Jangada: crítica, literatura, artes

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crĂ­tica | literatura | artes

jangada ISSN 2317-4722

n.7, jan-jun, 2016

Caio Fernando Abreu


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Sumário Editorial................................................................................................. 3 Sem patente nem comenda: “Sargento Garcia”, de Caio Fernando Abreu ..................................................................................................... 4 O trabalho de citação no conto de Caio Fernando Abreu ............ 38 Fusão mítica: o descenso de Orfeu aos infernos em Onde andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu........................................... 65 A construção do (des)sabor d’Aqueles dois Morangos Mofados .. 77 Elementos poéticos de um conto de Caio Fernando Abreu e sua tradução para a língua inglesa ......................................................... 92 Uma leitura do conto “Corujas”, de Caio Fernando Abreu, através da filosofia de Jacques Derrida ........................................ 110 Além do ponto: o irremediável amor ........................................... 123 Prosa e poesia ................................................................................... 145


Editorial Há vinte anos, o Brasil perdia uma das mais expressivas vozes de nossa literatura contemporânea. Caio Fernando Abreu era um autor camaleônico, intenso, com uma escrita que nos coloca em suspensão, em confronto com nossos próprios demônios e com aqueles que habitam o mundo caótico que nos rodeia. A literatura de Caio F. passeia do rural ao urbano, do sublime ao grotesco, da crítica cultural ao lado mais íntimo do ser humano. Nesse trânsito, ela rompe até mesmo com tais dicotomias, fluida, repleta de nuances. Poucos autores souberam encenar de forma tão pertinente as várias faces dos sujeitos e da sociedade brasileira nas três últimas décadas do século XX. Em sua sétima edição, a Revista Jangada tem a honra e o prazer de dedicar este volume especial a Caio Fernando Abreu. Sete, inclusive, é um número importante dentro da obra do autor, quando passeamos por suas faces mais místicas, em que o metafísico está intimamente conectado ao cotidiano. Alguns exemplos deste movimento podem ser encontrados em textos como “Morangos Mofados”, “O Marinheiro” e “Os Dragões não Conhecem o Paraíso”, por exemplo. Nos artigos que aqui se apresentam, é possível perceber que os autores e autoras estão em perfeita sintonia com a complexidade e, ao mesmo tempo, sutileza da poética de Caio F. As pinceladas são suaves, precisas, retratando com muita pertinência as características mais marcantes da produção do autor. Nesta edição, no entanto, inspirados pela aura de transgressão que emerge da obra de Caio, quebraremos um protocolo e não faremos a tradicional apresentação de cada texto. Deixaremos que o leitor mergulhe de olhos fechados nas análises críticas da obra do escritor gaúcho. Afinal, essa é uma das maiores especialidades de Caio: fazer-nos mergulhar sem direção e sem rumo em um universo pronto a nos tragar. Um universo de abismos, de caos, de solidão, mas, para além de tudo, um lugar de epifânicas transformações. Uma boa leitura! Os Editores. Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 3


Sem patente nem comenda: “Sargento Garcia”, de Caio Fernando Abreu José Luiz Foureaux de Souza Júnior1 Resumo: O artigo tem como objetivo principal mais uma leitura de um dos textos de Caio Fernando Abreu. A obra dele já está suficiente e consolidadamente chancelada pela crítica. Os dois argumentos se sustentam na ideia de que a primeira parte do conto desenha um pano de fundo para a leitura que proponho: o cenário. A segunda parte do artigo desenvolve a leitura em si mesma, chamando a atenção para aspectos que considero importantes para o desenvolvimento da ideia: a assimetria que marca as relações poder, sem especificação particular, articulada pela articulação de termos, expressões e imagens. Identifico esse conjunto de elementos discursivos como “dêiticos”. Deve ficar claro que não faço defesa desta ou daquela escola linguística, procurando atacar e/ou defender teorias acerca dos “dêiticos”. O que importa é tentar “ler” as relações que aqui são ficcionalmente prenunciadas. Por fim, na terceira parte do artigo, acrescento algumas considerações, no sentido de “amarrar” ideias num feixe que, incendiado pelo “fogo” da leitura, complementem as considerações anteriores. Falar em “conclusão” me parece um tanto premeditado. Palavras-chave: Literatura brasileira, Caio Fernando Abreu, Subjetividade, Homoerotismo Abstract: This article aims at reading Sergeant Garcia, one of Caio Fernando Abreu’s main texts. This work is strongly sealed by the criticism. Two arguments support the idea that the first part of the tale draws a backdrop for reading – specifically, we focus the scene. The second part of the article develops the reading itself, drawing attention to aspects that I consider important for the development of the idea: the asymmetry that marks power relations, articulated by the articulation of terms, expressions and images. I identify this set of discursive elements as “deictic”. It should be clear that I do not defense a specific language school, trying to attack and/or defend theories about the “deictic”. What matters is to try to “read” the relationships here are fictionally foreshadowed. Finally, at the third part of the article, I add some considerations in order to “tie” ideas into a bundle, set on fire by the “fire” of reading, complementing the above considerations. Speaking of “conclusion” seems somewhat premeditated. Keywords: Brazilian Literature, Caio Fernando Abreu, Subjectivity, Homoeroticism.

1Doutor

em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais e Pósdoutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de Coimbra. Professor Associado de Literatura Portuguesa e Comparada da Universidade Federal de Ouro Preto.

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Só que homossexualidade não existe, nunca existiu. Existe sexualidade – voltada para um objeto qualquer de desejo. Que pode ou não ter genitália igual, e isso é detalhe. Mas não determina maior ou menor grau de moral ou integridade. Caio Fernando Abreu O “texto dramático” é constituído de “atos e cenas”. Um ato representa os momentos de uma obra em que corresponde a tudo o que acontece em um mesmo período de tempo. Os atos podem se dividir em cenas que são indicadas pelas entradas e saídas das personagens e as reviravoltas na trama – ainda que em número reduzido. As cenas também podem ser marcadas por elementos que, às vezes, “escapam” da própria composição da trama. Em se tratando de cenas, não há regra pré-estabelecida quanto a quantidade delas num “drama”: serão tantas quantas forem necessárias. O que vai ficar, de fato é o discurso a famigerada “mensagem”! Com o tempo, a estrutura de uma peça foi sendo modificada. Na Grécia clássica, por exemplo, a obra se dividia em episódios apresentados pelo coro. Já nos séculos XV e XVI d.C., a divisão da peça era feita em três atos: exposição (neste momento, as personagens eram apresentadas e eram passadas as informações para que a platéia se situasse na história); desfecho ou clímax (o conflito era desenvolvido nesta parte); desenlace (o público já sabia como se resolveria o conflito). No século XVII, houve a necessidade de aumentar o número de atos. É nessa época que são escritas peças com até cinco atos, como as tragédias de William Shakespeare. Esse tipo de abordagem pode ser deixado de lado, por enquanto! O que pretendo aqui é propor um raciocínio inicial que ilumine o caminho de leitura do artigo que segue. De fato, o texto de Caio Fernando Abreu, em geral, é comumente associado a um tipo de escrita “cinematográfica”, logo, por extensão de sentido, “dramática”. No caso específico de “Sargento Garcia”, a trama do conto aponta para uma sequência dramática que flui pela pena do Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 5


escritor, pela voz narrativa de Hermes. Em muitas “sequências”, esta voz narrativa se faz in off – herança do efeito causado pelo fluxo de consciência, procedimento caro a muitos escritores. O meu objetivo é mais que aproximar cinema e literatura e/ou teatro e conto – ainda que essa aproximação seja exercício instigante de comparatismo. O artigo tem como objetivo principal mais uma leitura de um dos textos de Caio Fernando Abreu. A obra dele já está suficiente e consolidadamente chancelada pela crítica. Os dois argumentos se sustentam na ideia de que a primeira parte do conto desenha um pano de fundo para a leitura que proponho: o cenário. A segunda parte do artigo desenvolve a leitura em si mesma, chamando a atenção para aspectos que considero importantes para o desenvolvimento da ideia: a assimetria que marca as relações poder, sem especificação particular, articulada pela articulação de termos, expressões e imagens. Identifico esse conjunto de elementos discursivos como “dêiticos”. Deve ficar claro que não faço defesa desta ou daquela escola linguística, procurando atacar e/ou defender teorias acerca dos “dêiticos”. O que importa é tentar “ler” as relações que aqui são ficcionalmente prenunciadas. Por fim, na terceira parte do artigo, acrescento algumas considerações, no sentido de “amarrar” ideias num feixe que, incendiado pelo “fogo” da leitura, complementem as considerações anteriores. Falar em “conclusão” me parece um tanto premeditado. Penso que leitura alguma pode ser considerada “conclusiva”, a não ser que seja tomada como um passo a mais na direção de alguma coisa considerada resposta. Há sempre uma pergunta a responder, sempre. O artigo que aqui apresento vai seguir esse pressuposto – que pode estar “errado –, para ler um conto de Caio Fernando Abreu que considero “dramático”. Quem vai poder dizer que não? Mais uma pergunta...

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Contexto Dizem que duas retas paralelas não se encontram. Os adeptos de outras teorias dizem que a relatividade é responsável pela possibilidade desse encontro. De outro lado, há os que acreditam que a sincronicidade é a responsável por esta possibilidade. Pelo sim, pelo não, as comparações continuam, o cálculo ajuda a equacionar o problema e as histórias continuam a ser contadas. Aqui, mais uma experiência de leitura que parte da ideia de que é possível estabelecer relações assimétricas de poder. O eixo é o texto. A matéria, a ficção de Caio Fernando Abreu, o instrumento é o olhar homoerótico que mira os dêiticos que gritam: poder! A palavra “assimetria”, no dicionário, expressa tudo o que é ausência de simetria. Ponto para a etimologia, apoio indiscutível da semântica. Acrescenta, o verbete, a ideia de grande diferença; disparidade, discrepância. Este é, talvez, o argumento de quem vê entre o sargento e Hermes, os dois protagonistas, relação de antagonismo. Será mesmo? Ao final, talvez, seja possível afirmar uma ou outra coisa. Além disso, o antônimo do termo destacado, expressa a ideia de conformidade, em medida, forma e posição relativa, entre as partes dispostas em cada lado de uma linha divisória, um plano médio, um centro ou eixo. Aqui começa a se esboçar outro caminho de leitura. Nessa direção, o dicionário acrescenta a ideia de semelhança entre duas metades, semelhança entre duas ou mais situações ou fenômenos; concordância, correspondência. Destaco esses acréscimos por conta de “correspondência” – palavra que encobre o sentido de relação, esta sim, palavra-chave besta minha proposta de leitura. Em alguns de seus momentos, o homoerotismo pode apontar para os articuladores de minha leitura. Os seus dêiticos são evidentes e vão costurando as ideias que fazem do conto a demonstração clara das relações de poder alegorizadas pela narrativa de Caio Fernando Abreu. A assimetria da relação entre o sargento e Hermes é indicativo de um poder que circula por entre as frases curtas trocadas entre as duas personagens. O Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 7


passeio que começo a fazer funciona como roteiro de uma viagem processada pela leitura da história um tanto amarga e cínica. A simultaneidade de sentimentos dá sabor especial ao que se passa. A caminho do passeio, então! As boas maneiras, a educação formal e a elegância, são apenas algumas das qualidades de Azevedo, personagem de O demônio familiar, peça de autoria de José de Alencar. Acrescente-se certo cosmopolitismo, uma vez que, ao residir na Europa, esse jovem aristocrata brasileiro teve acesso ao melhor do pensamento europeu de seu tempo. Entretanto, não foi esta a abordagem escolhida por Alencar para o desenvolvimento do papel da personagem na peça. Amaneirado, misturando de forma gratuita de Francês e Português, a personagem é desenhada como caricatura da juventude abolicionista brasileira: “casta” de jovens que estudaram no exterior. Para Alencar, o filho de um padre metamorfoseado em senador do império e sua inserção social é o suficiente para justificava o alerta à sociedade sobre os perigos de expor jovens moralmente fracos aos maus costumes de sociedades carcomidas pelo vício. Entretanto, o autor não colocou as palavras de advertência na boca de uma personagem respeitável, responsável. Pedro, o garoto escravo, é que personifica o demônio do título da peça, sugerindo que havia a existência de algo de errado com Azevedo: “Rapaz muito desfrutável, Sr. môço! Parece cabeleireiro da Rua do Ouvidor!”2 Para o enfant terrible do Romantismo brasileiro, o teatro foi mediação suficiente e eficaz para a promoção de valores morais na sociedade. Consciente das qualidades especiais da linguagem dramatúrgica, Alencar buscou, no Realismo francês, os moldes para sua teatralidade, habilidosamente executada pelo reasonair: personagem que apresenta comentários e tece juízos morais. Na peça de Alencar, Eduardo, médico, sucessor do patriarca falecido, proprietário do escravo Pedro é a personagem que sustenta o discurso do reasonair. 2

ALENCAR, 1960, p. 91.

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Para defender a idéia de que a abolição da escravatura deveria ser o resultado da humanização das relações entre senhores e escravos, espécie de emancipação espontânea, Alencar mostrou o perigo que a presença do escravo poderia representar aos valores morais da família burguesa. Desencontros e fofocas, insolência e mentiras, são apenas algumas das consequências da ação de Pedro, movido pelo desejo de ser alforriado para tornarse cocheiro. A mente infantil, ou diabólica, do negro passa a representar argumento favorável à futura alforria voluntária. Daí a desqualificação do interlocutor representado por Azevedo, ao caracterizá-lo como moralmente frouxo, superficial e desfrutável. O texto de José de Alencar demonstra abordagem superficial, transversal, e supressora de qualquer debate no que respeita ao homoerotismo, limitadamente sugerido na descrição de um possível sujeito não qualificado para ser levado a sério. Nesta direção, ele foi seguido por dois outros romances: O ateneu (1888), de Raul Pompéia, e O bom crioulo (1895), de Adolfo Caminha. Estes não se furtaram a dar nomes a atos e afetos inefáveis. Entretanto, o rancor pode ser tomado como sentimento motriz de ambos. Ainda que discutível, a referência à “motivação do autor”, a menção ao contexto humano, o entorno existencial em que as obras foram produzidas e recebidas, reforça a abordagem aqui observada. O texto de Raul Pompéia pode ser considerado “acerto de contas” com o passado, denúncia do meio escolar hostil (o internato), palco para da dramatização do exercício de relações assimétricas e degradantes de poder. As práticas homoeróticas são, aqui, apenas consequências do ambiente. Já para Adolfo Caminha, a questão seria o ressentimento em relação à armada, onde havia trabalhado, tendo sido forçado a pedir demissão de seu posto, o que livrou a marinha de um jovem politicamente engajado e com histórico de problemas morais: o envolvimento com a esposa de um oficial do exército. Há que se chamar a atenção para outra gama do espectro interpretativo: a “negociação”, princípio operacional de possível discurso político agenciado pelo romance. O autor, dizem, teria Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 9


tido a ideia de sustentar, pelo romance, o referido discurso, numa implícita defesa de Dom Pedro. Mas este assunto fica para outra oportunidade. Inseridos no cânone literário brasileiro, os autores citados: Alencar, Pompéia e Caminha iluminam as abordagens e representações iniciais percebidas pelo olhar homoerótico de que trato em meu livro: Herdeiros de Sísifo. Seja pela insinuação preconceituosa ao homoerotismo, seja pela apresentação de atos homoeróticos como resultantes da degradação moral causada pela brutalidade do regime de internato; ou a denúncia rancorosa dos maus tratos sofridos pelos marinheiros da armada, não é possível falar em elaboração identitária homoerótica, ao mesmo tempo socialmente autônoma e responsável. Coube a Machado de Assis, no conto “Pílades e Orestes”, a dissecação dos interesses, das motivações, e da mecânica que tornou possível a dois membros de estratos sociais mais elevados a manutenção de uma união afetiva em pleno século XIX. O “silêncio” autoral do autor, nas referências explícitas à amizade dos dois advogados, é contundente no discurso homoerótico que, à sua revelia, se espraia diante dos olhos do leitor. Inserido no livro de contos Relíquias de casa velha (1906), o referido conto ganhou especial importância por apresentar uma abordagem machadiana para a questão do homoerotismo.3 No texto de Machado, as identidades erótico-afetivas são efetivadas segundo as regras do jogo de interesses de classe que somente pode se realizar plenamente sob o domínio do cânone “heteronormativo”, compreendido como lei. Há oscilação entre desejo e realidade, que molda a conformação discursiva dos sujeitos. Na sociedade brasileira da segunda metade do século XIX, época em que se passam os fatos narrados, o relacionamento erótico entre dois homens poderia ser interpretado basicamente de duas formas distintas conforme a localização espacial, social e temporal dos sujeitos envolvidos. A primeira abordagem do fato, O uso do termo homoerotismo sustenta conotação a ele atribuída por Jurandir Freire Costa, em sua releitura de Sandor Ferenczi. 3

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que pode ser chamada de religiosa, correspondia à sua interpretação sob os valores católicos tradicionais, que identificavam as práticas homoeróticas com o pecado de sodomia, definido durante boa parte do período de vigência da Inquisição, como a prática do coito anal. Parece que isso não mudou muio, apesar de “certos” esforços, aparentemente denodados... Outra abordagem, que se afirmou de maneira convincente após a revolução burguesa na França, manteve a noção de uma ordem natural para as práticas sexuais cuja transgressão poderia ser interpretada como manifestação patológica. Em “Pílades e Orestes”, Machado de Assis lança mão da referência a um mito grego transposto para o teatro, ainda na antiguidade, sob forma de tragédias compostas por três grandes nomes do período de ouro do teatro clássico: Ésquilo, Eurípedes e Sófocles. A esse respeito, o narrador machadiano faz referência ao citar Sófocles. Entretanto, nesta narrativa o autor apropria-se habilmente do mito para a elaboração do texto que exprime elementos de sua própria cultura pelo recobrimento da significação dos referenciais diegéticos: o mito de Orestes, cujos elementos podem ser colhidos na Odisséia, no Catálogo das heroínas, no poema “Oresteia”, e na Pítica XI. A narrativa do mito relata acontecimentos que se seguiram ao retorno do rei Agamêmnon a Argos. Após o assassinato do monarca e comandante da guerra de Tróia, Egisto e sua cúmplice, a rainha Clitemnestra, voltaram-se para Orestes, o filho caçula do rei morto, uma vez que eliminado o herdeiro legítimo do trono, ambos estariam seguros e livres da vingança pelo sangue derramado. Salvo da morte por sua irmã Electra, Orestes foi levado para a corte de Estrófio rei de Crisa, onde cresceu seguro e conquistou a amizade de Pílades, filho do rei. Atingida a maioridade, Orestes obedeceu às ordens de Apolo e retornou para Argos com Pílades, amigo inseparável, para vingar o terrível crime cometido por Egisto e por sua própria mãe, Clitemnestra. Ajudado por Electra, que o introduziu no palácio, e pelo inseparável Pílades, que o animou a agir no momento em que Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 11


hesitava diante dos seios desnudos da mãe suplicante, Orestes executou a justiça de Apolo. Surge, então, no relato do mito, o “trágico” que inspirou a tantos outros relatos na antiguidade: a condição do homem frente às demandas de potências que estão além de seu controle levando-o às ações cujas conseqüências esmagadoras não podem ser evitadas. Diante da execução da mãe, sobrevém a loucura e o tormento das Fúrias, vingadoras dos crimes contra consanguíneos: Orestes havia cometido matricídio! Purificado do crime por Apolo em Delfos e livrado das Fúrias após um julgamento em Atenas, presidido pela própria deusa Atena, Orestes recebeu ordem de partir em busca de uma estátua de Ártemis, guardada em Táuris, que o poderia livrar da loucura. Depois da aproximação com a mitologia, merece atenção a posição de classe social privilegiada das personagens centrais do conto de Machado de Assis. Há, no discurso ficcional, incontestável desenvoltura na ilustração homoerótica da relação entre Gonçalves e Quintanilha, inclusive por força da sugestão da existência tática do casamento por interesse: recurso de camuflagem para a natureza da união afetiva de ambos. No século XX, Mário de Andrade também cria ficcionalmente uma porta aberta para o homoerotismo, valendose dele para criticar valores patriarcais fora de lugar: a imposição de determinado (e determinista!) papel social masculino para o adolescente, levado a vivenciar a esterilização de suas relações afetivas. Em Contos novos, publicado postumamente, obra da maturidade do autor, lê-se “Frederico Paciência” é exemplo de notável adensamento psicológico. Esse detalhe consolida mudança na relação de poder, implícita na narrativa, conforme se pode ler na seguinte passagem: Em termos temáticos, há alguns eixos fundamentais na construção dos dois livros de contos. Dentre eles, cabe destacar o problema do patriarcado. Os livros contêm várias marcas da base patriarcal da formação social brasileira. Nessa base, a liderança social é representada por um perfil específico: o homem branco, adulto, Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 12


heterossexual, com posses. Todos os outros segmentos sociais devem, em termos sócio-políticos, estar em uma posição submissa. (...) No Brasil, o patriarcado configurou uma das expressões mais presentes do autoritarismo, articulando macropoderes e micropoderes. (GINZBURG, 2003, p. 40) Acrescente-se que os latifundiários, fazendeiros, políticos e os senhores de escravos delimitavam os graus variáveis de liberdade de mulheres, negros e crianças, além de organizarem a vida econômica e o mercado. Constituíam na vida privada estruturas de regras de obrigação e obediência. Este pano de fundo que permite contextualizar boa parte da obra de Mário de Andrade é o cenário dos resquícios do patriarcado que devem ser superados. A crítica ao patriarcado, configurada pelo discurso ficcional de Mário de Andrade, tem enorme importância política e social. O sustento da perspectiva de leitura da abordagem agenciada pelas possíveis de relações de poder ficcionalizadas, também, por Mário de Andrade pode ser lida em dois trabalhos de Antonio Candido – “O serviço de inteligência” e “O direito à literatura”. Ambos sinalizam a importância estratégica do trabalho de Mário: intelectual de matiz anti-fascista, antiautoritarismo. O autor paulista pode ser destacado por várias marcas, dentre elas, seus valores políticos. A ficção, em seus livros de contos, tem um papel libertário: trilha de emancipação, procurando encontrar focos de ruptura em meio à dominação patriarcal, e expor as fragilidades e contradições do sistema. Daí a plausibilidade de enfocar o homoerotismo, como uma das variáveis de leitura de sua obra. A contestação da figura patriarcal, nos contos de Mário de Andrade, é possibilitada pelo recurso a elementos da experiência cotidiana para criticar a figura autoritária nas pequenas práticas sócio-afetivas. Exemplo desta abordagem é o papel que o autor dá à personagem Juca, no conto “Peru de Natal”, de Contos novos. Atuando como agente da libertação dos familiares, Juca fez do peru da ceia de Natal uma arma para superar a imagem Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 13


repressora do pai falecido que sobrevivia na memória familiar. Trata-se de uma ceia diferente, em que todos puderam comer o melhor, o que foi em si um ato libertário.Com a ceia, simbolicamente, a família escapa da repressão do patriarca, ao mesmo tempo em que mantém uma memória simpática e reelaborada do velho, de fato, sovina e repressor. O “tema” do homoerotismo ganha espessura nos contos de Mário de Andrade, como é o caso de “Frederico Paciência”. Antecipando Caio Fernando Abreu, o escritor paulista encena ficcionalmente a dificuldade de dois rapazes lidarem com o afeto que sentiam um pelo outro. Logo no início do texto, o narrador manifesta a sua impressão sobre o rapaz como quem inicia uma amizade: admiração pela perfeição moral e física de Frederico Paciência; uma pitada de inveja. Nas palavras do narrador: “(...) Quis ser ele, ser dele, me confundir naquele esplendor, e ficamos amigos”. A elaboração da relação homoerótica entre o amor e a amizade pode ser lida como o recurso usado por Mário de Andrade para representar ficcionalmente, a pauta ética e política anti-patriarcal. Apesar do final em que os sentimentos homoeróticos foram recalcados, pelo menos o autor, introduziu o motivo do desprendimento, usando o amor como expressão de espontaneidade da abordagem alternativa da sociedade patriarcal. Nesses termos, o amor é expressão de espontaneidade. Na sociedade brasileira, na primeira metade do século XX – contexto de aparências e rigidez moral cultivadas pela elite dominante –, o texto de Mário de Andrade aponta para a existência de fissuras no sistema patriarcal. A imagem de homens rígidos, poderosos e confiáveis, desenhada e alimentada pelo patriarcado, é associada, através do enredo do conto, a um aspecto diferente então inesperado da masculinidade, do companheirismo entre homens. Tal associação leva a repensar valores e processo de formação social. A personagem principal da narrativa é Juca: quem narra em primeira pessoa. O conto pode ser lido como relato de Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 14


memória por enfeixar recordações de adolescência na forma da amizade entre dois jovens estudantes. Frederico Paciência, a personagem que empresta o nome ao título do conto, descrito como possuidor de certa “solaridade escandalosa”, exercia sedução sobre seu colega Juca, misto de qualidade física e moral. Frederico Paciência tinha “olhos grandes bem pretos”. O tipo é descrito em termos de sedução visual: “na boca larga, na musculatura quadrada da peitaria, em principal nas mãos enormes, uma franqueza, uma saúde, uma ausência rija de segundas intenções.” (ANDRADE, 1999, p. 76) A imagem do outro ideal – par opositivo nas possíveis relações de poder, na assimetria de narrativas e experiências vivenciais – gera clima de sedução pelo desejo de emulação do objeto admirado, sendo o primeiro passo na relação que descortinaria a sexualidade agenciada pela leitura de textos como os aqui comentados. As narrativas sobre a descoberta do amor através do beijo, por exemplo – como o que se pode ler no conto de Caio Fernando Abreu –realça a castidade de personagens que buscam desarmar o leitor de suas reservas quanto às suas motivações dado que um futuro beijo entre homens passa a funcionar como um tipo de conseqüência um tanto “natural”, na economia de narrativas congêneres. Aqui cabe um adendo. Ressalta aos olhos o fato de que não se trata, aqui, de textos de autores assumidamente homossexuais, como no caso de Caio. No entanto, essa mesma “diferença” alimenta a abordagem de relações assimétricas de poder. Em outras palavras, o olhar homoerótico pode agenciar leituras de textos que, de fato, não tematizam a atração afetiva entre sujeitos de mesmo sexo. Esse tipo de dicotomia alimenta as assimetrias que se espraiam para além do(s) texto(s) ficcional(ais). Elas chegam a consolidar abordagem crítico-interpretativas como a que aqui se ensaia. Traço comum às obras citadas é o caráter “canônico” de seus autores. Entretanto, ressalta-se a limitação das imagens e grafias dos sujeitos homoeróticos nas mesmas e a ausência da assim Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 15


chamada “homocultura” – em que pesem as dificuldades hermenêuticas e discursivas de delinear esse conceito – compreendida como espaço e veículo de valores simbólicos compartilhados por sujeitos que partilham a mesma atração afetiva. A exposição da multiplicidade de práticas e de sujeitos homoeróticos, no contexto cultural, constitui elemento importante na economia do conto de Caio Fernando Abreu, consideradas as ideias até aqui desenvolvidas como pressupostos. Tornar-se canônico ou não constitui vantagem pois, para sê-lo, parece inevitável tornar-se digerível para a maioria pela preferência por retratos com cores débeis ou traços distorcidos. Penso que, nos dias que correm, esse critério não é mais uma “garantia” (como se, em algum momento, tenha sido!). No entanto, com argumentações diversas, ainda permanece como elemento de ratificação. Em outra oportunidade posso voltar a este assunto. Na apresentação dos dramas humanos, abundantes em um momento de busca por novos rumos, destaca-se a condição precária dos sujeitos, cujas identidades são apresentadas sempre em estado de crise. Esta é uma das características marcantes da elaboração narrativa de Caio Fernando Abreu. Pode-se nomear tal característica como “pós-identitária”, compreendida como visão problematizada das identidades, tomadas como papeis identitários assumidos com grau maior ou menor de autonomia pelos sujeitos. Portanto, para Caio as identidades, ou papeis de subjetividade, não seriam fixos, definidos negativamente contra o pano de fundo de uma identidade padrão centralizadora, produto de uma lei heteronormativa.O autor é sutil,fazendo o texto mostrar de forma lenta os eventos definidores dos dramas existenciais ficcionalizados. O autor gaúcho costuma desenvolver estratégia diferente para a expressão do desejo homoerótico, estratégia feita de renúncia a identidades fechadas, fixas, estanques. No conto em questão, tal característica pode parecer apagada, dado o embate entre o civil e o militar, entre o rapaz intelectual e a força viril do sargento. Hermes e Garcia são os protagonistas de diversos eixos assimétricos de poder que, no Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 16


entanto, confirmam a ausência de necessidade de reforçar “papeis”. Constitui-se sua escrita uma verdadeira proposta pósidentitária, por recusar o congelamento do ser em termos historicamente datados, adotando a expressão dos sentimentos como valor de revelação de uma realidade interna e afetiva. Estáse, assim, “efetuando uma completa desconstrução das perspectivas identitárias” (HALL, 2004, p. 103), em (...) áreas disciplinares que criticam a idéia de uma identidade total, unívoca. Para as personagens de Caio, a confusão em sua caminhada na busca de um sentido outro para a vida se deve à dificuldade em preencher o espaço vazio criado pelo desejo. O aceitar-se como contraparte de uma relação afetiva com outro homem é sempre reiterada pela denegação, em que pesem as resistências iniciais à fisicalidade do amor. As resistências são frágeis, estratégia para gerar empatia pelo sujeito abandonado a seus dilemas. Não há descompasso entre sujeito e desejo, o que pressupõe a aceitação da multiplicidade de formas assumidas pelo desejo nas performances do prazer, o que novamente está em harmonia com o sentido presente para a identidade, ou seja, “As perspectivas que teorizam o pós-modernismo têm celebrado, por sua vez, a existência de um ‘eu’ inevitavelmente performativo”. (HALL, 2004, p. 103) Neste contexto, até mesmo o sexo é visto por alguns teóricos como resultado de uma lei reiterada: A categoria do “sexo” é, desde o início, normativa: ela é aquilo que Foucault chamou de “ideal regulatório”. Nesse sentido, pois, o “sexo” não apenas funciona como uma norma, mas é parte de uma prática regulatória que produz os corpos que governa, isto é, toda força regulatória manifesta-se como uma espécie de poder produtivo, o poder de produzir – demarcar, fazer circular, diferenciar – os corpos que ela controla. [...] Em outras palavras, o “sexo” é um construto ideal que é forçosamente materializado através do tempo. (BUTLER, 2001, p. 153154) Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 17


Seguindo o rastro deixado pelas ideias de Judith Butler, o conto Sargento Garcia é exemplar. A relação (inacabada) de sexo, entre Hermes e Garcia é bem a imagem da “construção” a que se refere a autora da citação. O “ato” não se consuma, mas Hermes experimenta toda força da novidade, antepondo-se à realização do desejo de Garcia. Este, por sua vez, rende-se à fúria do próprio desejo, consentindo com a saída do rapaz. Nesta ausência, a construção se dá pela “representação” que o desejo toma, no cenário, um tanto decadente, do prostíbulo enredado pelas canções melancólicas que rodeiam o ambiente na voz do travesti. Este pequeno detalhe, em sua escritura, na pena de Caio, compreende e aceita que: “A identidade é um desses conceitos que operam ‘sob rasura’, no intervalo entre a inversão e a emergência: uma idéia que não pode ser pensada da forma antiga, mas sem a qual certas questões não podem ser sequer pensadas”. (HALL, 2004, p. 104) Não sendo mais possível pensar a identidade como questão redutível a um núcleo orientador, responsável por definir o valor dos sujeitos de forma automática, Caio mostra, através de subjetividades destroçadas, o resultado que a falta do outro, o amado, faz na definição de si mesmo, compreendendo o caráter de processo a que as categorias do ser estão reduzidas hoje, facetas de uma relação assimétrica de poder, ainda que implícita no texto ficcional: Parece que é na tentativa de rearticular a relação entre sujeitos e práticas discursivas que a questão da identidade – ou melhor, a questão da identificação, como se prefira enfatizar o processo de subjetivação (em vez das práticas discursivas) e a política de exclusão que essa subjetivação parece implicar – volta a aparecer. (Idem, 2004, p. 105) Uma outra maneira de ver as coisas é aquela apontada por uma visada mais ampla, aomo a desenvolvida por Linda Hutcheon. Nesta, a constatação de que não há fixidez dos sujeitos em suas identidades constitui uma crise, não de um sujeito Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 18


qualquer, pois tem sexo, cor e origem definida: é masculino, branco e europeu (e claro, também é heterossexual). Tendo monopolizado os discursos por séculos esse mesmo sujeito serviu para fundamentar e legitimar relações de poder as quais vêm sendo contestadas por políticas pautadas na lógica do descentramento, promovido pelas famigeradas “minorias”: negros, mulheres, gays, e todos os que se dispõem à tarefa de historicização e desconstrução da narrativa do sujeito. É este momento de crise que Caio Fernando Abreu apresenta em Sargento Garcia, como em outros textos seus. Diante da crise da concepção de uma identidade essencial para os sujeitos, ao mostrar os muitos lugares contraditórios ocupados pelos sujeitos em um cenário de ruínas emocionais, Caio Fernando Abreu explicita dupla recusa: não há identidade cartesiana e fixa que suficientemente potente para explicar e hierarquizar os muitos sujeitos, por um lado. Por outro, não há que se arrogar a submissão da diversidade inerente ao sujeito, pela acomodação a um modelo que reduza os discursos a um só. Afinal, processos de identificação – abandonada o approach que sustentava a existência de identidades fixas – são suscetíveis de desintegração, por força de sucessivos descentramentos promovidos, pela teoria social, pela psicanálise, etc. A expressão “identidades unificadas e não problematizadas” transforma-se, discursivamente, em argumentação favorável à manutenção de fronteiras engessantes, como aquelas construídas à sombra do conceito de “gueto”. Ao mostrar as consequências que a ausência do amor acarreta na estabilização de identidades performáticas, a obra do autor gaúcho encara os efeitos da perda de certezas que o descentramento político promovido pelos minoritários talvez pudesse vir a acarretar. Este apresenta, de fato, a trama políticodiscursiva em que se constituem e se enredam os sujeitos. É necessário lembrar que descentralizar não é negar. Daí, a historicização do sujeito e dos alicerces (centralizadores) habituais desse sujeito problematiza a noção de subjetividade, voltando-se Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 19


diretamente para suas contradições dramatizadas, como acontece em seus contos.4 Uma dessas problematizações é, exatamente, a possibilidade de leitura de relações assimétricas de poder, principalmente aquelas agenciadas por dêiticos comuns articulados numa ambiência ficcional peculiar. Drama A trama do conto “Sargento Garcia” é muito simples. Um rapaz universitário (implicitamente relacionado à burguesia gaúcha, em plena década de 70, do século XX) comparece a um posto do exército. O sargento o trata com deferência e deboche, simultaneamente. Depois da apresentação, o sargento oferece uma “carona” ao rapaz educado e o leva a um prostíbulo, onde tenta ter relações sexuais com ele. Ao final, o rapaz decide mudar alguma coisa em sua vida. A ambiguidade a que me refiro, de início, inaugura a perspectiva assimétrica da relação de poder entre o militar e o civil: o poder de determinar o que fazer, como fazer, quando fazer: – Ficou surdo, idiota? – Não. Não, não, seu sargento. – Meu sargento. – Meu sargento. – Por que não respondeu quando chamei? – Não ouvi. Desculpe, eu... – Não ouvi, meu sargento. Repita. – Não ouvi. Meu sargento. (ABREU, 1982, p. 74)5 O diálogo, bem, no início do relato, já indica o nível de assimetria no poder que o argento quer impor a quem fala com ele. “Idiota” é o dêitico que marca esta assimetria. Tal sentido vai ser confirmado e continuado com outros similares: “lorpa” (p. 74), HUTCHEON, 1991, p. 204. Todas as citações do texto do conto de Caio Fernando Abreu são retiradas da edição registrada na lista de referências bibliográficas. A partir daqui, indico, no corpo do texto, apenas o número da página em que se encontra a citação. 4 5

