crítica | literatura | artes
jangada ISSN 2317-4722
JOURNAL FOR BRAZILIAN STUDIES
n.8, jul-dez, 2016
Opressão e silenciamento oppression and silencing
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Jangada: crítica, literatura, artes Dossiê: Poder, opressão e silenciamento N.8, jul-dez, 2016 www.revistajangada.com.br www.brazilianstudies.com
Sumário Editorial................................................................................................. 1 Do silêncio à vertigem: a escrita autobiográfica de Herzer ........... 5 “Deus sabe o que faz” – uma abordagem pós-colonialista de “Pai contra mãe”, de Machado de Assis e “A menor mulher do mundo”, de Clarice Lispector .......................................................... 26 A voz da periferia através de Sérgio Vaz ....................................... 44 Retratos da violência no Brasil do século XIX: “Pai contra mãe”, de Machado de Assis......................................................................... 57 Discurso, construção dos papéis sociais de gênero e sua expressão em violência: uma análise de Esteban Trueba, da obra A Casa dos Espíritos.......................................................................... 73 A língua que é capaz de incluir ou excluir um indivíduo analisada em textos publicitários da Adidas ................................. 92 Narrativa e trabalho em Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo ......................................................................................... 112 Joaquim Tenreiro: Mobiliário Moderno Artesanal ..................... 138 Berenice Azambuja: Viva a Bombacha, Tchê! A perpetuação da tradição gauchesca na composição de autoria feminina ............ 157 Literatura e História: As narrativas presentes na historiografia de Goiás .................................................................................................. 172 A Literatura como desvio ............................................................... 190 Prosa e poesia ................................................................................... 198
Editorial Neste volume, pretendemos colocar em pauta um debate sobre as múltiplas formas como as relações de poder se operam na realidade brasileira, o que se torna evidente em diversas produções culturais que aqui são analisadas. Como nossos leitores e leitoras poderão perceber, as dinâmicas das relações de poder desnudam uma série de assimetrias que se mostram presentes em nosso país desde o processo de colonização e que, hoje, se reconfiguram na forma de racismo, homofobia, xenofobia, misoginia e tantas outras formas de opressão, silenciamento e exclusão. Especificamente sobre o século XIX e sobre a rede de violência que foi perpetrada durante o período da escravatura em nosso país, dois artigos contribuem com análises de grande relevância da obra de Machado de Assis: “Deus sabe o que faz” – uma abordagem póscolonialista de “Pai contra mãe”, de Machado de Assis e “A menor mulher do mundo”, de Clarice Lispector, de Renan Silva Magalhães e Gracia Regina Gonçalves e Retratos da violência no Brasil do século XIX: “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, de Elisângela Aparecida Lopes Fialho. De um lado, Magalhães e Gonçalves propõem uma leitura comparativa das obras machadiana e clariceana para colocar em evidência a forma como determinados indivíduos são tidos como abjetos e considerados indignos de ocupar um estatuto de humanidade. De forma análoga, Fialho disserta sobre os horrores das punições contra os escravos, denunciados na prosa machadiana. Complementando-se, estes dois trabalhos nos mostram como violência, relações de poder e opressão foram colocados como objeto analítico das argutas lentes de Machado e de Clarice. Em sequência temática, agora com um olhar que se debruça para a sociedade e para a produção cultural contemporâneas, Do silêncio à vertigem: a escrita autobiográfica de Herzer, de Marcus Rogério Salgado e A voz da periferia através de Sérgio Vaz, de Lara Barreto Corrêa e Juliana Gervason Defilippo, colocam em pauta questões de gênero, sexualidade, exclusão social e marginalidade. No texto de Salgado, esses eixos nodais são discutidos a partir de uma Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 1
leitura da escrita autobiográfica de um homem transexual, em que se torna evidente uma série de questões que nos fazem refletir sobre a construção das subjetividades trans e a forma como são encaradas pelo olhar hegemônico. Já no texto de Corrêa e Defilippo, somos confrontados com o nosso próprio lugar social e a forma como a cultura mainstream e a academia lidam com a produção periférica e marginal. Nesse ínterim, noções sobre a própria ideia de arte e estética são colocadas em pauta, ao mesmo tempo que se propõem a questionar o lugar social da produção de autores dos subúrbios e das favelas brasileiras. Ainda no campo da literatura, três artigos nos fazem refletir sobre as relações entre centro e margem e sobre os lugares que incluem e que excluem: Narrativa e trabalho em Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo, escrito por Thayllany Ferreira Andrade e Gustavo Abílio Galeno Arnt, Berenice Azambuja: viva a bombacha, tchê! A perpetuação da tradição gauchesca na composição de autoria feminina, de Karen Gomes da Rocha e Literatura e História: As narrativas presentes na historiografia de Goiás, de Rogério Max Canedo. No artigo de Andrade e Arnt, vislumbramos um microuniverso urbano opressor, em que os trabalhadores e as classes populares são massacrados por uma arquitetura e uma teia relacional que segrega, delimita espaços rígidos e diz quem é ou não digno de ocupar a cidade. O ônibus, então, emerge como uma metáfora e uma metonímia desse processo. Rocha, por sua vez, nos faz retomar uma questão que é caríssima a crítica e que ronda o feminismo desde suas origens – o lugar da mulher escritora no cânone e as especificidades da escrita feminina. Aqui, são colocadas em xeque discussões que nos remetem à clássica indagação de Virgínia Woolf sobre o espaço cultural, simbólico e material destinado à produção de mulheres. Analogamente à discussão de Rocha, mas agora sobre a perspectiva das tradições regionais goianas, no artigo de Canedo somos convidados a quebrar os estereótipos, a repensar valores xenofóbicos e revisitar a historiografia de Goiás. Assim, um rico debate se descortina para a percepção de diferentes culturas, estilos de vida e formações subjetivas.
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Dois textos fecham o debate aqui proposto, no campo dos estudos literários: Discurso, construção dos papéis sociais de gênero e sua expressão em violência: uma análise de Esteban Trueba, da obra A Casa dos Espíritos, dos pesquisadores Marcos Alves de Souza, Franciele Regina Demarchi e Eduardo Matheus Ferreira Lopes, e A Literatura como desvio, de Marcos Vinícius Almeida. No primeiro, refletimos sobre uma obra em que subjetividade e coletividade se imbricam e as experiências pessoais e afetivas convergem para um debate de cunho sociopolítico, que problematiza a opressão, a violência e o autoritarismo. No segundo, fazemos uma viagem panorâmica pelo conceito de Literatura como desvio, desde a poética clássica, vislumbrando como a própria definição de literatura se imbrica com uma série de questões inerentes às noções de cópia, simulacro, realidade, ficção – e, consequentemente, lugares sociais, pontos de vista e rearticulações de poder. Cientes de que um dossiê sobre opressão e silenciamento deveria ser democrático e aberto à diferença, optamos por incluir duas análises que, apesar de se deslocarem um pouco do eixo central de nosso debate, se apresentam como ricas contribuições para uma discussão sobre a pluralidade e a polissemia das formações sociodiscursivas. Assim, os textos A língua que é capaz de incluir ou excluir um indivíduo analisada em textos publicitários da Adidas, de Gisele Soares Vieira e Joaquim Tenreiro: Mobiliário moderno artesanal, de Marcia Campos Bleich, descortinam uma série de outros debates sobre vanguardismo, resistência e combate à opressão. No texto de Vieira, é possível perceber as relações de poder que se evidenciam nas entrelinhas dos discursos, prendendo-nos em armadilhas que reforçam os estereótipos de gênero e as definições hegemônicas sobre os corpos e subjetividades. Já no artigo de Bleich, conhecemos o trabalho inovador de Joaquim Tenreiro, que reconfigura certa visão sobre o mobiliário e o espaço doméstico, nos fazendo realocar os conceitos de tradição e modernidade. Em conjunto, os artigos aqui elencados apresentam um panorama diverso e enriquecedor de debate sobre questões de extrema relevância para as Letras e as Artes brasileiras. Além disso, inserem-se como modos de repensarmos a sociedade brasileira Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 3
contemporânea em suas mais diversas faces, questionando o conservadorismo, a opressão e os discursos excludentes – que insistem em se infiltrar pelas frestas das mais diversas práticas sociais, assombrando as conquistas individuais e coletivas e a convivência democrática e plural. Aos leitores e leitoras, uma leitura instigante e reflexiva! Os editores.
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Do silêncio à vertigem: a escrita autobiográfica de Herzer Marcus Rogério Salgado1 Resumo: Publicado em 1982, A queda para o alto é, no âmbito da literatura brasileira, obra pioneira escrita por autor transexual. Nascida Sandra Mara Herzer, passaria a adotar o nome social de Anderson Herzer e foi apenas com o sobrenome que assinou esse volume no qual são reunidos seus escritos, logrando mais de vinte edições desde então. Sua escrita é marcada pela sensação de não-pertencimento e pelas ressonâncias ontológicas de diversos traumas (tanto individuais como sociais). Assim, para Herzer a palavra é uma forma tanto de representar a vertigem espacial dos espaços claustrofóbicos onde a sociedade civil deposita seus dissidentes como de romper o silêncio e o sequestro de voz que a tais subjetividades posicionadas à margem são impingidos. Palavras-chave: Literatura brasileira contemporânea; escrita autobiográfica; questões de gênero.
Abstract: Published in 1982, A queda para o alto is a pioneer work in the contexto of brazilian literature written by transgender (FtM) author Herzer. Born and registered as Sandra Mara Herzer, the author adopted the male name Anderson Herzer to reflect his gender identity. It was under his surname that he signed the book in which are put together his writings – reaching more than twenty editions since then. Herzer´s writing is marked by the feeling of non-belonging and by the ontological resonances of so many traumatic situations lived by the author – for whom the word is a way of both representing the spatial vertigo produced by the claustrophobic spaces in which society drops its dissidents and breaking through the silence that is systemically attributed to marginal subjectivities. Keywords: Contemporary Brazilian literature; autobiographical writing; gender studies.
1Doutor
em Ciência da Literatura (UFRJ) e mestre em Letras Vernáculas (UFRJ). Professor adjunto de Literatura Brasileira (UFRJ).
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No âmbito da literatura brasileira, A queda para o alto é obra pioneira de autor transexual. Nascida Sandra Mara Herzer, a fim de refletir sua identidade de gênero, passaria a adotar o nome social de Anderson Herzer e foi apenas com o sobrenome que assinou esse volume em que são reunidos seus escritos, acolhidos com prefácio do então deputado Eduardo Suplicy. Publicada em 1982, a obra obteve recepção positiva não apenas na época do lançamento, garantindo mais de vinte edições desde então. Sua vida e obra serviram de matéria de base para o cineasta Sérgio Toledo no filme Vera (1986), com primorosa trilha sonora de Arrigo Barnabé, Paulo Barnabé, Hermelino Neder e As Mercenárias. É referida em importantes obras historiográficas que inventariam textos a lidar com questões de gênero, como Tríbades galantes, fanchonos militantes, de Amílcar Torrão (cf: TORRÃO FILHO, 2000, p. 287). Para registro historiográfico, A queda para o alto precede obras posteriores escritas por autores transexuais, como Erro de pessoa (1984) e Viagem solitária: memórias de um transexual 30 anos depois (2011), de João W. Nery – que, embora fosse mais velho que Herzer e seja considerado o primeiro transexual feminino a surgir no Brasil, só veio a escrever suas memórias posteriormente, como se infere do subtítulo de seu segundo livro – ou, ainda, Eu trans: a alça da bolsa – relatos de um transexual (2014), de Jô Lessa, e Corpo em obra (2011), de Rafael Kalaf Kossi, em que são reunidos diversos relatos de transexuais e transgêneros. Seria discutível ceder a anterioridade às Memórias de Madame Satã: além da possível inadequação à categoria focalizada (prestando-se mais a rubrica que abranja relatos de experiências ligadas antes à homossexualidade do que à questão transexual propriamente dita, uma vez que nesta última o que está em jogo é a aceitação social de uma identidade de gênero distinta daquela de nascimento e registro civil), as Memórias, publicadas em 1972, sofreram um trabalho de edição e possível copidesque por parte de Sylvan Paezzo. O livro de Herzer também é pioneiro entre os escritos de egressos da FEBEM (a extinta e temida Fundação para Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 6
o Bem-estar do Menor, instituição disciplinar aonde eram direcionados os menores infratores), tendo primazia sobre obras como Sentimentos de um menor abandonado na Febem (1998), de Sérgio Lourenço de Carvalho, Luz no fim do túnel (2004), de Cleonder Evangelista, Guerreiros urbanos (2007), de Asdrúbal Serrano, e Brincar de ser feliz (2007), de José Ribeiro Rocha. A queda para o alto é dividido em duas partes: “Depoimento” e “Poemas”. Antecedendo à primeira parte, encontramos uma série de paratextos que não podem ser ignorados. A começar pelo mencionado prefácio, que contém não apenas o relato de Suplicy sobre as circunstâncias pelas quais conheceu Herzer, como também um poema (que não consta na seção do livro dedicada à sua poesia) e a transcrição de dois requerimentos do deputado junto à direção da FEBEM e ao Juizado de Menores. A seguir, encontra-se uma evocação poética de Herzer realizada pela advogada Lia Junqueira sob o título de “Al perderte”. Encerrando o conjunto de peças textuais introdutórias, encontramos uma “Apresentação” assinada por Herzer, que nada mais é que um poema intitulado “A gota de sangue”.
1. A vertigem do espaço: escrita autobiográfica e trauma “Depoimento”, a primeira parte de A queda para o alto, é um texto escrito em primeira pessoa, peça de prosa contendo cerca de cento e vinte páginas, a ocupar a maior parte do volume. É subdividido em vinte e nove capítulos, aos quais se seguem uma carta e uma nota final. Como informa o prefaciador, “Depoimento” serviria como uma espécie de antessala na qual o leitor teria o primeiro contato com a escrita de Herzer. A ideia partiu de Rose Marie Muraro, que, ainda segundo o prefaciador, “percebeu que elas [suas ´poesias´] teriam muito mais sentido se pudessem estar acompanhadas da própria história de Anderson Bigode (Big) ou Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 7
de Sandra Mara Herzer” (apud HERZER, 1982, p. 11). Portanto, editorialmente, “Depoimento” seria uma narrativa quase reduzida à condição de paratexto, não fora o efeito de sentido que a mesma enceta, previsto, ademais, pelos próprios editores. A despeito de sua condição editorial preliminar ou mesmo preparatória, na primeira parte deste ensaio “Depoimento” será analisado como texto dotado de relativa autonomia, que, uma vez observada sob condições similares à da polia ideal, traz à tona componentes nucleares na escrita de Herzer. Antes de mais nada, é importante ressaltar que, escrito em registro pessoal, “Depoimento” é um texto autobiográfico e que, como tal, apresenta “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade” (LEJEUNE, 2008, p. 14). Por se tratar de uma narrativa autobiográfica, obedece, em linhas gerais, aos protocolos do gênero, com o narrador apresentando informações sobre sua vida e seu processo de formação enquanto indivíduo. É assim que abre a narrativa, tirando proveito da hesitação que precede toda escrita: Quisera eu ter um início, movido por uma varinha mágica, mas o modo mais simples e sincero seria começar relatando minha vida, sem esconder fatos desagradáveis, pois esses fatos me trouxeram experiências que às vezes me pareceriam sem solução, mas me ajudaram a reconhecer como muitos dizem: ‘ O único problema sem solução é a morte´. Digo isso por ter-me sentido por muitas vezes à beira do abismo, mas sempre, na última hora, havia uma saída ou uma mão amiga a me auxiliar num caminho com probabilidade de iluminação. (HERZER, 1983, p. 23). Na sequência dos protocolos inerentes ao que se poderia chamar genericamente de “literatura íntima” (LEJEUNE, 2008, p. 15), mais do que a simpatia do leitor o texto tem por escopo um efeito de empatia. Assim, deposita já no pórtico de sua narrativa Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 8
a advertência de que pretende compor seu relato “sem esconder fatos desagradáveis” (HERZER, 1983, p. 23). Sem dúvida, encontra-se implícita aqui a recusa à promessa retórica de não incidir em um jogo de máscaras e véus corriqueiramente não cumprida na escrita autobiográfica. Como sói ocorrer na escrita autobiográfica, a genealogia é passada em revista, o que, no caso de Herzer, implica a constatação de relações familiares disfuncionais: órfã de pai (assassinado) e mãe (prostituta), foi criada por avó e tia, sendo que, na casa da última, sofreu abuso sexual. Espaços claustrofóbicos se repetem na narrativa autobiográfica de Herzer: pátios, celas, camburões, quartinhos de castigo, corredores estreitos e outros espaços densamente povoados por corpos confinados e controlados socialmente compõem a cenografia dessa escrita. Há diversas passagens que atestam o que se está a afirmar: Aquele era um quartinho pequeno, sem condições de suportar a quantidade de menores detidos e, pouco a pouco, esse número aumentava, sendo que junto com as meninas ficavam as crianças, incluindo recém-nascidos. Na hora das refeições, o refeitório era dividido em duas partes por um estreito corredor: de um lado as meninas e, do outro, os meninos. (HERZER, 1983, p. 43) Chamaram por meu nome, entrei e presenciei, toquei aquele ambiente sujo e sem vida. Eram dois quartos contendo aproximadamente vinte beliches em cada um; no chão dos quartos e do refeitório dormiam muitas meninas. Portanto, era meio difícil, durante a noite, ir ao banheiro ou tomar água sem que se pisasse em alguém. Muitos dos colchões eram urinados, o mau cheiro sobrepairava por tudo dando-nos, cada vez mais, a impressão de estarmos fechados em um lugar muito distante da realidade. (HERZER, 1983, p. 48)
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O quartinho foi trancado, estávamos em umas quinze menores e não havia espaço suficiente para todas; portanto, nos acomodamos como podíamos, nosso corpo doía, dificultando ainda mais um descanso pelas próximas duas horas. O cansaço e a dor tomaram conta de nós e adormecemos como que num pesadelo que não tinha mais fim. (HERZER, 1983, p. 84). Durante quinze dias foram trancadas em um quartinho onde se guardava bandejas, não podendo sair nem para ir ao banheiro. Quando passávamos perto do quartinho, ouvíamos os gritos sufocados das mesmas que reclamavam não haver ar para respirar, diziam que o quartinho estava todo sujo, mas não havia opção se não podiam usar o banheiro, suas necessidades tinham que ser feitas ali mesmo. (HERZER, 1983, p. 119). E passados quinze dias, o quartinho se abriu, e finalmente pudemos ver as menores. Quando abriram a porta, as paredes estavam repletas de bolhas formadas pelo suor. Uma das paredes se partiu consequentemente. O chão cheio de fezes, urina, e seus pés descalços, corpo todo suado com um odor terrível. Saíram uma a uma do local indo em direção ao banheiro para tomar banho e trocar de roupa. Uma delas ao sair desmaiou, sendo levada à enfermaria sem sentidos. (HERZER, 1983, p. 119). Sob efeito da vertigem, a linguagem também passa por processos anamórficos, vinculando de forma direta estados psíquicos e cenografia: “o pátio onde tanto fui espezinhado, a cafua onde meu corpo padecia entre quatro paredes e sob o cimento bruto e frio, o rosto dos inspetores figurado com firmeza no alto dos quatro muros que me cercavam” (HERZER, 1983, p. 120-121). Assim, quando não são os cenários que se apresentam opressivos, Herzer agencia na própria escrita a tensão e o trauma Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 10
contínuos. As construções imagéticas e analogias com frequência seguem tal vetor de opressão vertical a trespassar a subjetividade. Encontramo-lo em passagens como: “Senti uma faca penetrando em meu coração, como se estivesse a matar um porco ou um outro animal qualquer” (HERZER, 1983, p. 64). Ou ainda: “Eu havia me esforçado tanto para conseguir fugir que, voltar simplesmente, era como me afogar de novo num poço de lodo” (HERZER, 1983, p. 65). De forma pungente, a escrita registra essa pressão claustrofóbica e o emparedamento social: “sentir os muros me prensando e tapando a vida” (HERZER, 1983, p. 71). Uma tensão claustrofóbica que talvez encontre raízes mais fundas na vida uterina, expresso em passagens que afirmam “esse sentimento de culpa por ter nascido” (HERZER, 1983, p. 39). Com os movimentos físicos e mentais limitados a espaços claustrofóbicos em condições sanitárias precárias (quando não degradantes), a sensação de asfixia vai rapidamente retirando a vida desses corpos em seu processo institucional de reificação – ao qual Herzer estava sempre alerta, definindo uma das instituições disciplinares pelas quais passou como “um local onde as pessoas são como objetos sem uso, depositadas” (HERZER, 1983, p. 46). Privados de sua condição humana quando do ingresso em instituições como a FEBEM, tais corpos (incluindo aí o seu) transmitem a Herzer “a impressão de estarmos em um lugar muito distante da realidade” (HERZER, 1983, p. 48). Hermeticamente fechados em instituições disciplinares para menores, são secionados do convívio social e passam a ter suas condutas monitoradas e potencialmente induzidas por dispositivos de controle. São espaços onde, por meio de reiterados processos de negação da individualidade em simetria com a contínua afirmação das relações de poder vertical ali vigentes, o todo avança para devorar a parte, o dispositivo sobrepõe-se aos elementos componentes. A sensação claustrofóbica tem a ver com sua passagem, durante o período narrado, pelas chamadas instituições totais, Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 11
denominação empregada no campo da psicologia e da antropologia social para classificar as instituições que dispõem de um controle total sobre a vida de seus internos, incluindo aí a configuração e a reconfiguração de suas subjetividades. Como explica Goffmann, a instituição total pode ser definida como “um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada” (GOFFMAN, 1974, p. 11). Assim, incluir-se-iam no rol de instituições totais as prisões, os manicômios, as unidades disciplinares para menores infratores, os quartéis, as colônias, os sanatórios, os conventos etc. A lógica das instituições totais é o secionamento, o confinamento e a repetição, tudo regido por um poder vertical: Uma disposição básica da sociedade moderna é que o indivíduo tende a dormir, brincar e trabalhar em diferentes lugares, com diferentes co-participantes, sob diferentes autoridades e sem um plano racional geral. O aspecto central das instituições totais pode ser descrito como a ruptura das barreiras que comumente separam essas três esferas da vida. Em primeiro lugar, todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob uma única autoridade. Em segundo lugar, cada fase da atividade diária do participante é realizada na companhia imediata de um grupo relativamente grande de outras pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto. Em terceiro lugar, todas as atividades diárias são rigorosamente estabelecidas em horários, pois uma atividade leva, em tempo predeterminado, à seguinte, e toda a sequência de atividades é imposta de cima, por um sistema de regras formais explícitas e um grupo de funcionários. Finalmente, as várias atividades obrigatórias são reunidas num plano racional único, supostamente planejado para atender aos
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objetivos oficiais da instituição. (GOFFMAN, 1974, p. 1718). Neste sentido, o capítulo XI se afirma como precioso registro da imbricação entre a organização espacial de uma instituição total (a Unidade Educacional Maria Auxiliadora) e suas consequências sobre a subjetividade das internas, incluindo aí o uso da segregação espacial e da violência como forças coercitivas para a manutenção da ordem e da disciplina, bem como a constatação de que, em tais ambientes, os internos encontram-se sob assustadora vulnerabilidade física e psíquica. O lugar de fala de “Depoimento” é muito particular: Herzer conheceu o maquinário devorador por dentro, e não como observador; é uma escrita que reivindica a vida e as experiências empíricas como fonte e como matéria. E, já desde o primeiro parágrafo do livro, o leitor é advertido de que as informações ali apresentadas se referem a vivências envolvendo uma opção biográfica que escapa (voluntária ou involuntariamente) dos padrões estabelecidos socialmente. Como Herzer chama atenção, a vida que ressoa nas páginas do “Depoimento” é aquela provinda de “um coração quase sempre ameaçado pela destruição” (HERZER, 1983, p. 28), portanto, profundamente desestabilizado por uma série de experiências traumáticas, que vão desde a rejeição familiar até a afirmação de sua transexualidade, passando por mortes no campo afetivo, violência doméstica e uma tentativa de estupro. “Depoimento” nos faz lembrar a vulnerabilidade em que vive grande parte da população humana, clivada sua existência continuamente por traumas físicos e psíquicos de alto impacto, sem, contudo, poderem usufruir de um tempo de reação menos exíguo para informar o passo seguinte em sua trajetória. A vertigem claustrofóbica que atravessa “Depoimento” só se resolveria para Herzer com a queda livre a que lançou seu corpo, cometendo o suicídio pouco antes da publicação de seu livro. Em uma sociedade organizada a partir de miragens e espejismos, a queda de um corpo como o seu só poderia ser “para Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 13
o alto” – como informa, paradoxalmente, o título. Afinal, hermeticamente fechados nos porões dessa mesma sociedade, tais corpos não poderiam ser conduzidos a qualquer movimento descendente, já que posicionados bem na camada mais abissal. “Depoimento” é, portanto, bem mais que um texto convertido em espaço de negociação com autoindulgentes projeções fantasmáticas. O que se tem aqui é a escrita tratada como forma de recuperação semântica da própria trajetória (desfragmentando aquilo que foi estilhaçado pela violência dos traumas sequenciados) e como resistência à força vertical que engendra a própria vertigem. Há em seu gesto, uma recusa à submissão da escrita a um jogo de simulações e artifícios: ao colocar em cena a vida (sua própria vida), reafirma a capacidade da palavra na transmissão de experiências e de afetos, conseguindo, em alguma medida, focalizar nesse gesto aquilo que Barthes chamava de “momento da verdade”. Em última instância, se “a sexualidade é simultaneamente o que se deve dizer e o que se deve calar ou esconder” (GROS, 2013, p. 88), os deslocamentos por ela operados e registrados sismograficamente na escrita de Herzer desvelam a própria dinâmica do poder. É justamente por meio do signo verbal que Herzer realiza uma etapa fundamental no processo de construção de sua identidade. Com e pela linguagem, Herzer busca “constituir-se como sujeito de sua própria vida” (VALE, 2007, p. 55) e, nesse processo, constituir “um lugar no interior do espaço social sexuado” (VALE, 2007, p. 54). Isso não ocorre apenas nos relatos que compõem “Depoimento”, narrados em primeira pessoa e tratando a si no masculino. Afinal, é a partir do rearranjo das letras de seu nome de batismo (Sandra) que chega a seu nome social (Anderson), em uma espécie de anamorfose especular operada pela própria linguagem, a partir da ocupação de um de seus flancos desguarnecidos. O processo anagramático pelo qual Sandra torna-se Anderson é, ele também, uma instância de autopoiesis, momento de soerguimento da matéria mediante a fricção com o real mediada pela linguagem, consciência a ampliar Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 14
os domínios do possível por meio da criação de si mesmo. Aqui reside o primeiro lançamento vertical ao qual se lança sua escrita – e é um movimento ascensional, no qual registra-se o albedo, ou seja: a capacidade de reflexão da luz sobre o corpo da escrita. Se Herzer objetivava “assumir minha personalidade publicamente” (HERZER, 1983, p. 56), essa assumpção corresponderia necessariamente a uma ascensão. Em consequência desse movimento ascensional intentado, Herzer arrisca-se em uma escrita que facilite a aproximação dos traumas. A partir desse gesto inicial, o texto abandona a condição de espelho (escrita como reflexão) e inscreve-se no âmbito da escrita como refração (desvio): o que está em jogo aqui, cumpre reiterar, não é a ocupação temporária pela palavra de um espaço de projeções fantasmáticas, e sim a afirmação (ainda que transversalmente desenhada) de uma perspectiva subjetiva cuja sequência de experiências de interação social lastreia a compreensão densa e empírica das instituições e da posição sistêmica ocupada por corpos que atravessam e esboroam categorias de gênero e de sexualidade e seus respectivos padrões de conduta. A partir do foco inicial em sua história individual, amplia-se o alcance da escrita até atingir o registro do percurso coletivo dos corpos transgressores em uma sociedade programada para reprimir seus movimentos a partir de um campo de tensões sociais ligadas a questões de gênero e posições sistêmicas, perfazendo o arco-voltaico que vai da autorepresentação até a representação da força vertical que disciplina os corpos, do autorretrato à paisagem social, da escrita de si à narrativa do poder. Repete-se, aqui, o lançamento vertical ascendente, a vertigem invertida pela escrita. Não resta dúvida que, por mais cru e mesmo por vezes lacônico seja o trato da voz que fala com a própria linguagem – e tais crueza e laconismo serão melhor tratados na segunda parte desse ensaio, quando estiver sob foco o silêncio na poesia de Herzer –, há a busca consciente de um efeito. A própria linguagem é despersonalizada e adquire o sabor e o odor dos quartinhos de Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 15
castigo, dos corredores asfixiantes, da mobília imemorial das instituições totais. Além disso, há em “Depoimento” irradiação sociológica o suficiente para provocar no leitor o entendimento sobre alguns dos mecanismos e dispositivos em jogo quando o assunto são tais instituições. Assim, seria possível definir tal efeito ensejado pela narrativa de Herzer como a tentativa de provocar no leitor nada menos que “um encontro direto com a marginalização” (HERZER, 1983, p. 36). No entanto, vai mais além, e em artigo sobre A queda para o alto sinaliza para a existência de um efeito catártico ensejado pela escrita de Herzer: No relato autobiográfico escrito em primeira pessoa e no masculino, o narrador cumpre a função de herói épico e tomamos contato tanto com a sua origem como, especialmente, com seus feitos. É ao seu bom combate, pois, que assistimos, instados a estabelecer, com ele, um vínculo catártico que o reconhece não apenas como vítima, mas também como líder cuja rebeldia porta os valores positivos do amor, da delicadeza, da rejeição ao autoritarismo e à violência e, por fim, do anseio à liberdade e à dignidade. (HERZER, 1983, p. 249-250). É, portanto, a escrita tentando gerar um vínculo catártico entre não apenas um narrador e um leitor, mas sobretudo entre dois indivíduos pertencentes ao mesmo complexo sociocultural, porém talvez situados em posições sistêmicas distintas quando não distantes. Resta insolúvel, contudo, o perturbador paradoxo que a escrita de Herzer propõe. Por um lado, ao alimentar-se diretamente das experiências empíricas e da posição sistêmica marginalizada de seu autor, temos a afirmação do poder catártico da escrita; por outro, com a opção final pelo suicídio, não encontraríamos a afirmação da impossibilidade (ou mesmo da insuficiência) da escrita para lidar com quadros psicossociais semelhantes? Talvez a resposta a tal indagação seja sinalizada por Arnaldo Franco Junior quando este ressalta, no referido estudo Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 16
sobre A queda para o alto, como o suicídio aparece na própria obra de Herzer, chegando mesmo a postulá-lo como “signo de uma memória do futuro” (FRANCO JUNIOR, 2008, p. 247): O suicídio integra o livro autobiográfico, instituindo-se como parte da obra escrita por Herzer. É, por assim dizer, o gran finale que enlaça indissoluvelmente obra e vida, figura de complexa natureza e significação: a um só tempo metáfora, símbolo e alegoria – vazadas por dolorosa e amarga ironia – da queda para o alto. Ao suicidar-se, o herói poeta eterniza o nome que, como signo de amor próprio, construiu para si, tanto no mundo ético como no mundo estético, sem, contudo, deixar à vista o deslizamento entre duas identidades: Sandra (San – dra)/ Anderson (An – der – son). (FRANCO JUNIOR, 2008, p. 251). Em 1983, Herzer jogou-se do Viaduto 23 de Maio. Nesse lançamento vertical descendente, a queda não foi para o alto, obedecendo antes às leis implacáveis da gravidade e da aceleração por ela causada. Essa sujeição final do corpo à implacabilidade de forças exógenas pode ser vista, por si, como a síntese da trajetória de Herzer. No entanto, há algo mais em jogo nesse movimento final: em última instância, a gravitação universal coordena a atração que os corpos exercem entre si, prendendo-os à superfície ou lançando-os em queda livre. É nesse ponto que se desenha um continuum entre as salas claustrofóbicas de castigo das instituições totais e a queda livre do viaduto em ferro e concreto encravado no labirinto urbano, nadir e zênite de um mesmo horizonte.
2. No coração do silêncio A segunda parte do livro, “Poemas”, é composta por quarenta e três peças breves, cujo tamanho raramente excede o de uma página. Antecedendo os poemas, há um prefácio em versos que funciona como uma espécie de declaração de intenções:
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LEITOR: Nestas palavras expresso o meu mundo em que às vezes eu me perco e me confundo minha tristeza está expressa em meu olhar minha verdade, nestas folhas a voar (HERZER, 1983, p. 143). Como ocorre na primeira parte, as experiências e os impactos emocionais vividos são privilegiados e, de igual forma, nos poemas Herzer se apresenta de modo a gerar um efeito empático sobre o leitor, baseado na partilha de valores como tristeza e verdade. Nesse diapasão, não surpreende que na maior parte dos poemas vigore uma dicção ingênua, de corte sentimental. E quando se fala em poesia ingênua é no sentido que encontramos entre os românticos, por exemplo, para quem “o artista ingênuo soluciona os problemas mais complexos de sua arte com a mesma naturalidade com que vive” (SUZUKI, 1991, p. 17). Isso é flagrante, sobretudo, no poema “Florescer”, com sua simplicidade rímica, lexical e imagética, pela qual o eu lírico promete que “pintaria teu sangue/ e as flores do mangue/ no meu céu de abril” (HERZER, 1983, p. 152). Se é possível que a poesia moderna tenha se tornado refém de discussões teóricas a partir das quais o valor é estabelecido em função da capacidade técnica de cada poeta em lidar com o repertório formal existente, tanto menos valor sistêmico pode reivindicar uma poética que se alicerça na refutação da própria tekhné. Além disso, caracterizam justamente sua poesia tanto o estabelecimento de vasos comunicantes entre vida e escrita quanto a assumpção dos riscos implicados em se criar uma obra na qual a técnica não é privilegiada. Estaríamos aqui, talvez, diante daquilo que Philipe Lejeune chama de “poesia autobiográfica” (LEJEUNE, 2008, p. 86), considerando, desde sempre, os problemas que tal taxonomia possa gerar, sobretudo por essa recusa à exigência da precisão técnica na palavra (mesmo como poeta), aproximada a partir de sua potência de expressão de processos no âmbito da subjetividade e de vivências. É assim que Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 18
reúnem-se, nos poemas, os protocolos da escrita autobiográfica e da poesia ingênua: estamos diante de “um coração cheio de inocência e verdade” (SCHILLER, 1991, p. 46) e é por conta disso que “sentimo-nos constrangidos a respeitar o objeto que antes nos fez sorrir” (SCHILLER, 1991, p. 46), percebendo, enfim, que a simplicidade “vence a artificialidade” (SCHILLER, 1991, p. 47) e a liberdade “vence a rigidez e o constrangimento” (SCHILLER, 1991, p. 47). E o que mais desconcerta é que a surpreendente vitória da simplicidade e da liberdade ocorre onde elas não são esperadas – ou seja: uma difícil vitória é alcançada, paradoxalmente, por um não-profissional da escrita que não detém completo domínio técnico sobre o ofício, por uma voz cuja corporeidade tem designada para si o lugar da margem, quando não o silenciamento. É como encontrar som (e não apenas som, como também liberdade) onde se esperava apenas silêncio. Isso não impede que Herzer visite e revisite as grandes tópicas que os poetas de todos os tempos ou de tradições culturais ou linguísticas específicas cantaram no âmbito da poesia enquanto prática milenar. Assim, entre os poemas de Herzer há aqueles que se comportam esteticamente de forma estável ao ponto de se poder acondiciona-los em categorias igualmente estáveis, como a lírica-amorosa (“Você, sempre você”, “Canto de amor”, “Mar do amor eterno”, “Caminhos do perdão”) e a erótica (“Sedução”, “Poesia-passagem”), que, sem dúvida, mereceriam estudo pormenorizado (que não cabe nos limites deste artigo) sobre o lugar de fala a partir do qual se constroem. Ou, ainda, o modo como revisita as grandes tópicas do repertório poético, como o canto da saudade (“A canção da saudade... eterna”), quando não estão combinadas, em poemas como “A espera”: E lentamente fecho os olhos saudosos e no encanto noturno, em tua lembrança, adormeço face exausta, corroída pela saudade sonhos teus, e neles vago, de madrugada... padeço. (HERZER, 1983, p. 151)
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Dentre os núcleos temáticos que mobilizam sua poesia, merece destaque o silêncio. Ele é dos mais recorrentes, pois aparece mencionado em pelo menos onze poemas: “Sedução”, “Morte de um poeta”, “Este nosso amor”, “Um além para este amor”, “Trovas”, “Dores”, “A mulher composta de pureza”, “Deixe que o amor rasgue seu peito”, “O querer que já não pode”, “Desabafo de um peito” e “Sede de você”. Há, ainda, poemas em que o silêncio não é mencionado diretamente mas que constroem situações acústicas ou conjuntos de imagens que sinalizam para o silêncio ou para o silenciamento, como ocorre em “Meu eterno crucifixo”, “Mar do amor eterno” e “Os seres humanos no ontem, hoje e no amanhã”. Também na carta com que fecha a segunda parte do livro, encontramos uma ocorrência da palavra silêncio: “a verdade está nele e em seu silêncio se acomoda no vazio do ar” (HERZER, 1983, p. 200). O que tentaremos nessa segunda parte do artigo é compreender “as diferentes formas de silêncio” (ORLANDI, 2002, p. 66) moduladas pela poesia de Herzer. Causa tanto mais comoção a presença do silêncio na obra poética de Herzer pelo fato de sabermos que, alimentando-se da vida como ponto de partida, a um indivíduo portador de posição sistêmica como a sua (em que se confundem a marginalidade econômica com a de gênero) não é previsto o direito da escrita sobre si, como ressalta Lejeune: Escrever e publicar a narrativa da própria vida foi por muito tempo, e ainda continua sendo, em grande medida, um privilégio reservado aos membros das classes dominantes. O silêncio das outras classes parece totalmente natural: a autobiografia não faz parte da cultura dos pobres. (LEJEUNE, 2008, p. 113) A afirmação de Lejeune vale não apenas para “Depoimento”, como também para os poemas de Herzer, já que os mesmos são compostos a partir de um “ponto de vista autobiográfico” (LEJEUNE, 2008, p. 87). Tal ponto de vista revela até mesmo uma dimensão premonitória sobre a própria escrita da vida, quando se lê versos como esses, encrustados no poema Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 20
“Meu eterno crucifixo”: “Me matei num sonho rouco/ num amor derrotado, vagando” (HERZER, 1983, p. 145). Em “A espera”, declara-se “poeta em despedida” (HERZER, 1983, p. 151). Em “Um além para este amor”, vê-se a afundar no mar, “sem tentar me socorrer” (HERZER, 1983, p. 171), como se o poema se convertesse em espaço especular prenunciador do mergulho final no mar de asfalto, na queda livre com que escreveu o dénouement de sua escrita autobiográfica, em ato ambivalente que ao mesmo ratifica e rasura o projeto permanente de convergência entre escrita e vida. No âmago da escrita, ressoa a pergunta: “o que ocorre com a palavra quando o silêncio deixa de ser seu par dialético para se transformar no signo da morte?” (BIGNOTTO, 2013, p. 67). Como se percebe, esse ponto de vista autobiográfico está igualmente presente nos poemas, porquanto os mesmos revelemse circundados por camadas espessas de silêncio (que é convertido em tema de sua poesia, pela recorrência), contra as quais as palavras lutam até emergirem na superfície do texto. A expectativa do biopoder é de que as narrativas advindas desses corpos enunciadores sejam recobertas por essa crosta densa de silêncio e a escrita de Herzer rompe esse silêncio predeterminado. Entre as “outras classes” a que se refere Lejeune, corpos à deriva como Herzer ocupam uma posição tanto mais marginalizada porquanto “sujeitos que estão à exclusão cultural e política, à discriminação econômica e legal, e ao abuso cultural” (VALE, 2007, p. 56). São corpos cuja palavra atravessada pela vida e pelos mais diversos modos da violência o mando de voz não reconhece e não tolera ouvir. É a partir dessa luta contra o silenciamento – tanto aquele impingido verticalmente pelo biopoder, como aquele experimentado nas fissuras traumáticas da subjetividade – que se compõe sua poesia. Esse é o primeiro silêncio contra o qual se mobiliza a poesia em Herzer, “o silêncio da opressão” (ORLANDI, 2002, p. 104). Escrevemos aqui mobilizar, mas seria possível dizer lançar, afinal, nesses poemas, “o discurso se apresenta desse Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 21
modo como o projeto – o estado significante – pelo qual o sujeito se lança em ‘seu’ sentido em um movimento contínuo” (ORLANDI, 2002, p. 72-73). Não é à toa que o corpo encenado na escrita de Herzer está em contínua deambulação: em “A espera”, começa o poema “andando perdido” (HERZER, 1983, p. 144) e o conclui com “estou indo” (HERZER, 1983, p. 144). É, portanto, no coração do silêncio da opressão que se estabelecem os gérmens da poesia em Herzer, nesse intervalo entre dois átimos, “quando não há fôlego para o grito de socorro” (HERZER, 1983, p. 166). No entanto, ao insurgir-se contra o silenciamento, a poesia de Herzer pode, por vezes, resultar em grito: “gritar para acordar a vida falecida” (HERZER, 1983, p. 155). No intervalo de luta que se trava no silêncio, a subjetividade se orienta pelo desejo de afirmar-se, de encontrar na palavra um lugar que não lhe é concedido na sociedade. Esse grito, contudo, não é o grito da natureza idealizado por Rousseau e os românticos, e sim o grito de quem realiza em um barco frágil (um bateau ivre) a travessia ontológica de sua constituição como ser social em um mundo onde os corpos são disciplinados verticalmente e modelados sob pressão da máxima violência sistêmica, que faz a palavra coagular no interior da garganta: E a dor ameaça, o sofrimento transborda sangue; na garganta um nó que te impede de falar, no ouvido um som que me obriga a soluçar, no coração um aperto que te obriga a gritar. (HERZER, 1983, p. 145) Na poesia de Herzer, o silêncio nem sempre é um signo em trajetória descendente. Por vezes, aparece em percurso ascensional, uma trajetória “particularmente ligada ao amor” (DIBIE, 2013, p. 55), vinculada de forma direta à liberação do desejo: quando as bocas se calam, todo o corpo passa a falar, pois tem-se nada menos que “o silêncio dos amantes” (DIBIE, 2013, p. 55). É o que ocorre no poema “Sedução”, onde a dúvida se converte em silêncio e daí em ato de amor: E toda a dúvida se fez silêncio Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 22
e no embaraço, nosso doce laço nos seus lábios, o gosto do meu amor menino, e no seu corpo o ardor do amor mulher (HERZER, 1983, p. 150) Também ligado ao erotismo é o silêncio que aparece em “Um além para este amor”, prenunciador da febre do desejo: Adormecido no silêncio deste instante te abracei, revi o que já se passou e tão perdido no abraço do teu corpo senti a febre que em mim se desandou. (HERZER, 1983, p. 171) O silêncio aparece, ainda, como interpelação ao que foi esquecido, como ressonância da memória e das potências ctônicas adormecidas ou anestesiadas no interior da psique. É o caso do poema “Trovas”, em cujo verso inicial lê-se: “Se o silêncio estivesse gritando às almas esquecidas/ essa penumbra talvez se movesse” (HERZER, 1983, p. 176). No oximoro do grito do silêncio estaria a força poética da linguagem capaz de dissipar o véu espesso que se ergue diante dos olhos na realidade empírica, demolindo essa massa de cimento que, “nada mais,/ tapa o sol aos olhos de todos esses mortais” (HERZER, 1983, p. 176). Ao contrário do que ocorre em “Dores”, em que o silêncio é o troco que resta entre as mãos após a perda, no poema “Trovas” o silêncio se reafirma como força capaz de introduzir o sentido na palavra. É assim que “o silêncio não é o vazio, o sem-sentido; ao contrário, ele é o indício de uma totalidade significativa. Isto nos leva à compreensão do ‘vazio’ da linguagem como um horizonte e não como falta” (ORLANDI, 2002, p. 70). Ostentando consciência de que o silêncio absoluto não existe, essa ideia do próprio silêncio como um lugar privilegiado é desconstruída em “A mulher composta de pureza”. Nesse poema, o eu lírico declara-se pleno de silêncio; isso parece funcionar como prenúncio da alegria – um augúrio que, contudo, não se confirma, fazendo com que o silêncio assuma novamente a trajetória descendente que o vincula às potências ctônicas e não Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 23
visíveis. Aqui ele transforma-se em um espaço emocional, como ocorre também no poema “O querer que já não pode”. Finalmente, o silêncio na poesia de Herzer pode ainda vincular-se à “concepção mística” (ORLANDI, 2002, p. 64) que o considera um estado psicológico propiciatório da instância de acesso ao sagrado. É o que ocorre em “Sede de você”, no qual se lê que “o silêncio é minha prece” (HERZER, 1983, p. 197). O silêncio é tratado como condição imprescindível para a ascese, para o movimento ascensional. Como resistência e abandono, como condição simultaneamente do erotismo e da ascese, como espaço social e como espaço emocional – eis o silêncio em A queda para o alto. O modo como Herzer lida poeticamente com um tema de tal magnitude, modulando-o sob diversas soluções cromáticas, é prova do interesse que a obra ainda pode suscitar decorridos mais de trinta anos de sua publicação e da morte do autor. Afinal, sem deixar de ser um poderoso documento humano, A queda para o alto pode – e também deve – ser lido e avaliado como a tentativa agônica de constituir um continuum entre escrita e corpo através da linguagem.
