico-teórico-práticas precisa ser repensada e concretizada, de forma a conseguir adaptar-se a esse novo contexto educacional (BARRETO, 2003). Identificamos então uma modalidade que precisa ser analisada e discutida, visto que, por ser diferente e possuir características próprias, impacta diretamente nas ações pedagógicas e na organização/efetivação do ensino. A esse respeito, no âmbito governamental, são relevantes as

Evidentemente, nosso objetivo não é traçar um “panorama comparativo” entre as duas modalidades, mas marcalo claramente. Para fins de aprofundamento na temática, indicamos a leitura de Costa et alli (2014) e as discussões ocorridas no XI ESUD – Congresso Brasileiro de Ensino Superior a Distância 2014 (http://bit.ly/2hBxNgS - acesso em 13/12/2016 as 17:59) 1

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iniciativas da Universidade Aberta do Brasil (UAB – nível federal) e do CEDERJ2 (Consórcio de Educação a Distância do Estado do Rio de Janeiro – nível estadual). Naturalmente, modalidades de ensino diferentes vão demandar dos profissionais da educação – professores, tutores, designers instrucionais, conteudistas... – formas de ensino diferentes (LIMA JUNIOR, 2005). Essas “formas de ensino diferentes” vão incidir diretamente sobre os gêneros textuais de forma mais ampla, uma vez que estes “permeiam nossa vida diária e organizam nossa comunicação” (ROJO e BARBOSA, 2015), estando presentes em todas as nossas atividades discursivas e dialógicas – atividades realizadas pela/com/na linguagem (SCHNEUWLY e DOLZ, 1999). Definitivamente, não basta “transpor” os mesmos gêneros para o computador e acreditar que o problema foi resolvido – ele vai muito além disso. Nesse contexto, os (multi)letramentos (ROJO, 2009; BRYDON, 2011; ROJO e BARBOSA, 2015; STREET, 2006) podem oferecer subsídios interessantes para o trabalho com gêneros textuais, apontando caminhos necessários para uma redefinição da prática docente no contexto EAD. Sendo assim, nossa intenção neste trabalho é iniciar uma problematização do uso dos gêneros textuais em um material didático de “Língua Portuguesa Instrumental” (volume 1) do curso de Pedagogia a distância do consórcio CEDERJ/CECIERJ. O curso em questão é organizado pela UNIRIO e o material didático em análise foi elaborado por duas professoras do ensino básico e superior do Estado do Rio de Janeiro. Como critérios de análise, nos valeremos dos pressupostos e das discussões acerca dos multiletramentos, buscando identificar se o que ocorre neste livro didático é uma mera reprodução do modo como esses gêneros textuais são utilizados em uma sala de aula presencial ou uma real mudança de perspectivas e paradigmas epistemológicos que são inerentes ao contexto EAD (PRETTO, 2003) e aos multiletramentos. Nossos resultados apontam para a inexistência de uma real mudança epistemológica no uso dos gêneros textuais, configurando-se apenas como uma “releitura” destes, com suporte multimídia; soma-se ainda o fato de que quase não há recursos hipertextuais sendo utilizados

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Consórcio formado por diferentes universidades públicas do Estado do Rio de Janeiro que oferta cursos de graduação a distância. Para mais informações, sugerimos o acesso ao site oficial em http://cederj.edu.br/ (Acesso em 13/12/2016 as 17:34)

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de multimodalidade e multiletramentos – atualmente considerados como bases para o ensino, principalmente na modalidade a distância.