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“pamonha” e “bocó” (p. 75), “molóide” (p. 76)6, “perobão”(p. 77), “analfabetos” (p. 80), “bagualada” (p. 82), “putedo” (p. 83), “puto” (p. 88). Os termos se referem não apenas a Hermes, mas a todos os rapazes que se aglomeravam na sala de apresentação, diante do sargento. Os termos têm sabor de erotismo e preconceito ao mesmo tempo. A referência ao grupo se faz de maneira a degradá-lo, sob a batuta do poder militar que se impõe, mas abre espaço para o universitário com nome sintomático – Hermes. Há o prenúncio de algo a ser compreendido, que escapa à imbecilidade da “tropa”, intuída pelo sargento. A descrição das atitudes do sargento constroem uma imagem viril e animalesca. O rapaz (voz narrativa, em off) pontua sentimentos, cheiros, imagens e reações, gerando um clima quente e carregado, em que a potência dos hormônios explode em reações fisiológicas simples: “E moscas amolecidas pelo calor, tão tontas que se chocavam no ar, entre o cheiro de bosta quente de cavalo e corpos sujos de machos.”. (p. 74) A imagem do cavalo (simbolicamente associado à virilidade e à sexualidade vibrante) opõe-se à modorra fedorenta, salpicada de moscas, numa associação assimétrica de prazer e sujeira, desejo e pecado. Esse clima é acompanhado pelo fascínio que a imagem do sargento exerce, ainda (mesmo) que inconsciente: (...) o olho verde frio, de cobra, quase culto sob as sobrancelhas unidas em ângulo agudo sobre o nariz. Começava a odiar aquele bigode grosso como um manduruvá cabeludo rastejando em volta da boca, cortina de veludo negro entreaberta sobre os lábios molhados. ( p. 75) A oposição de ideias continua: o ângulo formado pelas sobrancelhas é “agudo”, numa referência implícita à masculinidade em oposição à “linha” natural das sobrancelhas, que estão “unidas” sobre o nariz (simbolicamente e “folcloricamente” também associado à virilidade). O bigode é Nas citações, mantenho a grafia original usada pelo autor do conto, o que, às vezes, vai desobedecer ao novo acordo ortográfico. 6

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grosso como “manduruvá”, animal repelente que “queima”, como o desejo, que “rasteja”. O detalhe final: a boca – “cortina de veludo negro”, ao mesmo tempo sensual e trágico, macio e tétrico. Os lábios molhados concluem a primeira impressão que, de imediato, causam ódio no protagonista. Ódio esse que se opõe ao que pensa Hermes, ao final da história: (...) uma língua estrangeira, como uma língua molhada, nervosa, entrando rápida pelo mais secreto de mim para acordar alguma coisa que não devia acordar nunca, que não devia abrir os olhos nem sentir cheiros nem gostos nem tatos, uma coisa que devia permanecer para sempre surda cega muda naquele mais de dentro de mim, como os reflexos escondidos, que nenhum ofuscamento se fizesse outra vez, porque devia ficar enjaulada amordaçada ali no fundo pantanoso de mim, feito bicho numa jaula fedida, entre grades e ferrugens, quieta, domada, fera esquecida da própria ferocidade, para sempre e sempre assim. (p. 8990) Uma virada e tanto! Hermes sente que alguma coisa mudou depois do encontro com o sargento. Desde a sala quente e fedorenta, durante a apresentação, até o desfecho num quarto de prostíbulo, o rapaz se dá conta de uma faceta identitária com a qual vai tomando contato, lenta e modorrrentamente, ao longo do próprio relato. A ideia de “acordar alguma coisa que não devia acordar nunca” perturba o rapaz, sem, no entanto, desfazer a sensação de prazer – latente em cada uma de suas elucubrações. Sob a pena aguda de Caio, Hermes descobre prazeres escondidos, como “bicho numa jaula fedida”. A “jaula” pode ser a sala de apresentação e, simultaneamente o quarto sujo. O desejo oculto de manter essa descoberta “amordaçada ali no fundo pantanoso de mim”, como diz Hermes, funciona como chancela da leitura aqui realizada. A “língua estrangeira” fala uma língua que Hermes apenas pressentiu, entre assustado e fascinado, desde os primeiros contatos com o sargento. Na sequência do prostíbulo, a

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narrativa enfatiza a descoberta de Hermes: “Meu caminho, pensei confuso, meu caminho não cabe nos trilhos de um bonde.” (p. 90) Falando em dêiticos, há algumas passagens do conto que me fazem pensar no processo de identificação que ocorre com Hermes. Ainda que não tenha buscado a experiência pela qual passa, o relato não deixa dúvida sobre o progresso de aceitação do que está acontecendo. De fato, a narrativa ilustra bem as idas e vindas do desejo, na construção de uma subjetividade ainda latente, já manifesta, contraditoriamente, na adolescência da percepção do protagonista. O que ocorre é que, de maneira similar ao relatado anteriormente aqui, a ficção de Caio Fernando Abreu, neste caso, é argumento irrefutável de que o desejo já se manifesta na latência das dúvidas de Hermes. O sargento, de certa forma, nesse processo, é o famoso “relé” de um sistema de ações e reações contundentes. Estas colocam o protagonista em contato com realidades afetivas insuspeitadas que, simultânea e ambiguamente, o fazem refletir e “goza” (A sombra do pensamento de Lacan, aqui, é refrigério para o intelecto!). Alguns exemplos, apresentados aqui na sequência da minha leitura, em direção ao referido ponto de fuga, podem ser: (...) o horizonte começava a ficar avermelhado. (p.77) ...................................................................................................... (...) parei de odiá-lo naquele exato momento. Como quem muda uma estação de rádio. Esta, sentia impreciso, sem interferências. (...) o céu avermelhado sobre o rio, o laranja do céu, o quase roxo das nuvens amontoadas no horizonte. (p. 79) ...................................................................................................... (...) meu passo era uma folha vadia, dançando na brisa da tarde. (80) ...................................................................................................... Meu corpo inteiro nunca tinha me parecido tão novo. (p. 81) ......................................................................................................

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(...) tinha que dizer ou fazer alguma coisa, só não sabia o quê, meu coração galopava esquisito, as mãos molhadas. Olhei para ele. Continuava olhando para mim. (p. 83) ...................................................................................................... Traguei fundo. Uma tontura me subiu na cabeça. (p. 85) ...................................................................................................... Estremeci. Gozo, nojo ou medo, não saberia. (...) imaginei uma lanterna rasgando a escuridão de uma caverna escondida, há muitos anos, uma caverna secreta. (p. 88) ...................................................................................................... (...) uma língua estrangeira, como uma língua molhada, nervosa entrando rápida pelo mais secreto de mim para acordar alguma coisa que não devia acordar nunca, que não devia abrir os olhos nem sentir cheiros nem gostos nem tatos, uma coisa que devia permanecer para sempre surda cega muda naquele mais de dentro de mim, como os reflexos escondidos, que nenhum ofuscamento se fizesse outra vez, porque devia ficar enjaulada amordaçada ali no fundo pantanoso de mim, feito bicho numa jaula fedida, entre grades e ferrugens, quieta, domada, fera esquecida da própria ferocidade, para sempre e sempre assim. Embora eu soubesse que, uma vez desperta, não voltaria a dormir. (p. 89-90) ...................................................................................................... (...) algumas nuvens avermelhadas, o rosa virando roxo e cinza, até o azul mais escuro e o negro da noite. (...) uma alegria tão maldita que os passantes jamais compreenderiam. Mas não sentia nada. Era assim, então. E ninguém me conhecia. (p. 90) Pois bem. A sequência dos “acontecimentos”, aqui, pareceme clara. Como quero mostrar uma leitura, no lugar de provar uma tese, vou tentar reorganizar os elementos. Pra começar, presto atenção a algumas palavras (dêiticos) que aparecem como elos de uma corrente de sentido! As cores do céu e do horizonte, por exemplo, remontam ao campo semântico ambíguo do desejo Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 24


e da danação, pólos assimétricos de um jogo de poder subliminar ao texto: “horizonte avermelhado”, “céu avermelhado sobre o rio”, “rosa sobre o roxo e cinza, até o azul (...) escuro e o negro da noite”. Vermelho é paixão, mas é sangue: purificação e sensualidade juntas numa mesma coloração de tom quente, que um tanto líquido, um tanto pastoso, alimenta o sentido. “Horizonte” e “céu” apontam para desejo e sonho, infinito, possibilidade: era bem o “estado de espírito” do protagonista, ainda que conscientemente não se tenha dado conta, até o desenlace, no prostíbulo. A sequência “rosa”- “roxo”-“azul escuro”-“negro” faz pensar numa “decadência” que pode significar pecado e sujeira, danação que, implicitamente atormenta o sujeito em estado de desejo intenso e puro. A sexualidade, implícita grita a sua demanda que, na gradação cromática, faz o protagonista quase delirar, na percepção, inconsciente, do que está por vir: a “alegria maldita”. A frase que fecha o trecho da página 90 é a chave de ouro do processo que faz Hermes concluir que esse desejo não mais o abandonará: “uma vez desperta, não voltaria a dormir”. A “fera” do desejo é indócil... A imagem da fumaça que evola (p.85) confirma o estado de espírito de Hermes, no caminho da descoberta de prazeres recônditos, despertos pela tentação da língua do sargento, réptil indócil que rasteja lúbrico pelo “mais recôndito de mim”. O estremecimento de “gozo” é também experiência carnal e, por que não, espiritual – o eterno dilema do sujeito – do “nojo ou medo”. O sujeito não “sabe”, experimenta e não consegue dizer o que vivencia, de maneira satisfatória. Um processo praticamente platônico de conhecimento, a experiência do saber de si, o “cuidado de si”, como já disse Foucault. Hermes se sente invadido ambígua e assimetricamente por duas “forças: o prazer e o tormento. É como se pode ler a outra imagem contundente: “lanterna rasgando a escuridão de uma caverna escondidam (...) uma caverna secreta”. A força do verbo “rasgar” é mais que alegórica, na “iniciação”, Hermes se sujeita ao “poder” do prazer que o contato com a boca do sargento. Muita sensualidade, muito Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 25


prazer e a explosão da sexualidade que “con-funde” o garoto ao poder viril do sargento: jogo de poder assimétrico, porque não há igualdade de desejos. O sargento impõe e Hermes aprende. A Paidéia se repete reafirmando o poder do macho que domina seu igual. É a Paidéia do erotismo que faz o protagonista comentar: “meu caminho não cabe nos trilhos de um bonde”. Constatação entre “heróica” e “fracassada”. A submissão que gera prazer e a verdade que salta da carne ferida por um “Punhal em brasa, farpa, lança afiada”. (p. 88) A força da metáfora dispensa comentários por redundância do elemento fálico reproduzido nos objetos alegóricos. A complementação dessa “epopeia” se faz pela voz de Isadora – a perversão de um símbolo de leveza e desbravamento, arte e transgressão – por uma rememoração de músicas que no cancioneiro popular celebram amores malditos pela perda, pela marginalidade. Ambas as situações que podem transitar entre o Bonfim e a Azenha: bairros conhecidos da cidade, caminhos e espaços urbanos por onde se escondiam os prazeres desconhecidos do protagonista. O cinema Castelo remete à imagem de cena, figura, sequência, roteiro da sexualidade que desperta e revela, renova e submete na constatação de que “Meu corpo inteiro nunca tinha me parecido tão novo”. Uma novidade que, num ritmo de eterno retorno, agencia a dicção mitológica da experiência existencial do sujeito comum: “Zeus. Zeus ou Júpiter, repeti. Enumerei: Palas-Atena ou Minerva, Posseidon ou Netuno, Hades ou Plutão, Afrodite ou Vênus, Hermes ou Mercúrio. Hermes, repeti, o mensageiro dos deuses, ladrão e andrógino. Nada doía. Eu não sentia nada. (p. 90). Os binômios divinos da mitologia remontam à ideia de assimetria de poder, aqui evocada. Eles estão sempre em disputa pelo poder de decidir sobre ávida humana que a eles se submete, O destaque das divindades, dado pelo protagonista confirmam a ideia de uma paideia que o faz porta-voz de uma verdade escondida, que a ninguém é dado conhecer, como ele mesmo intui “E ninguém me conhecia”. (p.90) As deusas do conhecimento e do Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 26


amor por um lado, e os deuses do poder de controle da natureza, por outro, simbolizam aqui o eterno embate entre o conhecimento e o prazer que influenciam no trajeto existencial do sujeito. Por outro lado, o nome do protagonista faz dele o portador de uma verdade por ele mesmo “desconhecida”. Corrobora a lição mitológica que teve um “bom fim” – outra forma de grafar o nome do bairro (Bonfim) por onde Hermes passa, depois da “revelação” dinamizada por sua experiência. Sua decisão final é mais um ponto de abertura para as possibilidades interpretativas do conto: “amanhã sem falta começo a fuma”. A pitada de ironia que faltava... Epílogo Tratou-se, aqui, de fazer um exercício de leitura de um dos contos de Caio Fernando Abreu, privilegiando a perspectiva homoerótica, como lupa, sem perder o foco da análise ou considerar questões extra-literárias. Quando o assunto envolve homoerotismo, o risco se amplia, dado que a abordagem, diuturnamente, gera equívocos interpretativos passíveis de reduzir obra ficcional a texto supostamente panfletário. Tal ressalva faz pensar que, para dar consistência a este exercício não se deve descurar de aspectos propriamente estéticos. É o que desenvolvi aqui, por meio da proposta de análise do conto “Sargento Garcia”. Tal exercício é fruto do esforço para a demonstração do rendimento literário do processo de transformação e “identificação” de Hermes, o protagonista, a partir de sua “iniciação sexual”, guiado pelo “sargento”. Antes de mais, é necessário salientar que não se deve confundir a apreciação de material ficcional com tentativa de proselitismo estreito e tendencioso qualquer valoração ética ou moral. O cuidado que se tem de tomar é não confundir os dois planos – ético e estético. Faltando isso, todo tipo de equívoco e exagero se faz viável e, consequentemente, danoso. A crítica literária, nesse sentido, não pode subordinar-se a um ou a outro: o caminho mais

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fértil é a articulação entre, por exemplo, os dois princípios aqui destacados. O texto erótico, entre outras expressões que pode assumir, caracteriza-se por representar o fenômeno cultural da sexualidade através do trabalho com a linguagem. O erotismo não imita a sexualidade, esta é metaforizada pela linguagem ficcional. Assim, o texto é sua representação material. Ao se vincular à representação metafórica, a manifestação do erotismo se distingue radicalmente da pornografia. Esta, por sua vez, é limitada à descrição de atos, sem outra preocupação, ainda que escrita de forma cuidada e, por assim dizer, “estética”. Isso não quer dizer que possa vir a sustentar abordagem interpretativa do texto que dela decorre. Esta discussão não cabe aqui, entretanto, sua consideração é necessária, para que não se incorra em intolerância e/ou preconceito nos exercícios de leitura possíveis. Narrado em primeira pessoa – numa espécie de relato in off –, o conto de Caio Fernando Abreu evidencia um desdobramento do narrador, estabelecendo certa mediação em que os eventos vividos se organizam por meio da consciência do narrador no momento da enunciação. O relato das experiências é feito em tom confessional, mediante o qual o enunciador descreve percepções provocadas pela experiência no contato com o elemento externo. Não seria exagero pensar, aqui também, na anunciada assimetria nas relações poder alegorizadas pelo relato ficcional. Neste caso, a “duplicação” de vozes narrativas seria o instrumento de viabilização representacional da referida assimetria. A favor dessa argumento, pode-se buscar em Foucault sustentação interessante: “Para nós, é na confissão que se ligam a verdade e o sexo, pela expressão de um segredo individual. (...) A confissão é um ritual de discurso onde o sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado”. (FOUCAULT, 1988, p. 61) Em “Sargento Garcia”, a consciência do protagonista marca fundamentalmente a expressão de sua subjetividade e o leva a confessar, por meio do discurso interior, as sensações e efeitos provocados pela experiência. Os diálogos entre as Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 28


personagens – inteligentemente camuflados no discurso duplicado do narrador/protagonista – confirma a importância da voz interna do sujeito narrador. É por intermédio da verbalização do pensamento do sujeito narrador que se percebe a natureza empírica da realidade exterior, a experiência transformada em discurso. A confusão causada pela mistura de desejo e angústia, evidenciada pela personagem em sua iniciação mundo inferido, mas não dito, revela o conflito entre desejo e repulsa. Tal fato se torna mais visível nos momentos em que há confluência de ações, memórias e percepções: juntas, conferem densidade ao discurso, ratificando a desordem provocada pela experiência transgressora. O desenvolvimento da manifestação erótica atinge seu auge a partir do efetivo enlace de Hermes com o sargento. O uso de recursos estilísticos ligados ao campo dos sentidos – o conjunto de termos a que denominei dêiticos – se soma à assunção da perspectiva narrativa de Hermes para construir a atmosfera em que a intensidade dos acontecimentos se revela através de sensações decorrentes da entrega ao outro. A representação metafórica manifesta o encontro do “eu” com sua própria identidade, num momento de auto-descoberta. As imagens transformadas em metáforas se tornam símbolos a relacionarem experiência externa e sensações interiores. A imagem da lanterna, envolvida em um campo semântico de luz, claridade e razão, contrapõe-se à imagem da caverna, em que as trevas representam a ignorância e o desconhecido. À medida que a luz penetra a obscuridade, Hermes passa a visualizar o que antes pertencia a um mundo desprezado. Da mesma forma, as representações simbólicas da realidade exterior revelam o estado de espírito do protagonista, que, a partir da entrega ao outro, demonstra naturalidade, como se se sentisse livre do peso que sua confusa consciência carregava até então. É possível, portanto, observar que a experiência de entrega ao outro se torna motivação para um movimento de mudança dos aspectos narrativos, fazendo do homoerotismo uma temática com grande potencial literário. Para além da simples Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 29


representação, Caio Fernando Abreu se mostra ficcionista imune a rotulações, o que permite perceber plenamente o valor de sua verve. Quando um escritor é chancelado por um cânone particular, geralmente recebe designações que o destacam por isso ou por aquilo. O “fato” da leitura desse autor é que, de fato, vai consolidar essa chancela. Esse é o caso de Caio Fernando Abreu. De cara, dois aspectos se destacam: a linearidade e o “psicologismo”7. A construção ficcional em contos de estrutura mais linear oferece mais facilidade de abordagem. Em outros casos, a efabulação exige do leitor certa dose de inventividade, imaginação e interferência em sua conformação. Sem esta coparticipação, o “sentido” da “história” não chega a se constituir. Parece bem o caso do presente conto do autor gaúcho. “Sargento Garcia” demonstra a maestria, a maturidade e a delicadeza com que, usando eufemismos e elipses, o autor consegue transmitir suas observações sociais. Caio Fernando Abreu, no conto “Sargento Garcia”, conta com duas fortes armas que transmitem “força” ao seu texto: o lirismo de sua linguagem e a competente seleção de imagens sensoriais. Sua narrativa deliciosamente ritmada, repleta de artifícios e recursos, como o fluxo de consciência, facilitam a transposição de suas obra para o cinema. A linguagem audaciosa e agressiva projeta as personagens para além da margem. Este conto retrata a questão do homoerotismo sem se deixar levar por um olhar puritano; pelo contrário, devassa as diversas abordagens da: “homoafetividade”8: a descoberta da potência de sua própria sexualidade. O encontro entre o sargento e o jovem Hermes é mutuamente transformador, ambos saem “outros” da Uso este termo consciente dos problemas que pode causar. De qualquer maneira, no contexto em que se insere, o termo diz exatamente o que pretendo, na leitura que realizo. 8 As aspas, aqui, servem apenas para deixar claro que o termo não é por mim eleito, mas apropriado de outros discursos que derivam de meu próprio posicionamento sobre a questão da representação literária de cunho homoerótico. 7

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experiência. Por via de conseqüência, mesmo o leitor sai modificado da experiência de leitura. Neste artigo, os caminhos percorridos foram extensos e sinuosos e, durante o percurso, inúmeras brechas foram abertas. Algumas podem levar a “lugares” especiais, que podem, inclusive, ser descartados. Nenhum estudo sobre a contística de Caio Fernando Abreu pode ser considerado definitivo. Os instrumentos são vários e, aqui, o termo homoerotismo é o vetor principal da articulação de ideias. Uma possibilidade é tatear pela Queer Theory, o que demandaria outra perspectiva de abordagem. O registro aqui fica como um alerta para outras leituras. Uma espécie de convite! O debate sobre a existência de uma arte homoerótica, essencialmente distinta das demais formas de manifestações artísticas, é tema polêmico: envolve questões teóricas, preconceitos sociais e interesses mercadológicos. Homoerotismo é o termo que é mais adequado, pois atende a mecanismos baseados na noção de desejo e não necessariamente de sexo e visa afastar o senso comum das noções imputadas à palavra homossexual. A literatura, em suas manifestações ficcionais, tem tratado do tema, da Antiguidade aos dias atuais. Mesmo em momentos de censura e restrição, o relacionamento sexual e amoroso entre pessoas do mesmo sexo sempre foi contemplado pela arte da palavra. No final dos anos 70 e inicio dos 80, críticos e leitores norte-americanos passaram a considerar a possibilidade da existência de uma arte homoerótica especifica e distinta das demais formas artísticas. Isso ocorreu por força da influência de movimentos como o Black power e a segunda onda do Movimento feminista. A partir desses movimentos, outros grupos marginalizados vislumbraram a possibilidade autônoma de seus próprios movimentos: desconstrução e queer theory, por exemplo. Esta tornou-se o espaço de questionamento produtivo, não apenas da construção cultural da sexualidade, mas da própria cultura tal como o feminismo e algumas versões dos estudos étnicos: obtém energia intelectual de sua ligação com os

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movimentos sociais de libertação e dos debates no interior desses movimentos sobre estratégias e conceitos apropriados. O texto de Caio Fernando Abreu recebe o rótulo de literatura gay, devido à abordagem temática do homossexualismo, na mesma medida em que é abordada como discurso pessoal da vivência de Caio, enquanto homossexual. Muito embora, a produção literária homoerótica possa ser, na voz de seus leitores, um referencial possível da subjetivação gay, nem sempre o testemunho que se tem por parte dos escritores implica em admitir a relação co-extensiva entre a sua identidade gay e os textos que escreve. O autor gaúcho, segundo suas próprias ideias, não se enquadraria como escritor que busca confirmação da sua identidade sexual por meio de seus textos. De fato, ele não precisou disso! São recentes os estudos sobre arte homoerótica, seja na literatura, seja em outras manifestações artísticas. Vários romances, contos e poemas podem ser considerados canônicos, na tradição ocidental, quanto à abordagem do homoerotismo, quanto ao modo como este se processa pela dicção de cada autor ou época. O debate sobre a existência de uma arte homoerótica distinta das demais formas de manifestações é um tema polêmico, verdadeiro campo minado, que envolve questões éticas e teóricas, preconceitos sociais e interesses mercadológicos, sobretudo esses, infelizmente! O verbo é a palavra em sua plenitude. Ao ler o conto de Caio Fernando Abreu com o “olhar homoerótico” celebro a natureza primacial do conto, uma das mais antigas formas de relato. O ato de contar uma história, do latim computare, é atividade oral, emsua origem. Sua forma escrita é bem posterior. No terceiro passo em seu processo evolutivo, essa forma narrativa abre espaço para o sujeito narrador: espécie de contador-criadorescritor de contos. O conto é narrativa unívoca, univalente: constitui unidade dramática, célula dramática, visto gravitar ao redor de um só conflito, um só drama, uma só ação. Caracterizase, assim, por conter unidade de ação, tomada esta como a

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sequência de atos praticados pelos protagonistas, ou de acontecimentos nos quais se envolve ficcionalmente. No conto, cada palavra ou frase tem sua razão de ser na economia global da narrativa, a ponto de, em tese, não poder substituí-la ou alterá-la sem afetar o conjunto. Por esse motivo, os ingredientes narrativos convergem em uma única direção, ou seja, em torno de um único drama ou ação. É uma narrativa curta, que tem como característica central condensar conflito, tempo, espaço e reduzir o número de personagens. Com esses argumentos, o conto de Caio Fernando Abreu poderia ser taxado de “tradicional”, na acepção mais estreita do termo. Todavia, sua “tradicionalidade” é outra, pelo simples fato de que sua escrita instaura novo vetor de orientação na “leitura” de um fenômeno cultural, a literatura, tematicamente consolidada na versão homoerótica das relações subjetivas: tópico caríssimo ao autor. Caio Fernando Abreu (1948 -1996) é considerado um dos mais importantes contistas de nosso país, um dos grandes nomes da expressão homoerótica na/da Literatura Brasileira. Referência para jovens escritores, por seu niilismo poético e por sua visão de mundo sem tantos compromissos formais, o autor gaúcho comove e incomoda, questiona e delata, faz poesia e imagem com a palavra. É, da mesma forma, considerado autor pesado e afeito à melancolia, com uma escrita passional e intertextual. Isso se deve ao fato de o escritor ter dado um grande espaço, em sua obra, a temas considerados “pesados” e/ou “não-literários”. Temas que podem ser identificados como sua marca registrada: explicam, em parte, certo silêncio da crítica (principalmente dos estudos acadêmicos). Sua ficção se desenvolve acima de convencionalismos de qualquer ordem, evidenciando temática própria, juntamente com linguagem fora dos padrões convencionais, em seu tempo. Em seus contos, percebe-se certa velocidade na/da escrita, associada tanto à construção de imagens rápidas, instantâneas, substantivadas, quanto à forma com que estas imagens interagem, se complementam ou se chocam. Há quem diga que sua narrativa é cinematográfica. Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 33


Há que destacar a preferência do autor por certos tipos humanos, inseridos no rol dos socialmente excluídos: prostitutas, travestis, michês, entre outros. O autor procura integrá-los à “realidade”, através de sua ficção. “Sargento Garcia” foi escrito e dedicado à memória de Luiza Felpuda, travesti conhecido em Porto Alegre que, no período militar, era responsável por um bordel que soldados frequentavam para se prostituírem. O autor insere, em sua narrativa, a personagem de Isadora Duncan, outro travesti. A criação dela é uma homenagem à Luiza Felpuda. Embora Isadora seja um travesti, em nenhum momento da narrativa de Caio percebemos a intenção de ridicularizar a imagem do homossexual; não o reduz à caricatura, mas o integra à narrativa, sem intenção de ridicularizá-la. O narrador, um dos protagonistas, tenta organizar seus pensamentos e sua memória, em busca de sua própria compreensão, da compreensão do outro a quem se dirige e com quem se identifica, refletindo esse processo no leitor. As assimetrias são muitas, como delineado ao longo deste artigo. O poder, como elemento de articulação das relações estabelecidas segue esse mesmo direcionamento. O fluxo de consciência é outro instrumento discursivo que faz dinamizar a ficcionalidade dos argumentos do narrador em sua “epopeia”: expressão direta dos estados mentais de Hermes, desarticulada, em que é perdida a sequência “lógica” e em que aparece a manifestação direta do inconsciente. Sua dinâmica dá ao conto aparência de fragmentação: característica comum à contística brasileira que se desenvolve a partir dos anos 70, do século XX. O conto alegoriza a caça, nesse garoto, que Garcia observa como um predador: acompanha os passos de sua presa. Hermes tem plena consciência de seu papel de caça. A utilização do pronome possessivo meu indicando o grau de autoridade/obediência imposta pelo sargento ao garoto é um dêitico incontestável da assimetria que caracteriza as relações de poder, implícitas no texto. Ao repetir diversas vezes o pronome, Hermes sugere sua submissão voluntária, em relação ao sargento. Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 34


É impossível para o leitor não se solidarizar com a ansiedade das sensações de Hermes. A “dor” da descoberta da sexualidade na adolescência, seguida da solidão imposta pelo segredo: eis o limite vencido pelo rapaz e seu algoz, seu sedutor, o sargento. A questão tratada neste conto constitui tema recorrente na literatura gay que, por sua vez, retrata o sofrimento pelo qual os adolescentes têm de passar, por imposição dos papeis cobrados pela sociedade. O reconhecimento do próprio nome, no final do conto, é exatamente o que subverte o universo de personagens anônimos de Caio Fernando Abreu, uma espécie de paideia erótica. Os mecanismos de ativação da memória e resgate do passado, que lançam Hermes aos seus limites, acabam se tornando, também, um sentido para a própria existência. Tendo sido superada a crise de identidade, Hermes resolve começar uma nova etapa em sua vida, ciente de sua sexualidade. O artigo pressupôs a análise de um texto, sob a perspectiva do olhar homoerótico. Em termos de linguagem, o homoerotismo manifesta uma poética do olhar, na insinuação de formas, na dança dos gestos e na possibilidade do encontro. A tradução desses dêiticos para a ficção é o passo a mais dado por Caio Fernando Abreu: expressão do desejo por meio de palavras. Referências ABREU, Caio Fernando. Sargento Garcia. In: Morangos Mofados. 8 ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. ALENCAR, José de. O demônio familiar. Rio de Janeiro: Aguilar, 1960. ALMEIDA, Horácio de. Dicionário de termos eróticos e afins. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. ANDRADE, Mário de. Contos Novos. 17 ed. Belo Horizonte: Rio de Janeiro: Itatiaia, 1999. ASSIS, José Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. BALDERSTON, Daniel. El deseo enorme cicatriz luminosa: ensayos sobre homosexualidades latinomaericanas. Rosario: Beatriz Viterbo, 2004. BARBOSA, João Alexandre. A leitura do intervalo: ensaios de crítica. SãoPaulo: Iluminuras: SEC-SP, 1990.

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O trabalho de citação no conto de Caio Fernando Abreu Luana Teixeira Porto9

Resumo: Neste artigo, propomos uma análise de narrativas curtas de Caio Fernando Abreu publicadas no livro O ovo apunhalado à luz da concepção de intertextualidade materializada no trabalho de citação, tal como teoriza Compagnon, com o objetivo de compreender uma das facetas do processo criativo do contista, a absorção de textos para a construção narrativa, e de investigar o significado das apropriações textuais na composição narrativa do autor. Palavras-chave: intertextualidade, citação, conto, Caio Fernando Abreu.

Abstract: In this paper, we propose an analysis of short stories by Caio Fernando Abreu published in O ovo apunhalado in the light of intertextuality design materialized work of citation as theorizes Compagnon, in order to understand one of the facets of the creative storyteller process, the absorption of texts for the narrative construction, and to investigate the meaning of textual appropriation in the narrative composition of the author. Keywords: intertextuality, citation, short story, Caio Fernando Abreu.

9Doutora

em Letras e professora do curso de graduação em Letras e do Mestrado em Letras da URI, campus Frederico Westphalen, Rio Grande do Sul, Brasil.

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Considerações iniciais Nos estudos literários, a intertextualidade10 é um conceito teórico frequentemente explorado para tratar das relações entre textos e processos de re-escritura textual com o objetivo de alcançar o significado de uma obra e do processo de escrita através da observação a citações e tomadas de empréstimo de ideias e estruturas poéticas ou prosaicas de textos que são, de alguma forma, incorporados a uma escritura nova. Diante das diversas atribuições de sentido, o termo “intertextualidade”, que foi criado em 1960, tornou-se “uma noção ambígua do discurso literário” (SAMOYAULT, 2008, p. 9) e diferentes expressões (algumas menos técnicas e mais metafóricas) foram usadas para referir-se à relação entre textos, dentre as quais “tessitura, biblioteca, entrelaçamento, incorporação ou simplesmente diálogo” (2008, p. 9). Alia-se a isso o fato de que, no discurso sobre a intertextualidade, de acordo com Samoyault (2008), há uma “imprecisão teórica” que dá origem a uma bipartição critica: uma voltada para a compreensão da intertextualidade como um “instrumento estilístico” procura rastrear os sentidos e os discursos anteriores, e outra focaliza a “noção poética” na tentativa de identificar a retomada de enunciados literários através do reconhecimento de citações, alusões, desvios, entre outros processos. O termo “intertextualidade” surgiu quando havia, por parte de teóricos e críticos, uma preocupação em identificar “instrumentos destinados a fundamentar o discurso literário numa linguagem própria e específica” (SAMOYAULT, 2008, p. 14). Essa tendência foi exteriorizada pelos estudos de base estruturalista e das teorias do texto, para os quais o texto devia ser considerado fora de seu contexto, de modo imanente, sem o estabelecimento de relações de conteúdo textual com dados externos à obra. A partir desse período, o enfoque teórico sobre a intertextualidade e sua operacionalização, independentemente da visão teórica adotada, se linguística ou literária, trabalha com a relação entre textos. 10

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Essa segunda perspectiva da intertextualidade como um processo de criação poética é particularmente interessante para a proposta de investigação sobre o conto de Caio Fernando Abreu apresentada neste artigo. Reconhecemos a multiplicidade de concepções teórico-críticas sobre intertextualidade, dentre as quais se inserem conceitos de Julia Kristeva, Laurent Jenny, Gerard Genette e Antoine Compagnon, e entendemos que a posição deste último estudioso é oportuna para analisar a inserção de um “discurso alheio” no conto do escritor gaúcho, acostumado a explorar o texto de outros para compor os seus, criando sentidos diferentes e histórias que se entrecruzam com os textos originais, mas que não ficam presas à escritura primeira. Dessa forma, propomos uma análise de narrativas curtas de Caio Fernando Abreu à luz da concepção de intertextualidade materializada no trabalho de citação, tal como teoriza Compagnon, com o objetivo de compreender uma das facetas do processo criativo do contista, a absorção de textos para a construção narrativa, e de investigar o significado das apropriações textuais na composição narrativa do autor.