Referências BIGNOTTO, Newton. As formas do silêncio. In: Mutações: o silêncio e a prosa do mundo. Rio de Janeiro: Artepensamento, 2013, pp. 66-68. DIBIE, Pascoal. O silêncio dos amantes e, mais particularmente, das mulheres. In: Mutações: o silêncio e a prosa do mundo. Rio de Janeiro: Artepensamento, 2013, pp. 55-58. FRANCO JÚNIOR, Arnaldo. Experiência autoritária e construção da identidade em A queda para o alto, de Herzer. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada. No. 12. Rio de Janeiro, 2008, pp. 239-251. GOFFMAN, Erwin. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974. GROS, Frédéric. Fazer calar e fazer dizer o sexo. In: Mutações: o silêncio e a prosa do mundo. Rio de Janeiro: Artepensamento, 2013, pp. 87-88.
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HERZER. A queda para o alto. Petrópolis: Vozes, 1983. LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio. Campinas: Editora da Unicamp, 2002. SCHILLER, Friedrich. Poesia ingênua e sentimental. São Paulo: Iluminuras, 1991. SUZUKI, Marcio. Apresentação. In: SCHILLER, F. Poesia ingênua e sentimental. São Paulo: Iluminuras, 1991, pp. 7-40. TORRÃO FILHO, Amílcar. Tríbades galantes, fanchonos militantes. São Paulo: Summus, 2000. VALE, Alexandre Fleming Câmara. O voo da beleza. In: Revista Opsis. Vol. 7, no. 8. Catalão: Universidade Federal de Goiás, 2007, pp. 54-68.
Recebido em 29/10/2016. Aceito em 06/12/2016.
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“Deus sabe o que faz” – uma abordagem póscolonialista de “Pai contra mãe”, de Machado de Assis e “A menor mulher do mundo”, de Clarice Lispector Renan Silva Magalhães2 Gracia Regina Gonçalves3 Resumo: Esse artigo apresenta um estudo comparativo dos contos “Pai Contra Mãe”, de Machado de Assis e “A Menor Mulher do Mundo”, de Clarice Lispector, do ponto de vista da crítica da alteridade. Ainda que pertençam a momentos distintos, tencionamos mostrar como estes dois autores, não comumente classificados dentro do panorama do póscolonialismo, recorrem a uma temática semelhante nos contos abordados: a representação e o aviltamento da mulher negra. Acreditamos que, projetando a emergente sociedade capitalista do sec. XIX, e a sociedade burguesa do cenário contemporâneo, ambos desnudam, cada um a seu modo, a crueldade e/ou alienação que as caracterizam. Para esta tarefa, noções ligadas à constituição discursiva do sujeito pós-colonial e do conceito de violência segundo, Bakhtin, Butler, e outros serviram de guia a essa análise. Palavras-chave: Conto, Pós-Colonial, Machado de Assis, Clarice Lispector
Abstract: This essay is a comparative study of the short stories "Pai Contra Mãe" by Machado de Assis and "A Menor Mulher do Mundo" by Clarice Lispector, from the point of view of the criticism of alterité. Although they belong to different moments, I propose to show how these two authors, not commonly classified in the post colonialism’s panorama, make use of a similar theme in these stories: the representation and degradation of the black woman. I believe that by projecting the emerging capitalist society of sec. XIX, and the bourgeois society of the contemporary scene, both strip, in their own way, the cruelty and / or alienation that characterize them. In order to do so, notions linked to the discursive constitution of the postcolonial subject and the concept of violence according to Bakhtin, Butler, and others served as a guide to this analysis. Keywords: Short Story, Post-Colonial, Machado de Assis, Clarice Lispector
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Graduado em Letras pela Universidade Federal de Viçosa. Estudante não-vinculado do Mestrado em Letras – UFV. 3 Doutora em Letras. Professora Associada do Departamento de Letras da Universidade Federal de Viçosa.
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"Ideology obscures the real conditions of existence by presenting partial truths." (Catharine Belsey)
Introdução: a gente não sabe o que diz Machado de Assis e Clarice Lispector, autores consagrados da literatura nacional, não têm seus nomes comumente associados, a não ser pelo reconhecimento de sua genialidade. Contudo, pode-se, de antemão, afirmar que um fator os aproxima: seu olhar crítico. Ambos se apropriam do discurso convencional burguês, detentor do poder e bens, para falar do simples, do prosaico, do ordinário, expondo de maneira irônica essa ideologia. Sendo assim, não se torna difícil estabelecer um diálogo entre os dois no que diz respeito a seu envolvimento em certas situações de conflito de cunho social. Embora podendo ser visto espaçadamente ao longo da obra de ambos, deve-se notar que este aspecto vai estar presente em especial, em um gênero que ambos dominam igualmente. Trata-se da sua ficção curta, na qual nos é oferecido um perfil da sociedade de seu tempo. Desta extraímos o objeto da presente reflexão: a representação da mulher negra, tal e qual se manifesta nos contos “Pai Contra Mãe” (1906), de Machado e “A Menor Mulher do Mundo” (1960), de Lispector, os quais que se revelaram propícios a uma abordagem pós-colonialista, em especial, dentro de seu aspecto dialógico, evidenciando a crueldade implícita ao discurso, ora de forma explicita, ora velada, a qual sedimentaria, neste diapasão, nossa hipótese de emparelhamento dos textos selecionados. Para tanto, contamos com os estudos bakhtinianos de José Luís Fiorin, e com elementos a crítica da alteridade de Thomas Bonnicci, Alberto Memmi, e
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Judith Butler, todos engajados no campo da diferença e, decorrentemente, da problematização da alteridade4. Fiorin, em Introdução ao pensamento de Bakhtin (2008), traz à tona, como premissa básica, a afirmação de Bakhtin de que todo texto provoca, em sua compreensão, uma responsividade que, no ato de uma leitura, ou no de se ouvir determinado discurso no indivíduo; isto quer dizer, o indivíduo assume uma postura, seja ela de concordância ou discordância, em relação ao que quer que venha proposto. (FIORIN, 2008, p.6) Desta maneira, para Bakhtin, qualquer discurso vivo, em todo seu processo de desenvolvimento, se relacionaria sempre com o discurso de outrem, sendo impossível a existência de qualquer discurso humano sem este caráter, conforme se pode averiguar pela seguinte passagem: [...]todos os enunciados no processo de comunicação, independentemente de sua dimensão, são dialógicos. Neles, existe uma dialogização interna da palavra, que é perpassada sempre pela palavra do outro, é sempre e inevitavelmente também a palavra do outro. Isso quer dizer que o enunciador, para constituir um discurso, leva em conta o discurso de outrem, que está presente no seu. Por isso, todo discurso é inevitavelmente ocupado, atravessado, pelo discurso alheio. (FIORIN, 2008, p.19). Na sequência, Fiorin nos lembra das propriedades do termo “enunciado”, dentro da perspectiva do linguista russo, como sendo: “unidade discursiva que contém sempre mais de uma voz: o enunciado está repleto de ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado (...). O enunciado deve ser considerado acima de tudo como uma resposta a enunciados anteriores: refuta-os, confirma-os, completa-os, baseia-se neles (...)” (BAKHTIN, 1992 p.316). Ou seja, as palavras viajam para dentro e fora do tempo; criam expectativas, adeptos e/ou Caráter ou estado do que é diferente; que é outro; que se opõe à identidade. [Filosofia] Circunstância, condição ou característica que se desenvolve por relações de diferença, de contraste. 4
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opositores, e são, como diria Foucault, ideologicamente marcadas pelo poder.
1. Vidas precárias, vidas passíveis de luto Para que estejamos alertas às artimanhas do poder, Thomas Bonnici, em seu artigo intitulado Introdução ao estudo das literaturas pós-coloniais (1998), nos dá um panorama do alcance da teoria pós-colonial. Esta trabalha no intuito de estruturar uma compreensão das influências do imperialismo, ao longo do discurso e do tempo, em diversos contextos. Discorrendo, por exemplo, sobre como as potências europeias dominaram o mercado de ideias, paralelamente ao econômico, Bonnici nos lembra como se desenvolveram estratégias e outras convenções de “caráter eurocêntrico que foram impostas sub-repticiamente como universais e aplicáveis para todos, causando impactos e perpetuando a diferença.” (BONNICI, 2005, p. 12) Neste diapasão, Bonnici menciona alguns casos de resistência, quando escritores vem a lograr o poder, ao adotarem parodicamente elementos desta cultura do abuso, como atitudes, dizeres, discursos, subvertendo as percepções e a visão de mundo do colonizador. “O colonizado, portanto, toma para si o que lhe foi imposto e o faz seu, refletindo a própria situação.” (BONNICI, 2005, p. 12). No nosso caso, torna-se interessante a proposta pela qual, de forma mais ampla, o conceito se aplicaria, então, ao olhar hegemônico em relação aos demais indivíduos em uma posição de inferioridade, em quaisquer contextos de diferença de classe/ raça. Assim, torna-se pertinente a releitura não só de Machado, mas também de Clarice, dentro desta ótica, visando detectar ressonâncias e desnudar o caráter de alienação deste olhar deixado como herança. Dentre as estratégias literárias presentes na subversão do discurso do colonizador, vemos como a utilização da ironia na constituição do discurso das personagens, Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 29
em especial na apropriação paródica feita pelo colonizado, expõe a diferença a ser lida contra o próprio enunciador, caso que exploraremos adiante. Em sua obra Quadros de Guerra, (2015), Judith Butler, por sua vez, escrutina os tipos de violência que permeiam as relações contemporâneas, revelando a presença de discursos xenofóbicos, racistas e machistas no âmbito social. Em seu texto, Butler problematiza a ideia sobre o que pode ser ou não considerado vida, sugerindo que esta [...] não pode ser considerada lesada ou perdida se não for primeiro considerada viva. Se certas vidas não são qualificadas como vidas ou se, desde o começo, não são concebíveis como vidas de acordo com certos enquadramentos epistemológicos, então essas vidas nunca serão vividas nem perdidas no sentido pleno dessas palavras. (BUTLER, 2015, p.13) Dentre os argumentos apresentados, Butler nos alerta que alguns indivíduos estão em determinadas posições graças a uma modelagem social e política, através de ferramentas como a linguagem e o trabalho. Butler os apresenta como um certo tipo de “ser” “[...] que está sempre entregue a outros, a normas, a organizações sociais e políticas que se desenvolveram historicamente a fim de maximizar a precariedade para alguns a minimizar a precariedade para outros.” (BUTLER, 2015, p.15) A autora afirma que a precariedade da vida tem um valor contextual, discursivo, sendo estruturado de forma social, partindo do ponto em que a importância de tal sobrevivência do “ser” está ligada estritamente ao que a autora chama de “rede social de ajuda”, colocando assim, a cargo da sociedade tal importância: Afirmar que uma vida pode ser lesada, por exemplo, ou que pode ser perdida, destruída ou sistematicamente negligenciada até a morte é sublinhar não somente a finitude de uma vida (o fato de que a morte é certa), mas também sua precariedade (porque a vida requer que Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 30
várias condições sociais e econômicas sejam atendidas para ser mantida como uma vida). A precariedade implica viver socialmente, isto é, o fato de que a vida de alguém está sempre, de alguma forma, nas mãos do outro. (BUTLER, 2015, p.31) Tal argumentação sugere uma ligação direta com os contos a partir do momento em que se questiona, por meio da diferença e do poder, o valor de uma certa vida comparada a outras, que, por vezes, é reconhecida como vida ou não, ponderando também que uma vida sempre é dependente de outra, coabitando o mesmo âmbito social, considerando que dependemos do outro ao mesmo tempo em que o outro tem uma dependência de nós, havendo nível de proximidade ou não entre indivíduos. Desta forma, abordaremos, primeiramente, o conto machadiano, no qual se vê o autor retratar explicitamente uma ocorrência ligada ao período escravocrata. Neste, temos a perseguição de um homem de pele clara a uma escrava, no intuito de conseguir dinheiro e, através de sua captura, condições mais adequadas para criar seu filho recém-nascido. Nesta busca, Cândido abre mão de qualquer humanidade para com Arminda, a fim de alcançar seus objetivos, tratando-a como um objeto que solucionará seus problemas, desconsiderando os riscos que a escrava corre por estar grávida, o que torna o final do conto uma tragédia. Em paralelo ao drama de Arminda, temos o conto clariceano, que aborda a descoberta de uma mulher considerada como a menor mulher do mundo, fato relatado por um jornal da década de sessenta. Trata-se de uma pigmeia, encontrada por um antropólogo, tornada objeto de curiosidade na época. Com esta espécie de crônica de curiosidades, o leitor se depara com a realidade do preconceito no seio dos núcleos familiares burgueses que, como vimos em Bonnici, constituem pilares ideológicos do pensamento ocidental. Assim, fazemos dialogar entre si estes dois textos, nos quais procuraremos mostrar estratégias utilizadas por seus Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 31
autores que apontam para como, discursivamente, a condição de sujeito pode vir a ser negada a outrem, dependendo da lente, se do colonizador, ou a serviço deste.
1.1. ” Nem toda criança vinga” Em “Pai contra mãe", Machado toma como ponto de partida a imagem das ferramentas utilizadas em escravos que evadiam de seus donos. Estes objetos são apresentadas pelo autor no intuito de introduzir o leitor no cenário que o conto virá a abordar. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber. Perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. (ASSIS,1994, p.2) Mais do que uma simples introdução ao cenário, Machado traz, nas primeiras linhas do conto, toda aflição sofrida por um escravo, mostrando como tal medida extrapola a questão da funcionalidade de uma máscara, como assinala Leda Martins: [...]a máscara de flandres, que silenciava o escravo, e o ferro ao pescoço, que lhe tolhia os movimentos, metonimicamente configuram as perversas relações de força e de poder entre senhores e escravos, sob as quais sucumbe tanto a vida do recém-nascido, como os mais nobres sentimentos, sentidos e experiência do humano. Referida pela sua literalidade de objeto desprovido de qualificativos, a máscara vaza nosso olhar, por feito da magistral escritura, da descrição minimalista, quase óssea, que a faz colar-se à retina do leitor, num efeito de transferência dramático, aterrorizante e aterrador, ponte para uma sagaz e irônica reflexão do autor sobre a Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 32
condição humana, assujeitada pela tortura, pela dor e pelo silêncio. (MARTINS, 2007, p.56) Dando início ao enredo, o narrador nos apresenta Cândido Neves, descrito como incapaz de se adequar a qualquer trabalho, e que busca, diante da dificuldade de sustentar sua família recém formada, no ofício de caçador de recompensa de escravos fujões, uma forma de sustento. Candinho vê então em Arminda, uma escrava foragida, uma “sobrevida” econômica, ou seja, a única possibilidade de manter seu filho consigo. Gostaríamos de focalizar a atitude de Candinho a partir do momento em que o protagonista reconhece Arminda como uma de suas possíveis recompensas. Já atada pela corda de seu algoz, a escrava pondera pedir socorro, mas logo lembra de suas condições na sociedade que habita: “a escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário.” (ASSIS,1994, p.8) Aqui, nota que, por ser uma mulher, negra e escrava, Arminda se encontra à margem de qualquer direito civil; o fato nos remete a Bonnici em seu texto, ao considerar o caso da mulher negra que chama de “duplamente colonizada”. (BONNICI, 1998). Em se tratando de um período escravocrata, pior seria o agravante de suas condições. Considerando esta experiência em sociedade, podemos associá-la ao que Judith Butler apresenta, segundo o que Arminda seria, como a autora diz, um ser entregue às normas, às organizações sociais e políticas desenvolvidas historicamente, no intuito de maximizar a precariedade de alguns, minimizando a de outros. (BUTLER, 2015) Em uma situação em que a sociedade é também personagem, Candinho arrasta a escrava pela cidade e Arminda não é acudida por quem presencia seu tormento. Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mal, e Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 33
provavelmente a castigaria com açoutes, --cousa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoutes. — Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? Perguntou Cândido Neves. (ASSIS,1994, p. 8) Partindo do senso-comum da época, Cândido demonstra que Arminda não é detentora de muitas opções e como determinadas vidas significavam por lei tão mais que outras. O fato de criticar a fuga de uma escrava grávida significaria a perda material para seu dono, bem como o desleixe dela de se dar o direito a uma gravidez irresponsável, face à sua instabilidade financeira, é considerado com dois pesos e duas medidas. Nota-se a projeção pura e simples do capital. Podemos ver, claramente, que Candinho não faz nenhum questionamento a si mesmo, exercendo o poder advindo de sua superioridade de homem branco e livre. Portanto, o erro a ela atribuído – ter um filho sem condições financeiras – para a esposa de Cândido, seria lícito, para a escrava, torna-a mais censurável que seu capturador. Cândido prende, então, Arminda, para solucionar um “erro”, o qual, se nele não corresponderia a uma condenação, por silogismo, nela, tampouco, deveria. É interessante notar que a expressão desdenhosa é totalmente apropriada de um discurso corrente, no qual muitas vozes apontariam para as negras como indolentes, ou mesmo promíscuas. Memmi nos alerta para esta atitude de pluralização do colonizador, fazendo tabula rasa de toda a raça, alegando uma pretensa fraqueza moral desta, como, por exemplo, quando fala da preguiça. Diz Memmi: Consideremos, nesse retrato-acusação, o traço da preguiça. Ele parece reunir a unanimidade dos colonizadores, da Libéria ao Laos, passando pelo Magreb. É fácil ver até que ponto essa caracterização é cômoda. Ela ocupa um lugar de destaque na dialética: enobrecimento do colonizador – rebaixamento do colonizado. Além disso, é economicamente frutífera. (MEMMI, 2007, p.117) Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 34
Por esta afirmação, podemos ver que Cândido tem a intenção de retratá-la, a ela, fugida, de uma condição sofrida, como simplesmente preguiçosa. A valorização do colonizador ocorre, assim, através de subterfúgios, com a desvalorização estratégica do colonizado. Mais adiante, temos outra cena na qual Cândido vê Arminda e seu dono apavorados, face à morte do feto ao que Cândido assiste sem problema algum, ignorando tal brutalidade: “o fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram.” (ASSIS,1994, p.8) Cândido não apresenta qualquer empatia com Arminda na situação, utilizando-se de uma evasiva, ou seja, disse verificar que horas seriam naquele momento. Para ele, e muitos outros, Arminda era como todos os demais negros; nunca mediria as consequências de seus atos, desconsiderando também a posição de vítima que a escrava se encontrava. Outro aspecto intrigante presente no trecho se faz presente na comoção presente na atitude do senhor de Arminda, que se encontra mais abalado face a morte do feto que o caçador de recompensa, visto que este é o ser com maior posse de bens presente na cena. Ainda que Arminda seja apenas uma escrava, ele se compadece com sua situação. Mas isto tudo não passa pela cabeça de Cândido, o qual, mais tarde, em casa, já com seu filho nos braços, se apropria novamente de um discurso corrente, reagindo assim: Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto. — Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração. (ASSIS,1994, p.9) Criticando as atitudes da escrava, Cândido não vê erro algum no que fez para suprir suas próprias necessidades, dando fim ao conto com um provérbio, apenas como forma de livrar-lhe Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 35
a cabeça de tais pensamentos. A expressão suscita o questionamento de como este gênero textual se dá no texto. Retomando Bakhtin, e o fato de que todo enunciado é fruto de uma realidade histórica, perpassando várias vozes de vários discursos, valores, ideologias, entre outros aspectos temporais construídos socialmente, podemos considerar que o provérbio faz mais evidente esta afirmação acima. Como aborda Felipe Moreira Lopes a questão, em sua dissertação sobre a enunciação de provérbios: No discurso cotidiano, essa realidade é um tanto escamoteada, passando frequentemente despercebida pelos interlocutores. Entretanto, nos provérbios, esta dissonância entre a voz do enunciador e a voz do outro mostra-se mais evidente. Haja vista que, ao ser citado, além de destoar do fluxo natural do discurso por uma mudança na entonação, muitas vezes, observamos construções que os antecedem do tipo: Como diz o ditado popular...; Como diz o povo...; Como costuma se dizer por aí...; Como minha avó/avô dizia...; etc. Mesmo que tais construções não sejam proferidas, elas, ainda que diluídas no discurso, sempre estarão presentes. Dentro dessas concepções e constatações, verifica-se o caráter atemporal dos provérbios. (LOPES, 2006, p.11,12) Assim, notamos como este tipo de enunciado assume um caráter atemporal, e tem em suas características uma certa apatia, o que tira dele sua expressividade. Isto porque, estando contido em um dito popular, e repetido aleatoriamente, fica então sugerida uma certa superficialidade do mesmo, uma mera falta de empatia que este carregaria no seu bojo. Em uma situação como esta, em que o enunciador o diz apenas por dizer, dando o tal assunto por acabado e aceitável, vê-se que o seu emprego no texto é uma apropriação paródica, exatamente para ridicularizar a personagem. Feitas estas críticas envolvendo a construção negativa da mulher negra no discurso corrente, e sua exposição irônica, Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 36
partimos agora para a análise do conto clariciano, oportunidade em que retomaremos alguns aspectos discursivos aqui citados, no intuito de estruturar um paralelo entre os mesmos.
1.2. “Deus sabe o que faz” Clarice Lispector, sempre tida como mais ‘intimista”, aproxima-se do que se espera de uma crítica social mais incisiva, nas páginas de “A Menor Mulher do Mundo”. Neste conto, a autora aborda uma descoberta científica, rara, a “menor mulher mundo”, feita por um explorador, Marcel Pretre que, em uma postura colonizadora e científica, simplesmente a estuda, categoriza e a expõe, desumanizando-a, sem a menor atenção para qualquer traço de subjetividade que ela possa vir a ter. Neste conto, não há desencontro; não há sequer tentativa de diálogo. “Pequena Flor”, como Pretre a nomeara, tinha seus quarenta e cinco centímetros, era negra, calada, madura, “escura como macaco”, parecida com cachorro e ainda estava grávida. (LISPECTOR, 1998) A pequena capturada vem, então, a ser somente observada, medida, estudada. Nota-se que, para o cientista, ela era antes de tudo um “espécime”, não uma pessoa. Se o pesquisador, no conto, se mostra totalmente alienado quanto a esta criatura para ele um tanto estranha, o discurso dos núcleos familiares que acompanha tal notícia em suas casas, já é mais perverso. Este exprime colocações racistas e desdenhosas, no intuito, ou não, de manter um certo distanciamento de seu confortável mundo, do sujeito-mulher em questão. Em um recorte do episódio envolvendo Pretre e Pequena Flor, vê-se o narrador transferindo atenções para a leitura de um jornal local com a notícia da descoberta da pequena mulher em vários lares. Assim, pode-se acessar tipos diferentes de recepção dada ao fato, revelando-se pelo menos seis exemplos núcleos familiares burgueses. Dentre eles há um denominador comum, ou seja, a presença das relações de poder, expressando racismo, estratégias Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 37
de distanciamento, entre outros, não poupando nem mesmo a postura do explorador. Logo ao início do conto, Pretre já apresenta traços característicos de um analista científico, quando o mesmo reúne informações repassadas pela imprensa. Diz o trecho: “sentindo necessidade imediata de ordem, e de dar nome ao que existe, apelidou-a de Pequena Flor. E, para conseguir classificá-la entre as realidades reconhecíveis, logo passou a colher dados a seu respeito.” (LISPECTOR,1998, p. 98) A despeito de tal atitude, nota-se uma crítica clara do olhar colonizador, visto que o explorador a subjuga, escolhendo-lhe um nome ao gosto do mercado que lhe convém e reunindo informações a seu respeito como se ela fosse um espécime qualquer. Assim, não se vê propriamente nenhuma cena explícita de desumanidade por parte dele com relação à Pequena Flor, mas de “humanidade” tampouco. Retomando Martins, a relação pode ser enquadrada no caso citado por ela em que a personagem é vista como utensílio em razão de algo, assim como o escravo é tratado apenas como uma mercadoria em função de seu dono. Já em um plano secundário, instalam-se os núcleos familiares em que se desenvolverão outras reações em relação à pequena mulher. Dentre estas, encontramos, no primeiro lar abordado, uma moradora que prefere não olhar novamente a foto de Pequena Flor, por “sentir aflição”; a segunda casa mostra uma senhora que de tamanha ternura, beirava a violência, em seu instinto protetor para com a pequena mulher. No terceiro lar, vemos uma garota, ciumenta por se dar conta de que não era mais a “menor dos seres humanos” em seu âmbito familiar, levando-a a sentir pela primeira vez que a “desgraça não tem limites”; na quarta casa, mãe e filha dialogam de forma que a filha está comovida, sentindo pena de Pequena Flor; na quinta família, um garoto, em uma suposição de ter a pequena mulher como objeto, a usaria para assustar o irmão e para depois ela ser o brinquedo dos dois garotos, e, finalmente, no sexto lar, uma família se junta para a medição da Pequena Flor, enquanto o narrador informa Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 38
que cada um deles experimentou o desejo de ter a pigmeia como “fonte permanente de caridade”. Numa breve aproximação das situações acima expostas, podemos notar como são peculiares as diversas formas de se apreender uma vida, havendo, ora alguma intenção de se proteger alguém, ora não. As duas possibilidades são apontadas por Butler: “[...] não se deduz daí que se alguém apreende uma vida como precária decidirá protegê-la ou garantir as condições para sua sobrevivência e prosperidade. Pode ser, como Hegel e Klein apontam, cada um à sua maneira, que a apreensão da precariedade conduza a uma potencialização da violência, a uma percepção da vulnerabilidade física de certo grupo de pessoas que incita o desejo de destruí-las.” (BUTLER, 2015, p.15) Seguindo assim o pensamento de Butler, nota-se como Pequena Flor é um ser entregue a outrem, ficando à mercê do cientista, do desejo das famílias, das organizações sociais que a subjugam/protegem, fato que maximiza sua vulnerabilidade, tornando a pigmeia um espetáculo que atrai as pessoas, através dos noticiários sensacionalistas publicados sobre ela (SIQUEIRA, 2010, p. 29). Observando-se à luz de Butler como ocorrem tão diversas apreensões do indivíduo, constata-se que quanto maior for a precariedade do indivíduo, tão mais negativas serão estas apreensões, sendo possível, então, se entrelaçar tal processo ao conto machadiano. No caso, a morte do bebê de Arminda, segue este caminho, o da indiferença para com o outro. Cândido, nunca leva em consideração essas vidas, nem a do bebê, no sentido estrito, nem a da mãe, no sentido lato, jamais se importando em protegê-las, mas, sim, demonstrando total insensibilidade face as consequências do seu ato, ainda que trágicas. Afunilando ainda mais a leitura dos trechos do texto clariciano, nota-se o descaso pela pessoa da africana-mirim, quando se sugere a possibilidade de sua adequação ao trabalho doméstico, por parte de uma das famílias. O que se nota, contudo, Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 39
não é um reconhecimento de sua habilidade, nem uma preocupação com sua sobrevivência, mas, sim, relativamente à sua etnia, sua capacidade de surpreender as visitas que tivessem, vendo-a apenas como um fetiche: “Deve ser o bebê preto menor do mundo —respondeu a mãe, derretendo-se de gosto. —Imagine só ela servindo a mesa aqui em casa! e de barriguinha grande!” (LISPECTOR, 1998, p. 105) Tal caracterização, projetada pela mãe, mostra como a discriminação do outro se faz meramente, dado ao fato de ser o indivíduo colonizado. Contudo, no caso de Pequena Flor, outras variantes surgem: retomando as palavras de Bonnici, ela seria um ser duplamente colonizado no contexto pós-colonial, pela sua cor e pelo seu sexo. Porém, ainda mais do que isto, ela não possui um padrão aceitável de anatomia humana. Comparada à Arminda, uma mulher negra, escrava, sem suporte algum da sociedade que a cerca, vemos que Pequena Flor, em uma época distinta, tem um futuro talvez ainda mais lúgubre; para ela não há pertencimento algum, e se o há, guardando-se as devidas proporções, ela só é mais valorizada do que a outra por se prestar a fazer um papel exótico para a apreciação de terceiros. Não importa sequer se se sairia bem em seu ofício. A ela é negada qualquer subjetividade; nem mesmo o fato de ser mãe lhe torna um ser passível de sentimentos. Em algum momento, Pretre percebe sinais de que ela estaria grávida, mas seu olhar inspeciona-a como um objeto de pesquisa. Na passagem final do conto, nos deparamos, assim, como em Machado, com o uso estratégico de um provérbio. Este parte de uma outra senhora, ao ver a imagem de Pequena Flor, conforme se lê: “Pois olhe — declarou de repente uma velha fechando o jornal com decisão — pois olhe, eu só lhe digo uma coisa: Deus sabe o que faz.” (LISPECTOR, 1998, p. 109) Tal provérbio se faz intrigante quando colocado em diálogo com o anterior, “Nem todas as crianças vingam”, apresentado por Machado. Recorrendo a Bakhtin novamente, para explorar a expressividade do provérbio e a força discursiva Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 40
de ambos os textos, encontramos uma crítica à hipocrisia presente na utilização do discurso moralista/religioso. A senhora que fecha o jornal pode ser comparada a Candinho abraçando seu filho; ambos têm um ar de superioridade em suas atitudes, mas na verdade não merecem tal crédito, considerando como os dois tem valores distintos para a vida de determinados indivíduos. No momento em que a mulher diz que “Deus sabe o que faz”, ela desvia seu pensamento do assunto, abstendo-se de compartilhar do drama de Pequena Flor; enquanto que Candinho, por sua vez, diz que “nem toda criança vinga” para se livrar de qualquer culpa em sua consciência. Portanto, ambas as situações são exemplos de ironia dramática, considerando que as personagens nelas presentes se veem ridicularizadas através de seus discursos hipócritas. Para eles, pouco importa o destino ou o bem estar do outro. Apesar das aparências, Candinho e a mulher não têm um comportamento cristão quanto possam parecer, apropriando-se apaticamente de frases feitas. Em suma, “não sabem o que fazem”; ou o que dizem.
Nas mãos do leitor Nesse estudo, procuramos apresentar uma análise comparativa dos contos “Pai contra mãe” de Machado de Assis e “A menor mulher do mundo” de Clarice Lispector, do ponto de vista da alteridade, enfocando, especialmente, a temática da representação da mulher negra. Percebeu-se que, ainda que não sejam comumente ligados ao panorama pós-colonialista, Machado e Clarice projetam, respectivamente, a sociedade capitalista do século XIX, e a sociedade burguesa do cenário contemporâneo, explorando e expondo a crueldade e/ou alienação que as caracterizam. Dentro da ótica pós-colonial, abordamos a constituição do sujeito em torno das protagonistas, Arminda e Pequena Flor, mostrando como a cultura hegemônica se estrutura de forma a destruir qualquer pessoa de determinada classe, destruindo ou Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 41
obliterando não só sua subjetividade, mas sua própria vida ou descendência, se necessário. Através da exploração da construção discursiva das mesmas, atentamos ao caráter dialógico da linguagem utilizada nos dois contos, e exploramos a relação dos provérbios na estruturação e desfecho de cada obra. Desvendamos, assim, a base da ironia com a qual Lispector e Machado operam sua ridicularização de determinadas personagens representantes do status-quo, fazendo soar como falsos seus discursos de discriminação do outro. Finalmente, como não poderia deixar de ser, em se tratando de Lispector, adentramos o conceito de epifania no conto. Constatou-se, que, na realidade, não há uma forte presença deste recurso vinculada à caracterização dos personagens. Contudo, esta se faz presente de uma maneira sutil, não no corpo textual como um todo, não de forma pontuada, mas surge de uma forma diretamente ligada ao clímax presente no fim do texto. Clarice, ao “suspender” o texto, após uso do provérbio, suscita no leitor um tipo análogo de processo epifânico, fazendo com que a frase cause um impacto e reverbere nos ouvidos de quem lê. Tal epifania se faz presente e pertinente a este trabalho, uma vez que seu clímax acontece no momento final do conto, fragmento aqui enfatizado e analisado. Tal recurso de suspensão mostrou-se como o mais relevante de todos no cotejamento entre os dois contos. Vimos que o texto machadiano, avant-la-lettre, também faz uso deste mesmo artifício, com efeito semelhante. Comumente, encontra-se nele o mesmo uso o uso crucial de um provérbio, e de uma variada gama de expressões da linguagem comum, carregadas de preconceito, legando ao leitor de sua época, e à posteridade questionamento de valores; e de caracteres. Despertando uma parte ativa do leitor perante ao texto, aproximando-o deste de uma forma singular, Machado e Lispector se alinham em sua postura de crítica social e empatia
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com o leitor, a quem caberá, no fundo, julgar, ao fim de sua leitura, as personagens presentes nas tensões apresentadas.
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Recebido em 16/12/2016.
Aceito em 25/01/2017.
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A voz da periferia através de Sérgio Vaz Lara Barreto Corrêa5 Juliana Gervason Defilippo6 Resumo: Esta pesquisa tem como objetivo interpretar e analisar alguns poemas do escritor paulista Sérgio Vaz, buscando compreender de que maneira se evidencia a representatividade da periferia brasileira através das diversas vozes presentes em seu corpus poético selecionado. Para além do caráter artístico, de deleite e fruição, presente no texto literário - e, sobretudo no poético - esta pesquisa intenta compreender a poesia como arma de denúncia, de crítica e de expressão diante de uma sociedade cujas vozes dos estabelecidos ainda se sobrepõem e contagiam as vozes dos outsiders. Nobert Elias e John L. Scotson serão as principais referências a respeito de questões sociológicas para discutir conceitos sobre estabelecidos e outsiders Palavras-chave: Periferia. Poesia.
Sérgio Vaz. Literatura brasileira contemporânea. Marginalidade.
Abstract: This research aims at interpreting and analyzing some of the poems of the writer from São Paulo city Sérgio Vaz, thus trying to understand how the Brazilian periphery representativeness is emphasized through different voices present in the author's selected poetic corpus. Besides the artistic character of delight and enjoyment present in the literary text - and above all, in the poetic aspect -, this research objective is to understand poetry as an instrument of accusation, criticism and expression before a society whose voices of the established ones still take over and affect the voices of the outsiders. Nobert Elias e John L. Scotson will be the main references to discuss sociological questions and concepts about the established ones and the outsiders. Keywords: Sérgio Vaz. Contemporary Brazilian Literature. Marginalization. Periphery. Poetry.
Mestranda em Letras no Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora e professora titular do Mestrado em Letras do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. 5 6
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Mineiro da cidade de Ladainha, Sérgio Vaz nasceu em 1964 e mudou-se para São Paulo aos cinco anos de idade. Atualmente reside em Taboão da Serra, onde exerce ativamente seu papel de poeta e agitador cultural, tendo sido o fundador da Cooperativa Cultural da Periferia, a Cooperifa – com o Sarau da Cooperifa que valoriza e estimula a produção poética destacandose como um coletivo de vanguarda na produção cultural periférica de São Paulo. Em 2016, completando 15 anos de atuação da Cooperifa, os organizadores e integrantes da cooperativa, apresentaram ao público a Mostra Cultural da Cooperifa, um evento de oito dias de duração que contou com a participação de nomes representativos do cinema, da música e da literatura na produção cultural da periferia. Em paralelo, Vaz se destaca no cenário cultural paulista por promover festividades no campo literário, como a Semana de Arte Moderna da Periferia, realizado em 2007 – e claramente inspirado na Semana de Arte Moderna de 1922. Chuva de Livros, Poesia no ar, Ajoelhaço, são outros eventos criados e comandados pelo poeta. Em 2009, Sérgio Vaz foi escolhido pela Revista Época como um dos 100 brasileiros mais influentes do ano. Em 2012, a Imperatriz do Samba, homenageou o escritor com seu enredo “Sérgio Vaz, o poeta da periferia”, no carnaval paulista. Neste contexto, a poesia de Sérgio Vaz pode ser considerada pertencente à marginalidade, a qual, segundo os escritores Alexandre Faria, João Camillo Penna e Paulo Roberto Tonani do Patrício, o real se faz presente e o “testemunho produz uma crise no paradigma realista das análises literárias, ao solicitar uma verdade da experiência perspectivada e não referencial” (FARIA; PENNA. PATRÍCIO. 2015, p.19-20). Outro aspecto relevante destaca-se na percepção da pesquisadora Beatriz Resende (2008) em relação ao comportamento destes novos atores que recusam mediadores tradicionais, buscando inclusive novas editoras, nas quais possam participar mais efetivamente. O escritor Sérgio Vaz tem até o presente momento, sete obras publicadas, sendo cinco delas Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 45
autônomas. A obra Colecionador de Pedras é a primeira publicada pela Global Editora e abre a coleção Literatura periférica, tendo sido lançada inicialmente de forma independente e resumindo os vinte anos de poesia de Sérgio Vaz, portanto tem poucas poesias inéditas (VAZ, 2008). Segundo a mesma pesquisadora, os escritores jovens da contemporaneidade não aguardam a consagração por parte da academia ou, até mesmo por parte do mercado. Suas publicações tornam-se independentes e divulgadas via outros caminhos que não os já legitimados no mercado editorial, usando inclusive espaços que até recentemente estavam afastados do universo literário, aproveitando as possibilidades oferecidas pela internet (via websites, blogues, páginas no Facebook e outras mídias). Este comportamento é observado na atuação literária de Sérgio Vaz, uma vez que apesar das diversas publicações em livro, o mesmo faz uso das redes sociais para diariamente realizar novas publicações e os seus leitores terem acesso imediato7. É nesta contemporaneidade que se apresenta Sérgio Vaz, afirmando a sua percepção da força dos artistas da comunidade para que aconteça o fortalecimento da cidadania da periferia e, com isso, as transformações necessárias na mesma (VAZ, 2008, p. 62). O escritor Sérgio Vaz assume este papel ator/protagonista de sua comunidade, através da Cooperifa8 e, principalmente, da sua obra. A literatura brasileira tem se mostrado, ao longo dos anos, como um espaço possível para que as vozes da minoria encontrem suporte. Seja a voz do gênero feminino, seja a afrodescendente, ou ainda a indígena. Prosa e poesia colaboram para que os silenciados de uma sociedade estabelecida possam enfim falar. O presente artigo debruçar-se-á em alguns poemas do Facebook: https://www.facebook.com/poetasergio.vaz2/?fref=ts Twitter: https://twitter.com/FrasesSergioVaz 8 Cooperifa é movimento literário, conduzido por Ségio Vaz, que “tem como filosofia o incentivo à leitura e a criação poética, e sempre foi um projeto de cidadania através da literatura” (VAZ, 2008, p.166). 7
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poeta brasileiro Sérgio Vaz, com o intuito de apontar algumas das vozes marginalizadas estão presentes, buscando compreender sua literatura enquanto arma política, poética e social. A relevância deste estudo encontra-se na necessidade de identificar essas vozes e defini-las dentro e fora da poesia, compreendendo a importância e urgência destes discursos para o mapeamento de uma realidade social brasileira até então retratada por pessoas não pertencentes a este lugar. Mesmo o discurso de gênero, dentro da questão feminina, conforme apontam estudiosas e pesquisadoras do tema, foi o primeiro evidenciado na voz masculina. Segundo o pesquisador e sociólogo Nobert Elias os estabelecidos tendem a rotular os outsiders com um “valor humano inferior” (2000, p. 24) como forma de manter sua superioridade social. Conforme Elias: Afixar o rótulo de “valor humano inferior” a outro grupo é uma das armas usadas pelos grupos superiores nas disputas de poder, como meio de manter sua superioridade social. Nessa situação, o estigma social imposto pelo grupo mais poderoso ao menos poderoso costuma penetrar na auto-imagem deste último e, com isso, enfraquecê-lo e desarmá-lo (...) a luta entre os estabelecidos e os outsiders deixa de ser, por parte destes últimos, uma simples luta para aplacar a fome, para obter os meios de subsistência física, e se transforma numa luta para satisfazer outras aspirações humanas (ELIAS & SCOTSON, 2000, p. 24 e 33). As afirmações de Elias apontam para a importância e a relevância deste estudo, uma vez que partimos dos textos literários de um outsider assumido, conforme se coloca Sérgio Vaz, para compreender quais as vozes presentes em alguns de seus poemas. O eu lírico em sua poesia fala da periferia de dentro da periferia, portanto, é válido perceber como é o olhar dentro e como também a periferia se coloca socialmente. Ou seja, perceber como a voz oriunda deste espaço, na poesia do autor, constrói-se diante do discurso dos estabelecidos. Deve-se levar em consideração Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 47
ainda o difícil local conquistado pela periferia brasileira, por isso, pode-se afirmar que é importante reconhecer as vozes, além do próprio escritor, presentes em sua obra. Segundo a professora e crítica Thereza Domingues a partir do século XX é perceptível um avanço em relação ao comprometimento dos escritores com o social. A afirmação de Domingues permite-nos olhar a produção poética de Sérgio Vaz, uma vez que seus poemas apresentam forte denúncia social. A estudiosa ainda afirma que tanto na poesia quanto na prosa, presencia-se uma tonalidade crítica mais audaciosa, afirmação pertinente quando analisamos o poema PAZ (ETA MUNDO ESTRANHO), do livro Colecionador de Pedras de Sérgio Vaz: ETA mundo estranho Tanta IRA, tanto ódio Quando o que a MOSSAD Mesmo quer é dançar HEZBOLLAH. Cd, OLP Deixe a música tocar. Neste ONU Vamos celebrar a vida Pois temos a FARC e o queijo Na mão, basta acreditar. Não importa o LADEN Que você está AL-QAEDA tarde vamos nos Abraçar. Solidão aos belicosos! Quem USA e abusa Não merece CIA. Vamos vigiar a paz, Noite e dia,
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Para que não haja mais a guerra, HAMAS!9 (VAZ, 2013, p. 34) Ao analisar este poema somos reportados para o texto Poesia e Máquina: Sob o Signo de Mallarmé de Fernando Fiorese ao pensar na poesia oriunda do trânsito entre as cenas finisseculares da modernidade e do contemporâneo: Pensar a poesia no trânsito entre as cenas finisseculares da modernidade e do contemporâneo enseja, antes de tudo, a desconstrução dos discursos teóricos e das práticas líricas ora fundados no apelo apocalíptico do verbo acossado pelas potências da imagerie desenfreada, ora seduzidos pela profusão de trucagens e efeitos especiais que mudam a palavra em mera e transitiva atração midiática, em curiosidade verbivocovisual (FIORESE, 2010, p. 50). A voz do eu-lírico neste poema não critica apenas a realidade social brasileira, uma vez que os termos em caixa alta, como pode ser observado, fazem referência a questões específicas do Oriente Médio, principalmente. Portanto, já se pode verificar que as críticas presentes na obra do poeta não estão voltadas apenas para a realidade brasileira. Os versos constroem e promovem a crítica social não só pelas palavras e sentidos expressos, como também, dão destaque a outras palavras, colocando-as em caixa alta, e criando um jogo vocabular com as sonoridades das mesmas, visto que são expressões, siglas e gírias que pertencem à contemporaneidade. O que sustenta a afirmação de Fiorese a respeito dos aspectos verbivocovisuais presentes neste tipo de produção. O interessante é perceber a sonoridade das palavras em destaque para a construção de sentido do texto. Neste poema o eu lírico apresenta um convite para que a guerra seja dizimada, trazendo à tona o potencial humano para 9
Os poemas serão reproduzidos respeitando a formatação utilizada na edição do livro aqui referenciada.