O livro didático e o EAD: interseções “É importante que pesquisas sobre livros didáticos (...) no Brasil tenham constantes atenções, envolvendo os professores que deverão usar os livros”(SILVA, 2010, p. 208). Dada a característica central desse material, pesquisá-lo torna-se fundamental, uma vez que ele está presente em quase todas as situações de ensino (TILIO, 2008). No EAD, a importância do livro didático (LD) permanece, ainda que haja uma tentativa de “dividir” a atenção dada ao livro com outros materiais (vídeos, sites e apresentações, dentre outros). As pesquisas recentes sobre o LD apontam que,“apesar do aumento dos programas de pós-graduação” (SILVA, 2010, p. 209) ocorridos principalmente a partir da década de noventa e das pesquisas que são feitas sobre o tema, o que se evidencia é que as “pesquisas sobre materiais didáticos não parecem ter sido uma tônica nos estudos” (SILVA, 2010, p. 210), sendo sempre em número baixo, quando não inexistente. É, portanto, um corpus de pesquisa importante e necessário (TILIO, 2006). Para os professores, o LD funciona, por vezes, como uma segurança, uma sistematização dos conteúdos que precisam ser trabalhados, de maneira a facilitar o seu trabalho. Chegamos ao ponto em que “muitas vezes, séries de livros didáticos são usados como referenciais de elaboração de programas e currículos” (SILVA, 2010, p. 208) – caso em que o LD assume, notoriamente, uma posição que não lhe cabe3 - ele “cria paradigmas norteadores do ensino, a hierarquização do saber, a seleção e organização de conteúdos, a divisão entre os níveis” (SILVA, 2010, p. 211-212) e etc, cumprindo uma função que não é sua. No cenário delineado acima, é comum identificar que (DIAS, 2009):

O professor, via de regra, acaba lançando mão do livro didático como o único recurso disponível para a sua atuação na sala de aula, assim como para a sua própria formação acadêmico-profissional. Com isso, o LD exerce uma grande influência no que se ensina e como se ensina, tornando-se um elemento-chave nas práticas escolares com fins à aprendizagem (p.199) 3

Defendemos que o LD não pode assumir o papel de prescrever a prática docente, sendo essa a função de outros materiais, como os referenciais curriculares, manuais do professor, Projeto Político Pedagógico (quando for o caso), textos institucionais e demais documentos prescritivos (Cf. QUEVEDO-CAMARGO, 2007 e RIOSREGISTRO, 2010)

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Defendemos que o LD representa, de fato, uma (dentre todas as possíveis) ferramenta(s) disponível(is) para o ensino. Independentemente de sua posição central, de sua relevância ou de sua larga utilização, ele, em resumo, é apenas uma dentre as possíveis ferramentas para o ensino. O ensino a distância, já em franca expansão há mais de uma década (PRETTO, 2003), é uma realidade de ensino que traz em si muitas mudanças em relação ao ensino (dito) tradicional, presencial. Essas mudanças, de ordem didática, pedagógica e social, principalmente, refletem diretamente no processo de ensino-aprendizagem, transformando-o e modificando-o (BARRETO, 2003), dando-lhe características próprias que não podem ser negligenciadas. São, de fato, modalidades diferentes de ensino – presencial e a distância – que demandam formas diferentes de ensino (LIMA JUNIOR, 2005), adaptadas às necessidades de cada uma delas. Não perceber as diferenças entre o ensino presencial e o a distância é limitar as potencialidades deste último.

O consórcio CEDERJ, a disciplina em questão e o seu livro didático Segundo informações do próprio site, o Consórcio CEDERJ foi “criado em 2000, com o objetivo de levar educação superior, gratuita e de qualidade a todo o Estado do Rio de Janeiro”. Sua função é efetivamente a de difundir o ensino superior no estado, descentralizando-o e levando-o a diferentes lugares do estado, principalmente o interior. É ainda “formado por sete instituições públicas de ensino superior: CEFET, UENF, UERJ, UFF, UFRJ, UFRRJ e UNIRIO, e conta atualmente com mais de 30 mil alunos matriculados em seus 15 cursos de graduação a distância”.4 Dentre esses cursos ofertados, está o de Pedagogia da UNIRIO, que conta com a disciplina “Português Instrumental” como uma das obrigatórias para os alunos de primeiro período, sendo coordenada por um professor doutor desta faculdade. O LD analisado nesta proposta corresponde a esta disciplina, possui dois volumes, vinte e seis unidades e foi organizado por três professores de universidades diferentes da UNIRIO, pertencentes ao

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Retirado de http://cederj.edu.br/cederj/sobre/ (acesso em 25/08/15 as 18:12)

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consórcio. Em geral, os materiais são criados pelos próprios professores das universidades do consórcio.