Intertextualidade e trabalho de citação A concepção teórica de intertextualidade proposta por Julia Kristeva remete a estudos de Bakhtin (1999), para quem o discurso literário (e linguístico de um modo geral) é uma construção dialógica. Nesse dialogismo, o discurso citado pode ser introduzido “no discurso e na sua construção sintática, por assim dizer, ‘em pessoa’, como uma unidade integral da construção” (BAKHTIN, 1999, p. 144). O discurso alheio que se insere no discurso conserva, pelo menos de “forma rudimentar”, a autonomia primitiva, e a enunciação de outrem num segundo discurso é apreendida por um ser preparado e dotado de bagagem de leitura ou, nas palavras de Bakhtin, a essência da apreensão do discurso citado é captada por um ser “cheio de palavras” (1999, p. 147). A preparação do leitor, dessa forma, é sinalizada pelo teórico Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 40


como condição necessária para a compreensão do que atualmente se define como intertextualidade. Essa reação ativa diante do discurso de outrem no discurso também se justifica por haver no interior do texto associações de sentido não simples de compreensão, pois “O discurso citado e o contexto narrativo unem-se por relações dinâmicas, complexas e tensas” (BAKHTIN, 1999, p. 148). Deixando claro, então, que todo discurso é passível de uma interlocução com outro discurso, o discurso de outrem, Bakhtin (1999) enfatiza a existência de diálogo entre textos. No entanto, é preciso destacar que a proposição de Bakhtin (1999) acerca do dialogismo deriva dos anos 20 do século XX e o autor, em nenhum momento, usou o termo “intertextualidade” apesar de ter destacado a integração dos gêneros literários (e com base nisso a noção de hibridismo) e multiplicidade de discursos construída através das palavras. O teórico russo identifica o romance como o gênero literário em que predomina a introdução do discurso citado no discurso literário. A inserção da palavra de outrem no texto pode acontecer através do discurso direto ou indireto e aparece de “forma dissimulada”, pois “é um enunciado de outrem numa linguagem estranha ao autor” (BAKHTIN, 1988, p. 109). O discurso alheio ainda pode ser introduzido no discurso do narrador ou da personagem, e, nessa perspectiva, consolida-se um entrecruzamento de linguagens e de vozes que acarretam o hibridismo e que deixam transparecer duas visões de mundo e duas linguagens. Essa perspectiva segundo a qual há um cruzamento de vozes na construção discursiva literária que sinaliza um diálogo entre a obra, a sociedade e a história interessa para efeitos da análise literária dos contos de Caio Fernando Abreu, na medida em que textos do escritor pautam-se com frequência na sobreposição de discursos, alguns com indicativo direto da alternância da voz, outros com pistas sutis da mobilidade narrativa, mas com o acento de que essa fusão de enunciados Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 41


relaciona-se a um conteúdo não restrito à imanência do texto, e sim ao contrário, pois é indicativo do diálogo do texto do escritor com um tempo histórico-cultural. Numa linha de análise linguística, Roland Barthes (1992) também se refere à relação entre o texto e outro texto, a qual, segundo o autor, cria a ilusão referencial no romance realista e assegura as relações entre literatura e realidade ou, na expressão do próprio autor, o “efeito de real”. E os códigos devem ser compartilhados por autor e leitor, entendendo código como uma “perspectiva de citações” em que o realismo, então, é construído pela intertextualidade. Essa visão sobre a intertextualidade na teoria de Barthes é apontada por Compagnon (1999) como uma “maneira de abrir o texto, se não ao mundo, pelo menos aos livros, à biblioteca” (p. 111), passando-se do texto fechado ao texto aberto, embora a preocupação maior seja a produção do texto e não a preocupação com o mundo que havia sido sinalizada na concepção de dialogismo de Bakhtin. De fato, Barthes propõe uma análise textual da intertextualidade e a relaciona ao tecido das citações apresentadas no texto de forma inconsciente ou automática e sem aspas, de modo que dessa relação não se evidenciam fontes nem influências e sim movimentos de produtividade do texto. O conceito de que todo texto é um segundo texto, no sentido de que se constrói através de citações, é explicitado por Compagnon, que, no final dos anos 197011, apresenta uma perspectiva crítica e não teórica sobre a prática intertextual dominante: a citação. O texto de Compagnon é aberto com fragmentos literários – epígrafes da obra crítica – que aludem diretamente ao trabalho de inserção de um texto em outro, de um “redizer”, de uma cópia, expressões extraídas de excertos de romances de Maurice Blanchot e Gustave Flaubert. Assumindo uma postura de construção crítica permeada por analogias sutis e conceitos O tratado de Compagnon sobre as citações foi publicado em 1979 na obra La Seconde Main ou Le Travail de la Citation, dividida em 39 tópicos. O texto do autor citado neste trabalho é uma tradição publicada no Brasil em 1996. 11

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elaborados com base em associações entre o trabalho do escritor e do leitor, Compagnon (1996) aproxima a prática de escritura do texto através da citação com o jogo lúdico-infantil do “recortarcolar” do qual pode ser apreendida uma semelhança: da mesma forma que a criança usa tesoura e cola para montar um mundo em papel, o escritor serve-se de citações para (re)compor um texto. De acordo com o crítico, quando elabora um texto, o escritor recorre a leituras anteriores, recupera fragmentos literais de uma obra e transforma-os em outro texto, e as partes do texto primitivo ganham vida própria num outro contexto. Nesse processo de leitura, o sujeito leitor vivencia o que Compagnon (1996) chama de “acomodação”, pois o texto possibilita que o leitor identifique “lugares conhecidos e reconhecidos” e ainda desconhecidos, as leituras prévias, as frases destacadas no processo de recepção do livro, para os quais será preciso usar alguma habilidade de leitura e assim compreender a obra. Nesse âmbito, o crítico aponta a citação como “um lugar de acomodação previamente situada no texto” (1996, p. 19), já que a citação integra o texto lido a um conjunto ou rede de textos, mesmo que no ato primeiro de leitura a citação possa ser reconhecida, mas não compreendida. O processo de citação, nessa linha de raciocínio, é, ao mesmo tempo, leitura e escritura, desagregação e junção, montagem e contextualização, recorte e cola, “mutilação e enxerto”: Quando cito, extraio, mutilo, desenraizo. Há um objeto primeiro, colocado diante de mim, um texto que li, que leio; e o curso de minha leitura se interrompe numa frase. Volto atrás: re-leio. A frase relida torna-se fórmula autônoma dentro do texto. A releitura desliga do que lhe é anterior e do que lhe é posterior. O fragmento escolhido converte-se ele mesmo em texto, não mais fragmento de texto, membro de frase ou de discurso, mas trecho escolhido, membro amputado; ainda não o enxerto, mas

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órgão recortado e posto em reserva. (COMPAGNON, 1996, p. 13) Compagnon (1996) ainda destaca que a identificação das citações em um texto assume um papel fático de acordo com a teoria de comunicação de Roman Jakobson no sentido de que a citação “marca um encontro, convida para a leitura, solicita, provoca como uma piscadela: é sempre a perspectiva do olho que se acomoda, do olho que se supõe na linha de fuga da perspectiva” (1996, p. 19-20). E, como uma etapa anterior à criação textual, a leitura “prepara para a lembrança e para a imitação, ou seja, para a citação” (p. 14), entendida como um quase sinônimo de metáfora, pois as citações são imagens captadas de uma leitura que torna mais viva a representação do texto novo. As citações, na proposta de Compagnon (1996), podem ser configuradas por epígrafe, considerada pelo crítico como “a citação por excelência” (1996, p. 79) – porque sinaliza a relação lógica do texto com um outro texto, doador, dando início à enunciação e sendo uma condensação do prefácio – e são a base do trabalho de escrita, entendendo-se que toda escrita é uma reescrita que “converte” elementos fragmentados e descontínuos em um todo dotado de coerência e continuidade. Para Compagnon, “toda escrita é colagem e glosa, citação e comentário” (1996, p. 29) e, mas importante do que apontar uma definição precisa de citação, é discutir o que ele chama de “trabalho da citação”. O texto é o trabalho da citação, e, na perspectiva do autor, este trabalho opera de forma dupla: é matéria e sujeito; em outras palavras, a atividade de citação na produção textual motiva a escritura do texto e obriga o autor a “trabalhar” no texto de modo que cada fragmento extraído de uma obra possa fazer sentido ao texto novo. Exige, enfim, um “trabalho” que parece oculto quando o leitor se depara com a obra pronta, e, isolada, a citação “não tem sentido em si, porque ela só se realiza em um trabalho, que a desloca e a faz agir” (COMPAGNON, 1996, p. 35).

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Essa ideia de que a citação é um deslocamento e também uma manipulação da dinâmica de sentido do texto faz com que Compagnon aponte ser a citação um “operador trivial da intertextualidade” (1996, p. 41), cujo entendimento depende da competência do leitor, e de uma “ativação do sentido”, estabelecendo um jogo de manobra da linguagem e postura ativa do leitor. A este cabe o papel de apreender o movimento do texto, o poder de mobilização que a citação imprime ao texto. O que Compagnon (1996) chama atenção, no processo de decodificação da intertextualidade, quando sublinha a necessidade de uma intervenção do receptor na apreensão do significado da obra, ligase a uma discussão importante no campo dos estudos literários comparados voltados para o exame teórico-crítico da intertextualidade e para a formulação de uma “teoria da leitura”. Ao postular que a citação é um exercício de intertextualidade na produção textual, Compagnon (1996), segundo Samoyault (2008), aborda a intertextualidade mais como um processo de transferência de um texto a outro do que um processo de transformação de um texto na escritura de outro, o que distancia a perspectiva de que a intertextualidade seja uma absorção e transformação de outro texto, uma recriação. Essa perspectiva teórica em relação ao trabalho de citação exercitado no processo de criação literária põe em destaque o papel do leitor, cuja postura e bagagem cultural possibilitam não só a identificação das retomadas, transformações ou citações, mas também oportunizam uma reflexão maior sobre a criação literária e o efeito de sentido da apropriação de um texto em outro texto. Existe, com base nessa perspectiva, um trabalho de “solidariedade” entre leitor e autor e também entre autor e leitor, uma vez que as “pistas” textuais podem tornar-se chaves de uma leitura proposta pelo autor ou de uma leitura construída pelo leitor de acordo com o contexto de produção e de recepção. E, servindo-se das contribuições teóricas e críticas acerca do trabalho de citação, busca-se desvendar mais um traço formal do conto de Caio Fernando Abreu através da construção de uma Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 45


leitura textual que considera os “encaixes” de outros textos na escritura do contista como forma para o processamento do sentido das narrativas.

O trabalho de citação no conto de Caio Fernando Abreu O olhar crítico sobre contos do escritor busca mostrar como seus contos apresentam processos de absorção e integração de elementos alheios, através de citações diretas ou indiretas (no caso as letras de canções e outros textos), epígrafes ou alusões de outros textos na sua construção e qual o sentido desses diálogos na tessitura narrativa. Nesse sentido, como são inúmeros os contos de Caio Fernando Abreu que sinalizam diálogos intertextuais, optamos por analisar duas de suas narrativas: os contos “Noções de Irene” e “O ovo apunhalado”, de O ovo apunhalado, livro publicado em 1970 pelo escritor. “Noções de Irene” é uma narrativa onisciente em terceira pessoa e tem como personagem central um homem maduro, que casou com Irene e aparece sem nome na história. Ele estabelece um diálogo com um homem mais jovem, pintor e também sem identidade explicitada na narrativa. O tema da conversa dos dois é Irene e sua opção de abandonar o homem mais velho (anfitrião) para ficar com o mais novo (visitante), situação que cria uma repulsa do protagonista, que é o homem experiente, por ser trocado por um outro“Tão jovem”. Logo depois do primeiro diálogo entre o homem trocado e o escolhido por Irene, o narrador expõe o cuidado do protagonista em não parecer um “idiota” ao se pronunciar diante do outro (o escolhido). Os diálogos entre os dois são curtos, mas não tão vazios. A conversa parece querer tematizar o fim de um romance e o início de outro, numa busca de um “acerto de contas” entre o abandonado e o escolhido. Mas o desenrolar do encontro desvia esse foco, e o contexto narrativo direciona-se para um desabafo do

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protagonista em relação ao sentimento de rejeição por Irene ter deixado de ficar com ele para relacionar-se com outro homem. A partir desse momento, o conto, cujo título induz o leitor a conhecer de forma mais detalhada história de Irene (já que sugere mostrar as muitas facetas ou “noções” da mulher), foca na perspectiva do homem abandonado que sofre por amor. Esse sofrimento torna-se mais intenso por ele se considerar um homem seguro economicamente e bem estabelecido socialmente, sinal de altivez numa sociedade em que a escala econômica intervém nas questões de ordem social e onde a valorização da posição social acarreta um valor especial àqueles que desfrutam de uma boa condição financeira. O protagonista demonstra claramente não aceitar ser trocado por um homem tão mais jovem,“sou só um pouco mais velho que vocês, uns dez anos” (ABREU, 1975, p. 131), e por quem não tem condições de garantir o sustento de uma mulher, “Não entendo, por exemplo, como é que ela pode trocar a segurança de ficar comigo pela insegurança de ficar com você” (ABREU, 1975, p. 135). Este fragmento explicita que o protagonista compartilha o discurso patriarcal normativo que atribui ao homem o papel de prover a casa e a família. Irene, apontada como uma mulher segura de suas decisões e ciente de seus desejos, não tem sua voz introduzida na narrativa. Sabe-se de sua forma de viver e de sua personalidade pela descrição que as outras personagens fazem dela. Do contexto narrativo, fica claro que Irene concretiza seus projetos, independentemente das circunstâncias que possam impedi-la ou das consequências negativas que suas decisões podem acarretar, e não se arrepende de ter abandonado o marido para ficar com outro. Para o marido, Irene talvez tenha se cansado da vida monótona que ele lhe proporcionava e do fato de alguém não querer mais do que tem em termos de projetos de vida. Irene queria viver a vida, aproveitando tudo o que ela poderia lhe proporcionar, das aventuras e perigos aos vícios e, nesse sentido, as músicas que canta são bem sintomáticas de seu perfil. Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 47


Demonstra não estar presa a normas reguladoras da vida de homem e mulher propagados pelo discurso da família patriarcal que ainda vigora no século XX na sociedade brasileira. A personagem não é uma mulher totalmente fria, também se comova embora se esforce por dominar racionalmente suas emoções, as quais são tornadas públicas quando a letra de canções ganha voz em sua própria boca. Irene afirmava que “morreria qualquer dia, de susto, de bala ou vício” (ABREU, 1975, p. 136), numa referência ao desprendimento em relação à vida e à certeza da finitude do ser humano com a chegada da morte. Para sinalizar essa consciência sobre a instabilidade e fugacidade da vida, Irene recorre a um fragmento de uma canção cuja autoria não é totalmente reconhecida pelo então marido, o que denota uma dissonância entre a experiência cultural dos dois, pois ele declarou que o excerto da música era “algum verso de algum desses cantores que vocês tanto gostam, desses que morrem por excesso de drogas” (ABREU, 1975, p. 136). Ficam claras as preferências musicais do protagonista em oposição ou distanciamento das da mulher e de seu novo amor, mais uma vez inserido num grande grupo que opõe o protagonista aos “outros”, a quem o ex-marido de Irene parece ter repulsa ao associá-los ao universo das drogas. Apesar de o protagonista não indicar a autoria dos versos que Irene repete, indica uma pista que pode parecer falsa numa primeira leitura, mas que não o é. De fato, Irene citava versos de uma canção bastante conhecida no universo da música popular brasileira, fazendo com que a citação seja neste conto um exemplo de um dos recursos adotados no contexto narrativo que ajuda a identificar as características do conto de Caio Fernando Abreu e a construir o sentido de seus textos. Esse processo de citacionismo, neste conto, não pode ser desvinculado da caracterização das personagens, pois, sinalizada pelo próprio protagonista, a introdução dos versos “de susto, de bala ou vício” é uma remissão textual que permite compreender um pouco mais sobre o universo de Irene. Os versos citados fazem parte da canção “Soy

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louco por ti América”, interpretada por Caetano Veloso e composta por Gilberto Gil e Capinam. Essa canção faz parte das produções culturais pertencentes ao movimento artístico da Tropicália, surgido no Brasil no final dos anos 1960, o qual envolvia artes plásticas, cinema, teatro e música. Nesse campo, Gilberto Gil e Caetano Veloso eram considerados os maiores expoentes do Movimento Tropicalista, influenciado pelo pensamento de esquerda da época e, conforme destaca Albin (2003), movido por um interesse em promover uma “intervenção crítico-musical na cultura brasileira” (ALBIN, 2003, p. 290). O autor ainda reitera que o Tropicalismo “ressaltava os contrastes da cultura brasileira, como o arcaico convivendo com o moderno, o nacional com o estrangeiro, a cultura de elite com a cultura de massa” (ALBIN, 2003, p.290), mas, mesmo com a inovação que trouxe à música brasileira, não conseguiu se disseminar junto ao público, que na época atraído pela chamada “esquerda universitária da MPB” (ALBIN, 2003). A canção “Soy louco por ti América” é apontada por Albin (2003) como uma das “pepitas de ouro” do Tropicalismo, e, tocada ao som da guitarra, instrumento até então pouco usado na música popular brasileira, serve-se das duas línguas mais faladas na América Latina: a língua portuguesa e a espanhola são alternadas nas estrofes. A letra faz alusão ao líder Ernesto Che Guevara e suas lutas por revolução política em países da América Latina e tem como tema a adoração pela América, metaforizada na figura da “mujer playera”, também chamada de “Marti”, inspiradora para a vinda de amores, cores e espumas brancas como sinal indicativo de que a liberdade é possível em meio à guerra. Segundo Esteves (2008), que estuda a influência caribenha na música brasileira, em “Soy louco por ti América”, essa “mujer playera”, numa leitura alegórica, “é a liberdade, liberdade que pode vir através da luta, da guerra, da evolução, enfim” (2008, p. 201). A perspectiva otimista num contexto de adversidade é reforçada, na letra, pela imagem da poesia como força capaz de trazer esperança, pois ainda há tempo para paz em meio às lutas Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 49


e “Um poema ainda existe” mesmo quando o sujeito-lírico afirma estar “aqui de passagem” e tem consciência de que um dia vai se despedir da vida: Sei que adiante Um dia vou morrer De susto, de bala ou vício De susto, de bala ou vício... Estes últimos versos da canção repetidos por Irene em conversa com o então marido, associados à imagem da mulher como elemento instaurador da liberdade, permitem identificar na personagem uma postura marcada pela busca de uma autonomia pessoal, em que ser livre é condição básica para a vida em sociedade. Irene, ao repetir os versos da canção de Gilberto Gil e Capinam, ainda instaura um modelo de convivência a dois que destoa das premissas do discurso normativo patriarcal, uma vez que não permite que o marido faça as escolhas por ela, assume-se como um sujeito emancipado e inspira-se no universo cultural em que “palavras tristes” e “canções de guerra” podem se opor a “canções do mar” e de amor. Dessa forma, a imagem da mulher livre que inspira amor pode ser associada à ideia de que o nome Irene, de origem grega, quer dizer “Mensageira da Paz”, denominação anunciada pelo próprio protagonista na conversa com o rapaz. Liberdade, amor e paz, que contrariam a noção de guerra e consequentemente de tragédia (tema não bem quisto por Irene), são, nesse sentido, princípios ligados à maneira de ser de Irene, e os versos da canção contribuem para que essa relação intertextual reforce a personalidade de Irene, embora seja oportuno destacar que, enquanto a letra da canção expõe um sujeito-lírico fazendo uma declaração de amor à América, Irene perpetua o livre arbítrio e uma vida em que o regramento não se constitui norma e o vício não se manifesta como um erro. O culto à liberdade, nessa linha de raciocínio, configura-se como polo oposto em relação ao marido. Este é apegado a valores que legitimam a submissão da mulher em relação ao homem e ela, ao contrário, exemplifica a liberdade e a emancipação feminina, Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 50


assumindo junto a isso um traço tradicionalmente atribuído ao sujeito masculino: a racionalidade e a frieza na análise das situações e um distanciamento em relação às emoções. Um dado que corrobora essa afirmação é o fato de que o protagonista lamenta a perda da mulher amada, mostrando fragilidade diante da experiência de abandono. E a citação apresentada neste conto com o uso do itálico que a põe em destaque no texto e que sinaliza a presença direta do discurso alheio ao discurso do narrador, o “agente inferencial” como propõe Kristeva (1978), faz com que a narrativa de Caio Fernando Abreu configure-se como um texto aberto na visão de Barthes (1992), mobilizando o leitor a construir a significação do texto que não seria a mesma sem a introdução do fragmento textual da canção. Em “Noções de Irene”, a alusão a outro texto é também um recurso intertextual que contribui para o sentido da narrativa. A alusão é um elemento que indica a emotividade intensa e a subjetividade em crise do protagonista abandonado pela esposa. Em meio à conversa com o rapaz, o protagonista lembra de um filme a que assistiu com Irene e, em uma das cenas, uma personagem ficava deitada e passava alguém cantando “Io Che non vivo...”, fragmento de uma música, cuja continuidade dos versos o protagonista não lembra mais. Trata-se da canção italiana “Io che non vivo senza te”, de Vito Pallavicini e Pino Donaggio, composta em 1965 e que alcançou o primeiro lugar por duas semanas em audiências de rádio no início de 1966 no Brasil, quando Roberto Carlos, no auge da Jovem Guarda, disputava fortemente a preferência musical e chegava ao topo nas rádios (FRÕES, 2000, p. 83). O sujeito-lírico da canção italiana declara um intenso amor por uma mulher, de quem não quer se separar por não acreditar poder ser feliz sem ela. Assim, ao recorrer aos versos da canção, o protagonista sinaliza compartilhar o sentimento de não querer ficar sozinho, de não estar preparado para viver sem Irene, simbolizada na mulher a quem se dirige o sujeito-lírico na letra da música. Chama atenção nesta letra a ideia de propriedade do Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 51


sujeito em relação à amada, o que acentua, na leitura proposta sobre a posição do protagonista do conto de Caio Fernando Abreu, uma visão da mulher como objeto de desejo, amor e posse. Na letra, entendendo ser a mulher sua, numa noção de posse sobre o outro, o sujeito-lírico da letra da canção implora que ela fique com ele, dizendo: Io che non vivo Piú de um’ora senza te Come posso stare uma vita senza te? Ei mia, sei mia, mai niente lo sai Separarci um giorno potrá12 No conto, Irene, segundo o que pensa o protagonista, não deveria abandoná-lo por ele exercer sobre ela uma relação de poder e controle materializada na dependência financeira que ela teria em relação a ele. A alusão à canção italiana funciona, neste caso, como transferência de um texto a outro e não como transformação de sentido, conforme aponta Compagnon (1996) ao abordar o trabalho de citação do escritor ao produzir o texto. A visão de poder do protagonista sobre sua amada Irene é a que prevê a divisão de papéis do homem e da mulher segundo uma vivência de grupo social do patriarcado, sendo Irene um exemplo da condição da mulher cuja função se aproxima da condição da mulher naquele contexto em que ela fica “relegada ao espaço privado, passando a ser incluída subjetivamente como propriedade do homem” (IOP, 2009, p. 233). Irene torna-se, dessa forma, para o protagonista do conto, propriedade e objeto de amor idealizado e não mais alcançado, o que o faz lembrar outra produção cultural, o livro Cleo e Daniel. Escrito por Roberto Freire e lançado em 1966, a obra tematiza o amor à moda de Romeu e Julieta de Cleo e Daniel, dois jovens que “Eu que não vivo/mais de uma hora sem você/como posso estar uma vida sem você/Você é minha, é minha/nunca algo, o sabe/nos separar um dia poderá.” Tradução da música “Io che non vivo senza te”, apresentada no meio eletrônico. IO CHE non vivo senza te. Disponível em: <http://italiasempre.com/verpor/iochenonvivo2.htm>. Acesso em: 18 mar. 2016. 12

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vivem em um país sob a ditadura. Assim como o protagonista e Irene não ficam juntos ao final da história, Cleo e Daniel não têm um final feliz, pois morrem. Ao fazer referência, através da citação e da alusão à letra de duas canções, e ainda fazer referência ao romance de Roberto Freire, o conto de Caio Fernando Abreu introduz um discurso alheio para construir um contexto narrativo em que o sentido forma-se numa associação entre palavra materializada no texto e palavra citada. A caracterização da personagem e o contorno que recebe a história de cada conto não se alcançam sem uma retomada dos fragmentos textuais citados. A citação, na perspectiva teórico-crítica apontada por Compagnon (1996), configura-se como uma estratégia intertextual de que se vale o escritor gaúcho para impor ao seu texto uma densidade narrativa que uma leitura indiferente às citações ignoraria. A busca pela temática das obras citadas, nessa linha de raciocínio, fortalece a leitura do conto à medida que este recebe indicadores que ajudam a compreender o universo ficcional do escritor, a caracterização de suas personagens e a linha interpretativa que pode ser seguida no processo de atribuição de sentido aos seus textos. A menção à obra Cleo e Daniel e a alusão da canção italiana acentuam a perspectiva sombria do protagonista do conto para quem a desilusão amorosa decorrente do abandono de Irene acarreta uma crise na subjetividade, já que, ao mesmo tempo em que desqualifica o rival pela instabilidade econômica, desqualifica a si mesmo por ser trocado por um homem “Tão jovem”. Essa noção de desconsolo do protagonista ganha maior efervescência à medida que o autor traz para a narrativa o fragmento de “Io Che non vivo senza te” e o leitor toma conhecimento do teor melancólico do sujeito lírico que julga não poder viver sem sua amada, o que intensifica o sofrimento da personagem de Caio Fernando Abreu, e aproxima o protagonista de uma criação que poderia fazer parte de uma literatura romântica. A imagem do protagonista bêbado ao final do conto e lembrando de Irene como uma mulher de altos e baixos, assim como a alternância de notas Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 53


da música que ouvia enquanto bebia é mais um indício do sentimento de perda do protagonista, sentimento que se torna mais nítido quando se associa à perspectiva da personagem com a temática da canção, a qual mantém uma relação de identificação com a situação vivida pelo protagonista do conto. A apropriação de versos de “Soy loco por ti America” é crucial para a caracterização de Irene e para identificação dela com um contexto histórico de revolução. A música homenageia um revolucionário e inspira a busca da liberdade, em processo análogo, Irene também propõe uma “revolução” não só na vida do protagonista, mas também na forma como toma suas decisões e escolhe seus parceiros, ignorando um discurso de ordem normativa sobre a relação entre homem e mulher o qual seu exmarido compartilha. Irene, ao manifestar repulsa ao pensamento vigente numa sociedade de base patriarcal, instaura a liberdade de atitude como regra em detrimento da obediência à norma e, assim, mostra-se emancipada. Está é uma das noções de Irene que podem ser captadas na leitura do conto, pois as outras podem se referir às suas preferências musicais e cinematográficas ou às suas avaliações sobre o parceiro, às vezes visto por ela como um sujeito “cafona”. O recurso da intertextualidade no conto “Noções de Irene” ainda é indício de uma busca de maior interação entre texto e leitor, na qual o primeiro faz o convite à história narrativa e o segundo assume a tarefa de selecionar fragmentos e pistas textuais capazes de incitarem um sentido lógico à história que apresenta. Nessa perspectiva, a citação como elemento caracterizador da intertextualidade no conto propõe um desafio à competência de leitura, mobilizando a bagagem cultural e incitando a proposição de sentido para um texto aberto, pois nem sempre as relações textuais estabelecidas parecem óbvias. A citação é, no conto analisado, um operador de sentido que potencializa a intertextualidade através da montagem, no contexto narrativo, de cenas e figuras através de passagens de outros textos, o que também imprime uma fragmentação da Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 54


narrativa, obrigando a se constituir um tecido de significações graças a uma relação de solidariedade ou de trocas entre autor e leitor. Como em “Noções de Irene”, em “O ovo apunhalado”, a citação é a principal estratégia de forma literária que caracteriza a absorção do texto de outro à escritura narrativa de Caio Fernando Abreu. A história de “O ovo apunhalado” aproxima-se do realismo mágico (ou estética do absurdo) característico da literatura de Julio Cortazar. A personagem principal, que é também o narrador do conto, registra uma história que mistura realidade e fantasia: inserido em um ambiente marcado pela solidão, o narrador-personagem, ao visitar uma galeria de arte, aterroriza-se com uma obra materializada num ovo apunhalado e, a partir disso, passa a ver a presença do ovo em diferentes situações da sua vida até que o ovo o consome e o protagonista tenta se matar, usando o punhal que estava cravado no próprio ovo e assim tanto ovo quanto o homem ficam, ao final, apunhalados. Elaborar uma narrativa que trata com naturalidade aquilo que é insólito e sobrenatural é um traço do texto realista mágico produzido nos anos 1970 na literatura hispano-americana, e Caio Fernando Abreu já sinaliza um diálogo com essa tendência na abertura da seção na qual se insere “O ovo apunhalado”. A terceira parte do livro, Gama, tem como epígrafe um fragmento do escritor argentino Julio Cortazar, considerado um dos expoentes dessa literatura, e a epígrafe é descrita por Compagnon (1996) como uma forma de citação que gera relações intertextuais. Do livro de contos “As armas secretas”, do escritor Cortazar, Caio Fernando Abreu extrai o fragmento que inicia o conto de título homônimo em que Cortazar propõe enfrentar a realidade para descobrir o que há de misterioso nela e para desvendar o que está oculto numa primeira percepção, numa alusão à ideia de que há significados e leituras ocultas perante uma cena ou gesto aparentemente banal: “Curioso es que la gente crea que tender uma cama es exactamente lo mismo que tender Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 55


uma cama, que dar la mano es siempre lo mismo que dar la mano, que abrir uma lata de sardinas es abrir ao infinito la misma lata de sardinas” (ABREU, 1975, p. 109). A epígrafe, neste conto, é uma referência cultural importante para compreender o processo de composição do conto “O ovo apunhalado”. Como já sinalizado pelo autor no início da terceira parte da coletânea de 1975, com a citação de um fragmento do escritor argentino, este conto serve-se de uma forma artística fantástica. Assim, na narrativa em questão, o elemento do realismo fantástico introduz o estranhamento como forma de compreensão da realidade histórica, e essa associação é oportuna quando se considera o contexto em que o conto foi elaborado e as outras citações presentes neste texto. Uma citação do conto “O ovo e a galinha”, do livro Legião estrangeira, de Clarice Lispector, introduz a história dessa narrativa que é para ser lida “ao som de Lucy in the Sky with Diamonds – Lennon & MacCartney” (ABREU, 1975, p. 149), canção gravada pelos Beatles, anuncia o narrador logo após o título da história. São mais duas referências que colaboram para a compreensão da narrativa como uma metáfora ou alegoria de uma realidade que pode ser entendida como difícil. No conto clariceano, o ovo representa para a narradora-personagem uma busca do “eu” que se manifesta através do olhar critico que ela estabelece em relação ao ovo, analisando-o além da superfície e desejando a ele a nação chinesa, conhecida pela sua ampla população. Ao absorver a frase do texto de Clarice Lispector “Ao ovo dedico a nação chinesa”, o narrador de Caio Fernando Abreu, em “O ovo apunhalado”, imprime um tom de reflexão sobre sua trajetória através da imersão na leitura que ele e os outros fazem de uma obra de arte. O processo de absorção do texto alheio e sua integração no texto novo faz com que seja operacionalizada uma dupla ação: a leitura e a escrita que caracterizam o trabalho do escritor, na perspectiva de Compagnon (1996), quando ao autor serve-se de citação.