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que a paz se faça presente, alertando ainda sobre a importância de ir além do acreditar, pois é preciso uma ação. No texto Sobre a escrita de si e seus vínculos com a dimensão política: algumas questões (ainda) dispersas, a autora Elisabeth Muylaert Duque Estrada destaca a importância de onde se fala para legitimar as narrativas autobiográficas marginais às formas canônicas. Apropriando da afirmativa da autora, é possível inferir que o posicionamento de Sérgio Vaz em escrever sobre periferia é aceito por ele pertencer a este espaço. Entretanto não se pode deixar de questionar tanto essa legitimidade quanto esta representatividade, já que em seus poemas há outras vozes como se pode ver nos versos de Cinzas, presente no livro Colecionador de Pedras: No incêndio na favela Dirce perdeu tudo que tinha, Mas o que ela não tinha é o que mais faz falta pra ela... (VAZ, 2013, p. 135) Uma das temáticas exploradas no poema refere-se às privações experienciadas num ambiente periférico, o que provavelmente proporciona acidentes como este incêndio vivenciado por Dirce, também uma representação da mulher à margem da sociedade. No texto Mulheres da periferia: feminismo e transgressão em Guerreira de Alessandro Buzo, os pesquisadores Sandra Maria Pereira do Sacramento e Luciano Santos Neiva abordam a respeito desta identidade feminina suburbana: Assim sendo, a identidade feminina suburbana, através da transgressão, se coloca como negadora de qualquer pretensão ao uso de uma racionalidade que não reflita suas existências periféricas. Assim, as personagens femininas se colocam como sujeitos periféricos que buscam a construção de uma identificação a partir de referenciais próprios, porque internos. Há, com isso, a inserção de vozes silenciadas em processo de construção da sua Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 50
própria historicidade. A representação feminina, sob essa ótica, resgata o universo cultural e altera o acontecer ficcional alicerçado na ideologia vivenciada (SACRAMENTO & NEIVA, 2011, p.87). Portanto, é possível perceber o paradoxo das perdas explorado pelo eu lírico, uma vez que embora a mulher tenha perdido tudo no incêndio, a perda maior se faz das ausências – subentendidas dentro da questão social, uma vez que a palavra “favela” (VAZ, 2013, p. 135) identifica o espaço de fala e permite ao leitor preencher aí também o que não é falado. Para os autores oriundos da periferia, como Sérgio Vaz, ou ainda Ferréz, por exemplo, seu pertencimento ao ambiente narrado parece legitimálos ainda mais a explorar uma abordagem direta e atual da história dos marginalizados e excluídos, como Dirce, a voz feminina advinda da periferia e ainda silenciada. A análise de alguns poemas nos remete a questões acerca dos limites entre centro e periferia. Segundo a pesquisadora Ivete Lara Camargos Walty, em seu livro A Rua da literatura, através da literatura pode-se fortalecer ou borrar os limites entre estes espaços: Entende-se que a literatura não só acolhe o movimento da rua, como ela própria se faz rua em sua contradição entre o aplainamento e a diversidade, entre a pavimentação e a presença de buracos. Na construção desse espaço inscrevem-se as relações assimétricas de poder a fortalecer ou borrar os limites entre centro e periferia, seja nas marcas percebidas dentro do próprio país, seja naquelas vistas entre o país e seus modelos (WALTY, 2014, p.107). No poema Gente Miúda é possível perceber uma busca por fortalecer este limite, conforme os seguintes versos: Daniel Não tinha documentos Rg, certidão ou carteira profissional. Não tinha sobrenome
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Não tinha número Nem cidade natal. Quase um bicho, dormia na rua sobre as notícias E acordava na sarjeta, na calçada ou no lixo. Os dentes, em intervalos, Mastigavam migalhas do mundo, as sobras do planeta. (...) Morreu, Velho e batido, Depois de viver, Todos os dias, Durante trinta e sete anos, Como se nunca tivesse existido. (VAZ, 2013, p. 30) Nota-se neste poema que Daniel pertence à margem, vivendo e morrendo como se nunca tivesse existido, estabelecendo-se aqui uma definição mais clara e poética aos conceitos de viver e existir, explorados de forma distintiva e dicotômica. Através do discurso desenvolvido nos versos, há claramente a importância da legitimação do centro para o ser humano fazer parte de uma sociedade. Segundo pesquisas do estudioso Nobert Elias, são os estabelecidos que consolidam as normas específicas para pertencimento a um grupo. A identidade de um indivíduo se dá, conforme atesta o poema, a partir de documentos que burocratizam sua existência e que são inacessíveis para pessoas de baixa renda, por exemplo – uma vez que o acesso a eles é dificultado por uma série de passos burocráticos e custosos que acabam por excluir os moradores de rua. A total exclusão de Daniel torna-o comparável a um animal, atestando mais uma vez a animalização e o afastamento social já inclusive delatados por outros poetas modernistas, como Ferreira Gullar ou Manuel Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 52
Bandeira, por exemplo (em ambos os casos poetas estabelecidos, oriundos de um espaço de fala legitimado). Ainda, a respeito da animalização do homem, cabe destacar a afirmação de Norbert Elias a respeito do processo de segregação comum entre estabelecidos e outsiders: o grupo estabelecido atribuía a seus membros características humanas superiores; excluía todos os membros do outro grupo do contato social não profissional com seus membros; e o tabu em torno desses contatos era mantido através de meios de controle social (...) (ELIAS & SCOTSON, 2000, p. 20). De Daniel, excluído socialmente, relegado a nada e animalizado, no poema Gente Miúda, Sérgio Vaz alterna para uma outra forma de crítica, em que seu outro representante da sociedade periférica, inclui-se perfeitamente nos trâmites burocráticos e sociais: Um dia, O menino não tem o que comer: é faminto. Noutro, não tem onde morar: é de rua. Outro dia, lhe falta família: é órfão. Adiante, trabalha numa usina de carvão: é escravo. Agora pouco, com revólver na mão: era príncipe; pé na bola: rei. Um dia inteiro de uma vida cabe dentro da eternidade do menino. Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 53
Num dia, nasce vive e morre, Depois vira filme nas mãos de um outro menino que o socorre. (VAZ, 2013, p.32-33) Em Um dia para Jefferson, encontra-se elementos para consolidar ou, apenas, classificar um indivíduo marginalizado no centro, os quais trazem à tona certos preconceitos e críticas, pois o menino à margem socialmente só é visto como príncipe, com o revólver na mão ou rei, com o pé na bola. Desta forma, os limites entre margem e centro são borrados. Apresenta-se no poema a possibilidade, talvez, de um outsider ser percebido socialmente, entretanto não se pode afirmar que seria uma forma de legitimação. Destaca-se que ao ser notado, a margem de alguma forma esbarra/incomoda o centro. O poema valida a voz de um menino outsider e as suas possibilidades perante aos estabelecidos. O estudioso Roberto Corrêa dos Santos, no texto “A noção de margem em literatura e em filosofia”, afirma que O centro é o que comanda a estrutura escapando a sua estruturalidade. Ele se encontra paradoxalmente na estrutura, dela fazendo parte como elemento único e organizador, e fora, escapando a seu princípio mesmo: a estruturalidade. O centro está sempre em lugar diferente do esperado (SANTOS apud Nascimento, 2002, p.190). Portanto, com esta afirmação e observando o poema anteriormente exposto, vale questionar se é o centro mesmo que vai estereotipando o menino. O estudioso Nobert Elias afirma que “o estigma social imposto pelo grupo mais poderoso ao menos poderoso costuma penetrar na auto-imagem deste último e, com Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 54
isso, enfraquecê-lo e desarmá-lo” (NOBERT & SCOTSON, 2000, p. 24). Como afirma Michéle Petit “ler permite ao leitor, às vezes, decifrar sua própria experiência” (PETIT, 2008, 38), é possível perceber a literatura de periferia assumindo este papel de tradução de uma realidade não apenas para quem não a vive, mas também para uma apropriação de uma realidade vivida por muitos brasileiros. Sérgio Vaz é um emissor das vozes presentes na periferia, além de promover um espaço de fala através do Sarau da Cooperifa.
Referências DOMINGUES, Thereza da Conceição Aparecida. Reflexões sobre a poesia do oprimido. Verbo de Minas: Letras (Impresso), v. 9, p. 115-121, 2010. DUQUE ESTRADA, Elizabeth Muylaert. Sobre a escrita de si e seus vínculos com a dimensão política: algumas questões (ainda) dispersas. Ipotesi (UFJF), Juiz de Fora, v. 8, número 1-2, p. 143-153, 2004. ELIAS, Nobert; SCOTSON, Jonh L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. FARIA, Alexandre Graça; PENNA, João Camillo; PATROCÍNIO, Paulo Roberto Tonani do. Introdução: Modulações da margem. In: FARIA, Alexandre Graça; PENNA, João Camillo; PATROCÍNIO, Paulo Roberto Tonani do (orgs.). Modos da Margem: figurações da marginalidade na literatura brasileira. 1. ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2015. v. 1. P. 19-45. FURTADO, Fernando Fábio Fiorese. Poesia e máquina: sob o signo de Mallarmé. Verbo de Minas: Letras (Impresso), v. 9, p. 49-56, 2010. NEIVA, L. S.; SACRAMENTO, S.. Mulheres da periferia: feminismo e transgressão em Guerreira de Alessando Buzo. Ipotesi (UFJF. Impresso), v. 15, p. 81-92, 2011. PETIT, Michéle. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva, seguindo a tradução de Celina Olga de Souza. São Paulo: Ed 34, 2008. RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: Expressões da Literatura Brasileira no século XXI. 1a. ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra: Fundação Biblioteca Nacional, 2008. v. 1.
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SANTOS, Roberto Corrêa dos. A noção de margem em literatura e em filosofia. In: NASCIMENTO, Evando. Ângulos Literatura & Outras Artes – Ensaios (Impresso). Argos editora universitária e Editora UFJF, 2002. VAZ, Sérgio. Cooperifa: antropofagia periférica. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008. VAZ, Sérgio. Colecionador de pedras. São Paulo: Global, 2013. WALTY, Ivete Lara Camargos. A rua da literatura e a literatura da rua. 1. ed. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2014. v. 1. 270p.
Recebido em 01/11/2016. Aceito em 16/01/2017.
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Retratos da violência no Brasil do século XIX: “Pai contra mãe”, de Machado de Assis Elisângela Aparecida Lopes Fialho10
Resumo: O presente artigo visa a investigar, no conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, a abordagem dos preceitos definidores e mantenedores da sociedade escravista brasileira, realizada por um narrador, a princípio, localizado distante dos fatos que narra, mas que os relata de forma a deixar claros os impactos desses preceitos na organização social grotesca e cruel do contexto nacional, em prol de uma pretensa ordem. Palavras-chave: Machado de Assis, Pai contra mãe, violência.
Abstract: This article aims at investigating, in the short story “Father Against Mother”, by Machado de Assis, the approach of the defining and maintaining principles of the Brazilian slave society, adopted by a narrator, at first, located far from the facts that he narrates, but who reports them in a way to make visible the impact of these prejudices on the grotesque and cruel social organization of the national context, in favour of an alleged order. Keywords: Machado de Assis, Father Against Mother, violence.
Professora do IFSULDEMINAS, Campus Pouso Alegre-MG; doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Literaturas de Língua Portuguesa, da PUC-Minas; bolsista CAPES. 10
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O objetivo deste artigo é promover uma leitura do conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, a fim de demonstrar, na organização estrutural e temática do conto, a violência cíclica como prática institucionalizada na sociedade escravista dos oitocentos. O referido conto foi publicado no volume intitulado Relíquias de Casa Velha, que veio a público em 1906, segundo o autor, constituído de “ideias, histórias, críticas, diálogos” – inéditos ou já publicados. No prefácio, Machado assim apresenta o volume: “uma casa tem muita vez as suas relíquias, lembranças de um dia ou de outro, da tristeza que passou, da felicidade que se perdeu” (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 658), de modo a explicar as metáforas criadas – “casa” e “relíquias” – compondo uma alegoria da produção ficcional. As lembranças, mencionadas pelo autor na “advertência”, sinalizam o posicionamento temporal, espacial e, portanto, discursivo adotado pelo narrador de “Pai contra mãe”. O conto assim se inicia: “A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sócias” (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 659), indicando que o tempo da enunciação é posterior ao regime escravista, pois tal sistema “levou consigo”, o que fica claro no uso do tempo pretérito. A esses tempos de escravidão, marcados, sobretudo, pela manutenção do direito de propriedade do senhor sobre o escravo, visto enquanto mercadoria, e pela necessidade de inclusão social do homem livre, seremos levados pela voz narrativa. A história reflete um contexto de luta de todos contra todos, marcado pela exploração do homem pelo homem, como práticas de opressão institucionalizadas pelo regime e socialmente aceitas. Entretanto, o narrador, ao rememorar tais práticas, coloca em questionamento a “validade” de tais ações, ao atribuir a elas dois fundamentos: o grotesco e o cruel. Em seguida, o narrador irá enumerar alguns aparelhos de coerção comuns durante a escravidão e assinalar a sua função – tais como o ferro ao pescoço e o ferro aos pés – mas, não por acaso, Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 58
detém-se a detalhar a máscara de folha de flandres: A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 659). A descrição dos instrumentos relacionados à manutenção do escravismo, somada à indicação da finalidade que tinham, proporciona ao leitor do conto a visualização do funcionamento daquela instituição, já que tais aparelhos encontravam-se ligados à punição pela má conduta, funcionando também como instrumentos capazes de manipular o cativo para que tivesse comportamentos mais desejáveis. Aos olhos do senhor, a funcionalidade da máscara de folha-de-flandres, por exemplo, servia tanto para a punir quanto para inibir o vício do álcool e, consequentemente, o roubo. A leitura da primeira parte do conto poderia nos levar a interpretações equivocadas a respeito do ponto de vista do narrador. Nessa passagem, ele adota uma fala que, aparentemente, se aproxima da mentalidade escravista para, logo após, tecer o comentário capaz de indicar o seu locus discursivo: “mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco e muita vez o cruel” (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 659). Logo após a descrição dos aparelhos escravistas e de suas funções, enfatizando, assim, a violência sistêmica e institucionalizada pelo regime, o narrador, em tom imperativo, afirma: “Mas não cuidemos de máscaras” (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 659). A polissemia do enunciado leva-nos a duas possíveis leituras. Ele poderia estar se referindo à máscara de folha-deflandres descrita, como também às máscaras sociais. Partindo dessa possibilidade, podemos interpretar que a escravidão e seus princípios serão desmascarados a fim de revelar a crueldade Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 59
presente na base daquela instituição social. O narrador ressalta que o ordenamento do Estado, muitas vezes, encontra-se associado ao grotesco e ao cruel, o que será comprovado pela experiência vivida pelas personagens da narrativa. Sendo assim, o que Machado de Assis faz, no conto em questão, é expor os efeitos do regime na mentalidade brasileira de então, o que eleva a sugestão – “mas não cuidemos de máscara” – ao status de chave de leitura da história. O conto narra a história de Cândido Neves, um rapaz que diante da dificuldade de encontrar um emprego que lhe garanta o sustento de sua família, composta por sua jovem esposa, Clara, pela tia dela, Mônica, e por um filho que estava sendo gerado, vê no ofício de “capitão-do-mato” uma atividade rentável e que dele exigiria pouco esforço. Vivendo de favor numa casa cedida, comendo pouco e mal, esse personagem encontra na função que passa a exercer uma solução capaz de remediar momentaneamente a difícil situação na qual se achava. Diante da instabilidade do ofício, Tia Mônica sugere que o casal entregue o filho à roda dos enjeitados, para que seja acolhido e não passe necessidades. Desesperado, com o filho nos braços e na iminência de entregá-lo à roda, Cândido Neves reconhece, na rua, Arminda, uma escrava que havia fugido de seu senhor, cuja captura seria recompensada em 100 mil réis. De posse da fugitiva, ele a entrega a seu dono, quando ela, grávida, aborta o filho perante os olhos atônitos dos dois. Com a recompensa recebida, o personagem volta para casa com o filho nos braços, entre beijos, enquanto reflete: “nem todas as crianças vingam” (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 667), conclusão que exemplifica o aspecto grotesco, cruel e opressor da sociedade escravista. Nesse sentido, as máscaras sociais são deixadas à margem, dando lugar à lógica de dominação, pautada pela manutenção da propriedade e pela política do favor. Cada uma das personagens ocupa um lugar social – senhor, homem livre e escrava – de onde partem em busca daquilo que lhes falta: Arminda deseja proporcionar a liberdade que não tem ao filho que traz no ventre, Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 60
Candinho objetiva adquirir uma renda que lhe garanta poder manter o filho perto de si, já o escravocrata deseja ver restituído o bem semovente que lhe escapou. A tese presente em “As ideias fora do lugar”, de Roberto Schwarz (2000), torna-se essencial, por promover a elucidação do conceito de “direito de propriedade” e dos fundamentos do “favor”. O contexto histórico europeu, no século XIX, encontravase marcado pela “liberdade do trabalho”, “igualdade perante a lei” e pelo “universalismo”, conceitos que camuflavam uma realidade marcada pela exploração do proletariado. Tais ideias, proliferadas no Brasil, chocavam-se com a realidade do país, marcada pelo trabalho escravo. Sendo assim, conforme aponta Schwarz, a prática liberal europeia nada mais era do que um discurso oco, enquanto, no Brasil, era duplamente oco. Conforme ressalta o crítico, os postulados da civilização burguesa tinham como preceitos: “a autonomia da pessoa”, “a universalidade da lei”, “a cultura desinteressada”, “a remuneração objetiva” e a “ética no trabalho” – princípios aos quais se opunham tanto a prática escravista quanto o cultivo das relações do favor que marcavam a realidade brasileira. O título do conto – “Pai contra mãe” – é indicativo da luta travada entre Cândido Neves e Arminda a fim de garantir a sobrevivência dos respectivos filhos. Ela almejava dar à luz a um filho livre. Por isso, havia fugido do domínio do senhor que a tinha como propriedade, e que, consequentemente, também teria o filho que ela carregava no ventre. Já Cândido Neves só poderia garantir a permanência do filho recém-nascido junto à família caso conseguisse algum dinheiro para diminuir a miséria dos seus. Para Bosi (1982), o título possui um sentido mais amplo, já que a narrativa ilustra ainda uma luta de todos contra todos, visto que a aquisição de bens econômicos requer o subjugo do outro. Após este pequeno introito, faz-se necessário ler o conto em questão a partir dos pilares que regiam a relação entre as personagens representativas dos três estamentos da sociedade daquele tempo. Nesse texto, o proprietário de Arminda, Cândido Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 61
Neves e a cativa representam, respectivamente, a oligarquia escravista, o homem livre e a casta de escravos. É a partir das relações construídas entre essas personagens, baseadas na manutenção da propriedade, no favor e no desejo de liberdade, que se constrói a narrativa. Assim sendo, “Pai contra mãe” espelha a sociedade estratificada do século XIX. A fim de se ressaltar a representação da sociedade escravista no conto em questão, a análise detalhada de cada personagem que compõe a narrativa torna-se necessária. Cândido Neves, antes de exercer o ofício de capturar escravos fugidos, havia tentado atuar no comércio, trabalhou como fiel de um cartório, e também como entalhador, “mas querendo aprender depressa, aprendeu mal”, e esses trabalhos foram deixados logo depois de serem obtidos (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 660). A ausência de uma profissão leva o personagem a tentar exercer vários ofícios, aos quais não se prende, o que é representativo da desvalorização do trabalho no contexto da sociedade escravista, visto que as atividades produtivas e o trabalho braçal eram predominantemente desempenhados pelo elemento escravo. Por isso, comenta o narrador que, para o personagem: “a obrigação de servir, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho” (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 660). Sendo assim, tais funções eram vistas como pejorativas e desabonadoras. Por isso, nos dizeres de Octávio Ianni: “os homens livres fogem das atividades manuais, contaminadas pela casta dos escravos” (1988, p.162). Se o trabalho manual era capaz de aproximar o homem livre do elemento escravo, o novo ofício, a que se dedica Cândido Neves, distancia-o daquele, colocando-os em lados opostos. A captura de escravos fugidos, enquanto atividade financeira e ofício de um momento histórico, constitui-se como exercício de manutenção do direito de propriedade do senhor sobre seu escravo, manutenção essa que, diante da fuga, passa a ser garantida pelas mãos do homem livre. A escolha de tal ofício é assim justificada pelo narrador: Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 62
Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que sentia rijo para poor ordem à desordem (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 660). As hipóteses levantadas condizem com a situação em que se encontrava Cândido Neves. A ausência de um ofício certo já havia sido indicada pelos trabalhos a que se dedicara, sem, contudo, adquirir uma profissão. A pobreza da família seria agravada pelo nascimento do filho, o que tornaria maior a necessidade de obter-se um rendimento. O acaso proporcionava ao personagem deparar-se com os fugitivos e reconhecê-los imediatamente, o que lhe assegurava o recebimento pelo serviço. O gosto de servir à ordem escravista dava ao personagem “um encanto novo”, pois lhe exigia pouco. Segundo Terezinha Mucci Xavier (1994), há dois tipos de homens livres representados na obra machadiana: personagens com alto grau de orgulho e que, por isso, se recusavam à sujeição de servir, e aqueles que tendiam à servidão. A estudiosa destaca que, em ambos, o favor configura-se como responsável por intermediar as relações entre os favorecidos e os beneficiários. Nesse sentido, as atitudes adotadas por Cândido Neves podem ser enquadradas, em momentos distintos, nas duas categorias propostas por Xavier. Segundo nos informa o narrador, ele tinha seu orgulho ferido ao servir aos outros, na atividade comercial, enquanto tinha certo gosto em servir à classe senhorial, restituindo a ela a propriedade perdida. Para a estudiosa: “o favor confere à ficção machadiana estatuto de realidade, pois refere-se ao contexto sociocultural” (XAVIER, 1994, p. 117). O desejo de subir um degrau na escala social, e, assim, localizar-se mais distante do estamento ocupado pelos cativos, pode ser vislumbrado na passagem em que Candinho, enquanto procura a escrava fugida, interpela um comerciante e lhe pergunta se havia visto passar pela redondeza uma escrava com Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 63
determinadas características. Diante disso, destaca o narrador: “parecia falar como o dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia” (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 665). Situados entre os oligarcas e os escravizados, os homens livres desejam se aproximar daqueles e, para tanto, precisam se afastar destes. Para que tal aproximação se dê, a construção de relações de favor se torna indispensável. Mesmo não sendo agregado, o lugar ocupado por Cândido Neves na narrativa em questão encontra-se marcado pela pobreza, pela ausência de uma profissão, pelo desemprego e pelas relações de favor, o que faz dele um representante dos homens livres localizados no regime escravista. Situados entre a oligarquia e a casta de escravos, os homens livres ocupam um não-lugar social, conforme ressalta Maria Sylvia de Carvalho Franco: “homens a rigor dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais à sociedade” (FRANCO, 1983, p. 14); o que pode ser verificado nos vários ofícios desempenhados pelo personagem, sem que se dedicasse efetivamente a algum deles. No entanto, Cândido Neves sente-se um colaborador, ao assumir o novo ofício, enquanto o desejo de “por ordem na desordem” e de se afirmar perante o cativo alimentavam o seu orgulho. Enquanto ofício próprio de um tempo, apanhar escravos fugidos encontrava-se ligado à manutenção do direito de propriedade sobre o escravizado. A função de Cândido Neves é devolver ao senhor o bem que lhe havia escapado; por isso, vinha a recompensa financeira. O exercício da captura de fugitivos tinha como elemento facilitador e divulgador os jornais da cidade, conforme ressalta o narrador: Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha a promessa: “gratificar-se-á generosamente”, – ou “receberá uma boa gratificação” (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 659). Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 64
A menção feita por Machado de Assis, no trecho acima, espelha uma prática muito comum àquele tempo. A aproximação entre os elementos descritivos, incluídos no conto, e um anúncio publicado em 1885, dá ao texto a verossimilhança narrativa: Fugiu do Bacachery, no dia 10 do corrente, um escravo, pardo claro, de nome Fructuoso, de 28 a 29 anos de idade, alto e bastante reforçado, barba cerrada, com uma cicatriz em uma perna de um golpe de faca, e fala muito bem; quem o levar a seu senhor José Leandro Borges, no Bacachery, receberá 50$000 de gratificação.11 O Dezenove de Dezembro, Anno II, nº 25, Curitiba, 19/9/1885 p. 3 (apud IANNI, 1988, p. 128) Ao analisar anúncios como o anterior, Ianni tece o seguinte comentário: Como se vê, os anúncios revelam não apenas a técnica de controle e definição da posição do escravo, ao mesmo tempo, como também o tratamento dispensado pelos senhores. As marcas físicas de maus tratos são sempre mencionadas, para facilitar a identificação. A condição inferior do cativo possibilita um tipo de tratamento subhumano que às vezes se traduz em estropiamentos (IANNI, 1988, p. 128-9). O tratamento sub-humano a que se refere o sociólogo pode ser contemplado na narrativa. Para realizar o ofício, Cândido Neves fazia uso da força física e da agilidade possuídas. Às vezes, tomado pela cegueira da necessidade, ele se enganava e capturava um liberto. Noutras vezes, travava-se uma luta entre os envolvidos, a ponto de sair dela ferido, tamanha era a sua necessidade financeira e a ânsia de liberdade do fugitivo. Mas, conforme ressalta o narrador, o personagem geralmente vencia o fugitivo sem o menor arranhão, apesar de sua resistência. Sob a marca da pobreza e da dependência do favor 11
O anúncio teve seu português atualizado.
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localizam-se, ainda, Clara, a jovem esposa de Cândido Neves, e Tia Mônica. A moça órfã vivia com a tia numa casa simples. Porém, desejosa de casar, conhece Cândido Neves em um baile. Logo depois, a ele se une, passando a viver os três numa casa alugada. Ao longo da narrativa e diante das intempéries da vida pobre, a limitação da visão de mundo da personagem nos chama a atenção. Diante da ausência de comida à mesa, clama: “Nossa Senhora nos dará de comer” (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 661). Quando a família encontrava-se sem teto, cria: “Deus nos há de ajudar, titia” (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 662). Clara é guiada pela vida, e passa a narrativa a esperar uma solução divina para a situação miserável na qual se encontrava. Tia Mônica, consciente da pobreza a que estava destinada, alerta o casal sobre a vida escassa que teriam. Opunha-se, inicialmente, ao casamento, até ver nele a possibilidade de uma festa, afeita que era a “patuscadas”, e possivelmente vislumbrar no matrimônio da sobrinha uma chance de mudar de vida. Os laços de dependência marcavam aquela família: Tia Mônica, de certa forma, dependia da contribuição financeira dada por Candinho para a manutenção da casa. Clara dependia de ambos, e da intervenção divina. A criança recém-nascida dependia de todos, inclusive para viver junto à família, já que poderia ter sido entregue à roda. É a prática do favor que permite à família, despejada da antiga casa alugada, ter um novo lar: “o aposento de favor”, onde viviam graças à boa ação da proprietária do imóvel. O novo ofício desempenhado por Cândido Neves só tinha razão de existir diante da manutenção do regime escravocrata. A certa altura da narrativa, o trabalho exercido pelo personagem já não lhe garante os mesmos dividendos: Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou os anúncios e deitouse à caçada. No próprio bairro havia mais de um Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 66
competidor (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 661). Enquanto “ofício do tempo”, a captura de escravos fugidos configurava-se como uma saída para muitos daqueles que se encontravam inaptos para o exercício de um outro trabalho, desempregados, marcados pela pobreza e pela necessidade. Na segunda metade do século XIX, tempo ao qual se refere o narrador, Cândido Neves enfrentava a concorrência no exercício de seu novo ofício. A escravidão, enquanto instituição social, encontrava-se calcada em alguns princípios responsáveis pela sua manutenção e que justificavam a sua existência. Um deles é o direito de propriedade, segundo o qual o escravo era tido como mercadoria e instrumento de trabalho; portanto, podendo ser vendido, comprado ou até mesmo ser incluído no espólio familiar. Sendo assim, os negros, tidos como bens semoventes, eram associados aos demais bens deixados pelo morto a fim de que fossem divididos pela família.12 A narrativa de “Pai contra mãe” nos indica uma outra faceta da noção de propriedade, ao mostrar que esse princípio também era responsável por moderar a ação dos senhores no uso dos aparelhos punitivos e das pancadas: “o sentimento de propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói” (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 659). O escravo espancado, impossibilitado de trabalhar, passava a ser um prejuízo para o seu dono. Depois de descrever os aparelhos ligados à escravidão, dois comentários do narrador tornam-se importantes para o entendimento do seu ponto de vista. No primeiro deles, já citado, a manutenção da ordem social e humana, enquanto princípio escravista, impera sob o signo da crueldade e do grotesco. A 12
Na obra machadiana são muitos os exemplos dessa prática: Em Quincas Borba, o filósofo deixa a Rubião todos os seus bens, dentre eles um pajem. Quando do falecimento do pai de Bentinho, em Dom Casmurro, no testamento constavam os escravos da família, dentre outros bens. Assim como ocorre com Luiz Garcia, que lista o cativo Raimundo entre os bens a serem herdados, em Iaiá Garcia.
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restituição da propriedade, feita por Cândido Neves quando entrega Arminda amarrada ao seu proprietário, mesmo tendo ela lhe pedido que a deixasse livre por estar grávida, denuncia não só a ignomínia da posse sobre o ser humano, como também a crueldade por detrás da manutenção da “ordem social” desejada. O personagem proprietário de Arminda toma duas únicas atitudes no conto: uma delas é anunciar a fuga de sua escrava, já que é através dos jornais que Cândido Neves toma conhecimento do fato; a outra é pagar pela restituição de sua propriedade. Arminda, desejosa de romper as amarras que a prendiam, foge e, quando capturada por Cândido Neves, clama: “– Estou grávida, meu senhor! Exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço” (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 666). Mal sabia ela que, ao capturá-la, Cândido Neves agarrava-se à última alternativa para manter o seu filho perto de si. Os discursos de Arminda e de Clara se aproximam: aquela clama a Cândido Neves, o único capaz de salvar a ela e ao seu filho, naquele momento, e possibilitar a liberdade deles; enquanto esta roga a Deus para que a livre da miséria. Ao ser levada àquele que a tinha enquanto propriedade, Arminda tenta convencer Cândido Neves a soltá-la, ao que este responde: “Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois?” (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 666). Ao ser entregue, a escrava aborta o filho que trazia no ventre, perante os olhos desesperados do dono. O historiador Valdeci Rezende Borges (2001) atribui o desespero do proprietário de Arminda, diante do aborto, ao sentimento de propriedade deste em relação à perda que significava a morte do filho da escrava. Possível se estabelecer, ainda, uma aproximação entre Cândido Neves e Arminda, já que ele encontra-se em situação de dependência do senhor, no que se refere ao ganho financeiro, enquanto ela é propriedade deste. Ambos travam uma luta inglória pela sobrevivência de seus filhos. Todavia, nessa luta só Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 68
há um vencedor, conforme justifica ironicamente o narrador, no final do conto: “nem todas as crianças vingam”. A narrativa, marcada pela propriedade e pelo favor, situa escravos e homens livres num mesmo patamar, mas também diferencia-os, pois somente um filho “vinga”. O nome das personagens, assim como os das ruas, quase sempre, configuram-se como indícios importantes para a interpretação dos textos de Machado de Assis. O mesmo ocorre no conto em questão. Os nomes “Cândido Neves” e “Clara” indicam a alvura do casal, elemento que, segundo a mentalidade da época, os distinguia perfeitamente daqueles que ocupavam a condição cativa. A relação entre esses dois nomes é indicada pelo próprio narrador, ao relatar-nos a união do casal: “o casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço” (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 662); assinalando o caráter grotesco, na acepção daquilo que causa riso, pelo aspecto ridículo. Já os nomes das ruas, indicados quando Candinho parte à cata da escrava fugitiva, indicam o desespero de ambos. No percurso marcado pela procura de Arminda e que se finda quando esta é encontrada, o personagem passa pela “Rua do Parto” e “Rua da Ajuda”, localizando-a no “Largo da Ajuda”. A primeira parece indicar não somente o estado em que se encontrava a escrava, mas também a dificuldade de Candinho em encontrá-la; a segunda parece aludir tanto à necessidade financeira deste, quanto à necessidade de liberdade daquela. Infelizmente, nesse caso, a conciliação dos desejos era impossível. Depois de capturada, a cativa é arrastada pela “Rua dos Ourives”, numa provável alusão aos cem mil-réis que Cândido Neves estaria prestes a receber; e levada à “Rua da Alfândega”, onde é entregue ao seu senhor. Lá, ela foi deixada, como naquela época em que os negros trazidos da África eram desembarcados nos portos do país e, muitas vezes, ali mesmo avaliados. A representação ficcional realizada em “Pai contra mãe”, Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 69
conforme demonstrado, ilustra muito bem o quadro da sociedade oitocentista, calcada no direito de propriedade, no desejo de liberdade por parte dos cativos e na política do favor. É a restituição da propriedade “perdida” que vai permitir a Cândido Neves o exercício de um novo ofício. É esse mesmo princípio que justifica o anúncio nos jornais constando as características físicas do escravo fugido, a fim de que possa ser restituído ao seu dono, além de servir de moderador às pancadas deferidas sobre o cativo, conforme anteriormente mencionado. Segundo a narrativa, a manutenção desse princípio é realizada pelos aparelhos da escravidão descritos: a máscara de folha-de-flandres, o ferro ao pescoço e o ferro ao pé. É o direito de propriedade o fator determinante do final da narrativa, já que a restituição da propriedade rendeu a Cândido Neves uma quantia que lhe permitiu ter o filho recém-nascido perto de si, ao invés de levá-lo à roda dos enjeitados. Em contrapartida, é a manutenção desse princípio que impede Arminda de ser livre e de gerar um filho também livre, determinando a morte deste. Em “Pai contra mãe”, a instituição escravista é desmascarada ao longo da narrativa, a partir das revelações do narrador a respeito do princípio responsável por mantê-la: o direito de propriedade sobre seres humanos. É ele que possibilita o surgimento do ofício que Cândido Neves passa a exercer. Conforme anuncia o narrador, temporalmente localizado no período pós-abolição, a luta que ali é travada do pai contra a mãe espelha a escravidão que havia chegado ao fim, deixando marcas na sociedade e na memória do narrador.13 Os resquícios da instituição escravista brasileira na contemporaneidade foram tratados de forma bastante realista por Sérgio Bianchi, no filme Quanto vale ou é por quilo?, de 2005, tido como uma livre adaptação do conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis. A aproximação entre essa produção cinematográfica e a obra literária do escritor carioca foi tratada em algumas comunicações que tive oportunidade de apresentar: “Pai contra mãe”: roteiro para o filme Quanto vale ou é por quilo, de Sérgio Bianchi, VI Semana de Eventos da Faculdade de Letras, UFMG, outubro de 2006; e “Sérgio Bianchi, leitor de Machado de Assis”, XII Seminário de Teses em Andamento, UNICAMP, Campinas, outubro de 2006. 13
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Assim, pelos caminhos cíclicos da narrativa, Machado de Assis elucida os fundamentos ideológicos da sociedade escravista brasileira, situando-os, não por acaso, na exposição de um narrador distante no espaço e no tempo. Tal estratégia possivelmente vise a nos indicar, sutilmente, que o regime opressivo a que estão determinados os homens daquela sociedade deixara marcas profundas, tanto nas relações sociais quanto na mentalidade dos brasileiros, mesmo após o fim do regime escravista. Tais indivíduos assim como o narrador estão localizados temporalmente distante dos fundamentos daquela sociedade. Entretanto, os sujeitos sociais tenderiam a reproduzir, de outras maneiras, o que havia de mais cruel nas relações humanas como atitudes justificadas em prol da ordem e do progresso. Se, por um lado, os papéis desempenhados por esses indivíduos estariam baseados na reprodução da lógica escravista, a função do narrador seria desnudar tal reprodução e avaliá-la criticamente.
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_______. Dom Casmurro. In: COUTINHO, Afrânio (Org.). Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. v. 2, p. 808-944. _______. Iaiá Garcia. In: COUTINHO, Afrânio (Org.). Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. v. 2, p. 390-509. SCHWARZ, Roberto. “As ideias fora do lugar”. In: _______. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 4. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000. XAVIER, Terezinha Mucci. Verso e reverso do favor no romance de Machado de Assis. Viçosa, MG: UFV, 1994.
Recebido em 02/11/2016. Aceito em 16/01/2017.
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Discurso, construção dos papéis sociais de gênero e sua expressão em violência: uma análise de Esteban Trueba, da obra A Casa dos Espíritos Marcos Alves de Souza14 Franciele Regina Demarchi15 Eduardo Matheus Ferreira Lopes16 Resumo: Neste artigo, questionaremos os discursos desenvolvidos pela personagem Esteban Trueba, do romance A Casa dos Espíritos. A obra da escritora chilena Isabel Allende, retrata diversos episódios de violência que aquela personagem praticara contra sua companheira Clara. Neste estudo disporemos de trechos literais da obra, particularmente aqueles relatados pelo patriarca. Objetivamos demonstrar que a novela é primordial para a compreensão da construção social dos enunciados de violência na América Latina, especialmente para uma análise sob a perspectiva de Gênero no Chile. Palavras-chave: Violências; Gênero; Patriarcado; América Latina.
Abstract: In this article, we question the narratives developed by the character Esteban Trueba, of the novel The House of the Spirits, written by Chilean writer Isabel Allende, relating the episodes of violence that Esteban had engaged directed to his companion Clara. In this study, we will have excerpts of the work ipsis literis, particularly those reported by the patriarch. We understand that this creation is of paramount importance for the understanding of the social construction of utterances of violence in Latin America, as well as an analysis from the Gender perspective in Chile. Keywords: Violence; Gender; Patriarchal society; Latin America.
Doutor em História pela UNESP e professor do Departamento de História da mesma universidade. 15 Graduanda em História pela UNESP e membra do grupo de pesquisa DIVERGENTE – Gênero, Poder e Resistências. 16 Graduando em Direito pela UNESP e membro do grupo de extensão universitária CEL – Cárcere, Expressão e Liberdade e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. 14
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Considerações Iniciais A novela A Casa dos Espíritos (1982), da escritora chilena Isabel Allende, através de linhas imersas em um realismo fantástico, narra as histórias de quatro gerações de um mesmo agrupamento familiar, centradas especialmente nas representações femininas das genealogias dos Del Valle e dos Trueba. Destacamos que as transformações e rupturas políticoinstitucionais e econômicas ocorridas no seio da sociedade do Chile do século XX também são largamente abordadas pela autora, de modo que se interligam às próprias narrativas das mulheres centrais à obra, Nívea Del Valle, Clara, Blanca e Alba Trueba, não por acaso nomes luminosos (ALLENDE, 1992, p.283284) de uma mesma linhagem. Não parece difícil percebermos, então, que as temáticas relacionadas ao gênero feminino serão essenciais à interpretação das tramas relacionadas aos conflitos intergeracionais que constituem o pano de fundo dessa narrativa chilena. Assim, pretendemos destacar, neste trabalho, como essa discussão é suscitada por Allende através da relação de matrimônio de uma das personagens centrais do livro, Clara, e seu cônjuge, Esteban. Trataremos de pensar como se constituirá o discurso do patriarca Trueba, sobretudo em momentos específicos de intensa violência, notadamente praticada com um viés de gênero, não necessariamente em relação a sua esposa. Para empreendermos tal análise, foi necessário transitarmos por alguns conceitos, mesmo que abordados em linhas gerais, de forma a pensar a obra de Allende como uma narrativa sensível às expressões do machismo engendradas no interior da sociedade chilena de meados do último século, que, de certa forma, também ecoaram por outros países da América Latina nesse mesmo período, e além disso. Já de início, é importante salientar a noção de gênero que consideraremos. De acordo com PISCITELLI, o gênero
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[...] em suas versões mais difundidas, remete a um conceito elaborado por pensadoras feministas precisamente para desmontar esse duplo procedimento de naturalização mediante o qual as diferenças que se atribuem a homens e mulheres são consideradas inatas, derivadas de distinções naturais, e as desigualdades entre uns e outras são percebidas como resultado dessas diferenças. Na linguagem do dia a dia e também das ciências, a palavra sexo remete a essas distinções inatas, biológicas. [...] as autoras feministas utilizaram o termo gênero para referirse ao caráter cultural das distinções entre homens e mulheres, entre ideias sobre feminilidade e masculinidade. (PISCITELLI, 2009, p.119) Ao pressupor que gênero se vincula a uma expressão sociocultural, introduzimos uma das possíveis definições de violência de gênero. Embora, a palavra violência seja compreendida vulgarmente como aquilo que oprime, faz uso da força - uma coação - ou até mesmo pode ser considerada como uma ação do que é irascível, a violência de gênero supera essa formulação. É utilizada como sinônimo de violência contra a mulher, e trata-se de uma categoria ampla. Aplicada de forma descendente, geralmente, de “homens contra mulheres, pelo uso de ameaças e/ou força física, provoca sofrimentos psicológicos, intelectuais, físicos, sexuais e morais com o objetivo de coagir, humilhar, castigar, submeter, punir” (PUGA, 2015, p. 653). Tais comportamentos serão nitidamente observados no discurso de Esteban Trueba. Essa violência está arraigada no seio da humanidade desde o mundo antigo, e indubitavelmente delimitou, ao longo dos séculos, o lugar de submissão das mulheres em relação aos homens, marcando seus papéis sociais. Embora não haja nada essencialmente masculino ou feminino, os papéis sociais ou
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sexuais17, como podemos chamá-los, são construídos culturalmente e apreendidos tanto por homens quanto por mulheres. Como exemplo, podemos citar a questão das tarefas domésticas que, desde a infância, são ensinadas e impostas como função específica das mulheres. Já o sustento do lar, sempre fora entendido como uma atribuição do homem e, caso este não o executasse, por quaisquer alegações, sua hombridade seria contestada; deveria ser o homem da casa. Na tentativa de se estabelecer uma linearidade e uma historicidade, analisaremos, ainda, o conceito de patriarcado, desde a sua concepção original até a apropriação do termo pelo movimento feminista. RUBIN postula que: O patriarcado é uma forma específica de dominação masculina, e o uso do termo deveria se restringir aos nômades de comunidades pastoris como as do Velho Testamento, onde se originou o termo, ou a grupos como aqueles. Abraão era um Patriarca - um ancião cujo poder absoluto sobre mulheres, crianças, rebanhos e subordinados era um aspecto da instituição da paternidade, tal como definida no grupo social em que ele vivia. (RUBIN, 1975, p. 14) Todavia, o sistema patriarcal é hoje entendido não somente como uma dominação masculina intrafamiliar, mas uma evidente submissão social da mulher, notadamente após o surgimento da propriedade privada (ENGELS, 1984. p. 28 a 48). O pensamento feminista da década de 1960 elenca o termo patriarcalismo para problematizar as relações de poder e domínio dos homens sobre as mulheres. Como qualquer fenômeno histórico, a família patriarcal não corresponde a um modelo único de organização familiar, apresentando variações ao longo do tempo e de 17
A teoria dos papéis sociais prescreve um conjunto de atitudes esperadas para o
comportamento individual que refletem conformidade a normas culturais para as posições sociais que se ocupa. cf. PISCITELLI, 2009, p. 127-128.
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acordo com o lugar, porém mantendo sempre a superioridade e o poder do patriarca em relação aos seus outros membros. E esse poder masculino não se limita ao espaço doméstico, mas se reflete na forma de organização da sociedade como um todo(LIMA; SOUZA, 2015, p. 517). Como se observa, o poder do qual tratamos não se refere a um preceito unitário e estável, mas a um fenômeno relacional entre indivíduos, construído, também, a partir de resistência, indissociável da noção de saber. (FOUCAULT, 1999, p. 26). Nas relações de poder entre parceiros, objeto de nossa análise, é admissível atribuir o fator força-potência-dominação como o causador das inúmeras violências possíveis, dentre elas sexuais, psicológicas, físicas e etc. (SAFFIOTI, 2015, p. 79). O que se questiona é a conformidade social tangente às associações entre violências e poder patriarcal, e é preciso atenção na análise das atitudes viris consentidas como dóceis. A partir dessas premissas ligadas ao campo de estudo Gênero, é que analisaremos, mais adiante, a figura da personagem central de A Casa dos Espíritos.