Gêneros textuais, multiletramentos e EAD Na observação do livro didático analisado analisamos, principalmente, o tratamento dado aos gêneros textuais/discursivos5, (BRONCKART, 1999, 2006; ROJO e BARBOSA, 2015). Na clássica definição bakhtiniana, os gêneros textuais são “tipos relativamente estavéis de enunciados” (BAKHTIN, 2011, p. 262), responsáveis pela nossa comunicação, verbal ou não-verbal. São eles que fundam a possibilidade de comunicação entre os indivíduos. Em Bronckart (1999, 2006) e em Schneuwly e Dolz (1999) a noção de gênero é mais ampliada, correspondendo a todas as nossas interações sociais e sendo os responsáveis pela nossa comunicação. São ainda os mediadores das diferentes práticas sociais que temos na vida. Para essa visão, a linguagem é, de fato, a mediadora das práticas sociais em geral (SCHNEUWLY e DOLZ, 1999, p. 6) e se “materializa” nos gêneros discursivos. Além disso, Bakhtin defende que o ensino deve ter uma abordagem baseada nos gêneros, vendo nesses o recurso pedagógico por excelência. O aprendizado é visto como uma prática social e, como vimos, a linguagem media as práticas sociais. Assim, o aprendizado se dá pela linguagem, que se expressa nos gêneros textuais. Em última instância, portanto, a linguagem e os gêneros textuais são os elementos fundamentais para o aprendizado. Portanto, “partimos da hipótese de que é através dos gêneros que as práticas de linguagem encarnamse nas atividades dos aprendizes” (SCHNEUWLY e DOLZ, 1999, p. 6). Por sua vez, o aprendizado está no limiar entre o espaço das práticas sociais e as atividades que a própria linguagem possibilita. Para o livro didático há, ainda, um fenômeno mais particular, “um desdobramento que se opera, em que o gênero não é mais instrumento de comunicação somente, mas, ao mesmo tempo, objeto de ensino/aprendizagem” (SCHNEUWLY e DOLZ, 1999, p. 7) – é uma forma

Não fazemos aqui nenhuma distinção entre “gêneros textuais” e “gêneros discursivos”. Entendemos que há autores que defendem serem dois conceitos diferentes, mas aqui assumimos que essa diferença, caso haja, não é relevante para as análises que aqui fazemos. 5

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específica de manifestação da linguagem em um gênero que, ao mesmo tempo, cumpre seu papel de comunicação e se apresenta com uma finalidade própria de aprendizagem. Entendemos portanto o livro como sendo um gênero textual próprio, particular, que possui ainda a capacidade de contem em seu interior outros gêneros textuais diversos, como artigos de opinião, contos, romances, dissertações e quadrinhos, para citar alguns. Ao mesmo tempo, um dos objetivos da Universidade é inserir seus alunos em práticas sociais – mediadas pela linguagem –, dialogando ainda com as demandas sócio-históricas das sociedades (BRYDON, 2001; STREET, 2006), fazendo conjugar formação técnica/teórica, prática profissional e uma formação humana que incentive o pensamento crítico. Uma proposta de ensino ideal – dentro dos pressupostos que defendemos – deve abranger letramentos múltiplos, incluindo atividades de leitura, crítica, produção e análise de textos (multi)semióticos e multimodais. O que seria, então, letramento? E multiletramento? Rojo, ao definir o conceito de letramentos e multiletramentos, explica a diferença entre alfabetização, alfabetismo e letramentos, uma vez que estes conceitos tangem em componentes semelhantes6. Alfabetização, então, seria “a ação de alfabetizar, de ensinar a escrever e ler” (ROJO, 2009, p.10) de maneira mecânica; analisar frases, palavras, sílabas, entender a composição em partes. Alfabetismo envolve tanto as capacidades de leitura como as de escrita (ROJO, 2009, p.10). Entretanto, é preciso que se compreenda o que se lê, isto é, é necessário acionar seu conhecimento de mundo, estabelecer uma intertextualidade entre elementos, criticar erefletir, dentre outras ações que pressupõem um letramento, uma capacidade diferente de apenas “ler e escrever”. Para Rojo (2009), letramento deve ser entendido no plural – letramentos –, configurando-se como um conjunto muito diversificado de práticas sociais situadas que envolvem sistemas de signos, como a escrita, ou outras modalidades de linguagem, para gerar sentido. Para tanto, é necessário considerar