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Em uma visita a obras de arte em uma galeria, o narradorpersonagem, sujeito anônimo que relata sua vivência através de uma linguagem subjetiva e poética, depara-se com uma obra que, segundo ele, caminhou em sua direção, deixando-o apreensivo, sensação marcada pela mordida que dá em seu lábio inferior. Ao analisar atentamente a obra, percebe ser ela um ovo branco, com contornos bem definidos e movimentos suaves e um pouco cômicos, que o remeteram a uma antiga namorada. Observa mais um pouco o ovo e vê “um punhal cravado em seu dorso branco” (ABREU, 1975, p. 150). Essa imagem estranha choca o narradorpersonagem: “Não gritei, não um desses gritos de voz, mas alguma coisa dentro de mim estremeceu num terror e numa náusea tão violentos que a dona da galeria voltou-se de repente e me encarou com ar pálido” (ABREU, 1975, p. 150). Mas, para a surpresa do narrador-personagem, a dona da galeria não se mostra aterrorizada com a imagem violenta da obra de arte e expressa uma relação de afeto que deixa transparecer também uma visão sexual do objeto: Ela aproximou-se sorrindo, parou ao lado dele e estendeu um braço por cima de sua casa, tão desenvolta como se nunca em sua vida tivesse feito outra coisa senão apoiarse em ovos apunhalados. Não é mesmo? Disse. Tão liso, tão oval, veja como sua superfície é mansa, veja como minha mão desliza por ela, sinta como ele vibra quando eu o toco, agora veja como ele se incha todo e parece aumentar de tamanho, veja como meu corpo se encosta ao dele, veja como minha boca se abre e minha língua freme, ouça esse gemido saindo de minha garganta (ABREU, 1975, p. 150). Diante disso, aquilo que se mostra aterrorizante para o visitante da galeria parece normal para a dona do espaço. A violência impressa na obra não era motivo nem de preocupação ou espanto nem de reflexão para ela, mas o foi para o narradorpersonagem, que questiona a dona quando ela lhe faz a descrição da relação de proximidade que mantém com a obra: “Como se atreve, como se atreve? Eu gritei, eu gritei então um grito de voz, Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 57


de garganta, de víscera” (ABREU, 1975, p. 150). O estado de espanto do narrador-personagem não é compartilhado nem pelas outras pessoas que estão na galeria, estas se mostram indiferentes à estranheza da obra e também pouco interessadas em analisar as peças em exposição, pois, além de não prestarem atenção aos gritos do narrador-protagonista, “Rolavam pelo tapete verde sem se importarem com os encontrões que davam nas esculturas” (ABREU, 1975, p. 150). Atordoado com o que viu, o narrador-personagem consegue, com dificuldade devido ao aglomerado de gente, sair da galeria, anda pela rua e esbarra no cinema, onde lê cartazes e ouve música na casa ao lado sem atribuir sentido ao texto ou prestar atenção na canção. De repente, ao arrumar o cabelo, lembra de uma “estória” que só ele conhecia e na qual ao lado da casa dele moravam uns meninos bonitos que passavam sempre ouvindo uma música, cujos versos são citados e, assim como em “Noções de Irene”, sinalizados pela palavra inferencial do narrador através das letras grafadas em itálico: “A música é quase sempre esta: you may say I’m a dreamer but I’m not the only one imagine there’s no countries nothing to kill ou die for all the people living in peace” (ABREU, 1975, p. 151) O texto que o narrador reproduz são versos de “Imagine”, de John Lennon, canção associada ao desejo de paz para a humanidade e de união entre as pessoas num contexto mundial em que o exercício do poder estatal sobre a sociedade civil, em muitos países, ignorava os direitos dos civis, alimentando lutas de ordem social e política. A letra da canção ainda faz referência aos desejos dos jovens da época, anos 1970, de viver a vida com espontaneidade, lirismo e sonhos. No contexto da narrativa, o fragmento da letra da canção reforça a ideia de que o narradorprotagonista está sozinho, idealizando um espaço em que possa exercer sua liberdade e concretizar seus projetos pessoais numa relação de harmonia entre o “eu” e o “mundo”. Manifestado metaforicamente esse desejo, é sintomático que ele se torne difícil de ser alcançado porque os outros ignoram Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 58


o narrador-protagonista e seus anseios e a evidência disso é a indiferença com que o tratam e com o seu sentimento de repulsa e horror diante de uma obra aterrorizante. A violência simbólica do ovo é também a violência a que está submetido o narradorpersonagem, que mais tarde tomará ciência de que a sua vida também está apunhalada. A noção de violência cujo fim é desejado em oposição à paz é anunciada quando ele retoma a canção de John Lennon. É possível ainda inferir que a imagem do ovo, que é associada ao início da vida e, portanto, à reprodução dos seres, ao estar apunhalada, é indicativa de um desgaste ou o fim da luta e da vida. Num contexto social e histórico em que tanto no plano externo quanto no interno havia movimentos de revolução liderados por jovens que se opunham a autoritarismo e cerceamento da liberdade impostos por regimes ditatoriais, o ato de apunhalar ganha significado mais denso. Por isso, o ovo apunhalado é sinal da brutalidade e impossibilidade de realização de projetos de cunho pessoal e social. A descrença do narradorpersonagem, nesse sentido, passa a ser ampliada na medida em que ele, quando estava ouvindo a música de John Lennon assim como faziam os meninos vizinhos seus, com quem ele sinalizava identificar-se, tem uma visão de uma menina que aparece nos fundos da casa dos jovens: Quando o sol estava se tornando insuportável – porque sempre chega um momento em que até o bonito se torna insuportável –, quando chegou esse momento eu olhei para a janela deles e vi uma menina me olhando atrás das grades. Quando ela viu que eu olhava para ela começou a erguer devagar a blusa, uma blusa curta, cheia de listras coloridas, e me mostrou os seios. Entre os seios recémnascidos havia um ovo com um punhal cravado no centro de onde sorria um fio de sangue que descia pelo umbigo da menina, escorregava por cima do fecho da calça e pingava devagar bem no meio da clareira de sol onde eu estava (ABREU, 1975, p. 151-152). Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 59


Essa é mais uma imagem que desconcerta o narradorpersonagem, deixando-o desesperado. A menina que surge para ele ainda se apresenta como Lúcia e diz que está no céu com diamantes numa alusão aos versos da canção de John Lennon e Paul MacCartney que fazem parte da epígrafe do conto. O punhal cravado no peito da garota e a sua declaração de que está no céu, o que remete à despedida da vida, são outros elementos sinalizadores de uma violência não mais apenas simbólica. Ao ver a menina também apunhalada, o narradorpersonagem fica confuso: “A minha cabeça gira. Não. A minha cabeça não gira. A minha cabeça cresce e se derrama pela rua e eu fico vendo as pessoas caminharem por entre meus cabelos.” (ABREU, 1975, p. 152). Estar perturbado condiciona também o protagonista a um estado de consciência da banalidade da vida e da brutalidade das pessoas em relação àqueles que são diferentes, pois, na sua alucinação, enquanto ele deita no asfalto, as pessoas enfurecidas cortam e furam seus cabelos “que não param de crescer sobre a cidade” (ABREU, 1975, p. 152). A agressividade dos outros é ainda identificada no “brilho assassino” dos olhos do taxista de quem toma uma corrida e para quem pede que corra e ande depressa para evitar que seja atingido por tomates vermelhos lançados por pessoas que batem contra as vidraças do carro na tentativa de atingi-lo. Fugir das pessoas que o perseguem sem deixar o motorista do táxi notar é o objetivo do narrador-personagem, que, para isso, tenta estabelecer um diálogo não planejado com o taxista. Diz a ele que se sente sozinho, mas o motorista não o ouve. Decide então comentar sobre uma obra que leu e indica a leitura do texto: Então pergunto a ele se já leu Goethe, se já leu Werther: Ele pergunta o quê, mas eu faço que não entendo, retiro do bolso uma edição portuguesa e digo que ele deveria ler, que não sabe o que está perdendo, e abro à toa e leio um pedaço assim: Ella não vê, não sente que está preparando um veneno que será mortal para ambos nós. E eu ... bebo com avidez, Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 60


com soffreguidão, a taça fatal que ella me apresenta. O que significa o meigo olhar com que muitas vezes me contempla? (ABREU, 1975, p. 152-153). O texto em questão faz parte de Os sofrimentos do jovem Werther, obra do romantismo alemão escrita por Johann Wolfang Von Goethe que tematiza o amor profundo de um jovem, Werther, por Charlotte, moça comprometida com outro rapaz. Ao constatar a impossibilidade de ficar com Charlotte e não ter seu amor correspondido, Werther se suicida. A morte é o final trágico da história e, na obra do romancista alemão, a solução encontrada pelo rapaz para dar fim ao seu sofrimento. A inserção do fragmento no conto de Caio Fernando Abreu é indicativo da postura que o narrador-personagem vai adotar e uma forma de explicação sobre o desfecho que cria para sua experiência pessoal. Depois de tentar, sem sucesso, conversar com o motorista do táxi, o protagonista chega enfim à sua casa. Paga a corrida e observa no rosto do taxista “um ovo macio, redondo, liso e branco, com um punhal ficado no centro” (ABREU, 1975, p. 153), mas desta vez não se amedronta com a imagem, pelo contrário, sorri para ele e bate-lhe no ombro, querendo lhe dizer que compreende o seu jeito e que não sente preconceito em relação a ele. Ao entrar na casa, o protagonista observa o varal azul, o sol que se foi, as grades por onde via a menina de seios nus que estava no céu com os diamantes. Mas não a vê novamente. Mas visualiza um ovo de pernas cruzadas sobre o muro. Sorri para o ovo e pressente que o objeto vai o perseguir. Então atravessa a casa e nota que o ovo não foi atrás porque suas “vibrações coloridas” impediram a perseguição, protegendo-o, uma proteção ampliada pelos “eus azuis, vermelhos, amarelos, roxos, eus brilhantes que deslizam e flutuam e se fundem uns com os outros” (ABREU, 1975, p. 154). Entretanto, mesmo sabendo que o ovo não o persegue, fica ofegante, com olhos esgazeados e suor escorrendo na testa, seu rosto refletido no espelho está “espavorido”: “E meu rosto espavorido não é um rosto espavorido. É um ovo”. (ABREU, 1975, p. 154) Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 61


O espelho exterioriza para o próprio narradorpersonagem a imagem de si, que agora se confunde com a imagem da obra de arte que vira e que o aterrorizara. O espelho ainda força um olhar mais atento do protagonista para si mesmo, um olhar que se foca no punhal cravado nas suas costas. O ovo que toma conta de seu rosto no espelho lhe faz uma “espécie de súplica”, pedindo que o protagonista o socorra, poupe-o e o abrevie. Nesse momento, o protagonista não teme mais o objeto: “Agora é um ovo delicado, tenro, humilde, e não tenho medo, e sinto pena dele, quase ternura. Então estendo os meus muitos braços coloridos e toco no cabo de bronze do punhal.” (ABREU, 1975, p. 155). É o gesto que instaura o desejo de fincar em seu próprio corpo o objeto, que acaba sendo penetrado nas costas do protagonista de forma lenta e firme, anunciando a morte: “Vejo minha casca clara partir-se inteira em cacos brilhantes que ficam cintilando pelo chão do banheiro. O sangue escorre e eu, agora, também estou no céu com os diamantes.” (ABREU, 1975, p. 155). A morte é uma forma de o narrador-protagonista alcançar a salvação. Como percebe ser complexa a sua aceitação social e como vê possibilidades de realização plena, o protagonista conclui que a vida não faz mais sentido, pois há duas forças de proporções diferentes no conflito que visualiza: ele, de um lado, e os outros, de outro. Enquanto estes se mostram distantes de uma reflexão sobre a violência, o narrador-protagonista se sensibiliza com a situação a ponto de decidir que o fim do sofrimento é motivo que o faz aceitar a despedida da vida. Tal como Werther no romance de Goethe, o protagonista encerra sua dor ao morrer. No conto, o veneno é o cabo de bronze, e o ovo apunhalado é o objeto que estabelece a consciência do protagonista em relação a si mesmo e aos outros, incitando uma reflexão de que a vida, num contexto em que os outros não o aceitam e que condicionamentos históricos e sociais ampliam as forças da opressão, não tem sentido, sendo a morte a concretização da redenção humana. Cabe ressaltar a importância das citações literárias e de letras de canções que corroboram a perspectiva de desolamento Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 62


do narrador-protagonista. Uma associação de sentidos que acentua o conflito vivido pelo narrador-personagem do conto de Caio Fernando Abreu e reforça a sua desistência em lutar num ambiente hostil, apesar de manter vivo o desejo de paz, conforme indica a recorrência à canção “Imagine”. As várias recorrências a textos no conto “O ovo apunhalado” tornam mais fragmentada a leitura do texto, estimulando o leitor a mapeá-las para construir a rede de significações do texto. Considerando as análises das duas narrativas, parece-nos pertinente afirmar ser o conto do autor uma espécie de “estética de montagem”, uma junção de fragmentos, de textos, ora em epígrafes, ora em citações literais ou em alusão a obras literárias e textos de outra natureza, que condicionam o processo de leitura a uma revisão e ou visitação a textos alheios como estratégia para compreender a narrativa do escritor gaúcho. Os diálogos entre textos revelam, dessa forma, um traço da composição de narrativas de Caio Fernando Abreu que, em virtude de sua ampla manifestação, não podem ser ignorados no percurso interpretativo de seus textos sob pena de ser construída uma leitura superficial e distante da caracterização do caminho formal escolhido pelo autor para representar suas histórias.

Referências ABREU, Caio Fernando. O ovo apunhalado. Porto Alegre: Globo, 1975. ALBIN, Ricardo Cravo. O livro de ouro da MPB. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Vieira. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 1999. _____. Questões de literatura e estética: A Teoria do Romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Hucitec/Unesp, 1988. BARTHES, Roland. S/Z. Tradução de Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 63


COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1996. FRÓES, Marcelo. Jovem guarda: em ritmo de aventura. São Paulo: Ed. 34, 2000. SAMOYAULT, Tiphaine. A intertextualidade. Tradução de Sandra Nitrini.São Paulo: Aderaldo & Rothschild/Hucitec, 2008.

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Fusão mítica: o descenso de Orfeu aos infernos em Onde andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu Farides María Lugo Zuleta13

Resumo: Pretendemos mostrar como a figura mitológica do descenso de Orfeu aos infernos, em busca de sua amada Eurídice, tem núcleo na narrativa Onde andará Dulce Veiga?: Um romance B, de Caio Fernando Abreu. Mito clássico e romance estão fazendo uma fusão mítica, na qual o primeiro pode complementar a leitura analítica do segundo. Nesta pesquisa apresentaremos as coincidências entre os dois textos, com o objetivo de atingir uma interpretação válida e adequada do romance de Caio F., tudo isso tendo como base teórica a linha mitocrítica proposta por Gilbert Durand. Palavras-chave: Descenso de Orfeu, Onde andará Dulce Veiga?: Um romance B, fusão mítica, mitocrítica, Gilbert Durand.

Abstract: We intend to show how the mythological figure of Orpheus's descent into hell in search of his beloved Eurydice, has core in the narrative Whatever happened to Dulce Veiga?, by Caio Fernando Abreu. Classic myth and romance are doing a mythical fusion, in which the first may complement the analytical reading of the second. In this research we present the similarities between the two texts, in order to achieve a valid and proper interpretation of the Caio F’s novel. All the theoretical background is based on Gilbert Durand’s Myth-Criticism. Keywords: Descent of Orpheus, Whatever happened to Dulce Veiga?, mythical fusion, Myth-Criticism, Gilbert Durand.

13Mestranda

em História da Literatura (FURG, Brasil) como bolsista da OEA e do Grupo de Universidades Brasileiras. É Profesional en estudios literarios da Universidad Nacional de Colombia.

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Uma das vantagens de interpretar a literatura em conjunto com os mitos, é a criação de uma análise que está longe de ser unidimensional. Assim, graças à importância e à omnipresença do mito, podem aparecer leituras mais aprofundadas de uma obra. Neste caso, em particular, queremos mostrar como a figura mitológica do descenso de Orfeu aos infernos está presente na estrutura e significação do romance Onde andará Dulce Veiga?: Um romance B, de Caio Fernando Abreu. O objetivo, então, é propor uma leitura da obra na sua relação ao mito, o que Gilbert Durand chamou de: fazer mitocrítica. Não pretendemos comprovar que o romance de Caio é uma nova versão do mito de Orfeu, mas sim que este mito está integrado na corrente narrativa mais profunda desta obra (fusão mítica). Tentaremos pôr a descoberto um núcleo mítico órfico, uma narrativa fundamentadora (Durand, 1981: p. 40). É possível pensar, depois de ler todo o documento, que entre o mito e o romance não há senão uma coincidência entre as estruturas (literária e mítica) (Durand, 1981: p. 42), nesse caso adianta um último argumento, presente para nós de Durand (1981): "Cada um, no fim de contas, escolhe o que olha" (p. 51). Nosso cruzamento de olhares com o romance revelou um núcleo que pertence ao domínio do mítico (Durand, 1981: p. 40), a um Orfeu caminhando sozinho, procurando uma mulher, cheio de música. Com o romance de Caio F. estamos frente ao mitologema da queda, da descida aos infernos para uma posterior subida, o processo contrário, a ascensão, dá ao personagem finalmente sua redenção (apresentada na última linha deste trabalho) (Durand, 1981: p. 44). Para apresentar esta dinâmica (descenso-ascensão) não queremos trabalhar com uma interpretação estreita demais, senão com uma das definições da mitocrítica segundo Durand (1981), na qual o mito está em liberdade, ou seja, que ele atua por trás da narrativa (p. 45). Continuando com Durand, podemos pensar que com este método mitocrítico afastamo-nos de um trabalho banal com o texto e de uma leitura que fica somente na superfície. Com Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 66


o mito de Orfeu chegamos a um grau de compreensão maior do romance Onde andará Dulce Veiga?, porque descobrimos uma matéria que se alinha sobre este grande mito clássico, e vai além de simplesmente fazer resumo do argumento da obra ou de apresentar suas características formais, sem estudar a sua intertextualidade com a tradição literária. Isto sem pensar que o mérito é exclusivo do método mitocrítico, pois outras metodologias como a análise histórica ou psicocrítica, como afirma Durand (1981), têm seus direitos (p. 53). Além disso, poderíamos dizer que o importante não é como tal o método de aproximação a uma obra, senão a profundidade da interpretação atingida. Depois desta pequena apresentação e justificativa do método escolhido, continuaremos fazendo uma apresentação do mito de Orfeu, para entender como ele está relacionado com o núcleo narrativo do romance de Caio F. Como a maioria dos mitos clássicos, o mito de Orfeu tem diferentes versões e variantes. Por exemplo, algumas vezes ele aparece como filho de Eagro e Calíope, outras vezes, de Apolo e a musa Clío, junto com três irmãos: Marsias, Ialemo e Lino. Em geral, Orfeu está relacionado com a argonáutica, a música, a busca de sua amada Eurídice e, com outro dado que será importante para o nosso trabalho, com ser o primeiro "homem"14 em ter relações amorosas com outros homens. Sobretudo, se pesarmos que o protagonista de Onde andará Dulce Veiga? teve um amante: Pedro, mas também ele esteve casado com uma mulher antes (Eurídice). Relação interessante entre o mito e o romance que, junto com outras "coincidências", serão apresentadas mais adiante. Onde podemos encontrar os rastros de Orfeu? A importante figura de Orfeu está presente em várias obras clássicas e em muitas outras mais contemporâneas. Vamos mencionar alguns exemplos significativos: temos a Argonáutica Órfica; o livro Geórgicas, de Virgílio; as Metamorfoses, de Ovídio; um "Orfeu 14

Aspas porque Orfeu tem uma origem divina.

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burlesco", de Francisco de Quevedo15; o Discurso Poético, de Juan de Jáuregui de 1624; alguns sonetos ao Orfeu, de Rilke; a Biblioteca Histórica, de Deodoro de Sicília; a Biblioteca Mitológica, de Apolodoro; Orfeu em língua castelhana, de Pérez de Montalvão (Lope); a obra de teatro de 1942, Eurídice, de Anouilh; no cinema está o filme "Orfeu Negro", de Marcel Camus, no contexto do Carnaval de Rio de Janeiro de 1959. A lista poderia continuar, mas decidimos nos deter aqui. A quantidade de material dá para pensar que a influencia deste mito é realmente grande e que qualquer pessoa dedicada às letras tem tido algum contato com Orfeu e sua trágica aventura de amor com Eurídice, pois este é a passagem mais famosa dele. Então, só para aclarar, não é arriscado no absoluto pensar que o ilustrado Caio F. deveu conhecer muito bem este mito. De todas as maneiras, em uma análise como esta, também não é relevante fazer biografismo com as possíveis fontes do autor, senão pensar que de um jeito consciente ou inconsciente o mito faz parte de seu imaginário, de seu relacionamento com o mundo e é uma ferramenta ativa para compreender a realidade, de aí que o mito de Orfeu possa estar implícito nas páginas de Onde andará Dulce Veiga? Como o mito também é uma invenção social que está em constantes (ou não) re-apropriações, não temos uma única versão dele, um único perfil de Orfeu, mas sim uma trilha, na qual se encontram diferentes versões. O Orfeu de Ovídio é músico e poeta de Trácia, filho de Apolo e Calíope, esposo de Eurídice. No Libro X das Metamorfoses, temos a narração do descenso de Orfeu aos infernos em busca de sua amada. Orfeu estava doente de saudade pela Eurídice, assim como o protagonista do romance espera ansioso alguma notícia de Pedro ou buscará desesperadamente a Dulce. A saudade e o amor profundo de Orfeu dá-lhe valor para descender até a Estige pela porta do Ténaro, segundo Ovídio, Talvez seja uma das poucas obras inspiradas em Orfeu que tem um sentido cómico do mito, este trecho, por exemplo, mostra a brincadeira com a suposta homossexualidade do personagem: "Orfeo por su mujer,/ dicen que bajo al Infierno;/ y por su mujer no pudo/ bajar a outra parte Orfeo". 15

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entre pessoas tênues e espectrais; muito parecido aos personagens que encontramos em Onde andará Dulce Veiga? Pessoas estereotipadas e frívolas que fazem crescer a solidão de nosso protagonista, enquanto faz sua investigação. O Orfeu de Ovídio está cheio de medo, descende por um caos enorme, pedindo que o destino de sua Eurídice (Ovidio, 2007: 304) seja tecido de novo. Assim, o personagem de Caio F. também descende a uma subcultura caótica e agressiva na cidade de São Paulo, desejando encontrar à Dulce Veiga e dar notícia ao mundo da sua vida, fazer a sua ressurreição à esfera pública. Nas Metamorfoses, depois do fracasso de Orfeu por trocar de mundo a Eurídice, ele começa a evitar toda relação feminina, pela dor da perda ou por manter a sua palavra de amor. Portanto, Orfeu induz à população de Trácia a virar o amor para homens jovens ou, inclusive, crianças (Ovídio, 2007, p. 305). O Livro XI das Metamorfoses narra como Orfeu continua sem querer outras mulheres, sentindo desprezo delas (Ovídio, 2007: p. 327), mas quando ele morrer, sua sombra desce de novo baixo terra, reconhece os lugares que antes olhou e nos Campos Elíseos encontra-se com Eurídice e dá-lhe um abraço com paixão (Ovídio, 2007: p. 329). Então, a misoginia e a homossexualidade de Orfeu aparecem com a sua separação de Eurídice. Da mesma maneira, o protagonista de Onde andará Dulce Veiga?, depois de seu divorcio de uma relação heterossexual, inicia uma aventura homossexual com Pedro, que já tinha terminado no começo da obra, mas que vamos descobrindo entre linhas enquanto vamos avançando na leitura do romance. Nas Geórgicas de Virgílio, Orfeu aparece como uma pessoa que merece nossa compaixão, pois a sua desgraça é imerecida (Virgílio, 1994: p. 275). Na sua tragédia de ter perdido a Eurídice, Orfeu procura o seu consolo ao amor infeliz na música, com a lira (Virgílio, 1994: p. 275). O protagonista de Onde andará Dulce Veiga? depois do divorcio e depois de perder o rastro de Pedro, terá uma vida patética na solidão, a pobreza do desemprego e parece que a sua vida tem sentido de novo quando ele for trás da música de Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 69


Dulce Veiga, embora pelo caminho terá que escutar às Vaginas Dentatas e o caos de São Paulo; do mesmo jeito, Orfeu entrou nas fauces do Ténaro, boca abismal do reino de Plutão (Virgílio, 1994: p. 277). Mas já sabemos que a tentativa de Orfeu não tem bom fim imediato, por isso ele chorará sete meses seguidos e inteiros (Virgílio, 1994: p. 279), enquanto o protagonista de Onde andará Dulce Veiga? para esquecer sua pena por Pedro, buscará por sete16 dias inteiros o paradeiro de Dulce em uma investigação ao limite do delírio. Talvez uma frase que mostra muito bem a relação que estamos tentando fazer entre Orfeu-Protagonista de Onde andará Dulce Veiga? é uma de José Geraldo Couto, quem faz uma introdução à edição de 2006 do romance. Ele afirma que os personagens de Caio F. são como sombras de outros personagens, espectros viventes, projeções do imaginário. Nosso protagonista pode ser facilmente a sombra da sombra de Orfeu que desce duas vezes ao Ténaro. Aliás, insistimos na conexão com a música que está presente desde a primeira linha do romance: "Eu deveria cantar", (Abreu, 2006: p. 9), mas o protagonista tinha desaprendido, tinha perdido sua relação natural com a música. E somente ao final, quando ele recuperar a sua voz, poderá "emergir do pântano de depressão" (Abreu, 2006: p. 10), onde ele estava (Inferno). Não podemos esquecer outro personagem central do romance, que não temos mencionado até aqui, Márcia Felácio17, a O número sete parece ter um significado especial neste romance de Caio F., por exemplo, botamos aqui um trecho, no qual aparece com um sentido simbólico: "Pedi sete vezes em voz alta, não havia ninguém por perto para olhar e talvez rir, um homem não muito jovem, todo molhado, falando sozinho, pedindo não sabia o quê. Força e fé, que tinha perdido, eu pedi" (Abreu, 2006, p. 35-36). Parece uma parodia a súplica que Orfeu faz para os deuses do Ades, os que sofrem com ele e permitem a entrada aos infernos, mas com essa condição tão cruel que, no fim de contas, causa uma dor maior ao Orfeu. 17 Além da relação familiar, esta jovem exyonkie e agora amante da cocaína será um símbolo forte do anjo revelador do apocalipse, sua voz atómica gritará nas suas músicas a chegada da batalha final, o Armagedão, e a queda da Babilônia, da cidade 16

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filha de Dulce Veiga e líder das Vaginas Dentatas, na sua apresentação na narrativa também mostra aspectos mitológicos: "Um farol maldito, para perder os navegantes" (Abreu, 2006: p. 25), assim são descritos seus olhos e assim a sua voz de cantante: "Aquela voz de sereia radioativa" (Abreu, 2006: p. 26). Elementos que criam relação direta com os argonautas ou o canto mágico das sereias de Odisseu; mitologia quase explícita se estarmos atentos na leitura. Podemos somar também as aparições de Dulce no argumento, pois ela tem ao inicio uma maneira espectral. O protagonista pode vê-la e ao segundo seguinte ela "não estava mais lá" (Abreu, 2006: p. 32). Assim como Eurídice desvanece-se diante dos olhos de Orfeu, Dulce Veiga o faz. Depois de termos apresentado os pontos de conexão mais gerais entre mito e romance, queremos ir mais perto à análise da obra. Temos um romance dividido em sete capítulos, os quais correspondem aos dias da semana, sete estações de busca e sofrimento que o protagonista vai percorrer como um Orfeu sozinho (ou um cristo). De segunda a domingo o personagem irá trás as pistas de uma velha cantora desaparecida faz vinte anos, porém o tempo passado não é suficiente para esquece-la: Dulce Veiga, a melhor de todas. A mais elegante, a mais dramática, a mais misteriosa e abençoada com aquela voz rouca que conseguia dar forma a qualquer sentimento, desde que fosse profundo. E doloroso, Dulce cantava a dor de estar vivo e não haver remédio nenhum para isso. Concordando com a epígrafe do romance: "I had seventeen dollars in my wallet. Seventeen dollars and the fear of writing…" Ao início o protagonista, que é um sem nome até o final do livro, leva meses encerrado em casa, com fome, sem emprego e sem dinheiro. A reviravolta acontecerá quando ele começa a trabalhar no Jornal da cidade. Embora ele morasse num espaço extremamente pequeno, sujo e desordenado; quando sair para o perdida no pecado. Vemos aqui como o autor mistura mitologia clássica com elementos cristãos.

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mundo, para as ruas de São Paulo sua situação não melhorará, pois o texto mostra uma ampla variedade de ambientes ameaçadores, esquisitos e malsãos: cigarros, fumaça, calor, cocaína, música agressiva, travestis, prostituição etc., vão criando uma atmosfera sufocante (infernal) que, paradoxalmente, não deixam de cativar ao leitor com esse estilo coral, mistura de referências ao cinema, música, jornalismo e literatura. Os personagens, ás vezes, parecem pertencer ao mundo das histórias em quadrinhos, a arte kitsch, ou a qualquer estilo sobrecarregado. O protagonista sente uma constante indiferença pela vida, é um ser depressivo, solitário, pobre e delirante. Sua vida está em desequilíbrio, os quatro elementos estão em caos: Ar, pensei. Terra não havia sob meus pés, aquele horrendo carpete amarronzado pelo tempo, fogo só nas brasas dos cigarros de Castilhos, e água viscosa escorrendo na palma das minhas mãos. Ele é um homem sem fé ao limite de uma nostalgia descontrolada, obrigado pelas necessidades domésticas a enfrentar o mundo vazio dos artistas, os espetáculos que já não são tão bons como antes. Assim, passamos do caos de sua casa e de seu escritório ao mundo cultural dos outsiders e suas vidas não lineares e desamparadas. Na busca de Dulce Veiga o protagonista começa uma persecução absurda e a mulher procurada parece fatal. Esta é uma das simbologias mais fortes da obra e que temos apresentado até agora: o homem (Orfeu) sem esperança que escolhe descer nos infernos, no inframundo detrás de uma mulher única (Eurídice) que justifica qualquer sacrifício. O protagonista não é só como Orfeu, ele também é como Dante recorrendo os círculos do inferno e do purgatório para chegar ao paraíso que é Beatrice; como Don Quijote batendo sua cabeça contra um mundo deslocado pelo seu amor por Dulcinea; ou a misteriosa Alejandra de Sobre héroes y tumbas, de Ernesto Sábato; ou María de El Tunel. Dulce Veiga também será essa mulher quase incorpórea que funciona como motivação para o movimento e a transformação de um sujeito (ascensão). Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 72


Mas aqui estamos em um ambiente meramente urbano, em uma cidade pestilenta, cheia de polução, saturados de canções pessimistas e a somatória de dias dentro de uma enorme solidão. Eis o pentimento, a integração das palavras pena e sentimento, que traduzem a tragédia deste personagem. Sua vida é apresentada com grande influência do cinema, como se todos fossem atores em uma sociedade dessacralizada, nem Xangô nem Jesus podem-nos ajudar, ou sim? A cantora desapareceu porque queria encontrar outra coisa, outra coisa além das drogas e o mundo vazio que habitava, vazio na sua saturação. O protagonista, então, vai querer encontra-la como se o último sentido da sua vida estivesse relacionado a esse fato. Como se ao fazer uma persecução absurda ele superasse o sem sentido mesmo da sua existência humana. A narração desta busca chega-nos em primeira pessoa, a exceção de um pequeno parágrafo no qual o personagem é comparado com o romancista britânico Edward Morgan Forster. É comum, aliás, encontrar no texto muitas referências a artistas estrangeiros, mais que uma cor local, o romance explode numa fragilidade cosmopolita, debochando da cultura pop, mas também do Brasil, que estaria no quintal; Latino América não é mais que um povo apaixonado pelas novelas e a tevê descartável. O desamparo do protagonista dá para criticar tudo, para acabar com tudo, nem cultura nem fé, os querubins aparecem no meio do lixo, os milagres não passam de delírios e a música também não é como antes, agora existem grupos como as Vaginas Dentatas, agrupações de meninas burguesas feministas radicais e desamparadas por suas famílias. Os dias da semana de nosso protagonista, o jornalista, o lobo cansado, o carente, o novo Orfeu, vão se desenvolvendo em uma sequencia de pequenos encontros que cada vez mais tornará complexa a trama do romance. Os personagens aparecem na cena, mas ninguém quer falar, todos querem encontrar Dulce Veiga, mas não ajudam com dados uteis. E o protagonista comprometese com a investigação, assim poderá continuar esquecendo que Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 73


seu amado Pedro não está e que sua ex-esposa também não. Outras verdades terríveis serão reveladas aos poucos, o leitor com sede insuportável terá que aguardar até o fim, inclusive, assim não teremos todas as respostas. No entanto, a leitura do romance é absolutamente fascinante, é uma obra inteligente, cheia de cinema, música, jornalismo e literatura. Embora o protagonista desça aos infernos de uma cultura desencantada da pós-guerra, o romance equilibra essa obscuridade com trechos de um lirismo surpreendente, as lembranças de Pedro, as músicas de Dulce Veiga... a luz tem também uma sutil presença na obra e cria encanto e melancolia. Um novo elemento, aqui, seria o humor, este também faz mais suportável a realidade do narrado. E aqui o jogo com o sacro é fundamental. Na mistura, na carnavalização, na sátira, temos um consolo. Miremos esta descrição, por exemplo: Havia uma colagem que misturava orixás e santos da igreja católica com Buda, madre Teresa de Calcutá, Chico Xavier, o Papa e artistas de cinema e tevê. Fiquei tentando descobrir se o cara de peitos nus, eu precisava de óculos, seria Arnold Schwarzenneger ou Sam Shepard. Um amargo sorriso entre páginas ajuda a suportar que o protagonista não se aceite como homossexual, que não saiba onde ele está e onde está Dulce Veiga, que absolutamente todos morram de solidão, que Márcia F. e o protagonista tenham AIDS, que meninos de catorze anos trasvestidos, como Jacyr, já pertençam ao mundo da prostituição etc. O romance está cheio de fatos, mas o protagonista está carente de verdadeiros acontecimentos, os dias estão sem sentido, todos os personagens e o próprio leitor correm o risco de morrer de overdose de cidade gigante, todos estamos presos no absurdo depois da violência, parece não restar senão beber cerveja na boate Hiroshima na companhia das Vaginas Dentatas e sua fabricação cultural em série, crucifixos, fantasias de anjos e a loucura da grande Babilônia:

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Caiu, caiu a Grande Babilônia! Tornou-se recesso de demônios, prisão de todo espírito impuro e de toda ave impura e repelente, porque do vinho acre de sua luxúria beberam todas as nações, com ela prostituíram-se os reis do mundo e com seu luxo desenfreado enriqueceram os traficantes da terra! O clima de decadência urbana não acontece só em São Paulo, Rio de Janeiro também não se salva, na trilha destas cidades o protagonista sente-se cada vez mais cansado, perdido, velho, careta. E as lembranças de seu amor com Pedro não são purificadoras, pelo contrário, ele instaura uma metáfora do amor homossexual como uma maldição (parecida à ira de Orfeu depois de perder a Eurídice pela segunda vez), o beijo entre dois homens é maldiçoado: A história de outro beijo, o beijo que Saul me dera. Como eu dera em Filemon, súbito, sem explicação. Uma espécie de maldição, passada de boca em boca (...) É preciso beijar meu próprio medo, pensei, para que ele se torne meu amigo. Entreaberta, a boca dele cheirava mal, os lábios cobertos de partículas purulentas, os dentes podres. Uma cara de louco, uma cara de miséria, de maldição. Uma maldição passada de boca em boca, que eu poderia exorcizar agora, devolvendo um beijo que era ao mesmo tempo a retribuição daquele, e inteiramente outro. O romance não dava sinais de um milagre, mas acontece. O protagonista faz uma última viagem, para uma região de Brasil diferente, menos cidade e mais em contato com a natureza, a Estrela do Norte, ali encontra a Dulce Veiga, contra todos os prognósticos, quando já como leitores tínhamos perdido a ilusão, quando não confiávamos para nada nesse fracasso de detetive, assim como Orfeu tem a possibilidade de ver Eurídice, o protagonista encontra Dulce. O homem mais triste do mundo, com sua derrota e seu tempo perdido atinge o encontro com a femme fatale. Mas Dulce Veiga já não é mais aquela artista de sonhos, agora é uma cinquentona reabilitada, simples, real, longe Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 75


desse mundo de colegas alcoólatras que bebiam vodca e Jack Daniels como se fosse agua. Estrela do Norte simboliza a possibilidade de paz interior (redenção atingida por Orfeu e o protagonista), parece ser o verdadeiro Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro são falsas para o protagonista, terrivelmente cidades neuróticas. Por isso Dulce fugiu, procurando uma vida diferente. O protagonista também queria uma vida distinta, lutava contra sua própria fragmentação em mil partes como uma diminuta gota de mercúrio. O protagonista conhece a verdade, lembra aqueles aspectos importantes de sua vida que ele tinha esquecido seletivamente. Há uma mudança na sua alma, porém já tem os dias contados, está doente de AIDS e não escolhe o final feliz e utópico morando isolado no novo paraíso, ele volta para a cidade (como Orfeu volta para o mundo dos vivos), mas volta diferente, ele já pode cantar e Orfeu sempre terá a sua lira como consolo.

Referências ABREU, Caio. Onde andará Dulce Veiga?: Um romance B. Rio de Janeiro: Agir Editora, 2007. APOLODORO. Biblioteca Mitológica (online). Consultado em www.scribd.com (14-04-2015). BERMABÉ, Alberto. Orfeo y la tradición órfica: Un reencuentro. Vol. I e II. Madrid: Ediciones Akal, 2008. BRICOUT, Bernadette. La mirada de Orfeo: Los mitos literarios de Occidente. Barcelona: Paidós Contextos, 2002. OVIDIO. Metamorfosis. Madrid: Alianza Editorial, 2007. PEÑA, Isaías. Manual de la literatura latino-americana. Bogotá: Educar Editores, 1990. QUEVEDO, Francisco de. "Orfeo y Eurídice" (online). Consultado em www.ficus.pntic.mec.es (14-04-2015). VENIER, Martha. El Orfeo de Jáuregui. Vol. XXXVIII. Madrid: Lexis, 2014, p. 207216. VIRGILIO. Geórgicas. Madrid: Ediciones Cátedra, 1994.

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A construção do (des)sabor d’Aqueles dois Morangos Mofados Bruno Santos Pereira18 Resumo: Tomando como horizonte “Aqueles dois”, penúltimo conto do livro Morangos Mofados, do autor contemporâneo Caio Fernando Abreu, este artigo busca explorar tanto a singularidade deste conto quanto a sua pertinência ao projeto do livro, fazendo um estudo detalhado da sua escrita, que caminha da suavidade à indocilidade; da sua técnica narrativa; do modo encantatório da extrema sensibilidade; do jogo de contrários que envolve os personagens centrais do conto, Raul e Saul, tornando-os semelhantes. Concomitantemente, resgatar-se-á através dele, aproveitando a concepção do poema em prosa, mas também buscando absorver da própria obra os elementos que a interpretam, seu projeto construtivo, entendendo que a operação do texto passa por uma reflexão detida sobre o seu trabalho com a forma. Palavras-chave: Caio Fernando Abreu, Morangos Mofados, Aqueles dois, Literatura brasileira contemporânea, poema em prosa, projeto arquitetônico.