Uma leitura de A Casa dos Espíritos desde a história chilena Consideremos, então, como tais questões se encontram evidenciadas no interior de A Casa dos Espíritos. As histórias são contadas através de uma série de relatos compilados em basicamente duas narrativas: a de quem sabemos, desde meados do livro, ser do patriarca Esteban , com suas recordações até pouco antes de sua morte; e de Alba , sua neta, que tece sua visão da história especialmente a partir dos relatos de sua avó, Clara , e de sua mãe, Blanca. Contudo, podemos entender que a jovem também desempenha papel de narradora da novela somente em suas últimas linhas. Nívea e Severo Del Valle, dotados de uma extensa prole, recebem de Esteban , então jovem e ambicioso, com toda uma vida a se construir, o pedido de casamento para uma de suas belas Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 77
filhas, Rosa. Mesmo relutantes, os genitores acabam por aceitar as condições do pequeno Trueba, que partiria para as minas de ouro a fazer fortuna para se casar com sua prometida (ALLENDE, 1992, p. 5). Entretanto, antes mesmo de seu regresso à capital, Esteban recebe a notícia de que Rosa falecera. O motivo: acredita-se que fora envenenada no lugar de seu genitor, por membros de um partido político rival aos tradicionais Del Valle (ALLENDE, 1992, p. 29). Já de volta ao centro da trama, o empreendedor recebe surpreendente investida de outra das filhas do casal, Clara, que fora arrebatada pelo rapaz assim que o avistara, ainda nos tempos de criança. Novamente, apesar de relutantes, os genitores aprovam a união (ALLENDE, 1992, p. 94-95). Agora, o momento é de Esteban retornar a uma antiga propriedade rural da família, Las Tres Marias. Abandonada pela aparente baixa produtividade, este ambiente sem lei, é cercado de relações violentas e animalizadas, especialmente as que se desenvolvem verticalmente entre o patriarca, el patrón, e seus empregados.18 No entanto, isso não parece obstáculo a Trueba, que em poucos anos transforma aquele antigo pedaço de terras enjeitadas em um dos mais produtivos latifúndios do país (ALLENDE, 1992, p. 55). A figura do homem de negócios, encarnada por Esteban, logo atrai olhares dos altos dirigentes do Partido Conservador, que o convidam à campanha para o Senado. A empresa moral que supostamente representava era o que se esperava dos típicos quadros da direita do Chile. Sem qualquer espanto, é eleito (ALLENDE, 1992, p. 243.). Contudo, é particularmente nesse momento chave em que se agudizam as ações violentas experimentadas por Clara Trueba junto a seu esposo. Por certo, esses episódios serão analisados com 18 Compreendemos
melhor o uso do termo em língua espanhola patrón, especialmente por sua estreita conexão com a ideia de patriarcado, em português, em SMITH, 2008, p. 82, tradução livre.
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o merecido vagar, mas devemos salientar que não somente o processo de ascensão econômica é marcado pela hostilidade de Esteban, mas também a manutenção de seu status políticopartidário junto à República. Blanca, filha do pouco sadio casamento, é obrigada a se casar com Jean de Satigny, conde francês que despertara a curiosidade da burguesia da Capital por suas maneiras poucos convencionais de ganhar a vida e por seus costumes europeus (ALLENDE, 1992, p. 207). A necessidade de se celebrar esse matrimônio decorre da notícia da gravidez de Blanca (ALLENDE, 1992, p. 265). O pai da vindoura neta dos Trueba, o questionador Pedro Terceiro Garcia, é neto de um ancião de Las Tres Marias dado às atividades de cura e aconselhamento, especialmente dos empregados da família, sempre carentes de atenção e cuidados médicos. Seu pai, Segundo Garcia, era uma espécie de braço-direito do patrón, cuidava dos assuntos do campo na ausência do mesmo. Talvez por esse motivo a criança seria tão inaceitável a Esteban. Pouco mais de uma década se passa. Cresce um sentimento em toda América Latina, e de forma semelhante no Chile retratado por Allende, de abolição de qualquer forma ligada ao marxismo (ALLENDE, 1992, p. 321) e de ideias a ele correlatas (ALLENDE, 1992, p. 330-331). Tal posicionamento, inclusive, é reforçado por Trueba em diversas passagens do texto. As políticas e práticas de esquerda são vistas como inimigos a serem combatidos, extirpados. Na esteira desse imaginário, ocorre drástico golpe de Estado naquele país, certamente apoiado pelo Senador do Partido Conservador, em desfavor do Presidente legalmente eleito. cujo nome não se menciona no texto, mas que interpretamos ser Salvador Allende, familiar da própria autora (ALLENDE, 1992, p. 397). Paralelamente, a neta Alba intensifica suas ações de insurreição contra o regime recém-assumido (ALLENDE, 1992, p. 410-411). Esse fato culmina em sua prisão por motivos políticos, mesmo sob o manto de uma família com nome honroso naquela sociedade (ALLENDE, 1992, p. 436). No cárcere, por sua Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 79
irresignação, é duramente torturada e violada, especialmente pelo militar Esteban Garcia (ALLENDE, 1992, p. 444). Percebemos, posteriormente, que tal figura é importante na novela por se tratar de mais um neto tido como bastardo de Trueba, fruto da violência que praticara no passado. Após articular com seus contatos, especialmente a prostituta Tránsito Soto, Trueba obtém sucesso em resgatar sua neta das mãos do regime que já lhe perdera a simpatia (ALLENDE, 1992, p. 456). Pensemos sobre este período da República do Chile. Expoente político e então senador pelo Partido Socialista, Salvador Allende concorrera à Presidência por três vezes antes de sua efetiva eleição: nos anos de 1952, 1958 e 1964, no período que retomamos a denominação de democratização restrita (AGGIO, 1993, p. 78 a 80). No primeiro ano da década de 70, através da coalizão Unidade Popular (UP), é eleito Presidente do Chile, com um projeto político socialista e democrático (AGGIO, 1993, p. 15 a 16). Logo após a eleição, e antes da posse do Presidente-eleito, já se sabe das intenções dos setores dominantes de impedirem a transmissão presidencial. Ou seja, antes mesmo da implementação de qualquer política de governo, já percebemos a disputa de discursos e de projetos no Chile (AGGIO, 1993, p. 110). Já no curso do mandato, as políticas de nacionalização do cobre e implementação da reforma agrária tocam em pontos sensíveis às elites locais, tal como se representa em Esteban Trueba, sinalizando para aquilo que o imaginário conservador considerou a implantação de um regime efetivamente comunista (AGGIO, 1993, p. 117). A autora relata o comportamento em uma passagem: Las Tres Marias foi um dos últimos latifúndios que a reforma agrária expropriou no Sul. Os mesmos camponeses que tinham nascido e trabalhado ao longo de gerações naquela terra, formaram uma cooperativa e assenhorea-ram-se da propriedade, porque fazia três anos e cinco meses que não viam o patrão e tinham esquecido o Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 80
furacão das suas cóleras. O administrador, atemorizado pelo rumo que tomavam os acontecimentos […] (ALLENDE, 1992, p. 362). Entretanto, é em outubro de 1972 que o governo Allende sofre com sua principal crise. Articulada pelos setores patronais, com apoio externo, os transportadores de mercadorias iniciam um movimento de lock-out. (ALLENDE, 1992, 375 a 377; AGGIO, 1993, p. 139). Enfim, em setembro de 1973, o General Augusto Pinochet, por meio de um golpe militar, logra a derrubar o governo da esquerda e instaura a Ditadura no Chile (AGGIO, 1993, p. 152). Acreditamos, contudo, que a tomada do poder institucional não é fruto de um projeto isoladamente econômico ou social. Sustentamos que se trata também de um empreendimento moral, heteronormativo e patriarcal19, com evidente viés autoritário em relação aos avanços feministas no Chile (MACMANS, 2011, p. 31).
Esteban Trueba O método qualitativo foi fundamental para o questionamento do texto literal da autora Allende em A Casa dos Espíritos. Detivemo-nos, especialmente, aos trechos em que o narrador é o patriarca Esteban Trueba. Tal opção não ocorre por acaso. Acreditamos que o modo em que estabelece suas narrativas é essencial para demonstrarmos, como retomaremos no tempo adequado, as características violentas desta personagem. Ademais, um estudo minucioso do estilo de narrativa de Esteban revela as lacunas que guarda, devido à sua idade, mas mais significativamente devido à sua memória seletiva e sua releitura do que ocorrera. Ele admite, repetidamente, A heteronormatividade e as opressões de gênero construídas no seio do patriarcado não se sobrepõe, mas se constroem em transversalidade. Sobre esse tema, cf. MOLINIER; WELZER-LANG, 2009, 101-106. 19
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que “mais da metade de um século se passou”, reconhecendo que sua memória é, portanto, desfocada. Além disso, em alguns momentos, precisa confiar em terceiras-pessoas, testemunhas dos fatos, como é o caso relativo à morte de sua noiva, Clara. (SMITH, 2008, 81 p, tradução livre). Foram selecionadas três passagens da novela, notadamente, das relações entre Esteban e Clara: I) na situação em que o esposo deliberadamente pratica violência psicológica ao quebrar objetos decorativos de sua casa; II) quando narra investidas libidinosas a sua esposa, entendidas como nítidas experiências de violência sexual; e III) em momento logo após uma agressão física a Clara, narrando como se sucedera. (ALLENDE, 1992, p. 123-124; 192 a 195; e 217). Por certo, sabemos que não são as únicas manifestações do machismo no discurso ou nas ações de Trueba. Apenas restringimos nossa observação aos episódios acima elencados, para efeitos de análise.20 O primeiro episódio versa sobre uma violência psicológica vivenciada por Clara. Um dia antes do nascimento dos gêmeos do casal, Clara, clarividente, pressagia o parto dos filhos e informa os nomes que receberão. Esteban, que até o momento gerou apenas uma filha, sem contar os inúmeros bastardos gerados pelas violações às jovens de Las Tres Marias, esperava que Clara lhe desse um filho no qual pudesse colocar seu nome. Ao enunciar que os nomes escolhidos eram Jaime e Nícolas, Trueba irrompe em fúria. Vejamos: Aquilo foi demasiado para mim. Suponho que estourei pela pressão acumulada nos últimos meses. Fiquei furioso, disse que eram nomes de comerciantes estrangeiros, que 20 Por
exemplo, é possível perceber o tom do violento Esteban Trueba em momentos
narrados por sua neta Alba, quando relata sua violação a Pancha Garcia, avó de seu futuro carrasco no cárcere Esteban Garcia, cf. ALLENDE. 1992, p. 60-62, ou ao comentar sobre os papéis sociais e sexuais das mulheres na sociedade chilena da época, sua ascensão e suas lutas, cf. ALLENDE, 1992, p. 71.
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ninguém se chamava assim na minha família, nem na sua, que pelo menos um devia chamar-se Esteban, como eu e como meu pai, mas Clara explicou que os nomes repetidos criavam confusão nos cadernos da vida e manteve-se inflexível na sua decisão. Para a assustar, parti com um murro um jarrão de porcelana que, julgo eu, era o último vestígio dos tempos faustosos do meu bisavô, mas ela não se comoveu e o doutor Cuevas sorriu por detrás da chávena de chá, o que me indignou ainda mais. Saí batendo com a porta, e fui ao Clube. Nessa noite embebedei-me. Em parte, porque precisava disso e em parte por vingança, fui ao bordel mais conhecido da cidade, que tinha um nome histórico. Quero deixar claro que não sou homem de prostitutas e que só nos períodos em que me foi dado viver sozinho por longo tempo recorri a elas. (ALLENDE, 1992, p. 123-124). Observamos no trecho a justificativa da violência apresentada pelo próprio Trueba. O argumento de Esteban se constrói a partir de uma suposta tradição: a escolha dos nomes dos filhos homens. Essa seria uma atribuição, um papel social do pai, assim como ocorrera consigo. Na esteira desse pensamento, percebemos que a recusa aos “nomes de comerciantes estrangeiros” também se dava pelo fato de que el patrón tinha por desejo a manutenção de um status quo, de um legado de nomes e homens que demonstram potência, poder, virilidade. Materializa-se essa ideia em uma dupla herança: os cuidados à propriedade de Las Tres Marias e o próprio uso do nome de seu pai, que também viera a ser seu, no futuro filho. Ao ver seu desejo contrariado, em uma nítida forma de resistência de Clara, Esteban quebra um antigo objeto de família na intenção de “assustar” a esposa, reforçando sua dominação por meio da violência. Finalmente, o marido retoma um ato de “vingança” praticado por ocasião do desentendimento: uma traição. Isso demonstra certo aspecto do caráter patriarcal desta
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personagem, que não só almejava o controle de seus negócios, mas de sua esposa e de sua família (SMITH, 2008, p. 81, tradução livre) A violência aqui questionada refere-se à uma intimidação de Esteban para com Clara. Retomando os conceitos supracitados de violência de gênero, ameaças de agressão e danos à objetos pessoais são compreendidos como violências psicológicas. (SCHRAIBER, 2005, p. 38.) Embora exercidas de forma indireta, pretendem causar terror à vítima, que por sua vez, é incentivada, por meio de periódicos constrangimentos, a entender esse processo como usual, banal (SCHRAIBER, 2005, p. 123). Em sequência, o segundo episódio evidencia uma situação de expressa violência sexual experimentada pela personagem. Também em decorrência do que havia sofrido, cada vez mais, Clara recrudescia em seu relacionamento com Esteban. Entretanto, essa situação era vista pelo patriarca como verdadeiro teste aos seus “instintos masculinos”, especialmente ao exercício de sua sexualidade. Dessa forma, Esteban acredita, pretensamente, que ao estimular ou forçar qualquer espécie de ato sexual, poderia reaproximar o casal ou ao menos o satisfaria em seus desejos. É nítida a maneira como Esteban entende a relação sexual: uma mera satisfação de seus prazeres individuais; embora em outras passagens da obra tenha se referido a fazê-lo para conceder prazer a Clara, é na citação abaixo que demonstra ser um homem viril, chegando a utilizar a expressão “cavalgar uma égua”, para representar a prática sexual, a certa altura. Leiamos um trecho: Creio que as pessoas tinham medo de mim. Até a própria Clara, que nunca tinha temido o meu mau gênio, em parte porque eu tinha o cuidado de não o dirigir contra ela, andava assustada. Vêla com medo de mim punha-me frenético. [...] Na realidade, muito poucas vezes estávamos de acordo em alguma coisa. Não creio que a culpa de tudo fosse o meu mau gênio, porque eu era um bom marido, nem sombra do estoura-
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vergas que tinha sido em solteiro. Ela era a única mulher para mim. E ainda o é. [...] Não sentia a tentação de procurar outras. Recordo que começava a assediá-la ao cair da noite. De tarde ela sentava-se a escrever e eu fingia saborear o cachimbo, mas na realidade estava a espiá-la pelo canto do olho. Logo que eu calculava que se ia deitar – porque começava a limpar o aparo e a guardar os cadernos - adiantava-me. Ia a coxear até à casa de banho, arranjava-me, vestia um roupão de felpa episcopal que tinha comprado para a seduzir, mas que ela nunca pareceu dar conta da sua existência, ficava de ouvido colado à porta e esperava-a. Quando a ouvia avançar pelo corredor, assaltava-a. Tentei tudo, desde cobrila de carícias e presentes até ameaçá-la de deitar a porta abaixo e moê-la com bengaladas, mas nenhuma dessas alternativas resolvia o abismo que nos separava. [...] Estava na idade em que se necessita ajuda e ternura para fazer amor. Tinha ficado velho, porra! (ALLENDE, 1992, p. 192 a 195). Percebemos neste fragmento uma série de manifestações que associadas englobam a prática de atos sexualmente violentos. Desde o voyeurismo, que percebemos com o ato de Esteban ao espionar sua esposa às escondidas, perpassando mais um episódio de violência psicológica ao ameaçar “deitar a porta abaixo” do quarto de Clara. Esteban interpreta explicitamente a relação sexual como um meio de obtenção solitária de prazer, no qual o gozo mútuo não é finalidade. Finalmente, esta acaba por ser a própria visão do senador sobre o casamento: uma forma de se manter uma convenção social largamente utilizada, qual seja, do matrimônio, gerar filhos legítimos, e gerar prazer. (RUEDA GUTIERREZ, 2009, p. 52.) Recuperando o conceito da violência de gênero já enunciado, pelo propósito de coagir e submeter, a violência sexual consiste, de forma geral, no uso de expressões verbais e/ou corporais não desejados, toques e carícias não aceitos e relações Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 85
sexuais forçadas. Esta última, maior receio das vítimas, faz parte de uma cultura patriarcal de dominação. O homem possui domínio sobre o corpo da mulher e faz uso dele a seu bel-prazer porque a sociedade assim o conforma. No tocante ao contexto chileno, percebemos que a força de instituições conservadoras, especialmente, neste espaço temporal de meados do século XX, não atua de forma diferente; pelo contrário, as relações de opressão e, notadamente, de silenciamento em relação a estas, pareciam cíclicas e naturais, como se depreende lendo tanto as linhas iniciais quanto as finais da novela A Casa do Espíritos. Deu-se conta demasiado tarde, pelas salpicadelas de sangue no vestido, que a jovem era virgem, mas nem a humilde condição de Pancha, nem as oprimidas exigências do seu apetite lhe permitiram ter contemplações. Pancha Garcia não se defendeu, não se queixou, não fechou os olhos. Ficou de costas, olhando o céu com uma expressão espavorida, até que sentiu o homem [Esteban Trueba] que caia com um gemido a seu lado. Então começou a chorar suavemente. Antes dela a sua mãe, antes da sua mãe a sua avó tinham sofrido o mesmo destino de cadela. (ALLENDE, 1992, p. 57-58). Suspeito que tudo o que aconteceu não é fortuito, mas que corresponde a um destino traçado antes do meu nascimento e que Esteban Garcia é parte desse desenho. É um traço rude e torcido, mas nenhuma pincelada é inútil. No dia em que o meu avô derrubou nos matagais do rio a sua avó, Pancha Garcia, acrescentou outro degrau a uma cadeia de factos que se deviam cumprir. Depois, o neto da mulher violada repete o gesto com a neta do violador e dentro de quarenta anos, talvez o meu neto viole a sua nas matas do rio e assim, pelos séculos vindouros, numa história infindável de dor, de sangue e amor. […] Em alguns momentos tenho a impressão de que já vivi isto e que já escrevi estas mesmas palavras, mas compreendo Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 86
que não sou eu, mas outra mulher, que escreveu nos seus cadernos para que eu viesse a servir-me deles. (ALLENDE, 1992, p. 439). Finalmente, a terceira passagem de ações violentas de Esteban Trueba só pode ser entendida, então, com a observação em paralelo da narrativa desenvolvida pela primeira narradora da obra, sua neta Alba, e de seu relato logo posterior ao que ocorrera. Desta forma, discutiremos o episódio em que o patriarca desfere um soco em sua esposa, entendido então como clara atitude de violência física que, em seguida, pretende justificar: Trueba olhou-a, imobilizado pela surpresa. Por um instante a sua ira pareceu esvaziar-se e não quis acreditar no que ouvia, mas imediatamente uma onda de sangue subiu-lhe à cabeça. Perdeu o domínio e desferiu um murro na cara da mulher, atirando-a contra a parede. [...] Pedro Tercero Garcia tinha toda a culpa do que se havia passado. Por culpa dele Blanca tinha saído de junto de mim, por causa dele eu tinha discutido com Clara, por causa dele Pedro Segundo tinha saído da propriedade, por causa dele os caseiros olhavam-me com receio e cochichavam nas minhas costas. (ALLENDE, 1992, p. 215; 217). Ponderamos que a violência, fruto de um sopesamento desproporcional das relações de poder, certamente causado pelo mecanismo de opressão, que é o machismo, nada mais é, do que uma criação sociocultural e, dessa forma, não se encontra imanente nas definições de homem. A masculinidade, portanto, só pode ser entendida quando a pensamos de forma plural, tal qual, no momento que pensamos as mulheres. Dessa forma, acreditamos que suposições naturalistas, ou seja, que atribuem a violência, especialmente a física, à virilidade, despolitizam o debate a ser travado sobre esse sistema de dominação. (SCHRAIBER, 2005, p. 58 a 66). Como já pontuamos, as significações apresentadas partem de definições atuais. Contudo, as violências perpetradas são históricas e fogem aos moldes temporais, pois advém de uma Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 87
construção social. De fato, o vivido por Clara, notoriamente, é entendido como violência física.Para a análise dos episódios anteriormente descritos, ainda consideramos a noção de violência doméstica, e entendemos que este ambiente propicia o maior silenciamento da vítima, bem como evidencia as desigualdades na relação entre homens e mulheres, ou seus papéis sociais de dominação versus submissão, imersas no patriarcado.
Considerações Finais As práticas e costumes conservadores da personagem Esteban Trueba, desde sua atuação no Senado, seus mandos enquanto proprietário em Las Tres Marias e suas relações com as mulheres, precisam ser lidas enquanto figuras que caracterizam o sistema do patriarcado. Na personagem de Esteban Trueba, para resumir, encontramos dois discursos quando falamos sobre o poder. Por uma parte está o uso da força física, do qual se vale tanto para impor a sua vontade como para silenciar todo tipo de resistência; ademais, há o discurso da fortuna obtida através do trabalho, o que permite a ele selecionar entre os que devem deter o poder e os que devem ser governados; discursos que, por certo, não resultam de todo modo invariáveis, não se mostra ao menos no que diz respeito o primeiro, como nos mostra a novela. (RUEDA GUETIERREZ, 2009, p. 35-36, tradução livre). Entendemos, contudo, que é preciso demarcar a existência de um terceiro discurso de poder relacionado a Trueba. Ante tudo o que fora exposto, apresentamos a hipótese de que as relações de gênero, especialmente as desenvolvidas por meio das violências típicas desta personagem, compõem também esse centro de poder. Esteban não reconhece, e pretende em seu discurso, que também não conheçamos, as consequências negativas de todos os seus atos. Finalmente, a construção de sua personagem e de seu discurso dão forma às ideologias do patriarcado, do capitalismo, da Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 88
dominação e de uma memória histórica enviesada. (SMITH, 2008, p. 84, tradução livre). Concebemos, então, que a ruptura democrática percebida no governo de Salvador Allende, no Chile, acabou por lançar mão de uma série de artifícios repressivos, amplamente retratados na novela A Casa dos Espíritos, que afetou sobremaneira as mulheres. Novamente, importa assinalar que os estudos de Gênero são essenciais à óptica dessa questão. A figura do general Augusto Pinochet, na condução do regime ditatorial hipermasculino no Chile (1973-1990), codificou construtos sociais de gênero patriarcais e heteronormativos, os quais foram amplamente reproduzidos nos campos de concentração que por aquele país foram construídos. Não é difícil pensarmos que as dinâmicas de poder exercidas reproduziam violentamente tais preceitos nos torturados e prisioneiros políticos. (MACMANUS, 2011, p. 149) Neste trabalho, buscamos conferir cores aos traços delineados de Esteban Trueba. Por certo, esta análise se deteve em uma obra centrada nas experiências de opressão e possibilidades de resistências de mulheres na América Latina, que em meados do século XX, fizeram oposição não somente aos regimes políticos autoritários , mas às instituições de poder mais amplas e fortemente enraizadas nas coletividades latinas, como o machismo, o qual aqui representamos pelo modo de atuação do patriarcado.21 Essa insurreição feminina e feminista não se deu somente através de duras e grandes manifestações de massa, nas ruas e nos púlpitos. Praticada pela autora Isabel Allende e suas personagens, Clara, Blanca e Alba, e uma infinidade de mulheres invisibilizadas por sua condição de submissão, tais sublevações cotidianamente se formam e criam novas possibilidades e oportunidades de viver para mulheres latino-americanas, longe das violências que outrora as cercaram. 21 Diversas
obras certamente inspiraram e colaboraram com a produção deste artigo
e poderão garantir profundidade às inquietações que objetivamos levantar. Especialmente, cf. PEDRO, 2010, p. 115-137.
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Recebido em 01/11/2016. Aceito em 25/01/2017.
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A língua que é capaz de incluir ou excluir um indivíduo analisada em textos publicitários da Adidas Gisele Soares Vieira22 Resumo: Este artigo apresenta uma análise de textos publicitários da empresa Adidas e tem como objetivo identificar recursos linguísticos utilizados para fazer com que indivíduos excluídos pela sociedade sintam-se fazendo parte de um contexto esportivo. Por meio desta associação, o leitor é levado a acreditar que necessita comprar os produtos oferecidos no comercial para tornar-se uma pessoa de sucesso. Para esta análise, é realizado um estudo de dois textos publicitários divulgados na internet pela Adidas. Esse estudo é embasado em conceitos da teoria dos subentendidos contidos no texto. É realizada também uma reflexão sobre a diversidade linguística e social utilizada nos textos publicitários. Para isso serão utilizados alguns conceitos de Bourdieu. Por meio desta análise averígua-se como a língua é utilizada como instrumento de poder. Palavras-chave: Textos Publicitários. Recursos Linguísticos. Adidas.
Abstract: This article presents an analysis of advertising texts of the Adidas Company and aims to identify language resources used to make individuals excluded by society to feel part of a sporting context. Through this association, the reader is led to believe that you need to buy the products offered in the business to become a successful person. For this analysis, we conducted a study of two advertising texts published on the Internet by Adidas. This study is grounded in concepts of the theory of implied contained in the text. It also carried out a reflection on the linguistic and social diversity used in advertising copy. For that will be used some concepts of Bourdieu. Through this analysis consider whetheras the language is used as an instrument of power. Keywords: Text Advertising. Language Resources. Adidas.
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Mestranda em Letras pela Uniritter.
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1. Introdução As grandes marcas investem, cada vez mais, em textos publicitários capazes de transformar o leitor em consumidor. Utilizando técnicas persuasivas e de argumentação extremamente inteligentes e perspicazes, estes textos captam a atenção do leitor atingindo-o emocionalmente. Através deles, ocorre também uma inclusão ou exclusão social por meio da linguagem. A diversidade linguística presente nas peças publicitárias direciona o texto para um público seleto, previamente escolhido pela empresa que está investindo em publicidade para torná-lo seu consumidor. Neste artigo são estudados dois textos publicitários da empresa Adidas disponibilizados na internet. O objetivo desta pesquisa é identificar quais são os recursos linguísticos utilizados para fazer com que uma parte da população, que é frequentemente excluída pela sociedade, sinta-se incluída em um contexto em que a exclusão social não é bem-vinda. Para isso, será realizada uma reflexão embasada em conceitos bakhtinianos sobre a estrutura dos enunciados e sobre os subentendidos contidos no texto, verificando também o contexto em que os textos foram elaborados. O artigo apresenta uma reflexão sobre as variações linguísticas contidas nos textos publicitários com o intuito de compreender melhor para qual tipo de público a peça publicitária está sendo direcionada. Realizando esta reflexão, a partir do princípio que a linguagem é capaz de incluir ou excluir indivíduos da sociedade, será possível perceber qual é o público que a empresa deseja inserir na sociedade do consumo de materiais esportivos. O objetivo do estudo é verificar que recursos são utilizados no texto para manipular o leitor e influenciá-lo em seu cotidiano. A reflexão será importante também para que se volte uma maior atenção à questão da exclusão/ inclusão social através da linguagem utilizada por este tipo de texto. A sociedade é constantemente moldada pela influência midiática e é Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 93
fundamental que seja dada ênfase a este fato, pois somente assim, cada indivíduo poderá assumir o comando de sua vida sem moldar-se desapercebidamente a uma sociedade totalmente consumista.
2. Signo e ideologia Para entender um pouco da lógica dos textos publicitários, é preciso inteirar-se de alguns princípios básicos da filosofia da linguagem de Bakhtin. Como ponto de partida, é necessário saber que para analisar uma linguagem tem-se que analisar também o seu contexto, pois um enunciado é o conjunto da linguagem verbal ou escrita e seu contexto. A linguagem sofre influências históricas e sociais. O texto é composto por vários discursos. É nele que vai aparecer a ideologia do falante. O texto é influenciado pela visão de mundo que o autor do texto possui, pela sociedade, pela história, enfim, pelo contexto, assim como pela linguagem. Podemos identificar aspectos comuns a determinado contexto histórico nos textos que lemos. Para fazer uma análise devemos observar pontos como, por exemplo, pressupostos e subentendidos, coerência textual e ambiguidade. Dos exemplos citados anteriormente, dois são fundamentais na hora de analisar um discurso ou um texto: pressupostos e subentendidos. Pressupostos são ideias ditas no texto de forma explícita, não permitindo contestações. Subentendido é o que não está explícito no texto, mas que podemos supor. Para entender o que está subentendido em um texto é necessário que o leitor possua conhecimentos externos ao texto como, por exemplo, conhecimento do contexto histórico em que o texto foi produzido. Entender os subentendidos de um texto dependerá do conhecimento de mundo que o indivíduo possui. No caso do texto publicitário, os subentendidos são utilizados para persuadir o leitor a consumir determinado produto. Outro conceito fundamental para a compreensão e estudo dos textos publicitários é o de enunciado. Ele é a real unidade da Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 94
comunicação discursiva, ou seja, ele é a materialização linguística do discurso: O enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real, precisamente delimitada da alternância dos sujeitos do discurso, a qual termina com a transmissão da palavra ao outro, por mais silencioso que seja o “dixi” percebido pelos ouvintes [como sinal] de que o falante terminou. (BAKHTIN, 2015, p. 275, grifo do autor). Tanto para o texto escrito quanto para o oral utiliza-se a língua, que surgiu devido à necessidade que o homem possui de expressar-se. A criação verbal apresenta uma estrutura. Todo enunciado apresenta uma alternância dos indivíduos envolvidos no ato da interlocução. Os interlocutores se alternam nos papéis de falante e ouvinte: Todo enunciado – da réplica sucinta (monovocal) do diálogo cotidiano ao grande romance ou tratado científico – em, por assim dizer, um princípio absoluto e um fim absoluto: antes do seu início, os enunciados de outros, depois do seu término, os enunciados responsivos de outros (ou ao menos uma compreensão ativamente responsiva silenciosa do outro ou, por último, uma ação responsiva baseada nessa compreensão). O falante termina o seu enunciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar à sua compreensão ativamente responsiva. (BAKHTIN, 2015, p.275). Essa alternância pode ser observada com bastante clareza nos diálogos, quando um locutor fala dando possibilidade ao outro de questionar, discordar, dar a sua opinião e argumentar. Ela é responsável pela possibilidade de compartilhar conhecimentos e, dessa forma, contribui para o desenvolvimento da sociedade. Existem duas situações sociais que fazem com que os diálogos ocorram de formas distintas: a simétrica e a assimétrica. Num diálogo de interação simétrica, a conversação se estabelece Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 95
através da sucessão de turnos. Turno é o período de tempo em que um indivíduo está falando. Em algumas ocasiões, os turnos podem ocorrer simultaneamente, com duas pessoas falando ao mesmo tempo. Existem estratégias para garantir que o enunciado seja entendido e o diálogo ocorra efetivamente. Elas podem ser utilizadas de maneira implícita ou explícita. Quando elas são usadas implicitamente, um dos locutores abandona o turno para que o outro o tome naturalmente. Quando são utilizadas explicitamente, o locutor que pretende tomar posse do turno se manifesta verbalmente como, por exemplo, pedindo “com licença” ou pode também se manifestar através de gesticulação corporal. Num diálogo de interação assimétrica existe a presença de um participante de nível hierárquico superior que irá promover padrões diferenciados de troca de turno. Ao ouvirmos ou lermos um enunciado, sabemos exatamente o momento do seu término: O acabamento do enunciado é de certo modo a alternância dos sujeitos falantes vista do interior; essa alternância ocorre precisamente porque o locutor disse (ou escreveu) tudo o que queria dizer num preciso momento e em condições precisas. Ao ouvir ou ler, sentimos claramente o fim de um enunciado, como se ouvíssemos om “dixi” conclusivo do locutor. É um acabamento totalmente específico e que pode ser determinado por meio de critérios particulares. (BAKHTIN, 1992, p. 299, grifo do autor). Quando alguém elabora um texto, tem o objetivo de transmitir uma mensagem que, para ele, já é clara. Então ele procura auxiliar o leitor a chegar o mais próximo possível do sentido pretendido através de elementos linguísticos. O leitor vai fazer uso de todo seu conhecimento de mundo para fazer a interpretação textual, mas isso não significa que ele poderá interpretar o texto de qualquer forma. É necessário que ele respeite os elementos linguísticos utilizados pelo autor que irão guiá-lo na leitura. Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 96
Para Bakhtin, todo signo é ideológico e sempre que ocorre uma modificação ideológica a língua também se modifica. A forma linguística é considerada mutável, pois é modificada pelas ideologias contidas nas estruturas sociais. A língua e o signo são dinâmicos, formando um sistema que nunca está em equilíbrio, pois sofre mudanças contínuas conforme os valores da sociedade modificam-se. É desta forma que a língua é determinada pela ideologia. Bakhtin trabalha com o conceito de enunciação, em que ela é considerada um reflexo do diálogo ocorrente na sociedade e também a unidade base da língua. Ou seja, a enunciação necessita de um contexto social para existir. Seu locutor precisa estar ciente de quem será o ouvinte para que sua mensagem ideológica seja transmitida de forma eficaz: “O signo e a situação social estão indissoluvelmente ligados. ” Ora, todo signo é ideológico. Os sistemas semióticos servem para exprimir a ideologia e são, portanto, modelados por ela. A palavra é o signo ideológico. Os sistemas semióticos servem para exprimir a ideologia e são, portanto, modelados por ela. A palavra é o signo ideológico por excelência; ela registra as menores variações das relações sociais, mas isso não vale somente para os sistemas ideológicos constituídos, já que a “ideologia do cotidiano”, que se exprime na vida corrente, é cadinho onde se formam e se renovam as ideologias constituídas. (BAKHTIN, 1981, p.16, grifo do autor). Através da palavra, a sociedade é capaz de incluir ou excluir um sujeito. As ideologias contidas em um discurso possuem o poder de influenciar e, até mesmo, modificar o pensamento e as ideologias daquele que ouve uma enunciação. Por isso, sempre que se lê um texto, é necessário analisar o contexto em que ele foi produzido para que seja possível compreender a mensagem e a ideologia que ele carrega, pois “Tudo que é ideológico possui um valor semiótico. ” (BAKHTIN, 1981, p. 32).
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Para Bakhtin, todo signo ideológico é um fragmento material da realidade. Para que possamos compreender um signo é necessário compará-lo com outros signos já conhecidos. Isso cria uma cadeia ideológica, pois a compreensão ideológica de um signo vai passando para outro e assim indefinidamente. Para que um signo seja constituído, é indispensável que exista uma comunidade de homens organizados socialmente. Caso não existam pelo menos dois homens socialmente organizados não pode existir o signo, pois esse precisa das ideologias fundadas por uma sociedade. É importante diferenciar signo de palavra. O signo sempre está ligado a uma ideologia para a qual foi criado e não existe sem ela, enquanto a palavra é neutra e pode ligar-se a qualquer função ideológica, ou seja, um signo sempre vai possuir o mesmo significado, enquanto a palavra pode representar vários significados diferentes conforme o contexto em que está inserida. Apesar desta diferença, é preciso estar atento ao fato de que “A palavra é fenômeno ideológico por excelência” (BAKHTIN, 1981, p. 36) e, por isso, pode-se dizer que a palavra é um fenômeno ideológico. A palavra é primordial para a comunicação do cotidiano, pois ela acompanha todo o ato ideológico. Ela é o discurso interior do sujeito e sempre que este assiste a um filme, escuta uma música, enfim, assiste qualquer fenômeno ideológico, esse discurso surge comentando e até mesmo julgando aquilo que está sendo assistido. Conforme Bakhtin, o signo ideológico está ligado aos conceitos sociais de uma época e também a um determinado grupo social, ou seja, o signo ideológico é influenciado pelos conceitos de mundo, pelo contexto histórico em que ele é utilizado. Ele varia também de acordo com o grupo social em que está inserido. O mesmo signo ideológico pode possuir significações distintas de acordo com a época em que ele está inserido e o grupo social que o utiliza. Para que o objeto, pertencente a qualquer esfera da realidade, entre no horizonte social do grupo e Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 98
desencadeia uma reação semiótico-ideológica, é indispensável que ele esteja ligado às condições sócioeconômicas essenciais do referido grupo, que concerne de alguma maneira às bases de sua existência material. (BAKHTIN, 1981, p.45). O signo é produto de um movimento social, não podendo partir de uma iniciativa individual. É necessário que ele seja utilizado em um consenso coletivo para que possa passar a ser considerado como existente do ponto de vista ideológico e valorizado. O signo ideológico pertence a uma realidade da qual ele se origina. A partir do momento em que o signo passa a possuir valor e a ser reconhecido socialmente, ele pode ser considerado como índice individual pois, segundo Bakhtin, o sujeito toma consciência desse signo de forma individual, incorporando-o aos seus valores como indivíduo único. Conforme Bakhtin, o signo ideológico reflete uma luta de classes sociais. Através do signo ocorre uma luta de valores contraditórios que acaba por incluir ou excluir indivíduos da sociedade. Observando a sociedade e sua linguagem percebe-se que através da língua é feita uma exclusão daqueles sujeitos que não se enquadram em padrões determinados pela camada de maior prestígio da sociedade, ou seja, de maior valor. Quando um indivíduo utiliza em sua fala signos considerados de menor prestígio é, imediatamente, rotulado como alguém que não pertence à elite social e, consequentemente, será excluído de um convívio nesse círculo e de todos os benefícios que esse pode trazer. Por meio da análise de textos publicitários, objetiva-se averiguar se a empresa Adidas utiliza a linguagem como meio de incluir ou excluir um sujeito da sociedade.
3. A língua como instrumento de poder É por meio da língua que a identidade de um indivíduo e de uma sociedade é forjada. É pela língua que expomos nossos valores e deixamos escapar os traços mais escondidos de nossa Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 99
personalidade. Isso faz com que a língua se torne um instrumento de julgamento social, pois sujeitos são frequentemente julgados por sua forma de utilizar a língua. Quando a variedade utilizada é adequada aos padrões utilizados pelas classes sociais mais abastadas, o falante é acolhido pela sociedade, mas quando a fala utilizada não está de acordo com esses padrões, o falante é automaticamente marginalizado. Para sermos breves, podemos dizer que a crítica sociológica submete os conceitos linguísticos a um tríplice deslocamento, substituindo: a noção de gramaticalidade pela de aceitabilidade ou, se quisermos, a noção de língua pela noção de língua legítima; as relações de comunicação (ou de interação simbólica) pelas relações de força simbólica e, ao mesmo tempo, a questão do sentido do discurso pela questão do valor e do poder do discurso; enfim e correlativamente, a competência propriamente linguística pelo capital simbólico, inseparável da posição de locutor na estrutura social. (BOURDIEU,1998, p. 1). A língua é capaz de demonstrar o capital simbólico que um indivíduo possui. Conforme o vocabulário utilizado por um sujeito é possível perceber-se qual sua origem, classe social e estilo de vida. Um exemplo disso é o sotaque. Através dele podemos identificar de qual região do país o indivíduo origina-se. No Brasil, o carioca apresenta um “s” “chiado”, o que torna possível a identificação de um carioca assim que ele começa a falar. Podese perceber também a qual classe social um sujeito pertence de acordo com o vocabulário que ele utiliza. Não basta conseguir comunicar-se com eficácia, é necessário saber utilizar a linguagem considerada “correta”, ou seja, aquela que é mais bem aceita na sociedade para conseguir ser aceito em determinado meio social. Não falamos a qualquer um; qualquer um não “toma” a palavra. O discurso supõe um emissor legítimo dirigindose a um destinatário legítimo, reconhecido e reconhecedor. Atribuindo-se o fato da comunicação, o linguista silencia Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 100
sobre as condições sociais de possibilidade da instauração do discurso que são lembradas por exemplo, no caso do discurso profético – por oposição ao discurso institucionalizado, curso ou sermão que supõe a autoridade pedagógica ou sacerdotal e só prega para os convertidos. (BOURDIE, 1998, p. 6). A linguagem é uma forma de selecionar e discriminar, pois aquele que não domina determinada cultura é automaticamente excluído de uma interação referente a ela. O poder do discurso não é dado a todos. Ele é exclusividade de um seleto grupo que se enquadra em uma lista de características pré-determinadas pela sociedade falante. O poder da linguagem está ligado também ao posicionamento que um sujeito possui na sociedade. Dependendo de sua posição, toma-se como certo que o indivíduo é detentor de um grande conhecimento e, consequentemente, tudo o que ele fala é aceito com facilidade. Um exemplo disso é o padre que fala aos fiéis. Ele é uma figura de autoridade no que diz respeito à fé, portanto, todos os fiéis o escutam, mesmo que não consigam realmente compreender o que ele está falando, pois confiam em sua sabedoria. Conforme Bourdieu (1988), é preciso saber adaptar o discurso ao meio para que a linguagem possa exercer sua função de poder. Quando um indivíduo consegue dominar diferentes vocabulários e sabe selecionar qual é o mais indicado para cada tipo de situação, consegue inserir-se com facilidade nos mais diversos ambientes. Um exemplo disso é quando estamos em casa, conversando com os familiares. Nesse momento utiliza-se um vocabulário que, provavelmente, terá um tom de descontração. Já quando se inicia um diálogo no ambiente profissional é necessário eleger um vocabulário mais formal, suprimindo o tom de descontração. Quando um sujeito é capaz de circular entre os mais diversos tipos de vocabulários com facilidade ele, automaticamente, exerce uma posição de poder
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sobre o outro, conseguindo inserir-se nos mais diversos meios sociais. Devemos ficar atentos ao fato de que a competência linguística funciona como capital linguístico de acordo com sua aplicabilidade no mercado. O discurso é um bem simbólico que pode receber valores muito diferentes segundo o mercado em que ele está colocado. A competência linguística (como toda competência cultural) só funciona como capital linguístico quando em relação com um certo mercado: como prova, estão os efeitos globais da desvalorização linguística que podem operar-se brutalmente (após uma revolução política) ou insensivelmente (por uma lenta transformação das relações de forma materiais e simbólicas, como, por exemplo, a desvalorização progressiva do francês em relação ao inglês no mercado internacional). (BOURDIEU, 1998, p. 10). A relação entre linguagem e poder está ligada ao valor de mercado que a língua falada possui, ou seja, quando um sujeito domina uma língua que não possui um valor no mercado ele não será prestigiado e, consequentemente, poderá ser excluído de determinada sociedade. Um exemplo disso é um falante de latim. Essa língua já não possui mais valor no mercado, pois não é mais empregada na comunicação cotidiana. Logo, se alguém resolver utilizá-la para comunicar-se, além de não conseguir transmitir sua mensagem com sucesso, não será bem aceito e não conseguirá inserir-se em uma sociedade onde praticamente ninguém sabe falar latim. Outro exemplo de valor de mercado da competência linguística é o inglês, que é falado pelo país mais poderoso do mundo e, consequentemente, tornou-se uma das línguas mais faladas no mundo. Para Bourdieu, espera-se que a língua utilizada por um sujeito seja coerente com a posição social que o indivíduo ocupa. Quando um sujeito de maior prestígio social utiliza uma linguagem que não é esperada, pode causar um certo espanto nos Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 102
ouvintes, porém, não causa o mesmo impacto que uma pessoa de menor prestígio utilizando a mesma linguagem. Sua posição social será levada em consideração e sua fala será, de alguma forma, justificada. Mas ele não será excluído da sociedade por causa de sua linguagem. Já, quando um indivíduo de menor prestígio utiliza sua linguagem costumeira, ele será automaticamente excluído de um círculo social de maior prestígio.
4. Análise de peças publicitárias da Adidas A Adidas é uma empresa alemã de equipamentos esportivos. Foi fundada em 1924 por Adolf Dassler. É considerada a maior empresa de artigos esportivos do mundo. Suas peças publicitárias são focadas no público esportivo e apresentam uma abordagem que faz com que até quem não é praticante de esportes pare para assistir seus comerciais. A seguir, analisaremos duas peças publicitárias da empresa.
4.1 Mete A Mala Figura 1: Peça publicitária “Mete a mala ”
Fonte: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TGcRNfCS2Q4&index=1&list=P Lw92oLQNny9u4y95YZp3QLE1RGEr-9D8n. Acesso em: 02 jul. 2016.