a multissemiose que as possibilidades multimidiáticas e hipermidiáticas do texto eletrônico trazem para o ato de leitura: já não basta mais a leitura do texto verbal escrito – é preciso colocá-lo em relação com um conjunto de No original em inglês, o termo “literacy” pode significar “alfabetização” ou “letramento”, o que torna seu uso relativamente confuso (STREET, 2006). 6

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signos de outras modalidades de linguagem (imagem estática, imagem em movimento, fala, música) que o cercam, ou intercalam ou impregnam; esses textos multissemióticos extrapolaram os limites dos ambientes digitais e invadiram também os impressos (jornais, revistas, livros didáticos). (ROJO, 2008, p. 584)

Enquanto multiletramento seria, para ROJO, definido como uma Pedagogia.

Pedagogia dos Multiletramentos é justamente pensar que para essa juventude, inclusive para o trabalho, para a cidadania em geral, não é mais o impresso padrão que vai funcionar unicamente. Essas mídias, portanto, têm que ser incorporadas efetivamente, todas elas, tvs, rádios, essas mídias de massas, mas sobretudo as digitais incorporadas na prática escolar diária. Então, eles vão propor uma pedagogia para a formação, isso lá em 1996, portanto, já há muitos anos atrás. A ideia é que a sociedade hoje funciona a partir de uma diversidade de linguagens e de mídias e de uma diversidade de culturas e que essas coisas têm que ser tematizadas na escola, daí multiletramentos, multilinguagens, multiculturas.7

Atividades simples, que fazemos diariamente, estão inseridas no campo dos (multi)letramentos e muitas vezes os alunos sequer têm plena compreensão disso. Por exemplo, quando vamos ao supermercado e pagamos a conta no caixa, efetuamos exercício de letramento, pois somos capazes de reconhecer o valor (números) das notas e o quanto equivale o produto que desejamos adquirir. Outra situação é quando utilizamos o caixa eletrônico para sacar dinheiro: afinal precisamos “ler a tela”, compreender os comandos, e finalmente, a partir disso tomar a decisão de retirar a quantia necessária. Exemplificando a questão, Rojo (2009, p. 96) descreve uma situação cotidiana ocorrida com uma personagem (Susana) para pautar a discussão:

Susana está sem dinheiro vivo na carteira e precisa comprar remédios. De duas uma: ou vai ao caixa automático e segue as instruções na tela, digitando códigos alfanuméricos para retirar dinheiro vivo, ou vai diretamente à farmácia e usa o cartão de crédito ou de débito, também seguindo as instruções da tela no terminal e digitando códigos alfanuméricos, para realizar a compra sem precisar do dinheiro – práticas de letramento [grifo nosso].

7

Entrevista concedida em 2013, disponível em http://bit.ly/2hLsOxL- acesso em 03/12/2016 as 19h50min.