Abstract: Using as a horizon "Those two," one of last tales of the book Moldy Strawberries, of the contemporary author Caio Fernando Abreu, this article seeks to explore the singularity of this tale and its relevance to the book project, which is a detailed study of his writing, from its suavity to its brutality; his narrative technique; his means of extreme sensibility; the contrary game involving the central characters of the story, Raul and Saul, making them similar. Concomitantly, it will be rescue through it, applying the idea of the prose poem, but also seeking to absorb the work itself the elements that interpret, its constructive project, understanding that the text of the operation undergoes reflection on its work with form. Keywords: Caio Fernando Abreu; Moldy Strawberries; Those two; contemporary brazilian literature; prose poem; architectural project.

18Pós-graduando

Lato Sensu em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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“Digo a todos os repórteres que não me sinto um escritor: que sou só um ser humano procurando um jeito de viver. E que talvez esse jeito seja escrever, sei lá. (...) Queria tanto que alguém me amasse por alguma coisa que eu escrevi”. Porto Alegre, 14 de junho de 1970. Carta à Hilda Hilst. Caio Fernando Abreu Morangos. Morangos Mofados, publicado em 1982, é o livro considerado pela crítica literária a obra-prima do escritor Caio Fernando Loureiro de Abreu. Trata-se de um livro de contos no qual, de maneira geral, o escritor versa sobre a voraz pósmodernidade: dores, angústias, fracassos, medo, esperança, encontros, desencontros, paranoias, encanto, desencanto, drogas, sexo, amparo, desamparo, riso, choro, solidão, normalidade, estranhamento, marginalização, amor, desamor; o esquizofrênico cotidiano, com milhões de sentimentos-pensamentos-atitudes explodindo e contaminando uma época. Mofados. Com uma escrita que percorre do terno à severidade, tecida a formar um todo de linhas e entrelinhas, Morangos Mofados é estruturalmente tripartido. A primeira parte, intitulada “O mofo”, narra a fragilidade humana, acentuada pelo desamor, pelo desencontro, pela solidão: o gosto amargo do mofo. A segunda parte é chamada “Os morangos”. Ainda ácido, ainda doloroso, este segmento apresenta a mesma dor, a mesma solidão, o mesmo gosto amargo do mofo, mas, agora, com uma leve esperança, tão leve e tão longe como uma nuvem. E, por fim, a terceira parte se chama “Morangos mofados”, a qual parece (re)unir todos os outros contos, visto que trabalha com os temas mais recorrentes da coletânea, como, por exemplo, angústia, tristeza, dúvidas, incertezas, e, num movimento crescente, um certo encanto e também uma certa esperança. As partes, no entanto, formam um todo. As pequenas narrativas não seguem uma sequência temática, fazendo com que Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 78


a obra tenha uma organização não linear. Seus contos têm temas e formas distintas, com singular composição, com abordagens diversificadas. A pluralidade de assuntos tratados em cada parte da coletânea torna pouco viável o atentar para uma tendência exclusiva, uma tendência una, em cada segmento que compõe o livro. As partes não são independentes, emancipadas, isoladas, apartadas, com unidades vedadas. É pela diversidade dos temas e formas e sentidos e linhas que esta obra nasce, articulando as suas partes para, deste modo, formar o todo cujas peças dialogam entre si. De forma ampla, todos os personagens dos contos, de mofo a morangos, vivem num movimento cíclico de ir-e-vir do fundo do poço  e de si mesmos; vivem numa inércia, numa indecisão; numa busca eterna: buscam a felicidade – e não encontram; buscam o caminho da vida – e não acham; buscam o entendimento – e não entendem; vivem de uma pequena esperança de que o depois será bom – e não será  será?! A originalidade da arte é o estranhamento daquilo que é familiar. Ao obrar com o fragmento, com a incompletude, com o vazio, a arte causa um abalo “estrutural-sentimental” e um pasmo quando avistada por seu contemplador. Avistar é pôr à vista, ver ao longe, ao fundo. Avistar é o sentir do olhar. A partir do momento que se avista, põe-se à vista, a vista se enleva a um plano fora do palpável, mas inteiramente concreto (etimologicamente aquilo que cresce) dentro do ser. Seguindo esta linhagem, a arte contemporânea, da escultura à literatura, da música ao cinema, vem causar um desequilíbrio, uma desestruturação, uma ruptura e, portanto, como toda arte, vem instaurar um novo significado. Por esta vertente, observa-se que os títulos das obras ou dos contos de Caio F. causam, por si só, um estranhamento, um distanciamento em relação ao modo comum, permitindo uma forma singular de ver e apreender – pelo olhar estético ou artístico  as formas de Arte. Aqui, o título é, no mínimo, exótico: Morangos Mofados. Analisando separadamente as partes que compõem este título, Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 79


temos, em primeiro lugar, morangos. Como sabido, o morango é um fruto produzido pelo morangueiro, geralmente em formato que se assemelha a um coração, com aroma silvestre que transmite ao paladar um tanto de agridoce, além de ser vestido com a intensidade do vermelho. A cor vermelha representa sentimentos extremos, que vão da paixão à ira; da energia sexual ao amor; é duo e ambíguo; é puro e impuro. Mofados, por sua vez, vem da palavra mofo, que é um bolor, isto é, fungos que vivem de matérias orgânicas por eles decompostas. Em geral, estes fungos aparecem em objetos e alimentos que há muito estão guardados, sem luz e úmidos. A união que dá nome ao livro, portanto, causa um choque visual quando o leitor observa um morango, fruto belo, com cor viva e intensa, mofado. Geralmente, quando as frutas passam do seu ponto de maturação, diz-se que as mesmas estão apodrecendo. Quando Caio Fernando Abreu apresenta uma fruta além de madura, além de podre, chegando ao mofo, impacta o leitor. A fruta está se deteriorando. Consequentemente, a paixão, o amor, o sexo, a vida, por fim, está em decomposição. O morango é a esperança; o mofo, a desesperança. O morango é o amor; o mofo é a intolerância. O morango é a vida; o mofo, a morte. Os dois, portanto, não só fazem essa obra, mas traduzem o real, a vida, em uma perfeita isomorfia, apesar de em tensão, como anuncia e enuncia o título da obra. Ainda acerca dos títulos, o conto que é corpo deste trabalho é chamado de “Aqueles dois”. Narrando a história de Raul e Saul, colegas de trabalho, amigos mais-que-íntimos na vida, o conto trabalha com a dúvida, com a incerteza, com a interrogação. Os personagens centrais, aparentemente opostos, de colegas de repartição, criando um laço de amizade, chegam a uma suposta relação homoafetiva. Só o pressuposto da relação homossexual já os torna diferentes dos demais e, por consequência, os afasta. Essa distância, por si só, é claramente mostrada e marcada no título. Não são estes dois. Não são esses dois. Mas aqueles dois. O pronome demonstrativo usado é o da Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 80


distância; não estão próximos nem do emissor, nem do receptor: estão além. Isolados. Às margens. Excluídos. A verdade é que não havia mais ninguém em volta. Meses depois, não no começo, quando não havia ainda intimidade para isso, um deles diria que a repartição era como “um deserto de almas”. O outro concordou sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. (Abreu, 2005, p. 132) “Eram dois moços sozinhos” (Abreu, 2005, p. 135), estes: Raul e Saul. E talvez a solidão seja a grande ligação entre eles. De maneira ampla, os personagens centrais são diferentes-contrários. Raul é mais velho que Saul. Raul vem de um casamento, Saul, de um noivado, ambos fracassados. Raul tem talento para a música, Saul, para o desenho. Raul veio do Norte, Saul, do Sul. Raul é mais definido, mais forte, Saul, mais frágil e menor. Raul é mais denso, “flor murcha, gaveta fechada” (Abreu, 2005, p. 138), Saul, mais leve, “colônia de barba, talco” (Abreu, 2005, p. 138). De qualquer forma, “Eram dois moços bonitos, todos achavam” (Abreu, 2005, p. 134). A contrariedade existente pode ser observada mais como uma diferença que ultrapassa o limite geográfico Norte-sul e também que se sobrepõe às consoantes iniciais de seus nomes. Eles são diferentes entre si e também diferentes dos demais colegas de trabalho, o que os torna, portanto, pela contrariedade, pela solidão de cada um, pelo fracasso de suas vidas, e também pela falta de afinidade com os membros da repartição, semelhantes. É da união dos contrários que se faz a vida e, também, aqueles dois. Assim, diz-se que os contrários são genesíacos, e não antagônicos. Os contrários antagônicos destroem. Mas esses contrários constroem. São, destarte, harmônicos. O reconhecimento entre Raul e Saul acontece pelo entre, pelo de dentro, pela linha tênue que os torna diferentes, mas, ao mesmo tempo, iguais. “(...) o bonito de dentro de um estimulando o bonito de fora do outro e vice-versa. Como se houvesse, entre

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aqueles dois, uma estranha e secreta harmonia.” (Abreu, 2005, p. 134). Raul e Saul são harmônicos, constroem e são construídos engenhosamente, de forma que em momentos do conto o leitor parece misturar, fundir, confundir os personagens centrais, não sabendo mais diferenciar Raul de Saul nem Saul de Raul, de modo que um se vê no outro e o outro se vê no um, assumindo, portanto, uma completude: Raul é metade de Saul; Saul é metade de Raul. Caio Fernando Abreu, de forma sensível e inteligente, acentua o laço entre Raul e Saul pelo engendramento de seus nomes. Além de quase homônimos, com uma sonoridade arrastada, apesar de leve, seus nomes trazem consigo a mais pura e bela paisagem da noite. Como num espelho, olhado ao contrário, de trás para frente, tal como um palíndromo, Raul se lê “luar”; Saul se lê “luas”. Ambos, portanto, estão ligados também pela simbologia da Lua. Da noite. Do escuro. Do escondido. Do velado. Do secreto. Tudo o que são. O projeto construtivo de “Aqueles dois”, bem como do livro Morangos Mofados, via encadeamento dos nomes dos personagens, do título do conto, do título da obra, dos elementos que a fazem, do labor constante de desarticulação da linguagem habitual, através de construções sintáticas inusitadas e de imagens sem respaldo no plano empírico, insere Caio Fernando Abreu na categoria de poeta: um poeta em prosa. A palavra poeta tem seu radical proveniente no grego poiesis, que significa criar, moldar, fazer; fazer passar do não ser para o ser. Destarte, o poeta é aquele que faz, e ao mesmo tempo está sendo feito no processo incessante da sua escrita. O poema em prosa é uma forma poética capaz de modificar o seu entorno, ou seja, que nega, que contesta, que contraria a formalidade que impedia o criador de criar a seu modo, deixando-o limitado. A quebra da formalidade, no entanto, não configura uma aleatoriedade no ato de escrever. Ao mesmo tempo em que o poema em prosa caminha para uma desorganização, ele também busca uma organização própria. Isto Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 82


é, é uma destruição dos critérios dos manuais, mas soberano a uma organização dos seus princípios. Em suma, o poema em prosa descontrói de modo a se alforriar das normas préestabelecidas, mas, ao mesmo tempo, constrói e segue suas próprias leis. A história de Raul e Saul se desenvolve em seis segmentos não necessariamente sequenciais. Esta hexa-repartição estrutural revela uma suposta independência das partes, já que as mesmas não são colocadas em ordem de linearidade dos fatos, possibilitando ao leitor uma maior mobilidade da leitura do conto. “Aqueles dois”, assim, reflete a obra Morangos Mofados como num todo, de modo que o conto – a obra  não segue(m) uma linearidade, assim como apresenta(m) fragmentações. A forma das narrativas de Caio Fernando Abreu segue uma tendência moderna, na qual há a instabilidade do narrador, dificultando a compreensão da obra, de seus personagens e também das entrelinhas. Esta tendência se opõe às narrativas tradicionais, que se fincavam em princípios de temporalidade, causalidade e também de certa ordem. A oscilação do narrador provoca vários pontos de vista dentro de uma mesma história. O excesso de fragmentação das cenas e atos, como também as várias posturas do narrador, impossibilita um enfoque único da narrativa e, portanto, uma única interpretação. No que tange a “Aqueles dois”, em algumas passagens do conto, a voz do narrador se funde com as dos personagens, tornando impossível saber onde um começa e o outro termina. “Mas discretos, porque eram novos na firma e a gente, afinal, nunca sabe onde está pisando” (Abreu, 2005, p. 133); “e quase sempre trocavam frases como tanta vontade de parar, mas nunca tentei, ou já tentei tanto, agora desisti.” (Abreu, 2005, p. 135); “Raul deu a Saul o número de seu telefone, alguma coisa que você precisar, se ficar doente, a gente nunca sabe” (Abreu, 2005, p. 136). O narrador de “Aqueles dois” transporta o leitor para dentro da obra, fazendo com que o leitor viva e seja “Aqueles” personagens. O narrador não conta a ação, ele narra a emoção dos Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 83


personagens, de forma que o leitor passa a se identificar com o modo encantatório da extrema sensibilidade em que o texto é descrito. Além disso, a instabilidade do narrador prende e aproxima ainda mais o leitor do texto, que é obrigado a “pegar e soltar”; a ter certa aproximação e, subitamente, um afastamento do texto; a ser ator e, ao mesmo tempo, espectador da narrativa. De certa forma, o narrador do conto é um dificultador da decifração do texto. O mesmo não permite que o leitor note claramente se há – ou não – um envolvimento, seja amoroso, seja sexual, seja afetivo, entre Raul e Saul. O texto trabalha com a dúvida e a incerteza se entre os personagens centrais, de fato, aconteceu um romance, já que em nenhum momento o narrador aponta uma relação explícita. Contudo, olhadas as entrelinhas e atentadas algumas passagens, somadas a uma escrita tipicamente do autor, observa-se, desde o início, uma forte ligação – seja também amorosa, sexual e/ou puramente afetiva – entre Raul e Saul: “Mas desde o princípio alguma coisa – fados, astros, sinas, quem saberá? – conspirava contra (ou a favor, por que não?) aqueles dois” (Abreu, 2005, p. 133). O intensificar do elo entre os personagens acontece quando Saul chega atrasado à repartição, dizendo que ficou, na noite anterior, acordado até tarde assistindo a um filme. Raul, curioso, pergunta ao amigo que filme era o culpado pelo atraso. Saul, imaginando que Raul não saberia de que filme se tratava, disse, sem dar muita importância: “Infâmia”. Para espanto de Saul, Raul o olhou e disse que conhecia e, além disso, gostava muito do referido filme. É a partir do gosto sensível pela sétima arte, pelo “de dentro talvez” (Abreu, 2005, p. 135), que o caminho d’Aqueles dois começa a se afinar e entrelaçar de modo irremediável. Ou, por que não, ir-remediável?! Outros filmes viriam nos dias seguintes, e tão naturalmente como se alguma forma fosse inevitável, também vieram histórias pessoais, passados, alguns sonhos, pequenas esperanças e sobretudo queixas. Daquela firma, daquela vida, daquele nó, confessaram Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 84


uma tarde cinza de sexta, apertado no fundo do peito. (Abreu, 2005, p. 135) Como na passagem acima, outros encontros viriam. Uns na quitinete de Raul, outros no quarto de uma pensão onde Saul morava. A ligação entre eles crescia a cada contato, a cada dia, a cada momento: quando fizeram aniversário, trocaram presentes; além de dividirem segredos, medos, confidências, desejos, seus talentos, e até mesmo a tristeza. O narrador em “Aqueles dois”, como dito, injeta adrenalina em seu leitor e, ao mesmo tempo, o bloqueia de forma sufocante. Quando Raul está explicitando o filme “Infâmia” para Saul, o narrador o cerceia imediatamente no momento em que vai dizer do que trata o filme. Ora, se o narrador permitisse a fala de Raul, dizendo que o filme é baseado numa suposta relação homossexual entre duas professoras, estaria afirmando para o leitor que este conto tem também esta mesma base ou, se não afirmasse, ao menos daria uma indicação. E o narrador não diz, nunca dirá ou indicará qualquer pressuposto. “Raul olhou-o devagar, e mais atento, como ninguém conhece? eu conheço e gosto muito, não é aquela história das duas professoras que. Abalado, convidou Saul para um café (...)” (Abreu, 2005, p. 135). A cada linha traçada, Caio Fernando Abreu coaduna e harmoniza Raul e Saul. Como nós, ou até sobre nós, estes dois morangos – mofados  são acometidos por períodos ou momentos de afecção e concussão. No início de dezembro, devido à morte de sua mãe, no norte, Raul ficou uma semana fora, para desorientação de Saul. Ao voltar, estranhamente, a ligação entre eles parecia – e era  ainda mais forte. Tão forte que, à noite, na visita que Saul foi fazer ao amigo, após Raul falar sobre sua mãe, a emoção os tocou profundamente. Vendo Raul chorar, Saul não soube o que dizer ao companheiro, mas soube como se portar: “Sem tempo para compreenderem, abraçaram-se fortemente. E tão próximos ficaram que um podia sentir o cheiro do outro”. Passado um tempo que não se pôde medir convencionalmente, “Raul disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 85


mundo, e Saul outra coisa como você tem a mim agora, e para sempre” (Abreu, 2005, pp. 138 e 139). Da morte, Raul e Saul fizeram a vida; da desarmonia fizeram a sintonia. Não eram dois homens, mas, agora, um, ligados etimologicamente  do grego pathos – pelo duo da paixão: ora como dor e sofrer; ora como sentir. Compreende-se, portanto, que o elo entre os personagens brota não apenas dos bons momentos e sentimentos, mas também do terrível e do sofrimento. Na semana em que Raul esteve longe, Saul, meio desnorteado, teve um sonho inusitado, como se previsse o futuro: E teve um sonho: caminhava entre as pessoas da repartição, todas de preto, acusadoras. À exceção de Raul, todo de branco, abrindo os braços para ele. Abraçados fortemente, e tão próximos que um podia sentir o cheiro um do outro. Acordou pensando estranho, ele é que devia estar de luto. (Abreu, 2005, p. 138) Curiosamente, o narrador parece antecipar o fim do conto, como se já soubesse o que viria para Raul e Saul. E que, apesar do luto, das acusações, dos olhares e principalmente do julgamento dos demais, um seria a paz – o branco – do outro. Outro episódio evidencia ainda mais a relação afetivoamorosa entre Raul e Saul. Na noite de Ano Novo, na quitinete de Raul, após beberem muito, os dois decidiram que dormiriam nus. O ambiente é tomado por uma energia sexual, mas, sobretudo, por uma carga de afeto. Um afeto calado. Um afeto oculto. Na hora de deitar, trocando a roupa suja no banheiro, muito bêbado, Saul falou que ia dormir nu. Raul olhou para ele e disse você tem um corpo bonito. Você também, disse Saul, e baixou os olhos. Deitaram ambos nus, um na cama atrás do guarda-roupa, outro no sofá. Quase a noite inteira, um podia ver a brasa acesa do cigarro do outro, furando o escuro feito um demônio de olhos incendiados. Pela manhã Saul foi embora sem de despedir, para que Raul não percebesse suas fundas olheiras. (Abreu, 2005, p. 139) Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 86


Na passagem supracitada, o narrador leva o leitor a montar e orquestrar a cena, como se estivesse naquele ambiente com os personagens. Além disso, leva o leitor assíduo a interpretar a expressão “um podia ver a brasa acesa do cigarro do outro”, apelativamente sexual. Significa, portanto, que entre Raul e Saul havia desejo, vontade, carinho, afeto e, sobretudo, uma espécie estranha e confusa e gigantesca e também leve e pura de amor. Contudo, seria limitar a escrita de Caio Fernando Abreu afirmar que este conto trata somente e só de uma questão homoafetiva; do amor entre duas pessoas do mesmo sexo. O conto vai além e ocupa-se, como em seu subtítulo, com uma “história de aparente mediocridade e repressão”. Até o final da narrativa não é explícita a relação amorosa entre Raul e Saul e, no fim, o leitor que espera uma revelação vê frustrada sua expectativa. Na sala do chefe, Pálidos, os dois ouviram expressões como ‘relação anormal e ostensiva’, ‘desavergonhada aberração’, ‘comportamento doentio’, ‘psicologia deformada’, sempre assinadas por Um Atento Guardião da Moral. Saul baixou os olhos desmaiados, mas Raul levantou de um salto. Parecia muito alto quando, com uma das mãos apoiadas no ombro do amigo e a outra erguendo-se atrevida no ar, conseguiu ainda dizer a palavra nunca, antes que o chefe, depois de coisas como a-reputação-de-nossa-firma ou tenho-que-zelar-pela-moral-dos-meus-funcionários, declarasse frio: os senhores estão despedidos. (Abreu, 2005, p. 140) Como observado no trecho acima, o chefe os reprime por suas ações, mesmo que não fossem propriamente as deles, mas, sim, as que o chefe pressupunha que fossem. Raul e Saul sofrem com a intolerância, com o pré-conceito, com a pressuposição dos (f)atos, com a marginalização: com o mofo. Não havia provas concretas, aos olhos do chefe, contra “Aqueles dois”. Raul e Saul, Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 87


no entanto, não desmentem a acusação, aceitam-na. Não retrucam de forma esperada, assim como não negam. A única palavra dita por eles – ou melhor, por Raul  é “nunca”. Não afirmam, nem contestam. Não se escondem, mas também não fogem. Simplesmente reconhecem quão pequenos e menores são aqueles outros. “(...) estavam ainda mais altos e mais altivos” (Abreu, 2005, p. 140). Raul e Saul esvaziam suas gavetas, descem pelo elevador em silêncio, param em frente ao prédio, esperam um táxi. Quando o transporte chega, Raul abre a porta para que Saul entre. Na janela, alguém expressa:  ai-ai!, como se reprovasse os dois. No entanto, os reprovados nisso tudo são os que ficaram naquela repartição; que ficaram presos naquele “prédio grande e antigo, parecido com uma clínica psiquiátrica ou uma penitenciária” (p. 140). Isto é, aquelas pessoas, julgadoras e também certas sob os valores morais, são as verdadeiramente presas; são as verdadeiramente loucas. Aquele prédio e as pessoas que ali trabalhavam tinham características negativas, diferentemente de Raul e Saul, que eram maiores e, como diversas vezes frisado no texto, eram mais “altos e altivos”. O conto termina descrevendo a partida de Raul e Saul do lugar que não os soube comportar, e no qual, ao mesmo tempo, descabiam. Eles vão embora como se fossem menores, inferiores, criminosos, errados, mas, contraditoriamente, quem fica com todas estas características são os que continuam a trabalhar naquela repartição. O narrador de “Aqueles dois” relata que todos que ali continuaram seriam – e foram – infelizes para sempre, deixando de modo implícito, ao contrário deles, que Raul e Saul foram felizes. Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens do céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram. (Abreu, 2005, p. 140) Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 88


Isto posto, o conto “Aqueles dois” não vem nos incitar sobre a relação amorosa entre Raul e Saul; não faz do leitor um juiz que decide se eram amantes ou não. Mas vem trazer a reflexão sobre a condenação de pessoas que não vivem como as demais; que, sob a ótica do conservadorismo, excedem a normalidade, os valores morais e, por isso, devem ser contidas. Raul e Saul, aos olhos viciados e viciosos dos outros, destacaram-se do centro e, assim, foram marginalizados de forma brutal. Os elementos que compõem o texto, engenhosamente articulados, confirmam ainda mais a conexão entre Raul e Saul. As canções, como “Tu me acostumbraste”, “Contigo em la distancia” e “Noche de ronda”, além de “Nossas vidas”, cantada por Dalva de Oliveira, têm claramente certo tom piegas, com expressão de saudade, tristeza e melancolia, e também profundo teor romântico. Junto com elas, o conto apresenta ao seu leitor alguns filmes que se ligam intimamente com os personagens centrais: “Infâmia” (The children’s hour), de 1961, de William Wyler, adaptado da peça de Lilian Hellman, conta a história de duas professoras que são acusadas por uma aluna de terem um relacionamento homoafetivo; outro filme citado é “Vagas estrelas de Ursa”, de 1965, de Luchino Visconti, que, resumidamente, cerca seu núcleo sobre o segredo entre Andrew e seu cunhado. Por fim, no conto ainda é possível ver famosas obras de arte, como “Nascimento de Vênus”, de Botticelli, fazendo uma possível referência à pureza, à beleza, e, possivelmente, à paixão. A escrita de Caio Fernando Abreu não é considerada difícil. Contrariamente, o autor consegue, por palavras simples e mais próximas da informalidade, cativar e seduzir seu leitor. Os recursos estilísticos usados pelo narrador de sua obra também merecem atenção. Não só no conto “Aqueles dois”, mas em toda a coletânea Morangos Mofados, o narrador abusa de certa pontuação; de certas sequências de vocábulos; de figuras de estilo, em nível fônico, semântico, sintático; de processos enfáticos. “Mas um pouco antes, sem saber por quê, começou a chorar sentindose só e pobre e feio e infeliz e confuso e abandonado e bêbado e Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 89


triste, triste, triste” (Abreu, 2005, p. 139). Esse recurso enfático, dando também fluidez e continuidade ao texto, acontece igualmente em outros contos do livro, como, por exemplo, “Os Sobreviventes”, “Além do ponto”, “Os companheiros”, “Eu, tu, ele”. Todo o trabalho com a linguagem, os elementos modeladores do texto, a articulação das palavras, aponta Caio Fernando Abreu como um delicado poeta dentro da prosa e lança o livro Morangos Mofados não apenas como uma coletânea de contos, mas como uma obra engenhosamente articulada e orquestrada, formando um todo altamente poético, elaborado, minuciosamente crítico e descritivo nas suas linhas e, principalmente, entrelinhas. Pela riqueza, beleza, sensibilidade, técnica, mas também pelo cru, cruel, Caio Fernando Abreu vem se destacando no cenário literário brasileiro atual. Com uma escrita basicamente voltada para os contos – essa narrativa pequena, mas profundamente concentrada –, o autor de Morangos Mofados cativa seu leitor via versos altamente sentimentais, que descrevem o mais profundo sentimento, que caracterizam a vida de forma clara, como se lesse o eu de cada um. O livro supracitado é todo construído de forma que expõe a dor mais verdadeira do ser humano, exaltando suas intrigas, acentuando suas paixões. À vista disso, o conto “Aqueles dois”, bem como os outros desta coletânea e o livro como um todo, constituem uma estrutura em si mesmos, que apresenta grande coerência interna. Desse movimento que busca sua própria forma, atentando-se para os torneados conjuntos das relações arquitetônicas, nasce a construção do (des)sabor d’Aqueles Dois Morangos Mofados.

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Referências ABREU, Caio Fernando. Morangos Mofados. Rio de Janeiro: Agir, 2005. ABREU, Caio Fernando. Cartas – Caio Fernando Abreu. Organização de Ítalo Moriconi. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. BERNARD, Suzanne. Le poème em prose. De Baudelaire jusqu’à nos jours. Paris, Librairie Nizet, 1959. DIP, Paula. Para sempre teu, Caio F. Cartas, conversas, memórias de Caio Fernando Abreu. – 3ª edição – Rio de Janeiro: Record, 2011. PORTO, Luana Teixeira. Fragmentos e diálogos: história e intertextualidade no conto de Caio Fernando Abreu. 2011. Tese de doutorado em Literatura Comparada. Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2011.

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Elementos poéticos de um conto de Caio Fernando Abreu e sua tradução para a língua inglesa Lara Souto Santana19 Resumo: Caio Fernando Abreu (1948-1996) tem sua obra composta predominantemente por contos. Este artigo pretende analisar os aspectos poéticos que perpassam um deles: “Sem Ana, blues”, publicado no livro Os dragões não conhecem o paraíso em 1988 e verificar de que forma sua tradução para língua inglesa – “Blues without Ana” –, feita por David Treece e publicada no livro Dragons... em 1990 na Inglaterra, foi apresentada ao leitor do conto na língua citada. Tais elementos fazem a narrativa ser mais que uma história sobre solidão. Lembramos ainda que nossas observações se darão sempre sob ponto de vista de leitores do texto em língua portuguesa. Palavras-chave: Sem Ana, Blues, Blues without Ana, Caio Fernando Abreu, tradução, poesia.

Abstract: Caio Fernando Abreu (1948-1996) wrote many short stories. This article intends to analyze one of them, “Sem Ana, blues” which was published in Os dragões não conhecem o paraíso in 1988 and its translation into English, -“Blues without Ana”-, by David Treece published in Dragons…in 1990 in England. The analysis will demonstrate some aspects related to poetry and in which way they were presented to the readers of this short story in the English language. These elements make the narrative be more than an ordinary story about loneliness. It is also important to mention that our observations are always made as readers of the text written in Portuguese. Keywords: Sem Ana, blues. Blues without Ana. Caio Fernando Abreu. Translation. Poetry..

19Mestre

pela Universidade de São Paulo na área de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês.

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Introdução A escritora Lygia Fagundes Telles, no prefácio do livro O Ovo apunhalado, de Caio Fernando Abreu, diz “O que me inquieta e fascina nos contos de Caio Fernando Abreu é...”20 A literatura, de fato, causa-nos inquietações, e este artigo só existe porque o conto “Sem Ana, blues”, que compõe o livro Os dragões não conhecem o paraíso, do autor já citado, possui, dentre outros aspectos, uma linguagem que, de certa forma, provoca-nos e, ao mesmo tempo, chama-nos atenção. Os recursos poéticos presentes na prosa de Abreu foram levantados primeiramente a partir da narrativa em língua portuguesa. Em seguida, analisamos a tradução do conto para língua inglesa feita por David Treece, e observamos, sob ponto de vista de leitores de língua portuguesa se esses recursos foram mantidos. Em alguns momentos, utilizaremos os termos “língua de partida” e “língua de chegada” para nos referirmos à língua portuguesa e à língua inglesa, respectivamente. Não pretendemos julgar a qualidade da tradução de “Sem Ana, blues”, nossa intenção é fazer alguns levantamentos das escolhas do tradutor e verificar se os recursos poéticos utilizados por Caio Fernando Abreu em língua portuguesa produzem o mesmo efeito de expressão ou estão presentes no conto em língua inglesa.

Caio Fernando Abreu (1948-1996) Caio Fernando Loureiro de Abreu21 nasce em setembro de 1948 na cidade de Santiago do Boqueirão, interior do Rio Grande TELLES, 2001, p.13. Serviram-nos de fontes para contar uma história de Caio Fernando Abreu, as seguintes obras: O poeta negro, de José Castelo (In: Inventário das sombras. Rio de Janeiro: Record, 1999) e uma publicação da Secretaria de Estado da Cultura. Instituto Estadual do Livro. Caio Fernando Abreu 2.ed. Porto Alegre: ULBRA: IEL, 1995. (autores Gaúchos; v. 19). 20 21

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do Sul. Muda-se para Porto Alegre para fazer seus estudos secundários e lá tem seus primeiros contos publicados. Em 1970, já vivendo em São Paulo publica Inventário do irremediável, um livro de contos, e o romance Limite branco. Em seguida vieram: O Ovo Apunhalado, Pedras de Calcutá, Morangos mofados - livro mais famoso de sua carreira-, Triângulo das águas e em 1988, o livro Os dragões não conhecem o paraíso é publicado pela Companhia das Letras. Neste mesmo ano, Regina Zilberman organiza a antologia de contos Mel & Girassóis. No ano seguinte, a editora Globo publica As frangas, único livro do autor dedicado ao público infantil. Em 1990, o romance Onde andará Dulce Veiga? é lançado. Nos anos seguintes, o autor viaja à Europa para lançar as traduções de seus livros. Além disso, também escreve crônicas para os jornais O Estado de São Paulo e Zero Hora. Volta da França em 1994 e anuncia, na crônica ”última carta para além dos muros”: “Voltei da Europa em junho me sentindo doente. [...] Procurei um médico e, à revelia dele, fiz O Teste. Aquele. Depois de uma semana de espera agoniada, o resultado: HIV Positivo.”22. Volta para a casa dos pais em Porto Alegre, onde se põe a revisar livros do início de sua carreira literária, além de organizar Ovelhas negras, último livro publicado antes de sua morte. Caio Fernando Abreu faleceu em fevereiro de 1996, menos de dois anos depois do diagnóstico positivo do vírus da AIDS. Depois de sua morte, foram lançados livros inéditos, a saber: Pequenas epifanias (1996), com crônicas publicadas nos jornais O Estado de S. Paulo e Zero Hora, Estranhos estrangeiros, coletânea de contos e novelas (1996), Teatro completo (1997), Cartas (2002), A vida gritando nos cantos23 (2012), uma nova coletânea com crônicas publicadas no jornal O Estado de S. Paulo, e Poesias nunca publicadas24, com poemas recolhidos do acervo de Caio Fernando ABREU, 2006, p.212. Organização minha e de Liana Farias. 24 Organização de Márcia Ivana de Lima e Silva e Letícia da Costa Chaplin. 22 23

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Abreu, cuja previsão de lançamento era 2012, porém, por uma falha editorial, teve sua publicação cancelada e, até o momento, não tem previsão de lançamento. Além das antologias: Fragmentos: 8 histórias e um conto inédito (2000), Melhores contos (2006), Caio 3D: o essencial da década de 1970 (2006), Caio 3D: o essencial da década de 1980 (2005), Caio 3D: o essencial da década de 1990 (2006), Além do ponto e outros contos (2009), uma coletânea com fragmentos da obra do autor que tanto se popularizou na internet: #Caio Fernando Abreu de A a Z (2013) e O melhor de Caio Fernando Abreu: contos e crônicas (2015).

David Treece David Treece25 atualmente é diretor do Departamento de estudos portugueses e brasileiros do Centro de Cultura e Sociedade brasileira no King’s College. Em entrevista ele comenta que seu interesse pelo Brasil se deu pelo fato de, em Liverpool, ele ter tido como orientador John Gledson, um dos maiores especialistas em Machado de Assis. Além de ter traduzido para a língua inglesa o livro Os dragões não conhecem o paraíso, de Caio Fernando Abreu, David Treece traduziu os seguintes autores: João Gilberto Noll, Ana Cristina César e João Guimarães Rosa. Atualmente, além de suas atividades acadêmicas, David Treece dedica-se a tradução de canções brasileiras para a língua inglesa.