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A peça publicitária é protagonizada pelos jogadores de futebol Gareth Bale, Karim Benzema, James Rodríguez e Luis Suárez. Todos eles são jogadores mundialmente reconhecidos, símbolo de sucesso e dinheiro. O texto publicitário apresenta uma linguagem bastante informal, que faz com que exista uma fácil compreensão da mensagem que está sendo transmitida e também uma identificação imediata com o público fã do futebol e que gosta de praticar o esporte. O título do comercial “mete a mala” já nos fornece uma pista do enfoque que será dado ao texto publicitário. “Meter a mala” é uma gíria comum entre os adolescentes, que significa um sujeito que acredita ser o melhor, sem humildade. Somente essa expressão já nos passa uma grande mensagem. O público delimitado como alvo é jovem, pois trata-se de uma gíria utilizada por adolescentes. Pertence ao sexo masculino, pois todos os protagonistas do comercial são homens. São indivíduos que gostam de jogar futebol, pois, além de o produto comercializado ser uma chuteira, todos os garotos-propaganda são jogadores de futebol. Quando se associa a expressão “meter a mala” à Adidas, podemos concluir que aquele sujeito que utilizar suas chuteiras irá tornar-se o melhor. Aquele que todos querem seguir. Detentor de fama e sucesso. As primeiras frases do comercial dizem: “Eles odeiam seu jeito de andar. Odeiam seu jeito de falar. Odeiam como você chama o jogo e chama a atenção. ”. Nesse fragmento, fica subentendido que existe uma tentativa de aproximação com o típico adolescente jogador de futebol que, muitas vezes, sente-se excluído da sociedade. Muitos meninos da periferia que praticam esse esporte são excluídos da sociedade devido à sua maneira de falar e de comportar-se nas mais variadas situações. No geral, são taxados de garotos que não são de confiança, pois seu vocabulário e seus trejeitos expressam a identidade da periferia. A linguagem, neste caso, atua como excludente. Garotos que utilizam essa linguagem própria da periferia, muitas vezes, são proibidos de Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 104
frequentar lugares que a camada de maior prestígio da sociedade costuma frequentar. Logo em seguida, temos as seguintes frases: “Eles querem te derrubar. E odeiam porque não adianta tentar, velho. ”. Aqui, ainda está subentendido a presença de uma sociedade excludente, que, além de não aceitar o garoto da periferia jogador de futebol, ainda irá tentar fazer com que ele fracasse e volte para a margem da sociedade de onde ele veio. Mas esse garoto é forte e a sociedade não vai conseguir fazê-lo fracassar. O termo “velho” também é utilizado frequentemente pelo público mais jovem, que costuma chamar seu interlocutor desta forma. Mais uma vez, temos a delimitação do público alvo como um sujeito jovem, que utiliza esse tipo de gíria. “Odeiam como você marca todos os gols, pega todas as mina, todas as gatas. ” É a frase seguinte do texto publicitário. Aqui está sendo retratado um homem que atingiu o sucesso. Que consegue atingir seus objetivos (marca todos os gols) e ainda conquista as mulheres. O vocabulário mina, principalmente associado à falta de concordância, é extremamente desvalorizado pela camada da sociedade de maior prestígio. É um signo ideológico da periferia. Aqui percebe-se que a mensagem que está sendo transmitida é que é possível o garoto excluído, da periferia, refazer sua vida, atingindo o sucesso e conquistando várias mulheres, o que é o sonho da maioria dos adolescentes. Um pouco mais adiante, temos o seguinte fragmento: “Eles odeiam todo mundo falando de você. Só de você! Que você faz mágica com os pés. Que você é o melhor jogador da rua, do campo, da liga, do país, do mundo! ”. Aqui subentende-se que, mesmo com o sucesso alcançado, ainda existe uma camada da sociedade que não aceita esse sujeito que está alcançando seus sonhos. Quando se diz “[...] todo mundo falando de você. Só de você! ” verifica-se que este indivíduo se destacou mais que todos os outros e está ocupando uma posição de destaque, porém, nem mesmo esta posição garante a aceitação de uma camada da sociedade. Na expressão “faz mágica com os pés” está presente a Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 105
questão de atingir o inatingível. Esse indivíduo é capaz de fazer coisas inesperadas, de fazer mágica, de ir muito além do que o julgamento de algumas pessoas poderia prever. No fragmento “você é o melhor jogador da rua, do campo, da liga, do país, do mundo” está sendo criada uma proximidade com o público que está assistindo ao comercial, pois o sucesso está ao alcance de todos. Você pode começar sendo o melhor jogador da sua rua e atingir o sucesso máximo de tornar-se o melhor do mundo. Ou seja, basta possuir determinação para lutar por seus objetivos. E, quando essa frase vem de um astro do futebol, ganha um peso maior ainda, pois todo astro um dia foi o melhor jogador da rua e, com muito esforço e determinação, transformou-se em um jogador reconhecido mundialmente. O comercial encerra com a seguinte frase “E odeiam sua chuteira nova. Odeiam porque querem ser você irmão”. Aqui está sendo criada uma aproximação do produto que está sendo vendido (a chuteira) com aquele garoto que sonhou com o sucesso e, mesmo depois de alcançá-lo, não é aceito pela sociedade. Eles odeiam sua chuteira assim como odeiam você, mas, na realidade, todos querem ser iguais a você. Essa é a mensagem que está subentendida nesse fragmento do texto. Pode-se compreender que a chuteira é perfeita para todo aquele garoto que sonha em ser o melhor do mundo. Ao utilizar a variação linguística “irmão” a empresa fortalece o elo com o espectador do comercial. Somos irmãos, a Adidas compreende todas as dificuldades pelas quais você passa. E, ao mesmo tempo, delimita mais uma vez o público alvo de seu texto publicitário, pois a palavra “irmão” é frequentemente utilizada por pessoas mais jovens, geralmente do sexo masculino e que possuem um estilo mais despojado. Neste texto, a linguagem é utilizada como forma de poder. Ele utiliza-se de um vocabulário que não é aceito pela camada mais prestigiada da sociedade, mas está vinculando esta linguagem ao sucesso, ao poder. Ela está incluindo esses garotos que sonham em ser astros do futebol na elite social. Tudo isso é feito utilizando a figura de jogadores extremamente bemJangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 106
sucedidos no mundo do esporte. São indivíduos que representam um argumento de autoridade, pois se eles, que são ídolos de todo garoto que sonha em atingir o sucesso como jogador de futebol, usam a chuteira da Adidas, então subentende-se que é importante utilizar esta mesma chuteira para começar fazendo sucesso no campo perto de casa. Ao utilizar a chuteira Adidas todos prestarão mais atenção naquele que antes era somente mais um garoto jogando bola.
4.2 Coleção Samba Figura 2: Peça publicitária “Coleção Samba”
Fonte: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mtiw9XLGcbc&index=2&list=P Lw92oLQNny9u4y95YZp3QLE1RGEr-9D8n. Acesso em: 08 jul. 2016.
Este comercial conta com a participação dos astros do futebol Oscar, Lucas, Hernandes, Daniel Alves, Ozil e Messi. A trilha sonora é da cantora Karol Conka. O nome da música é “Bota! ”. Podemos perceber aqui, mais uma vez, a utilização da imagem de figuras bem-sucedidas para vender o produto. Todos os jogadores presentes no comercial são ídolos e considerados pessoas de sucesso. A coleção de chuteiras “Samba” é composta por diferentes tipos de chuteiras e cada uma possui uma cor diferente, sendo que todas são cores muito vibrantes. Percebe-se uma aproximação com o público brasileiro, pois a coleção de chuteiras representa a
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diversidade existente no Brasil, a mistura de raças, de ritmos e de cores (nosso carnaval é uma mistura de cores vibrantes). A primeira cena do comercial mostra um trabalhador e também um menino. Neste fragmento a empresa está criando uma proximidade com públicos distintos. A chuteira não é apropriada somente para os garotos ou para os trabalhadores. A chuteira da coleção Samba é apropriada para todo o tipo de público que gosta de jogar futebol. Em seguida, aparece Daniel Alves em sua rotina de treinos alternando com um vendedor de água de coco e com uma mulher se maquiando. Mais uma vez, percebemos a proximidade com todos os tipos de público. A coleção Samba se adapta à diversidade. Ao mesmo tempo, a cantora começa a cantar a primeira frase da música “Mostra até onde você vai”. Neste trecho da música, percebe-se um tipo de incentivo para que cada indivíduo corra atrás de seus objetivos. Mostre do que você é capaz. Seja jogando futebol ou vendendo cocos, mostre o seu melhor. Junto com as imagens dos jogadores continuam sendo intercaladas imagens de pessoas trabalhando, um garoto jogando capoeira, uma mulher dançando. Ou seja, não importa o que você vai fazer, você deve dar seu melhor em qualquer situação, pois somente assim será possível tornar-se um vencedor. Depois a música continua “força nos pés, venha o que vier, o dia D já chegou”. Aqui fica subentendido que é necessário ter força para seguir em frente e alcançar seus objetivos. Você precisa ser forte sempre, pois o dia “D” são todos os dias. Sempre devemos nos esforçar para alcançar o sucesso. A música segue incentivando o tempo todo a lutar: “venha quem quiser, faça o que puder, com disposição me chama que eu vou”. É preciso ter disposição para sempre lutar, por mais dificuldades que a vida apresente. Em seguida, temos o seguinte fragmento da música: “Na sociedade chegou já sambou”. Neste trecho é feita uma referência à falta de aceitação por parte da camada mais prestigiada da sociedade daqueles que lutam para sobreviver, para ter sucesso, Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 108
para ter uma melhor qualidade de vida. Existe uma certa discriminação da elite da sociedade com aqueles sujeitos que têm uma origem humilde, mas é possível vencer e “sambar” na cara da sociedade, assim como alguns dos jogadores que estrelam a campanha tiveram uma origem pobre e conseguiram atingir o sucesso e a fortuna. O comercial apresenta algumas imagens de uma mulher com trajes carnavalescos minúsculos, retratando o estereótipo que a mulher brasileira tem no mundo. Mulheres lindas, que andam quase nuas, sempre sambando. O comercial termina com a imagem de Messi e, logo em seguida, a imagem da coleção de chuteiras coma frase: “Ou vai ou racha”. Temos um dos jogadores de futebol de maior sucesso no mundo associado a frase “ou vai ou racha”, ou seja, você tem que superar-se, lutar até seu limite para alcançar seus objetivos. Você não tem outra opção além de lutar muito para conseguir atingir o sucesso assim como Messi. E as chuteiras da coleção Samba vão te ajudar a atingir seus objetivos. Com muito esforço e as chuteiras Samba você torna-se invencível. O fato de o comercial passar o tempo todo alternando imagem de astros do futebol com trabalhadores comuns, em conjunto com a trilha sonora, cria uma identificação entre a marca e o povo brasileiro. Um povo sofredor, que precisa lutar muito para conseguir sobreviver, assim como os astros do futebol lutam muito em campo para vencer um jogo. De alguma forma, todos são iguais. O esforço e a garra aproximam todos nessa luta pela sobrevivência e fica subentendido que as chuteiras da coleção Samba se adaptam a todos os tipos de público. A coleção Samba é para todos.
5. Conclusão A linguagem possui o poder de expor os aspectos mais íntimos da identidade de um sujeito. Através dela, é possível perceber qual é a origem de um indivíduo e, até mesmo, quais Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 109
seus objetivos de vida. Ela é capaz de incluir ou de excluir um indivíduo da sociedade. Através do vocabulário utilizado por um sujeito, a sociedade o julga e determina qual a posição que ele ocupará. É indispensável, para que um sujeito obtenha o sucesso e consiga exercer o benefício do poder concedido pala língua, que ele consiga circular pelos mais variados tipos de linguagem, adaptando seu vocabulário e seu discurso aos mais diversos tipos de situações cotidianas. Somente dessa forma, será possível fazerse compreender com maior facilidade. Quando um sujeito consegue transmitir sua mensagem de forma eficaz, ele não só mantém um diálogo como também é capaz de influenciar o outro sujeito com quem estabeleceu uma comunicação. As grandes marcas costumam investir em textos publicitários que conseguem utilizar plenamente o poder que a língua oferece. Seus textos publicitários são capazes de influenciar sujeitos de uma forma tão intensa que são capazes de moldar sua identidade e estimular seus desejos de consumo. A marca Adidas consegue utilizar de forma primorosa o poder da linguagem. Seus textos publicitários são capazes fazer com que seu público alvo se sinta incluído em uma sociedade que, muitas vezes, o discrimina, deixando-o a margem. A empresa utiliza-se de um vocabulário que, normalmente, é utilizado por uma comunidade de menor prestígio associando-os ao esportistas mais bem-sucedidos no mundo. Isso cria uma identificação imediata entre o sujeito que está assistindo à publicidade e o produto que está sendo ofertado. Essa aproximação torna o produto popular e, automaticamente, faz com que o público alvo passe a desejar o produto da marca Adidas para, através desse consumo, sentir-se um indivíduo bem-sucedido e participante de uma sociedade que o excluiu por muito tempo. Saber identificar e utilizar esses recursos linguísticos é importante para que um indivíduo consiga evitar tornar-se alvo da indução ao consumo desnecessário. Quando percebemos que um texto publicitário somente está tentando criar uma Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 110
aproximação para que nos tornemos consumidores dos produtos que estão sendo ofertados, seremos capazes de decidir quando realmente precisamos daquele produto e quando estamos somente nos deixando influenciar pela mídia. Saber utilizar a linguagem de maneira adequada também nos permitirá circular nos mais diversos meios sociais com um maior índice de aceitação. Tudo isso ajuda a moldar a identidade de um sujeito e também de uma sociedade inteira. Quem conhece bem os recursos que a linguagem oferece é o grande detentor do poder que ela nos oferta.
Referências BOURDIEU, P. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998. BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2015. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1981. YOUTUBE. Coleção samba. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=mtiw9XLGcbc&index=2&list=PLw92o LQNny9u4y95YZp3QLE1RGEr-9D8n>. Acesso em: 08 jul. 2016. YOUTUBE. Mete a mala. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=TGcRNfCS2Q4&list=PLw92oLQNny9u 4y95YZp3QLE1RGEr-9D8n>. Acesso em: 02 jul. 2016.
Recebido em 31/10/2016. Aceito em 19/01/2017.
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Narrativa e trabalho em Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo Thayllany Ferreira Andrade23 Gustavo Abílio Galeno Arnt24 Resumo: Este artigo se propõe a investigar a representação do trabalho na narrativa brasileira contemporânea, especificamente no romance Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo (2010), buscando compreender essa representação no contexto mais amplo de organização do mundo do trabalho no Brasil. Palavras-chave: Rubens Figueiredo. Narrativa. Trabalho.
Abstract: This article aims to investigate the representation of labour in contemporary Brazilian narrative, specifically the novel Passageiro do fim do dia, by Rubens Figueiredo (2010), trying to understand this representation in the broader context of organization of the world of labour in Brazil. Keywords: Rubens Figueiredo. Narrative. Labour.
23Universitária
no curso de Licenciatura em Letras – Língua Portuguesa no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia campus São Sebastião, DF (athayllany@gmail.com) 24Docente de Língua Portuguesa no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, Campus São Sebastião, DF Doutor em literatura (gustavo.arnt@ifb.edu.br)
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Introdução O romance de Rubens Figueiredo (2010), através do tempo e do espaço em trânsito, constrói representações da experiência cotidiana de uma realidade social. Essa representação da imagem se concretiza em Passageiro do fim do dia de quatro formas: 1) por meio das recordações da personagem Pedro, que dá vida ao passado construindo visões da sociedade brasileira por intermédio da memória; 2) através da visão da personagem frente ao tempo-espaço externo à memória, representado pelo que a personagem vive no presente, dentro e fora do ônibus; 3) diante das memórias que são produtos do livro de Charles Darwin sobre o Brasil, que a personagem lê durante o caminho para a casa da namorada; e 4) por intermédio da rádio que Pedro está ouvindo. Com base nisso, a representação dessas imagens, produzidas pela relação entre a memória e as informações meio aleatórias que Pedro está recebendo do livro, do ônibus, do rádio, do mundo fora do ônibus, etc., tendo como filtro a perspectiva subjetiva do protagonista, provoca um choque entre o mundo interior e o mundo exterior e os diferentes tempos presentes na narrativa. Portanto, essa soma – das memórias, mais os dados do real, mais a imaginação de Pedro – resulta no processo de racionalização com vistas ao entendimento sobre a sociedade brasileira. Esse processo de experiência e cognição é uma espécie de educação pela pedra, que forma um mosaico por meio do qual Pedro vai construindo na sua cabeça por meio do qual tenta arduamente compreender o Brasil e seu lugar no mundo. A estrutura do romance não possui um esquema canônico de narração (complicação, dinâmica, resolução), configura-se na verdade por meio da narração contínua de ações e episódios próprios à dinâmica social da experiência urbana brasileira contemporânea. Tais episódios são narrativamente guiados pelo fluxo de memória e associações mentais de Pedro. Por trás da aparente desordem do fluxo de consciência, observa-se como elemento coesivo latente a figuração do trabalho no Brasil. Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 113
O romance Passageiro do fim do dia não é organizado por capítulos. É através dessa técnica de organização que sentimos, por meio da leitura, a trajetória intensa, extenuante e contínua que Pedro faz rumo à casa de Rosane. A escolha feita na construção da cena principal é estratégica, uma vez que pegar ônibus é necessário no âmbito do trabalho, principalmente, se tratando da classe trabalhadora pobre. A leitura não possui pausas, assim como o ritmo do romance é constante. A principal cena do romance (Pedro indo de ônibus para a casa de Rosane) viabiliza várias implicações acerca de tudo que será abordado na narrativa, por ser uma das situações mais presentes no cotidiano da classe social alvo do autor – um momento de opressão, de espera, de luta, de desumanização. Sendo assim, o estado inicial e o estado final do romance não se modificam de forma significativa. No início do romance Pedro está em um local e no fim está em outro, porém as reflexões levantadas pelo protagonista e a barbárie social permanecem estáveis.
O trabalho como principal mediação estética em “Passageiro do Fim do Dia” O tempo histórico do romance acompanha a era do capitalismo contemporâneo e o espaço evidencia a barbárie em que vive o proletariado. Logo, o romance é todo construído com relatos significativos de trabalho que, em sua maior parte, tem como base a exploração. Entendido aqui como a atividade de transformação da natureza, num processo que acaba por transformar o próprio homem, o trabalho no Brasil já nasce sob a égide da exploração. Passageiro do fim do dia é a construção de um quadro social contemporâneo, sendo este marcado pela tensa convivência de formas arcaicas e modernas de execução, organização e exploração do trabalho, cada vez mais assombrado pelos avanços tecnológicos, os quais, por um lado, representam um enorme ganho para a produção e até para os trabalhadores,
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mas que, por outro lado, tendem a suprimir quantidades enormes de postos de trabalho. Nas primeiras páginas do romance já é possível perceber a variedade de profissões que evidenciam o quadro histórico a respeito da economia brasileira. Uma delas trata-se de um trabalho informal, “um homem com um olho coberto por um curativo vendia sacos de amendoim, pacotes de biscoito e aparelhos de barbear feitos de plástico” (FIGUEIREDO, 2010, p.16)25; outro exemplo, “ali dentro, uma mulher vendia pacotes de biscoitos, paçocas, balas, bananada, mate e refrigerante em latinha” (PFD, p. 84) até mesmo Pedro, a personagem principal, trabalhava com a venda de livros, “pensou nos livros que, meia hora antes, tinha posto na calçada para vender – todos bem arrumados em cima de um papelão” (PFD, p.19). Manifestadas por meio de ações e figurações, as experiências sociais das personagens que Pedro observa, inclusive ele – observado pelo narrador –, revelam como o trabalho, que acompanha o homem desde seu próprio processo de formação, ao longo da história foi constantemente, e de forma impiedosa, um mecanismo de sujeição e exploração dos homens uns pelos outros. Cabe ressaltar inclusive que só é possível pensar em Brasil a partir da invasão europeia nas terras que viriam a se tornar o continente americano. É do processo de invasão, colonização e exploração da América portuguesa que nascerá o Brasil, sintomaticamente batizado com o nome da mercadoria que inaugurou o primeiro grande processo de exploração do trabalho nesse espaço. A exploração do trabalho, portanto, está no cerne da formação do Brasil e da sociedade brasileira e afetou diretamente ou indiretamente todos os aspectos da produção e da reprodução da vida da população, incluindo-se aí a produção artística e a cultura letrada. No romance em análise, é emblemático o modo como a exploração do trabalho marca a vida das personagens. Rosane, Doravante, o romance será citado por meio de suas iniciais (PFD) seguidas do número da página. 25
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namorada de Pedro, como quase todos os outros personagens, depende da venda da força de seu trabalho para sobreviver. Isso a obriga a se submeter ao trabalho precário, “não tinha horário fixo, era obrigada a fazer horas-extras a qualquer momento e sem a remuneração devida por isso, havia mudanças de turno a toda hora e sem avisos, e por isso ela teve de largar o colégio: seus dias, mal nasciam, eram tomados um a um, em troca de quase nada” (FIGUEIREDO, 2010, p. 158). A força de trabalho de Rosane, de Pedro, de Júlio, dos moradores do Tirol, da Várzea e de onde Pedro morava, havia se tornado uma mercadoria como qualquer outra. Isso significa dizer que os operários vendem ao capitalista a sua força de trabalho em troca de um salário, para assegurar os meios de vida necessários para viver. “As doze horas de trabalho não têm de modo algum para ele o sentido de tecer, de fiar, de perfurar, etc., mas representam unicamente o meio de ganhar o dinheiro que lhe permitirá sentar-se à mesa, ir à taberna, deitar-se na cama. ” (MARX, 1982, p.10). Portanto, o trabalhador depende da venda da força de seu trabalho para sobreviver, compete-lhe se submeter às condições precárias de trabalho e encontrar quem o queira contratar. E mais, a venda do seu trabalho promove o crescimento do domínio da burguesia sobre a classe trabalhadora. O desemprego está presente no romance do começo ao fim. O pai de Rosane é um exemplo de personagem que passou pelo desemprego e foi obrigado a tentar ganhar dinheiro vendendo “produtos miúdos na calçada sobre um tabuleiro dobrável feito de madeira” (FIGUEIREDO, 2010, p.118), isso porque “[...] de tanto trabalhar descalço, sem luvas, ele pegou uma alergia ao cimento cru, ou quem sabe a algum componente do cimento” (PFD, p. 100). O pai de Rosane foi excluído desse sistema de trabalho após ter sito declarado inválido. “O cimento até então era o seu trabalho, era o seu dia [...] era o seu salário, o seu patrão” (PFD, p.101). Depois de mais de vinte anos trabalhando, o pai de Rosane não compreendia essa exclusão; não compreendia ter sido descartado dessa forma do mercado de trabalho e agora pensava Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 116
“o que seria da sua casa, da sua família, da sua filha [...] olhava, olhava, sem atinar com o que ia fazer da sua vida quando afinal o dia nascesse” (PFD, p. 102). O pai de Rosane sabia que ao perder o emprego ele perderia os recursos pra se manter vivo; a ele e a sua família seria negada a entrada no supermercado; não haveria comida; não haveria água; rapidamente, não haveria vida. Movido pela angústia, ele foi vender produtos na calçada com a ajuda de um policial que lhe dava os produtos, emprestava o tabuleiro, dizia o lugar e o horário, “desse negócio o pai de Rosane tirava uma receita diária minúscula, que vinha se somar à sua aposentadoria por invalidez. Os pés inchavam, mas em compensação não havia riscos, assegurava o policial” (PFD, p. 118). Esse trecho evidencia uma reestruturação produtiva que já vinha ocorrendo no mundo industrializado. Novas formas de gestão do trabalho, flexibilização, terceirização, entre outras práticas, estavam sendo experimentadas pelas empresas. Aquela vez em que o cavalo o pisoteou foi sua última tentativa de vender livros na calçada. Tinham dito a ele que era fácil, muita gente estava entrando nos negócios por esses caminhos – disseram e repetiram, os negócios, o dinheiro, e ele mesmo viu na televisão a entrevista de um sociólogo que falou sobre o espirito empreendedor represado naqueles vendedores de calçada. Parecia fácil, parecia certo, até bonito – ou então Pedro não prestou atenção às ressalvas. (PFD, p.42). No romance, esse novo caminho tomado pelos trabalhadores é guiado pela insegurança que passa a fazer parte do cotidiano do assalariado, uma vez que o desemprego é parte estruturante do modo de produção capitalista. Ao apresentar a situação de aporia em que se encontra o proletariado, o romance dá a ver que o trabalhador não tem saída nem na órbita do trabalho, em que de formas que vão desde as mais cruéis às mais sofisticadas, nem fora do trabalho, pois o desemprego representa a morte social e ameaça com a morte física.
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Os seus colegas, na grande maioria, foram ficando desempregados, no máximo arrumava trabalhos clandestinos, e por um tempo curto, em que ganhavam ainda menos. Naqueles serviços, não tinha hora para ir para casa, os pagamentos atrasavam semanas, meses até. Várias vezes levavam calote do patrão e no fim não recebiam nada. (PFD, p.117). Através desse quadro presenciamos alterações significativas no processo produtivo. Os donos das empresas começam a adotar estratégias empresariais que se preocupam mais em cortar custos, provocando a redução de postos de trabalho. Por consequência há uma precarização do trabalho pelo aumento da competitividade (são muitos desempregados ao mesmo tempo, o que, por consequência, gera o aumento do nível de procura), levando à decadência a qualidade do emprego e das relações de trabalho. Ou seja, temos um quadro do mercado de trabalho marcado pela exploração predatória de mão-de-obra barata. Diante disso, a exploração do trabalho estava sendo mascarada pelas diversas formas de empreendedorismo, cooperativismo, trabalho voluntário e trabalho atípico. Além do furacão da crise do sistema capitalista, presenciamos a exorbitância do desemprego em grande escala, atingindo trabalhadores homens, mulheres, estáveis ou precarizados, formais ou informais, nativos, imigrantes, sendo que estes últimos são os primeiros a serem penalizados (ANTUNES, 2010, p. 633). Nesse conjunto, desemprego e emprego são apresentados na obra como faces da mesma moeda, que é a exploração do trabalho na estrutura do modo de produção capitalista: A mulher contava enquanto as mãos – cobertas com luvas de borracha grossa, apertadas, um pouco duras demais nas articulações dos dedos e impróprias para aquele trabalho – enquanto as mãos não paravam de procurar os copinhos de mate com defeitos para consertar se possível e pôr de lado se não fosse. Os movimentos repetidos, dela e de Rosane, o virar e revirar tão certeiros do pulso das duas Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 118
marcavam com um toque de escarnio, de máquina, tudo aquilo que ela contava [...] Pior foi quando o pulso de Rosane começou a doer [...] o médico de fato atendeu Rosane depois de duas horas de espera no banco [...] sem gesso, iam mandar Rosane de novo para trabalhar com os copinhos e ela ia ter de ficar lá, em pé, até sua mão cair dura no chão. (PFD, p.154).
O trecho acima materializa narrativamente uma das deformações das relações de trabalho. As etapas presentes no processo de industrialização estão sendo desvinculadas do conhecimento e do preparo especializado, reduzindo-se a simples trabalho. Isso significa que o modo de produção capitalista tem destruído de forma sistemática as habilidades específicas à sua volta (passa de um trabalho específico, merecedor de uma habilidade especial do trabalhador, para uma força produtiva simples, sem muita exigência física e intelectual, tornando-se acessível a todos e barata, tendo como resultado a desqualificação e o controle), fazendo surgir qualificações e ocupações superficiais correspondentes às necessidades imediatas da indústria. Por outro lado, observamos que há sim uma parcela mínima de pessoas que possuem instrução e conhecimento, estando estas isentas da obrigação do trabalho mecânico. Dentro desse sistema, há formação dos intelectuais “orgânicos”, da classe burguesa, que são os indivíduos participantes de um organismo vivo em expansão que contribuem para a manutenção da hegemonia. E, em contraponto, os “tradicionais”, sendo os indivíduos que ficam atrasados, afogados por um mundo antiquado retardando seus exercícios cerebrais. Por consequência, desenvolvem um distanciamento problemático provocador da perda da compreensão do sistema de produção e das lutas hegemônicas, onde se decide o resultado final do jogo do poder econômico e político, promovedor da exclusão (GRAMSCI, 1995, p. 119). Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 119
Em Passageiro do Fim do Dia presenciamos um número considerável de mulheres desempregadas. A mãe de Rosane (p.32), a mãe de Pedro (p.43), ex-colega de escola de Rosane (PFD, p.60), várias mulheres do bairro de Tirol e Várzea: Agora uma família desconhecida tinha vindo morar ali, formada por avó, mãe e duas adolescentes, cada uma com uma filha pequena. Nenhuma dessas mulheres tinham emprego, só conseguiam trabalho por tempo curto, distribuindo folhetos nos sinais de trânsito nos fins de semana, e muitas vezes catavam latinhas pelas ruas para revender. (PFD, p.37) Ser um trabalhador qualificado não tem o mesmo sentido para homens e mulheres. As políticas de formação, ao serem centradas no trabalhador masculino, reforçam desigualdades. No universo feminino, essa divisão sexual presente no trabalho e as inovações podem reforçar a exclusão das mulheres, principalmente as mulheres não-qualificadas. É importante perceber que os empregos não-qualificados se “feminizam” cada vez mais. Por fim, enfatizamos que os impactos das inovações no trabalho geram consequências diferentes considerando o sexo, a nacionalidade e a cor. Assim, o romance desenha as consequências de uma modernização tecnológica que produz no processo de trabalho dois setores polarizados em termos de suas qualificações: de um lado, um pequeno setor altamente qualificado, “Júlio já estava formado e trabalhava em uma firma de advocacia bastante próspera” (PFD, p.45); “a juíza pegou um livro mais novo e mais limpo do que os outros, escrito por um publicitário aposentado que ensinava como ser feliz, rico e famoso, como ele mesmo dizia ser” (PFD, p.45); de outro, toda uma massa de trabalhadores pouco qualificados. Isso se agravaria com a introdução de novas tecnologias que, ao reforçarem os delineamentos da divisão do trabalho, intensificariam a desqualificação da mão-de-obra. No processo de trabalho capitalista, a unidade natural do trabalho seria quebrada, separando-se a concepção da execução e gerando Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 120
drásticas consequências, por exemplo, colocando em risco a saúde dos operários, baixos salários, exploração etc. Através do trabalho os indivíduos encontram meios de se manter ativos e funcionais na sociedade, cooperando para o equilíbrio social. Com base nisso, o trabalho interfere de forma significativa no espaço, uma vez que a ausência deste representa um caos social: As brigas de socos e de pedradas se transformaram em tiroteios, os revolveres deram lugar aos fuzis e depois a granada. Os homens que vendiam um tipo de droga passaram a vender dois tipos e depois três [...] os nomes Tirol e Várzea começaram a aparecer nos jornais, na televisão, nos noticiários de crime. Os grupos armados nos dois bairros pareceram crescer e se hostilizavam. Juravam vinganças seguidas. Sem notar, as crianças começaram a aprender aquela raiva desde pequenas. Educavam-se com ela, tomavam gosto e se alimentavam daquela rivalidade. Cresciam para a raiva: aquilo lhes davam um peso, enchia seu horizonte quase vazio – nada senão aquilo fazia delas alguém mais presente” (PFD, p. 53-54). O recorte acima ilustra que o trabalho forma o homem e forma seus sentidos, e, evidentemente, o trabalho explorado, ou sua falta, também participa desse processo deixando marcas na constituição humana, nos sentidos, abrindo graves feridas na sociedade, dando origem à barbárie e afetando de forma significativa o seu espaço. A grande e perversa contradição aqui reside em que, apesar da exploração do trabalho, da baixa remuneração, do pouco prestígio, etc., a mera inserção da população pobre no campo profissional já representa uma melhora de vida significativa, uma vez que, fora disso, o que sobra é a miséria, a fome, a criminalidade e, frequentemente, até mesmo a morte. O romance é construído através de múltiplas imagens, como essa de Tirol e Várzea, que resistem ao esquecimento fazendo-se presentes na memória da personagem. O Tirol e a Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 121
Várzea são projetados por meio da lembrança, uma projeção que aponta para a dinâmica por meio da qual o espaço forma a subjetividade e em que a subjetividade conforma o espaço. Pedro, durante a viagem de ônibus, ocupa um espaço e vivencia esse espaço urbano concretamente, porém, outros espaços como o Tirol e Várzea são projetados pela memória que se materializam por meio da invocação da subjetividade em confronto com a experiência atual da personagem. Isso significa que Pedro projeta o tempo-espaço das demais personagens e essas lembranças são filtradas por meio da sua visão de mundo. Através de Pedro temos acesso, por exemplo, aos relatos segundo os quais Rosane não vê mais o Tirol como via na infância, pois este foi transformado pela violência, pelo descontrole no crescimento populacional, pela pobreza e pelo esquecimento. Há uma importância apreciável do espaço para a estruturação do romance, porém entendemos que a estrutura do romance, em sua forma latente, aponta para outra principal mediação estética, que é o trabalho. Ou seja, a constante mutação que a sociedade sofre está diretamente ligada com as transformações no mundo do trabalho. Portanto, o trabalho possui uma função relevante na construção dos espaços e na construção das personagens em Passageiro do fim do dia. É possível identificarmos que a organização do romance se dá por meio da estrutura formal do encaixe. Isso significa dizer que um conjunto de histórias secundárias, não menos importantes, é englobado na primeira. Ou seja, cada nova personagem ocasiona uma nova história (TODOROV, 1979, p.124). Todos esses recortes que formam o romance estão intrinsecamente ligados, seguindo uma lógica sintática de orações subordinadas. Conforme adiantamos acima, o trabalho é a mediação latente que oferece coesão à narrativa, que obedece ao fluxo de consciência de Pedro. É importante, destacar, no entanto, que esse fluxo é mediado pelo narrador, que seleciona e organiza os pensamentos do protagonista a partir de seu próprio horizonte de visão. Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 122
Todos esses encaixes são subordinados ao filtro da perspectiva de Pedro. O protagonista é a personagem focalizadora, portanto a perspectiva passa por ela. O universo ficcional e as outras personagens são vistas pelos olhos de Pedro ou são frutos da subjetividade do protagonista. Porém é notável a presença do narrador, que observa Pedro, que narra seus passos e que introduz o romance com um comentário explícito: Não ver, não entender e até não sentir. E tudo isso sem chegar a ser um idiota e muito menos um louco aos olhos das pessoas. Um distraído, de certo modo – e até meio sem querer. O que também ajudava. Motivo de gozação para uns, de afeição para outros, ali estava uma qualidade que, quase aos trinta anos, ele já podia confundir com o que era – aos olhos das pessoas. Só que não bastava. Por mais distraído que fosse, ainda era preciso buscar distrações (PFD, p.1). Esse comentário faz parte do discurso do narrador (que se mantém ausente da história) a respeito de Pedro, objetivando distinguir e hierarquizar a personagem e, por consequência, coopera para a clareza do texto e de sua leitura. Por fim, o narrador não é onisciente, por existir uma personagem focalizadora. Dessa forma, o universo é filtrado por uma consciência, fazendo o narrador ter uma visão de fora, mas se aproximando radicalmente da perspectiva de Pedro por meio do discurso indireto livre. Essa técnica transmite a sensação de o leitor fazer parte do pensamento do protagonista. Uma das cenas encaixadas, por exemplo, é a narrativa da família de Rosane sendo expulsa do meio rural para a cidade em busca de uma vida melhor. Essa cena introduz o histórico das personagens no romance, sendo fundamental para a construção do sentido completo da obra: Trabalhavam como caseiros num sítio cujo dono só aparecia de dois em dois meses e não lhes pagavam um salário fixo. Nada possuíam, viviam à beira da penúria e, Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 123
se não plantassem abóbora, aipim, bananas e criassem galinhas num canto das terras do sitio, teriam dificuldades até para comer. Ainda por cima tinham de esconder a maior parte do que colhiam, porque o dono, quando vinha, se julgava no direito de levar o que tivessem produzido. Aqueles legumes, frutas, aquelas galinhas eram, para o dono do sitio e sua família, uma espécie de farra adicional à diversão regular dos feriados e das folgas no trabalho. (PFD, p.32). Essa cena revela a história das personagens, situa o leitor no contexto social e entrega informações de extrema relevância para o todo do romance. Portanto, agora, arrancados do campo, a mãe de Rosane sonha com a possibilidade de ir morar na cidade com sua família. A vida urbana se apresenta como atraente, segura e de “gente moderna”, pois oferece um número maior de oportunidades e proporciona um aparente ou real progresso individual. Alimentada por este desejo, a mãe de Rosane ganha uma casa (por ter se inscrito num programa lançado pelo governo) no Tirol, um bairro onde o que aproximava a todos era a extrema pobreza. No romance, não foi somente essa família que se sentiu pressionada a migrar para a cidade: A imagem daquela gente que de uma hora para outra começou a percorrer as ruas com suas mobílias e seus pertences – gente que parecia vir às pressas e em fuga, e todos ao mesmo tempo –, a presença à força de pessoas que eles não chamaram, não conheciam, não queriam ali – acabou formando nos moradores da Várzea a ideia de que aquela gente vinha para prejudicar, vinha para desvalorizar a vizinhança de algum jeito, para degradar o bairro todo. Ou, quem sabe, até coisa pior. (PFD, p.38). No caso da família de Rosane, que saiu da miséria do campo, onde nem casa tinham, e de grande parte dos moradores do Tirol, que migraram em busca de uma vida melhor, começam a se sentir vencedores. Muitas mulheres saíram da extrema pobreza e se tornaram doméstica, caixa, manicure, cabelereira, Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 124
enfermeira, recepcionista, vendedora, operaria etc., assim como muitos homens no mesmo quadro se transformaram em porteiro, motorista de taxi, mecânico, padeiro, garçom, etc. Houve alguns que se especializaram, por exemplo, em construção civil, pintor, eletricista, ou na empresa industrial. Os negros pobres ficaram confinados ao trabalho subalterno, rotineiro, mecânico, mas até eles, em geral melhoraram de vida (MELLO e NOVAIS, 2009, p.10). Todas essas considerações de uma única cena encaixada introduzem e complementam as outras cenas. Esse sistema de subordinação está presente no romance inteiro. Outro dado de grande relevância que não pode ser ignorado e que também se apresenta através das cenas encaixadas é a cor da população. Por meio de vários índices narrativos, o romance vai sendo povoado por uma grande quantidade de de personagens negras: o motorista “de cabelo crespo para trás. A pele da testa, escurecida e ressecada pelo sol” (PFD, p.15); Pedro, “também devia haver alguns cacos entranhados no seu cabelo crespo, espesso, cheio de anéis miúdos” (PFD, p.18); Rosane, “Pedro observava no canto do pulso fino uma pontinha de osso que se mexia por baixo da pele marrom ao menor movimento dos dedos” (PFD, p. 31); “o menino que jogava era magro, cabelo preto, crespo e cerrado como uma touca em volta do crâneo meio pontudo na parte de cima” (PFD, p.134); e por consequência seus familiares, ou, pelo menos, boa parte deles. Esse dado é relevante para compreendermos, no romance, a situação das personagens a partir de uma visão histórica, considerando que os negros permanecem à margem da sociedade e encontram dificuldades para existirem como sujeitos de direitos. Inúmeros pesquisadores discutem ou já discutiram sobre as condições de vida dos negros no Brasil Esses estudos mostram que os negros permanecem à margem da sociedade e encontram dificuldades para existirem como sujeitos de direitos, especialmente no que se refere ao mercado de trabalho, isso tudo
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fruto do sistema escravocrata que foi sustentado no período pósabolição se tornando estrutural no capitalismo. A partir da história da escravidão no Brasil, foram-se estabelecendo, internalizando, massificando e naturalizando representações racistas sobre o negro. Com base nisso, os lugares sociais que cabiam aos negros eram a periferia, a ocupação de cargos subalternos, os locais marginais da sociedade. Rosane vive isso, “em suma, tudo aquilo – o trabalho, a escola, saber ler e escrever, o centro da cidade, a cidade propriamente dita, com seus bairros e suas atividades oficiais –, tudo pertencia ao mundo que as deixara para trás, que as empurrara para o fundo: era o mundo de seus inimigos” (FIGUEIREDO, 2010, p.56). Mesmo com a abolição da escravatura, o negro permanece escravo de um sistema que insiste em excluí-lo e negar oportunidades. Suas dificuldades de inserção no mercado de trabalho são interpretadas como incapacidade, tomadas como sinônimo de sua inferioridade racial, “isso Rosane já havia entendido, dava para sentir muito bem, era quase palpável. Mas ela ainda não conseguia admitir inteiramente, não queria extrair as consequências nem queria sentir-se parte daquilo” (FIGUEIREDO, 2010, p.56). Também é importante refletirmos sobre as implicações que a educação possui dentro desse sistema regente do trabalho no romance. Depois de frequentar a escola durante alguns anos, algumas delas mal sabiam ler, trocavam letras, paravam no meio. Encaravam as palavras e as contas com hostilidade. Rosane lembrou-se de duas amigas de escola que agora, já adultas, conseguiam ler porque tinham aprendido quando pequenas, mas não acreditavam nem pensavam em continuar estudando. (FIGUEIREDO, 2010, p. 56). Essa cena nos remete à reflexão de que a escola é reprodutora de hierarquias sociais. Deste modo, a cultura escolar fundadora da socialização está longe de ser universal e objetiva, Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 126
ao contrário, ela está próxima da cultura familiar dos alunos socialmente favorecidos, fora do contexto das personagens do romance. Com base nisso, a seleção social é legitimada pelo culto da cultura escolar. Em relação aos alunos de origem popular pobre, esse sistema exerce sobre eles uma verdadeira violência simbólica, uma aculturação. Algo também relevante a ser observado no romance é o modo como as personagens se relacionam com a educação. Rosane se vê às voltas com a educação de jovens e adultos no período noturno, por ver no estudo uma ferramenta de ascensão profissional e social. Pedro, pobre mas filho de classe média, consegue entrar no curso superior, porém não consegue se manter na faculdade de Direito: “Pedro abandonou a faculdade gratuita depois de ficar matriculado quase seis anos [...] se distraia com os conceitos e as teorias do direito [...] e se admirava quando via que, usadas por ele, não faziam sentido e não produziam efeito nenhum” (PFD, p.43). O acesso ao ensino superior pesa com rigor desigual sobre os sujeitos das diferentes classes sociais. Ou seja, um jovem da camada superior tem aproximadamente oitenta vezes mais chances de entrar na universidade que um jovem de classe média (BOURDIEU, 1966, p. 44). E mais, o nível de instrução dos membros da família serve como indicador que permite situar o nível cultural de cada família. É esse nível cultural global do grupo familiar que mantém a relação mais estreita com o êxito escolar da criança. Portanto, o fracasso do jovem está ligado ao fracasso dos pais, que se ligam ao fracasso de toda uma comunidade. Isso implica que a herança cultural é transmitida entre os indivíduos. Sabia que uma ou outra que se matriculava no colégio só para obter uma declaração e poder contar com uma segurança mínima desse documento. Ou se matriculavam porque os patrões, nas casas onde trabalhavam como faxineira e cozinheira, queriam que elas tivessem o cartão de estudante para andarem de graça nos ônibus pois assim
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não precisavam pagar a passagem de suas empregadas. (PFD, p.56) O comentário que Rosane faz sobre algumas de suas amigas revela que o sistema de valores explícitos e, principalmente, implícitos em relação à escola se diferencia de acordo com a posição social. Os jovens da periferia são alvo fácil de preconceitos, fora e dentro da própria comunidade escolar (por colegas, familiares, professores, etc.). Diante disso, a própria comunidade periférica apresenta prejulgamentos, hostilidade e intolerância, que são alimentados pelas experiências e pela estatística das derrotas ou dos êxitos dos indivíduos do seu meio. Todas essas cenas analisadas seguem uma lógica expressa na teoria de Darwin, presente no romance, que prega a seleção natural e as transformações das espécies. Com base nisso, o homem é explorado como produto biológico, possuidor de comportamento patológico e animalesco, onde o meio interfere de forma significativa nos indivíduos e esses disputam entre si espaços socialmente favorecidos – no romance o darwinismo funciona como alegoria da luta de classes. Uma vespa – Pepsis – mergulhou no ar na direção de uma aranha – Lycosa – e alçou voo outra vez. Foi tão rápido que ninguém teria certeza do ataque se a aranha não tivesse cambaleado em sua fuga e rolando numa pequena depressão de barro encharcado (...) ainda teve forças de se arrastar para baixo de umas plantas rasteiras, onde sem duvida pretendia se esconder (...) Darwin descreveu assim: ‘Teve início uma caçada tão sistemática quanto a de um cão que persegue uma raposa’ (...) Tudo o que soube, ao fim da página, ao fim da história, é que Darwin capturou ‘o tirano e a vítima’. (PFD, p.25) O livro sobre Darwin fazia parte da seleção de livros que Pedro vendia quando era camelô. Após ter sido pisoteado por um cavalo em uma ação de repressão policial contra os trabalhadores ambulantes, Pedro ganha o processo judicial, com a interferência de Júlio, seu amigo advogado, e com o dinheiro abre um sebo. O Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 128
protagonista lê durante o caminho, quando não está ouvindo a rádio, esse mesmo livro, que aborda estudos sobre a evolução. A leitura estimula memórias significativas, que fomentam no protagonista reflexões sobre a desigualdade social, sobre a ideia de superioridade e inferioridade e sobre a dominação de um sobre o outro. Assim como Darwin na sua busca de compreender, a personagem se torna o observador das experiências alheias a sua, mesmo estando no mesmo caminho que os observados. O protagonista projeta para fora de si a sua própria experiência: “Pedro começava a ver a si mesmo no reflexo do vidro: sua imagem surgia mais nítida à medida que escurecia lá fora, assim como as imagens dos outros passageiros. Pedro procurou os olhos deles no reflexo das janelas” (PFD, p.197). Esse relato aponta para um esforço de compreensão do mundo por parte de Pedro, o que inclui conhecer a si mesmo nesse mundo. Esse processo, no entanto, é bastante turbulento, assim como sua viagem, cheio de contradições e limitações. Nesse universo pelo qual Pedro transita e que tenta assimilar, as possibilidades de compreensão também parecem inacessíveis, fragmentárias, caóticas. Ainda em relação ao modo como o darwinismo atua no romance de modo a fomentar as reflexões de Pedro e oferecer um substrato cognitivo para o mundo que a personagem tenta compreender, merece destaque a alegoria do confronto entre a vespa e a aranha, compreendidas aqui como representação da luta entre dominador x dominado, “o tirano e a vítima”, que se enfrentam constantemente em busca da sobrevivência. Durante todo o romance, o protagonista sofre com as marcas definitivas deixadas pela repressão policial. Nas recordações, Pedro sente um grande ressentimento ao se lembrar da violência, da crueldade, e de como, tão facilmente, se tornou presa fácil para a vespa enquanto trabalhava. Essa metáfora representa muito bem o universo capitalista; a busca de supremacia de uns poucos alimentada pela submissão de outros muitos, através de mecanismos de sujeição e exploração. O mundo torna-se cada vez Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 129
mais hostil para o proletariado, que tem cada vez mais dificuldade para se adaptar nesse processo de seleção que não é natural, é histórico. O episódio aponta para o modo como, no capitalismo, a exclusão é operada sistematicamente, é estruturante, a ponto de o braço armado do Estado empregar a violência para coibir ação econômica à margem da “economia oficial”. Obviamente, essa repressão só ocorre contra os pobres. Esses excluídos do mercado de trabalho formal são impedidos também de atuar no mercado informal. Os excluídos do centro da cidade (e tudo que isso representa) também são hostilizados na periferia (como se observa na dificuldade de Pedro e dos demais moradores em voltar para casa). O romance desnaturaliza os processos de exclusão, opressão e as desigualdades sociais. Socialmente, parece natural que muitos sejam pobres e poucos sejam ricos, que poucos vivam bem e muitos sejam oprimidos. Passageiro do fim do dia tem o grande mérito de equacionar a desigualdade social em chave histórica. Essa jornada de sexta-feira rumo ao Tirol, emparelhada com a leitura do livro de Darwin, leva Pedro a começar um raciocínio que vê a vida como um processo de evolução em que ”alguns indivíduos resistiram por mais tempo; outros fraquejaram, ficaram para trás” (PFD, p.9). Esse trecho é chave para pensarmos sobre a condição social e econômica das personagens desse romance. A amiga de infância de Rosane, por exemplo, provoca estranhamento através de suas atitudes no trabalho, “uma doida, um bicho, disse Rosane para Pedro em voz baixa (...) ela acusava com amargura a amiga de infância, acusavam as pessoas que eram como ela” (PFD, p.62). Rosane e sua amiga são lados diferentes de uma mesma moeda; a amiga representa o avesso de Rosane dentro de um mesmo processo, ou seja, não é que os mais fortes sobrevivem, mas, sim, os mais adaptados. A amiga de Rosane poderia ser tomada como a representação da força, considerando que se mantém viva e indiferente às regras sociais, mas sem dúvida, Rosane representa Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 130
o “ser adaptado”, o eleito pela seleção natural; no fim, ambas são esmagadas pelo sistema capitalista. O trabalho explorado é uma maldição, mas a recusa ao trabalho não é uma opção viável no plano individual. Quinze minutos depois de começar a trabalhar, se irritou com alguém que reclamou da sua voz alta. Em meia hora criou um problema sério por se recusar a fazer de novo uma faxina num pequeno banheiro. Depois brigou com uma colega que reclamou porque ela pegou um pouco da sua comida na geladeira, só para provar. Pegou o telefone celular que estava em cima da mesa para fazer uma ligação e, três horas depois de chegar, saiu pela porta de vidro aos gritos, abanando os braços, atirou-se direto pela escada, não quis nem esperar o elevador – com raiva também do elevador, que não vinha buscá-la depressa. E não voltou mais. (PFD, p.62). Podemos pensar que a história da realização do ser social se efetiva pelo trabalho – ato consciente. Dessa forma, o seu desenvolvimento se dá pelos laços de cooperação social, que existem no processo de produção. A amiga de Rosane não consegue se adequar ao ambiente de trabalho e às regras estabelecidas socialmente, “ali, sua vizinha e amiga de infância tomou na mesma hora um aspecto incômodo, impertinente e quase aberrante aos olhos de Rosane, como aos olhos dos outros” (PFD, p.62). Pensando nisso, o ato de produção e reprodução da vida humana se realiza através do trabalho. Ou seja, o trabalho é constitutivo da construção do homem enquanto homem e é a forma originária da atividade humana. Dito isto, é através do trabalho, por exemplo, que o homem se torna um ser social. Por não ter se adequado a esse sistema, a amiga de Rosane foi zoomorfizada, “uma doida, um bicho, disse Rosane para Pedro em voz baixa” (PFD, p.62). No que é unicamente humano, o trabalho, a amiga de Rosane é vista como um animal pela falta de adequação a esse sistema estabelecido socialmente.