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Como afirmamos, a linguagem está na base de todas as práticas sociais nas quais nos inserimos, sendo ela a responsável por organizar a própria dinâmica da vida social. Posto que a linguagem é um processo – praticamente ininterrupto – e não um objeto/objetivo, que ela é dinâmica e efetivada por agentes sociais que agem no mundo e nos outros, discutir as múltiplas possibilidades da linguagem torna-se fundamental. Portanto,

a preocupação básica do ensino da língua materna é levar o aluno não apenas ao conhecimento da gramática de sua língua, mas, sobretudo, ao desenvolvimento da capacidade de refletir, de maneira crítica, sobre o mundo que o cerca e, em especial, sobre a utilização da língua como instrumento de interação social (FUZA, 2011, p. 13)

Em outras palavras, trabalhar língua portuguesa deve ser uma ação propícia à discussão sobre todas as ocorrências da linguagem8. O objetivo é justamente dar a chance para que os alunos “possam participar das várias práticas sociais que se utilizam da leitura e da escrita (letramentos)”(ROJO, 2009, p. 107), com especial atenção “aos multiletramentos e aos letramentos multissemióticos” (ROJO, 2009, p. 107). Considerando fatores importantes que implicam diretamente no rendimento do processo de ensino-aprendizagem no contexto EAD, é necessário que os professores busquem mudanças pedagógico-teórico-práticas para que possa atender a essa demanda. Não vai bastar, para tanto, apenas utilizar o livro.

Análises Uma análise inicial do material já nos indica uma falta de preocupação com a sua descrição e explicação: não há nenhum apresentação do material, quer feita pelos seus autores, quer feita pelos seus coordenadores. Não há nenhuma explicação sobre o material, sobre o seu uso ou sobre a sua finalidade. O livro já se inicia com o seu sumário, com as unidades seguindose a esse. Não há ainda nenhuma explicação sobre a modalidade do EAD e o papel daquele material didático em específico. Sendo o livro correspondente a uma disciplina do primeiro

8

Embora a multiplicidade de ocorrências tenda ao infinito, é possível, ainda que com um número limitado de ocorrências, efetivar um trabalho que se proponha, em linhas gerais, a discuti-las – uma efetiva prática de letramento

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período, seria necessário um maior cuidado com a questão, considerando que os alunos, via de regra, ainda estão em um momento de adaptação à universidade e ao ensino não-presencial. Outra questão que se coloca é a da própria organização e estrutura do material. Em sua estrutura, o livro analisado não se diferencia de outros LD, sendo formado pelas mesmas “partes”, sem especificidades. Sendo um livro teórico de uma disciplina do EAD, o material tem a mesma estrutura de qualquer outro utilizado no ensino presencial. Não se observam as diferenças entre as modalidades de ensino (LIMA JUNIOR, 2005) e negligenciam-se as suas particularidades. Da mesma forma, no interior de cada unidade, há a prevalência de textos longos, teóricoexplicativos, que pouco se diferenciam de textos teóricos “tradicionais”, como os livros e artigos acadêmicos. Há exercícios ao fim de cada unidade, na tentativa de “fixar’ o conteúdo apresentado. Mais uma vez, pouca diferenciação se faz para a realidade do EAD. Além disso, pouca ou nenhuma atenção é dada aos multiletramentos. Por fim, os gêneros textuais presentes no interior do livro analisado – lembrar que o “macrogênero” livro didático possui outros “microgêneros” – são poucos, apresentando-se grande quantidade de gêneros repetidos, com uma variedade pequena de gêneros diferenciados; são privilegiados os textos “canônicos”. No contexto analisado do CEDERJ, o ensino se dá através de umlivro-apostila e da possibilidade de atendimento facultativo em uma plataforma online que serve para os alunos realizarem fóruns e também para que os tutores postem material de apoio. Entretanto, o único aporte teórico ao qual os alunos tem acesso é a apostila. Não há vídeos, sites e outros materiais multimodais que possam auxiliar. O advento da internet vem trazendo consigo influência em nossos hábitos. Em tese, temos disponíveis muitos serviços que podem contribuir neste processo, como por exemplo, as bibliotecas virtuais, bate-papos, e-mails, redes sociais. Porém, considerar que um curso pode abrir mão de oferecer determinados caminhos tendo como justificativa que os alunos tem material a disposição e podem busca-lo é, para dizer o mínimo, equivocado. É evidente que os