A história de “Sem Ana, blues” O livro Os dragões não conhecem o paraíso, como já mencionamos, foi publicado em 1988 pela Companhia das Letras. O volume é composto por treze histórias que, segundo o autor, giram “sempre em torno de um mesmo tema: amor. Amor e sexo, Todas as informações sobre David Treece foram obtidas nos sites: disponíveis em: <http://www.kcl.ac.uk/schools/humanities/depts/pobrst/staff/treece> e <http://www.oilondres.com.br/estudos/davidtreece.htm>. Acesso em 07/05/2009. 25

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amor e morte, amor e abandono, amor e alegria, amor e memória, amor e medo, amor e loucura.”26. O autor diz ainda que o livro pode ser uma espécie de romance-móbile. Um romance desmontável, onde essas 13 peças talvez possam completar-se, esclarecer-se, ampliar-se ou remeter-se de muitas maneiras umas às outras, para formarem uma espécie de todo. Aparentemente fragmentado mas, de algum modo — suponho — completo27. “Sem Ana, blues”, nosso objeto de estudo, narra a história de um homem de meia-idade que parece ter sido abandonado pela mulher amada, Ana. Em seu apartamento, ele só tem nas mãos um bilhete deixado por ela. O narrador em primeira pessoa descreve de que forma reagiu ao bilhete de Ana: Eu fiquei muito tempo parado no meio da sala do apartamento, o último bilhete de Ana nas mãos, olhando pela janela os dourados e o vermelho do céu. E lembro que pensei agora o telefone vai tocar, e o telefone não tocou [...] e eu continuei por muito tempo sem salvação parado ali no centro da sala que começava a ficar azulada pela noite, feito o interior de um aquário, o bilhete de Ana nas mãos, sem fazer absolutamente nada além de respirar.28 O narrador sente falta de Ana e vive momentos de profunda tristeza. De todos aqueles dias seguintes, só guardei três gostos na boca - de vodca, de lágrima e de café. [...] O gosto de lágrimas chegava nas madrugadas, quando conseguia me arrastar da sala para o quarto e me jogava na cama grande, sem Ana, cujos lençóis não troquei durante muito tempo [...] e chorava e chorava e chorava até dormir sonos de pedra sem sonhos.29 ABREU, 2005, p. 19. Idem, 2005, p. 19. 28 Idem, 1988, pp.41-42. 29 Idem, Ibidem, pp.42-43. 26 27

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Depois de um tempo, tenta se reerguer da fase de depressão e procura se livrar de Ana e de tudo que o fazia lembrar-se dela: troca os móveis de lugar, compra coisas novas, passa a trazer mulheres completamente diferentes de Ana para casa, a fazer atividades físicas, viagens e exercícios para esquecêla, além de mudar sua aparência e sua postura com relação a si mesmo. Apesar de todas as mudanças, ele parece não se sentir livre dessa falta de Ana e do dia em que fora abandonado por ela. sempre tenho a estranha sensação, embora tudo tenha mudado e eu esteja muito bem agora, de que este dia ainda continua o mesmo, como um relógio enguiçado preso no mesmo momento - aquele. Como se quando Ana me deixou não houvesse depois, e eu permanecesse até hoje aqui parado no meio da sala do apartamento que era o nosso, com o último bilhete dela nas mãos. A gravata levemente afrouxada no pescoço, fazia e faz tanto calor que sinto o suor escorrer pelo corpo todo, descer pelo peito, pelos braços, até chegar aos pulsos e escorregar pela palma das mãos que seguram o último bilhete de Ana, dissolvendo a tinta das letras com que ela compôs palavras que se apagam aos poucos, lavadas pelo suor, mas que não consigo esquecer, por mais que o tempo passe e eu, de qualquer jeito e sem Ana, vá em frente.30 Sabemos que o tempo passou, porque ouvimos já os seus lamentos; sentimos seu desespero, os cheiros impregnados na história que ele nunca havia dividido com ninguém. O conto chega ao fim.

Elementos poéticos: “Sem Ana, Blues” x “Blues without Ana” Quan-do-A-na-me-dei-xou... Sete sílabas, como nos versos em redondilha maior, muito comum em poemas e canções. 30

Idem, Ibidem, pp.46-47.

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Repete-se como um refrão, alternando com depois que Ana me deixou... pontuando o conto e marcando o ritmo. A narrativa, dizendo do modo mais simples, é uma sucessão de acontecimentos. O conto é uma narrativa breve e, segundo Angélica Soares, esse é um tipo de gênero literário, em que “pela pequena extensão, sobressai o caráter poético geralmente atribuído a essa forma narrativa.”31. A linguagem de “Sem Ana, blues” é literária, o que significa dizer que ela “é encarada não como simples instrumento de comunicação, mas como o próprio objeto de expressão estética. O efeito da linguagem como tal é sempre um efeito poético”32. Importa menos o que se conta que a combinação das palavras que contam. Nelas valem todas as possibilidades da ficção, e estão em jogo “as seduções do jogo verbal”33. Alfredo Bosi tem razão quando afirma que a escolha do contista é calculada, daí seu universo não ser tão “aleatório ou inocente”34. Em entrevista, Caio Fernando Abreu expõe esse tipo de preocupação, e afirma: “Eu trabalho o texto lendo em voz alta, gravando, escandindo o ritmo e as cadências. Mas eu não sei exatamente quando a coisa, a frase, está redonda”35. Nessa coisa-frase – matéria do conto – podemos notar recursos como a aliteração, definida como “a repetição insistente dos mesmos sons consonantais, podendo ser eles iniciais, ou integrantes da sílaba tônica, ou distribuídos mais irregularmente em vocábulos próximos”36. É o que ressoa em: [...] embora tenha a delicadeza de jamais tocar no assunto. Porque nunca contei à ninguém de Ana. Nunca ninguém soube de Ana em minha vida. Nunca dividi Ana com ninguém. Nunca ninguém jamais soube de tudo isso ou SOARES, 2005, p. 55. GUIMARÃES, 1988, p. 81. 33 BOSI, 1974, p. 7. 34 Idem, 1974, p. 8. 35 SECRETARIA, 1995, V.19, p. 5. 36 MARTINS, 2003, p. 38. 31 32

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aquilo que aconteceu quando e depois que Ana me deixou.37 As nasais /m/ e /n/ espalham-se como se partissem do nome (de) Ana, principalmente em palavras negativas: nunca, ninguém / nunca ninguém jamais... Ana quando. Essas consoantes, para Martins, podem ser ditas “moles, doces”, e “se harmonizam com as palavras e enunciados.”38 Na língua de chegada, talvez com menos força, o conto manteve o efeito citado: “The truth is that I’ve never told anyone about Ana. No one has ever found out her. I’ve never shared her with anyone, and nobody has ever found out about what happened when and after Ana left me.”39 Em outro trecho, é outro o efeito produzido pela aliteração. O narrador fala dos dias seguintes à partida de Ana, em que chorava e chorava “até dormir sonos de pedra sem sonhos. O gosto de café sem açúcar acompanhava manhãs de ressaca e tardes na agência, entre textos de publicidade e sustos a cada vez que o telefone tocava.”40. Martins destaca, com relação às consoantes constritivas, o “seu caráter contínuo”, elas “sugerem sons de certa duração, bem como as coisas e fenômenos que os produzem”41. No trecho equivalente em língua inglesa, porém, não encontramos a mesma incidência do efeito sonoro produzido na língua de partida: “The taste of sugarless coffee followed me through the hangover mornings and afternoons in the agency, amongst ad copy and jumping every time the phone rang.”.42 Entretanto, logo em seguida nota-se a aliteração com o som de /s/: ABREU, 1988, p. 46. MARTINS, 2003, p. 37. 39 ABREU, 1990, p. 35. 40 Idem, 1988, p. 43. 41 MARTINS, 2003, p. 35. 42 ABREU, 1990, p. 32. 37 38

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he sick feeling in the pit of my stomach and my puffy eyes, especially on Fridays, just before those Saturdays and Sundays without Ana ever again came crashing down on me, there would come the certainty that suddenly, normal as anything, someone would say43 Além dos sons figurados, apontados acima, marcas registradas da poesia e que imprimem musicalidade ao conto, temos outras expressões figuradas, classificadas de diferentes formas, segundo diferentes autores44. Seguimos, neste artigo, as propostas de Garcia (2003) e de Brandão (1989). A repetição é uma marca forte no conto. A primeira frase, Quando Ana me deixou, vai ser retomada diversas vezes, alternando com depois que Ana me deixou, que podem ser vistas como um refrão, além de reforçar a idéia do abandono e de alterarem a passagem do tempo. A repetição também indica a continuidade das ações e, ao mesmo tempo, enfatiza-as. “e chorava e chorava e chorava até dormir sonos de pedra sem sonhos”45; e “Vomitava e vomitava de madrugada [...] e só sabia perguntar por que, por que, por que...”46 Reproduzimos aqui as repetições - mantidas na língua de chegada – com a finalidade de expor as escolhas feitas pelo tradutor: “and weep and weep and weep”47 “I would vomit and vomit in the early morning (…) and all I could ask was why, why, why”48 Idem, Ibidem, p. 32. Antônio Soares Amora, por exemplo, em Teoria da literatura (1969, pp. 135-141), divide-as em figuras: pleonásticas (de repetição); elípticas; de ordem inversa; de comparação e de contraste; e tropos: metáfora, sinédoque e metonímia. Para Bechara (2004), os tropos são alterações semânticas (pp. 397-405), e as figuras que repetem, omitem, invertem ou interrompem a ordem dos elementos são figuras de sintaxe (pp. 592-598). As figuras de pensamento – antítese, ironia, eufemismo, gradação, hipérbole – não são consideradas pelo autor. 45 ABREU, 1988, p. 43. 46 Idem, 1988, p. 43. 47 Idem, 1990, p.32 48 Idem, Ibidem, p.33. 43 44

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Vale ressaltar que a importância em destacar aqui as figuras é mostrar como elas se constroem numa freqüência que parece entrar em harmonia com a memória corporal do narrador, trazendo à tona as sensações de um corpo “parado na sala do apartamento”49; “parado aqui no meio da sala”50; tendo na boca os “gostos de vodca, lágrima e café, entre as pontadas na cabeça, o nojo da boca do estômago e os olhos inchados”51; sentindo-se “uma bolha opaca de sabão”52. Todos os sentidos se fundem, inclusive em língua inglesa,53 sinestesicamente nesse momentoquando sem Ana, que abre e fecha o conto. Entre as figuras que se destacam na composição do conto encontra-se a comparação, definida como “uma metáfora explicitada, que mantém os elos entre os termos comparados”54: “uma vida com ou sem alguém como Ana dentro dela”55; “abraçava os travesseiros como se fossem o corpo dela”56; “acontecia às vezes de o pequeno corredor do apartamento parecer enorme como o de um transatlântico em plena tempestade”57; “abandonado no meio do deserto como um santo que Deus largou em plena penitência”58. E as comparações culminam no dia que: ainda continua o mesmo, como um relógio enguiçado preso no mesmo momento - aquele. Como se quando Ana me deixou não houvesse depois, e eu permanecesse até hoje aqui parado no meio da sala do apartamento que era Idem, 1988, p.41. Idem, 1988, pp.46-47. 51 Idem, Ibidem, p. 43. 52 Idem, Ibidem, p.47. 53 Para que este artigo não se torne extenso, julgamos que a citação dos 3 trechos em língua inglesa não se faz necessária. 54 BECHARA, 2004, p. 398. 55 ABREU, 1988, p. 41. 56 Idem, Ibidem, p. 43. 57 Idem, Ibidem, p. 43. 58 Idem, Ibidem, p. 44. 49 50

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o nosso, com o último bilhete dela nas mãos.59 (grifos nossos). Os trechos acima, quando traduzidos para o inglês, mantiveram as comparações com as seguintes expressões: “someone like”60, “as if”61, “would seem as”62 e “like a saint”63. Citamos o último trecho integralmente, pois o que nos chama atenção não é a comparação, mas sim “sequel”, pois embora possamos dizer que não houve comprometimento do significado, “sequel” causa uma espécie de quebra do efeito “when/after” espalhados ao longo da narrativa. this day is still the same one, like a clock which has stopped, stuck at the same moment — that moment. As if when Ana left me there was no sequel and I just went on standing here until today in the middle of the living-room which used to be ours, with her last note in my hands.64 (grifos nossos). A comparação vai se tornando mais sutil, e vai trabalhar junto com outra figura fundamental nesse conto: a metáfora, que, segundo Brandão, pode ser definida como “um sintagma em que se manifesta a identidade de dois significantes, junto à nãoidentidade dos dois significados a eles correspondentes, estabelecendo uma verdadeira contradição”65. Para esse teórico, a metáfora é “a relação” que “permite praticamente uma equivalência entre toda e qualquer significação”, e temos então, nesse caso, “o maior grau de abertura possível”66. Vejamos o que acontece, por exemplo, com os dois excertos - primeiro na língua de partida e depois na língua de chegada - que se seguem. Idem, Ibidem, pp. 46-47. Idem, 1990 , p.30. 61 Idem, Ibidem, p.32. 62 Idem, Ibidem, p.32. 63 Idem, Ibidem, p.33. 64 Idem, Ibidem, p. 36. 65 BRANDÃO, 1989, p.76. 66 Idem, 1989, p.21. 59 60

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O primeiro está no terceiro parágrafo. Depois que situa o tempo no momento quando Ana me deixou, o narrador anuncia, abrindo o terceiro parágrafo, que vai falar do momento depois que Ana me deixou. Anuncia e pára imediatamente, para voltar ainda atrás, e contar que no momento-quando não acontece nada dentro dele, somente a ausência de Ana, igual a uma bolha de sabão redonda, luminosa, suspensa no ar, bem no centro da sala do apartamento, e dentro dessa bolha é que estou parado também, suspenso também, mas não luminoso, ao contrário, opaco, fosco, sem brilho e ainda vestido com um dos ternos que uso para trabalhar, apenas o nó da gravata levemente afrouxado, porque é começo de verão67 (grifos nossos). ………………………………………………………………….. nothing takes place in the moment- when, just Ana’s absence, like a round, shining soap bubble suspended in space, right in the middle of the living room, and I’m standing inside that bubble too, suspended too, but not shining, quite the opposite, opaque, dim, dull and still dressed in one of the suits I wear to work, just the knot of my tie slightly loosened, because it’s the beginning of summer68 (grifos nossos) A ausência de Ana é igual a uma bolha de sabão, e ele está dentro dela, da bolha-ausência. No último parágrafo, encerrando o conto, é possível perceber a metamorfose pela qual passou/está passando o narrador: Para sempre então, agora, me sinto uma bolha opaca de sabão, suspensa ali no centro da sala do apartamento, à espera de que entre um vento súbito pela janela aberta para levá-la dali, essa bolha estúpida, ou que alguém espete nela um alfinete, para que de repente estoure nesse 67 68

ABREU, 1988, p. 42. Idem, 1990, p. 31.

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ar azulado que mais parece o interior de um aquário, e desapareça sem deixar marcas69. (grifos nossos). ………………………………………………………………….. forever, now, I feel like an opaque soap bubble, suspended in the middle of the living-room, waiting for a chance gust of wind from the open window to carry it off, or for someone to prick that stupid bubble with a pin and make it burst suddenly in the bluish air that looks more like something inside a fish tank, and disappear without leaving a trace.70 (grifos nossos) Podemos considerar que “Sem Ana, blues” tem duas metáforas centrais: a da bolha – porque, no final, o narrador não está mais dentro da bolha, mas sente-se a própria bolha que, por sua vez, se torna opaca como ele – e a do naufrágio: no meio daquele momento entre a vodca e a lágrima, me arrastava da sala para o quarto, acontecia às vezes de o pequeno corredor do apartamento parecer enorme como o de um transatlântico em plena tempestade. Entre a sala e o quarto, em plena tempestade, oscilando no interior do transatlântico eu não conseguia evitar71 (grifos nossos). ...................................................................................................... Because halfway between the vodka and the tears, when I crawled from the living room into the bedroom, sometimes the little corridor of the apartment would seem as huge as an ocean liner’s at the height of a storm. Between the living room and the bedroom, at the height of the storm, swaying inside the ocean liner, I couldn’t help72 (grifos nossos). Nesse trecho já acontece uma passagem da comparação o corredor do apartamento com o de um transatlântico. A metáfora surge com todo o perigo do naufrágio: “Trair Ana, que me Idem, 1988, p. 48. Idem, 1990, p. 36. 71 Idem, 1988, p. 43. 72 Idem, 1990, p. 32. 69 70

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abandonara, doía mais que ela ter me abandonado, sem se importar que eu naufragasse toda noite no enorme corredor de transatlântico daquele apartamento em plena tempestade, sem salva-vidas.”73 Em língua inglesa, “went down” não foi modalizado, - que seria uma possibilidade para a tradução de verbos do modo subjuntivo em língua portuguesa -, Dessa forma, o narrador naufraga e Ana somente o abandona, “sem se importar” foi omitido pelo tradutor. Vejamos, então: “Betraying Ana (who had deserted me) hurt more than her desertion but I still went down in that shipwreck every night, in the huge corridor on the ocean liner in that apartment at the height of the storm and without a life jacket.”74 A narrativa também é feita de metonímias que são construídas de “relações reais de ordem qualitativa que levam a empregar metonimicamente uma palavra por outra, a designar uma coisa com o nome de outra”75. As metonímias se sucedem nos parágrafos em que o narrador se precipita em tentar fugir do vazio da ausência de Ana: “comprei um Kutka e um Gregório, um forno microondas, fitas de vídeo, duas dúzias de copos de cristal, e comecei a trazer outras mulheres para casa”76; e “como colocava pedras de gelo no meu escocês”77. O primeiro exemplo em língua inglesa nos chama atenção, pois o tradutor opta por utilizar “bought some pieces by Kutka and Gregório”78, deste modo, já não se cria mais o conhecido efeito da metonímia de “autor pela obra”79. Já no segundo trecho, entretanto, temos “in the way he’d put ice cubes in my Scotch”80. Idem, 1988, p. 45. Idem, 1990, p.34. 75 GARCIA, 2003, pp. 115-116. 76 ABREU, 1988, p. 44. 77 Idem, Ibidem, p. 46. 78 Idem, 1990, p. 33. 79 GARCIA, 2003, p. 115. 80 ABREU, 1990, p. 35. 73 74

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Tanto na língua de partida quanto na língua de chegada notamos que quando o narrador tenta se esquecer de Ana – especialmente quando traz mulheres para casa –, todas as ações se sucedem gradativamente em alta velocidade, vejamos: Vieram Gina, a das calcinhas pretas, e Lilian, a dos olhos verdes frios, e Beth, das coxas grossas e pés gelados, e Marilene, que fumava demais e tinha um filho, e Mariko, a nissei que queria ser loura, e também Marta, Luiza, Creuza, Júlia, Débora, Vivian, Paula, Teresa, Luciana, Solange, Maristela, Adriana, Vera, Silvia, Neusa, Denise, Karina, Cristina, Márcia, Nadir, Aline e mais de 15 Marias, e uma por uma das garotas ousadas da Rua Augusta, com suas botinhas brancas e minissaia de couro, e destas moças que anunciam especialidades nos jornais.81 ...................................................................................................... Gina came over, the one with the black knickers, and Lilian, the one with the cold green eyes, and Beth, with the plump thighs and icy feet, and Marlene, who smoked too much and had a son, and Mariko, the second-generation Japanese who wanted to be blonde, and Marta, Luiza, Creuza, Julia, Deborah, Vivian, Paula, Teresa, Luciana, Solange, Maristela, Adriana, Vera, Silvia, Neusa, Denise, Karina, Cristina, Marcia, Nadir, Aline too and more than fifteen Marias , and one by one all the tarty little darlings from Augusta Street, with their white boots and leather miniskirts, and the girls who advertise ‘extras’ in the newspapers.82 Nesses trechos há uma gradação, que marca uma impessoalização em relação ao modo de ver e caracterizar as mulheres com quem o narrador se relaciona. As características das moças são cada vez menos importantes, até o ponto em que não passam de simples anúncios de jornais. 81 82

Idem, 1988, p. 46. Idem, 1990, p. 34.

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No ciclo seguinte, tanto em “Sem Ana, blues” quanto em “Blues without Ana”, encontramos outro tipo de gradação: “and suddenly maybe Carla, Vicente’s wife, so understanding and mature, and unexpectedly Mariana, Vicente’s sister, so compliant and natural in her metallic dental floss bikini and, why not, eventually Vicente himself”83 e “e de repente quem sabe Carla, mulher de Vicente, tão compreensiva e madura, inesperadamente, Mariana, irmã de Vicente, transponível e natural em seu fio dental metálico, por que não, afinal, o próprio Vicente”84... nenhuma possibilidade é descartada.

Considerações Finais No último parágrafo do conto, o narrador fala das palavras duras com as quais Ana escrevera o bilhete deixado para ele. E do que é feita a literatura senão de palavras? “Que estranha potência a vossa”85 – as palavras de Caio Fernando Abreu, que escreveu e publicou mais de cem contos em livros, dão a “Sem Ana, blues” grande valor literário; valor que aqui tentamos apontar. Os elementos aqui estudados fazem-nos observar que Caio Fernando Abreu, em “Sem Ana, blues”, acrescenta à estrutura corrente de um conto recursos extremamente poéticos, que proporcionam ao leitor o sentimento de proximidade ao sofrimento pelo qual o narrador passa. “Blues without Ana”, a tradução de “Sem Ana, blues” para língua inglesa, foi utilizada para que pudéssemos observar as escolhas do tradutor, David Treece, se a poeticidade da prosa de Caio Fernando Abreu foi mantida, de modo que o leitor do conto em inglês tenha também o sentimento de proximidade mencionado acima. Salientamos ainda que privilegiamos os recursos sonoros e lexicais presentes na narrativa. Outros elementos permanecem à Idem, 1990, p.36. ABREU, 1988, p. 47. 85 Verso do Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles. 83 84

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espera de quem os queiram explorar. Uma escolha se fez necessária, pois dentre as inquietações e descobertas proporcionadas por leituras e reflexões feitas a partir de “Sem Ana, blues”, alguns caminhos deixaram de ser percorridos. Talvez em um “momento-depois”86, possamos ter oportunidades tanto para enveredarmos por caminhos não percorridos quanto para nos aprofundarmos nos já “conhecidos” uma vez que a narrativa de Caio Fernando Abreu pode ser considerada como “uma rica arquitetura de detalhes”87 e nela ainda há muitos aspectos a serem estudados.

Referências ABREU, Caio Fernando. Caio 3D – O essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005. _____. Os dragões não conhecem o paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. _____. Dragons. Trad. David Treece. London: Boulevard books, 1990. _____. Pequenas epifanias. Gil França Veloso (org). Rio de Janeiro: Agir, 2006. ALLEGRO, Alzira. Leite. Vieira. . Do conto e sua tradução: algumas implicações (e provocações) do gênero. Revista Funadesp, v.2, 2007. p. 13-35. AMORA, A. S. Teoria da literatura. 8ª ed. Revista. São Paulo: Clássico-Científica, 1969. BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª ed. Revista e ampliada. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004. BOSI, Alfredo (Org.). Situação e forma do conto brasileiro. In: O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix/EDusp, 1974. BRANDÃO, Roberto de Oliveira. As Figuras de linguagem. São Paulo: Ática, 1989. CASTELLO, José. O poeta negro. In: _________. Inventário das sombras. Rio de Janeiro: Record, 1999. GARCIA, Moacyr Othon. Comunicação em Prosa Moderna. 23ª. ed. Rio de Janeiro, FGV, 2003. GUIMARÃES, Elisa. Linguagem literária. In: Língua portuguesa, 2ª ed.. São Paulo: FDE, 1988. MARTINS SANT’ANNA, Nilce. Introdução à Estilística. 3. ed. São Paulo: T.A Queiroz, 2003. 86 87

ABREU, 1988, p.42. ALLEGRO, 2007, p.13

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SECRETARIA de Estado da Cultura. Instituto Estadual do Livro. Caio Fernando Abreu 2.ed. Porto Alegre: ULBRA: IEL, 1995. (autores Gaúchos; v. 19). TELLES, Lygia Fagundes. Prefácio. In: ABREU< Caio Fernando. O ovo apunhalado. Porto Alegre: L&PM, 2001. SOARES, Angélica, Gêneros literários, 5ª. ed. São Paulo: Ática, 2005.

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Uma leitura do conto “Corujas”, de Caio Fernando Abreu, através da filosofia de Jacques Derrida Simone Damasceno Guardalupe88

Resumo: O presente trabalho pretende analisar o conto “Corujas”, do escritor Caio Fernando Abreu, através da filosofia de Jacques Derrida. Em suas palestras, o filósofo francês apresenta conceitos pertinentes no que tange à categoria da alteridade, como a percepção, a hospitalidade e a animalidade. Tais conceitos podem ser observados no conto “Corujas”, pois nesse texto há uma crítica ao comportamento do homem diante do outro, que, nesse caso, se trata de um casal de corujas. Palavras-chave: animal, ser humano, consciência, violência, alteridade.

Abstract: This work intends to analyze the short story "Owls", the writer Caio Fernando Abreu, through the philosophy of Jacques Derrida. In their talks, the French philosopher presents relevant concepts in relation to the category of otherness, as perception, hospitality and animality. These concepts can be seen in the story "Owls", because in this text there is a criticism of human behavior on the other, in this case, it is a couple of owls. Keywords: animal, human being, consciousness, violence, otherness.

88Mestre

em História da Literatura pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG).

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O filósofo francês Jacques Derrida, filósofo da desconstrução, dedicou-se, em diversos textos de amplo espectro, a abalar as dicotomias presentes nas correntes de pensamento. Derrida apresenta em suas palestras conceitos pertinentes no que tange à categoria da alteridade, como a percepção, a hospitalidade e a animalidade. Tais conceitos podem ser observados no conto “Corujas”, do escritor Caio Fernando Abreu. Nessa obra há uma crítica ao comportamento do homem diante do outro, que, nesse caso, se trata de um casal de corujas. Observa-se que a percepção, a memória e a confissão, temas adjacentes à animalidade, são questões levantadas pelo escritor através do texto. Além disso, temas como a percepção e a ética em relação aos animais também podem ser observados em “Corujas” por meio da consciência do narrador sobre a acolhida desses animais em sua casa e do tratamento a eles dispensado. Caio Fernando Abreu apresenta em sua literatura uma forte presença de temas ligados à percepção, principalmente em relação ao olhar o outro, o que pode ser associado à alteridade. Para o presente trabalho, propomos a análise de um texto específico do escritor sul-rio-grandense, o qual envolve a alteridade relacionando-a à questão do animal. O conto “Corujas”, presente na obra O inventário do irremediável,89 de 1995, apresenta-nos a narração de um homem adulto que relembra e confessa as atitudes dele e de sua família diante da chegada de um casal de corujas em sua casa. E, através dessas memórias, o narrador reflete sobre o egoísmo, a falta de consideração em relação ao outro, a crueldade do ser humano que se utiliza dos outros seres para obter vantagens, como a retirada do habitat natural das corujas para caçar baratas na casa de sua família. Desse modo, a percepção do outro, a hospitalidade e a ética no que se refere ao tratamento dispensado aos animais são Essa obra do escritor Caio Fernando Abreu foi publicada em 1970 sob o título de Inventário do Irremediável e reeditada e republicada pelo escritor em 1995, sendo alterado o título da obra para o Inventário do Ir-remediável. 89

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temas importantes que observamos no texto de Caio F90., os quais se aproximam da filosofia de Derrida, tornando, assim, relevante a presente análise do conto “Corujas”. Na obra O animal que logo sou (a seguir), Derrida apresentanos diversas questões acerca do tratamento dispensado aos animais. Sua reflexão sobre a animalidade começa, segundo o filósofo, ao ver-se olhado pelo seu gato no banheiro. O olhar do gato incomoda Derrida, despertando inúmeras reflexões que envolvem tanto o pudor quanto a percepção e o modo como o ser humano habituou-se a tratar o outro - nesse caso o animal. Já no conto “Corujas”, observamos que também há uma troca de olhares entre o homem e o animal, nesse caso, um casal de corujas e que o olhar desses animais também proporciona várias reflexões na vida do narrador do conto. Em O animal que logo sou (a seguir), Derrida, começa interrogando-nos se o animal nos olha. E que animal seria esse? Tais questionamentos são desencadeados no intuito de fazer correspondência entre a dicotomia homem x animal, e o que diferencia o ser humano dos animais: Frequentemente me pergunto, para ver quem sou eu – e quem sou eu no momento em que, surpreendido nu, em silêncio pelo olhar de um animal, por exemplo os olhos de um gato, tenho dificuldade, sim dificuldade de vencer o incômodo (DERRIDA, 2002, p.15). Ao longo do texto, Derrida questiona aspectos referentes ao pudor, à nudez, ao poder e à violência humanas. A primeira questão sobre o pudor relaciona-se ao sentimento de ser visto pelo outro: “é como se tivesse vergonha, então nu diante do gato, mas também vergonha de ter vergonha” (2002, p.16). Segundo o filósofo, a vergonha nesse caso estaria no homem, como propriedade desse ser. O animal desde, sempre desnudado, não sente vergonha, não tem consciência de pudor: “assim, nus sem saber, os animais não estariam” (2002, p.17). O ato de vestir-se, Caio F. é uma outra forma de assinatura que Caio Fernando Abreu utilizava em seus textos. Nesse trabalho, apresentaremos as duas formas de assinatura do escritor. 90

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assim como o pudor, seriam próprios da consciência do ser humano. O filósofo apresenta-nos “duas nudezes, sem nudez”, pois, segundo ele, o animal estaria na não nudez por que nu e o homem na nudez, condição segundo a qual ele não é mais nu. A primeira nudez sem nudez seria a do animal enquanto nu, sem consciência; já a segunda corresponderia à nudez da consciência do homem, condição em que ele não é mais “nu”, sem consciência. Ou seja, o animal não tem consciência de si e de seus atos, está “nu”; enquanto o homem, um ser consciente de suas atitudes, tem consciência de sua “nudez” e deveria nessa medida ter consideração e comprometimento em relação ao outro e às crueldades que o ser humano pode cometer. O sentimento de desconforto e pudor em relação ao outro pode ser observado no conto “Corujas”, de Caio F., pois o narrador, ao deparar-se com o olhar das corujas, sente-se mal. O mal-estar do narrador não é em relação ao pudor do corpo, mas refere-se a suas atitudes enquanto um ser “consciente” que se torna cruel com o outro a fim de obter vantagens: O fato é que tínhamos medo, ou quem sabe alguma espécie de respeito grande, de quem se vê menor frente a outros seres mais fortes e inexplicáveis. Medo por carência de outra palavra para melhor definir o sentimento escorregadio na gente, de leve escapando para um canto da consciência de onde, ressabiado espreitaria. E acreditávamos então pelo caminho fácil, tentando suavizar o que não era suave. Recusando-lhes o mistério, recusávamos o nosso próprio medo e as encarávamos rotulando-as sem problemas como “irracionais”, relegando-as ao mundo bruto a que deviam forçosamente pertencer. O mundo de dentro do qual não podiam atrever-se a desafiar-nos com o conhecimento de algo ignorado por nós (ABREU,1995, p.27). Para o narrador do conto e para sua família, o olhar dos animais que foram retirados de seu habitat natural para exterminar as baratas da residência onde moravam é como se Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 113


fosse um olhar de reprovação das atitudes desses seres humanos. A consciência aparece nesse conto não ligada à questão de pudor sexual, como no texto de Derrida, mas a um pudor de atitudes negativas. O “remorso” é um sentimento que emerge na consciência dos familiares do conto, mas que logo é substituído pelas ideias de irracionalidade e de brutalidade atribuídas aos animais. Nesse sentido, os familiares do narrador utilizam-se dessas ideias como uma “desculpa” para todas as atitudes realizadas contra os animais: “Pois orgulhosos, não admitiríamos que vissem ou sentissem além de seus limites. Condicionadas a seus corpos (...) elas não poderiam ter mais do que lhe seria permitido por nós, humanos” (ABREU, 1995, p.27-28). A percepção é um elemento forte tanto no conto de Caio Fernando Abreu como na obra O animal que logo sou (a seguir), porque é através do ato de olhar e de ser olhado pelo outro que o ser humano começa a refletir sobre sua condição e a condição de quem está a sua frente, seja o gato que observa Derrida, ou mesmo as corujas que observam o narrador. O olhar das corujas em direção ao narrador e à sua família desvela o que está no íntimo dos personagens, nesse caso, o sentimento de culpa e de arrependimento frente ao padecimento do casal de animais, como observamos na passagem a seguir: Sem esperar, de repente, a gente deparava com o olhar amarelo fixo duma – perturbando, interrogando, confundindo. A acusação muda fazia com que me investigasse ansioso, buscando erros. E punha-me em dia comigo mesmo, para me apresentar novamente a elas de banho tomado, unhas cortadas, rosto barbeado, cabelo penteado – na ilusão de que a limpeza externa arrancasse um aceno de aprovação. Mas eu sabia – embora obstinado recusasse a convicção até o último minuto -, sabia que seu olhar ultrapassava a roupa, pele, carne, músculos e ossos para fixar-se num compartimento remoto, cujo conteúdo eu mesmo desconhecesse (ABREU, 1995, p.29-30). Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 114


Nesse trecho do conto, novamente observamos o entrecruzamento das reflexões de Derrida em O animal que logo sou (a seguir) e o conto de Caio Fernando Abreu, principalmente no que se refere ao pudor e à consciência do ser humano. Mesmo vestindo-se e cuidando da limpeza exterior de seu corpo, o narrador percebe que estará sempre “nu” diante das corujas, pois o olhar desses animais fornece pistas por meio de uma linguagem cujos índices trazem à tona o conteúdo de proximidade com um sempre outro, que é característico do mundo animal. O olhar também está presente em outra obra de Jacques Derrida, intitulada Pensar em não ver. Nessa obra, o filósofo aponta questões acerca do visível e do invisível, dos olhos videntes e dos olhos visíveis, assuntos que ele volta a mencionar na obra O animal que logo sou (a seguir). Ver olhos videntes é tão perigoso quanto ver o Sol. É ver o invisível. Em geral, é o que se evita. Sabe-se que o que conta é ser olhado, mas isso dá medo, até mesmo ser olhado por si mesmo. Queremos ver o que é visível, mas não queremos ver o que nos olha. E que é visível como vidente invisível (DERRIDA, 2012, p.82). Nesse sentido, podemos dizer que o filósofo sustenta que, ao mesmo tempo em que necessitamos olhar e ser olhado, essa operação causa-nos o medo, porque não queremos ver o que nos olha. Ver os olhos videntes, os olhos que nos observam é tão perigoso quanto ver o Sol91, porque nesse caso chegamos perto do que é invisível, ou o que para nós é invisível, como o sentimento de culpa e a crueldade de que o ser humano é capaz de se aliar para proporcionar maiores benefícios para si mesmo, como observamos no conto “Corujas”. Podemos fazer uma referência com a metáfora do Sol, como símbolo do conhecimento e ao Mito da Caverna, no qual o homem condicionado à escuridão, quando vai em direção ao Sol, ao conhecimento. Ver o Sol ou ter o conhecimento pode ser perigoso, por apontar aspectos negativos de nossa existência, como a alienação e a indiferença em relação ao outro. 91

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A percepção presente na obra derridiana se assemelha com a filosofia de Merleau-Ponty, na qual o conhecimento se faz através da interação entre corpo e mundo, e que os mesmos olhos que veem também são vistos. Para Merleau-Ponty (1971) é através do olhar que experienciamos o mundo e, que a prática da reflexão seria um “desembaraçar de percepções”. Nesse aspecto, os dois filósofos dialogam com o que o narrador do conto “Corujas” revela através de suas memórias, porque após o padecimento dos animais, sua forma de ver o mundo se modifica, principalmente ao sentir-se olhado pelas corujas, ao sentir-se julgado pelos animais: Tinham um olhar dentro, de quem olha fixo e sacode a cabeça, acenando como se numa penetração entrassem fundo demais, concordando, refletidas. Olhavam fixo, pupilas perdidas na extensão amarelada das órbitas, e concordavam mudas. A sabedoria humilhante de quem percebe coisas apenas suspeitas pelos outros. (...) O fato é que tínhamos medo, ou quem sabe alguma espécie de respeito grande, de quem se vê menor frente a outros seres mais fortes e inexplicáveis (ABREU, 1995, p.27). Ao se sentirem diminuídos frente ao casal de corujas, e ao tentarem adentrar no olhar dos animais para saberem seus sentimentos, os familiares estão de certo modo reconhecendo o sentimento de culpa pelo padecimento desses animais. Dessa maneira, os familiares reconhecem sua condição pautada pelo egoísmo e pela crueldade: O homem que as trouxe informara minha mãe de seu orgulho: feridas em liberdade, faziam greve de fome até a morte. Com a imanência de seu suicídio, planejamos soltálas no campo (...). As asas cortadas, porém, exigiam tempo para crescer novamente (...) Não nos restava mais nada senão esperar, por sua morte ou sua capitulação. Quem as visse, convictas em seu desfilar faminto, poderia imaginálas carregando cartazes de protesto. Contra quê? Contra