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Uma das possíveis explicações para o estranhamento da amiga de Rosane frente ao trabalho é provocado pela perversa contradição presente no capitalismo de que quanto mais o trabalhador produz, menos tem para consumir; quanto mais valores cria, mais se torna sem valor; quanto mais formado seu produto, mais deformado se torna o seu trabalho. Esse processo de estranhamento do trabalho abrange o próprio ato de produção, “o que significa dizer que, sob o capitalismo, o trabalhador repudia o trabalho; não se satisfaz, mas se degrada; não se reconhece, mas se nega” (ANTUNES, 2015, p. 172). Pensando em todas essas cenas, quando Pedro pega o ônibus e vai rumo à casa de Rosane, encontramos a cena base. As demais cenas são todas projeções de Pedro que se integram à cena base, cooperando para a ampliação da logicidade do romance. Com base nisso, para que as personagens no romance possam vir à vida é necessário que Pedro as inclua na narrativa, dessa forma, a primeira narrativa se subdividirá em várias outras. Cada narrativa possui sua lógica, possui algo a mais do que já foi dito, portanto, funciona como suplemento para o desenrolar do romance. Nessa lógica, encontramos uma cena, por exemplo, que representa uma das possíveis consequências advindas da soma de todos os outros cenários, isto é, uma espécie de condensação dos conflitos de classe latentes e ostensivos. Na volta para casa, passava no supermercado e olhava para as prateleiras com mágoa, com uma cobiça pesada: cada produto, cada marca em letras vibrantes era uma ofensa. De vez em quando a visão chegava a se estreitar, uma sombra se fechava pelos lados dos olhos, os tons coloridos das embalagens se borravam de preto e nessas horas o pai de Rosane tinha de piscar os olhos e piscar de novo, três, quatro vezes, para voltar a enxergar direito as mercadorias, que pareciam sumir. No fim, sem saber muito bem o que estava fazendo, ia para a caixa com um pacote de margarina, um saco de pão de forma e um outro
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de arroz só pra não dizer que não estava levando nada. (FIGUEIREDO, 2010, p.107) O pai e a tia de Rosane se cadastraram num programa que o governo estava promovendo no Tirol, “ofereciam um valor fixo mensal só para a pessoa fazer compras no supermercado, contanto que o candidato preenchesse certos requisitos” (FIGUEIREDO, 2010, p. 107). O nome da tia de Rosane apareceu na lista dos favorecidos, porém “os tais cheques não eram aceitos em qualquer lugar. Certa vez ocorreu o boato de que mais nenhum supermercado ia receber aquela forma de pagamento. Quem tinha um crédito nas mãos se afobou em gastar logo tudo” (idem, ibidem). O pai e a tia de Rosane foram até o supermercado na Várzea, o único lugar próximo que aceitava esse programa, essa era a única chance deles comprarem um pouco mais que “um pacote de margarina, um saco de pão de fôrma e um outro de arroz” (idem, ibidem), porém “quando a moça passou o cartão na máquina, soou um apito. Pela cara que ela fez, o pai de Rosane viu logo que não tinha dado certo” (PFD, p.115). Se eles não tinham como pagar – explicou a moça, com uma voz calma, de quem parecia entender a situação, de quem compreendia tudo, até bem demais, só que gostaria que nada daquilo tivesse acontecido e preferia que eles fossem embora logo – se não tinham como pagar, explicou a moça, teriam de pôr tudo de volta nas prateleiras (...) com a ponta dos dedos, a tia de Rosane empurrava de leve a mercadoria em seu lugar, fazia questão de alinhá-lo de acordo com as outras. Cada produto de que se desfaziam causava mágoa. A garganta apertava (...) só aí o pai de Rosane olhou para a esquerda e percebeu que a cunhada fungava, puxava para dentro algum resto de choro. (PFD, p.117) Ao descobrir sua intolerância ao cimento, “e então, teve raiva do cimento, teve raiva dos pés” (PFD, p.102), o pai de Rosane, frente ao desemprego, com a exclusão do mercado, interiorizou uma imagem de si negativa, desmoralizante, de Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 133
inferioridade, de inadequação, de exclusão, de um não ser. O trabalho aqui é compreendido como atividade vital, como dever, como uma obrigação social, como uma necessidade pra se manter vivo. Afinal “o próprio homem que trabalha é transformado pelo seu trabalho” (ANTUNES, 2015, p. 171), este é o momento fundante do ser social, que permite condição para sua existência. Essa, sem dúvida, é a cena do romance que mais provoca choque frente à barbárie. Esse espaço (no mercado) só é possível existir por causa de todas as implicações já apresentadas sobre o trabalho. Esse trecho é a solidificação do efeito que o trabalho, ou a falta dele, provoca nos espaços e nas personagens dentro do romance. O capitalismo, em sua fase consumista, ludibria o indivíduo com coisas inacessíveis ao seu mundo real, promovendo, portanto, nesse contexto específico do trabalho, a perversa exclusão. Esse cenário se torna ainda mais gritante pelo complemento que o romance traz, em outra cena, sobre publicidade. A televisão se integra à vida das personagens se tornando a principal, e em muitos casos a única, forma de lazer e informação. Considerando que no romance as relações humanas se dão por meio da mercadoria e que essa mercadoria possui uma imagem, a publicidade produz motivações inconscientes, tentando manter a condição fetichista da ordem social. Na tevê à frente deles, um anúncio de um banco mostrou um casal risonho, de roupas bem passadas, com cartões de plásticos coloridos nas pontas dos dedos: os dois cartões se tocavam e, com uma faísca prateada que saltava, parecia que os cartões se beijavam no ar. De repente, uma mangueira esguichava em leque por cima de um gramado. Um carro encostava diante da casa recém-pintada. A lataria espelhava o azul do céu. Uma porta do carro abria, uma criança saltava para fora e corria sobre a grama. A tela inteira era tomada pela cabeça e pelo tronco de uma jovem no impulso de sair de uma piscina, enquanto a pele bronzeada gotejava. Os quinze segundos do anuncio se Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 134
arrastava, não queriam passar. Tentavam congelar-se, ficar em suspenso, encher a sala e a casa, enquanto Pedro e Rosane sem perceberem, aguardavam mudos, atentos à promessa de um sinal, de uma autorização, para que também eles se integrassem àquela visão. (PFD, p.55) Possuindo técnicas avançadas de mercado, a publicidade sabe bem o que produzir para conseguir um retorno produtivo do seu público alvo. Ou seja, os publicitários arquitetam e modificam as motivações inconscientes dos consumidores, através das eficientes técnicas embasadas em estudos de tendências e demandas emergentes do público consumidor, objetivando responder os anseios do público com um produto, uma imagem, uma marca. Essa ferramenta provoca uma maior e eficiente alienação, onde, inconscientemente, o objetivo maior é a acumulação de capital, fazendo com que a servidão se torne cada vez mais voluntária. A televisão possui também outro lado lúgubre frente à sociedade. São inúmeras as formas de assassinatos apresentados – em jornais, em desenhos animados, filmes infantis, juvenis, filmes de super-heróis, novelas etc. O pai de Rosane contava para Pedro, falava um bocado e parava, enquanto alguma coisa na televisão prendia seu interesse. Era um filme americano, havia tiros de vez em quando, armas de vários tipos – em gavetas, em cintos, e bolsas, no porta-luva, em mãos de homem e de mulher. Os canos cromados ou pretos rebrilhavam na tela. Homens voavam de repente para trás, de braços abertos, com manchas vermelhas no peito da camisa, o corpo brilhava sobre o capô brilhante dos carros novos ao som de explosões e de música trepidante (FIGUEIREDO, 2010, p. 119). A mídia colabora para o processo desumanizador da sociedade, se concentrando na base social. As classes sociais, em geral, participam dessa desumanização em algum nível, umas mais que as outras, é claro. Por fim, a televisão funciona como Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 135
veículo de sustentação essencialmente publicitária, objetivando exercer uma ação psicológica sobre o público com fins comerciais, em sua grande maioria. Todas as cenas encaixadas juntamente com a cena principal dão vida a uma crítica social que se inicia na primeira linha do romance, “não ver, não entender e até não sentir” (PFD, p. 1). A simples ação de pegar um ônibus, se locomover de um local para o outro é tão presente, tão constante, para uma classe social específica, que os indivíduos não enxergam mais, não refletem sobre as implicações dessa prática mecânica. A crítica presente no romance vai se fundamentar principalmente na ideia dessa dificuldade que beira a impossibilidade em compreender uma coisa que está se passando constantemente e que está intrinsecamente ligada ao trabalho. O protagonista vai observar, refletir, questionar sobre coisas que se mantêm protegidas ou disfarçadas na sociedade, “por mais distraído que fosse, ainda era preciso buscar distrações” (idem, ibidem). Mesmo Pedro sendo distraído, a personagem, nesse caminho extenuante, busca distrações e, a partir daí, começa a refletir, sem ter plena consciência disso, sobre questões bastante problemáticas na sociedade, dando vida ao que chamamos de cenas encaixadas, sendo cada uma coerente e rica em sentidos; possuindo ligações intrínsecas que funcionam como um mapa de informações que auxiliará o leitor a compreender a obra.
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Recebido em 30/10/2016.
Aceito em 11/01/2017.
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Joaquim Tenreiro: Mobiliário Moderno Artesanal Marcia Campos Bleich26 Resumo: Nascido em Portugal, Joaquim de Albuquerque Tenreiro, mudou-se definitivamente para o Brasil, no ano de 1928, após passar duas temporadas em terras brasileiras. De sua família herdou a profissão de marceneiro que, ligada à sua grande paixão pelas artes plásticas, possibilitou transformar seus móveis em peças diferenciadas, esculturas em marcenaria, palha e couro. Tenreiro estudou as madeiras brasileiras e introduziu no cenário nacional móveis esteticamente modernos, representados por peças dignas das mais importantes escolas de design da Europa. Em sua juventude, desejava ser arquiteto. Não teve a chance de se dedicar à formação acadêmica, mas, é reconhecido como um dos criadores do mobiliário moderno brasileiro. Embora distante dos movimentos de arquitetura e design do início do século XX, ele criou um mobiliário moderno, de formas limpas, em total sintonia com as ideias defendidas pelas escolas de arte que tiveram início na Europa no período entre guerras, principalmente a escola de Arte, design e arquitetura da República de Weimar, denominada Bauhaus. Tenreiro teve importante contribuição na criação do mobiliário brasileiro e, embora sua obra seja sempre estudada e apresentada como moderna, sua defesa do trabalho artesanal se apresenta como uma contradição pois, na visão dos idealizadores do modernismo europeu, os designers deveriam estar preparados para criar peças que seriam desenvolvidas em série e não de forma artesanal. Palavras-chave: Joaquim Tenreiro, Mobiliário Moderno, Modernismo, Mobiliário brasileiro, Design de Interiores Abstract: Born in Portugal, Joaquim Tenreiro Albuquerque, he moved permanently to Brazil in 1928 after spending two seasons in Brazilian lands. His family inherited the profession of cabinetmaker that linked to his great passion for art, enabled turn your mobile into different pieces, sculptures in carpentry, straw and leather. Tenreiro studied Brazilian woods and entered the national scene aesthetically modern furniture, represented by pieces worthy of the most important European design schools. In his youth, he wanted to be an architect. He did not have the chance to devote himself to academic education, but is recognized as one of the creators of modern Brazilian furniture. Although far from architectural movements of the early twentieth century design, he created a modern furniture, clean shapes, in tune with the ideas defended by the art schools that began in Europe in the interwar period, especially the Art School, design and architecture of the Weimar Republic, called Bauhaus. Tenreiro had an important contribution to the creation of the Brazilian furniture and although his work is always studied and presented as modern, his defense of craft work is presented as a contradiction because, in the view of the creators of European modernism, designers should be prepared to create pieces that would be developed in series and not by hand. Keywords: Joaquim Tenreiro, Modern Furniture, Modernism, Brazilian Furniture, Interior.
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Mestranda em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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1. Introdução O final do séc. XIX e o início do séc. XX foram marcados, principalmente na Europa, pela euforia da tecnologia e da velocidade, pontuada pelos automóveis, máquinas fotográficas, cinema e inovações que mudaram as relações de trabalho, a forma de produção dos objetos, o modo de vida dentro das cidades e o processo construtivo dos edifícios. William Morris (Essex, 1834 - Londres, 1896) e John Ruskin (Londres, 1819 – 1900), artistas defensores do artesanato e das artes e ofícios, criaram na segunda metade do século XIX o movimento art and craft que sustentava a proposta do artesanato criativo como alternativa à mecanização e à produção em massa e criticavam os avanços da indústria com a intenção de imprimir em móveis e objetos o traço do artesão-artista. Eles defendiam o artesanato e criticavam a produção medíocre de peças sem estilo e influenciaram muitos artistas, mas, o retorno ao artesanato representava um luxo para poucos, dentro da nova sociedade moderna [10]. A industrialização brasileira, que tentava se firmar no final do século XIX, chegava com aproximadamente 100 anos de defasagem em relação à Europa, logo, apenas na primeira metade do século XX, no estado de São Paulo, podemos destacar um crescimento considerável de indústrias de móveis. A maioria das fábricas de móveis se dedicava à produção de objetos simples. Eram pequenas fabriquetas que se responsabilizavam pela maior parte da produção de escrivaninhas, cadeiras, mesas, guarda-louças e bancos, entre outros móveis produzidos para a nova classe de assalariados da própria indústria. Havia algumas exceções, que contabilizavam no máximo cinco, que se dedicavam à produção de móveis de luxo de alta qualidade. O melhor exemplo era o Liceu de Artes e Ofícios que, com 480 operários produzia móveis de alto padrão, cópias perfeitas em estilo clássico e art nouveau. Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 139
Portanto, durante as primeiras décadas do século XX, movimentos como o art and craft não faziam muito sentido no Brasil, uma vez que a produção de móveis voltada para as elites era toda artesanal e em estilo clássico inglês e francês. O desafio que se impunha era a divulgação de um novo estilo de mobiliário, livre dos ornamentos clássicos, gosto predominante da elite brasileira desde o início do século XIX, graças à transferência da coroa portuguesa para as terras brasileiras, como descreve Gilberto Freyre: No Rio de Janeiro a europeização dos edifícios públicos e dos sobrados de alguns dos homens mais ricos da Corte começara com a chegada do príncipe. Com a missão de artistas franceses que veio para o Brasil no tempo de Dom João VI. (FREYRE [4], 2002, p. 262) Joaquim Tenreiro, marceneiro e projetista de móveis nascido em Portugal no ano de 1906, que fixou residência definitiva no Brasil no ano de 1928, foi um dos grandes defensores de um estilo de mobiliário mais leve do que se produzia na época, com a inserção de referências estéticas e matérias-primas nacionais. Seu trabalho como projetista de móveis e decorador, cujas marcas permanecem impressas em suas peças, é um manifesto à leveza, à qualidade e à produção de móveis modernos e brasileiros, porém não significava uma ruptura com o modo de produção artesanal das peças clássicas que dominavam os interiores das residências.
2. Da produção de móveis clássicos à criação de móveis modernos Tenreiro era filho e neto de marceneiros e, desde cedo, aprendeu na pequena aldeia de Melo, local onde nasceu, a trabalhar as madeiras e produzir móveis de grande rigor artesanal. Quando chegou ao Brasil, iniciou sua atividade como marceneiro em uma das maiores oficinas de móveis de estilo que atuava no Rio de Janeiro, a Laubisch & Hirth. Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 140
Na época, essa empresa contava com mais de 300 funcionários e desenvolvia projetos de móveis de interiores para a elite econômica da, então, capital do país. Paralelamente à profissão de marceneiro, Tenreiro se dedicou a estudar desenho técnico no Liceu Português, além de pintura. Sua dedicação aos estudos de desenho lhe rendeu o posto de projetista na Laubisch & Hirth e, posteriormente, de encarregado em uma outra grande oficina de móveis de estilo, a Leandro Martins. Seu trabalho de designer de móveis como funcionário em oficinas, foi desenvolvido entre 1933 e 1943 e neste período havia, no Brasil, muito pouco espaço para a criação de móveis que não fossem cópias de peças em estilo francês e inglês. Embora sem aceitar, nem tão pouco entender o motivo do gosto da elite pelo mobiliário de estilo, na oficina Tenreiro não tinha escolha e se dedicava ao trabalho de detalhar móveis que lhe pareciam mal resolvidos e ultrapassados, segundo ele mesmo colocava e já foi citado anteriormente, o Hirth sócio da Laubisch e Hirth, era “ um homem incapaz de aceitar o moderno, achava aberrante” (Macedo, 1985, p.20). Inquieto, em suas próprias palavras, Tenreiro nunca se contentou em desenvolver cópias de móveis de estilo e entendia ser necessário uma correção significativa no design de mobiliário brasileiro. As peças então produzidas eram pesadas, as madeiras nacionais eram pouco empregadas, e os tecidos eram normalmente de veludo, quentes e de difícil manutenção. Em decorrência da crítica que fazia do mobiliário que ele mesmo desenhava nas marcenarias onde trabalhou, iniciou a criação das primeiras peças modernas, mas até o ano de 1941, elas eram apenas projetos. Seus conhecimentos de desenho e sua enorme capacidade de trabalhar a madeira, lhe deram capacidade para criar móveis e criticar a cópia de estilos que não traziam nem a estética moderna dos modelos europeus tão pouco criavam uma linguagem nacional para o mobiliário.
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No ano de 1942, após trabalhar como projetista e encarregado em outras empresas, voltou à Laubisch & Hirth, onde desenvolveu seu primeiro projeto de móveis modernos para a residência de Francisco Inácio Peixoto, filho de uma rica família de industriais da cidade de Cataguases, em Minas Gerais. O cliente contratou o arquiteto Oscar Niemeyer para desenvolver o projeto arquitetônico de sua casa e, para executar os móveis, procurou a Laubisch e Hirth. Após vários estudos e desenhos, não aprovados pelo cliente, o projeto foi passado para Joaquim Tenreiro, que, de forma ousada, criou peças leves, sem entalhes e completamente distintas daquelas produzidas pela oficina. Em entrevista, Tenreiro contou esse importante momento: Foi quando trabalhava na Laubisch e Hirth que projetei meus primeiros móveis modernos, para a casa de Dr. Francisco Inácio Peixoto, em Cataguases, que fora projetada por Oscar Niemeyer. Devo ressaltar que o projeto destes móveis só chegou às minhas mãos porque naquele momento a firma estava desfalcada de seus dois principais profissionais. Depois de prontos, o Dr. Francisco viu e gostou. Foram os primeiros móveis modernos da Laubisch & Hirth. (MACEDO, 1985, p. 12) A residência projetada por Niemeyer seguia o ideal moderno de arquitetura que vinha sendo defendido desde os anos 1920, porém encontramos no projeto de Cataguases características que conferem à obra um estilo moderno pontuado por elementos brasileiros. Um grande telhado de duas águas com telhas em barro envolve a residência e cria uma varanda no andar superior e outra no inferior, as duas voltadas para o fundo do terreno com vista para o rio Pombo, que corta a cidade. As varandas e o telhado em duas águas trazem à residência um ar quase colonial, porém o jogo de volumes, a distribuição dos cômodos, o uso de pilotis e a orientação da fachada principal para o fundo do lote, uma característica dos projetos modernos do início do século XX, não deixam dúvidas de que se trata de um projeto moderno.
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A arquitetura da residência conjugava em seu projeto elementos brasileiros em uma alma moderna, exatamente como Joaquim Tenreiro entendia que deveria ser o móvel brasileiro: leve e ergonômico, com a utilização de matéria prima e referências nacionais. Esse diferenciado projeto de interiores, com a utilização de móveis coloridos e leves, e especial destaque para o conjunto de espreguiçadeira trançada em couro azul e branco e de cadeira, também em couro, nas cores vermelho e branco (figura 1), foi o início de uma produção de ambientes elegantes, confortáveis e modernos, uma necessidade urgente para os novos edifícios modernos.
Figura 1- Foto da Sala da Residência de Cataguases – 1988 Fonte: (http://www.asminasgerais.com.br, 2016)
Em estudos sobre a origem do mobiliário moderno brasileiro, verificamos a importância da escolha de Joaquim Tenreiro para o projeto da residência de Cataguases: A escolha de Joaquim Tenreiro para a ambientação da residência moderna em Cataguases, em 1942, fora a virada histórica do móvel no grupo dos arquitetos modernos, que já ditavam os rumos da arquitetura brasileira, assim como uma Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 143
vitória da tradição sobre a corrente internacional, no projeto do móvel moderno no Brasil, a escolha da madeira como seu principal elemento. (Melo [9], 2008, p. 264) Os móveis de Cataguases, embora desenvolvidos dentro da Laubisch & Hirth, marcenaria de móveis de estilo eclético, podem ser considerados um marco no design de mobiliário brasileiro. Tenreiro mostra, com os móveis que projetou, que é possível desenvolver uma decoração moderna com a utilização de materiais como madeira e couro. Vale salientar que os projetos de interiores modernos tiveram seus embriões nos anos 1920, porém nascem de forma definitiva neste trabalho e são aprimorados nas décadas seguintes, servindo de referência para as futuras gerações de designers e arquitetos. O mobiliário desenhado para a residência de Cataguases é um capítulo à parte na história da produção de móveis do marceneiro e projetista.
3. O móvel moderno de produção artesanal O projeto do mobiliário de Cataguases abriu, para Tenreiro, a oportunidade de investir em sua própria empresa de móveis. Assim, junto com José Languenbach, vendedor da Laubisch e Hirth ele inaugurou uma pequena oficina de nome Languenbach e Tenreiro em 1942. Se por um lado, nos 25 anos que se seguiram, Tenreiro focou suas atividades de designer na criação de móveis leves, modernos e funcionais, dentro dos padrões estéticos dos movimentos modernos de arquitetura e design que já faziam parte da estética dos arquitetos modernistas da década anterior, por outro centrou seu discurso em defesa da produção artesanal de móveis, o que pode parecer um paradoxo, se tomarmos por base as palavras de Walter Groupius (Berlim, 1883 — Boston, 1969), criador da escola Bauhaus, e um dos protagonistas do movimento moderno: Ruskin e Morris foram os primeiros que se colocaram contra a corrente, mas sua oposição à máquina em si não podia Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 144
estancar a enchente. Só bem mais tarde, algumas personalidades, que almejavam o desenvolvimento da forma, reconheceram nesta confusão que arte e produção só voltariam a harmonizar-se de novo quando também a máquina fosse aceita e posta a serviço do designer. (GROPIUS, 1988, p. 33) No entanto, em análise das entrevistas dadas por Tenreiro ao longo de sua carreira, podemos verificar que a produção artesanal não constituía uma certeza absoluta e seu maior empenho não estava centrado na forma de produção de suas peças, mas na criação de um novo conceito de móveis, mais ergonômicos e que trouxessem, em seu desenho, a leveza e, principalmente, a busca de referências para a criação de uma linguagem nacional para os interiores das residências brasileiras. Procurei fazer um móvel diferente daquele que se produzia. O móvel que até então se fazia, guardava vícios do passado. Eram pesados, desproporcionais tanto no assento como no encosto ou braços. Então criei um móvel mais leve, mais funcional e mais cômodo. Afinal, o móvel, como muitas outras coisas de uso humano, tinha que se adaptar aos tempos, tomar novos rumos. (Macedo, 1985, p. 45) As peças desenvolvidas por Joaquim Tenreiro ao longo das duas décadas que seguiram a criação das primeiras peças de decoração modernas, para a Residência de Cataguases, representaram uma ruptura com a estética neoclássica, que dominava o gosto das famílias de alta renda nas grandes cidades brasileiras, mas ainda era difícil romper com os modos de produção que, para móveis de alto padrão, tinham como importante característica o artesanato de perfeita e criteriosa execução. Vale ressaltar que, como já citado antes, a industrialização chegou ao Brasil com aproximadamente 100 anos de defasagem, de tal forma que, nos anos 40, os móveis de alto padrão eram produzidos de forma artesanal e, os clientes que contratavam as grandes marcenarias para desenvolver o projeto de interiores para Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 145
suas residências buscavam peças exclusivas e artesanais, e não apenas neoclássicas. Provavelmente, para Tenreiro, a defesa de um móvel artesanal constituía a melhor forma de, nas décadas de 1940 e 1950, manter-se no mercado com projetos de interiores esteticamente modernos, sem romper com os modos de produção. Assim, ele desenvolveu peças esteticamente modernas, porém de execução artesanal e, em vários momentos, saiu em defesa desse modo de produção, de forma contrária aos princípios do movimento moderno que levou à criação da escola Bauhaus de arte e design, no ano de 1919, cujo objetivo era “formar pessoas com talento artístico para serem designers na indústria” (GROPIUS, 1988, p. 37). Diante do resultado da obra de Joaquim Tenreiro, pode não parecer importante discutir o modo como foram produzidas suas peças, no entanto, se apresenta como um paradoxo um desenhista industrial, cuja produção era quase toda artesanal, principalmente por ter sido ele um defensor do estilo moderno. As peças produzidas pelo artífice moderno Joaquim Tenreiro marcam o início da história do Brasil com os interiores modernos de identidade brasileira, e representam uma ponte construída entre o Brasil colonial do século XVIII, de peças entalhadas “sem pressa nem possibilidade de lucro” (COSTA, 1939) e o Brasil moderno do início do século XX. Uma ruptura discreta e bemsucedida com interiores outrora decorados em estilo eclético, de móveis pesados, pouco ventilados e de difícil manutenção, muitas vezes importados da Europa ou produzidos por profissionais estrangeiros. Os móveis criados por Tenreiro aliavam ao desenho moderno, características nacionais, como o uso constante da madeira, a reinserção da palhinha (figuras 2), muito utilizada nas marquesas e cadeiras das antigas residências brasileiras do século XVIII e que, aos poucos, foi sendo excluída do mobiliário no decorrer do século XIX. Tal matéria-prima, além de proporcionar aos móveis traços nacionais, tornava-os mais ventilados, algo de Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 146
grande interesse em um país tropical. Também pode-se salientar, além do uso da palhinha, as linhas leves e curvas e as muitas texturas de tecidos, couros, madeiras e treliças, que conferem ao mobiliário de Tenreiro um caráter inovador.
Figura 2 – Chaise Long em jacarandá - 1950 (https://1stdibs.com/furniture, 2016)
Entre os anos de 1941 e 1968, Joaquim Tenreiro atendeu em sua oficina e em suas duas lojas, uma no Rio e, entre 1956 e 1961, uma filial em São Paulo, um grande número de clientes que buscavam móveis modernos. Sua produção foi intensa e pode ser dividida em diferentes grupos que não seguem, necessariamente, uma linha cronológica, de tal forma que verificamos peças reeditadas em épocas diferentes e outras que estiveram presentes desde o início de seus projetos. A primeira peça criada por Tenreiro e editada com o selo de sua oficina foi a poltrona Leve (figura 3). Para Tenreiro, essa peça era a síntese do móvel moderno brasileiro. Fabricada em madeira clara, originalmente marfim, com assento e encosto em uma única estrutura estofada e revestida em tecido, era caracterizada por sua leveza no desenho dos pés e braços, que lembram os móveis de madeira curvada de Celso Martinez Carrera (Galícia, 1884 – São Paulo, 1955), pioneiro na produção de móveis em série, um marco na modernização do mobiliário brasileiro.
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Uma característica indissociável da obra de Tenreiro é a leveza, não a leveza física de massa e gravidade, mas da leveza visual, de linhas puras e de um equilibrado contrate entre volumes preenchidos e espaços vazios, capazes de conferir às peças a sensação visual de que nada deve ser modificada, retirado ou acrescentado ao objeto.
Figura 3 - Poltrona Leve – 1943 Fonte: (https://legadoarte.wordpress.com, 2016)
A Poltrona Leve se apresenta, no início dos anos 1940, como um manifesto ao móvel moderno brasileiro e, embora de produção artesanal, é seu desenho que pode ser considerado uma ruptura. Os pés lisos e muito finos, sem os entalhes e os ornamentos em pintura dourada, quase obrigatórios nos móveis ecléticos que dominavam as decorações no período, são um diferencial que justifica seu nome, uma leveza estética que Tenreiro passa a buscar ao longo de toda sua carreira como decorador e projetista. Criada em 1942, a Leve, foi reeditada várias vezes nas décadas que se seguiram, estampou a capa da primeira edição da revista AD, no ano de 1953. No mesmo ano, ganhou uma versão Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 148
em madeira escura estofada, com tecido estampado por Fayga Ostrower (Lodz, 1920 — Rio de Janeiro, 2001) e, no início da década de 1960, uma reedição em ferro (figura 4) com apoios de braço em madeira escura. Os pés finos e seus braços levemente curvados foram alvo de muitas cópias por marceneiros e até por grandes lojas de móveis que, nas décadas de 1950 e 1960, tinham o modelo em seus catálogos e mantinham poltronas, nitidamente inspiradas em seu projeto, expostas em suas lojas.
Figura 4 - Poltrona Leve em ferro – 1953 Fonte: (https://legadoarte.wordpress.com, 2016)
As peças projetadas por Tenreiro passaram a ter grande aceitação no mercado de móveis, e sua loja, inaugurada no ano de 1947 na Rua Barata Ribeiro (figura 5), em Copacabana, transformou-se numa referência de decoração moderna, principalmente pelo pioneirismo em apresentar ambientes cuidadosamente projetados e ornamentados com peças, luminárias e quadros, tudo em estilo moderno: Minha loja começou diferente de todas as outras do Rio de Janeiro. As lojas eram um amontoado de móveis. Tinham, por exemplo, cadeiras empilhadas umas por cima das outras. A minha loja foi montada com ambiente padrão. Era um salão Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 149
com sofá, tapete, mesa, cadeiras, tudo nos seus lugares. Os quadros na parede também eram adequados, assim como as luminárias. Enfim, era tudo no mesmo estilo, era uma loja de design. (Macedo, 1985, p. 22) A casa, inaugurada pela Langenbach e Tenreiro, não era apenas uma loja de móveis, era também uma galeria de arte que, desde o início, recebeu renomados artistas do movimento moderno em exposições individuais, o que divulgava o nome da loja e a inseria no cenário artístico moderno carioca. O sucesso conquistado pelos móveis projetados para os clientes da loja carioca, aliado a um momento de grande crescimento do país, possibilitou a inauguração, no ano de 1953, da filial em São Paulo, na rua Marquês de Itu, mudando-se para a Rua Augusta três anos depois (figura 5).
Figura 5 - Interior da Loja de São Paulo – 1956 Fonte: (http://www.james-paris.com, 2016)
O empreendimento na emergente cidade industrial era, ao mesmo tempo, uma conquista e um desafio, principalmente, pela opção de Joaquim Tenreiro em concentrar sua produção em peças personalizadas de produção artesanal. Muitas empresas, Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 150
designers e arquitetos dividiam o mercado moveleiro de São Paulo, algumas produziam móveis de estilo eclético, outras oficinas se dedicavam à produção de móveis populares e vários projetistas e arquitetos se dedicavam à criação de móveis modernos direcionados a uma classe média alta, como os jovens intelectuais da época, que aceitavam os novos padrões estéticos propostos pelo modernismo. Algumas empresas de São Paulo já mantinham uma produção mais industrializada, com uma publicidade que ressaltava o valor do novo conceito. A Forma Móveis e Objetos de Decoração, estabelecida na Rua Augusta, próxima à Tenreiro Móveis e Decoração, além de sua própria produção, desenhada por um de seus proprietários Martin Eisler (Viena, 1913 – São Paulo, 1976), trazia para o mercado brasileiro peças consagradas de designers e arquitetos modernos, muitos deles formados pela escola Bauhaus. Vários profissionais, inspirados no processo industrial de produção, direcionaram seus trabalhos totalmente para a produção em série de suas peças, diminuindo seu custo e acirrando a disputa pelo mercado consumidor. Entre as empresas que optaram por uma produção industrializada podemos citar a Fábrica de Móveis Z datada de 1950, resultado da associação entre Sebastião Pontes e José Zanine Caldas; a Làtelier Móveis e a Unilabor Indústria de Artefatos de Ferro e Madeira, esta última uma comunidade de trabalho em forma de cooperativa, criada pelo designer Geraldo de Barros, no bairro do Ipiranga, em São Paulo. O esforço em criar o móvel moderno e transformar o interior das residências em espaços mais adaptados aos novos tempos já não era tão necessário, uma vez que o novo estilo era cada vez melhor aceito e o móvel moderno brasileiro, defendido por Tenreiro no decorrer dos anos 1940 e 1950, já fazia parte das lojas de móveis e das revistas de decoração, design e arquitetura que circulavam nas capitais brasileiras. Nesse novo momento, os designers e empresários da área moveleira estavam empenhados em desenvolver um móvel Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 151
industrializado, que não perdesse em qualidade para os móveis artesanais e que tivessem como atrativo um preço mais acessível. Por ser a cidade de São Paulo um polo industrial e experimentar desde o início do século XX um grande crescimento, não é difícil entender que todas as experiências de industrialização da produção de mobiliário tivessem sede em terras paulistanas. Maria Cecília Loschiavo dos Santos descreve esse momento: Se, por um lado, os princípios da modernização do móvel já estavam presentes e assentados, as circunstâncias históricas brasileiras nos anos 1950 configuraram as condições necessárias ao desenvolvimento das principais experiências de industrialização da mobília. Chegava entre nós a produção em série. (SANTOS, 1995, p. 145) Assim, em sua loja de São Paulo, Tenreiro experimentou uma concorrência com empresas que, além de oferecer móveis modernos, muitas vezes inspirados em peças que ele próprio havia desenvolvido no decorrer da década anterior, já tinham ao longo da segunda metade dos anos 1950 investido na industrialização da produção. Durante alguns anos, Tenreiro conseguiu fazer de sua produção artesanal um diferencial, porém, a partir do início dos anos 1960, com as incertezas resultantes do momento político do país e a desaceleração da economia, seus móveis passaram a não ter preços atraentes para o mercado e no ano de 1961 as atividades da loja de São Paulo foram encerradas, permanecendo em funcionamento apenas a unidade do Rio de Janeiro. Para Tenreiro, um excepcional artesão, profundo conhecedor das madeiras e de todas as técnicas requeridas em seu manuseio, era difícil aceitar que seu móvel fosse produzido em série. Para ele, a indústria trazia perdas significativas ao mobiliário de alto padrão, não ao móvel rústico, mas ao artesanal produzido com rigor, encaixes perfeitos, detalhes que ele não tinha convicção de que não perderiam em qualidade quando executados por máquinas. Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 152
Figura 6 – Banqueta em Jacarandá, Marfim e ferro– 1950 Fonte: (http://www.capadocialeiloes.com.br, 2016)
Em uma análise mais aprofundada das palavras de Tenreiro em diversos momentos de sua trajetória, verifica-se que a opção por manter seu mobiliário dentro de uma produção artesanal e atingir, assim, o seu público alvo, não era uma certeza absoluta. Quando da criação de sua primeira oficina, Tenreiro deixa claro que a opção pela produção artesanal foi resultado da escassez de recursos para investir em maquinário e, algumas vezes, em artigos de revista e em entrevistas, fez uma defesa do desenho industrial, o que leva o leitor a acreditar que o mais importante é a criação do objeto, independente de qual processo utilizado para sua produção. O que importa, porém, esclarecer é: não está no desenho em si o processo industrial. Em princípio o desenho consiste na invenção ou criação da forma, do todo, e é na planificação industrial ou artesanal que ele deriva a sua finalidade dirigida. (TENREIRO, 1967) Tenreiro, entretanto, poderia ser considerado um artífice, capaz de desenvolver todas as etapas necessárias para a produção de suas peças, o que transformava a necessidade de industrializar sua produção na mais árdua das tarefas de sua carreira de Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 153
empreendedor do mercado de decoração. Com sua loja sofrendo com a concorrência de empresas que, graças à otimização do processo de fabricação de seus móveis, ofereciam preços bem mais atraentes, Tenreiro não resiste e, no ano de 1968, opta pelo encerramento de suas atividades como designer de móveis e passa a se dedicar às artes plásticas. Em entrevista, no ano de 1985, Tenreiro pontua a comparação que fazia entre pintura e design: “A pintura me prende mais, porque na pintura estou mais presente do que no móvel. Crio o móvel, desenho-o, dou-lhe o caminho que deve ter e, feito isso, outro a completa”. (MACEDO, 1985, p. 89) Suas palavras evidenciam um dilema próprio dos artistas que viveram o período de industrialização: o medo de que a produção em série trouxesse uma grande perda de qualidade aos objetos, motivação de movimentos do final do século XIX e início do século XX, principalmente do art and craft de Morris e Ruskin. Em outro momento, próximo de fechar sua loja do Rio, em artigo da revista Arquitetura, em 1967, transparece a sua dúvida quanto à produção de móveis: Mas criar um móvel, por exemplo, não é apenas aquele momento de "inspiração", aquele instante de imaginação formal, que fica marcado no risco, como criação, mas também aquele prolongamento que continua até a realização e até que esse móvel esteja em condições de função e utilidade. (TENREIRO, 1967) Mesmo com sua resistência em produzir seus móveis em série, Tenreiro foi responsável por criar peças esteticamente modernas e por levar aos interiores das casas brasileiras das décadas de 1940, 1950 e 1960 o novo estilo de design que já predominava na Europa desde a década de 1920.
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4. Conclusão Após encerrar seus trabalhos como marceneiro e projetista de móveis, Tenreiro passou a dedicar-se às artes plásticas, pinturas, esculturas e painéis em madeira, algo que, de certa forma, já desenvolvia nos projetos das casas e apartamentos que decorava. Seu compromisso continuou sendo com a forma, com a leveza, as texturas e as cores e não especificamente com o modo de produção. Tenreiro foi um artista plural, suas criações não podem ser divididas em fases ou até mesmo catalogadas pelos elementos inseridos em suas peças. Portanto, verificamos em uma mesma peça a inserção de diferentes materiais e detalhes projetivos que podem caracterizar ao mesmo tempo leveza, textura e organicidade. Embora não tenha desenvolvido seus móveis de forma industrializada, como preconizava o movimento moderno de design e arquitetura, Joaquim Tenreiro entrou para a história do mobiliário brasileiro como um dos precursores do móvel moderno no Brasil e suas peças, embora não tenham sido produzidas em série, significaram um grande passo para a introdução do mobiliário brasileiro na estética modernista do século XX, com o diferencial de uma linguagem nacional.
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Recebido em 24/10/2016. Aceito em 16/01/2017.