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alunos devem possuir autonomia9, mas é igualmente evidente que um material não pode prescindir de oferecer os subsídios aos alunos baseando-se em uma suposta autonomia destes. Pela proposta de ensino baseado em gêneros de Rojo e Barbosa (2015), com vistas ao multiletramento, as diferenças existentes entre as duas modalidades não se restringem apenas à dicotomia “presencial x EAD”. Há efetivas mudanças didático-pedagógicas que devem ser levadas em consideração, como por exemplo a própria relação que se estabelece entre os alunos e o livro didático. Uma vez que no ensino presencial a relação com o livro é mediada e direcionado pelo professor, no EAD o aluno acessa o livro diretamente e de forma livre, sem um direcionamento prévio10ou alguma “ordem” pré-estabelecida. Na realidade presencial, “para uma grande maioria de alunos e professores, o LD é o material essencial por meio do qual se estabelecem as interlocuções professor/aluno e o conteúdo disciplinar” (DIAS, 2009). Conserva-se assim para o EAD, sem mudanças, uma característica do livro didático enquanto gênero textual do ensino presencial: o livro como interlocutor entre o aluno e o conteúdo. Se consideramos a linguagem na perspectiva de Bronckart (1999, 2006), Schneuwly e Dolz (1999) e entendemos que ela se materializa nos gêneros textuais,podemos dizer que a mudança nesses gêneros modifica também a relação que se estabelece entre os gêneros textuais e os aprendizes – modifica também o aprendizado em si. Apenas quando consideramos uma real mudança na forma como esses gêneros textuais são utilizados – no caso, o LD – é que podemos ter uma mudança no aprendizado que considere as mudanças entre as duas modalidades. Por fim, não há nenhuma atenção às“novas exigências [de multiletramentos] que o mundo contemporâneo coloca” (ROJO, 2008, p. 586), bastando para o curso as “diretrizes” – que, na verdade, não são diretrizes – que o livro oferece.

Considerações finais

9

Por simples adequação ao espaço, não incluiremos discussões acerca da Autonomia. Para uma discussão sobre o tema, sugerimos os textos de Oxford (2003), Nicolaides (2008), Nicolaides e Tilio (2008)

10

Naturalmente, é possível haver alguma indicação, por exemplo, de um tutor. Ainda assim, essa indicação não se equipara ao contato diário e direto com o professor.

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Efetivar um trabalho tendo o conceito de multiletramento como base parece ser, ainda hoje, uma exceção. Muito embora as demandas de uma sociedade globalizada requeiram a possibilidade de leitura, produção e interpretação de diferentes gêneros textuais e semioses – em outras palavras, de diferentes maneiras de realização da linguagem, ferramenta necessária para as práticas sociais – demonstramos a partir da análise de um material de um curso universitário de Pedagogia do CEDERJ (que, não nos esqueçamos, é um curso de formação de professores) que o trabalho proposto para a discussão sobre a linguagem ainda se atém a um modelo tradicional, com pouca atenção às novas semioses, aos multiletramentos e àquilo que o mundo atual demanda. Entendemos que nossas análises são pontuais e respondem, de maneira local, a uma análise específica. Entretanto, entendemos também que ela representa um parâmetro importante de comparação e discussão. Nossas análises não se pretendem universais e definitivas, mas apenas uma possível maneira de compreender a temática. Esperamos que outros pesquisadores também tenham interesse por ela, aprofundando-a.

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