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quem? Perguntávamos temerosos da resposta óbvia (ABREU, 1995, p. 31-32). O olhar está associado com o que está visível e, também, com o que está invisível, como os sentimentos dos personagens, e com o que eles não podem ver, como a crueldade da família com o casal de corujas - essa que é revelada através do sofrimento e do “olhar protestante” desses animais em direção aos familiares. Jacques Derrida também trata da questão da hospitalidade em sua filosofia. A obra O animal que logo sou – a seguir articula-se à essa questão em relação à acolhida dos animais, como observamos na passagem: A questão do que chamamos animal. (...) Estar depois, estar junto, estar perto de, eis, aparentemente, diferentes modalidades do estar, em verdade, estar-com. Com o animal (...). Ele tem seu ponto de vista sobre mim. O ponto de vista do outro absoluto, e nada me terá feito pensar tanto sobre alteridade absoluta do vizinho, do próximo quanto os momentos em que eu me vejo nu sob o olhar do gato (DERRIDA, 2002, p.27-28). Nesse sentido, o autor de O animal que logo sou – a seguir faz uma crítica ao assujeitamento dos animais pelo homem. Essa crítica pode ser associada ao que Derrida aborda em outro trabalho, Da Hospitalidade, no qual há a questão do tratamento do estrangeiro92. No conto de Caio F., observamos a hospitalidade no que se refere à acolhida do casal de corujas. O outro, o estranho à família e ao ambiente é visto como um ser que deve sujeitar-se aos modelos impostos pelo homem. Sendo assim, podemos apontar a poda das asas dos animais, a manipulação de seus corpos e “Estrangeiro” não se refere apenas ao que vem de outro lugar, mas no sentido de não ser familiar: “a hospitalidade absoluta exige que eu abra minha casa e não apenas ofereça ao estrangeiro (...), mas ao outro absoluto, desconhecido, anônimo, que eu lhe ceda lugar, que eu o deixe vir (...) sem exigir dele a reciprocidade (a entrada num pacto) nem mesmo seu nome. “ (DERRIDA, 2003, p.23-24). 92

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comportamento e a nomeação dos animais como formas de moldar o estrangeiro: As crianças disputavam sua posse (...). Disputavam também a primazia de batizá-las, ignorando que o anonimato fazia parte de sua natureza. Nessa ignorância, chamaram-nas de Tutuca e Telecoteco. Pisquei o olho para elas, rindo da ingenuidade, tentando penetrar em sua intimidade, cada vez mais negada. (...) Secretamente reivindicava para mim seu batismo e posse, investigava almanaques em busca do nome que melhor assentasse. Chamá-las de alguma coisa seria dar um passo no caminho de seu conhecimento, como se sutilmente as fosse amoldando à minha maneira de desejá-las (ABREU, 1995, p.30). O casal de corujas é utilizado como um instrumento de extermínio das pragas da residência dos familiares do narrador, como um brinquedo por ele e pelas demais crianças da casa, como um objeto que pode ser manipulado pelos visitantes. Os familiares não enxergam as corujas como seres que têm sua própria natureza, mas as enxergam como um objeto sobre o qual ela tomou “posse”, e, nesse sentido, a posse passa a ideia de desrespeito contra natureza das corujas até alcançar a “nomeação” desses animais, como uma tentativa de incorporá-las, trazê-los para a existência. O estrangeiro, visto como uma ameaça e com estranhamento pode ser observado na passagem que conta a reação com a chegada das corujas na casa da família. A ignorância do pai, a aproximação da mãe, o medo das crianças são percepções desencadeadas em relação ao outro, ao desconhecido, ao esdrúxulo ou ao estrangeiro. Meu pai no entanto não lhes deu atenção. Constatou-as e passou adiante, em direção ao banheiro. Minha mãe sorriu-lhes (...) Foram as crianças as primeiras a hesitar, num recuo que seria ofensa se pertencesse à gente grande. Crianças trocaram assombros frente à estranheza dos Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 118


bichos nunca antes vistos (...) Aparentemente satisfeitas, compenetraram-se em cerca-las de uma ternura meio brusca. Aquela mesma dispensada às bonecas novas, que em pouco tempo restavam espatifadas em braços e pernas pelo quintal (ABREU, 1995, p.28-29). O medo, o pudor, o estranhamento desencadeado com a chegada dos animais e principalmente através do convívio. A nomeação é uma questão importante a ser observada, pois é um dos meios dos quais a família “apossa-se” do casal de corujas: “Finalmente achei. Eram nomes de criaturas estranhas, indecifráveis como elas, já perdidas no tempo, misteriosas até hoje. Rasputin e Cassandra. Calei a descoberta, ocultei o batizado, apropriando-se cada vez mais de sua natureza” (ABREU, 1995, p. 31). A nomeação dos animais juntamente com a poda das asas são a tentativa do ser humano de moldar e de exercer seu poder sobre o animal. O simbolismo do voo merece atenção especial no conto “Corujas”: há o impedimento do voo/ liberdade dos animais através da poda de suas asas, o que gerou a infelicidade dos animais e consequentemente sua morte: Com a uminência de seu suicídio, planejamos soltá-las no campo. Quase podia vê-las erguendo-se de leve num voo contido, experimentando forças, as asas abrindo-se aos poucos numa subida lenta. Fundidas em azul, subindo, subindo. (...) Desejei comunica-las sua libertação, mas a ineficiência de gestos e palavras isolou-me um mutismo para elas incompreensível. Éramos definitivamente incomunicáveis. Eu, gente, elas, bichos, corujas, mesmo batizadas em segredo (...) qualquer nome não modificaria a sua natureza. Nunca. Corujas para sempre (ABREU, 1995, p.32). Em O animal que logo sou – a seguir, Derrida também trata da questão da violência e do poder do homem em relação ao animal, como observamos na passagem:

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O homem instaura ou reivindica de uma só vez sua propriedade (o próprio do homem que tem efetivamente como próprio o não ter um próprio), e sua superioridade sobre a vida dita animal. Esta última superioridade, superioridade infinita e por excelência, tem o próprio ser ao mesmo tempo incondicional e sacrificial (DERRIDA, 2002, p.44) A nomeação também é uma forma de o homem exercer o poder sobre o animal. A poda das asas, a retirada do habitat natural, a fome dos animais, a domesticação, a utilização desses seres como objeto de divertimento para a família no conto são exemplos de violência que observamos contra os animais e também da tentativa de estabelecer o poder e a superioridade do ser humano em relação aos outros seres. Derrida, ao falar sobre a manipulação dos animais, declara que verdadeiros genocídios são causados pelo homem contra os animais. Muitas dessas mortes, segundo o filósofo, são desencadeadas através de testes ou experiências que têm como propósito o benefício para a humanidade: “violência industrial, mecânica, química, hormonal, genética, à qual o homem submete há dois séculos a vida animal (2002, p.53). O desrespeito à natureza dos animais e a utilização e manipulação de seus corpos são atos cruéis que revelam como o ser humano apropria-se dos outros, sejam animais ou humanos, para obter vantagens. O genocídio que Derrida aponta em relação aos animais também pode ser estendido às crueldades cometidas contra o ser humano, como por exemplo, o que ocorreu no Holocausto. A consciência, um dos aspectos que diferencia o ser humano do animal, nesse caso, é relegada em detrimento aos “benefícios” para a humanidade. Sendo assim, podemos dizer que “Corujas” apresenta-nos um exemplo da falta de consciência em relação ao outro através do modo como o ser humano trata o casal de animais a fim de beneficiar-se com a sua utilização na caça de baratas e nas brincadeiras das crianças da família.

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A memória e a confissão são elementos presentes na filosofia derridiana que podem ser observados no conto “Corujas”, pois o narrador relembra um fato de sua infância, uma “marca” que o acompanha por sua vida, assim como o corte feito nas asas das corujas, que as impediram de voar e de voltar para seu ambiente natural. Nesse aspecto, a lembrança do padecimento das corujas faz o narrador confessar as atitudes egoístas dele e de sua família em relação a esses animais. Podemos concluir que o conto “Corujas” possui muitas questões que podem ser analisadas por intermédio da filosofia derridiana. Tanto o conto como a obra O animal que logo sou - a seguir de Derrida abordam a questão do animal e do tratamento do ser humano em relação a esse outro ser. Contudo, podemos dizer que ambos textos nos fazem refletir não só sobre o animal, mas sobre o outro – o homem. O que difere o ser humano do animal? A racionalidade? A afetividade? O poder? Como diferenciar o ser humano do animal, quando é o homem que tem uma atitude cruel em busca de um benefício? Como diferenciar o ser humano do animal quando este não reconhece a diferença e a autonomia do outro (seja homem ou animal)? Tais questionamentos são levantados através do pudor de Derrida, que se vê “nu” diante de seu gato e podem também ser percebidos na rememoração do narrador do conto de Caio F., que se vê “nu” em relação ao casal de corujas. A nudez em questão não é só física, mas também de consciência de alguém que vê o outro e se vê refletido no outro.

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COELHO, Eulália Isabel. Domínio do Irremediável em Caio: Palavra/Imagem. Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 5, n. 9, p. 197-217, jan./jun. 2006. DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou (A seguir). Trad. Fábio Landa. São Paulo. Editora UNESP, 2002. __________________. Da Hospitalidade. Entrevista concedida à Anne Duffourmantelle; tradução de Antonio Romane; revisão técnica de Paulo Ottoni. – São Paulo: Escuta,2003 __________________. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Organização Ginette Michaud, Joana Masó, Javier Bassas. Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2012. 480 páginas __________________. Mal de Arquivo: uma impressão freudiana. Tradução, Cláudia de Moraes Rego. – Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. MACIEL, Sônia Maria. Corpo invisível: uma leitura filosófica de Merleau-Ponty. Porto Alegre, EDIPUCRS, 1997 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução de Carlos Alberto Riberio de Moura. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosacnaify, MERLEAU-PONTY, Maurice. O Visível e o Invisível. São Paulo: Perspectiva, 1971. NOVAES, Adauto. O olhar. São Paulo: Companhia das Letras,1988. PIVA, Mairim Linck. Múltiplas vozes de uma voz múltipla. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 37, n. 2, p. 225-233, jun. 2001. _________________. Um romancista do Sul: muito além do espaço. Navegações, Porto Alegre, v. 5, n. 1, p. 16-26, jan./jun. 2012. QUINET, Antonio. Um olhar a mais: Ver e ser visto na psicanálise. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004

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Além do ponto: o irremediável amor Dinair de Fonte Silva93

Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar o conto “Além do ponto”, de Caio Fernando Abreu, do livro Morangos mofados, de 1982. O tema central circunda a busca de um desejo amoroso na modernidade. Nessa perspectiva, faz-se uma pequena reflexão sobre o sujeito contemporâneo e a sua busca por um anelo. Palavras-chave: Literatura, conto, modernidade, Caio Fernando Abreu.

Abstract: This work aims at analyzing the short story "Além do ponto", by Caio Fernando Abreu, from the book Morangos Mofados (1982). The central theme surrounds the search of a loving desire in modernity. In this perspective, it is a small reflection on the contemporary subject and its search for a longing. Keywords: Literature, short story, modernity, Caio Fernando Abreu.

93Mestranda

em Literatura Brasileira pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.

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Não compreendo como querer o outro possa tornar-se mais forte do que querer a si próprio. Não compreendo como querer o outro possa pintar como saída para nossa solidão fatal. Mentira: compreendo, sim. Caio Fernando Abreu Nas urbanas histórias de Caio Fernando Abreu, grande parte dos protagonistas demonstram e a crise de identidade vivida pelo homem contemporâneo. Vemos as facetas de indivíduos descentrados, deslocados, fragmentados que, diante de uma individualidade problemática, tem sua identidade pessoal abalada. Não possuem mais um sentido estável de si. Esse sujeito descentrado, que preenche todos os fragmentos, é com certeza a grande personagem das obras de Caio F. Abreu apresenta em seus textos uma “investigação” particular da vida humana, o que demonstra uma peculiaridade do autor de demonstrar o momento em que viveu; como a ditadura militar e a falta de liberdade imposta por ela. Sua obra mergulha na intimidade e na subjetividade dos sentimentos humanos. Podemos reviver em suas histórias toda a angústia que tomou conta de sua geração. No livro Morangos mofados, de 1982, encontramos o desvendar do ser humano em seus momentos mais íntimos. Podemos reviver claramente, através de sua ironia marcante e de sua magnífica sutileza psicológica, os anseios do sujeito dos anos 70, seus medos e suas inseguranças. Nas palavras de Heloisa Buarque de Holanda, o que chama a atenção nesse livro é “um certo cuidado, uma enorme delicadeza em lidar com a matéria da experiência existencial de que fala” (Holanda, 2005, p. 9) Em “Morangos” somos espectadores da dolorosa “existência” de personagens descrentes do mundo a sua volta, que vivem em busca de um referencial, e que por conta disso vivenciam uma profunda crise com a solidão que habitam dentro de si. Podemos dizer que os contos que preenchem as páginas do livro estão vinculados a um contexto histórico característico, nomeado por Zygmunt Bauman de “modernidade líquida”. Uma Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 124


das razões pelas quais Bauman (2004) passou a falar em "modernidade líquida" e não em "pós-modernidade" é que o filósofo ficou cansado de tentar esclarecer uma confusão semântica que não distingue sociologia pós-moderna de sociologia da pós-modernidade, "pós-modernismo" de "pósmodernidade". Para ele, "pós-modernidade" significa uma sociedade ou, se se prefere, um tipo de condição humana, e "pósmodernismo" refere-se a uma visão de mundo que pode surgir, mas não necessariamente, da condição pós-moderna. No mundo atual, que Bauman (2011) chama de “líquido”, porque ele nunca se imobiliza nem conserva sua forma durante muito tempo, as coisas são fluidas, estão sempre em constante mudança; as modas, os objetos que dedicamos atenção, uma atenção em constante mudança de foco, “as coisas que sonhamos e que tememos, aquelas que desejamos e odiamos, as que nos enchem de esperanças e as que nos enchem de aflição”. (Bauman, 2011, p.6) Em nosso mundo líquido moderno, estamos todo o tempo sendo surpreendidos. O que hoje parece correto e apropriado, amanhã pode se tornar equivocado fútil, fantasioso. Suspeitamos que isso possa acontecer e pensamos que, tal como o mundo que é nosso lar, nós, seus moradores, planejadores, atores, usuários e vítimas, devemos estar sempre prontos a mudar: todos precisam ser, como diz a palavra da moda, “flexíveis”. Por isso, ansiamos por mais informações sobre o que ocorre e o que poderá ocorrer. Felizmente, dispomos hoje de algo que nossos pais nunca puderam imaginar: a internet e a web mundial, as “autoestradas de informação” que nos conectam de imediato, “em tempo real”, a todo e qualquer canto remoto do planeta, e tudo isso dentro de pequenos celulares ou iPods que carregamos conosco no bolso, dia e noite, para onde quer que nos desloquemos. (Bauman, 2011, p.6) A flexibilidade, o consumismo, a individualização, algumas características fortes da modernidade fluída, são questões que aumentam a sensação de angústia, geram Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 125


desconforto, e acompanha muitos indivíduos na busca por sucesso e felicidade na era líquida. Uma exigência da modernidade líquida é a inexistência de vínculo que nos prendam a algum lugar, o que resulta num complexo estado de insegurança que adiciona a incerteza contemporânea um desejo de mobilidade. Nesse contexto, nas narrativas de Morangos mofados (1982), podemos ver o vazio do sujeito contemporâneo e sua ânsia por suprir suas inquietações. Em sua escrita, Abreu nos mostra, através de seus personagens, uma característica fundamental do indivíduo moderno: “a eterna busca”. O indivíduo está sempre em busca de algo que acabe com o sentimento de fragmentação e efemeridade em que se encontra, vive a procura de algo que acabe com sua agonia de viver nesse deserto de sofrimentos e desenganos a que está condenado. Dessa forma, “Além do ponto”, profundamente existencial, foi o conto escolhido deste livro para se analisar acerca desse vazio e dessa “eterna busca” do homem contemporâneo, que deseja ardentemente por algo que diminua essa sua dor de existir. Isso o leva a uma busca, muitas vezes inconsciente, de experiências que possam funcionar como “distração”, bem como o álcool, compras excessivas, coisas materiais, dinheiro, drogas, sexo, Deus e amor. De todas as sedes de experiência na tentativa, algumas vezes desesperada, de aliviar a dor, é unânime que a mais significativa de todas seja a busca pelo “amor verdadeiro”. O amor, conforme defende Erich Fromm (1991), é única resposta para as questões e os problemas da existência humana. Em “Além do ponto” vemos reafirmada a preocupação de Caio Fernando com o amor. Mais do que isso, vemos em seus personagens a necessidade básica de fusão com outra pessoa de modo a transcender a prisão interior em que vive. O personagem entrega-se por inteiro para satisfazer a essa necessidade latente do ser humano, perde-se todo para conquistar aquilo que deseja.

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A primeira vista, “Além do ponto” pode ser interpretado como a história da busca do amor de um homem por outro homem, pois é evidente que o conto possui algumas marcas que nos levam a pensar dessa maneira, como por exemplo, “ele diria qualquer coisa do tipo como você está molhado”. (Abreu, 1992, p. 46) Entretanto, é um grande equívoco fazer esse tipo de leitura primária, pois o plano de discussão é muito mais amplo do que o fato de o conto ser ou não homossexual, além disso, o próprio escritor, que não gostava de ser rotulado como sendo apenas um “escritor gay,” revelou em uma entrevista que o conto narra à história do homem a procura de Deus. É facilmente compreensível que ocorram essas confusões acerca da temática desse conto. Até porque, isso reafirma uma característica absolutamente importante nas obras contemporâneas: a possibilidade de múltiplas interpretações. Segundo David Harvey (1998), o “pós-moderno” possui o efeito de quebrar (desconstruir), o autor não tem mais o poder de impor significados, ou de oferecer uma narrativa contínua. “Cada elemento citado quebra a continuidade ou linearidade do discurso, e leva necessariamente a uma dupla leitura, a do fragmento percebido com relação ao seu texto de origem, a do incorporado a um novo todo, a uma totalidade distinta.” (Harvey, 1998, p. 55) Em síntese, o autor não é mais dono do seu próprio texto. Desta forma, a leitura de “Além do ponto” a ser feita a partir de agora, será a do ser humano como um eterno buscador, que ansioso em se livrar da “prisão” insuportável em que vive se desconstrói, mascara-se, está disposto a tudo para alcançar o seu mais profundo objetivo. Vemos uma leitura do amor como cumprimento da aspiração de união. Por conta disso, nesta análise está isenta qualquer referência à homossexualidade, ou a qualquer tipo de busca por um anelo que não seja o amoroso. De acordo com o Erich Fromm (1991), a mais profunda necessidade do homem é a de deixar a prisão em que está só. Segundo ele “o homem - de todas as idades e culturas – vê-se Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 127


diante da solução de uma só e mesma questão: a de como superar a separação, a de como realizar a união, a de como transcender a própria vida individual e encontrar a sintonia.” (Fromm, 1991, p. 27) A necessidade de amar, de fusão interpessoal, é o mais poderoso anseio do homem. Logo, o amor pode, sem dúvida, ser visto como a maior inquietação do ser humano, não é a toa que é um tema muito valorizado pelas artes humanas. Ao indagar qualquer pessoa do mundo, o que a tornaria plenamente feliz, com certeza a maioria delas colocaria entre as coisas que possuem maior importância; ter o amor verdadeiro. O fracasso em realizá-la, segundo Fromm, significa loucura, ou destruição – auto-destruição ou destruição dos outros. Para ele, “sem amor, a humanidade não poderia existir um só dia.” (Idem, p. 27) Contudo, ainda de acordo com o Dr. Erich, se chamarmos amor a realização da união interpessoal, poderemos encontrar uma série de dificuldades, já que a fusão pode ser obtida de diversos modos, e as diferenças não são menos significativas do que aquilo que é comum às várias formas de amor. O sujeito contemporâneo, por conta da sua identidade descentrada, vive perturbadamente essa busca pelo amor. Este sujeito solitário, por vivenciar, individualmente, socialmente, externa e internamente, uma realidade efêmera, perde-se, buscando, a qualquer custo, viver um “amor eterno”, “sem limites”, busca a satisfação, normalmente momentânea, desse sentimento que, na modernidade líquida, é absolutamente imaturo, ilusório e fugaz. Assim, que espécie de união, então, estamos falando quando falamos de “amor”? Dr. Fromm chama de “amor amadurecido” a união sob a condição de preservar a integridade própria, a própria individualidade. O amor, segundo ele, é uma força ativa no homem, uma força que interrompe pelas paredes que separam o homem de seus semelhantes, que une aos outros; o amor leva-o a superar o sentimento de isolamento e de separação, permitindo-lhe, porém, ser Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 128


ele mesmo, reter sua integridade. No amor ocorre o paradoxo que dois seres sejam um e, contudo, permaneçam dois. (Idem, p. 36) Entretanto, em “Além do ponto” o protagonista pode ser visto como a representação absoluta de um sujeito moderno que caminha numa direção completamente oposta do que defende Fromm. O sujeito do conto, destruído pelo meio, não preserva sua individualidade, e vê o seu objeto de desejo apenas como “solução” para as suas dores. No conto, o narrador, cujo gênero só é sabido através do uso se adjetivos, está em primeira pessoa. O texto, justamente por seu caráter eminentemente dramático, é dialogado. É um diálogo, ou monólogo interior, pois se passa no interior, no mundo psíquico da personagem, exemplo absolutamente claro de uma identidade em conflito. O diálogo do protagonista é com um outro, ou com o que o outro estaria pensando sobre ele, gerando assim temores e aflições. Em “Além do ponto” um homem caminha no meio da chuva, indo ao encontro de alguém. “chovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro da chuva ao encontro dele, sem guarda-chuva nem nada, eu sempre perdia todos pelos bares”. (Abreu, 1992, p. 45) A repetição de “chovia” marca a intensidade da chuva, nos remetendo a imagem da própria chuva caindo, e o verbo “ir” seguido de gerúndio “ia indo” expressa uma ação que se realiza progressivamente, nos dá uma ideia de continuidade, reforça uma imagem de caminhada sem pausas. Nesse texto, o leitor, justamente pelo conto estar na primeira pessoa do singular, assume a persona do personagem, e o visualiza, como se assistisse cinematograficamente, à dolorosa caminhada desse homem pela chuva, colocando o leitor, nesse sentido, também nessa busca. A imagem da água usada por Caio F. também pode ser vista como uma grande metáfora para falar de uma busca que está no destino desse homem, e que o leva para além do ponto. Simbolicamente, ser lançado à água é similar a ser entregue ao seu próprio destino. Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 129


Nesse contexto, há nesse texto uma espécie de “narrativa épica”. Caminhar “por dentro na chuva” é de alguma forma, lançar-se em um ambiente que é inóspito e para o qual ele está desarmado, “sem guarda-chuva nem nada”. Esse homem, vulnerável, lança-se na chuva para entregar-se a algo que é propriamente um “desejo amoroso”. Isso pode ser afirmado porque, no texto, “aquele” que o protagonista quer encontrar não é nomeado. Essa marca é recorrente nas narrativas de Abreu, ele não dá nome aos seus personagens. O autor faz isso propositadamente, já que, simbolicamente, nomear alguém ou alguma coisa é, ao mesmo tempo, lhe dar uma personalidade, ou alma. Desta forma, o sem-nome pode ser todo e qualquer ser humano. Assim, não importa “quem” esse sujeito está procurando, não importa o nome, a única coisa que ele realmente busca é uma “tábua de salvação” alguém que o faça feliz, que o tire do mar de angústias em que está vivendo. O personagem vive uma angústia tão grande, almeja tanto uma “felicidade”, que sai para essa busca absolutamente despojado, sem escudos. Esse indivíduo não tem guarda, ele não traz consigo nenhum tipo de proteção. Ele cai de peito aberto nessa busca e vai nela até o fim. Se no início do texto diz que “chovia, chovia, chovia”, a lógica seria ele se proteger da chuva. Mas o limite da busca é tão grande, esse desejo da busca é tão intenso que, mesmo sem guarda-chuva, ele se coloca nessa chuva torrencial. É interessante notar que essa entrega é recorrente, pois ele sempre perdia todos os guarda-chuvas pelos bares. Logo, essa busca já aconteceu em outros contextos. O que esse homem faz, de certa forma, é passar a sua vida de bar em bar, como diz Cazuza em “O tempo não para”, procurando uma agulha no palheiro, procurando desesperadamente aquilo o qual ele sabe que não vai encontrar. O protagonista de “além do ponto” está na rua, debaixo de chuva, desarmado, cheio de incertezas, carregando apenas como Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 130


instrumento uma garrafa de bebida alcoólica e um maço de cigarros. parece falso dito desse jeito, mas bem assim eu ia pelo meio da chuva, uma garrafa de conhaque na mão e um maço de cigarros molhados no bolso. Teve uma hora que eu podia ter tomado um táxi, mas não era muito longe, e se eu tomasse um táxi não poderia comprar cigarros nem conhaque e eu pensei com força então que seria melhor chegar molhado da chuva ,(...) Mas chovia ainda, meus olhos ardiam de frio, o nariz começava a escorrer, eu limpava com as costas das mãos e o líquido do nariz endurecia logo sobre os pêlos, eu enfiava as mãos avermelhadas no fundo dos bolsos e ia indo, eu ia indo e pulando as poças d'água com as pernas geladas. (Abreu, 1992, p. 45) Faz-se bastante clara a mescla de sentimentos ambíguos que preenchem a alma desse sujeito. A necessidade de transcender a prisão, em que está só, é tanta, a realidade em que ele se encontra é tão terrível, tão insuportável, que o personagem passa a criar situações imaginárias. porque aí beberíamos o conhaque, fazia frio, nem tanto frio, mais umidade entrando pelo pano das roupas, pela sola fina esburacada dos sapatos, e fumaríamos beberíamos sem medidas, haveria música, sempre aquelas vozes roucas, aquele sax gemido e o olho dele posto em cima de mim, ducha morna distendendo meus músculos. (Idem, p. 45) Vemos no texto dois espaços criados pelo personagem: o da utopia e o do real, ele caminha em uma realidade sonhando com outra. O espaço do sonho é o espaço desse contato com o outro, o “lugar quente” onde há uma “ducha morna” para distender seus músculos, onde eles beberiam e fumariam. Notase o uso dos verbos no futuro pretérito “fumaríamos, beberíamos” utilizados normalmente para dar marcas de hipótese, incerteza e irrealidade. Já o espaço da realidade é o do frio, das “pernas Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 131


geladas” da “ducha fria”, do frio que arde os olhos, do “líquido do nariz endurecendo os pêlos”. A narrativa prossegue, e a busca fictícia desse homem para finalmente encontrar-se com aquilo que é o seu destino o faz entrega-se a uma aventura que, sem dúvida, também é uma desventura. Tão geladas as pernas e os braços e a cara que pensei em abrir a garrafa para beber um gole, mas não queria chegar na casa dele meio bêbado, hálito fedendo, não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, (...) mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era. (Ibidem, p. 45-46) O conflito entre imaginário e real marcam a relação do protagonista com aquilo que ele procura no outro. Começa-se assim um diálogo, constituído por conflitos, entre a imaginação do narrador e a realidade. Assim, há um antagonismo entre a realidade que se apresenta e a expectativa com relação ao olhar do outro, idealizada pelo protagonista. Ele passa a imaginar como deveria ser e fazer para receber o afeto pelo qual almeja. A garrafa de conhaque e o cigarro que ele traz consigo poderiam servir para aquecê-lo, entretanto ele não bebe, pois não quer chegar em casa “dele” cheirando a conhaque; mais do que isso, ele quer usufruir daquela bebida com o outro. A bebida funciona como uma espécie de oferenda. O outro representa para ele a solução para a sua situação de desamparo, por isso ele vai fazer de tudo para agradar o outro, vai levar cigarros e bebidas, e também vai ser alguma coisa que agrade o outro para assim, de alguma forma, motivar o outro a estar com ele. Vemos então, de certa forma, a própria ideia de vassalagem, uma vassalagem contemporânea de um ser para outro ser. É interessante com esse homem, destruído, que não tem dinheiro para o táxi, que vai na chuva, pois gastou tudo comprando o cigarro e a bebida, ainda assim, não quer mostrar para o outro que ele está fragilizado. Esse sujeito se disfarça, ele Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 132


não quer dizer que não tem dinheiro, não pode deixar que o outro veja que a sua aparência não é a mais desejável, que está com o dente quebrado. Ele se mascara, se reconstrói num disfarce para agradar este outro, não quer que o seu “objeto de desejo” saiba que ele é ele. Entretanto, ele percebe que não tem jeito, não tem escapatória, por isso entra em conflito entre o que gostaria de aparentar e o que era na realidade. Começou a acontecer uma coisa confusa na minha cabeça, essa história de não querer que ele soubesse que eu era eu, encharcado naquela chuva toda que caía, caía, caía e tive vontade de voltar para algum lugar seco e quente, se houvesse, e não lembrava de nenhum, (...) o frio e a chuva não me deixavam mastigar direito, eu apenas começava a saber que tem um ponto, e eu dividido querendo ver o depois do ponto e também aquele agradável dele me esperando quente e pronto. (Idem, p. 46) Ao se perceber encharcado naquela chuva toda que caía o protagonista começa a se dar conta da sua real condição, do seu estado físico e emocional degradado. Está bêbado, não tem dinheiro, o dente está quebrado. Simbolicamente a água representa o inconsciente, sendo que o ato de entrar na água e dela sair possui uma analogia com o ato de mergulhar no inconsciente. Nesse contexto, o personagem “sai” de seu monólogo interior e desliza para um fluxo de consciência. Nota-se a marca da epifania de Clarice Lispector nesse trecho do conto. Em seu conflito interno, o personagem compreende a si mesmo, mesmo não tendo plena consciência e intenção. Mesmo não conseguindo diferenciar mais realidade e imaginação por conta da angústia interna que vive, esse homem, em sua reflexão absolutamente antitética, ainda tem um momento de lucidez na “esquina cinzenta” Ele se questiona sobre a busca, pois descobre que existe um ponto. A imagem dessa esquina, representa claramente uma divisão, mudança, a opção do personagem, os dois caminhos que ele precisa escolher. Volta atrás e busca a

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segurança do lugar quente e agradável, ou lança-se ao seu destino, passando do ponto, indo ao encontro “dele”? Neste sentido, há, momentaneamente, uma descrença por parte desse homem, pois ele se entregou totalmente a essa busca, abriu mão de tudo que ele possuía, está com fome, sem dinheiro, hálito fedendo, insone. Por isso a idéia da epopéia apontada alguns parágrafos acima. Na realidade, ele passa por uma espécie de epopeia na qual ele, definitivamente, não é o herói, muito pelo contrário, existe alguma coisa, que ele não controla, que faz dele um anti-herói, indo para sua destruição. Desta forma, mesmo passando por todas as provações possíveis, ele ainda assim persiste porque em sua cabeça a “felicidade” estaria esperando, e lhe abriria a porta. Por conta disso ele precisa deter a sua vontade de voltar atrás. O protagonista fica cada vez mais confuso, e o espaço da utopia, do “idílio” intensifica-se. então decidi na minha cabeça que depois de abrir a porta ele diria qualquer coisa tipo mas como você está molhado, sem nenhum espanto, porque ele me esperava,(...) daquele jeito estranho de já ter estado lá sem nunca ter, hesitava mas ia indo, no meio da cidade como um invisível fio saindo da cabeça dele até a minha, quem me via assim molhado não via nosso segredo,(...) além da água da chuva e da lama dos carros a minha roupa agora também estava encharcada de conhaque, como um bêbado, fedendo, não beberíamos então, tentei sorrir, com cuidado, o lábio inferior quase imóvel, escondendo o caco do dente, e pensei na lama que ele limparia terno, porque era a mim que ele chamava, porque era a mim que ele escolhia, porque era para mim e só para mim que ele abriria a sua porta. (Idem, p. 46-47) Esse homem, movido pela ilusão/ficção, tem uma ação passional, e opta pelo espaço do sonho. O desejo, a vontade, fala mais alto. Ele realmente acredita que existe alguém que o espera, que o chama, mais do que isso, ele só vai porque o outro o chama. Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 134