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Berenice Azambuja: Viva a Bombacha, Tchê! A perpetuação da tradição gauchesca na composição de autoria feminina Karen Gomes da Rocha27 Resumo: O presente artigo visa à análise de três músicas, cujas letras são de composição de Berenice Azambuja, do álbum intitulado Fogo de chão, da autora e d’Os Açorianos, lançado em 1975. As letras escolhidas são: “Lanceiro negro”, “Querência” e “Lamento de um gaúcho”, as quais são analisadas quanto à manutenção da tradição e à inovação na temática Regionalista e Tradicionalista gauchesca, sob a perspectiva da visão feminina nesse processo. Através da cultura popular, por sua vez, é que foram fundadas as bases e difundidas as ideias que até hoje são parte do acervo cultural memorialístico do povo gaúcho. Assim, em meio a todo o processo de manutenção do ideário relacionado à figura do gaúcho, é importante a reflexão acerca do papel desempenhado pela mulher na guarda e continuidade da tradição, assim como se existe alguma forma de superação dessa significação. A sua importância no meio social, artístico e cultural, como disseminadora dos ideais e costumes gauchescos, muitas vezes, encontra-se sobreposta e quase apagada, haja vista a maior quantidade de homens como representantes da cultura, sendo em maior número, também, os compositores e os intérpretes da música tradicionalista gauchesca do sexo masculino, o que implica dizer que a visão masculina está intimamente ligada à legitimação da figura do gaúcho. Palavras-chave: Tradição; modernidade; Berenice Azambuja; composição de autoria feminina. Abstract: This article aims to analyze three songs, whose lyrics were composed by Berenice Azambuja, from the album titled Fogo de chão, by the author and Os Açorianos, released in 1975. The selected lyrics are "Lanceiro negro", "Querência" and "Lamento de gaúcho", and they are analyzed as for the maintenance of tradition and the innovation in the Regionalist and Traditionalist gaucho’s theme from the perspective of women's vision in this process. Through popular culture, in turn, was founded the basis and widespread the ideas that even today are part of the memorialistic cultural heritage of the gaucho people. So, through all the process of maintenance of the ideas related to the gaucho, it is important to reflect on the role played by women in the custody and the continuity of the tradition, and if there is any possibility to overcome this significance. Their importance in the social, artistic and cultural environment, as disseminators of gaucho’s ideas and customs, is often superimposed and almost erased, given the greater number of men as representatives of culture, and in greater number, too, composers and interpreters of gaucho traditionalist music are male, which implies that male vision is closely linked to the legitimacy of the gaucho. Keywords: Tradition; modernity; Berenice Azambuja; female authorship composition.
Doutoranda em Letras na Universidade de Caxias do Sul – Associação ampla Ucs/UniRitter. Mestra em Letras, Cultura e Regionalidade pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) e graduada em Letras pela mesma instituição. E-mail: kgrocha@yahoo.com. 27
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Saí da minha fazenda E me soltei pelo pago E hoje eu tenho um gaúcho, Para me fazer afago E quando vier os filhos Para enfeitar nosso ninho Mais alegria vou ter E se ele me perguntar Do que se deve gostar Como meu pai vou dizer Churrasco e bom chimarrão Fandango, trago e mulher É disso que o velho gosta É isso que o velho quer. Berenice Azambuja
Em um universo tipicamente gauchesco, de cunho tradicional e de motivos laudatórios, a figura masculina estabelece-se como personificação do heroico, destemido e sempre leal centauro dos pampas, contribuindo para a mitificação do gaúcho, ou, quando enaltece sua liberdade e a não obediência à coroa, estabelece-se tal figura como o patrão dos pagos, o tão elogiado e sempre festejado, literária e musicalmente, monarca das coxilhas. Aqui, pois, estabelece-se a tradição, ao serem enaltecidos os costumes, a terra, a guerra e os feitos heroicos. A manutenção da tradição gaúcha estabelece-se como elo de um povo, o qual visa perpetuar, também por meio da cultura popular, suas histórias, lendas, mitos, danças, declamações, trovas, causos, através de gaiteiros, cantores (e cantoras), declamadores, peões, prendas, trovadores, etc., “o constante renascer de nossas glórias”, em que o tradicionalismo gaúcho é considerado “um estado de consciência, que busca preservar as boas coisas do passado, sem conflitância com o progresso, por cultos e vivências” (LAMBERTY, 1989, p. 22). Dessa maneira, dentre as diversas manifestações culturais, artísticas e literárias, a música desempenha um papel importante no que diz respeito à
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valorização, à preservação e à elevação moral e cultural do Rio Grande do Sul28. Historicamente, em relação às raízes poéticas da história da poesia gaúcha, observa-se que, no Rio Grande do Sul, “as primeiras expressões de cunho regionalista apareceram no cancioneiro popular29. As manifestações literárias pioneiras, por sua vez, remontam à época da Revolução Farroupilha, quando se editaram também os primeiros jornais” (ZILBERMAN, 1992, p. 48), e é tal produção literária que, em conformidade com Bertussi (2012, p. 23), “parece configurar-se como uma possível mostra dos valores vigentes e representar a fonte das raízes de nossa poesia regionalista”. O princípio da literatura liga-se, portanto, à perpetuação da tradição através dos versos, uma vez que sua forma de memorização e disseminação eram muito mais fácil [e eficaz], em detrimento da prosa. Para tanto, Zilberman assevera: As primeiras manifestações literárias no Rio Grande do Sul obedeceram à forma métrica, independentemente do maior prestígio que o verso, de modo geral, gozou até o início do século XX em relação à prosa, as razões dessa preferência deveram-se também à maior facilidade de divulgação. Numa época em que inexistiam editoras de livros, um soneto podia se tornar público por meio da Em conformidade com Lamberty (1989, p. 27), através da materialização do Movimento Tradicionalista Gaúcho, foi fundado, em 24 de abril de 1948, o 35 Centro de Tradições Gaúchas, o primeiro CTG, cuja finalidade, entre outras, seria a de “pugnar por uma sempre maior elevação moral e cultural do Rio Grande do Sul”. 29 Consoante Bertussi (2012, p. 24), “as compilações da literatura oral iniciaram com Carlos Von Koseritz que, dirigindo o jornal Gazeta de Porto Alegre (1880), chamou a atenção para a importância do registro do cancioneiro popular, no exemplar de 23 de janeiro de 1880, no qual iniciou a publicação de quadrinhas anônimas, seguindo com esse trabalho até 12 de março do mesmo ano. Em 1883, Sílvio Romero abre, no seu Cantos populares do Brasil (1883), um capítulo intitulado ‘Silva de quadrinhas, coligidas no Rio Grande do Sul por Carlos von Koseritz’”. O jornalista alemão radicado no Rio Grande do Sul foi o pioneiro na coleta e no registro de tais composições. Seguiram-se ao seu trabalho várias outras compilações da literatura oral, entre as quais, consideradas mais completas, estão o Cancioneiro guasca, de Simões Lopes Neto (1910), o Cancioneiro da Revolução de 1835, de Apolinário Porto Alegre (1935) e o Cancioneiro gaúcho, de Augusto Meyer (1952). 28
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declamação ou aparecer num rodapé de jornal, de modo que, desde o começo, os literatos privilegiaram o gênero mais adaptado às modalidades disponíveis de comunicação. Por outro lado, a poesia se alimentou também da contribuição oral: cultivou-se a familiaridade com o cancioneiro popular, que se propagou enquanto se mantiveram vivos a cultura rural de onde proveio e os laços com a produção trovadoresca do Prata (ZILBERMAN, 1992, p. 11). Através da cultura popular é que foram fundadas as bases e difundidas as ideias que até hoje são parte do acervo cultural memorialístico do povo gaúcho. Tais manifestações, as quais deram início, tardiamente, ao processo literário no Rio Grande do Sul, e que coincidem com o Romantismo, têm como gênese a própria história da consolidação de um povo e de sua identidade. Em conformidade com Guilhermino Cesar, o começo tardio decorreu do fato de que a ocupação oficial da terra, [...], data de 1737, e o povoamento, seu corolário, natural, acompanhou os azares das guerras, das lutas de fronteiras, enquanto o tipo gaúcho se caldeava condicionado pelo pastoreio, nos campos indivisos. Não é de estranhar, portanto, que a sociedade continentina se houvesse retardado na manifestação artística do seu estilo de vida (1964, p. 203). Inicia-se, então, a literatura gaúcha com o cancioneiro popular, e tal movimento estende-se ao Partenon Literário que, através de seus agremiados, desempenhou “um papel central não apenas em Porto Alegre, mas em toda a Província, pois contava com sócios na maioria das cidades do interior” (ZILBERMAN, 1992, p. 13). Esse movimento iria além da atividade poética, permitindo, assim, a constituição de um “sistema complexo de intercâmbio de idéias e produções literárias, bem como a consolidação de uma cultura com características próprias” (ZILBERMAN, 1992, p. 13). As criações literárias, ainda conforme a autora, Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 160
podem ser reunidas em duas grandes vertentes temáticas, ambas decisivas para os estágios ulteriores de nossa cultura: de um lado, apresenta-se a linhagem romântica, explorando os assuntos relacionados à infância, morte e amor desenganado; e, de outro, constata-se a apropriação dos motivos regionais, seja quando da utilização épica do modelo humano rio-grandense oriundo dos pampas, seja enquanto memória do passado glorioso da Província, exaltando-se o índio como matriz do campeiro e a Revolução Farroupilha, marco da História local (p. 14). Percebe-se, assim, o estabelecimento dos traços da tradição que são perpetuados na literatura e em outros meios artísticos e, no caso das Letras sul-rio-grandenses, a incorporação das sugestões locais foi o processo mais importante. Em meio a todo o processo de manutenção do ideário relacionado à figura do gaúcho, vale refletir acerca do papel desempenhado pela mulher na guarda e continuidade da tradição, assim como se existe alguma forma de superação dessa significação. A sua importância no meio social, artístico e cultural, como disseminadora dos ideais e costumes gauchescos, muitas vezes, encontra-se sobreposta e quase apagada, haja vista a maior quantidade de homens como representantes da cultura, sendo em maior número, também, os compositores e os intérpretes da música tradicionalista gauchesca do sexo masculino, o que implica dizer que a visão masculina está intimamente ligada à legitimação da figura do gaúcho. Na página do Movimento Tradicionalista Gaúcho, na internet, na seção intitulada “História do RS”, há um link nomeado “A mulher”, no qual Maria Izabel T. de Moura30 discorre sobre a minimização do papel da representante do sexo feminino dos pagos, mostrando que ela é superada pela forte presença masculina: 30
Vice-presidente de cultura do MTG-RS.
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A história da humanidade constata a sujeição da mulher em relação ao homem, o que não anula a existência de mulheres, que se destacaram naquelas épocas remotas, nos mais diferentes setores das atividades sociais, muito embora, pouquíssimo se tenha registrado. Essa é a grande razão da sociedade falar em machismo & feminismo. O feminismo, como movimento organizado, surgiu de fato, na Revolução Francesa e a história da emancipação da mulher tomou vários rumos. Atualmente, a mulher abandona, cada vez mais, o galope dos cavaleiros andantes de um ideal meio lírico de libertação, vendedor de ilusões, para posicionar-se lado a lado dos homens na estrada da grande aventura empregnada (sic) de desventuras. A sociedade rio-grandense tem tradição machista, pois é originária de uma oligarquia militarizada, que demarcou fronteiras, através de lutas e de guerras. A formação da mulher, desde a mais tenra idade, é direcionada para cuidar dos afazeres domésticos, rezar, enquanto aguarda o casamento com o noivo, que era escolhido pelo pai. A liderança singular da mulher, como mola-mestra do lar, não pode ser anulada e tão pouco (sic) esquecida pela sociedade gaúcha, pois sua participação ativa sempre deteve a estrutura da família e da sociedade. Não podemos esquecer, que a mulher sempre trabalhou nas estâncias, assegurando a economia do Rio Grande do Sul, enquanto seu pai, esposo e filho saiu (sic) para defender as fronteiras e os ideais rio-grandenses (MOURA, s.d.). E diga-se que nem contemporaneamente deve-se descartar a valia do papel da mulher em qualquer segmento que seja, quanto menos descartá-la. Prima-se pela diferença, não pelo binarismo e sectarismo das questões de gênero social. A mulher tem papel fundamental no contexto da formação histórica, social Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 162
e cultural do Rio Grande, posto que “voltando o olhar sobre nosso heroico passado, constatamos que, mesmo durante o dramático e sangrento decênio farroupilha, o homem nunca esteve só: a providência divina colocou ao seu lado uma grande auxiliadora e fiel companheira, que lhe foi idônea” (MOURA, s.d.) e que traz consigo toda uma peculiaridade a respeito da vivência transposta em sua subjetividade. Pense-se que a figura feminina também é, foi e será responsável pela preservação e disseminação do sentimento regionalista, cujas raízes são oriundas deste mesmo solo, o que faz passível de ser questionado o olhar comumente enfatizado sobre a construção da identidade do gaúcho. Qual o papel da mulher, então? Ao se tratar de música popular tradicional (ou música regional) do RS, em pesquisa realizada31, verifica-se a carência de maiores estudos no que concerne à produção popular, em geral e, mais especificamente, à presença de mulheres (intérpretes e/ou compositoras) nesse mesmo meio cultural. Não cabe aqui discorrer sobre as razões de tal silêncio e carência de pesquisas, mas antes analisar algumas das manifestações culturais mediadas e/ou alavancadas através e pela música regional, nas composições de Berenice Azambuja. À compositora cabe o papel de ser a mediadora cultural, enquanto a música é o seu instrumento de mediação. Aqui tem-se como foco a composição e não a melodia. O corpus de análise do presente ensaio é composto por três músicas, cujas letras são de composição de Berenice Azambuja, do álbum intitulado Fogo de chão, da autora e d’Os Açorianos, lançado em 1975, e as letras escolhidas são: “Lanceiro negro”, “Querência” e “Lamento de um gaúcho”. Essas serão analisadas quanto à manutenção da tradição ou à inovação na temática Regionalista e Tradicionalista gauchesca. Foi realizada pesquisa em bancos de teses, dissertações e em periódicos, com o intuito de localizar estudos acerca da compositora e intérprete Berenice Azambuja. Contudo, não foram localizados quaisquer materiais disponíveis. 31
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A primeira composição, “Lanceiro negro”, tem como pano de fundo a recuperação da temática bélica, especificamente do tradicional episódio da Revolução Farroupilha em que os lanceiros negros, grupamento do exército farroupilha, formado por escravos convocados para lutar ao lado da revoltosos, desempenhou um importante papel durante os 10 anos da contenda militar. Muitos dos estancieiros, cuja revolta originou-se devido à política implantada pelo Império Brasileiro, desvalorizando a produção e comercialização do charque e couro gaúchos, usavam mão-de-obra escrava em suas fazendas. Ao aderir a (sic) revolta, o estancieiro convocava seus escravos para lutar ao seu lado, engrossando as fileiras farroupilhas contra as tropas imperiais. Como motivação, os escravos recebiam a promessa de que estariam livres, e o preço da liberdade seria pago com a luta ao lado dos republicanos gaúchos até a definitiva implantação da República Rio Grandense e o fim do conflito (CABRAL, 2013.). Os negros tiveram papel de suma importância na Revolução, não sendo soldados comuns, mesmo nunca tendo feito parte de um corpo militar, estavam acostumados à vida do campo. Observe-se: Muitos tinham grande habilidade em cima de um cavalo, pois já trabalhavam domando animais nas estâncias, enquanto outros eram exímios lutadores com as lanças e facas em punho, além de usarem muito bem a boleadeira. Isto garantia ótima mobilidade ao batalhão e um grande poder destrutivo, o que transformava-os em uma espécie de batalhão de choque dos farroupilhas (CABRAL, 2013). Na primeira estrofe, o lanceiro, em tom de incitamento ao entusiasmo do espírito guerreiro, é convidado à luta e é considerado, pela voz que o invoca, como “irmão”, posto que participara ativamente da guerra. Na segunda e terceira estrofes, é explicado como vivenciar o combate, sendo necessário “coragem” e “ação”, quando se luta pela terra, no caso o Rio Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 164
Grande do Sul, e o preço a pagar é a vida ou a morte. São explicitadas nessas três estrofes a bravura, a guerra, a coragem e a honra pelo “pedaço de chão”, motivados pela Revolução: Vamos pro campo da luta irmão Vamos pro campo da luta irmão Que a luta no pampa é coragem e ação Que a luta no pampa é coragem e ação Que a vida e a morte é um pedaço de chão Que a vida e a morte é um pedaço de chão Para dar maior veracidade à composição, em relação à participação dos lanceiros negros, a emissora remonta à história e dela faz uso acerca do episódio, utilizando-se da figura histórica de Bento Gonçalves, como trazido à tona na quarta estrofe: Conta a história quem tem os heróis Quatrocentos lanceiros de cor Cavalgaram com Bento Gonçalves Buscando justiça e sangue custou Nessa estrofe, portanto, é reforçada a fidelidade e a bravura dos lanceiros ao ideal farroupilha, culminando em um massacre, ao perseguirem-no e, em tom de realismo, menciona-se a busca por justiça. Em conformidade com Cabral (2013): Além disto, quando uma estância de uma pessoa favorável ao Império era invadida, os escravos eram “libertados” pelos republicanos e convocados para o exército farroupilha. Em pouco tempo, o 1° Corpo dos Lanceiros da primeira linha, criado em 1836, tinha mais de 400 homens a serviço da Revolução, e em 1838 foi criado o 2° Corpo de Lanceiros, desta vez com exatos 426 homens. A maioria era formada por ex-escravos, mas nas fileiras também contavam com mestiços e “índios”. Ainda nas estrofes seguintes – quinta, sexta, sétima e oitava -, é enaltecida a figura do negro livre, o qual é invocado como “patrício”, sendo colocado em um posto de igualdade pela Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 165
voz da emissora, agora a cantar tal liberdade. Assim, idealiza-se, nas estrofes finais da canção, sétima e oitava, o massacre sofrido pelos lanceiros, quando é mencionado o fato de que o “pampa viveu” e o “chão está lotado e agora é só teu”: Negros e livres qual Deus os criou Negros e livres qual Deus os criou Negros e livres qual Deus os criou Vem patrício comigo cantar Vem patrício comigo cantar Agora que o pampa viveu, esqueceu Agora que o pampa viveu, esqueceu Este chão está lotado e agora é só teu Este chão está lotado e agora é só teu. Na segunda canção, intitulada “Querência32”, o próprio título já sugere saudosismo, posto que essa é também a denominação dada à pátria e ao lar, quando longe dela/dele o tipo gauchesco se encontra. Nos versos, de forma explícita e com linguagem simples, encontram-se imagens que traduzem o telurismo presente na canção, como em “é o belo anoitecer lá na querência”, “os verdes pampas ao florir da primavera”, “é um jardim nosso rincão”, que corroboram a ligação do gaúcho com a terra e a delimitar o espaço campeiro, aqui seja com o estreitamento da “querência”: É belo o anoitecer lá na querência O gaúcho e a cordeona A viola, uma canção A lua passeando no infinito Com seu brilho tão bonito Querência, s. Lugar onde alguém nasceu, se criou ou se acostumou a viver, e ao qual procura voltar quando dele afastado. Lugar onde habitualmente o gado pasta ou onde foi criado. Pátria, pagos, torrão, rincão, lar. (In: Minidicionário guasca, de Zeno e Rui Cardoso Nunes, p. 131). 32
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Clareando nosso chão Lá na querência Quando vem clareando o dia A passarada em sinfonia Diz bom dia ao astro celestial O quero-quero com o seu grito lendário Completa todo cenário deste grande festival Os verdes pampas ao florir da primavera Embelezam nossa terra É um jardim nosso rincão O poeta que amava a natureza Cantava sua beleza Nos versos desta canção Não há, não há noite mais azul, azul Do que as noites do Rio Grande do Sul Há ainda, na canção, elementos que ajudam a compor o cenário: “A passarada em sinfonia”, “O quero-quero com o seu grito lendário”; e a tipificar o tipo gauchesco com “O gaúcho e a cordeona / A viola, uma canção”, “O poeta que amava a natureza / Cantava sua beleza / Nos versos dessa canção”, em que o tipo masculino é o transmissor da mensagem e do sentimentalismo. A composição finda por enaltecer e idealizar ainda mais o espaço, amplificando-o, e, com a repetição de vocábulos, reforçase a valorização do mesmo: “Não há, não há noite mais azul, azul / Do que as noites do Rio Grande do Sul”. Na terceira canção, “Lamento de um gaúcho”, a temática de cunho mais intimista faz referência ao cansaço da vida errante que o emissor, o gaúcho, leva, sem ter morada certa ou descanso. O gaudério livre e descompromissado de outrora, nessa
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composição, não é mais o mesmo, posto que a liberdade também tem seu preço e seu desejo é de se estabelecer e ter ocupação: Vivo campeando alegrias pelos campos da querência Estou no meio da existência sem lugar pra chimarria33 E as cacimbas que eu encontro pelas sombras das estradas São saudades derramadas das tristezas de um olhar A linguagem, por sua vez, mostra-se mais elaborada e, com o uso da primeira pessoa do singular, intensifica o tom reflexivo acerca de sua existência. A figura do gaúcho, então, entra em crise existencial. Aqui há, de certa forma, uma quebra com a tradição, em que a concepção de encarar a vida campeira seria a de alegria e diversão, mas que, como pode ser verificado já na primeira estrofe, é de posição contrária: Na segunda e terceira estrofes, por sua vez, o tipo gauchesco é retomado como “o homem que canta triste”, definição do historiador Aurélio Porto (LAMBERTY, 1989, p. 12), que teria advindo do guarani [“guahú”, canto triste ou uivo do cão] e do quíchua [“che”, gente], compondo, dessa maneira, a palavra gaúcho e a sua carga semântica, a qual é ressignificada, pois na terceira estrofe o lamento se intensifica em relação ao destino errante, com a possibilidade de esquecimento, e ressentese através da “viola choradeira”, visto que “as mágoas que eu carrego são lembranças chimoronas”: Na garupa levo sempre a viola choradeira Minha amiga companheira que tem cordas pra chorar Pois as mágoas que eu carrego são lembranças chimoronas34 Que eu carrego nas caronas e desabafo meu cantar
33
Variação de chimarrita. Não foi encontrado significado para este vocábulo. Contudo, em pesquisa na internet, foi encontrada uma ocorrência, em língua espanhola, e, pelo contexto, significava “resmungona”. Na letra da música, pode significar lembranças amargas, tristes e que insistentemente tornam a perturbar; pode configurar-se como um empréstimo linguístico do espanhol. 34
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Campereando vida afora sem ter rumo definido Sou o rebenque35 esquecido sou apeiros36 pelo chão Vou seguir a trote lento tentando clavar de sorte Procurando quem se importe com o vazio no coração. Outro elemento, mesmo não explícito, é o cavalo, sempre presente na tradição. O emissor, então, “na garupa” e ao “seguir em trote lento”, na figura do centauro dos pampas, aqui se desmitifica, mesmo que o seu vínculo, sempre tão forte, esteja presente. Não é mais o destemido, o guerreiro, o desbravador, mas, antes, o ser desgastado, reflexivo e dotado de sentimentos, mesmo que ainda esteja vinculado ao seu companheiro mais fiel, à sua extensão: Na última estrofe, por conseguinte, há a explicitação da razão de se estar triste e do descontentamento por que passa o personagem da canção. Não há, pois, tom laudatório em relação à vida do tipo gaúcho, nem enaltecimento do “desgarrado”. A voz do emissor continua sendo a masculina (“cansado”), assim como as lidas e trabalhos do campo caracterizam o masculino: “peão” e “tropeiro”, logo a manutenção da tradição, em oposição à temática, também encontra-se presente nos versos seguintes: Pois cansado desta vida de ter o céu por coberta Se eu achar querência certa não vou mais cantar saudade Vou cantar nova alegria, vou ser tropeiro, ser guia Ser até peão por dia, mas vou ter felicidade. À guisa de conclusão, é possível perceber que nas composições analisadas, todas escritas pela tradicionalista Berenice Azambuja, é a voz masculina que sobressai e toma Rebenque, s. Chicote curto, com o cabo retovado, com uma palma de couro na extremidade. Pequeno relho. (In: Minidicionário guasca, de Zeno e Rui Cardoso Nunes, p. 134). 36 Apeiro, “sm (de apeirar) 1 Agr Peças de apeirar. 2 Arreamento completo, ou parte dele. 3 Trem de lavoura e abegoaria. 4 Os instrumentos necessários a um mister; aprestos, preparos, utensílios”. Disponível em: <http://www.dicio.com.br/cuera/>. Acesso em: 14 de ago. 2014. E, conforme o Minidicionário Guasca: aperos, s. Arreios. (p. 13). 35
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espaço para a manutenção da tradição. Embora compostas por uma mulher, as canções dão ênfase ao tipo gauchesco tradicional, em sua maioria, mas que, em “Lamento de um gaúcho”, terceira composição analisada ocorre uma certa inovação em relação à figura mitificada do centauro dos pampas, posto que o tom de enaltecimento já não mais é trazido à tona. Poder-se-ia dizer que, em relação à tradição, ter uma mulher como compositora e intérprete de música regionalista já se configura como um avanço, uma quebra e uma inovação em um universo tão masculino (e masculinizado), contudo, a visão e a emissão permanecem inalteradas, contribuindo para a perpetuação do mito do gaúcho e que, certamente, é a intenção de quem defende a tradição.
Referências AZAMBUJA, Berenice. Lamento de um gaúcho. In: AZAMBUJA, Berenice; AÇORIANOS, Os. Fogo de chão. s. l.: Stereo, 1975. 1 CD. Faixa 9. AZAMBUJA, Berenice. Lanceiro negro. In: AZAMBUJA, Berenice; AÇORIANOS, Os. Fogo de chão. s. l.: Stereo, 1975. 1 CD. Faixa 3. AZAMBUJA, Berenice. Querência. In: AZAMBUJA, Berenice; AÇORIANOS, Os. Fogo de chão. s. l.: Stereo, 1975. 1 CD. Faixa 5. BERTUSSI, Lisana. Poesia gauchesca: as fontes populares e o Romantismo. Caxias do Sul: Educs, 2012. CABRAL, Vinícius. Os lanceiros negros da Revolução Farroupilha. Historiazine [online]. 06 mar. 2013. Disponível em: <http://www.historiazine.com/2013/03/os-lanceiros-negros-da-revolucaofarroupilha.html>. Acesso em 20 de ago. 2014. CESAR, Guilhermino. A vida literária no Rio Grande do Sul. In: PRADO, Aurea. et al. Rio Grande do Sul: terra e povo. Porto Alegre: Globo, 1964. p. 203226. LAMBERTY, Salvador Ferrando. ABC do tradicionalismo gaúcho. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1989. MOVIMENTO TRADICIONALISTA GAÚCHO. Disponível em:
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Recebido em 29/08/2016. Aceito em 16/01/2017.
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Literatura e História: As narrativas presentes na historiografia de Goiás37 Rogério Max Canedo38 Resumo: Propôs-se neste texto a análise da obra Cegou o Governador, de Bernardo Élis, na tentativa de verificar como o referido romance contribuiu para sedimentar na literatura os estigmas de decadência e isolamento que há muito vem sendo afirmados na Historiografia de Goiás, uma vez que o enredo dessa ficção se debruça sobre essa capitania central do país dos primeiros anos do século XIX. Para tanto, foi-nos mister refazer os caminhos outrora percorridos pelos elaboradores da história local, tais como os viajantes e cronistas, verificando como o romancista goiano se apropriou do material elaborado por eles para compor sua obra de ficção. Nesta perspectiva percebe-se que Élis foi, antes de tudo, um pesquisador assíduo das fontes primárias e secundárias que lhes revelaram os costumes de sua região, utilizando em grande medida, via estética, os discursos proferidos pelos percussores da história de Goiás, e que, em suas mãos ganharam aspectos singulares de um perfeito consórcio entre conhecimento histórico e saber artístico. Palavras-chave: História; Literatura; Romance; Goiás.
Abstract: The purpose of this text is to present an analysis of the novel Chegou o Governador, by Bernardo Élis, in the attempt to verify how the referred novel contributed to settle in literature the stigmas of decay and isolation which from a long time have been held in Goiás’ Historiography, considering that this fiction’s plot looks into the country’s central captaincy in the first few years of the 19th century. Therefore, it was necessary to retake the steps once given by the local history’s developers, such as travelers and chroniclers, verifying how the Goiano novelist appropriated of the material elaborated by them to make his work of fiction. Thus, it is possible to see that Élis was, before all, an assiduous researcher of the primary and secondary sources, which revealed to him the manners of his region. In this way, he utilizes in great proportion, through the aesthetic, the speeches made by the forerunners of Goiás’ history and which in his hands achieved singular aspects of a perfect union between historical knowledge and artistic lore. Keywords: History; Literature; Novel; Goiás.
Pesquisa subsidiada pela agência CAPES. Doutor em Literatura, pela Universidade de Brasília. Membro pesquisador dos grupos de pesquisa Mayombe: Literatura, História e Sociedade e Literatura e Modernidade Periférica (UnB). E-mail: max_canedo@hotmail.com. 37 38
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As narrativas se caracterizam por formar no leitor um ambiente de memórias provenientes dos mais diferentes acontecimentos, factuais ou não. Através dessa ferramenta o homem se vê munido da capacidade de recuperar um tempo, da qual se vale para a reconstrução de seu passado, tentando se preencher daquilo que não possui, a amplitude do conhecimento de si mesmo. Assim, desde o início das civilizações, registros narrativos têm sido promovidos com o intuito de preservação da própria espécie humana, esta que se vê alicerçada nas bases de seus antepassados e de sua própria história. Com o passar dos tempos essas narrativas foram tomando formas mais pragmáticas, tornando-se ciência, ganhando contornos particulares de linguagem documental. Em especial, coube à história o encargo de trazer à luz do presente uma realidade que já não é mais a do aqui e agora, a realidade do passado. Desde então a Historiografia, como prática dos pesquisadores da história, se debruça sobre a infindável tarefa de (re)construção do tempo, (re)paginação dos fatos e (re)elaboração do passado. Pensando assim, o presente trabalho propõe traçar o caminho que possibilite visitar os textos fundadores da história de Goiás confrontando-os a outras fontes, desta vez literárias, para então percebermos como as duas áreas, história e literatura, se apropriaram da matéria social goiana. Porém, diante dos diversos aspectos que afloram das narrativas sobre a história de Goiás é mister delimitar alguns sobre os quais se debruçou a Historiografia goiana, em especial quando do retrato da Capitania na primeira metade do século XIX. Neste aspecto privilegiam-se aqui os retratos que foram registrados acerca dos estigmas da “decadência” e do “isolamento” pelo qual passou Goiás especialmente durante o século em questão. Mais especificamente, a partir do século XVII, em Goiás, a Historiografia foi sendo formada, e coube aos seus primeiros desbravadores, como Bartolomeu Bueno – o temível Anhanguera – e sua comitiva, promover os primeiros registros desta distante terra, quando nela chegaram em 1625. Alguns anos depois seu Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 173
filho embrenha-se pelo mesmo sertão preenchendo mais algumas páginas da história da terra dos Guayazes. Este astucioso desbravador, que diferentemente de seu pai não levou das novas terras nenhum bem que caminhasse por si só, mas o pôs na algibeira, teve relevante participação na construção do que viria ser um grande capítulo da história do povo goiano e da cobiça de uns outros tantos que se “goianizaram”, enchendo-se de um espírito aventureiro em busca de grandes riquezas. Em especial, no século XIX, outras comitivas, quase sempre solitárias, começaram a construir a história dos goianos, eram elas compostas, quase sempre, por um viajante europeu e seu auxiliar. Esses viajantes foram responsáveis pela confecção de diários que configuraram por muito tempo as descrições praticamente mais completas das novas terras. Entre eles estão Augusto de Saint-Hilaire, Luiz D’Alincourt e Francis Castelnau; pessoas ligadas à administração da Capitania, como o exgovernador Alencastre; militares como Cunha Mattos e pessoas ligadas ao Clero, como o padre e poeta Silva e Sousa, que também contribuiu para as páginas da Historiografia. Já no século XX outros historiadores surgiram, como o padre Luiz Palacín e o pesquisador e professor Nars Chaul, debruçando-se sobre os estudos da história goiana. Vale lembrar que no século XX se verifica um número expressivo de historiadores dedicados à manutenção ou revisão dos fatos outrora historiografados em Goiás. Pensando primeiramente nas ciências históricas é preciso compreender a função do historiador acerca da matéria narrada; de que lugar ele fala; quem ele é e o que ele relata. O historiador, antes de tudo, é um recuperador do tempo, que nunca é o seu. Para essa tarefa ele se vale da linguagem e a manipula segundo suas concepções, dando-lhe condições para que surja uma narrativa das memórias pesquisadas e articuladas. O historiador torna conciso aquilo que o tempo lhe deu de forma fragmentada, procura se imparcializar, não sendo plenamente possível por ser
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homem, por ser passível de subjetividade e de impressões abstratas. Nossas histórias de vida são amontoados de impressões erráticas, de pulsões incompletas, de degenerações da memória. Alguém ao tentar reconstruir o passado acaba por transformá-lo em generalizações, em coisas que existiram e às vezes em coisas que sequer existiram. E que passaram a existir, sem que ocorra qualquer espanto com isso (BERTRAN, 1998, p. 34). Durante os longos anos em que os viajantes percorriam os caminhos de Goiás e, posteriormente, os estudiosos das ciências históricas os trilhavam em suas pesquisas, pode-se observar certa recorrência no uso dos termos “decadência” e “isolamento”. Principalmente para os primeiros viajantes era difícil conceber a ideia de uma terra em desenvolvimento, quando se descende de uma realidade tão oposta e de outros vislumbres. As comparações eram inevitáveis, quase sempre impedindo um olhar mais justo sobre a realidade que era tão outra em Goiás. Posteriormente, os estudiosos que se dedicaram à Historiografia goiana usaram com bastante recorrência os primeiros relatos e pouco se diferenciaram em suas perspectivas, reproduzindo “verdades” como a falta de mão-de-obra, o ócio e a preguiça em que vivia o povo goiano, que não se dava aos serviços de maior esforço; as dificuldades de se transpor as barreiras da distância dessa nova terra devido às estradas intrafegáveis, sobretudo em períodos de chuva; as pontes que davam acesso à maioria dos arraiais eram de uma calamitosa situação; a falta de comunicação com outros centros, a pouca produção que se estabelecia na terra onde outrora minava ouro, o despovoamento e o escasso esforço de investimentos na agricultura e pecuária eram pautas. Esses conceitos foram sedimentando na Historiografia os estigmas de “decadência” e “isolamento” que corresponderam, em certa medida, ao espírito local. No início do século XIX passou em viagem a Goiás Augustin François César Provençal de Saint-Hilaire. Este francês Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 175
e professor de botânica esteve no Brasil entre os anos de 1816 e 1822, mas foi por volta de 1819 que empreendeu sua viagem e suas impressões sobre a terra goiana. Seus relatos em um diário de viagens concentram-se no período posterior à atividade da extração do ouro, assim o retrato da capitania pós-aurífera é claramente percebido por uma visão que abunda na perspectiva de escassez de toda sorte de elementos que pudessem tornar a terra de Goiás desejosa aos olhos dos viajantes. O redator expõe com minúcias o que muito foi reproduzido na Historiografia goiana acerca dos anos posteriores à geração mineradora. Ouro Fino apresenta agora um aspecto de triste decadência. Todas as casas estão semi-arruinadas, e várias delas se acham desabitadas. Sua igreja, filiada à paróquia de Vila Boa, não tem melhor aparência que as casas. As poucas pessoas que ainda vêm nesse pobre arraial vivem de um modesto comércio de porcos e de magra renda de algumas vendinhas miseráveis (SAINT-HILAIRE, 1975, p. 48). Para o francês tal situação acarretava uma série de desencontros em Goiás e propiciava a falência de qualquer perspectiva de melhoria. Essa imagem deságua em outra, a do isolamento, frequentemente utilizada como fator para a total estagnação dos meios com os quais os goianos pudessem sair da situação em que se encontravam. Para Saint-Hilaire dificilmente os homens investiriam, naquela época, na agricultura de exportação, tamanho era o isolamento daquele ermo lugar, onde o comércio se dava apenas internamente entre os colonos e tinha pouquíssimas chances de vencer a barreira da distância. Em 1824 Raymundo José da Cunha Mattos viaja sobre o interior da Capitania. O militar efetua tal façanha no período em que foi Governador das Armas em Goiás, em 1823, permanecendo no cargo até ser eleito deputado da província. Em sua viagem o português fez um levantamento da capitania e nele o redator fala sobre a escassez da agricultura, que tanto poderia ser cultivada em solos tão férteis como os de Goiás. Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 176
A agricultura, se é que tal nome pode se dar aos trabalhos rurais da província de Goiás, acha-se no maior desprezo e abatimento, que nunca teve em país algum civilizado. [...] Esta carestia mostra a escassez do gênero e, por conseguinte desvanece a desculpa daqueles que dizem que não trabalham porque não podem vender os frutos que colhem (MATTOS, 1979, p. 75/6). Outro viajante que muito se dedicou na descrição das novas terras foi Luiz D’Alincourt. Militar, nascido no final do século XVIII, faz uma vigem de Santos, em São Paulo, à Cuiabá, no Estado do Mato Grosso, partindo no ano de 1818 e tendo término no ano seguinte. Para o pesquisador, Goiás padecia dos mesmos maus pelos quais se dedicaram a escrever os viajantes contemporâneos, no entanto, levanta uma série de outros fatores como a política e os costumes locais que apresentavam uma Capitania que pouco motivo tinha para prosperar. Mas é na falta da atividade agrícola e na escassez de mão-de-obra que os redatores dos diários de pesquisas tiveram dedicada atenção: [...] as fôrças estavam fracas, e não podiam ser divididas; a escravatura entrou a padecer cada vez mais pela falta do sustento precioso, de que os Senhores, com máxima errada, se desviavam por lhes consumir uma grande parte, dos já diminutos jornais, pois tudo lhes fazia falta para a manutenção de seu fausto aparente; e acrescentando mais a falsa política, com que proibiam os casamentos dos escravos; e desta forma uma boa parte dêstes infelizes pereceu com o pêso do trabalho, e da miséria assim acabaram todas as grandes casas, que firmavam o seu forte na Mineração; e o luxo na Capital, a ociosidade e a falta de meios para se exportarem alguns gêneros de Agricultura, têm finalmente aproximado Goyaz à sua ruína final (D’ALINCOURT, 1975, p. 114). Aparece com grande importância, na Historiografia, o geógrafo e ex-governador da Província de Goiás, José Martins Pereira de Alencastre. Seu trabalho, publicado pela primeira vez Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 177
em 1864, retrata a situação da política, economia e sociedade goiana nos anos que compreendem de 1625 a 1824. O que se verifica em Alencastre é a dificuldade de se romper com o estigma do isolamento, tão impregnado pela Historiografia goiana. No governo de Dom Francisco de Assis Mascarenhas, por exemplo, uma das principais preocupações era a de findar as distâncias através das navegações e por conseqüência desenvolver a Capitania via escoamento das mercadorias. Ao apontar esse desejo do ex-administrador goiano, Alencastre explicita as dificuldades antes relatadas acerca do desenvolvimento agrícola de Goiás naquele século, reforçando a pouca perspectiva de ascensão a que se encontrava a província. Estabelecer com o Pará relações comerciais, por via do Tocantins e do Araguaia, era seu grande desiderato, porque ele via que Goiás produzia bem o algodão, o fumo, o açúcar, o café e o trigo, e não podia permutar esses gêneros, nem dar extração aos produtos do gado, sendo uma província essencialmente criadora, para ter consumidores e fregueses carecia de meios fáceis de transporte (ALENCASTRE, 1979, p. 304). Os anos passam e por muito tempo permaneceram intocáveis os estigmas de “decadência” e “isolamento”. Historiadores do século XIX e grande parte dos que publicaram no vasto século XX reproduziram com veemência a situação estigmatizada da Capitania. A história do povo goiano ficou assim alicerçada pela visão daqueles que primeiro a transpôs para seus diários e, em sua totalidade, escrita por punhos europeizados, como vimos anteriormente. Assim, é no século XX que outros pesquisadores surgiram, a fim contribuírem mais cientificamente com a Historiografia, é o caso do padre, pesquisador e professor universitário Luiz Palacin. Natural da Espanha, esse moderno historiador não deixa, entretanto, de reproduzir certa visão há muito historiografada. Neste aspecto, Goiás ainda recebe a confirmação de seus estigmas, com a ressalva de serem agora preenchido de uma tentativa de Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 178
explicação dos fenômenos ocorridos, o que antes não acontecia por se tratar basicamente de relato de fatos. A nova configuração que adquire a Capitania com a decadência é a ruralização da vida: de uma população radicada, quase exclusivamente, em centros urbanos – por pequenas que estas povoações fôssem – passa-se a uma dispersão atomizada da população pelos campos. Realizase a transmutação, por toda a geografia de Goiás na segunda década do século XIX, encontra-se carcaças de antigas populações mineiras outrora cheias de vidas, o capim cresce nas ruas, a maior parte das casas abandonada por seus habitantes se desmancham e até as igrejas, a começar por suas torres, vão caindo aos pedaços (PALACIN, 1972 p. 156). Por fim aparece a figura do pesquisador e professor Nasr Fayad Chaul como definitiva contestação à Historiografia que fora montada durante o século XIX e que reproduzia, com fidelidade extremada, os estigmas causadores da total desolação em Goiás. Perpassando vários anos da história, Chaul explora as camadas sociais e principalmente políticas, a fim de contestar a formação dos pilares da Historiografia, feitos principalmente sobre os primeiros séculos de Goiás. Do auge da extração aurífera aos tempos ditos modernos, o pesquisador vai apontando lacunas nos discursos da história que possibilitam, no mínimo, um olhar mais atento sobre os fatos relatados outrora. Partindo da análise de vários estudiosos, trilhando os caminhos da Historiografia, tendo como escolha de corpus tanto as fontes primárias quanto as fontes secundárias, o historiador apresenta outra visão para a Historiografia e sugere que a sociedade, e principalmente as questões econômicas da Capitania, sejam vistas também de outra forma. Assim, “na sociedade goiana pós-mineração, houve o esgotamento de uma forma de produção e a substituição por outras atividades econômicas sem que isto tenha implicado em decadência propriamente dita.” (CHAUL, 1997, p. 18). Ainda relata que, Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 179
Acreditamos assim que o conceito de decadência é uma representação que foi gestada pelos cronistas, governadores de Província e, posteriormente, reproduzida pela historiografia goiana, com base no isolamento da Província, por meio da visão europeizante dos que vieram a Goiás e do que pensavam ter existido (o fausto e a riqueza) na sociedade mineradora (op. cit. p. 76). Percebe-se claramente as oscilações conceituais da história de Goiás ao longo dos anos e, em particular, nesta nossa análise, no período que corresponde ao vasto século XIX. Posteriormente, esse mesmo percurso é retomado, agora nos finais do século XX, para então ser contestado, o que vimos por meio de pesquisadores como Chaul. Neste aspecto retomamos a discussão sobre a narrativa de memórias, que por ser linguagem faz do fato um objeto passível aos vários olhares. Pensando assim, o historiador, como qualquer ser que pretende reconstruir algo, o fará por meio da linguagem, que é utilizada, neste caso, para repor um tempo que nunca é o do narrador; o fato sempre se distanciará em maior ou menor medida de quem o descreve. Essa recuperação deverá obrigatoriamente contar com elementos muitas vezes abstratos que compreendem a formação de um discurso maior, no caso das ciências históricas conhecido por narrativa factual. Com isso a linguagem possibilita ao seu manipulador construções diversas de um ou mais contextos, daí muitas vezes os discursos dos historiadores, que compreendem os dois séculos citados, serem em alguns momentos tão distintos. Pensando assim, A História-arte é sobretudo uma narrativa de acontecimentos, que os recria como se fossem presentes. Fazendo do historiador “um contemporâneo sintético e fictício” do que ocorreu, fornece-nos imagens do passado, recuperado, tornado visível. Ela não se exime, portanto, do esforço da imaginação projetiva, que acusa a vivência particular do historiador, parente próximo do artista (NUNES, 1988, p. 10). Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 180
Coube mais particularmente à literatura essa simetria com a narrativa histórica. Para Antônio Esteves (1998, p. 125) “a história e a literatura têm algo em comum: ambas são constituídas de material discursivo, permeado pela organização subjetiva da realidade feita por cada falante, o que produz uma infinita proliferação de discursos”. Neste âmbito surge o romance como gênero artístico-narrativo que mais se aproxima do extrato social e, é ele, desde o seu surgimento, responsável por reconstruir esteticamente os acontecimentos que acometeram o homem nos seus mais diferentes tempos e manifestações. Acerca destes aspectos que aproximam em grande medida a história e a ficção, é importante tentar observar qual foi o olhar da literatura sobre a Capitania de Goiás no período que corresponde ao que foi relatado pelos diversos viajantes, que por solo goiano passaram. Assim, fazendo o recorte do início do século XIX, é possível confrontar os discursos oferecidos pela história e pela literatura, concernentes à cultura, economia e sociedade goiana do mesmo século, tentando perceber, sobretudo, em que medida as artes assumiram os conceitos de decadência e isolamento e de que maneira estes estigmas foram trabalhados no texto de ficção. Essa verificação se dará com o confronto entre Historiografia e literatura no que tange ao discurso dos primeiros historiadores e o romance Chegou o Governador (1987), de Bernardo Élis, respectivamente. Bernardo Élis Fleury de Campos Curado nasceu em 1915, na cidade de Corumbá, hoje Corumbá de Goiás. Sempre se mostrou um importante pesquisador da história de Goiás, publicando vários ensaios voltados para esta temática. Sua preocupação histórica pode ser percebida, em particular, em uma de suas obras denominada Marechal Xavier Curado, criador do exército nacional, que reconstrói a importância do ilustre tenentecoronel, e ascendente da família do escritor, em prol da defesa do território brasileiro. Este ensaio, publicado em 1973, faz parte de um extenso rol de estudos acerca da história do povo goiano. Enquanto artista, dos três romances que Élis escreveu, dois são Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 181
sobre temas históricos goianos, como o famoso O Tronco, de 1956 e Chegou o Governador, de 1987. Assim, o romancista parece tornar plausível verificar em suas obras de ficção como as mesmas se apropriam do material histórico para a (re)construção da matéria em literatura. O enredo do romance inicia-se com a chegada, em 1804, em Vila Boa de Goiás, do governador D. Francisco de Assis Mascarenhas, português, filho das altas classes lusitanas e que fora nomeado governador da Capitania. O plano principal da narrativa de ficção se dedica a mostrar o enlace amoroso entre o novo Capitão-General e a jovem Ângela Ludovico, filha das terras de Goiás e de família que, apesar de abastada, não provinha da nobreza. Dentro dessa gama narrativa há um grande embaraço: apaixonado, o jovem governador não pode se casar com Ângela, que insiste no consórcio, mesmo contra os julgados preestabelecidos; porém, o matrimônio é para a goiana condição única para que o Conde permaneça ligado a ela amorosamente, uma vez que Ângela já se encontrava com dois filhos de D. Francisco. No entanto, devido aos costumes e interesses de ascensão política a que pretendia Mascarenhas, o casamento não se realiza, concluindo a narrativa com o governador partindo de Vila Boa em 1809 e a jovem casando-se com o seu antigo namorado, o Alferes José Rodrigues Jardim, este que, ao que parece, tem um parêntese na Historiografia, onde foi um importante personagem das páginas de Goiás. “A 31 de dezembro de 1831 tomava posse o presidente da Província de Goiás, Coronel-de-Ordenanças José Rodrigues Jardim” (AMERICANO DO BRASIL, 1982, p. 111). A própria estrutura do romance pode servir também como ponto de partida para a análise do diálogo que pretendemos aqui. A obra é dividida em quatro capítulos assim denominados: I – Febre com delírio; II – Febre sem delírio; III – Prostração; IV – Epílogo dispensável talvez. Tais termos foram retirados do discurso do Governador João Carlos Augusto D’Oeynhausen,
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registradas pelo historiador Palacin em Goiás 1722-1822: estrutura e conjuntura numa capitania de Minas: O general partia para sua capitania sem conhecê-la, sabendo unicamente que se tratava de um território novo, onde tudo estava ainda por fazer: traçava grandes planos para debelar o atraso e a miséria; pensava imortalizar-se arrancando aquelas vastidões da barbárie em que se encontravam. Era a febre com o delírio. Chegado a seu governo, percebia imediatamente que aqueles planos concebidos em Lisboa, ou no Rio de Janeiro, não eram aplicáveis no interior do Brasil. Procurava reformá-los, conformá-los com a realidade, cheio ainda de entusiasmo. A febre sem delírio. Os desenganos, a indiferença total com que eram recebidos seus planos de reforma, acabavam por vencê-los. Caía na prostração geral, no ritmo sem tempo das capitanias do interior (PALACIN, 1972, p. 114-115). O número de personagens da Historiografia que compõem o romance do autor goiano, a descrição da cidade de Vila Boa, os panoramas sociais e peculiares do povo da época podem ser largamente citados, no entanto, cabe aqui concentrar-se nas simetrias que mais diretamente se relacionam com os conceitos de “decadência” e “isolamento”, anteriormente abordados. No romance, ao tomar o poder de seu governo, Francisco de Mascarenhas busca compreender com precisão a Capitania, assim: De todas as informações colhidas obteve o governador uma reprodução bastante real do que era a terra, de modo a ficar ciente que: 1- Era enorme a decadência da capitania; 2- A população decresceu sensivelmente nos últimos 20 anos; 3- Os núcleos urbanos despovoaram-se; 4- Os habitantes deixaram os núcleos urbanos pela parte rural, onde se asselvajaram, esquecendo as práticas religiosas e uso e o valor do dinheiro; [...] 6- A mineração quase não existia; [...] 10- Dominava o espírito de derrota e ruína que
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fazia do goiano o mais triste dos seres (Chegou o Governador, 1987, p. 55/6). Nas informações que o personagem protagonista colhe sobre a Capitania de Goiás fica evidente que esta passava por sérios problemas. Percebe-se nas entrelinhas da ficção a presença de um discurso de vários autores da história goiana. Apontar para a decadência da Capitania, o êxodo da população, a extinção quase total da atividade aurífera e o desânimo que acometia o goiano naquela época foi o que fez a maioria dos viajantes que relataram esse vasto solo da colônia portuguesa. Além da concomitância temática, fica evidente a preocupação de Bernardo Élis, como pesquisador da Historiografia, uma vez que em tão pequeno trecho cruzam-se várias concepções, a fim de dar um panorama do que foi a terra goiana na primeira metade do século XIX. Ao terceiro mês, após a chegada do novo governador, Mascarenhas resolve fazer sua primeira viagem às águas quentes da Lagoa da Piratininga, lugar afamado por outrora ter curado os males do então ex-governador Tristão da Cunha Meneses. Apesar de não sofrer de qualquer mal, o jovem governador cultiva tal viagem com o intuito de conhecer o local de onde brota significativa “dádiva de Deus” e de talvez promover esforços para que o lugar se tornasse mais conhecido e visitado, tanto pelo povo da Capitania quanto dos lugares ainda distantes. Nesta viagem apresentada no romance é possível perceber o estado que vai surgindo da Capitania. Ao expor o retrato exterior à Vila Boa o narrador aponta: Taperas estavam por toda a parte: fazendas abandonadas ou minúsculas e paupérrimas casas que não possuíam nem currais, nem paióis. O mais impressionante eram as povoações abandonadas, algumas com um número considerável de casas relativamente bem construídas, com igrejas, altares ornamentados, imagens e paramentos, sinos e missais – tudo abandonado, sem um único habitante. Reino de fantasmas e lendas, das quais o povo Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 184
fugia apavorado e para as quais afluíam morcegos e corujas (Chegou o Governador, 1987, p. 101). A narrativa de ficção, predominantemente em terceira pessoa, aponta que, ao chegar o término do governo de D. Francisco, não se via grandes perspectivas na Capitania. Tanto por parte de Mascarenhas quanto da população local o espírito era acometido, como sempre, por uma descrença sem precedentes. Tudo parecia conspirar contra as tentativas de empreendimento as quais se dedicava o jovem governador, e tudo mais era um deserto naquele momento. D. Francisco, por estas alturas aceitava aquela antiga observação de Ângela: - Vila Boa é um degredo. – E sempre se lembrava de uma frase atribuída ao ex-governador D. José de Almeida Vasconcelos, em carta ao vigário de Meia Ponte, onde o grande homem confessava melancolicamente: “Conversando ontem com os meus botões, que são agora os que me fazem a corte, por estar a Vila uma tapera...” (Chegou o Governador, 1987, p. 114). Com um olhar final sobre a Capitania, o protagonista aponta as mazelas que acometeram Goiás com fim do ciclo aurífero e o que restou desta terra após a pequena fase de esplendor. No trecho, é explícita a alusão que se faz ao estigma de decadência, reproduzindo o que os primeiros historiadores de Goiás apontaram ao passar em viagem por estas terras. Aqui, por onde agora passavam, o panorama não diferia: buracos à margem dos rios atestavam antigas catas exauridas, pela vastidão dos campos as fazendas em ruínas, habitadas por morcegos ou por gente paupérrima, que já nem mais conhecia o sal como tempero dos alimentos, que se vestiam de molambos, permanecendo nus durante as viagens ou quando estava em casa ou no trabalho das roças (Chegou o Governador, 1987, p. 138). Quanto ao conceito de isolamento na obra de Bernardo Élis, a abordagem parece não diferir das perspectivas que o autor assumiu acerca do estigma de decadência. Quando o romance Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 185
apresenta o plano de construção do Pavilhão, um dos primeiros empreendimentos que o novo governador propõe para a diversão e entretenimento do povo goiano, aponta para um mal causado pelo isolamento: o goiano se via ocioso em demasia e por consequência contribuía em grande medida para o espírito de um povo entregue à sorte. A narrativa, ao abordar os objetivos pelos quais Mascarenhas se dedicou para referido projeto, recupera a visão geral dos tempos de governança dos antecessores do Capitão-General: “Na verdade, era difícil aguentar a pasmaceira desse governo, em que as relações não se efetivavam impedidas pela distância, pela preguiça, pelo desestímulo de todos” (Chegou o Governador, 1987, p. 91/2). D. Francisco via a necessidade premente de ocupar aquele povo com atividades de lazer, uma vez que via, no ócio, um grande aliado para a discórdia e para os “mexericos”, causadores de tão grandes males naquele ermo lugar. Tudo isso era, segundo o jovem, fruto do distanciamento, da impossibilidade de se comunicar tão facilmente com outros povos, o que fazia do goiano um grupo fechado em si mesmo e sem nenhuma perspectiva de vencer as barreiras do “isolamento”, causador do fracasso geral. “Parece, porém, que havia um castigo, um capricho da sorte, e nada andava, nada se desenvolvia. Não havia gente capacitada para o trabalho, nem recursos, com a distância e o deserto matando tudo e todos” (Chegou o Governador, 1987, p. 101). Associados à “decadência” e ao “isolamento”, diversos fatores apontavam para um inevitável fim da outrora próspera Capitania. As consequências dessa total desolação eram vividas pela maioria do povo, que muitas vezes se via obrigado a fugir, buscando refúgio onde não poderia ser facilmente encontrado pelo poder público, uma vez que os homens menos abastados quase sempre não podiam cumprir com as obrigações exorbitantes a que a Corte submetia os servos seus. A obra aponta para circunstâncias desta natureza, quando: É bem verdade que se o isolamento por tal forma, o homem ia perdendo contato com a civilização, esquecia os Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 186
princípios religiosos e as regras de civilidade, bem como o uso da linguagem escrita, retornando à barbárie. Mas a única forma de viver mais ou menos em paz era essa, incluindo-se entre os problemas afastados dos vadios (Chegou o Governador, 1987, p.137). Com estas exemplificações, se levarmos em consideração os contatos entre história e literatura, presentes na obra Chegou o Governador, de Bernardo Élis, percebemos que o ficcionista, ao compor seu romance foi, a priori, um atento pesquisador da história de Goiás. Bernardo Élis representa com objetividade e clareza a história de determinado tempo goiano. O autor usa de uma linguagem específica, reconstrói, alude e impressiona o leitor com sua habilidade artística. É pelas mãos desse artista que conhecemos a arte de (re)fazer o sertão goiano; reportamo-nos a um espaço de real/ficcional sem perder os referenciais de obra engajada em seu contexto. Para tanto, parece confirmar-se aqui que o artista, no que tange às fontes de sua pesquisa, tem privilegiado o que a Historiografia aponta como fontes primárias e pouco, ou nada trabalhou acerca do que escreveram os mais recentes historiadores e suas perspectivas de revisão das ciências históricas. A narrativa, nesta quase tarefa de relatar a Capitania do início do século XIX, expõe a visão que os primeiros viajantes empregaram sobre as terras do Anhanguera. No romance, os estigmas de “decadência” e “isolamento” são bem delimitados e repassados ao leitor com a mesma essência, cuja promoção original se atribui àqueles que primeiro os relataram. Esse caminho pelo qual percorreu Bernardo Élis em seu romance aponta para várias recorrências históricas que vão além das temáticas aqui abordadas. Quase todos os personagens da ficção, por exemplo, foram retirados das páginas da história; outro aspecto é o da alusão feita à invasão napoleônica em terras portuguesas e à vinda da Corte para o Brasil. Todo esse trabalho, ao que consta, confirma a mesma visão da Historiografia tradicional, assim como a tendência à historiador, empreendida pelo artista, em sua síntese histórico-ficcional. Muitos elementos Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 187
na obra de Élis assinalam para as várias pesquisas históricas que fez, tanto que, o romance, ao conduzir a ficção pelas alamedas da história, tem impressionado os mais diferentes leitores: “Quando lançou Chegou o Governador [...], li-o de uma sentada, emocionado. Eu conhecia das minhas pesquisas quase todos os personagens citados, mas não o destino que os unia (BERTRAN, 1998, p. 22). Coube, na perspectiva da contribuição da literatura para com a história, a partir da exposição do romance de 1987, a retomada dos conceitos que formaram os pilares da Historiografia goiana, a saber, “decadência” e “isolamento”, reforçando-os ainda mais. À narrativa artística, no entanto, resta a grande contribuição da história para a composição ficcional de seu enredo, tão bem entrelaçado aos retratos originados daquela ciência. Neste aspecto a obra ainda ganha por ser, a partir do diálogo que estabeleceu com a história, estimado por Romance Histórico Tradicional.
Referências ALENCASTRE, J.M.P. Anais da Província de Goiás. Brasília: SUDECO, 1979. BAKHTIN, Mikhail. Epos e Romance: Sobre a metodologia do estudo do romance. In: BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e Estética: A Teoria do Romance. (Trad. De Aurora Fornoni Bernardini et al). 2ª. ed, São Paulo: Hucitec, 1990. BERTRAN, Paulo. Elegia a Bernardo Élis. DF Letras: A Revista Cultural de Brasília, Brasília, ano IV/V, n. 47, p.20-23, 1998. BRASIL, Americano do. Súmula da História de Goiás. 3. ed. Goiânia: Unigraf, 1982. CHAUL, Nasr Nagib Fayad. Caminhos de Goiás: da construção da decadência aos limites da modernidade. Goiânia: Ed. Da UFG, 1997. D’ALINCOURT, Luiz. Memória sobre a Viagem do Porto de Santos à Cidade de Cuiabá. Belo Horizonte: ed. Itatiaia/São Paulo: EDUSP, 1975. ÉLIS, Bernardo. Chegou o Governador. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.
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Recebido em 30/09/2016. Aceito em 16/01/2017.
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A Literatura como desvio Marcos Vinícius Almeida39 Resumo: O presente ensaio levanta o problema clássico da mimese a partir da leitura do primeiro capítulo de São Bernardo, de Graciliano Ramos. O entendimento é que esse conceito, desde Platão e Aristóteles, apesar de uma visão distinta, não se refere a uma cópia idêntica de uma determinada essência ou objeto. Há, desde sempre, um desvio no processo mimético. E é justamente esse desvio a característica fundamental do texto literário. Palavras-chave: mimese, Platão, Aristóteles, Literatura.
Abstract: This paper raises the classic problem of mimesis from reading the first chapter of São Bernardo, by Graciliano Ramos. The understanding is that this concept, since Plato and Aristotle, despite a distinct view, does not refer to an identical copy of a given substance or object. There has always been a shift in mimetic process. And it is precisely this shift the fundamental characteristic of the literary text. Keywords: mimesis, Plato, Aristotle, Literature.
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Mestrando em Literatura e Crítica Literária na PUCSP. Integrante do grupo de pesquisa “O Narrador e as Fronteiras do Relato”, na mesma instituição. Bolsista FAPESP.
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Na célebre abertura de São Bernardo, de Graciliano Ramos, Paulo Honório diz ter imaginado a construção de seu livro pela divisão do trabalho: Padre Silvestre ficaria responsável pelo aspecto moral e citações latinas; João Nogueira se encarregaria da pontuação, ortografia e sintaxe; a tipografia caberia a Arquimedes. Para se encarregar daquilo que o narrador chama de “composição literária”, o nome escolhido seria Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor de O Cruzeiro. Paulo Honório, por sua vez, traçaria o plano geral e introduziria na história elementos de agricultura e pecuária, arcaria com as despesas e sapecaria seu nome na capa. Superada a empolgação inicial, os planos um tanto quanto fordistas de Paulo Honório dão em água. Primeiro, porque João Nogueira queria o romance em língua de Camões, “com os períodos formados de trás para diante”. Depois, porque Gondim apareceu com um texto que, na avalição de Paulo Honório, estava “pernóstico”, “safado”, “idiota”. O motivo, segundo o narrador, foi o seguinte: ninguém fala dessa forma (RAMOS, 2006, p.7-9). Azevedo Gondim apagou o sorriso, engoliu em seco, apanhou os cacos da sua pequenina vaidade e replicou amuado que um artista não pode escrever como se fala. - Não pode? Perguntei com assombro. E por quê? Azevedo Gondim respondeu que não pode porque não pode. - Foi assim que sempre se fez. A literatura é a literatura, seu Paulo. A gente discute, briga, trata de negócios naturalmente, mas arranjar palavras com tinta é outra coisa. Se eu fosse escrever como falo, ninguém me lia (idem, p.9). Paulo Honório e Gondim estão em posições opostas a respeito da constituição do texto literário. Para o primeiro, o texto deve soar natural; ou seja, deve se escrever exatamente como as pessoas falam; para o segundo, o objeto literário encerra um procedimento antinatural, não se pode escrever exatamente como as pessoas falam. De acordo com Paulo Honório, para ser Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 191
verdadeiro, o texto deveria copiar os modos de falar do mundo concreto, tal e qual; para Gondim, as palavras devem ser arranjadas de outro modo, isto é, há uma espécie de desvio, a Literatura é “outra coisa”. Se ultrapassarmos essa questão de superfície, a saber, a opção por registro coloquial ou erudito – o problema de fundo nesse diálogo entre Paulo Honório e Gondim é um problema tão antigo como a própria Literatura: incide sobre a natureza da representação artística. Cabe questionar: por que, na visão de Paulo Honório, um texto que escapasse do registro da fala concreta seria “safado” e “idiota”? E por que, para Gondim, de forma oposta, um artista não pode escrever como se fala? Ou ainda: por que ao tratar de negócios a linguagem pode fluir “naturalmente”, mas, ao “arranjar as palavras com tinta”, ao se propor a fazer literatura, estamos lidando com “outra coisa”? O que seria essa “outra coisa” de que fala Gondim? Tais questões, no nosso entendimento, parecem esbarrar numa noção fundamental referente ao objeto literário: a noção de mimese. E nesse sentido, esse trabalho pretende mostrar, próximo dos argumentos de Gondim, que o procedimento de composição literária (mimese) se constitui a partir do desvio – o objeto representado não se identifica e nem poderia se identificar com a coisa representada. Para sustentar essa leitura, vamos recorrer a dois pensadores clássicos que trataram desse conceito – Platão e Aristóteles.
Mimese Na República E Na Poética Embora Platão fosse um escritor, e fizesse uso da alegoria40 (uma ficção, portanto) como recurso retórico e pedagógico, o filósofo é comumente lembrando como aquele que expulsou os poetas da cidade perfeita. Isto porque o poeta: “o criador de imagens, o imitador, não entende nada da realidade, só conhece a 40No
Livro VII da República.
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aparência”.41 A exigência feita pelo filósofo é que a poesia deveria estar a serviço da verdade, e verdade para Platão é tudo aquilo que está ancorado ao aspecto inteligível, a razão: o mundo eterno e necessário das essências. E nesse sentido, ao copiar o mundo empírico-sensível, (pois a realidade empírica já é uma realidade precária, uma cópia decadente das essências eternas), o poeta estaria a três graus distante do real. Como se, ao escapar das correntes da caverna, o poeta continuasse onde está: a contemplar as sombras e escrever versos sobre elas, ignorando que não passam de simulacros. Daí a crítica contundente do filósofo ao procedimento mimético: ao operar no campo da ilusão (e justamente por seu forte poder encantatório), a poesia mimética colocaria em risco a cidade perfeita. Não se pode fundar uma cidade sobre um conhecimento ilusório. A mimese produz simulacros dos quais é difícil separar a verdade da ilusão. Por isso, de acordo Jeanne-Marie Gagnebin (1993, p. 68), a crítica de Platão a mimese se insere numa problemática política, de cunho ideológico, antes de encerrar um problema estético. Platão procura, contra os sofistas, manter a qualquer preço uma linha de distinção bem definida entre realidade e ilusão, verdade e mentira. Sem essa linha, todo o seu projeto de construção da cidade justa desmoronaria. Por isso, a sua crítica da mímesis pertence a um projeto político muito maior, que poderíamos chamar, hoje, de luta ideológica. Sabendo da força das imagens, Platão tenta domar, controlar a produção dessas imagens, impondolhe normas éticas. Esse gesto inaugura a crítica ideológica e, inseparavelmente, a censura, uma aliança infeliz que perdura até hoje (GAGNEBIN, p. 68).42 41
PLATÃO, A República, Livro X, posição 5836, Edição Kindle.
Gagnebin ressalta, no entanto, que, como vários comentadores apontaram, a filosofia de Platão repousa profundamente sobre uma concepção mimética do pensamento – a reprodução de um paradigma 42
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Por outro lado, para Costa Lima (1995, p.63-65), o juízo platônico sobre o processo mimético – embora tenha extraditado a mimese de seu campo original –, seria uma espécie de “ênfase” no aspecto ético da representação, porque esse teor ético já estaria presente no campo originário da mimese: a dança, que possuía status terapêutico. Cabe aqui ressaltar um ponto importante da reflexão de Platão: mesmo tratada como algo decadente, a mimese em Platão não é uma cópia idêntica às ideias, já que a cópia é imperfeita, precária. Já em Platão, portanto, o processo mimético opera por dessemelhança, há um desvio inerente na representação de um objeto. Aristóteles, por outro lado, tem uma visão menos negativa da mimese. Se para Platão o processo mimético tende a produzir imagens decadentes e precárias, afastadas em três graus da verdade, para Aristóteles, como fica evidenciado no capítulo IV da Poética – além de ser congênita ao homem – a mimese está ligada ao raciocínio, produz novos conhecimentos, que, por consequência, provocam prazer. Nós contemplamos com prazer as imagens daquelas coisas que olhamos com repugnância na realidade empírica, por exemplo, animais ferozes e cadáveres. Ou seja, o conhecimento se dá no campo da representação – e nesses casos exclusivamente através da representação – e não diante do objeto imitado. Causa é que o aprender não só muito apraz aos filósofos, mas também, igualmente, aos demais homens, se bem que menos participem dele. Efetivamente, tal é o motivo por que se deleitam perante as imagens: olhando-as, aprendem e discorrem sobre o que seja cada uma, [e dirão], por exemplo, “este é tal” (ARISTÓTELES, 1984, p. 243). ideal. Ou seja: o que é o mundo sensível senão a mimetização do mundo inteligível? Nesse sentido, o pensamento platônico deve distinguir o processo mimético originário da atividade mimética artística ilusória (p. 69). Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 194
A inferência “este é tal” não afasta o homem da verdade, mas nos leva a conhecer coisas que não conheceríamos sem a mediação do processo mimético. Há, portanto, também em Aristóteles, um processo de dessemelhança na representação: a representação não é uma cópia idêntica do objeto, caso fosse, ao vermos um cadáver ou animal feroz em uma representação teríamos a mesma aversão que temos diante do objeto empírico. O prazer, portanto, não resulta da duplicação da imagem.43 Algo se perde no processo de representação: é justamente essa perda, esse desvio, que garante o conhecimento de algo novo.44 Exatamente por isso, diz Aristóteles no Capítulo IX da Poética, o ofício do poeta não é narrar o que aconteceu, mas sim o possível, segundo a verossimilhança e a necessidade. O poeta é poeta não porque produz versos, pelo tipo de adornos que manuseia – um historiador que escrevesse em versos não deixaria de ser historiador – mas sim pela fabulação (p.249). Enquanto o ofício do historiador é condicionado por uma fidelidade aos fatos empíricos, isto é, por ações particulares, o poeta, que opera no reino da representação, se aproxima do universal, portanto, da filosofia. 43
LIMA, Luiz Costa. Constelações da imitatio, 1995. p. 74.
Se pensarmos a partir de Costa Lima (1995, p.71), ao tratar da noção de metáfora, fica patente como a natureza do processo mimético é fundamentalmente dessemelhança. A metáfora é o processo mimético por excelência, a mimese no interior da linguagem, que opera por analogia. E toda analogia carrega, ao mesmo tempo, uma relação de semelhança, mas também uma diferença: uma autonomia. Ao transferir uma qualidade de uma coisa para outra, a metáfora produz um terceiro elemento, autônomo. “Na obra produzida”, escreve Costa Lima, “a metáfora realiza a forma à medida que ativa a forma própria do representado” (idem). A habilidade do artista consiste em afastar os traços acidentais e representar a forma própria (idia morphé). A forma própria garante a similitude; o afastamento das formas acidentais constitui a dessemelhança. É também por esse motivo, por exemplo, que poesia é uma representação de ações, e não de indivíduos concretos: as ações, os enredos representados numa tragédia e numa comédia poderiam suceder a quaisquer homens. No caso específico da tragédia, a homens melhores que nós, no caso da comédia, piores que nós (ARISTÓTELES, CAP. II, p. 242). 44
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O poeta, dirá Aristóteles, se aproxima do universal porque atribui a um indivíduo pensamentos e ações que, por necessidade e semelhança, convém a tal natureza (idem). Enquanto o historiador é necessariamente escravo do objeto representado, cabe ao poeta operar um desvio: a mimese não se identifica com o objeto, a mimese é “outra coisa”.
Literatura é desvio Agora podemos voltar ao diálogo entre Paulo Honório e Gondim. Como se viu até aqui, a mimese, tanto na concepção de Platão como na Aristóteles, não produz uma cópia idêntica de um objeto, mas sim algo ao mesmo tempo semelhante e dessemelhante. Nos dois casos, a mimese opera um desvio. A diferença entre os dois pensadores está no seguinte ponto: em Platão, a representação tem um custo – a degradação da essência. Em Aristóteles, por outro lado, produz prazer e conhecimento: a inferência “este é tal” é de natureza exploratória – nos leva a comtemplar campos da realidade que seriam inacessíveis sem a mediação do processo mimético. Paulo Honório, nesse sentido, ao dizer que o texto de Gondim era idiota e safado, exige da representação literária uma imitação perfeita, idêntica, sem mediação: a duplicação do mundo empírico no texto literário. Para não ser safado e pernóstico, na visão do narrador de Graciliano, seria necessário escrever igual se fala, de modo idêntico. Marcado por uma ingenuidade que o aproxima dos construtores de mapas do conto Borges, Paulo Honório crê que a verdade do texto literário está vinculada a uma espécie de fidelidade irrestrita e grosseira ao mundo empírico. Paulo Honório quer a verdade dos fatos, não a verdade possível. Gondim, por sua vez – embora em um primeiro momento respalde sua argumentação em tautologias vagas (“literatura é literatura”, “sempre foi assim”) – parece entender que o processo de composição do texto literário, o processo mimético (assim como fica explícito nas concepções de Platão e Aristóteles aqui Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 196
expostas), opera um desvio em relação ao objeto representado. Não há relação de identidade. Quando a personagem diz que “arranjar as palavras com tinta é outra coisa”, esse “outra coisa” é justamente a dessemelhança, a diferença – aspectos determinantes da composição literária. Mais adiante, o próprio Paulo Honório parece constatar seu equívoco. No segundo capítulo (RAMOS, p.12), quando resolve escrever o livro sem os companheiros, ele diz o seguinte: “Tenciono contar minha história. Talvez deixe de mencionar particularidades úteis, que me pareçam acessórias e dispensáveis”. Paulo Honório parece finalmente ter compreendido que não adiantaria contar tudo, exatamente como os fatos se sucederam. Porque a Literatura é desvio – ou como diria Gondim – é “outra coisa”.
Referências ARISTÓTELES, Poética. Tradução de Eudoro de Souza. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984. GAGNEBIN, J.M. Do conceito de mimesis no pensamento de Adorno e Benjamin. Perspectivas, São Paulo, nº16, 1993. p. 67-86. LIMA, Luiz Costa. Deslocamentos da mimesis, Parte I, In: Vida e mimesis. São Paulo: Ed. 34, 1995. p. 63-83. PLATÃO, A República. Tradução: Ingrid Cruz de Souza Neves. Brasília: Editora Kiron, 2012. Edição Kindle. RAMOS, Graciliano. São Bernardo, 83ª Edição. Rio de Janeiro: Record, 2006.
Recebido em 30/09/2016. Aceito em 16/01/2017.
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Prosa e poesia
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Noturno de Olinda Álvaro Santi
Do alto dessa colina, onde plantaram mais cruzes do que alguém contar consiga, não vejo o mar, no momento. Perscruto a noite dos tempos, vasto horizonte da história, em busca de vida, de luzes, nem sei se em mim ou lá fora. O passeio dura pouco, mas agrada a companhia. E a paz da noite convida a partilharmos um sonho. É então que avisto o par ‒ tão jovens ‒ poeta e musa. Vão subindo essa ladeira, há duzentos carnavais. Mesmo luar sobre as palmeiras, mesmo perfume do mar... A vida, porém, mais dura; o amor, quem sabe, melhor? Seus olhos buscam, ao longe, um país que não virá; não desse mesmo horizonte, onde a aurora se apresenta, que cruzaram seus avós, fugindo do que houve lá. Nenhum deles dois suspeita que ele vai nascendo, já. Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 199
(cont.) País sem canga ou cadeias, que achará, a duras penas, o seu lugar neste mundo, ainda não se sabe qual. Com tanta história e desejo quanto lhe pudermos dar, com alguma dose de rumo e outro bocado de sorte, ventos de sul ou de norte: certo é que ele existirá. Poeta e musa sonham com esse dia, que só virá depois, muito depois que a cobiçosa preia do gentio tiver rasgado à força o continente. Ainda antes de saber dos vales, alheio ao fluxo dos caudais gigantes. Depois que não houver mais prostitutas à espera diante desse hotel de luxo. À mesma mesa todos estarão reunidos. Os índios viverão em paz, no seu costume. Não haverá mais rei, nem clero, nem nobreza. Nenhum tesouro irá, por sobre o mar, quer seja fruto, rocha ou animal, encher as arcas de usurário ou cardeal. O bacharel será como o artesão e aquele que já foi escravo um dia, ao lado do que era o seu senhor, serão de fato e de direito iguais.
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Grandes feitos
Erick Silva Bernardes Há momentos na vida em que o senso crítico nos abocanha. Ficamos mais pensativos. De repente tudo nos comove. Certo trecho bonito de livro, uma letra interessante de música. Um filmezinho qualquer. Aí vêm as reflexões: o mundo globalizou-se, ficamos sobremaneira instruídos. Consequência disso é que cada vez mais suprimos nossas necessidades com invenções utilitárias. Com Tati não foi diferente, ela poupa suas economias no intuito de pôr próteses para preencher uma falta, um vazio em seu peito, ou seja, quinhentos mililitros de silicone para suplementar seus seios. Algo utilíssimo por sinal. Certa vez segredou-me: _ Ahhh ! Seu eu fosse como aquelas americanas com “air bags” enormes, faria maior sucesso lá no bairro. Todos iam saber da minha força de vontade e que tenho empenho pra levar um sonho até um fim. Há três anos que essa nossa amiga cismou com seus mínimos mamás. Tati realiza pequenos trabalhos como modelo fotográfico de revista e em promoções de jornais: compre, concorra e leve para casa. Quando sai com a galera leva apenas cinco reais enfiados no bolso e um cartão bilhete único, para não ficar a meio caminho das diversões que costuma participar. No pagode bebe cerveja sem gostar, come salgado sem gastar. Porque todo mundo compra uma loirinha gelada e um tira-gosto pra curtir. E no meio da bebedeira ninguém sabe mais quem pagou ou não. Aquele camarada que gastou para molhar o “bico” nem liga de ver a econômica amiga com a boca no gargalo e a língua saliente. A futura Pamella Anderson não pode movimentar sua conta poupança. Razão pela qual, sempre tem alguém que carrega consigo sentimentalismos elevados que permitem trocar uma ou outra garrafinha de “Ice” por beijos sôfregos e amassos nada
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gelados. Intercâmbios ultramodernos de gestos e fortes abraços que acabam em expressões maiores e mais contundentes. Dia desses, na casa de praia que seus amigos alugaram para passar o carnaval em Cabo frio, Tati resolveu mudar o rumo da sua vida. Decidiu ganhar dinheiro para acelerar o processo de superinflação mamária. Como não fez parte da lista das despesas da casa de veraneio, ela teve uma ideia, gastou dez por cento da poupança na esperança de ampliar o seu capital. Empreendedora de primeira ela pensou (por ela mesma) em comprar quinhentas caixas de leite pra concorrer à promoção da marca “longa vida” Ordenha preciosa. Recortou os úberes das vaquinhas que estampam o produto lácteo e os enviou à fábrica de laticínios do concurso em questão. Recentemente, noticiaram que Tati ganhou uma moto zerinho zerinho num desses sorteios. E, até o momento, pelo que sei, ela concorre a tudo, até a capas de telefone celular para seu Iphone sem crédito. Dizem que a nossa amiga vende quase todos os itens dos concursos que ganha, ficando assim famosa pelas suas frequentes premiações. O que se sabe dela, mais recentemente, é que passou a ser conhecida como a garota propaganda do leite desnatado. Nas poucas vezes que a encontro, digo um oi sincero e até qualquer hora. E, se der tempo, fixo o olhar no seu decote, para poder saber em que altura encontra-se a realização do seu grande sonho. Enfim, das conquistas de Tati tiram largas lições lá na comunidade. E, na próxima eleição virá até como candidata a vereadora. Seu Slogan já é filosofia na boca da população masculina: “Todos conhecem os grandes feitos da Tatiana, quem não os conhece não sabe o que é firmeza”.
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Escravo do tempo
Rodrigo do Prado Bittencourt Shurhak-Pir, sacerdote do deus Ahsjike, membro do povo elative, da foz do rio Yhruti, agora trabalha na construção de um templo estrangeiro. Seu povo foi vencido e dominado e os trabalhos forçados obrigam-no a trair seus ancestrais e seu deus. Entretanto, ele sabe que não podem suprimir a verdade que existe em si, a crença em seu interior. Por mais que os músculos trabalhem para o deus estrangeiro, desconhecido, a mente de Shurhak-Pir está voltada para Ahsjike, que acordará de seu sagrado sono mais dia ou menos dia e logo derrotará os estrangeiros. Ahsjike escolheu Shurhak-Pir para ser seu sacerdote quando este era ainda uma criança. Ninguém pode derrotá-lo, pois as águas sagradas do rio Yhruti, no mês da colheita do trigo, sob os auspícios de Vkajtri (a Lua), lavaram o corpo de ShurhakPir das maldições e dos feitiços. A morte e a derrota só poderiam vir se Ahsjike estivesse encolerizado com Shurhak-Pir, o que não faz sentido, pois na noite anterior ao ataque dos estrangeiros, o deus deu mostras de apreciar seu sacerdote, durante os festejos do fogo, fazendo com que seu corpo passasse ileso pelas brasas. Além disso, Shurhak-Pir,nesta mesma noite, sacrificou duas vítimas humanas a Ahsjike. Após os festejos, ele foi dormir; no outro dia, acordou com a gritaria de todos, surpreendidos pelo ataque dos estrangeiros. Ele não se lembra de ter cometido nenhum pecado entre a festa e sua captura. O povo inimigo, montado em seus grandes animais, gritava e matava a todos que encontrava no caminho. Os que sobreviveram ao massacre, que cessou assim que a tribo foi inteiramente dominada, foram capturados para trabalhos forçados. As mulheres foram estupradas. Os elatives não foram mantidos juntos, mas dispersados pelo reino inimigo, trabalhando com escravos de outras nações. Shurhak- Pir trabalha na
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construção de um templo para um deus inimigo, o mais ultrajante e sacrílego de todos os serviços para um sacerdote de Ahsjike. Para Shurhak-Pir, Ahsjike está punindo não o seu sacerdote, mas o seu povo. Ainda assim, ele sabe que o deus não pode aceitar esta humilhação de seu representante e espera ansioso o despertar do deus, que sempre dorme após a festa do fogo e só desperta no dia da celebração do Vento (Iliuyhjt). Ele teme, entretanto, que Ahsjike se zangue com ele ao despertar, por vê-lo trabalhando para um deus estrangeiro. Shurhak-Pir, entretanto, argumenta para si próprio de que isso não ocorrerá, pois Ahsjike perceberá que o trabalhador que aguenta os chicotes do povo das estepes e que sua carregando as pesadas pedras do templo do deus estrangeiro não é mais o sacerdote Shurhak-Pir, amado por Ahsjike, mas outro homem. Afinal, quem pode duvidar disso? O que faz com que Shurhak-Pir seja Shurhak-Pir? O serviço sempre dedicado ao seu deus e o poder sobre seu povo. Nenhuma destas coisas continua a existir. Então, o sacerdote não mais existe e o trabalhador é outro ser humano. A própria palavra “eu” não passa de uma mentira, já que ele liga duas realidades completamente distintas. Ou alguém duvida que o hoje é diferente do ontem e que a simples presença do tempo e sua sucessão de mudanças já é o suficiente para alterar tudo que existe? As vidas e as mentalidades de dois homens diferentes podem ser mais parecidas entre si que as de um mesmo homem e a criança que ele foi. Na verdade, isto é muito comum. Assim, Ahsjike não poderá se zangar com seu sacerdote, pois ele já não existe mais. A cada pedra que carrega, Shurhak-Pir reflete sobre a existência de sua identidade e assim sobre todo o universo. Enquanto o sol escaldante fustiga seu corpo e a sede o atormenta, ele se pergunta se seria possível pensar em alguma palavra com existência real. Sabe que a dor do cansaço a e a sede são verdadeiras, pois as sente, mas não sabe se pode chamar a dor de hoje de “dor”, comunicando-lhe uma identidade com a dor de Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 - ISSN 2317-4722 – Pág. 204
ontem, ainda que a de hoje seja maior. Não seria falsear tornar um só aquilo que é distinto? Shurhak-Pir reflete sobre um ponto em especial, que é o que mais lhe interessa: a memória. Seria um ser humano capaz de reviver plenamente o passado por meio da recordação? O trabalhador escravo de hoje poderia voltar a ser Shurhak-Pir na festa do fogo, antes da chegada dos estrangeiros montados em seus grandes animais? Infelizmente, o elo foi quebrado: por mais que se esforce o escravo que carrega as pedras da construção do templo do deus inimigo não consegue sentir o prazer de se banquetear com seu povo, após ser especialmente favorecido por Ahsjike. As dores nos braços, o suor diante do calor, a sede, o cansaço... as sensações físicas como um todo falam mais alto que a força da meditação; mesmo para um sacerdote do poderoso deus elative. Forte o suficiente para provarem a Shurhak-Pir que ele é mesmo outra pessoa, completamente distinta do sacerdote que lembra ter existido. Assim, como os guardas dos trabalhos forçados começam mais brandos e, com o tempo, vão se tornando cruéis, tudo é mudado pelo tempo. Às vezes, completamente. No dia da celebração do Vento (Iliuyhjt), o deus do fogo não acordou e veio, em majestade e poder, libertar seu sacerdote da opressão. Tudo muda: até os deuses. Shurhak-Pir não sente raiva dos guardas que o oprimem. Afinal, ele não é escravo deles, mas do tempo. Nem mesmo mais se reconhece como Shurhak-Pir e não atende se alguém de seu povo o chama assim, nas poucas vezes que reencontra um deles. Agora, seu nome é “escravo”.
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Sacrossanto império do terror Gustavo Tanus
Ao que se pode recobrar desde este posto de observação, já me afasto do simples olhar que permitiria perceber a chegada do inimigo. Não é alguma incapacidade que me torna inapto a ver o inimigo avançar. Não há hostilidade, e, talvez, por isso, não faz mais sentido estar de vigília. Ontem, na troca da guarda, quando acabara meu turno, o próximo iniciou uma rápida conversa, que eu puxei o sabre e o investi em seu pescoço. O fluxo de sangue alertou que contra a surpresa não há resistência. Nada ao leste, nada ao oeste, nenhuma cavalaria percorrendo jardas de sucesso até a muralha. Chequei a marcação do solo, cem, duzentos, quinhentos metros, horizonte limpo. Eles não estavam lá. Era um dia como qualquer outro. Algumas nuvens em cúmulos, forragem verde, cheiro seco e quente de uma tarde bela. Um guarda gritou ao comando, chamou reforços, ordenava que eu soltasse a arma. E já que não havia mais motivos para empunhá-la, decidi que iria arremessá-la ao chão. Não havia contrariedade entre as nações desde o tempo dos meus ancestrais e nem por isso crescemos livres do medo. Penso que se vivêssemos em luta direta teríamos motivos para empunhar a espada e recear alguma invasão. Mas não, o período de guerras já havia ficado no passado. O que nos sobrava, naqueles tempos, era o simples medo. Um medo sem propósito. Um medo criado pelo discurso de que devíamos lutar pela liberdade. E essa liberdade era ter que subir todos os dias, por ofício, aqueles muros de pedra?
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Tantas horas de seriedade, tantos minutos de cuidado, tantos segundos de ódio a um inimigo invisível talvez me tivessem feito um assassino. Mas talvez eu fora assassino desde o momento em que me propusera a matar a quem pudesse apontar no horizonte. Enviaram um destacado inteiro para me escoltar até a masmorra. Caso tivesse sorte, teria um julgamento. No momento da troca da guarda, como fazíamos todos os dias, escutei várias vozes que se mesclavam a do líder. Conselhos dos meus antepassados, gritos de horror, de escárnio. Vozes quase indistintas. Ao que se ordena a um soldado, não há ordem. Partilha-se de um ideal que atravessa seu peito e se aloja no cérebro em forma de ódio contra o combatido. Aprende-se a lutar por uma bandeira, por um cercado de terras, em nome de uma alta aspiração impossível de ser plenamente demarcada. Esta aspiração finge sua compleição, se fecha em limites de um inimigo idealizado, que, quanto mais mortal, menos real. Pois que se o inimigo for deveras real, não muito sobraria do muro em onde nos aportamos, nem muito de nós. E, assim, não estaríamos em cima de um ofício de vigília, e estaríamos senão a lutar com verdadeiro propósito de não permitir a aniquilação dos nossos corpos, das nossas casas, o abuso contra nossas mulheres. Na falta de realidade para que este inimigo se realizasse, continuávamos idealizando-o, conforme subsídios convincentes e fortes motivações, fornecidos pelo orador da nação. Cada sílaba pronunciada discursivamente nas preleções era apropriada de forma a ser amplificada pelo melhor sentimento que, naquele momento, possuíamos: o ódio.
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Nunca soubesse que o recebedor do texto é também ótimo produtor, ou melhor, é o mais eficaz. Porque sem todos os requisitos para a produção, o que é comumente parte daquele que gere e inscreve o discurso, em quaisquer de suas modalidades, aquele que o toma pelas beiradas, por suas pequenas partes e dele constrói isto que hoje chamo de ideologia, é aquele que mais consegue expandir. Assim que deste crescimento, daquilo que meu colega que me renderia no serviço pode dizer, ergui meu sabre contra suas hordas de inimigos e os atingi logo que apontaram as cordas vocais. E de uma só estocada atravessei a lâmina por todo o campo em donde preparavam a hostil incursão. Não morri pelo machado do verdugo, nem me dependuraram na corda higiênica da forca. Me deixaram esquecido nesta masmorra, meu lugar de condenação. À época do julgamento fizeram crer que eu possuía contendas pessoais contra o assassinado. Mas se equivocaram, porque meu ataque não fora desferido contra uma pessoa, mas contra todo um exército, todo um destacamento. Uma nação inimiga gerada pelas palavras daquele pobre homem, que morrera porque instituíra o sacrossanto império do terror, do qual, se bem atento hoje, somos todos igualmente culpados, e inocentes.
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