Desta forma, vemos que ele dá “poder” ao outro, ele coloca a responsabilidade da sua vida nas mãos do outro. Para esse sujeito, é o outro que, na verdade, o faz passar do ponto “eu só ia indo porque ele me chamava, eu me atrevia, eu ia além daquele ponto de estar parado (...) um fio saindo da cabeça dele até a minha”. (Ibidem, p. 46) O indivíduo dessa narrativa “passa do ponto” porque vai além da imaginação, na verdade ele sai da imaginação, perde o limite do que pode e do que não pode, do que é realidade e do que não é. Ele está num labirinto, num “caminho de árvores sem folha e rua interrompida”, está sem saída. Esse homem deseja tanto esse fictício encontro que ele até tem a sensação de já ter tido o encontro. Ele é, literalmente, movido pelo desejo, que dá essa sensação de “já ter estado lá sem nunca ter”. É interessante notar como o personagem cria uma expectativa em relação ao outro, e como é egoísta a forma como ele quer fundir-se a ele. “trocaria minha roupa molhada por outra mais seca e tomaria lentamente minhas mãos entre as suas, acariciando-as devagar para aquecê-las, espantando o roxo da pele fria” (Ibidem, p. 47) Esse sujeito quer escapar da solidão e da sensação de “encarceramento” em que vive, fazendo da outra pessoa uma parte, uma parcela de si mesmo. Na verdade, ele projeta uma imagem, catártica. O outro é a projeção dele. Dessa forma, pode-se dizer que há no texto dois tipos de catarse, a do encontro, propriamente dito, e a do narrador como o centro das atenções. Percebe-se que toda estrutura do texto é uma estrutura para um destino cruel. Ao escorregar, o personagem sai da utopia para a realidade, ele cai, quebra a garrafa, e agora, além de estar encharcado de chuva e sujo de lama, toma um banho de conhaque, e fica fedendo como um bêbado. Desta forma, todos os sonhos dele acabam, tudo aquilo que esse homem levava para a catarse acaba ele, agora não tem mais nada para oferecer ao outro. Era necessário um esforço muito grande, era preciso um esforço muito grande, era preciso um esforço tão terrível Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 135


que precisei sorri mais sozinho e inventar mais um pouco,(...) mas ia indo pela chuva porque esse era meu único sentido, meu único destino: bater naquela porta escura onde eu batia agora. (...) eu quis chamá-lo, mas tinha esquecido seu nome, se é que alguma vez o soube,(...) eu só estava parado naquela porta fazia muito tempo, depois do ponto, tão escuro agora que eu não conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra ação, outro gesto além de continuar batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, na mesma porta que não abre nunca. (Ibidem, p. 47-48) Mesmo destroçado e desesperançado esse homem insiste, apegado à idéia fixa de que alguém o espera. Assim, ele retorna para o espaço do sonho, “precisei sorrir mais sozinho e inventar um pouco mais, aquecendo o meu segredo (...) reaprendia e inventava sempre, sempre em direção a ele”, (Ibidem, p. 47) só que dessa vez ele não volta mais a realidade, não tem mais força para retornar, ele agora, definitivamente, foi “além do ponto”. É interessante como vemos reafirmada a ideia de que só o objeto de desejo que ele tanto procura, é responsável pela sua felicidade, que o seu destino está nas mãos, única e exclusivamente, do outro. “os pedaços de mim todos misturados que ele disporia sem pressa, como quem brinca com um quebra-cabeça” (Ibidem, p. 48) A busca desse sujeito o levou a atravessar o limite do desprendimento, o levou a ir além do ponto de controle. A situação em que ele se encontra é de tamanha angustia, é tão desesperadora, tão incontrolável, que ele vai ficar insistindo, como que batendo e batendo numa porta que não abre nunca, em tempo algum. Logo, ele está condenado a permanecer buscando, insistindo em encontrar o anelo que vai fazer com que ele saia da angustia em que vive. Nota-se que a palavra “batendo” é repetida várias vezes, o que nos remete a uma imagem desesperada e desesperançada desse indivíduo. Tudo o que ele idealizou, todas as suas tentativas Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 136


foram em vão. Esse sujeito vai passar a vida inteira insistindo em realizar seu sonho, mesmo sabendo que nunca irá encontrar. Assim, o protagonista está condenado a buscar, vemos então reafirmada a idéia anterior de que esse homem já se entregou a essa busca em outros contextos. Trata-se, portanto de uma narrativa cíclica. Nesse contexto, a porta, na verdade, é uma grande metáfora para dizer que a passagem que se abre, e que segundo o texto não abre nunca, é o limite, é a fronteira que separa o ser humano de seu objeto de desejo. Encontrar o objeto de desejo, como forma de se livrar da triste “dor de existir” é, na verdade, uma grande ilusão. Essa porta nunca, em tempo algum, vai se abrir, logo o homem está fadado a permanecer batendo, a buscar por algo que não vai se concretizar. “Além do ponto” é um texto absolutamente pessimista. Mas não é um pessimismo apenas contemporâneo, é humano. Na verdade, esse sentimento, essa angústia vivida pelo personagem, é do homem. Esse indivíduo do conto busca, na verdade, suprir uma carência que é ontológica, que está na origem do homem. Essa marca pessimista, essa condenação em busca de algo que nunca vai encontrar, já vem sendo falada à séculos e séculos. Podese dizer até que esse texto possui mais que um pessimismo, ele possui uma melancolia, uma saudade de uma coisa que não foi vivida, mas que é desejada. A melancolia é uma dor obscura, um sentimento característico de quem perdeu algo. Nela vemos um luto sem fim, que coloca o indivíduo em uma obscura dor sem limites, por conta de uma impossibilidade real ou imaginária. No texto vemos essa dor no personagem, pois ele dá ao seu objeto “perdido”, uma dimensão extraordinária. Segundo Freud, é como se o sujeito introjetasse o objeto em si, como se o tivesse incorporado no sentido canibalístico do termo, fazendo assim uma identificação narcísica. No conto, vemos um amor Eros, uma busca que envolve efetivamente desejo, não o desejo carnal; é claramente perceptível Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 137


que o personagem não está buscando propriamente uma noite de sexo. Assim, podemos identificar a necessidade de união com uma “parte perdida”, e não por um homem ou mulher especificamente. Na verdade, o que o indivíduo do conto procura verdadeiramente, é o “objeto ideal” aquele que o completará, que dará atenção, carinho, aconchego, aquele que existe tão e somente para suprir todas as suas demandas, anseios, necessidades e carências. No entanto ele não o encontra, e pior, está fadado a permanecer procurando. O ser humano estaria destinado a buscar o amor exaustivamente. É um trabalho forçado, árduo e sem garantias como no mito grego de Sísifo que é geralmente contado para enfatizar a dificuldade de um trabalho. A pedra que Sísifo foi condenado a carregar é gigantesca, tão grande que ele mal é capaz de movê-la, assim, cada passo dele morro acima, força seus nervos, seu coração, seus tendões ao limite de sua resistência. Vemos em “além do ponto”, claramente, essa imagem de Sísifo no personagem, que vai até o limite para conseguir o que quer, não é feliz na realização, mas não pode nem dizer que não quer mais fazer, pois está condenado a isso eternamente. O reencontro com objeto ideal vem atender à grande vontade do ser humano em sua existência de suprir suas faltas e suas incompletudes. Entretanto, na modernidade, esse reencontro torna-se mais do que uma vontade, é uma necessidade. Nela, acredita-se que a intensidade do amor está em não amar ninguém além da pessoa amada, pois esta será a única solução para que o indivíduo acabe com sua agonia de viver nesse deserto de sofrimentos que está condenado. Assim, o amor então se torna uma relação para uma pessoa específica, para exclusivamente um “objeto de amor” e não, uma atitude, uma orientação de caráter que determina a relação de alguém para com o mundo como um todo. Fromm nos ensina que o amor “é uma atividade, e não um afeto passivo; é um “erguimento” e não uma “queda”. De modo mais geral, o caráter

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ativo do amor pode ser descrito afirmando-se que o amor, antes de tudo consiste em dar, e não em receber.” (Fromm, 1991, p. 37) Com efeito, no amor, o ser humano pensa finalmente viver o mito da fusão com outro, quer perder a identidade nas mãos daquele que no momento é “tudo” para ele. Seguindo as palavras de Fromm, “supõe-se que o amor seja o resultado de uma reação espontânea, emocional, quando alguém é de súbito apanhado por um sentimento irresistível.” (Idem, 1991, p. 64) A dor da solidão é tanta que as pessoas se desesperam e acabam se envolvendo umas com as outras, sem nem saber por quê. Vivenciam relacionamentos complicados, insistem neles, mesmo sabendo que não existe futuro ali, e depois não entendem porque o relacionamento não deu certo. De acordo com Fromm, o ser humano confunde-se muitas vezes com a experiência de “cair” enamorado, o súbito colapso das barreiras que até certo momento existiam entre dois estranhos (...) essa experiência de súbita intimidade é, por sua própria natureza, de vida curta. Na verdade, por não saber exatamente o que estão procurando, unem-se através da carência, e esta não permite que o indivíduo veja o outro como ele é, então ele idealiza. Ambos revelam os menores detalhes de vida, pensam que estão mergulhando um na alma do outro, dando impressão que a tão sonhada união total finalmente aconteceu, que dessa vez o destino se revelou. Para Erich falar da própria vida pessoal, das próprias esperanças e ansiedades, mostrar-se nos seus aspectos infantis ou pueris, estabelecer um interesse comum em face do mundo – tudo isso é tomado como superação da separação. Segundo Zigmnud Bauman, em todo amor há dois seres, cada um a grande incógnita da equação do outro. Isso é que faz o amor parecer um capricho do destino aquele futuro estranho e misterioso, impossível de ser descrito antecipadamente, que deve ser realizado ou protelado, acelerado ou interrompido. Amar significa abrir-se ao destino, a mais sublime de todas as condições Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 139


humanas, em que o medo se fundo ao regozijo num amálgama irreversível. Abrir-se ao destino significa em última instância, admitir a liberdade no ser: aquela liberdade que se incorpora no Outro, o companheiro no amor. (Bauman, 2001, p. 21) O amor representaria então uma relação de liberdade, de construção contínua e não uma necessidade narcisística, egoísta, de suprir uma carência, de acabar com uma dor que na verdade não acaba nunca. Dessa forma, um indivíduo que acredita que amar é fazer da outra pessoa a sua “tábua de salvação”, aprisionando-a, achando que ela é seu “objeto ideal”, fazendo dela uma parcela de si mesmo, comete um grande equívoco. O verdadeiro amor é livre, não se restringe a uma só pessoa. É altruísta, abnegado, “essencialmente um ato de vontade, de decisão de entregar a minha vida completamente para a outra pessoa.” (Fromm, 1991, p. 64) Ele acontece quando duas pessoas não se escolhem um ao outro, mas são escolhido um para o outro, esperando-se contudo que mutuamente se amem. Amar alguém é um ato de vontade, de entrega, não é apenas um sentimento forte, é um julgamento, uma responsabilidade, uma promessa, mas, sobretudo, uma decisão. Esse tipo de amor, que Fromm nomeia como “genuíno,” é uma “expressão de produtividade que implica cuidado, respeito, responsabilidade e conhecimento. Não é um “afeto, no sentido de ser afetado por alguém, mas um esforço ativo pelo crescimento e felicidade da pessoa amada, enraizada na própria capacidade de amar que alguém tem.” (Fromm, 1991, p. 66) No conto, podemos ver um personagem que se afasta completamente desse tipo de “amor” tratado. Vemos um sujeito egoísta, que só se interessa por si mesmo e pelos seus interesses. O mundo exterior é encarado por esse indivíduo, apenas como ponto de vista daquilo que ele pode extrair dele. O outro é primariamente um meio de satisfação de suas próprias necessidades. Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 140


O amor “louco”, irremediável, dependente, movido pelo desejo, pela ilusão, pela carência, conforme foi visto no conto, é o tipo de amor que diz “não consigo viver sem você”, já o amor amadurecido, livre de ilusões, é um amor que diz “consigo viver sem você, mas quero viver com você”, é o amor que se reconhece como amor, que tolera, que convive com as diferenças, com os defeitos e as imperfeições do outro, que sabe que a eternidade não existe, e que um dia, de um jeito ou de outro, tudo acabará. Está certo que o amor também é um tipo de experiência para suprir à factual e crescente dor de existir, entretanto, de todas as experiências, o amor “amadurecido”, uma vez “encontrado”, no sentido de que, dentro de relacionamentos duradouros é necessária uma busca contínua, diária, para manter “vivo” esse sentimento, ele ao menos conforta, acolhe, traz o conforto necessário para suportar a dor, que se apresenta de maneira diferente em cada indivíduo. Neste sentido, essa busca pelo amor pode ser vista como uma dádiva e uma desgraça. Uma desgraça porque é agoniante e, principalmente, sem garantias. E uma dádiva, porque é ela que mantém o indivíduo vivo, já que a vida de uma pessoa que não crê na possibilidade de encontrar uma “felicidade”, está fadada ao desespero. O amor sempre foi tema da literatura, da música, do cinema e de tantos outros ramos das artes humana. Este “contentamento descontente” foi, é, e sempre será, apesar de todos os estudos, uma grande incógnita para nós. Caio Fernando Abreu, em sua vasta obra, falou sobre esse sentimento amoroso, relacionando-o principalmente a um discurso desesperançado por conta da incerteza da contemporaneidade, na qual tudo é efêmero é passageiro, incerto, vazio, descrente. Na ótica do presente artigo, o “sujeito líquido” está constantemente em busca de algum tipo de experiência que acabe com sua dor de existir. De todas as experiências, a mais significativa é sem dúvida a busca pelo “amor”. O conto de Caio F. escolhido para análise fala do conflito de um indivíduo em Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 141


busca desse amor tão desejado. Abreu nos apresenta uma narrativa melancólica, desesperançada, de um alguém que procura um outro alguém. Vemos uma luta, um conflito interno, de um sujeito que busca viver a liberdade de seus desejos mais íntimos. O conto narra uma busca que está na origem do ser humano. No entanto, nesse texto intimista e existencial, este sujeito líquido leva essa busca às últimas consequências. Ele se reconstrói num disfarce para conquistar o que quer. Vemos um indivíduo egoísta, que, de certa forma, não busca por um “amor genuíno”, mas simplesmente por alguém que vai fazer com que ele saia da situação angustiante em que vive. “Além do ponto” nos leva a refletir a respeito de que tipo de amor estamos falando na modernidade. É fato que estamos fadados a buscá-lo, é trabalho forçado. Entretanto, que tipo de amor é esse que procuramos, já que o amor desse tempo é caracterizado pelo caos, pela descrença, pelo desaparecimento e pela desconstrução? É o “amar loucamente” a ponto de aceitar qualquer tipo de coisa, é colocar a sua vida nas mãos do outro e deixar que ele faça dela o que quiser? Ou é o amor livre, amadurecido, destituído de ilusões? A agonia da modernidade líquida faz com que a maioria das pessoas veja o amor antes de tudo, como o de ser amado, em lugar de amar. De acordo com Fromm, a única coisa que uma pessoa pode dar a outra verdadeiramente é dar de si mesma, dá o que tem de mais precioso, dá de sua vida. Isso não quer dizer que sacrifique sua vida por outrem, mas que lhe dê daquilo que em si tem de vivo; dêlhe sua alegria, de seu interesse, de sua compreensão, de seu conhecimento, de seu humor, de sua tristeza – de todas as expressões e manifestações daquilo que vive em si. (Fromm, 1991, p. 39) Nesses tempos, em que os indivíduos procuram no amor o sentido para sua vida, não percebem que o único sentido possível é o sentido que cada um pode dar à sua própria vida. Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 142


Assim, vivendo sua própria vida plenamente, dando de sua vida gratuitamente, enriquece a da outra pessoa, valoriza-se o sentimento de vitalidade ao valorizar o seu próprio sentimento de vitalidade. Quando amamos, pura e somente, de uma certa forma, aceitamos que não existe a possibilidade de uma felicidade plena, pois essa dor que nos acompanha, e que em cada ser humano se apresenta de forma distinta, talvez não passe nunca. Enfim, talvez o que nos resta é preservar a nossa individualidade, procurando ser inteiros, mergulhando em nós mesmos, nos reconhecendo como indivíduos únicos, “alguém a quem só é dada essa oportunidade única de viver, com esperanças e decepções, com tristezas e temores, com a ânsia de amar e o horror ao nada e a separação”. (Fromm, 1991, p. 33) Desta forma, quem sabe o amor se apresente e nós possamos continuar essa busca de um jeito diferente, no dia-dia, em cada olhar, cada palavra, cada toque. O amor propriamente dito é a mais linda de todas as frustrações, porque é mais do que se pode expressar.

Referências ABREU, Caio Fernando. Caio 3D. O Essencial da década de 1970. Rio de Janeiro: Agir, 2005. _________ Morangos Mofados. São Paulo, Agir, 2005. AZEVEDO, Beatriz. Trabalho apresentado na Jornada do Rio de Janeiro "Os afetos na vida cotidiana". Disponível em: http://www.escutaanalitica.com.br/melancolia.htm BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. _________ Amor líquido. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001. CAMÕES, Luís de. Sonetos. São Paulo, Martin Claret, 2001. COMMELIN, P. Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro, Ediouro. Dicionário de símbolos (Virtual). Disponível em: http://www.scribd.com/doc/3586939/Dicionario-dos-simbolos FROMM, Erich. A arte de amar. Belo Horizonte: Itatiaia, 1991. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP & A, 2004. HARVEY, David. A condição pós-moderna: Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 7 ª edição, São Paulo, Loyola, 1998.

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HOLANDA, Heloisa Buarque de. Hoje não é dia de rock. In: Morangos Mofados. São Paulo, Agir, 2005. p 9 LEAL, Bruno Souza. Caio Fernando Abreu, a metrópole e a paixão do estrangeiro: contos, identidade e sexualidade em trânsito. São Paulo: Annablume, 2002. MACHADO, Danilo Maciel. O amor como falta em Caio Fernando Abreu, 2006. Dissertação (Mestrado em História da Literatura) UFRG. MAGRI, Milena Mulatti (UNESP/SJRP). Sujeito, cidade e experiência urbana em Caio Fernando Abreu. Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários Volume 12 (Jun. 2008) Disponível em: http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa MARQUES, Márcia Cristina Roque Corrêa (UFRGS) Artigo - Além do ponto, de Caio Fernando Abreu: O discurso do outro. Cadernos FAPA - N. Especial VI Fórum FAPA Disponível em: http://www.fapa.com.br/cadernosfapa MELO, Joaquim Cesário de. A pré-história do amor: Raízes e origens do sentimento amoroso. Centro de Terapia Clinica do Recife. Disponível em: http://www.ctcrpe.com/artigos_arquivos/Page335.htm PLATÃO. Diálogos. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

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Prosa e poesia

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Os anjos de Caio Fernando Abreu Prof. M. Valeria Read Rosario, Argentina readvaleria@hotmail.com Em 2014 tive a sorte de encontrar-me com os anjos de Caio Fernando Abreu na Cidade Maravilhosa. Cheguei ao Rio de Janeiro com o objetivo de realizar seminários do Doutorado, o tema da minha tese é a obra cronista de Caio. Durante meus primeiros dias no Rio tentei escutar o rádio, ler jornais e fazer todo o possível para pôr em prática tudo àquilo que havia aprendido de português. Foi assim, que me chegou uma nota de um documentário, que iria estrear em breve, sobre a vida de Caio. Devo confessar que foi a beleza de Cauã Reymond que me fez ler a nota. E para minha surpresa ele tinha em suas mãos o primeiro livre de Caio que tinha também nas minhas: Morangos Mofados. Imediatamente devorei a nota do jornal para me inteirar do documentário baseado no livro de Paula Dip, livro maravilhoso que eu tinha comprado assim que saí do avião, também soube do festival de cinema, de Candé Salles e da iminente estreia do filme. Todos os dias antes de ir a faculdade, a argentina obstinada, enlouquecia os funcionários da bilheteria para saber se já estavam a venda as entradas do filme. A tal ponto que de vez em quando assim que me viam já sinalizavam de dentro da vitrine indicando que ainda não estavam a venda. Num desses dias o vendedor já me esperava ansioso, pois lá estava a entrada para ver o documentário. Ele explicou-me que para a primeira sessão, na qual Candé e Paula falariam não havia entradas. As lágrimas começaram a brotar lentamente. De todo modo comprei para a próxima sessão e fui cabisbaixa, para meu azar. Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 146


O dia tão esperado chegou. Para isso também tinha chegado ao Rio meu companheiro de vida, admirador de Fernando Pessoa, que sem nenhuma objeção e com suma felicidade se prestou a dividir esse momento de alegria comigo. Quando nos sentamos confortavelmente em nossos assentos, subiu ao palco uma pessoa com um microfone e disse que naquele dia projetariam dois filmes: Para sempre teu Caio F. e uma filme no qual Maria Bethania e uma senhora encantadora recitavam poemas de Fernando Pessoa. Olhei para meu companheiro e nós dois sabíamos de nenhum dos dois se moveria daqueles assentos ao longo da tarde. Mas a alegria extrema – porque sempre pode ser mais – chegou quando o orador disse que naquele dia iriam Paula Dip e Candé Salles. Eu não sabia se tinha entendido bem e perguntei ao jovem anunciador antes de sua partida e ele me confirmou: Naquela tarde estariam lá Paula Dip e Candé Salles. Meu coração batia, lá estavam os anjos de Caio, lá estava Caio orquestrando todo esse encontro. Começa o filme, escuto a voz de Caio pela primeira vez. Chorei. Meu companheiro acariciou minha mão e esse foi o sinal de que eu estava mesmo ali, que tudo isso era verdade. Durante o intervalo saímos para comprar as entradas para escutar a melodia de Pessoa. Ambos rimos muito com Dona Cleonice, tão exigente, indicando a Bethania como se acentuava e pronunciava a palavra ri-dí-cu-las que são, sem dúvida, todas as cartas de amor. Acabam os filmes. Sobem ao palco os diretores. Meu coração palpitava cada vez mais forte. Podíamos pegar o microfone. Por sorte minha coragem venceu a vergonha e pude pegá-lo e contar que era da Argentina, que estava lá estudando a obra de Caio, agradeci a Paula pelo livro, agradeci a Candé pela voz de Caio e por minhas lágrimas ao escutá-la. Quando terminei de falar tentei entregar o microfone para que outra pessoa pudesse falar, mas Candé me perguntou como tinha chegado, como tinha conhecido Caio. Então contei-lhe que Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 147


procurando meu objeto de estudo em uma livraria, de uma pilha gigante de livros peguei Morangos Mofados e quando li: “Dedicado a Caetano Veloso” soube que deveria estudar esse escritor. O silogismo foi perfeito: Caio gostava de Caetano, eu gosto de Caetano portanto eu gostava – indefectivelmente – de Caio. Nesse momento vi que Candé se emocionara. Quando todas as perguntas terminaram fui ao palco e nos fundimos em um abraço com Paula e Candé. Senti que os conhecia de toda uma vida e de algum certo modo, sim os conhecia. Disse que deveria entrevista-los. Paula me disse que com um prazer me daria uma entrevista, mas que no dia seguinte voltaria a São Paulo. E lá esteve Caio, sem duvidas esteve Caio, olhei para ela e disse: “Eu também vou amanhã a São Paulo”, viajei com meu companheiro para visitarmos nossa sobrinha que vive lá. Então, alí mesmo ambos me deram seus endereços e telefones e sai de lá como que flutuando. Diria Caio “tive 19 orgasmos seguidos”. Fui feliz. Não pude dormir por toda a noite. Cheguei ao encontro com Paula. Foi absolutamente maravilhoso. Sua generosidade me subjugou. Disse-me tudo o que eu queria saber. Autografou seu livro para mim. Tiramos uma foto e sai de sua casa como uma nuvem. De volta ao Rio entrevistei Candé. Ele pediu-me que contasse novamente aquela história de Morangos Mofados, Caetano e meu encontro com Caio através da magia da literatura. Quando acabei de contar minha história, senti que ele estava novamente emocionado. Me dá um artigo de uma revista na qual ele conta como chegou a literatura de Caio. Leio. Choro. Candé também chegou a Caio por Caetano, por Morangos Mofados. Ele também fez o mesmo silogismo. Tudo estava dito. O resto da tarde para mim foi um presente. Voltei a ver o filme. Voltei a escutar Caio. Fui feliz. A magia Caiana não termina aqui, porque voltei a encontrar-me com Paula, com Candé, com Sandra, Amanda, Graça, jornalistas do Zero Hora, mas isso é uma outro conto.

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Sempre quis contar essa história. Assim que veio a convocação da revista Jangada senti a necessidade de contá-la. Não sei se emociona aos leitores como a mim, também não sei se a minha relação com Caio é a mesma da de qualquer pesquisador com seu objeto de estudo. Sinto que não. Sinto que conheci esse homem e que de algum modo, junto com minha quinta xícara de café e meu computador tipo máquina de escrever, Caio está aqui hoje.

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O Mundo Inscrito Juliana Cristina Costa

Os pais não sabiam mais o que fazer. A filha tinha crises diárias, não tinha medicamento que resolvesse, vinte quatros horas por dia os pensamentos borbulhavam na mente e tudo era questão de indagação, tudo era recheado de porquês. Isto iniciou quando ainda era pequena, aos cinco anos de idade, tudo que observava indagava o porquê. Certa vez em tão tenra idade diante de uma atitude arrogante da vizinha com o porteiro do prédio, perguntou-lhe: - Toda esta arrogância lhe serve para quê? A vizinha reclamou com a mãe da menina sobre a tamanha insolência e ainda aconselhou que era para por limites quando ainda era a criança pequena, pois depois que cresce pensa que é rainha do mundo. A mãe chamou a atenção da filha, a menina que ouvia as reclamações da vizinha, perguntava a mãe: - Mãe, não deram limites a vizinha quando ela era da minha idade? A mãe colocou-a de castigo, disse que não poderia falar daquele modo com os adultos. A menina mesmo assim indagava a si mesmo: Porque os adultos não gostam de ser questionados? E esta pergunta ainda aparece na multidão de pensamentos que lhe aflige em seus dezoito anos de idade. O primeiro namoro durou dois dias, o namorado era filho de amigos da família, todos estavam felizes com o relacionamento. A jovem gostava do rapaz, entretanto certa vez diante de uma atitude de superioridade dele em relação a ela, indagou: - Você se acha melhor porquê? O jovem reclamou com a mãe da jovem de que ela o humilhava muito, terminou o namoro sem avisá-la. A mãe aconselhou que se a filha continuasse desse jeito jamais arrumaria um marido. A jovem indagou: - Mãe, eu preciso ter um marido para ser feliz? A expressão facial da mãe mudou, a menina cresceu e com a elas a profundidade daquilo que perguntava, a mãe ficou preocupada, pensou, quem muito pergunta fica louco, não quis ter uma filha louca, marcou no dia seguinte um médico.

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Uma série de exames foram feitos, ressonâncias magnéticas e endoscopias, tudo para achar a raiz do problema, mas nada foi detectado, recomendou-se a psiquiatria, o psicólogo saia das consultas irritado, pois considerava incomodas todas aquelas perguntas, um dia para jovem perguntou se não era chato fazer tanta pergunta, ela respondeu: - O senhor faz poucas, isto não lhe é chato? A gota que precisava para abandonar a paciente. Recomendou um psiquiatra, este receitou medicamentos, a jovem perdia cabelo, mas não perdia os pensamentos. E por muito tempo os consumiu, depois desistiu, e mesmo que o médico receitasse não dava ouvidos, colecionava comprimidos, brincava de lançalos no sanitário, enquanto na mente incessantemente um mundo se construía, inscrevia-se. Fazia curso superior em direito, pois certa vez a vó lhe disse que o tanto que perguntava teria muito sucesso em ser advogada ou investigadora. Adorava as aulas de direito, o professor trazia situações que precisavam ser pensadas e pensamentos não lhe faltava sobre as coisas, saia-se bem. Mas certa vez, o professor disse que era necessário defender pessoas que sabemos que eram culpadas. A jovem universitária então o perguntou: - A justiça jamais existiu? O professor demonstrou irritação, mas mesmo assim respondeu que a justiça existia sim, mas nossa profissão não é trabalhar de graça, se nos contratam devemos servir os clientes independente de quem eles sejam. A mente superlotava, mas uma pergunta surgia: - Somos vendedores de justiça? O professor se irritou, insultou, expunha a burrice da pergunta, lamentava uma aluna assim. Mesmo diante da fúria a jovem não renegava o pensamento e ele surgia: - Burrice para o senhor é confrontá-lo no que diz? A jovem foi reprovada na matéria, mas em todas as aulas indagava e de alguma forma isto lhe entristecia, pois vivia cheia de perguntas sem resposta. Aos quarentas anos e com dois filhos, uma moça de quinze e um rapazinho de dez, nenhum herdou a doença da mãe. Casou-se com Rodolfo, conheceu-o na universidade, apaixonou Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 151


porque ele ouvia as suas perguntas sorrindo e buscavam com ela todas as respostas. Se compreendiam mutuamente. Desistiu de exercer a advocacia, Se pós-graduou e começou a lecionar no curso de direito da Universidade em que estudou. Adorava a profissão, seus alunos reclamavam que as suas provas eram as mais difíceis, mas sempre brincavam com eles dizendo que era só fazer para si as perguntas que encontrariam a resposta. Que era para se perguntarem, incessantemente, até que surgisse um resquício da resposta, muitos assim fizeram e se saiam bem nas provas. A professora tinha uma rotina agitadíssima, estudo, preparação de aula, relatórios, etc. A semana era corrida, os pensamentos não incomodavam mais, porém estavam sempre presentes e intensos, talvez acostumou com todo aquele caos na cabeça. Por muito tempo se recusou a dirigir, pois dizia que qualquer pergunta era risco de acidente, o marido a levava e trazia do trabalho. Desenvolveu enxaqueca, sempre uma vez na semana a dor de cabeça surgia, anulando toda possibilidade de pergunta. Sentia dor, mas era o único momento em que se sentia normal, igual as outras pessoas, em que só pensava em uma única coisa: A própria dor. Todos da família já sabiam que durante o momento de enxaqueca não poderia incomodá-la. A mulher ficava deitada e sem abrir as cortinas, era a escuridão e a dor, nenhum barulho, ambiente propício para perguntas, porém só existia a dor. No outro dia, quando passava a dor, a mulher sentia fome e sede, acordava e ia para cozinha; a filha também acordava para se preparar para ir ao colégio, beijava a mãe e preparava junto o café da manhã. Enquanto preparava, a filha perguntou: - Mãe, como é pensar a todo momento? A mulher assustada com a pergunta, sorriu, e perguntou: - quer conversar sobre isto agora tão cedo? A filha respondia com a cabeça positivamente. A mãe explicou que pensar a todo momento é ter um mundo inscrito na alma, onde se ouve tudo e se ver tudo. A filha ainda indagou: - É como ser Deus?

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A mãe tristemente respondia: - Não, é como ser simplesmente humano e com poderes de Deus. A jovem percebeu a tristeza da mãe e buscou animá-la. Dizendo que era melhor pensar demais do que nada se pensar, como se a existência fosse nada. Sabia que a mãe não assistia televisão, pois tudo que via indagava incessantemente, principalmente as tragédias anunciadas. A filha dizia a mãe que era melhor pensar do que acostumar-se a comer assistindo a tristeza alheia, que queria ser como ela, pensar sobre as coisas a todo momento, de ter este mundo na cabeça a pensar o mundo que está no lado de fora. A vida em um mundo só já era difícil, imagina em dois, sorria para mãe. A filha despediu-se para ir à escola. Na sala de aula, o professor explicava a história do Brasil, a famosa chegada dos portugueses. A jovem fez uma pergunta ao professor: - Professor se tudo foi tão pacífico aonde estão todos os índios? O professor disse não saber, a turma riu da pergunta. A aula prosseguia, a menina percebia que seus pensamentos eram como gotas de uma cachoeira seca, percebia a mãe como heroína. E pensava consigo mesmo: - Por que só ela foi nascer assim?

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Julieta procura Heimlich Katrina Spencer

Raquel despertou tossindo forte. A sua garganta tentava puxar algo fora da boca, mas não importava quanto tentava inalar, o ar não chegava aos seus pulmões. Começou a entrar em pânico e justo antes de que o seu sistema dispersasse um fluxo de adrenalina, hormônio de alerta vermelho, conseguiu respirar o oxigênio que tão desesperadamente ela precisava. Foi um momento terrível para ela. É uma coisa não poder respirar, ela pensou. Era outra não poder gritar a sua emergência e pedir ajuda de alguém para cuidar dela. Morava sozinha, dormia sozinha e vivia sozinha. Quem se preocuparia por ela se algo acontecesse mal? Pode imaginar chegar ao telefone, digitar o “192” e escutar, “Qual é a sua emergência?” e não poder pronunciar nada? Foi nesse momento que decidiu que precisava de um parceiro. Se deitou de novo tragando saliva, esfregando o pescoço e deixando que o seu corpo se recuperasse do medo. Assim, pouco a pouco, planejou a próxima mudança que entraria na sua vida. Por muitas razões Raquel não procurava e não desejava acompanhante. Teria gostado de que alguém lavasse os pratos depois de ela preparar uma comida, sim. Que alguém jogasse fora o lixo no fim da semana, sim. Que alguém compartilhasse as suas partes íntimas comas suas, cálidas, úmidas, brandas. Sim. Mas na verdade, gostava de dormir sozinha, de curtir o silêncio depois do dia laboral e de não ser obrigada a prestar muita atenção aos problemas dos outros. Mas o episódio do bloqueio na sua garganta havia lhe dado um medo enorme e sabia que muito-demais--teria que mudar. Decidiu criar um perfil em um dos sites de dating da Internet e esperou. O seu nome de usuário era “Heimlich,” à maneira da manobra de Heimlich, técnica que salvava vidas. E não foi difícil. Ela não era feia. De peito não faltava. Era a sua inteligência que a fazia menos adequada para a dupla típica. Eram os compromissos constantes que não lhe interessavam. Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 154


Ela elegeu uma foto com um pouco de vista da divisão no decote e esperou. Sabia que serviria como isca. E esperou. Pouco. Chegaram as mensagens na sua caixa de entrada--eram pornográficas, impessoais e numerosas. Se houvesse sido uma garota normal, ela se sentiria ofendida. Mas ela tinha uma missão e era mercenária com os seus assuntos. Em que eles estavam pensando, ela queria saber. Quando na totalidade das suas vidas as fotos desnudas dos seus pênis túrgidos lhes haviam ganhado acesso ao sexo? Então por que ia lhes ganhar direitos a transar agora? O homem é um animal curioso, concluiu. Mas cada noite que passava representava outro risco de morte sozinha na cama e então seguia motivada. Reduziu as múltiplas respostas ao um mínimo de candidatos e marcaram datas para se ver. “Não tem fome? Vai somente tomar sopa?” perguntou o candidato mais promissor. “Sim, só isso. Para mim é muito mais seguro,” ela respondeu. “Como assim?” “É muito fácil de engolir.” “Gosta de engolir?” ele perguntou, de repente mais interessado na conversa. “Líquidos? Claro. Assim se correm menos riscos.” “Riscos de que? “Da morte,” ela disse sussurrando e querendo manter a imagem romântica da reunião. “Quanto menos sólidos ingeridos, menor a probabilidade de... você sabe...” ela continuou. “Não, temo que não sei.” “É questão de matemática” ela falou suavemente e mas para ela mesma do que para ele. Se viram em silêncio. Ela interrompeu a quietude. “A propósito,” perguntou, “você não recebeu alguma vez treinamento nos primeiros socorros?” “No quê?” Jangada: Colatina/Chicago, n. 7, jan-jun, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 155


“Nos primeiros socorros. Por exemplo se alguém se cortar e há sangue, você cura a lesão. Ou se alguém desmaiar, você sabe reanimar. Ou se alguém tose e não consegue respirar--...” “Já, já, já. Já entendi,” disse ele com uma cara de suspeita. “Fez algum curso desse tipo no passado?” “Fiz, sim. Faz muitos anos. Quando era rapaz, alguma vez, sim. Quando trabalhava como salva-vidas. Mas isso foi há muito tempo. Quem-- Ela sorriu generosamente. “-- Saberia usar essas técnicas se a ocasião surgir? Por exemplo, esta noite?” Ela aproximou-se dele, pondo a mão no joelho dele. “Fale, fale,” ela disse, interessada e com os olhos brilhando. “Está me dando um pouco de medo. Por que você me está perguntado isso? O que você está procurando exatamente? Jogos eróticos? Pervertidos? Algum fetiche?” “Pois coabitar!” ela respondeu com toda honestidade. “E poder sobreviver à experiência”, ela finalizou.

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Secreta esperança

Keila Mara de Souza Araújo Maciel

corrói-me a sua presença que torna tão aguda a minha existência que eu sempre quis amena sem alardes sem amplitudes necessitadas de partilhas demoradas e laços entrincheirados desculpe minha ofensa por colocá-lo no labirinto quando te dou ao mundo uma longa jornada e assim lhe permito a força de construir seus dias junto a mim, mas avistando toda vastidão jamais percorrida

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Sintonia

Ana Paula Alves Correa Ao suave toque melancólico Ao mesmo tempo agitado Da melodia ensaiada Engoli o rádio que me entretia Desde aquele dia Não conheço mais o silêncio Dentro de mim é só canção Triste é nunca ter paz Bom é captar ondas Das mais distintas frequências Dos mais variados lugares Eu que nunca tive ritmo, canto Sinto uma nota dentro de mim Aos poucos vou me esgotando Essa noite, o acorde foi silenciado Aos poucos me sinto tão fraco Parece que som a ser agraciado Será o de meu coração (des)sintonizado.

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Os trabalhos publicados na Jangada: crítica, literatura, artes estão licenciados com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional. Arquivo formatado em fonte Book Antiqua, tamanho 11, e publicado em formato pdf pela Clock-t Edições e Artes, em agosto de 2016.

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